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No intervalo das conversas

perigosas há sempre um
começo de abismo
Um acordo para instalação de bases militares norte
americanas num pequeno país da América do Sul. A morte
do general encarregado do acordo num misterioso
acidente.

© 1969 – Lou Carrigan


Publicado No Brasil Pela Editora Monterrey
Ilustração De Capa: Benício
JVS – 400630 - 401107
PRELÚDIO

A pequena mansão branca, de um só pavimento, ficava


no centro de um frondoso jardim, com grandes árvores e
floridos canteiros, que se estendiam até o gradil, não menos
de cento e cinqüenta metros mais além. Uma bonita casa,
num bonito lugar silencioso e tranqüilo, quase bucólico em
meio à paz da noite estrelada.
Da mansão saíram dois homens, deixando a porta aberta
e as luzes acesas. Um dos homens era alto, de ombros
largos e robustos, cintura fina, mãos grandes, pernas
compridas e fortes, e uma grande cabeça muito redonda,
com o cabelo cortado à escovinha. Vestia calças brancas e
uma camisa preta, de malha, com as mangas enroladas até o
cotovelo. O outro homem era na verdade o oposto do
primeiro: estatura mediana, delgado, ombros secos e
ossudos, cabelos longos e uma barbicha muito bem
recortada, que lhe cobria a parte inferior do rosto. Usava um
uniforme militar, mas tinha a cabeça descoberta. Quem
levava o quepe era o tipo alto e atlético, que caminhava a
seu lado, ágil e elástico, como um felino.
Dirigiram-se para o carro negro que estava parado diante
da casa, numa pequena esplanada circular. O mais alto abriu
a porta junto ao volante e o fardado entrou, ocupando o
lugar do chofer.
Então chegou outro homem à pequena esplanada
circular, procedente do portão que dava entrada ao jardim e
que se podia divisar ao longe, graças à luz azulada de duas
lâmpadas que o ladeavam. O recém-chegado era quase alto,
de longos cabelos pretos, bigodudo, olhos pequenos e
brilhantes. Sorria mostrando uma dentadura
imaculadamente branca. Seus movimentos eram
preguiçosos, e quem entendesse de raças humanas
perceberia logo que em suas veias corria sangue índio... e,
aproximadamente, a mesma quantidade de sangue branco.
— Está tudo pronto? — perguntou ao chegar.
— Está — disse o sujeito atlético dos cabelos cortados à
escovinha. — Você abriu o portão, José Juan?
— De par em par — sorriu José Juan, o mestiço. — Isso
não é difícil de fazer, Vladimir.
— Eu sei. Mas parece que você leva tudo na brincadeira.
E isto não é brincadeira nenhuma.
— Pois terminemos, então. A mim só agradam as
brincadeiras. Vou à garagem buscar a gasolina.
Começou a caminhar, enquanto o homem f ar-dado que
estava atrás do volante virava a cabeça para Vladimir e
olhava-o desconcertado.
— A gasolina? Acaso o tanque já não está cheio para...?
Lançou uma exclamação de surpresa. Mais de surpresa
que de dor, pois a espetadela em seu braço fora quase
indolor, na realidade. E após a exclamação, ainda surpreso,
o militar barbudo ficou olhando para Vladimir, que tinha na
mão direita a delgada agulha com a qual, inesperadamente,
lhe espetara o braço esquerdo.
— Que... que foi isto? — murmurou. — Que... que...?
Seus olhos giraram nas órbitas uma fração de segundo,
enquanto suas pálpebras se moviam rapidamente. Súbito,
fechou os olhos e caiu de lado, para fora do carro; teria
caído na esplanada se Vladimir não o tivesse agarrado, para
depois colocá-lo corretamente no assento, imerso num sono
profundo. Deixou-o ali bem acomodado, depois abriu o
capô do motor do carro, que esteve manipulando durante
quase um minuto. E quando finalmente baixou o capo, José
Juan estava a seu lado, com uma lata de gasolina.
— Conseguiu? — perguntou.
— Claro. Pensou que a esta altura eu fosse talhar numa
coisa tão simples? Tudo está bem estudado. Seis ou sete
segundos depois de pôr-se em movimento... pum! O carro
explodirá. Derrame a gasolina.
José Juan abriu a porta direita do veiculo e começou a
derramar a gasolina da lata que tinha ido buscar na
garagem. Vladimir fechou a porta do outro lado, junto á
qual o militar continuava adormecido; depois atirou o quepe
deste ao assento contíguo e disse:
— Já chega, José Juan. Não se deve exagerar. É
suficiente. Leve a lata para a garagem e veja que tudo fique
como estava. Depois vá para o portão.
O mestiço fez tudo o que lhe recomendara Vladimir. Por
fim, passou junto ao carro, a caminho do portão. Ao chegar
lá, agitou um braço e Vladimir o viu, apenas sua silhueta.
Tudo estava preparado.
Então Vladimir ligou o motor. Assegurou-se de que os
freios estavam soltos e de que o carro arrancaria em
primeira; depois tudo seria automático. Ergueu a perna
direita do militar adormecido e colocou cuidadosamente seu
pé sobre o acelerador, Soltou-o e afastou-se rapidamente,
fechando a porta com um golpe fortíssimo quando o veículo
passou a seu lado, em velocidade moderada, devido à pouca
pressão que o pé do militar adormecido exercia sobre o
acelerador. O carro saiu da esplanada, com os faróis acesos,
que lançavam longos feixes de luz para as árvores e os
floridos canteiros. Enfiou pela alameda um pouco mais
depressa, descrevendo uma linha espetacular em
ziguezague, que o levava em direção aos canteiros floridos,
que o fazia roçar as grossas árvores..
E depois, inevitavelmente, foi de encontro a uma destas.
Ato continuo, uma grande labareda brotou do motor, logo
envolvendo poderosamente todo o carro, que em poucos
segundos se transformou numa enorme fogueira.
Menos mal que, por se encontrar profundamente
adormecido, o homem tardado não se inteirou de nada.
Sim. Menos mal.

CAPÍTULO PRIMEIRO
Nova estratégia americana no Pacífico
Sete ridículas maravilhas do mundo antigo
Os barcos navegam pela floresta virgem...

Brilhou um facho de luz e o rosto de um homem


apareceu na pequena tela colocada na parede, em cores. O
rosto de um homem de cinqüenta anos, longos cabelos
grisalhos e barbicha bem recortada. Havia uma expressão de
inteligência naquele rosto fatigado, mas risonho e de certo
modo atraente, o que não parecia estar de acordo com o seu
bonito uniforme militar.
— O general Armando de Lerma — disse uma voz, na
penumbra da sala de projeção. — Um político deficiente,
mas um militar notável entre os poucos desta espécie com
que conta a República de Chiruavia. Quer dizer: contava,
pois como lhe disse, Armando de Lerma perdeu a vida num
estúpido acidente de automóvel, no jardim de sua própria
mansão. Segundo consta, será sepultado amanhã, com todas
as honras militares a que faz jus. Era um dos poucos
grandes homens de Chiruavia.
— Com o que, restam ainda menos grandes homens por
lá.
De fato, o general de Lerma residia a uns seis
quilômetros de Ciudad Chiruavia, com dois empregados:
Vladimir e José Juan. O primeiro, de nacionalidade russa, já
estava há muitos anos em Chiruavia, José Juan era um
mestiço, natural do país; segundo as informações de nosso
agente lá, estava ha bastante tempo a serviço de Armando
de Lerma.
— Isso não quer dizer nada... Ou quer?
— Suponho que não. E menos para você, que sempre
tira suas próprias conclusões. Como de costume,
naturalmente, você terá carta branca na República de
Chiruavia. Suponho que queira ver as fotografias de José
Juan e Vladimir.
No feixe de luz do projetor flutuou um bonito arabesco
de fumaça, antes de se ouvir a voz feminina, musical,
— Claro que sim.
A imagem mudou na tela, aparecendo o rosto de um
homem de aproximadamente trinta anos, enérgico,
agradável, embora um tanto duro. Tinha os cabelos muito
curtos, cortados á escovinha.
— Este é Vladimir. Temos sua fotografia há tempo,
naturalmente, assim como a do mestiço José Juan. Ambas
as fotografias foram pedidas ao nosso agente em Chiruavia,
quando soubemos que o general tinha sido encarregado de
estudar a proposta dos Estados Unidos a respeito da
instalação de bases militares aéreas e navais naquele pais.
Veja agora José Juan.
Novamente mudou a imagem, aparecendo o rosto de um
mestiço índio, de branco sorriso e vasto bigode.
— Vladimir parece mais inteligente que José Juan —
comentou a maviosa vez feminina.
— Evidentemente. E sua nacionalidade russa nos deixa
um pouco inquietos.
— Ora, vamos, Mr. Cavanagh! Não me diga que
desconfia de uma pessoa pelo simples fato de que seja de
nacionalidade russa.
— Não, não... Claro que não. Entretanto, a situação é
muito desagradável, tal como lhe expliquei. Os Estados
Unidos entraram em acordo com a República de Chiruavia,
envolvendo um compromisso de auxílio econômico com a
duração de noventa e nove anos; em troca deste auxílio que
os Estados Unidos prestariam a Chiruavia, ser-nos-iam
cedidas determinados locais para a instalação de bases
militares. Os Estados Unidos procederam a um estudo
preliminar e, depois, à elaboração de um relatório completo
sobre essas futuras bases. O governo chiruaviano recebeu o
estudo preliminar e o relatório definitivo, declarando que
seus estrategistas estudariam o assunto, pois talvez fosse
conveniente efetuar alguma modificação. Os Estados
Unidos aceitaram tal atitude, que lhes pareceu razoável. De
modo que nos mantivemos à espera de que o governo
chiruaviano se manifestasse. Entrementes, informou-nos
nosso agente em Chiruavia que o general Armando de
Lerma tinha sido encarregado de estudar o relatório sobre a
instalação das bases americanas em seu país...
— Obtivemos, então, informações sobre Armando de
Lerma?
— Naturalmente. E nosso governo ficou satisfeito com o
que foi apurado a respeito do general. Ele atingiu seu posto
aos trinta e nove anos por merecimento. Tinha pontos de
vista muito claros sobre assuntos militares. A escolha, não
há dúvida, fora muito acertada. Assim o general de Lerma
tornou-se o único homem que tinha acesso ao relatório de
nosso governo sobre a instalação de bases militares norte-
americanas em Chiruavia. Dedicou-se de tal modo ao
estudo da instalação de nossas bases que, inclusive, levou o
relatório para sua residência, uma pequena, mas bonita
mansão nos arredores de Ciudad Chiruavia.
— E esse relatório sobre a instalação das bases
desapareceu?
— Nosso governo está esperando um esclarecimento a
respeito.
— Quer dizer que Chiruavia ainda não nos informou
desse fato?
— Ainda não.
— Mas tememos que o relatório tenha sido...
escamoteado?
— É bem possível. A crença geral é de que isso não
aconteceu. Mas há intranqüilidade no Pentágono.
— Por que motivo? Temos muitas bases em todo o
mundo, sendo que qualquer um pode saber como são e onde
estão. Por que preocupar-nos por se saber como serão e
onde estarão exatamente localizadas as bases que
instalarmos em Chiruavia?
— Bem... Há dois motivos, por parte da CIA, para
enviar você a esse país. Um deles é assegurar-se de que esse
relatório sobre as futuras bases militares não desapareceu,
ou seja, que continua em poder de pessoas autorizadas e
convenientes. Pode ser que nosso governo aceite a palavra
dos chiruavianos a este respeito, mas a CIA quer ter a
segurança mais completa. O outro motivo é averiguar se
Armando de Lerma morreu devido a um acidente de
automóvel puro e simples, ou se houve em sua morte
acidental alguma causa que deva ser por nós conhecida.
— Suspeitam de que alguém tenha provocado esse
acidente para eliminar Armando de Lerma, talvez conseguir
o relatório sobre a instalação das bases?
— Mmm... é algo a cujo respeito gostaríamos de ter a
certeza de que não aconteceu. Vou lhe dizer por que são tão
Importantes essas bases em Chiruavia...
— Parece-me que estou adivinhando.
— Sim? Pois eu a escuto.
— Bom. Digamos que a instalação dessas bases indica a
futura estratégia dos Estados Unidos no Pacifico. Quero
dizer que se alguém visse o relatório ficaria conhecendo
com muita antecipação essa estratégia. E isso, naturalmente,
não interessa.
— Como sempre, você acertou. Portanto, insisto nos
dois pontos mencionados. Primeiro: verifique se o relatório
passou ou passará a mãos estranhas aos governos dos
Estados Unidos ou de Chiruavia. Segundo: certifique-se
completamente de que a morte de Lerma não seja indicio da
existência de um plano destinado a espionar os futuros
propósitos estratégicos dos Estados Unidos nessa parte do
Pacifico.
— Suponhamos que alguém já tenha conseguido esse
relatório... — murmurou a voz feminina. — Que
aconteceria?
— Nada. Os Estados Unidos, simplesmente, procurariam
outras bases, em outro lugar e com características
estratégicas diferentes. Mas seria uma pena, já que em
Chiruavia, segundo entendo, havia-se conseguido um
conjunto aeronaval de grande importância. Mas ainda
assim, essas bases não se construiriam se suas
características fossem do conhecimento de pessoas alheias a
Chiruavia e aos Estados Unidos.
— Compreendo. E me certificarei desses dois pontos.
Um: a verdade sobre a morte de Armando de Lerma. Dois:
que não é do conhecimento de ninguém o futuro estratégico
dos Estados Unidos no Pacífico. Mais alguma coisa?
— Pouca.
— Não há mais fotografias?
— Nosso agente em Chiruavia lhe fornecerá todos os
dados de que necessite, quando lá chegar.
Acendeu-se a luz, Iluminando a pequena sala
insonorizada, com aparelhos de projeção, receptor de TV
em circuito fechado, vários telefones, uma estante com
livros que somente tratavam de códigos secretos utilizados
desde a Primeira Guerra Mundial até o presente. Um lugar
sério, quase frio, mas indiscutivelmente bem equipado para
que um agente especial da CIA recebesse, sem se mover
dali, toda espécie de informações provenientes dos arquivos
centrais, fosse por meio de telefone, televisão ou filme.
E não havia dúvida de que o agente que estava
recebendo informações e instruções de Mr. Cavanagh era
muito especial: nada mais nada menos que “Baby”, a agente
preferida do chefe dos serviços especiais da CIA: Mr.
Cavanagh.
O qual parecia encantado de que já não fosse necessário
estar às escuras. Estar às escuras tendo “Baby” ao lado era
como fechar os olhos ao mais belo espetáculo que o mundo
pudesse oferecer. Com seu leve vestido cor de malva sua
pele dourada, seus cabelos negros e seus luminosos olhos
azuis, Brigitte Montfort, aliás “Baby”, chegava a tornar
ridículas as decantadas Sete Maravilhas. — sorriu — que
deverei partir
Imediatamente para Chiruavia, a julgar pela pressa com
que fui trazida à Central.
— Oh... Bem, devo pedir-lhe perdão por tê-la feito vir
tão precipitadamente de Nova Iorque, mas a verdade é que
não há tempo a perder. É possível que tudo seja um falso
alarma; entretanto cumpria agir com toda a rapidez. Se
necessitar alguma coisa de seu apartamento...
Brigitte sorriu, indicando com um dedo a maletinha
vermelha com flores azuis que estava a seus pés.
— Tenho o indispensável — afirmou. — Quanto a
roupas e outros pequenos detalhes, suponho que a CIA não
protestará se eu gastar alguns milhares de dólares em
Chiruavia.
— Já faz tempo que a CIA desistiu de protestar contra
qualquer coisa que você faça — sorriu Cavanagh. — Sai até
mais barato confiar às cegas em “Baby”. Além disso, já lhe
disse que tem carta branca para tudo.
— Que bom! Vejamos: Chiruavia, esse pequeno país
encravado entre o Peru, o Chile e a Bolívia, entre vinte e
vinte e quatro graus de latitude sul, aproximadamente... Isso
quer dizer que lá é inverno agora. Mas um inverno
simpático: seco, fresco e ensolarado. Há palmeiras?
— Algumas, perto da costa.
— Então, tudo está bem. Comprarei as roupas
adequadas. E falarei espanhol, língua que acho encantadora.
— Tanto melhor. Aqui tem suas passagens aéreas:
Washington Caracas, Caracas-Quito e Quito-Ciudad
Chiruavia. Cinco mil milhas quase exatas.
— Ou seja — suspirou resignadamente Brigitte —, umas
vinte e quatro horas de avião, quase continuas. É aterrador...
Como me porei em contato com nosso agente em
Chiruavia?
— Ele estará à sua espera. A senha é: os barcos
navegam pela floresta virgem.
Brigitte lançou uma cristalina gargalhada.
— Os barcos navegam pela floresta virgem! —
exclamou, divertida. — Pergunto-me como é possível que
aos espiões ocorram semelhantes tolices. Enfim, vamos ver
o que descobrimos na República de Chiruavia. Oxalá tudo
esteja em paz e em ordem.

CAPÍTULO SEGUNDO
Os barquinhos de Chiruavia.
Agueda Martos, agente da CIA.
Uma cidade tranqüila.

Para muitas pessoas, viajar de avião é pouco menos que


uma aventura. Para Brigitte Montfort era algo terrivelmente
aborrecido, por sua constante repetição. Mas Isto lhe dava
uma vantagem: insensibilizava-a contra a fadiga. Depois de
umas quantas voltas ao mundo, em avião, passar vinte e
quatro horas voando era natural, rotineiro, suportável. Além
disso, a extraordinária perfeição física da espiã imunizava-a
contra enjôos, dor de ouvidos ou outro qualquer desses
incômodos que muitas pessoas experimentam quando a
altitude ultrapassa os três mil metros.
Assim, chegou fresca e louçã como uma rosa ao
Aeroporto Internacional de Ciudad Chiruavia. Na alfândega
não teve a menor dificuldade. Perguntaram-lhe apenas, com
alguma surpresa, se viajava unicamente com aquela
pequena maleta, que foi examinada. Trabalho inútil, por
certo, já que seu conteúdo aos olhos do mais experimentado
agente alfandegário consistia tão-somente nessas coisinhas
de que toda mulher parece necessitar para embelezar-se ou
por em realce sua beleza. Além disso, ganhou um sorriso
dos funcionários quando disse que chegava a Chiruavia
disposta a gastar dois ou três mil dólares “adquirindo os
lindos produtos manufaturados do país, que certamente
causariam sensação quando ela regressasse aos Estados
Unidos”. Isto, juntamente com sua beleza, sua simpatia e
seu perfeito conhecimento do castelhano, transformou-a na
turista mais bem recebida de quantas até então tinham
chegado àquele país.
As onze da manhã, aparecia, maletinha na mão e já livre
para percorrer a República de Chiruavia à vontade, na sala
de espera dos vôos internacionais. Uma simples olhadela
foi-lhe suficiente para compreender que ali não estava
ninguém que se parecesse com um de seus companheiros da
CIA. O que era ótimo, pois significava que o Johnny de
Chiruavia era um agente esperto.
Mas... onde se encontrava? Se não aparecesse
Imediatamente, ela não saberia aonde ir, nem o que fazer...
O único remédio era esperá-lo ali, na sala dos vôos
internacionais. Dirigiu-se ao bar, sentou-se num dos
banquinhos e fez sinal ao moreno barman, que se precipitou
para ela.
— Aa suas ordens, señorita — sorriu, devorando-a com
o olhar.
— Dê-me uma...
— Barquinhos! Barquinhos de Chiruavia! Comprem os
barquinhos de Chiruavia, os mais bonitos do mundo!
Barquinhos para navegar pelo mar e pela floresta virgem!
Barquinhos de Chiruavia, os mais bonitos do mundo!
“Baby” não se assombrava por pouca coisa, mas naquele
momento teve que fazê-lo, contemplando a pessoa que
apregoava sua mercadoria, quase no centro do amplo
vestíbulo: um rapazinho de dez anos apenas, desgrenhado,
calçando sandália de palha, metido numa velha calça
remendada e numa camisa que aparentemente tinha sido
vermelha. Seus olhos eram negríssimos, muito grandes e
risonhos, e todo seu rosto brilhava de inteligência, como se
ele possuísse uma mente excepcionalmente desperta. Um
simpático diabrete de dez anos. Era aquele o Johnny que
devia esperá-la? Aquele garoto era um agente da CIA?
— Señorita...
— Oh, não quero nada... — sorriu ela ao barman. —
Mudei de idéia. Adeus.
Saltou do esguio banquinho e aproximou-se do garoto,
que continuava proclamando serem os barquinhos de
Chiruavia os mais bonitos do mundo. E talvez tivesse razão.
Trazia-os bem arrumados numa caixa rasa que se apoiava a
seu ventre, pendendo do pescoço por um forte cordão. Os
barquinhos eram verdadeiramente encantadores. Não havia
dois iguais, nem em forma, nem em tamanho, nem em
colorido. Eram indubitavelmente feitos a mão, ou seja, a
faca, mas sua perfeição era notável. Havia reproduções de
belonaves, de lanchas, de pesqueiros, de navios de linha,
iates, barcos de passeio... Uns eram completamente pintados
de branco, outros de cinzento, outros de branco e azul,
outros de branco e vermelho, outros de verde e branco, ou
verde e negro, ou azul e vermelho...
— Não quer um barquinho, miss?
Brigitte Olhou sorridente para o menino.
— Por que me chama de miss? Como sabe que sou
americana?
— Me pareceu. E como está nesta sala de espera... Mas
fala espanhol, de modo que...
— Sou americana, sim — sorriu ela. — Quanto você
cobra por um barquinho de Chiruavia?
— Depende do tamanho, miss.
— Oh, naturalmente. Suponho que, quanto maior, maior
o preço.
— Não, não, miss. Ao contrário: quanto menor o
barquinho, mais caro. A madeira é barata, mas é preciso
pagar o preço do trabalho. E dá mais trabalho fazer um
barquinho pequeno que um grande. É preciso tomar mais
cuidado com a faca e caprichar mais nos mastros, nas velas,
na forma... Isto exige muito bons olhos e pulso firme.
— Acho que você tem razão. Quanto custa este?
Indicou uma pequena lancha pesqueira, típica das costas
chiruavianas, perfeita em todos os detalhes, pintada de ocre
e azul, com sua alta cabina de comando toda branca.
— Ah, miss, vejo que escolheu o melhor! É uma lancha
de pesca do país. Dá muito trabalho para fazer e...
— Quanto é?
— Dez dólares, miss. É um preço barato.
— Pois me parece caríssimo... Como é seu nome?
— Tomasito, miss. Seu criado. E a lancha não é cara.
Eu...
— De acordo, Tomasito — sorriu “Baby’: — pago por
ela os dez dólares. Mas com uma condição: tem que ser
verdade isso de que é capaz de navegar pela floresta virgem.
Talvez você tenha dito isso de brincadeira, mas eu não
quero brincadeiras: quero que a lancha seja capaz de
navegar pela floresta virgem. Entende?
Tomasito tinha os olhos muito abertos. Parecia agora
mudo de admiração, de assombro. Assentiu com a cabeça e,
fazendo um esforço, conseguiu falar por fim:
— Quer vir comigo, miss?
— Para isso estou aqui, Tomasito. Para ir com você, e
para que me conte algumas coisas. Você me compreende,
não?
— Compreendo, miss. Mas eu pensava que o espião
fosse um homem.
— Psit! Não fale assim garoto. Você não sabe que as
paredes têm ouvidos?
O menino tornou a abrir os olhos e olhou assustado a seu
redor. Subitamente, sorriu como quem aceita uma divertida
brincadeira.
— Mas as paredes estão muito longe de nós agora, miss,
de modo que seus ouvidos não podem escutar o que
dizemos. Sabe andar de bicicleta?
— Bom... Creio que sim. Por quê?
— Porque temos que voltar para a cidade de bicicleta.
— Você vai me levar ou eu a você? — quase riu
Brigitte.
— São duas bicicletas, miss. Primeiro vim com uma, que
deixei no estacionamento. Depois voltei para a cidade no
táxi de um amigo e tornei a vir com outra bicicleta... Quem
vai ter uma baita surpresa é a minha avó!
Baixou a tampa da sua caixa-mostrador, deixando-a
transformada numa espécie de maleta de madeira, e dirigiu-
se com passo rápido para a saída. Brigitte foi atrás dele,
sorrindo. Pouco depois, Tomasito indicava duas das
bicicletas que estavam numa longa fila, ocupando cada uma
o vão entre duas barras verticais de ferro, que permitia
somente a introdução de uma das rodas, de modo que as
bicicletas não podiam tombar.
Tomasito retirou as duas bicicletas de seu suporte e
deixou uma nas mãos de Brigitte, que a olhou criticamente.
Uma coisa era fazer exercícios de bicicleta em seu ginásio
de Nova Iorque e outra coisa era ir numa bicicleta de
verdade, que absolutamente não estava presa no chão. Mas,
decerto, uma espiã que sabia pilotar um helicóptero ou um
avião, guiar qualquer carro, tripular qualquer embarcação,
não podia encontrar dificuldade numa bicicleta. Para
espanto de Tomasito, dobrou a saia na metade exata, para
fora, de modo que mostrou outra cor, ao mesmo tempo em
que ficava transformada numa “mini” perfeita, de alegre
colorido azul. Passou a. perna por cima do selim, sentou-se
e empunhou o guidom, tendo presa nos dedos da mão
direita a alça da maleta.
— Okay — Tomasito sorriu. — Em marcha.
Deu uma pedalada e o “artefato” conservou o equilíbrio,
afastando-se. Tomasito apressou a colocar sua mercadoria
no porta-objetos de sua bicicleta, pos o pé esquerdo no
pedal correspondente e impulsionou com o direito, ladeando
o corpo com grande habilidade. Quando a bicicleta deu a
partida, passou a perna direita por cima do selim, meteu o
pé no pedal e calcou com força, não tardando a alcançar
“Baby”.
— Vai indo bem, miss? — interessou-se, preocupado.
— Muito bem, Tomasito! — riu ela. — Adiante sem
medo! Acho isto divertidíssimo.
Após um número infinito de pedaladas, chegaram a
Ciudad Chiruavia, atravessando-a quase completamente, de
modo que Brigitte pode admirar os bonitos jardins e as
formosas avenidas do centro, embora lhe agradassem mais
as pitorescas ruas de brancos edifícios com balcões e
palmeiras nas calçadas. Ciudad Chiruavia era muito bonita,
silenciosa, com muitas flores e poucos automóveis... Mas
com muitas bicicletas. Subia suavemente, até ocupar toda
uma bela colina, no alto da qual havia magníficos jardins
circulares rodeados por um gradil muito baixo, pintado de
branco. Nos jardins havia grandes árvores, a cuja sombra
tinham sido colocados bancos também pintados de branco e
onde estavam pessoas que repousavam placidamente.
Também havia gente junto ao gradil, tirando fotografias do
porto que ocupava um extremo da linda baia azul e branca.
Tomasito lhe disse que aquilo era o Mirante dos Vice-Reis e
que se quisesse podia ficar mais tempo ali, pois sua avó lhe
havia dito que não precisavam apressar-se.
Mas Brigitte tinha suas próprias idéias a respeito, e
dedicou apenas dois minutos à contemplação da
encantadora cidade cheia de flores e de palmeiras, branca e
verde, vermelha e azul.
Tomasito levou-a por fim a seu destino, que ficava
justamente bem perto do Mirante dos Vice-Reis, seguindo a
rua paralelamente ao mar. Afinal, detiveram-se diante de
uma casa assobradada. No sobrado via-se um grande balcão
que ocupava toda a fachada e estava cheio de flores.
No térreo havia uma vitrina, junto à qual Toma-sito
deixou sua bicicleta. Ajudou desnecessária-mente Brigitte a
desmontar e colocou a outra bicicleta junto à sua, enquanto
Brigitte contemplava a vitrina, cheia de barquinhos,
maracás, tambores cônicos, chapéus de palha, alguns
violões, estatuetas talhadas em madeira, cartões postais,
caniços de pesca, abanos, lenços coloridos... De tudo. Um
conjunto pitoresco de objetos, que justificava a tabuleta da
loja:
AGUEDA
Artesanato Chiruaviano

Tomasito afastou a cortina de contas de madeira


pintadas de cores alegres e Brigitte entrou na loja.
— Vou avisar a vovó.
“Baby” viu-o desaparecer após afastar outra cortina nos
fundos da loja, atrás de um balcão de vidro, sob o tampo do
qual viam-se mais barquinhos, colares, pulseiras, cinzeiros
de madeira, cachimbos, piteiras...
Voltou-se para a vitrina, que permitia uma perfeita e
agradável iluminação no interior da loja. Visão perfeita,
mas sem deslumbramento. Dava a impressão de ser um
lugar fresco, como a sombra de uma daquelas frondosas
árvores do Mirante dos Vice-Reis. O silêncio era absoluto, e
chegava a parecer que Tomasito não tivesse existido jamais.
Brigitte sentou-se numa cadeira de palha, abriu a maleta,
sacando um maço de cigarros e um isqueiro de platina e
brilhantes. Acendeu um cigarro, depois esteve pensando uns
segundos na conveniência de tirar uma microfoto daquela
loja. Chegou à conclusão de que não valia a pena. Tinha
cinqüenta microfotos em seu isqueiro, mas isso não
significava que devesse desperdiçá-las.
Estava na metade do cigarro quando a cortina do fundo
da loja se moveu. Mas em lugar de Tomasito apareceu um
homem, de estatura considerável, largo de ombros,
imaculadamente vestido de branco. Tomasito saiu atrás
dele. Depois, uma mulher de pouco mais de cinqüenta anos,
cabelos grisalhos presos num coque e olhar vivo,
penetrante, que pousou um momento em “Baby” sem que
seu rosto ainda bonito se alterasse: um rosto expressivo e de
traços firmes, mas suaves ao mesmo tempo; anos atrás, a
beleza daquela mulher devia ter sido mais que notável.
Agora era uma beleza serena, marcada especialmente por
aqueles olhos negros, inteligentes.
Mas o homem também era notável, não só por sua
elevada estatura e compleição atlética, sua elegância
natural, mas pela beleza viril de seu rosto bronzeado. Olhos
negros, de olhar aparentemente amável, queixo forte, nariz
reto, cabelos castanhos um tanto rebeldes, devia ter um
pouco mais de trinta anos e sua presença, forçosamente,
tinha que impressionar de maneira agradável qualquer
mulher. Inclusive Brigitte.
— Não a retenho mais, Agueda — disse ele com
amabilidade. — Voltarei aqui dentro de poucos dias.
— Terá então seu pedido, don Benito.
— Eu sei. Bem, até a vista. Adeus, Tomasito. Vendeu
muitos barquinhos no aeroporto?
— Sempre se vende algum, don Benito.
— Muito bem. Qualquer dia lhe farei um pedido
especial... E pagarei bom preço.
Agitou a mão, sorrindo, e saiu de detrás do balcão.
Passou perto de Brigitte, olhando-a com aquele sorriso
gentil de bom-moço e fazendo-lhe uma leve inclinação de
cabeça, que ela correspondeu com outra, levíssima, mas
sem sorrir. O chamado dou Benito abandonou a loja, por
fim, e a avó de Tomasito fez um sinal a Brigitte, que se
levantou e foi atrás dela. Transpuseram a cortina de contas
coloridas e, pouco depois, estavam num bonito pátio onde
havia flores e um repuxo no centro. Ouvia-se apenas o ruído
da água ao cair, e respirava-se o perfume das flores.
— Tomasito, vá para a loja. Se chegar algum freguês,
atenda-o bem.
— Eu quero ficar aqui, vovó...
— Faça o que lhe disse. E não deixe que seus irmãos e
primos venham incomodar.
— Está bem, vovó.
Tomasito abandonou o pequeno pátio interno e sua avó
indicou a Brigitte uma poltrona de vime, que ela constatou
ser assombrosamente confortável. A mulher sentou-se em
outra. Apanhou um cachimbo como os que se viam na
vitrina e começou a enchê-lo de fumo, pausadamente, olhos
fixos em “Baby”.
— Lá em cima tenho mais seis netos. Verdadeiras
pestinhas, acredite. Tomasito é o mais velho dos que
ficaram em Chiruavia, mas tenho ainda outros três, de
dezenove, dezoito e dezesseis anos. Estão estudando nos
Estados Unidos, numa universidade da Califórnia. Espero
que se tornem homens provectos, úteis à nossa pátria.
Gostaria também que Tomasito fosse para lá, dentro de
alguns anos. É bom conhecer bem o país mais poderoso de
todo o continente.
— Quando se tem dinheiro para pagar os estudos, sim.
— Dinheiro? Oh... Não é que tenha muito, mas a CIA
me ajuda bastante. Também faço pequenas coisas aqui,
como manter esta loja de artesanato. Mas a minha maior
fonte de lucros é a CIA. Meus netos não poderiam estar nos
Estados Unidos se eu não fosse uma espiã.
Sorriu, olhando fixamente Brigitte, que sorriu também.
— Uma profissão perigosa, senhora.
— Não para mim, no momento. Sou o que se chama
uma agente residente passiva. Não faço nada
comprometedor. Apenas informo periodicamente.
— Qualquer modalidade de espionagem é perigosa.
— Talvez tenha razão — admitiu a mulher. — Meu
nome é Agueda Martos. E o seu?
— Brigitte Montfort. Trabalho num jornal de Nova
Iorque.
— Ah... Jornalista — sorriu ironicamente Agueda
Martos. — É uma boa idéia, embora já um tanto velha, no
meu entender. Pode provar que vem da parte da CIA, miss
Montfort?
— Não sei como, além de dizer-lhe que minha missão é
averiguar tudo o que diz respeito a certo compromisso para
instalação de bases norte-americanas na República de
Chiruavia. E também a verdade sobre a morte de Armando
de Lerma. Tomasito faz uns bonitos barquinhos... para
navegar pela floresta virgem.
— Tenho o pressentimento de que Tomasito será um
artista. Escultor, quem sabe? Espero que nos Estados
Unidos saibam desenvolver e aperfeiçoar seus grandes dotes
naturais. Prestou atenção ao homem que estava comigo?
— Qualquer mulher prestaria atenção nele.
— Chama-se Benito Salazar. E nosso personagem mais
astuto. Chefe da PSN... Quero dizer, da Policia de
Segurança Nacional. Algo assim como são nos Estados
Unidos os chefes da CIA e do FBI.
— Um homem importante... — murmurou Brigitte. —
Queria alguma coisa da senhora?
— Informar-me.
— Informá-la...? Não me diga que trabalha para a
senhora, e por conseguinte, para a CIA!
— Não, não... — riu Agueda. — Don Benito trabalha
apenas para nossa pátria, para Chiruavia, pela qual não
hesitaria em dar a vida. Não estou exagerando. Há alguns
meses, meteram-lhe três balas no corpo, quando descobriu e
aniquilou, praticamente sozinho, um grupo de
contrabandistas que tentavam introduzir mercadoria
estrangeira em Chiruavia. Benito Salazar não admite nada
que atente contra nosso país, em nenhum sentido. Nem
sequer contrabando. Notou como é risonho e amável? Pois
saiba que ele sozinho, a faca, liquidou há coisa de dois anos
quatro homens armados de revólveres.
Vejo que além de importante é perigoso.
— Muito.
— E sobre que lhe informou?
— Sobre o relatório americano concernente às bases em
Chiruavia. Don Benito veio, aparentemente, fazer-me uma
encomenda. Mas é um homem muito simpático e loquaz,
quando quer, e, como que por acaso, foi-me dizendo que o
relatório tinha sido recuperado, e que estava em boas mãos,
em Chiruavia, com o governo. Ao que parece, depois da
morte de Armando de Lerma, o próprio Benito se interessou
por esse documento e encontrou-o no cofre existente em
casa do general de Lerma.
— Tudo isso ele lhe disse?
— Naturalmente. Nosso governo comunicará a
Washington que foi encontrado o relatório, sem novidade,
de modo que todo o mundo se tranqüilizará. Aqui não
aconteceu nada, salvo um infeliz acidente. Mas, além disso,
don Benito tem sempre seu ponto de vista próprio sobre os
fatos, de modo que veio aqui para pôr-me ao corrente, a fim
de que eu informasse também a CIA sobre o achado do
relatório.
— Isso quer dizer que don Benito sabe que a senhora
trabalha para a CIA.
— Chame-me Agueda, simplesmente. Sim, claro que ele
sabe que trabalho para a CIA.
— E nunca a incomodou?
— Nunca. Há uma espécie de entente cordiale entre nós.
Na verdade, ambos simulamos ignorar os conhecimentos e
atividades do outro. Se don Benito tivesse a menor suspeita
de que algo do que faço poderia prejudicar Chiruavia, já me
teria encarcerado, sem a menor dúvida. Mas sabe que sou
absolutamente incapaz disso e que os Estados Unidos é um
país amigo. De modo que ele vem comprar-me alguma
coisa de vez em quando, e conversamos. Apenas isso. Na
verdade, ele já me facilitou pequenas informações para a
CIA em oportunidades diversas.
Brigitte sorriu, realmente divertida.
— E você lhe facilitou informações adquiridas graças a
suas relações com a CIA. Não é assim?
— Pequenas coisas — sorriu também Agueda. — Ficará
muito tempo conosco, miss Montfort?
— Chame-me Brigitte, simplesmente — disse “Baby”.
— Por que pergunta Isso? Acha que nada tenho a fazer
aqui?
— Já sabe que o relatório sobre as bases militares foi
encontrado no cofre de Armando de Lerma, não? De modo
que não precisará preocupar-se a este respeito.
— E a respeito da morte do general?
— Foi um simples acidente. O próprio Benito investigou
o assunto. Parece que o general de Lerma saiu de casa
disposto a assistir a uma reunião com elementos do
governo. Uma reunião noturna, de pouca para não dizer
nenhuma importância. Entrou em seu carro, deu a partida...
e foi de encontro a uma, árvore do jardim. Nada mais que
isto.
— Que me diz de José Juan?
— Empregado de absoluta confiança do general. Há
mais de quinze anos que estava a seu serviço, desde quando
ainda era quase um menino. Dedicava-lhe uma grande
estima e respeitava-o muitíssimo.
— E Vladimir?
— Ah, o russo... esse estava há coisa de dois anos com o
general. Mas tampouco se suspeitou dele. Acompanhou de
Lerma até o carro, como sempre costumava fazer. Ele servia
de chofer e de jardineiro...
— Por que não estava conduzindo o carro do general,
então?
— Armando de Lerma guiava pessoalmente seu carro
em muitas ocasiões. E essa foi uma delas. Vladimir
acompanhou-o até o veiculo, viu-o dar a partida e esbarrar
numa árvore. Também José Juan viu o acidente, pois estava
no portão, que tinha ido abrir. Um infeliz acidente, sim.
— Infeliz... e estúpido, Agueda.
— Estúpido?
— Foi o que disse. Examinaram o carro?
— Naturalmente Dou Benito não passaria por alto um
detalhe como esse. Mas nada encontrou de anormal. Talvez
você tenha razão e o acidente fosse um pouco estúpido, mas
não se pode pensar em outra coisa. Não viu as fotografias
nos jornais? Foi terrível. O pobre general, completamente
envolvido pelas chamas, ficou carbonizado. Nem Vladimir
nem José Juan puderam se aproximar do carro, tão grandes
eram as labaredas, quando explodiu o tanque de gasolina...
Veja por si mesma.
Agueda Martos tinha estendido a Brigitte uns quantos
jornais que apanhara sobre a mesinha redonda de vime.
Durante quase dez minutos de completo silêncio, a espiã
internacional esteve olhando as diferentes fotografias e
lendo em diagonal alguns relatos do acidente. Sem dúvida,
o carro ficara completamente queimado. Quando se pudera
recuperar o cadáver de Armando de Lerma, este quase se
transformara em cinzas... Algo espantoso.
— Bem — murmurou “Baby” — uma morte pouco
gloriosa para tão prestigiado militar. O sepultamento terá
lugar esta tarde, não?
— As cinco. Centenas de pessoas vieram para assistir à
cerimônia fúnebre. E toda a população da cidade estará
reunida na Plaza del Gobierno, de onde partirá o cortejo
para o cemitério. Suponho que isso nos deixará o campo
livre.
— Não compreendo — Brigitte olhou-a vivamente.
— Refiro-me aos espiões.
— Que espiões?
— Os que têm estado rondando o general de Lerma
desde que recebeu o relatório com os planos das bases
americanas para estudar.
— Ou eu estou sonhando ou você brincando —
exclamou Brigitte. — A que espiões se refere,
especificamente?
— Uns quantos... Claro que chegaram aqui se fazendo
passar por jornalistas, viajantes comerciais, turistas, um
dizia ser escritor, outro era um apaixonado da pesca...
Coisas assim. Há um cubano, um francês, dois russos, um
inglês, dois venezuelanos.
— Quem lhe contou isso? Dou Benito?
— Não, não... — riu Agueda. — Ele também sabe,
naturalmente, mas obtive eu mesma essa informação,
passando repetidas vezes diante da vila do general e fazendo
uso de meus olhos.
— Coisa que muita gente não sabe fazer — murmurou
“Baby”. — Não consigo compreender bem vocês, Agueda.
Parecem considerar a espionagem uma espécie de
brinquedo...
— Há pouco o que espionar na República de Chiruavia.
— Tem fotografias desses espiões?
— Para quê? Não podiam fazer nada, pois Armando de
Lerma estava sempre bem protegido, rodeado por um
cinturão de vigilância. Impossível atentar contra ele, nem se
aproximar demasiado sem que don Benito e seus homens
interviessem. Se esses espiões queriam perder seu tempo,
era coisa deles. Finalmente, teriam se cansado e regressado
a seu lugar de origem. Pode estar certa de que se tivessem
feito ou apenas tentado alguma coisa, don Benito não os
teria deixado sair do país.
Brigitte olhou fixamente para Agueda.
— Creio que permanecerei uns dias em Chiruavia —
disse.
— Eu lhe preparei um quarto lá em cima. Terá que
aturar meus netos...
— Irei para um hotel.
— De nenhum modo! Você vai ficar em Chiruavia como
uma amiga de meus netos que estão estudando na
Califórnia, e não seria bonito que não a hospedasse em
minha casa. Gosta de crianças?
— Muito — disse Brigitte, sorrindo.
— Então passará muito bem. O quarto que lhe preparei é
bastante grande, com vista para o mar, o Mirante dos Vice-
Reis e a Estrada Nacional... Também poderá ver este pátio
— indicou uma janela. — Quero que esteja
confortavelmente entre nós.
— Agradeço. Espero que esses espiões não ponham tudo
a perder.
— Oh, não! Aqui, os espiões vêm praticamente passar
férias. Nunca acontece nada...
— Melhor. Poderá me arranjar uma planta da cidade?
Gostaria de assistir às homenagens fúnebres que serão
prestadas ao general de Lerma, depois ir até o cemitério.
Num país tão tranqüilo como este, tem-se que aceitar
qualquer distração, não acha?
CAPÍTULO TERCEIRO
A empolada retórica hispano-americana
Crianças a vinte dólares por cabeça
Um espião cubano brilha pela ausência...

A Praça do Governo, assim como todas as ruas que nela


desembocavam, não poderiam comportar mais gente. Alto-
falantes tinham sido instalados na praça e nas esquinas das
ruas, de modo que todos puderam ouvir a oração fúnebre
preferida pelo Arcebispo de uma sacada do Palácio do
Governo. Tudo aquilo demonstrava que Armando de Lerma
tinha sido uma glória nacional da República de Chiruavia.
Cerca de vinte e cinco mil pessoas aglomeravam-se na
praça e o número das que enchiam as ruas adjacentes era
incalculável. O dia, naturalmente, fora declarado de luto
nacional.
Na grande sacada principal do palácio, o arcebispo
estava rodeado das personalidades mais importantes do
país, começando pelo próprio Presidente da República don
Camilo Aldana y Sanmartin, ilustre estadista muito querido
de toda a nação e que cumpria já seu terceiro mandato
presidencial consecutivo, de cinco anos, eleito sempre por
unanimidade quase total. As mais altas patentes militares de
Terra, Mar e Ar estavam também congregadas ali, assim
como personalidades políticas de diversas categorias.
Estava inclusive Benito Salazar, o chefe da Policia de
Segurança Nacional, impecável em seu trajo escuro, sério e
grave, imóvel a um extremo do grande grupo que enchia a
vasta sacada.
O ofício religioso, com as despedidas finais e as palavras
do prelado recordando que o caminho empreendido pelo
general Armando de Lerma era o inevitável a todo ser,
durou quinze minutos, talvez algo mais.
Perdida, apertada por aquelas vinte e cinco mil pessoas,
a espiã internacional olhava constantemente para a grande
sacada do palácio, utilizando um pequeno binóculo que
Agueda Martos lhe havia facilitado, de modo que podia ver
bem os personagens que lã se encontravam. Antes, estivera
olhando debaixo da sacada, onde sobre a grama estava
exposto o féretro do ilustre militar, junto ao qual até o
momento da cerimônia haviam destilado milhares de
pessoas, algumas depositando flores outras fazendo
simplesmente o sinal-da-cruz,
Quando o serviço religioso terminou, o próprio
Arcebispo pediu um minuto de silêncio como respeitosa
despedida ao “grande homem que dedicara sua vida ao
serviço da pátria, à alma humilde e generosa que jamais
prejudicara ninguém, ao militar íntegro que se constituíra
em exemplo a ser seguido por todos aqueles que quisessem
servir sua pátria pelas armas, porém, sobretudo, ao grande
estrategista que, com sua clara visão e profunda
humanidade, sempre soubera evitar que tais armas fossem
empregadas...” Um bonito panegírico, certamente, nos
grandes moldes da retórica hispano-americana.
E depois, o minuto de silêncio.
Um minuto completo de completo silêncio. Foi como se
inclusive as pombas da Plaza del Gobierno o respeitassem,
pois nenhuma delas deixou ouvir o bater de suas asas.
Durante aqueles sessenta segundos, Ciudad Chiruavia
pareceu deserta, a despeito da multidão ali aglomerada.
Ao terminar o minuto de silêncio, o prelado ergueu a
mão e, ato contínuo, um jovem oficial que estava a um
canto da sacada utilizou um rádio do tipo “walky-talky”
para enviar uma mensagem breve. E tão rápida, que antes
de alguém ter tempo sequer para respirar, do porto, onde
estava ancorada parte da Esquadra Nacional, começaram a
chegar as salvas de canhonaços, até vinte e uma.
Depois tudo voltou à normalidade, ouviu-se o rumor
natural da turba, recomeçou o movimento...
Finalmente, através dos milhares de pessoas que
permaneciam na praça, o féretro foi trasladado para o
cemitério, num brilhante coche fúnebre tirado por três
parelhas reluzentes e empenachadas. Atrás, os negros
automóveis, com os personagens mais importantes do país,
sempre encabeçados pelo Presidente.
***
Brigitte chegou ao cemitério quando já estava sendo
fechada a porta de ferro forjado do bonito panteão, que se
encontrava completamente rodeado de silenciosos
personagens. Foram colocadas as flores e os militares
saudaram com rígida correção, no adeus definitivo ao
querido e admirado companheiro de armas.
Depois todos trataram de se retirar. Postada a um lado da
saída principal da necrópole, enquanto as altas
personalidades iam passando, “Baby” não parava de brincar
distraidamente com seu precioso isqueiro de platina e
brilhantes, batendo fotos de grupo. Nenhuma só das pessoas
que saíram do cemitério deixou de ser fotografada por ela,
que acabou esgotando a carga de microfilmes. Inclusive,
naturalmente, conseguiu fotografar don Benito, que passou
bem por perto dela, olhando-a atentamente e dirigindo-lhe
um leve sorriso de reconhecimento, embora contraísse o
cenho como se não conseguisse recordar onde a tinha visto
antes.
***
— É mentira — sorriu Agueda Martos. — Don Benito
lembrava-se perfeitamente de você, esteja certa disso.
Brigitte esmagou o cigarro no cinzeiro e acomodou-se
gostosamente na poltrona de vime, gozando o frescor do
pátio Interno, o rumor da água do repuxo, o aroma das
flores.
— Que acha você que ele pensa de mim, Agueda?
— Certamente está pensando que a CIA logo a mandará
chamar. Ou que você partirá por si mesma, com minha
informação de que o relatório sobre as bases americanas não
corre o menor perigo.
— Então, ele suspeita que sou da CIA...
— Eu perderia a admiração que tenho por don Benito se
ele não suspeitasse isso, Brigitte.
— Claro... — sorriu esta, — Claro.
— Vou buscar as ampliações que fizemos. Já devem
estar utilizáveis. Não demoro.
“Baby” acendeu outro cigarro, pensativa, enquanto
Agueda entrava na casa. Parecia que com um personagem
tão astuto e vigilante como Benito Salazar atuando em
Chiruavia, nada podia acontecer. Sem dúvida, tudo tinha
sido um acidente, mas...
Por entre as cortinas do pátio, viu aparecer a cabeça do
Tomasito, fixos nela seus grandes olhos inteligentes. Junto
ao garoto soavam risos e havia uma agitação que se
transmitia às cortinas.
— Já nos viu! — ouviu uma vozinha.
Ruído de pés, exclamações... A cabeça de Tomasito
desapareceu.
— Ei! — chamou Brigitte. — Venham cá! Tomasito!
Venham todos!
Tomasito reapareceu segundos depois, timidamente, e
ela fez-lhe sinais com a mão.
— Venham todos.
— Só... Sou só eu, miss.
— Ah! Pois é uma pena, porque eu queria dar cem pesos
aos que tivessem descido outra vez para me ver. Mas se
você está sozinho, será o único a ganhar os cem pesos.
Tomasito olhou para a cortina. Esta foi afastada e uma
garotinha de quatro anos apenas entrou em cena, erguendo
ama das mãos.
— Eu também estou aqui, miss.
— E eu.
— Eu também...
— Também eu estou!
Um bando de crianças, todas menores que Tomasito,
irrompeu no pátio, precipitando-se para Brigitte, seguido
pelo mais novo rebento da família, de pouco mais de dois
anos: um diabinho muito moreno, vestindo apenas uma
velha e curta camisa que devia ter Pertencido a algum de
seus irmãos ou primos, de modo que mostrava alegremente
sua condição masculina. Chegava berrando com todas as
forças:
— E eu, e eu, e eu...!
Num segundo, a sorridente espiã foi rodeada por cinco
meninos e duas meninas, todos com a mãozinha estendida e
afirmando que “estavam ali”. Rostos alegres, vivazes,
ansiosos, cheios de intensa vitalidade...
— Um momento, um momento... — suplicou “Baby”.
— Só tenho aqui dinheiro americano, mas darei a cada um
vinte dólares, ou seja, duzentos pesos, se cada um for
dizendo seu nome.
— Eu me chamo Palmiro!
— Primeiro as meninas, Palmiro. Não sabia isto? Vamos
a ver: você, “Olhos Grandes”... Como é seu nome?
— Aguedita.
— Ah, como a vovó... Está bem. E você, “Narizinho
Arrebitado”?
— Emerenciana!
— Emeren...? Mas que nome tão comprido!
— Nós sempre dizemos Nanita — esclareceu Tomasito,
ruborizado.
— Nanita... Assim está melhor. Vamos a ver:
Aguedita, Nanita, Tomasito e Palmiro. E você?
— Pedrito.
— Muito bem. E você?
— Tito.
— Sertito — esclareceu Tomasito.
— Ah... Esse nome já me agrada mais — sentou em seus
joelhos o menorzinho de todos. — E como se chama você,
“Miudinho”?
— Fipito... — balbuciou o fedelho.
— Felipito — tornou a esclarecer Tomasito. — É que
ele ainda não sabe falar direito.
Brigitte ria deliciada. Felipito, sentada em seus joelhos,
parecia considerar aquilo um triunfo pessoal e a olhava
maravilhado.
— Bom... Creio que chegou o momento de cumprir
minha palavra. Eu disse vinte dólares para cada um, não
foi? Apanhe minha maleta, Tomasito.
Agueda Martos apareceu com um montão de fatos
ampliadas quando tocava a Tito a vez de receber sua
recompensa tão facilmente ganha. A avó começou a dar
gritos, mandando que as crianças sumissem dali
imediatamente. Brigitte terminou de repartir os dólares,
inclusive a Felipita, com o qual houve um contratempo:
negou-se terminantemente a obedecer, declarando que
“Fipito” não saia do colo da bonita miss. Teve que ser
levado por Palmiro e Tomasito, berrando a plenos pulmões,
negando-se a escutar a promessa da miss de que iria vê-lo
quando já estivesse na cama.
Por fim, quando ficaram sozinhas as duas mulheres,
Agueda lançou um suspiro de alivio e deixou-se cair numa
poltrona.
— E os pais dessas crianças? — perguntou Brigitte.
— Trabalhando nas indústrias do norte.
— Também as mães?
— Também. Querem comprar em conjunto um
pesqueiro, mas é muito caro... De modo que enquanto o
ganham, eu fico cuidando das crianças.
— Ah... Espero que logo consigam a quantia necessária,
Agueda.
— Logo! Levarão anos. Um pesqueiro como o que
querem vale pelo menos duzentos e cinqüenta mil pesos...
Acho que estão um pouco loucos. Se não fosse a CIA, não
poderiam fazer isso, já que eu não teria condição para
manter as crianças. Mas lá estão meus três filhos, com suas
mulheres, trabalhando sempre... Vamos ver as fotografias?
— Sim, claro.
Vinte minutos mais tarde, já quase noite, “Baby”
conhecia os personagens mais importantes da República de
Chiruavia, graças às fatos tiradas no cemitério. E também
conhecia os personagens que a interessavam: os espiões.
Agueda Martas indicou-os um a um, citando a
nacionalidade que lhes suspeitava, com bastante chance de
acertar. Também sabia os nomes com que estavam
hospedados em diversos lugares de Ciudad Chiruavia. Era
uma espionagem muito amável a que ali se exercia,
certamente..
— Mas falta um — disse de súbito a chiruaviana.
— Falta um? Qual?
— O cubano... Não o vi nas fotografias...
— Tem certeza?
— Bem... Seria capaz de jurar que não o vi.
— Tornemos a olhá-las. Todas. E com muita atenção,
Agueda.
Cinco minutos depois, Agueda Martos movia
negativamente a cabeça.
— Não está. Tenho certeza.
— É o único que falta?
— É. E acho isso estranho... Se estão todos, por que não
há de estar o cubano? Parece que... que todo o mundo
queria ter a certeza de que Armando de Lerma foi
sepultado. Estão todos os personagens importantes de
Chiruavia e todos os espiões, menos o cubano. Não
entendo. Mas também não sei se isso tem alguma
significação especial, Brigitte. Que acha você?
— Sinceramente, também não sei... — murmurou
“Baby”. — Sabe você como se fazia chamar o cubano e
onde podemos encontrá-lo?
— Sei. Fazia-se chamar Diosdado Curruca e dizia-se
escritor. Alugou uma casinha perto do mar, fora da cidade,
para o norte. Deixe-me pensar... Sim, exatamente o número
215 da Avenida Costera.
— Como podemos ir lá?
— De bicicleta — sorriu Agueda. — Sinto muito, mas
não disponho de outro meio. Os gastos com meus netos não
me permitem...
— Iremos de bicicleta — atalhou Brigitte. — E será
agora mesmo. Pode deixar as crianças sozinhas?
Tomasito é como um pai para todas elas. Sabe fazer-se
obedecer.
— Engraçado... — sorriu Brigitte. — Mas muito
conveniente. Então iremos já ao número 215 da Avenida
Costera.
— Que espera encontrar lá?
— Tampouco sei isso. Mas... Bem, Agueda, já faz tempo
que me dedico à espionagem e, se é verdade que existe essa
coisa chamada “experiência”, você pode estar certa de que o
cubano Diosdado Curruca é uma peça importante neste
assunto.
— Que assunto?
— Não sei... — impacientou-se “Baby”. — Não
percamos tempo, Agueda.
— Quero antes fazer umas recomendações a Tomasito.
Menos de cinco minutos depois, as duas saíam da casa,
pela porta da loja de artesanato. As bicicletas estavam a um
lado, presas a um anel por uma corrente. Mas quando
Agueda se dispunha a abrir o cadeado, uma voz varonil
chegou até elas, perguntando:
— Posso levá-la a algum lugar, Agueda?

CAPÍTULO QUARTO
Espião cubano morre de enfarte... com a garganta decepada.
Está faltando uma parcela na soma.
Dormir é formidável...

As duas se voltaram e viram uma silhueta inconfundível:


Benito Salazar, que delas se aproximava com tranqüilidade,
novamente envergando seu imaculado trajo branco.
— Boa-noite, don Benito. Está passeando?
— Mais ou menos. Na verdade, dirigia-me ao Mirante
dos Vice-Reis para refletir um pouco. E ao passar por aqui.
Vi as duas saindo. Pensei que talvez lhes pudesse ser útil.
Tenho meu carro bem perto, de modo que se vão a algum
lugar poderei levá-las.
Estava mentindo, pensou Brigitte. Salazar estava
mentindo com o descaramento digno do mais consumado
espião; com muito aprumo, segurança, quase indiferença...
Mas estava mentindo.
— Íamos apenas dar uma volta — mentiu também
Agueda.
— Oh... Mas uma volta é sempre mais agradável de
carro que de bicicleta. Sobretudo à noite.
— Preferimos ir de bicicleta — disse Brigitte.
— Como queiram... É sua amiga, Agueda?
— Sim, sim, don Benito. É miss Montfort, uma
jornalista americana. Muito amiga de meus netos que estão
na Califórnia. Veio a Chiruavia convidada por mim...
Apresento-lhe don Benito Salazar, Brigitte.
— Ah, é jornalista... Por isso acompanhou com tanto
interesse todas as fases do enterro do general. Eu a vi no
cemitério, não é certo, mias Montfort?
— Sim. Estive lá.
— Uma tarde triste para Chiruavia... De qualquer modo,
é um prazer conhecê-la. Estou à sua disposição.
Inclinou-se elegantemente sobre a mão que Brigitte lhe
havia estendido. Ela forçou um sorriso.
— O senhor é muito gentil, don Benito. Talvez em outra
ocasião aceitemos seu carro... e sua companhia, para dar um
passeio.
— Sim, talvez em outra ocasião. Mas seja como for,
insisto: estou indo agora para o número 215 Avenida
Costera. Se meu caminho lhes serve, poderei levá-las um
longo trecho. Embora, na verdade, não lhes aconselhe essa
rota.
— Pois era bem esse o caminho que pensávamos tomar
— disse rapidamente Brigitte. — Mas se é... perigoso ou
algo parecido...
— Não, não. Nada perigoso. É um lugar bonito e
tranqüilo, com a praia a pouca distância das casas. A bem
dizer, em Ciudad Chiruavia não há lugares perigosos. É
uma cidade amável e muito tranqüila. O que queria dizer é
que há outros lugares tão bonitos como a Avenida Costera.
Tão bonitos ou mais...
— Se seu convite ainda está de pé, señor Salazar,
gostaríamos de ir lá.
— Nunca falto à minha palavra, miss Montfort. Disse
que estava à sua disposição e, portanto, mantenho o convite.
Todavia, devo ir precisamente ao número 215, assim terei
que deixá-las em algum ponto que...
— Iremos com o senhor até lá — sorriu ironicamente a
espiã internacional. — A menos que nossa companhia lhe
seja incomoda ou... indiscreta.
— Nada disso! — protestou don Benito. —
Sinceramente, fico muito satisfeito que me acompanhem.
Venham, por favor...
***
O carro se deteve perto da casinha que ostentava o
número 215, na Avenida Costera. E o fez atrás de outros
dois, junto aos quais estava um homem que se afastou deles
quando viu don Benito apear.
No pequeno jardim arenoso havia mais três homens, que
também pareceram ignorar a presença de Brigitte, Agueda e
Salazar. E havia outro homem na porta da casa, que a abriu
em silêncio, dando passagem aos três recém-chegados.
Dentro estavam outros três homens, todos na pequena
sala mobiliada e decorada muito ao estilo praieiro, com
carapaças de enormes caranguejos, peixes empalhados,
varas de pesca, uma rede, quadros com paisagens
marítimas...
No centro da sala via-se uma cama de lona e tubo de
alumínio. Sobre a cama, uma forma alongada, coberta com
um lençol. Um dos homens aproximou-se rapidamente de
Salazar, murmurou algumas palavras a seu ouvido e ambos
se afastaram para confabular secretamente durante alguns
minutos. Por fim, Salazar assentiu com a cabeça e afastou-
se do homem, vindo ao encontro de Brigitte e Agueda,
sempre conservando sua atitude cortês, atrás da qual a espiã
adivinhava tensão, preocupação... e perplexidade.
— Parece que houve um ligeiro acidente... — disse ele.
— Não creio que este seja um lugar adequado para as duas.
— Que aconteceu? — perguntou “Baby”.
— Bom... Como já disse, houve um pequeno acidente,
que talvez nos acarrete algumas amolações de ordem
diplomática. Realmente, não creio que Cuba nos peça
muitas explicações, mas é sempre desagradável notificar a
morte de um súdito estrangeiro...
— De que morreu? — perguntou Brigitte.
— Ao que parece, o coração do súdito cubano não
funcionava muito bem. Ele se chamava Diosdado Curruca e
era escritor... Novelista, ou algo assim. Teremos que
notificar Cuba que Diosdado Curruca faleceu
repentinamente de um colapso cardíaco. Lamentável.
— Sim, bastante lamentável — concordou “Baby”. —
Sou jornalista, señor Salazar. Veria algum inconveniente
em que eu examinasse o cadáver? Bem, quer dizer, lançar-
lhe uma olhadela, simplesmente.
— Inconveniente nenhum, miss Montfort. Contanto que
não tire fotografias, pode olhar a cadáver quanto quiser. A
propósito, poderia me dar fogo? Esqueci os fósforos no
bolso de meu trajo escuro.
Brigitte olhou o elegante e simpático personagem.
Estendeu-lhe seu isqueiro de platina e brilhantes. Depois,
sem mais comentários, aproximou-se do cadáver coberto
com o lençol, acompanhada de Agueda. Sem que ninguém
lhe fizesse objeção, afastou o lençol algumas polegadas,
descobrindo o rosto do morto. Agueda assentiu com a
cabeça, dando a entender que aquele, sem sombra de
dúvida, era Diosdado Curruca, súdito cubano dedicado à
arte da novelística.
Em seguida, Brigitte puxou mais o lençol... Apenas o
suficiente para deixar a descoberto o pescoço do defunto.
Ali, em plena garganta, podia-se ver o horrível talho
produzido por uma afiadíssima faca. Um talho brutal,
espantoso, que quase havia separado do tronco a cabeça de
Diosdado Curruca. O sangue já estava completamente seco
e, a julgar pela intensa palidez do rosto rígido do cadáver,
aquilo devia ter acontecido não menos de vinte e quatro
horas antes. A cabeça tinha sido bem colocada sobre a cama
de lona, de um modo na verdade trágico, indiferente, presa
apenas pelas últimas vértebras cervicais ao corpo, ou,
melhor dito, aos ombros.
Lentamente, “Baby” tornou a colocar o lençol tal como
o havia encontrado, depois se endireitou, voltando-se para
Benito Salazar, que, como os outros três homens, olhava-a
fixamente, expectante. Agueda estava muda de espanto e
tão pálida como o cadáver.
Sem o menor comentário, Brigitte deu uma volta pela
sala, sempre seguida pelos olhares dos quatro homens.
Examinou a grande janela da qual se via o mar, bem como a
porta; fez o mesmo com toda aquela peça, observando seus
quatro cantos, e finalmente com o chão, após olhar atrás de
alguns quadros e das carapaças de caranguejos... Não havia
nada ali: nem microfones, nem armas, nem pista alguma.
Nada.
— Realmente — comentou de súbito — foi um acidente
lamentável. Mas são coisas que acontecem todos os dias.
Qualquer pessoa pode morrer de colapso cardíaco. Segundo
as estatísticas, os homens estão muito mais expostos que as
mulheres aos males das coronárias. Portanto, não é de
estranhar que o señor Curruca tenha sofrido um enfarte.
— De fato... — murmurou don Benito. — Não há o que
estranhar.
— Quanto à explicação que deseja dar a Cuba. Eu a
suprimiria.
— Suprimiria?
— Claro que sim. Vejamos... Diosdado Curruca era
escritor. Bem sabe como são os escritores: um dia aqui,
outro dia acolá... Naturalmente não consta em Cuba que ele
estivesse agora em Chiruavia. Tanto poderia estar aqui
como no Japão, na Alemanha, em Marrocos ou na
Austrália. Além disso, estou certa de que se fosse notificada
oficialmente do falecimento de Diosdado Curruca, Cuba
negaria ser ele um súdito cubano.
— Que sugere então? — interessou-se Salazar.
— Que o enterrem. Começa a cheirar francamente mal.
— É verdade... Mas pergunto-me se sua sugestão é boa,
miss Montfort.
— Também eu me pergunto, señor Salazar. De qualquer
modo, eu nunca daria um mau conselho a um amigo que
considerasse bom.
Benito Salazar assentiu com a cabeça. Olhou para seus
homens, indicou o cadáver e depois a porta. Em silêncio,
dois dos três indivíduos se encarregaram de transportar a
cama de lona e saíram da sala, precedidos pelo outro, que
após olhar para seu chefe compreendeu que não ia receber
mais instruções, no momento.
— Parece que Diosdado Curruca faleceu há umas
quarenta e oito horas, não é mesmo? — observou Brigitte.
— Foi o que disse meu legista, miss Montfort.
— São verdadeiramente assombrosas as coincidências
que ocorrem neste mundo! Por pouco que se pense, é fácil
chegar à conclusão de que Diosdado Curruca faleceu
aproximadamente à mesma hora que Armando de Lerma. A
mesma hora do mesmo dia, claro.
— Uma coincidência notável, por certo. E notável,
também, é a capacidade de observação dos jornalistas...
Acredita, miss Montfort, que se poderia relacionar de algum
modo uma morte com a outra?
— Não sou eu quem deve estabelecer relação alguma,
señor Salazar.
— Muito certo... Vou lhe dizer a verdade, miss
Montfort: sou o chefe da Polícia de Segurança Nacional. De
um modo geral, posso perfeitamente resolver os pequenos
problemas que vez por outra surgem em meu país. Mas,
creia-me, às vezes os acontecimentos escapam à minha...
capacidade dedutiva. Nessas ocasiões, gostaria de ter a meu
lado, digamos, um agente especial da CIA, por exemplo,
para pedir-lhe conselho. Não sei se me compreende: refiro-
me a um desses famosos agentes de ação, que se dedicam a
trabalhos de espionagem e contra-espionagem por conta dos
Estados Unidos. Não é que eu seja um tolo, mas sempre
houve mestres e discípulos. E penso que nunca haverá
melhor mestre do que quem soube ser bom discípulo.
Compreende?
— Perfeitamente. Entretanto, o fato de que eu seja norte-
americana não significa que conheça nenhum desses
agentes de ação da CIA.
— Sim, sim, claro... Foi uma tolice minha, naturalmente.
Bem, se desejam continuar o passeio, com muito gosto as...
— Preferimos voltar para casa, se está de acordo.
— Sem dúvida. Terei o maior prazer em levá-las.
***
— Pena que o passeio não tenha sido muito divertido,
miss Montfort.
— Pelo menos, foi interessante. Muito grata por sua
gentileza... e por seu carro, señor Salazar.
— Sempre ao seu dispor.
— Parece preocupado... Ou não?
Benito Salazar olhou a loja de Agueda Martos; não se
via nenhuma luz lá, mas sim no sobrado, nas portas que
davam para o grande balcão ocupando toda a fachada. O
carro se deteve junto ao meio-fio, diante da vitrina que
exibia cachimbos, maracás, chapéus de palha, barquinhos...
— Um pouco, sim... — admitiu. — A mesma coisa que
quando eu tinha dez ou doze anos e freqüentava a escola:
cada vez que me propunham um problema difícil, custava a
dormir.
— É natural. Entretanto, não há problemas difíceis, uma
vez que se conheçam as fórmulas matemáticas. Quero dizer
que, quando se sabe multiplicar, nenhum problema de
multiplicação nos poderá resistir.
— Dito assim parece muito fácil — sorriu ele.
— E é realmente — sorriu também Brigitte. — Vou
apresentar um exemplo que talvez lhe pareça idiota.
Suponhamos que o coloquem diante de um problema do
qual conhece o resultado...
— Conhecendo o resultado tudo é mais fácil, não?
— Não. Absolutamente não. E vou lhe provar isto.
Suponhamos que o resultado desse problema seja “dez”. O
senhor o sabe com toda a exatidão: tem que ser “dez”.
Entretanto, uma vez efetuadas as somas de todos os
elementos que conhece, o resultado que obtém é “oito”. Por
quê?
— Talvez eu tenha deixado de considerar uma das
parcelas... Não?
— Certo. É possível que falte um “dois” nessa soma.
Portanto, terá que procurar esse “dois” que falta. Exato?
— Sim — riu Benito Salazar. — Mas é possível que
esse “dois” não exista.
— Não, não... Seria por não o ter procurado bem. É
preciso encontrar esse “dois” que falta. E uma vez
encontrado, a soma dará “dez”. Problema resolvido.
Conhecidas todas as parcelas de uma soma, o resultado tem
que ser exato... para quem sabe somar.
Don Benito assentiu sombriamente.
— Temo que passarei a noite procurando esse “dois”,
miss Montfort.
— Isso quer dizer que voltou à infância — riu Brigitte,
estendendo-lhe a mão — Boa-noite, señor Salazar.
***
Pouco depois, Agueda Martos aparecia no quarto de
Brigitte, em camisola de dormir. Ficou espantada ao ver a
espiã completamente nua diante do espelho do armário. E
através do espelho foi vista por “Baby”, que colocou o sutiã
e as calcinhas.
— Quer alguma coisa, Agueda?
— Santo Deus! Como você é bonita, Brigitte. Seu corpo
é...
— Divino, eu sei. As crianças estão dormindo?
— Tão profundamente como antes, quando fomos vê-
las... Você não tem roupa de dormir?
— Amanhã comprarei algumas coisas. Terei tempo de
sobra.
— Vá à loja “Chema Atienza”. Eu lhe darei uni cartão e
será muito bem atendida. Estive pensando: não deveríamos
fazer algo?
— Estamos fazendo. Estamos mesmo?
— Pelo menos, estão fazendo por nós. Refiro-me a
Benito Salazar. Claro que deveríamos interessar-nos por
toda uma série de personagens, mas isso seria arrasador e
temo que inútil. Portanto, deixaremos que seja don Benito
quem faça o trabalho rotineiro. Ele está à procura do “dois”
que falta.
— Acha que o encontrará?
— Não sei. Mas, querida Agueda, desde agora posso lhe
garantir que algo não encaixa bem neste assunto.
— Refere-se à morte de Diosdado Curruca, o espião
cubano?
— Claro. Mesmo que o legista de don Benito não tivesse
opinado assim, eu sei que ele morreu aproximadamente à
mesma hora que Armando de Lerma. Por quê?
— Por quê? Bem, não sei... O que sei é que se Benito
encontrar esse número dois que falta, não virá dizê-lo a nós.
Brigitte acendeu um cigarro e olhou amavelmente para
Agueda Martos.
— Não encontrará — murmurou.
Agueda pareceu totalmente perplexa.
— Não entendo nada — confessou.
— Amanhã você entenderá, quando Salazar vier
consultar-nos. Calculo que será pelo meio da tarde. Passará
toda a manhã investigando, almoçará ao meio-dia, depois,
porá em ordem as informações... Sim, creio que só virá às
cinco ou às seis.
— Você fala como se don Benito estivesse... trabalhando
para você, Brigitte.
— É isso exatamente o que ele está fazendo. E fico-lhe
muito grata, porque me poupa um trabalho tedioso. De
qualquer modo, para ele será mais fácil, pois dispõe de
gente e de meios, além de conhecer o terreno.
— Continuo sem entender nada.
— Amanhã você vai entender, já disse, quando ele nos
trouxer suas informações. E assim será, Agueda, não tenha
dúvida. Até então, não podemos fazer mais que esperar... E
dormir. O que é formidável. Boa-noite.
— Mas... Bem, a que horas chamo você? Se quer fazer
compras, é melhor que não se levante muito tarde...
Brigitte olhou as horas no pulso. Depois bocejou
graciosamente.
— Acordarei às oito em ponto, Agueda. Até amanhã.
E adormeceu ante a estupefação da outra, que saiu do
quarto perguntando-se que espécie de espiã lhe tinha
enviado a própria Central da CIA.
CAPÍTULO QUINTO
Moral da história: vergar como um caniço
Sete demônios atormentam don Benito
Por nenhum motivo especial...

— Boa Tarde! É um prazer tornar a vê-lo tão depressa.


Por favor: que horas são?
— Seis menos quinze.
— Assombroso... — murmurou Agueda.
— Acha assombroso que faltem quinze minutos para as
seis?
— Não me referia a isso, mas à sua pontualidade.
Agora quem se assombrou foi ele.
— Minha pontualidade? Não compreendo... Acaso terei
dito que viria hoje aqui, a estas horas?
— Não, não... Foi uma idéia minha, não faça caso.
Brigitte está no pátio, com as crianças. Fizeram-se muito
amigos.
— Isso não me surpreende. Miss Montfort é
encantadora.
— Pode ir lá, se quiser... Gostaria de tomar um mate?
— Francamente, Agueda, preferiria algo mais forte.
— Não sei se seria mais forte para o senhor. Brigitte
passou a manhã fazendo compras e trouxe champanha,
uísque, vodca... Suponho que lhe oferecerá a bebida de sua
preferência. Oh, Santo Deus, dou Benito: precisava ver as
coisas que ela comprou... Deve ter gastado uma fortuna!
Voltou cansadíssima de tanto gastar dinheiro em nossa loja.
— Uma turista muito simpática — sorriu Salazar, com
expressão preocupada. — Irei cumprimentá-la, com sua
licença, Agueda.
— Pois vá, don Benito, vá... A casa é sua. Muito
obrigado.
Benito Salazar afastou a cortina e percorreu o corredor
que levava ao pátio interno. Antes de lá chegar, franziu a
testa. Certamente Agueda se havia enganado: não era
possível que as crianças estivessem no pátio. Aquele
silêncio era revelador. Conhecia bem os sete netos menores
de Agueda Martos e sabia que quando eles estavam
presentes se desencadeava pouco menos que uma batalha.
Mas estavam. Estavam os sete, todos sentados no chão,
com as perninhas cruzadas, imóveis, levantando os olhos
negros maravilhados para fixá-los em Brigitte Montfort, a
cuja frente eles formavam um compacto semicírculo.
Sentada numa das poltronas de vime, ela vinha de calar-se
para olhar amavelmente don Benito. Consultou também seu
relógio e sorriu, com ar divertido:
— Olá, señor Salazar. Que agradável surpresa!
— Boa-tarde, miss Montfort. Olá, pirralhos.
Mas os pirralhos o olharam torvamente e ele se sentiu
como o mais perfeito dos intrusos.
— Sente-se — convidou Brigitte. — Atendo-o num
instante. Tenho que terminar uma história... Onde
estávamos?
— Tava ventando — disse Felipito.
— Ah, sim! Estava ventando... E o vento soprava cada
vez com mais força: XTuuuu, vuuuu, vuuuu...! E os caniços
se dobravam, na margem do rio. Mais além, um grande
carvalho, que sempre tinha rido dos caniços porque eram
finos e fracos, começou a chorar porque o vento, já
transformado num verdadeiro furacão, estava arrancando
muitos de seus galhos. E tão terrível foi o furacão, que até
arrancou o carvalho da terra, com raiz e tudo, e o atirou
longe, bem longe, com todos os ramos partidos e o próprio
tronco rachado pelo meio...
— Bem que ele mereceu! — exclamou Tomasito.
— Mereceu sim, porque riu dos caniços! — opinou
Palmiro.
— Esperem. A história ainda não terminou. Enquanto o
carvalho era arrancado da terra com raiz e tudo, e feito em
mil pedaços pelo furacão, sabem vocês o que aconteceu
com os caniços?
— Se quebraram! — gritou Felipito.
— Nada disso. Não se quebraram. Escutem bem;
enquanto o furacão soprava cada vez mais forte, os caniços
se dobravam cada vez mais. Eram tão tinos e tão fracos, que
o furacão não podia agarrá-los com sua grande mão de cem
dedos. E quanto mais forte soprava o furacão, mais os
caniços se inclinavam... Até que, quando acabou o furacão,
eles tornaram a se endireitar e ficaram do mesmo jeito que
antes, como se não tivesse acontecido nada...
— O furacão era bobo — afirmou Felipito.
— Não, Felipito, não: ele não era bobo. Mas os caniços
eram muito espertos e, em vez de fazer como o orgulhoso
carvalho que enfrentou o vento porque se julgava muito
forte, eles souberam aproveitar sua fraqueza, curvando-se o
mais que podiam. E quando o vento cessou, voltaram a ser
como antes. Eram uns caniços muito espertos.
— E que mais? — perguntou Emerenciana.
— Acabou-se a história — sorriu Brigitte. — E ela nos
ensina que não devemos ser orgulhosos, nem enfrentar os
mais fortes que nós, pois só teríamos a perder com isso. Se
somos fracos, devemos aprender a usar nossa fraqueza...
Você me entendeu, não, Tomasito?
— Acho que sim, miss.
— Pois agora leve daqui seus irmãos e primos, e
explique a todos eles o que compreendeu.
— Mas eu quero outra história! — protestou Felipito.
— Amanhã tem mais. Agora preciso conversar com don
Benito.
Novamente, Tomasito e Palmiro tiveram que levar o
rebelde Felipito, com veementes protestos deste.
Quando ficaram sozinhos, Salazar esboçou um sorriso.
— Eu também compreendi sua história.
— Tanto melhor. Uísque?
— Oh, sim. Aceitarei com prazer.
— Um momento, então. Volto já...
Brigitte levantou-se rapidamente e saiu do pátio, sem dar
tempo a que don Benito fizesse qualquer objeção. Voltou
minutos depois, sem nada nas mãos, mas Agueda vinha
atrás dela com uma bandeja onde se podia ver a garrafa de
uísque, copos e um pequeno recipiente de cristal com cubos
de gelo e uma pinça. Ao olhar que “Baby” lhe dirigiu,
empunhando a pinça, Salazar assentiu com a cabeça.
Agueda sentou-se numa das poltronas, olhando para um e
outro, ambos já empunhando seus copos com uísque e gelo.
— Encontrou o “dois” que faltava, señor Salazar? —
perguntou Brigitte.
— Não,
— Que pena... Mas talvez não tenha procurado bem.
— Procurei muito bem. Meus homens e eu não tivemos
descanso esta noite... Mas continua faltando esse número
“dois”, miss Montfort. Não existe.
— Bom... Não gostaria de parecer impertinente, señor
Salazar, mas deve existir. Talvez não o tenha sabido ver.
Desculpe se.
— É possível que eu não soubesse vê-lo — admitiu
sombriamente o chefe da PSN de Chiruavia. — Talvez
sejam necessários olhos melhores que os meus. Os
jornalistas têm muito bons olhos... e ouvidos.
— Refere-se a mim? — riu Brigitte. — Oh, creio que
está exagerando... Mas, sem dúvida, se lhe parece que
conversando comigo vai obter algum resultado, eu o ouvirei
com muito gosto.
Agueda Martos continuava olhando para um e outro,
cada vez mais assombrada. Por enquanto, as coisas iam
acontecendo exatamente como Brigitte previra a noite
anterior. E não seria estranho que, tal como a formosa
jovem de olhos azuis estava conduzindo o assunto, Salazar
explicasse militas coisas mais. Ou poucas. Certamente,
poucas.
— Vou lhe fornecer todos os dados — murmurou don,
Benito. — As parcelas dessa soma cujo resultado deve ser
dez, de acordo com sua suposição, eram uns quantos
homens que estavam... de férias em Chiruavia. Dois russos,
um francês, um inglês, dois venezuelanos... Indivíduos que
em várias ocasiões foram vistos passeando pelas
vizinhanças da mansão do general Armando de Lerma.
— Que casualidade! De qualquer modo, se eu fosse uma
jornalista dessas desconfiadas e... sensacionalistas, poderia
pensar, dando asas à minha imaginação, que esses homens
seriam espiões, ou algo assim.
— Espiões? Sim, poderiam ser isso... Portanto, em vez
de turistas, nós os chamaremos espiões.
— Será mais divertido — sorriu “Baby”, inocentemente.
— Claro... Bem, pois esta noite e praticamente todo o
dia de hoje nos dedicamos a vigiar esses espiões. E sabe o
que fizeram?
— Compraram passagens de avião.
— Como adivinhou isso? — quase gritou Salazar.
Brigitte olhou-o com. ar de assombrada reprovação.
— Mas, señor Salazar... eu não sei nada! Foi a primeira
resposta de jornalista que me ocorreu.
— Ah, claro... Pois bem, eles adquiriram passagens de
avião, realmente. Cada um com destino a seu país. Os
venezuelanos partiram antes do meio-dia, o inglês depois do
almoço. E dentro de uns minutos seguirão os últimos, que
são os russos.
— Os espiões russos são os mais desconfiados, ao que
parece. Resistem a abandonar o campo. Não acha curioso
que todos eles partam depois das exéquias de Armando de
Lerma? É como... como se estivessem estado à espera de
alguma coisa e, ao morrer o general, compreendessem que
já nada iriam conseguir. Julga o senhor extravagante a
teoria de que esses homens estavam à procura de algo
relacionado com o general?
— É uma teoria aceitável. Talvez procurassem o modo
de conseguir algo que de Lerma guardava em seu cofre.
— Ah... Mas isso foi conseguido?
— Com toda certeza: não.
— Como pode estar tão certo?
— Porque quando abri o cofre encontrei tudo lá.
Brigitte ficou pensativa uns segundos.
— Encontrou tudo lá... De qualquer modo, isso não
significa nada. Suponhamos... É uma simples suposição,
compreenda... Suponhamos que o general de Lerma
guardava em seu cofre certos documentos importantes, que,
depois de sua morte, apareceram intactos. Pois bem, isso
não significa nada, já que alguém pode ter microfotografado
esses documentos e deixado os originais no cofre,
enganando o senhor e seus homens. Que lhe parece?
— Não. Ninguém pode ter microfotografado esses
documentos, já que ninguém sabia como abrir o cofre. Não
tinha chave, apenas uma complicadíssima combinação que
unicamente o general de Lerma conhecia. Disso estamos
certos. Se os documentos lá estavam, é que ninguém teve
acesso a eles, em nenhum momento.
— Isso é muito tranqüilizador — sorriu “Baby”. — Tais
documentos poderiam ser importantes. Muito bem, vamos
dar por assentado que esses documentos estão a salvo...
Exato?
— Exato. Com toda a segurança.
— O senhor os retirou do cofre?
— Assim é.
— Oh, então é que pode abrir o cofre do general, não é
verdade? E se o fez, por que não terão podido fazê-lo outras
pessoas, para microfotografar os documentos?
Agora Salazar sorriu triunfalmente.
— Ninguém pode fazer isso, miss Montfort, pela simples
razão de que ninguém sabia como abrir o cofre. Quanto a
mim, tive que recorrer à dinamite.
— Oh!
— Já vê que a integridade, a segurança e o segredo
desses documentos não foram afetados, Estão a salvo e
continuam sendo secretos.
— Isso, como disse antes, é altamente tranqüilizador.
Bom, agora resta-nos perguntar quem e por que matou... de
um colapso cardíaco, claro, o cubano Diosdado Curruca.
Saberíamos isso se encontrássemos o “dois” que falta.
— Não existe esse “dois”. Por que qualquer um dos
outros espiões teria que matar Curruca? Que ganhava com
isso? Somente complicaria sua vida. Não, miss Montfort,
não existe esse “dois” que quer a todo custo acrescentar à
soma...
— Entretanto, se a soma não dá o resultado exato...
— Talvez alguém o tenha assassinado para roubar,
simplesmente.
— Claro — sorriu divertida a espiã mais astuta do
mundo. — É uma possibilidade a ser tomada em conta. Não
obstante, ocorre-me outra melhor.
— Qual?
— Que uma das parcelas de que dispõe até o momento
para somar é falsa.
— Como? — perguntou Salazar.
— Parece evidente, não? Se o senhor tem todas as
parcelas que compõem a soma e sabe que o resultado é 10,
mas só pode encontrar 8, isso quer dizer que uma delas é
falsa. Ou seja, que o número que está somando como 2 é na
realidade um 4. Portanto, um falso número.
— Um falso número... Sim, é possível... Ou seja, que
alguém está mentindo.
— Os espiões sempre mentem — sorriu Brigitte.
— Sim... qual deles? Um morre e os outros se retiram.
Qual foi o que fez jogo duplo, e para que, se partem sem os
documentos, sem nada..
— Talvez o número falso ainda esteja em Chiruavia. Às
vezes, as árvores não deixam ver a floresta.
— Quer dizer que tenho esse número falso diante de...
de meu nariz?
— Não! — riu Brigitte. — O que tem agora diante do
nariz é um copo de uísque... Mas, evidentemente, não se
deve por de lado a possibilidade de que também tenha outra
coisa.
— Entendo... — sussurrou Salazar. — Entendo muito
bem, miss Montfort.
— Muito me agrada que minha conversa tola possa
servir-lhe de alguma coisa.
— Por favor! Sua conversa é amena, divertida, cheia de
fantasias, como isso de espiões e documentos secretos...
Proporcionou-me um momento bastante agradável. De vez
em quando é bom fantasiar, inventar coisas... Aceitaria
jantai comigo, miss Montfort?
— Sem dúvida — sorriu Brigitte.
— Ótimo! — exclamou Salazar. — Irei agora mesmo
reservar uma mesa em...!
— Não, não. Continuemos fazendo coisas raras, señor
Salazar: iremos os dois agora ao melhor supermercado de
Ciudad Chiruavia, gastaremos lá algumas centenas de pesos
em coisas gostosas, agradáveis, exóticas... e traremos tudo
para cá. Depois jantaremos os dez juntos.
— Os dez? Que dez?
— Agueda, as crianças, o senhor e eu.
— Mas eu... eu tinha pensado que o jantar...
— Talvez em outra ocasião possamos ter um jantar
mais... íntimo, Benito.
Agueda olhava cada vez mais rapidamente de um para
outro. Estava simplesmente atônita, maravilhada. Nunca em
sua vida tinha visto um homem cair de um modo tão total
no laço preparado por uma mulher. Quer dizer, se don
Benito caísse, porque ela estava certa de que o chefe da
PSN se negaria redondamente a jantar com as crianças,
ainda que isso lhe garantisse a companhia de uma jovem tão
bela. Claro que ele se negaria!
— Bem... Creio que será divertido. Aceito, miss
Montfort.
— Brigitte, simplesmente — sorriu ela. — No meio de
tantas palavras fantasiosas que estamos trocando, creio que
também um pouco de amizade se insinua, não lhe parece,
Benito?
— Oh, sim... Naturalmente! E tenho a dizer-lhe que isto
me encanta.
Pois agora vamos passear e fazer compras. Até logo,
Agueda. Prepare uma bonita mesa aqui mesmo, no pátio.
Será um jantar romântico, à luz das estrelas, com o rumor
de água jorrando do repuxo e o aroma das flores... Vamos,
Benito.
Já fazia algum tempo que ambos tinham partido, quando
Agueda Martos conseguiu reagir.
— Puxa! — murmurou. — E parece uma mocinha,
indefesa.
***
— Bom-dia, Brigitte.
Ela voltou-se, porém mantendo as mãos apoiadas à
balaustrada metálica que rodeava o Mirador de los Virreyes.
— Bom-dia, Benito. Ficou zangado comigo?
— Zangado? — espantou-se Salazar. — Por quê?
— Pelo jantar de ontem. Receio ter metido você numa
espécie de tempestade: mancharam sua roupa,
atormentaram seus ouvidos com toda aquela barulheira,
Felipito mordeu-lhe a mão.
— Isso foi ontem... — sorriu ele. — Hoje é outro dia.
Um lindo dia, por sinal... e muito pouco próprio para que
me recorde com antipatia do jantar de ontem, com aqueles
sete diabretes.
— Veio aqui por casualidade?
— Mais ou menos. Passei pela loja de Agueda e ela me
disse que você tinha vindo ao Mirante. Não acha que está
um tempo excelente para uma viagem de barco?
— Você vai viajar de barco?
— Eu? Não... Bom, talvez tenha falado nisso porque
acabo de saber que eles partirão de barco. Pura associação
de idéias.
— Quem são “eles”?
— Os empregados de Armando de Lerma. Não sei se os
conhece: Vladimir e José Juan.
— Não. Não os conheço.
— Vão viajar... Não faz muito que um de meus homens
me deu o aviso. Sei que isso não lhe interessa, mas ao
referir-me a este bonito dia e olhando o mar daqui de cima...
Bem, pensei numa viagem marítima e lembrei-me de
Vladimir e José Juan... Tolice minha.
— De alguma coisa se tem que falar — sorriu Brigitte.
— E aonde vão esses empregados do general?
— Esta manhã, bem cedo, José Juan comprou duas
passagens de primeira classe no confortável “Ondina”, o
melhor barco da nossa Companhia Nacional de Navegação.
Sai de Ciudad Chiruavia, sobe até Callao, no Peru, depois
escala em Honolulu, Tóquio e Hong-Kong. O caminho de
volta é feito ao inverso, simplesmente.
— Por que José Juan e Vladimir vão viajar?
— Vladimir convenceu José Juan. Possui amigos em
Vladivostok e parece que José Juan tem vontade de
conhecer novas terras, de modo que, ao chegarem em
Tóquio, estenderão a viagem até Vladivostok, onde
Vladimir garante que ambos encontraram emprego. Se Juan
gostar. Se não, pagarão sua viagem de volta.
— Entendo que, no momento, o destino de ambos é
Tóquio.
— Sim. E me pergunto se devo deixá-los partir. Já têm
tudo preparado: maletas, mala grande, alguns objetos
tipicamente chiruavianos...
— José Juan está muito entusiasmado com a viagem.
Mas não sei se devo permiti-la. Não posso esquecer que na
noite de anteontem alguém assassinou o cubano Curruca...
Quero dizer que o encontramos anteontem, mas que...
— Eu sei. Pensa você que Vladimir e José Juan têm
alguma coisa a ver com aquele infeliz acidente?
— Penso que não. Mas... e se assim fosse?
— Pois mais um motivo para deixá-los partir.
— Espere. Está dizendo que, se ambos fossem suspeitos,
eu deveria deixá-los partir?
— Claro. Você os deixa partir, alguém os vigia de perto
e assim saberá o que fazem no barco, com quem falam, por
quem serão recebidos em Tóquio etc. É só deixar que eles
embarquem e vigiá-los bem. Pelo menos, você ficará livre
da dúvida, Benito. A que horas sai o navio?
— As seis da tarde.
— Muito bem. Então, tem tempo de sobra para me fazer
um convite... Ou não veio aqui com esta intenção?
— Vim, realmente — retorquiu Salazar, pasmo. O
capitão do “Ondina” é meu amigo pessoal, de modo que
meus homens encontrariam grandes facilidades para tudo...
Sim, talvez eu envie dois homens a Tóquio, Brigitte.
— E tenciona convidar-me para quê?
— Oh, para o que você quiser!
— Bem, tomarei uma tônica com gelo e limão. Mas não
o reterei por muito tempo, pois suponho que tenha ordens a
dar, Benito.
— Algumas, de fato... Mas não há pressa.
***
Eram quase sete horas quando Benito Salazar apareceu
na loja de Agueda, que o olhou incredulamente.
— Outra vez por aqui, don Benito?
— Quero ver Brigitte.
— Pois está no pátio, sempre com as crianças. Parece
gostar muito delas e diz que...
Mas Salazar já se precipitava para o interior da casa e
logo surgia no bonito pátio interno, sem se incomodar com
as sete crianças que riam em torno de “Baby”, na maior
algazarra. Plantou-se diante dela, rosto um pouco crispado.
— O “Ondina” já partiu, na hora marcada, sem que
Vladimir e José Juan estivessem a bordo.
— Terão perdido o navio — murmurou Brigitte. — É
coisa que acontece com freqüência... Devem estar na casa
do general.
— Não. Mandei lá dois de meus homens. Não estão.
— E que dizem os que vigiavam a casa?
— Nenhum vigiava a casa. Sabíamos que ambos iam
tomar o barco e suspendemos a vigilância, transferindo para
bordo dois de meus homens. Agora estes partiram para
Callao, mas não Vladimir e José Juan. Mandei outros dois á
casa e eles me comunicaram pelo rádio de bolso que os
empregados do general não estão lá.
— Podemos dizer que... desapareceram?
— Sim... É isso que podemos dizer! Estávamos seguros
de que tomariam o barco... Despacharam sua bagagem e
tudo parecia indicar que estariam a bordo quando o
“Ondina” zarpasse... Mas não se encontram nem no barco
nem na casa.
— Infelizmente, Benito, não tenho a mínima idéia do
que se possa fazer.
— Atrevo-me a pedir que você venha comigo à mansão
do general de Lerma. Por nenhum motivo especial, claro...
Apenas pensei que talvez pudesse obter lá uma reportagem
interessante.
— Oh, é uma boa idéia sorriu Brigitte.
CAPÍTULO SEXTO
Dois cadáveres surgem à superfície
Uma lista dos passageiros do “Ondina”
“Baby” vai deixar de aborrecer-se...

Na mansão do general de Lerma não havia realmente


ninguém. Brigitte, Salazar e os dois homens deste
revistaram-na conscienciosamente, sem encontrar nem sinal
da presença de Vladimir e do mestiço José Juan. Nem sinal,
já que todos os seus pertences tinham sido retirados e
estavam naquele momento em duas maletas, uma grande
mala e pacotes diversos, que tinham sido levados para
bordo do “Ondina” por volta das quatro da tarde, segundo
explicação de don Benito.
— É absurdo... — grunhiu este. — Completamente
absurdo.
Brigitte não respondeu. Tornou a percorrer a casa e
finalmente foi à garagem. Ali, completamente queimado,
negro e retorcido, estava o carro de Armando de Lerma,
transformado em montão de ferro velho. Também na
garagem ela esteve olhando tudo, sem ocultar sua
perplexidade.
E já a ponto de sair, deteve-se à larga porta, olhando a pá
e a picareta que estavam a um canto. Aproximou-se, ergueu
ambas as ferramentas e um de seus afilados dedos passou
pela aguda aresta da picareta, ficando manchado de terra.
Terra vermelha e fresca. A seu lado, sorumbático e quase de
mau humor pelo aspecto desconcertante que iam tomando
os acontecimentos, Benito Salazar a olhava atento, mas sem
esperar nenhum milagre, evidentemente.
— É uma picareta — resmungou.
Brigitte voltou-se para olhá-lo, inexpressivamente. Sem
deixar a picareta e a pá, abandonou a garagem. A muito
pouca distância, os homens de Salazar esperavam, com ar
aborrecido, que a revista afinal terminasse. Seu chefe tinha
saído atrás de Brigitte e estava agora junto a ela, olhando-a
sempre, talvez surpreso pela expressão profundamente
reflexiva da belíssima jornalista americana, que dirigia seu
olhar azul para as árvores e os canteiros floridos, depois
para a casa, para a garagem e outra vez para os canteiros.
Depois, em silêncio, encaminhou-se para estes, seguida por
Salazar e, de má vontade, pelos agentes da PSN de
Chiruavia. Deixou a picareta e a pá na borda de um canteiro
e entrou por este, lentamente, com todo o cuidado...
Salazar olhou seus homens, fez um gesto de resignação e
seguiu “Baby”, pisando exatamente aonde ela ia pisando.
Viu-a dar leves puxões em todas as plantas, à medida que
passava junto a elas... E subitamente ela se deteve junto a
uma planta. Deu-lhe outro puxão e a terra se levantou,
deixando aparecer a raiz; outro leve puxão acabou de
arrancar por completo a formosa planta cheia de flores
— Diga a seus homens que venham com a picareta e a
pá.
— Mas para quê?
— Têm que cavar aqui.
Don Benito franziu a testa, porém chamou seus homens
e lhes deu instruções. Os três pareciam fartos de tudo
aquilo... Mas cinco minutos mais tarde compreenderam que
tinha valido a pena. Todos ficaram olhando aquela mão que
aparecia, saindo da terra insuspeitadamente fofa.
Depois olharam para Brigitte, que fez um sinal
significativo. Os dois agentes da PSN puxaram aquela mão
e o cadáver pareceu sentar-se no buraco, todo cheio de
barro, como um estranho monstro criado pela fantasia,
como um sinistro habitante do interior da Terra. “Baby”
tirou o lenço que Salazar tinha no bolso superior do paletó,
entrou no buraco e removeu cuidadosamente o barro que
aderia ao rosto do cadáver...
— Vladimir — murmurou don Benito.
A outro sinal de “Baby”, o morto foi retirado do buraco
e os dois agentes continuaram cavando, agora com visível
entusiasmo. Embora não tivessem que cavar muito, pois não
demorou a aparecer um joelho. Depois, já com as mãos,
foram afastando a terra, até deixar a descoberto uma perna...
Pouco depois, outro cadáver era arrancado do buraco e
depositado junto ao primeiro. Brigitte removeu também o
barro que lhe ocultava as feições, embora isso não fosse
necessário, pois todos sabiam quem eram os dois mortos.
— Vladimir e José Juan... — disse Salazar, voz tensa. —
Mas não compreendo isto, por Deus! Não compreendo
nada... Primeiro o cubano, agora eles... Por quê? Quem foi?
“Baby” estava procurando as causas da morte dos dois
empregados do general De Lerma, o que não tardou a
encontrar. Cada um deles tinha três balas quase juntas no
coração. Num bolso de José Juan, encontrou uma navalha
afiadíssima, que abriu cuidadosamente, examinando-a com
olhos de especialista. Depois estendeu-a a Salazar, aberta.
— A arma do crime — disse.
— De que crime?
— Do de Diosdado Curruca.
— Está dizendo que quem matou José Juan matou
também...?
— Não. Estou dizendo que José Juan foi quem
assassinou o cubano Diosdado Curruca. E o fez na mesma
noite em que morreu o general De Lerma. Talvez meia hora
antes, ou meia hora depois.
— Mas... mas por quê?
— É óbvio, Benito: Diosdado Curruca viu alguma coisa
e escapou a toda a pressa. José Juan o deve ter visto,
certamente rondando esta mansão, coisa que Curruca
costumava fazer, e o seguiu até sua casinha na Avenida
Costera, onde o degolou.
— Sim... Compreendo... Que lhe parece que o cubano
tenha podido ver?
— Não sei. Algo importante, sem dúvida...?
— Algo importante? Por exemplo...?
— Tenho a certeza de que se Diosdado Curruca não
morresse nas mãos de José Juan, poderia explicar-nos
exatamente as causas do... “acidente” sofrido pelo general
de Lerma.
— Está sugerindo que não houve tal acidente? Está
dando a entender que talvez José Juan e Vladimir tivessem
algo a ver com a morte de Armando de Lerma?
— Poderia ser, Benito. Talvez tenha sido um falso
acidente. Ou seja, um assassinato.
Benito Salazar passou a mão pela testa, na qual tinham
surgido gotas de suor.
— Mas se Vladimir e José Juan mataram o general
simulando um acidente, e depois José Juan degolou
Diosdado Curruca... quem matou agora Vladimir e José
Juan, e por quê?
— O número falso, Benito.
— Como?
— O número falso, não se lembra? Alguém mentiu,
enganando a nós todos. Ocorre-lhe algum nome?
— Não... Claro que não!
— Está seguro, pelo menos, de que todos os espiões que
havia em Chiruavia partiram ontem de avião?
— Claro que estou!
— Então, foi alguém que não partiu... Alguém que
estava perto de Vladimir e José Juan durante todo o tempo,
de tal forma que os homens enviados por você ou não o
podiam ver, ou não davam importância à sua presença.
Você tem a lista das pessoas que viajam no “Ondina”?
— Não... Mas posso obtê-la, é lógico.
— Pois faça isso. É possível que algum nome da lista de
passageiros lhe dê a chave, Benito.
— Está bem. Chamarei pelo rádio o capitão do
“Ondina”...
— Não creio que isso seja acertado. Se eu fosse você,
tomaria o quanto antes uma lancha rápida, alcançaria o
“Ondina” e o abordaria. Seu amigo, o capitão, não fará
objeções, além do fato de você ser uma personalidade em
Chiruavia. Uma vez no “Ondina”, Benito, estou certa de
que verá as coisas com toda a clareza.
— Simplesmente olhando a lista de passageiros?
— É possível. Pode ser que esteja a bordo um de seus
amigos do Governo, ou da PSN, ou do Exército... Não sei.
Creio que sé você poderá decidir, sobre o próprio terreno.
— Acho que você tem razão. Irei agora mesmo...!
— Não vai me deixar antes em casa de Agueda?
— Oh, sim! Naturalmente!
***
Durante alguns segundos, Agueda olhou assombrada o
carro que se afastava velozmente. Por fim, olhou para
Brigitte, que sorria vendo afastar-se o veículo.
— Que há com don Benito? Tem tanto medo assim de
jantar com as crianças?
— Não. É que tem outras coisas a fazer, Agueda. Você
sabe em que freqüência opera o rádio do “Ondina”?
— Posso saber em menos de dois minutos, dando um
telefonema.
— Pois dê. Conhece alguém que possa me alugar um
helicóptero?
— Sem dúvida. É caro, mas sei de alguém.
— Chame-o igualmente. Quero o helicóptero pronto
para voar dentro de uma hora no aeroporto.
— Que está acontecendo?
— Nada importante — sorriu “Baby”. — Apenas vou
continuar ajudando Benito a resolver és-te desconcertante
assunto. Já comunicou a Washington que o relatório sobre
as bases aeronavais estão a salvo e que não devem temer
que tenha deixado de ser um segredo?
— Não... Como você está aqui, pensei que você
mesma...
— Chame a Central e diga que a organização e
construção das bases em Chiruavia deixaram de ser um
segredo e que se dentro de...
— Mas don Benito disse que ninguém tinha tocado no
relatório! — exclamou Agueda.
— Eu digo o contrário. Chame a Central e transmita meu
informe: as bases deixaram de ser segredo quanto a suas
características; portanto, com toda a probabilidade, o
sistema estratégico que foi cogitado para o futuro no
Pacífico já é conhecido por outro ou outros países, de modo
que se deve abandonar este projeto. Se dentro de dois dias
não tiverem noticias minhas, este informe é definitivo. Se
houver novidade, comunicarei antes de quarenta e oito
horas.
— Mas isto é incrível... E você? Que pensa fazer,
Brigitte?
A espiã internacional tornou a sorrir.
— Deixar de aborrecer-me — disse.

CAPÍTULO SÉTIMO
Marinheiro adormece e mala desaparece
Uma linda brasileira a bordo
Controle remoto... por bilhetes.

Aurélio Vargas, capitão do “Ondina”, o maior e mais


luxuoso barco da Companhia Nacional de Navegação de
Chiruavia, desviou os olhos da loura sensacional que
acabava de subir a bordo em Callao, no Peru, e tornou a
voltar-se para Benito Salazar, assobiando de admiração.
— Puxa vida, Benito! Devia ser proibido haver garotas
assim! Só vêm ao mundo para perturbar a gente...
Salazar olhou-o severo. Depois olhou as formidáveis
pernas da loura, que já entrava pelos corredores do barco, e
emitiu um grunhido.
— Não preciso sair de Chiruavia para ver mulheres
bonitas, Aurélio.
Vargas encolheu os ombros. Era um tipo alto,
encorpado, de olhos claros e expressão maliciosa. Aos
cinqüenta anos completos, jovens como a loura que acabava
de ver eram o maior espetáculo que podia oferecer-lhe a
vida.
— Está bem... Estou ajudando você, mas isso não me
impede de olhar uma garota bonita. Pena que seja loura. De
qualquer modo, estou certo de que quando tirar os óculos
escuros será abafante. Uma vez...
— Tem certeza de que não desembarcou nenhum
passageiro?
— Você esteve aqui comigo todo o tempo, não? Viu
alguém desembarcar?
— Não.
— Pois eu tampouco. E como os passageiros que deviam
embarcar em Callao já estão a bordo, darei ordem para
zarparmos agora mesmo. Não me ocorre outra coisa que
possa fazer por você... A menos que queira ler outra vez a
lista dos passageiros. Virá comigo até Honolulu?
— Não. Continuarei a viagem por dois dias. Depois
certamente regressarei a Chiruavia com a lancha em que os
alcancei esta noite. Você terá que me arranjar combustível.
— A Companhia lhe mandará a conta.
Salazar lançou um grunhido e Vargas, sorrindo
matreiramente, afastou-se em direção á ponte de comando,
disposto a dirigir as manobras para deixar o perto de Callao.
Durante quinze minutos, Benito Salazar esteve
contemplando a cidade, da qual o “Ondina” começava a
distanciar-se. A partir daquele momento, navegaria sem
nenhuma escala até Honolulu, no Arquipélago de Havaí. De
lá, a Tóquio e Hong-Kong. Depois retornaria a Chiruavia,
pela mesma rota...
Por que haviam assassinado Vladimir e José Juan? A
morte de Diosdado Curruca parecia agora bem clara: tinha
visto alguma coisa, mas, por sua vez, José Juan o tinha
visto, seguido e degolado. Que teria visto Diosdado
Curruca? Quem matara em seguida José Juan e Vladimir?
Por quê?
— Benito!
Salazar sobressaltou-se, voltando-se para Aurélio
Vargas, que estava a seu lado, tendo transferido o comando
do barco ao primeiro-oficial. Vargas parecia preocupado,
espantado.
— Que aconteceu, Aurélio?
— O marinheiro que deixei vigiando a porta do
camarote desses dois homens que não embarcaram,
Vladimir e José Juan...
— Sim, sim, o homem que, a meu pedido, você postou
lá... Que houve com ele?
— Está dormindo.
Benito Salazar ficou boquiaberto.
— Dormindo! — exclamou. — E não há jeito de acordá-
lo.
***
— Mas... como foi? — irritou-se Salazar.
— Não sei, não senhor... — respondeu o garçom. —
Estive assistindo à saída do navio, como todo o mundo.
Depois passei por aqui, a caminho do bar, e vi esse
marinheiro estendido no chão. É tudo.
— Mas não pode ser tudo, porque...!
Benito interrompeu-se bruscamente ao ouvir sob um de
seus pés o leve rangido. Inclinou-se e viu os diminutos
fragmentos de vidro finíssimo... Aurélio Vargas também se
tinha inclinado e, ao ver aqueles fragmentos, olhou com
expressão de censura para um dos camareiros do barco.
— Limpe isso imediatamente — ordenou.
— Sim, senhor... Desculpe, mas eu não vi. Limpo
imediatamente.
Benito endireitou-se, olhando aborrecido o marinheiro
que dormia a sono solto no corredor. Fez um sinal que, após
repetido por Aurélio Vargas, ocasionou o rápido transporte
do dorminhoco por dois outros marinheiros.
Em seguida, o chefe da PSN examinou a porta do
camarote 26 A, ante o olhar sombrio de Vargas, que
resmungou:
— Ninguém entrou aí. Benito. É impossível, sem a
chave.
— Está bem. Mas eu quero entrar. Abra.
Foi necessário ir buscar a chave. Por fim, aberta a porta,
Salazar entrou em primeiro e contemplou o espaçoso
camarote, simpaticamente decorado, com duas vigias
circulares cobertas por pequenas cortinas vermelhas. Havia
dois beliches, um armário duplo, pequenas poltronas,
espelho, tapete... A bagagem estava sobre o tapete, intacta.
Foi naquele momento que Salazar pensou se Vladimir e
José Juan não teriam sido vitimas da mesma pessoa que
matara Armando de Lerma simulando um...
— Há um envelope aqui, capitão — indicou o segundo-
oficial.
Aurélio Vargas apanhou o envelope que estava sobre
uma das maletas, olhou-o estendeu-o a Salazar.
— É para você.
Perplexo, Benito viu no envelope seu nome e
sobrenome, escritos, com maiúsculas. Abriu-o e retirou um
papel, também escrito com maiúsculas, que dizia:
ONDE ESTÁ A MALA GRANDE? SERIA CONVENIENTE
QUE A TRIPULAÇÃO A LOCALIZASSE; APENAS
LOCALIZASSE. O ASSANHADO MAIS SIMPÁTICO
CAPITÃO VARGAS PODERIA DAR AS ORDENS
OPORTUNAS.

Sem assinatura. Mas isso não importava a Benito


naquele momento. Estava olhando atônito o conjunto da
bagagem de que Vladimir e José Juan não precisariam mais.
— A mala grande... — murmurou. — É verdade, falta a
mala...
— Se essa mala foi trazida para bordo, tem que estar no
barco — afirmou Vargas, olhando o bilhete. — Talvez no
depósito de cargas. Quer que a procuremos?
— Sim, sim, claro. Mas quando a encontrarem, não
façam nada, Aurélio. Apenas me avisem.
— Está bem. Mas quem colocou aqui o bilhete?
— Não sei.
— Acredito. Deve ter sido um fantasma, para poder
entrar neste camarote. Bom: como é essa mala? Preciso
saber para descrevê-la á tripulação.
— Já não me lembro bem... Mas os dois homens da PSN
que estão a bordo devem saber. Eles a descreverão, Aurélio.
Vou mandá-los imediatamente à cabina de comando.
— De acordo. Lá estarei. Mas não posso saber o que
significa tudo isto?
— Vou lhe contar um segredo, Aurélio: nem eu mesmo
sei.
***
— Está olhando para você — avisou o capitão Vargas.
— Ah...
— Mas, homem de Deus, isso não lhe interessa?
— Em absoluto — afirmou Salazar. — Não estou aqui
para dar confiança a mulher nenhuma.
— Nem mesmo a essa? Pois devia dar, principalmente
agora que tirou os óculos de sol... Alguma vez viu você uns
olhos assim, de um verde tão... tão maravilhoso?
Benito Salazar olhou novamente para a loura que, desde
que embarcara no “Ondina”, vinha despertando o
entusiasmo de Aurélio Vargas. Sozinha a uma mesa,
deliciosa com seu doce sorriso e maneiras refinadas,
chamava a atenção não só do “assanhado” capitão, mas a de
todos os outros homens presentes, que não se cansavam de
olhá-la, embora dissimuladamente. Mas não assim Aurélio
Vargas, que puxava ostensivamente os formidáveis bigodes
cada vez que seus olhares se cruzavam. Na verdade, se don
Benito não estivesse compartilhando sua mesa, Vargas teria
“cortesmente” distinguido a loura passageira com um
convite para jantar em companhia nada menos que do
comandante da nave, com exclusividade absoluta, honra a
que ela certamente se mostraria sensível.
— Chama-se Maria Luisa Pimentel — informou ele. —
Brasileira. Viva o Brasil!
— Você é um incurável mulherengo — sorriu de má
vontade Salazar.
— Bom... Creio que essa é a menor censura que se
poderia fazer a um homem. Você sabe português?
— Um pouco.
— Ótimo! Servirá-me de intérprete, já que não se
interessa por ela... que é?
A pergunta era dirigida ao segundo-oficial do “Ondina”,
que se inclinou para ele e esteve um momento falando junto
a seu ouvido. Vargas olhou vivamente para Salazar.
— Encontraram a mala, Benito. Uma camareira. Está no
camarote 114, da segunda classe. Um de seus homens a
identificou e agora os dois estão vigiando esse camarote.
— Bem! — exclamou don Benito. — Que passageiros o
ocupam? — Olhava o segundo-oficial ao fazer a pergunta.
— Pedro Soto e Bonifácio Gonzalez, don Benito
— Dizem-lhe alguma coisa esses nomes? — perguntou
Vargas.
— Não. Mas se vir suas caras é possível que sim. São
nomes que podem ser utilizados por quaisquer, suponho.
Vamos... — ouviu um pigarrear a seu lado e voltou-se,
olhando o garçom que dele se aproximara. — Que quer? —
grunhiu.
— Desculpe, cavalheiro... A senhorita da mesa 9 me
pediu que entregasse agora mesmo isto ao senhor.
Estendeu-lhe um papel dobrado, que Salazar pegou
quase de mau humor.
— Obrigado. Não tem resposta.
— Rapaz, como conseguiu isso? — surpreendeu-se
Vargas. — Agora já sei que vai até Honolulu comigo...
Quer dizer, com ela.
— Não diga tolice — resmungou Benito, desdobrando o
papel.
— Ora, não seja idiota. Umas curtas férias até Honolulu
só lhe farão bem. E essa linda brasileira pode alegrar-lhe a
vida... Que é que há agora?
Benito tinha lançado uma exclamação ao ler o breve
conteúdo do bilhete, que passou a Vargas. Este leu:
PARECE QUE ENCONTRARAM A MALA. É VERDADE?
DIGA-ME ONDE ESTÁ.
O comandante do “Ondina” ficou estupefato.
— As letras maiúsculas parecem as mesmas do outro
bilhete... Vamos perguntar à senhorita Pimentel.
— Irei sozinho — disse Benito.
Levantou-se rapidamente e, segundos depois, estava
diante da mesa da loura, que olhava com amabilidade.
— Você...?! — começou Salazar.
— Sente-se, Benito — ela indicou uma cadeira.
Sentou-se, mas não ficou muito claro se foi porque ela o
convidara ou porque o assombro o derrubou.
— Brigitte... Não é possível! — sua voz soou
gaguejante.
— Onde está a mala? — sorriu Maria Luisa Pimentel.
— No camarote 114 da segunda classe, lá embaixo...
Devo estar sonhando!
— Benito: você é um rapaz inteligente, mas tem muito
pouca experiência. Suponho que a culpa é do seu país, onde
nunca acontece nada e onde, em matéria de espionagem,
você, com um olho só, é rei, de acordo com o ditado. Mas
esta precisando de treinamento e vou ajudá-lo,
proporcionando-lhe um mestre. Conhece San Nataniel?
— Sim. claro...
— Pois quando isto terminar, vá até lá e procure um
homem cujo nome lhe direi mais adiante. Esse homem é um
bom espião e lhe ensinará coisas de que você nem faz idéia.
Você lhe dirá que vai da parte de “Baby”. Só isso.
Benito Salazar abriu várias vezes a boca, antes de poder
emitir um som.
— “Baby”? — balbuciou afinal. — Não... Não é
possível...
— Ouviu falar dela? -— sorriu Maria Luisa Pimentel.
— Que o diabo me carregue! Claro! Claro que ouvi falar
dela! É a melhor espiã que o mundo conheceu jamais e...!
— Direi a “Baby” o excelente conceito em que você a
tem — riu Maria Luisa. — Agora, por favor, você, seus
homens, o capitão Vargas e todo o mundo permaneçam
inativos. Quem ocupa o camarote 114 da segunda classe?
— Dois homens: Pedro Soto e Bonifácio Gonzalez...
— Nomes falsos, naturalmente. Se dentro de duas horas
você não tiver noticias minhas, procure esses dois e mate-
os.
Salazar passou a língua pelos lábios.
— Ma... matá-los...?
— Os dois. É simples matar, Benito. Tem um revólver?
— Claro...
— Pois se dentro de duas horas não me tiver
comunicado com você, procure os dois e mate-os. Espere
que entrem em seu camarote, entre em seguida e: pum,
pum... Dois balaços. Um ponto final na vida de cada um.
Depois disso, a bagagem de ambos e todos os seus
pertences serão queimados aqui mesmo no “Ondina”.
Entendido?
— Sim, mas...
— Até logo.
Levantou-se... justamente no momento em que chegava
à mesa o “assanhado” Aurélio Vargas, sorrindo com todo o
seu bigode. Abriu a boca, mas Maria Luisa Pimentel não o
deixou falar.
— Você é muito bacana meu capitão... Adeus — disse
ela, em português...
E se foi, com seu caminhar gracioso.
— Que disse ela? — quis saber o decepcionado Vargas.
— Que você é simpático.
— Ah... Eis uma jovem inteligente. Aonde vai? Parece
estar com pressa.
— E eu também: temos que retirar a vigilância do
camarote 114, Aurélio. E que fique bem claro: devemos
permanecer inativos.
— Por quê?
— Porque assim disse a melhor... Porque assim digo eu.
Alguma objeção?
Vargas comentou com um resmungo o mau humor de
Salazar. Os dois dirigiram-se para a saída da luxuosa sala de
refeições, dando ao segundo-oficial as ordens oportunas
para que o camarote 114 deixasse de ser vigiado.

CAPÍTULO OITAVO
Uma brasileirinha entra no camarote errado
De olhos abertos para o outro mundo
A surpresa de Anatoli

Maria Luisa Pimentel esteve de vigia numa esquina do


corredor da segunda classe, até que o marinheiro e os dois
homens da Polícia de Segurança Nacional de Chiruavia
foram retirados pelo próprio Benito Salazar.
E quando eles se afastaram, caminhou decididamente
pelo corredor, até a porta assinalada com o número 114.
Olhou para ambos os lados, abriu sua maleta vermelha e
sacou um pequeno objeto metálico, chato... Uma espécie de
disco, que aplicou à madeira da porta. O amplificador de
sons não revelou a presença de ninguém dentro do
camarote, de modo que tornou a guardar tão útil aparelho e
sacou uma gazua. Em cinco segundos, a porta ficou aberta.
Em seis, Maria Luisa estava dentro do camarote, com a
porta fechada atrás dela. Acendeu a luz, deixou a maleta ao
lado e lançou uma olhadela fotográfica a todo o ambiente,
no qual se destacava a grande mala.
A primeira coisa que fez foi abrir o armário, para olhar
seu interior. Depois foi olhar o pequeno banheiro. Por pura
rotina, removeu delicadamente as roupas dos estreitos
beliches. Embora para dois passageiros, o camarote era
quase a metade dos de primeira classe. Havia só uma vigia,
coberta por uma pequena cortina marrom.
Finalmente, Maria Luisa abriu a mala. Ao contrário do
que esperava, não lhe custou nenhum trabalho.
Simplesmente, separou suas duas metades, presas uma à
outra por fortes correias. Era uma dessas grandes e cômodas
malas-armário, em que as roupas podem ser transportadas
sem se amarrotar. Havia roupas ali, certamente, mas muito
poucas. Três trajos masculinos completos, algumas camisas,
dois pares de sapatos... Parecia absurdo que para tão pouca
roupa fosse necessário uma mala tão grande. Sobretudo,
tendo-se em conta o fato de que no armário havia mais duas
maletas, cujo conteúdo já havia sido arrumado no mesmo.
A loura Maria Luisa agachou-se e seus finos dedos
passaram pelo fundo da mala, considerando sua posição
vertical. Uns dedos de extraordinária sensibilidade, que
notaram imediatamente a aspereza de um pouco de terra.
Não era poeira, mas terra mesmo.
Sorrindo, ela se levantou e fechou a mala. Examinou
com atenção a etiqueta introduzida na pequena moldura
metálica apropriada, presa á mala. Estava escrita a mão e
em seu ângulo superior esquerdo lia-se, em espanhol “Para
el Sr. Pedro Soto”. Isto sublinhado, de modo que
ressaltasse. Mas, evidentemente, quando o “Ondina”
chegasse a Tóquio, a mala seria enviada ou retirada por
alguém que demonstrasse ter relação com este endereço:
NAOJI SUZUKI
287, Kuramae (Taito)
Tóquio — JAPÃO

Quer dizer: a mala seria enviada ao Senhor Naoji


Suzuki, ou retirada por este; depois, segundo a indicação
sublinhada, Suzuki deveria entregá-la ao senhor Pedro Soto.
Era fácil supor o objetivo de tudo aquilo: Pedro Soto
viajava para Tóquio, onde tinha um amigo chamado Naoji
Suzuki e em cuja casa, possivelmente, iria hospedar-se.
Portanto, e posto que Pedro Soto não devia ter domicilio em
Tóquio, indicava o de seu amigo, o qual, ao receber a mala,
se Pedro Soto não chegasse nunca a Tóquio, devia saber
muito bem o que fazer com ela. Ou seja, Pedro Soto se
assegurava de que, de um ou de outro modo, a mala
chegaria às mãos de Naoji Suzuki. Muito sensato.
Maria Luisa esteve ainda examinando o camarote mais
alguns minutos, mas sem encontrar nada que merecesse seu
especial interesse. Aparentemente, tudo estava muito claro
com relação aos homens chamados Bonifácio González e
Pedro Soto, que se dirigiam ao Japão para visitar um amigo
chamado Naoji Suzuki. Ninguém poderia encontrar nada de
estranho naquilo.
Contraindo as sobrancelhas, dirigiu-se para a porta.
Apanhou sua maleta, lançou uma última olhadela ao redor e
abriu...
Ficou petrificada ao ver os dois homens diante da porta,
no corredor. Dois homens de estatura mediana, muito do
tipo sul-americano, morenos, cabelos pretos, olhos
escuros... Uns olhos que pareciam querer perfurá-la,
fixando-se a. a com dureza.
Maria Luisa Pimentel sorriu docemente.
— Perdão... Creio que me enganei de camarote. A porta
estava aberta, entrei... Mas logo me dei conta do engano. O
meu é o número.
— Entre — disse um dos homens, em espanhol.
— Mas tenho que ir ao meu camarote...
— Entre — repetiu secamente ele.
Pôs-lhe a mão no peito, com rudeza, e empurrou-a para
dentro do camarote. O outro entrou rapidamente atrás deles
e fechou a porta. Depois ambos ficaram a olhá-la, com ar
ameaçador.
— Que estava fazendo aqui?
— Já lhes disse que me enganei. A porta...
— Nós não deixamos a porta aberta.
— Estava sim... Por favor, se estão pensando que sou
uma ladra, eu lhes garanto que se equivocam... Sei que é
hora do jantar e que quase todos os camarotes estão vazios,
mas...
— Continue — sorriu malignamente o homem.
Continue, que isto está ficando divertido.
— Suplico-lhe que não digam nada ao capitão... Foi um
engano, juro... Um simples engano...
— Tire-lhe a maleta — disse o outro.
O primeiro arrancou-a da mão da garota, violentamente,
atirando-a às do outro. Maria Luisa deu um passo para ele,
mas levou um fortíssimo empurrão e caiu sentada no
beliche inferior. O homem que estava com a maleta
colocou-a sobre a mala e abriu-a... A primeira coisa que
dela retirou foi a gazua, que a loura brasileira não tivera
tempo de esconder convenientemente. Depois, o
amplificador de sons... Os dois indivíduos começaram a
sorrir ironicamente, mas seu sorriso se truncou quando
sacaram o objeto seguinte: um maço de cigarros que parecia
normal e comum, mas cujo contato era surpreendentemente
duro aos dedos do que investigava. Com um puxão,
arrancou o envoltório, ficando a descoberto o diminuto
rádio de bolso, que até então ocupara apenas a metade do
maço de cigarros.
Os dois trocaram um olhar de alarma e, durante alguns
segundos, ficaram a olhar fixamente para a loura. Em
seguida, foi retirado da maleta o que parecia um pequeno
tripé para máquina fotográfica. Foi examinado com
indiferença, mas de súbito o homem soltou uma exclamação
c desarticulou rapidamente as três peças metálicas
tubulares, ocas. Sem encontrar dificuldade, enroscou-as
uma na outra, até formar um tubo de cinqüenta centímetros
de comprimento, a uma de cujas extremidades havia um
entalhe no qual, poucos segundos mais tarde, ele encaixava
perfeitamente o pequeno secador de cabelo a pilhas. O leve,
mas eficacíssimo fuzil de alumínio ficou assim
completamente montado.
E isso foi mais que suficiente para que os dois homens
olhassem agora a loura com expressão crispada.
— Quem é você?
— Olhe, senhor...
O homem meteu a mão direita sob a axila esquerda e um
pequeno revólver, com silenciador na ponta do cano,
apareceu diante dos olhos de Maria Luisa... Diante de seus
olhos apenas um segundo, porque depois ficou em contato
com sua garganta.
— Para quem trabalha? E não nos venha mais com
histórias infantis! CIA? MI5? Para quem?
— Para a MVD — disse Maria Luisa em russo, sorrindo.
— Mate-a — ordenou o outro, friamente. — Podemos
atirá-la ao mar pela vigia. É americana, Anatoli.
— Cale a boca, Piotr. Antes de matá-la, temos que lhe
arrancar muitas coisas. Não compreende? A presença desta
mulher aqui significa que algo não vai bem.
— Vocês falam perfeitamente o russo — disse neste
idioma a sorridente brasileira.
— Também você... — resmungou Anatoli. — Mas eu
penso que é americana, como disse Piotr. Diga-nos...
— Acaso notaram, por minha pronúncia que não sou
russa? — perguntou ela, sempre sorrindo.
— Não. Você fala bem, garota. Mas isso não é
suficiente. Também nós falamos muito bem o espanhol e,
como vê, somos russos.
— Da MVD, claro.
— Claro — admitiu Anatoli. — Você é da CIA?
— Já lhes disse que também sou da MVD...
Anatoli enfureceu-se, sobretudo porque tinha a
impressão de que aquela jovem estava zombando deles.
Avançou a mão esquerda, agarrou os louros cabelos e deu
um fortíssimo puxão, para estender Maria Luisa na cama e...
E mais nada, pois os louros cabelos ficaram em sua mão,
deixando a descoberto uma cabeleira negríssima, até então
oculta sob a peruca.
Durante um segundo, os dois homens ficaram tão
surpreendidos ante o inesperado sucesso, que a seguir tudo
lhes saiu mal.
Estava ainda Anatoli com a boca aberta pela
estupefação, quando recebeu um tremendo golpe horizontal,
em plena garganta, desferido pela mão direita da
despenteada brasileira. Um golpe que mais pareceu uma
vigorosa machadada e que o derrubou de costas,
espetacularmente, sem sentidos, lívido como um morto.
Piotr lançou uma exclamação de espanto e levou
rapidamente a mão à axila esquerda, enquanto a falsa Maria
Luisa Pimentel saltava sobre ele, compreendendo que não
teria tempo para apanhar o revólver que escapara da mão de
Anatoli.
Foi um encontrão fortíssimo, que derrubou a ambos.
Piotr abandonou de imediato a idéia de recorrer a seu
revólver ao encontrar-se agarrado pela “delicada jovem”.
Rodeou-lhe a delgada cintura com ambos os braços e,
entrelaçando as mãos, dispôs-se a apertar empregando toda
sua força, com o que a espinha da loura se partiria
inevitavelmente.
Mas antes que isso pudesse acontecer, um dos joelhos de
sua linda antagonista subiu rápido, alcançando parte muito
vital da anatomia do espião russo, que soltou um berro,
largou-a e retrocedeu dois passos, todo encolhido, boca
aberta à procura de ar, que precisava com urgência. Teve
dificuldade para encontrá-lo, principalmente porque recebeu
um perfeito “rabo de arraia”, que o alcançou em plena boca.
Pelo visto, a deliciosa loura estava desempenhando às
maravilhas seu papel de cidadã brasileira.
Pelo menos, revelava-se consumada na perigosa arte da
capoeira. Tão consumada, que Piotr foi lançado para trás
como se quisesse dar um salto mortal ao inverso, deixando
no ar um circulo vermelho formado pelo sangue que
escorria de seus lábios.
Finalmente caiu de bruços, após descrever só meia
cambalhota. Apoiou as mãos no chão, sacudiu a cabeça e
ergueu o olhar para onde calculava que a perigosa jovem
estivesse... Não estava. Mas viu-a inclinando-se sobre o
revólver de Anatoli e isso lhe deu forças para um salto
grotesco, que o deixou sentado, enquanto sua mão pareceu
voar para a axila esquerda. Sacou sua arma, apontou-a...
Plop.
A última, fugaz imagem que passou pelas retinas de
Piotr, antes que a bala se cravasse entre suas sobrancelhas,
foi a de uma bela jovem de alvoroçados cabelos negros,
agachada a três metros dele, mostrando umas admiráveis
pernas douradas, um brilho frio nas pupilas verdes e uma
pequena chama vermelha na mão direita... Com essa
imagem, Piotr foi para o Além.
Maria Luisa levantou-se lentamente, olhos fixos no
cadáver do russo, que ficara sentado, olhos arregalados,
como se agora estivesse vendo o que se passava no outro
mundo.
Dirigiu um olhar a Anatoli, sorriu ironicamente e
apanhou sua peruca, depois de deixar o revólver sobre a
mala. Entrou no pequeno banheiro e colocou-se diante do
espelho. Tornou a colocar a peruca loura.
Depois olhou seu rosto no espelho e franziu a testa.
Decididamente não lhe agradavam aqueles olhos verdes.
Enfim...
Saiu do banheiro... apenas meio passo. Retrocedeu
precipitadamente, quase caindo de costas. Foi o único modo
de esquivar a bala disparada por Anatoli, que se cravou com
seco estalido na parede forrada de madeira.
— Saia — ouviu a voz do russo, tensa. — Estou com os
dois revólveres.
Maria Luisa Pimentel, novamente loura, sorriu
crispadamente; certo, Anatoli não só tinha demonstrado
possuir uma grande vitalidade ao recuperar-se tão depressa,
como tinha também consigo os dois revólveres.
— Está bem, Anatoli... Vou sair.
— Com as mãos levantadas.
— De acordo.
Anatoli a viu sair, cinco segundos mais tarde, com as
mãos realmente sobre a cabeça. Parapeitado atrás da grande
mala, o russo a olhou vigilante um momento, depois indicou
o beliche com o revólver.
— Sente-se.
— Não preciso de comodidade para morrer.
— Não vai morrer... ainda.
— Agradeço-lhe. Alguém viaja nessa mala, não é?
— Você é muito esperta. Sim, alguém viaja nela, quando
necessário. Agora está passeando pelo barco, mas voltará
em menos de uma hora. E é possível que ele a conheça. Em
cujo caso, não precisarei ter o trabalho de obrigá-la a falar.
— Estimo que você seja dos que se poupam incômodos,
Anatoli, sinceramente — sentou-se na borda do beliche. —
Deixe-me ver se adivinho... Este homem que viaja na mala
passeia pelo barco durante o dia. A noite, vem para cá e
dorme num dos beliches, ou no chão sobre um cobertor. Se
acontece alguma coisa que os alarme, ele se mete na mala.
E isso é tudo... Ou não?
— Sim. É tudo.
— E esse homem não vai demorar a vir.
— De qualquer modo, não virá antes das dez, pelo que
teremos que esperar.
— Bem... Posso fumar um cigarro?
— Não.
— Nem baixar as mãos?
— Tampouco.
— Puxa! Você está tornando minha vida difícil, colega.
Plop.
Anatoli recebeu a primeira balinha no peito e isso lhe
causou tanto assombro, que ele já não pode reagir. Pelo
menos com tempo suficiente para defender sua vida. Diante
dele, a falsa loura brasileira separou a mão direita da
cabeça, deixando ver a diminuta pistolinha que mantivera
escondida entre os dedos e a peruca... A surpresa de Anatoli
terminou quando a segunda bala lhe deu em cheio na testa,
derrubando-o de costas, já cadáver.
Coisas da espionagem.
Maria Luisa retirou alguns fios de cabelo louro de entre
seus dedos. Depois, levantou a saia, mostrando as deliciosas
coxas; na esquerda, via-se uma tira de esparadrapo cor de
carne, presa só por uma ponta. Colocou a pistolinha de
coronha de madrepérola sob a tira e fez a outra extremidade
aderir à sedosa pele, depois do que baixou a saia.
Pena, porque contemplar aquelas fabulosas pernas era
sensacional...
CAPÍTULO NONO
O homem que viajava na mala
Maria Luisa Pimentel lança seus verdes...
Mais um minuto de silêncio

Pouco depois das dez e meia da noite, um homem se


detinha diante da porta do camarote 114 e, após olhar para
ambos os lados do corredor, batia de leve: uma, três, duas
pancadas... Depois ele tornou a olhar para ambos os lados
do corredor. Era de estatura mediana, ombros estreitos e
ossudos, cabelos muito curtos, rosto completamente
escanhoado e um tanto pálido. Usava óculos escuros.
A porta se abriu e o homem ergueu instintivamente o
olhar para o número, surpreendido...
— Não, não está enganado, general — sorriu a loura. —
Entre.
— Mas...
— Está tudo bem. Faça o favor de entrar.
O homem entrou, um tanto ressabiado, olhando para
todos os lados. Viu em seguida a mala e isso pareceu
tranqüilizá-lo. Enquanto isto, a loura tinha fechado a porta e
agora, apoiada a ela, olhava-o com um desconcertante
sorriso cheio de curiosidade.
— Onde estão Pedro e Bonifácio? — perguntou o
homem.
— Refere-se a Piotr e Anatoli? Tiveram que mudar de
camarote. Medidas de segurança. Mas não se preocupe:
tudo terminará bem. Esta situação é momentânea.
— Quem é você?
— Pode chamar-me Galina Markova, se quiser.
— É russa?
— Claro que sou, general! Pensava que eu fosse uma
agente americana, por acaso?
— Não, não...
— Tranqüilize-se. Isso seria pouco provável — riu a
loura. — O senhor sabe que tudo foi cuidadosamente
planejado. Não pode falhar.
— Sim, com efeito...
— Sente-se. Parece que não confia em mim, general.
— É que não a conheço. Apenas isto.
— Mas eu o conheço, embora esteja com o cabelo muito
curto, óculos escuros e tenha raspado a barba. Receio que
tenhamos que passar a noite juntos neste camarote... Mas
devemos limitar-nos a conversar, nesse caso. Espero que o
senhor não pretenda outra coisa.
— Não estou aqui para tolices, senhorita.
— Melhor. Um cigarro?
— Não. E quero ver Pedro e Bonifácio.
— Já lhe disse que esta noite o senhor está sob minha
proteção pessoal — a loura acendeu um cigarro, sorridente.
— Anatoli e Piotr estão... ocupados. Seja sensato e aceite
minha companhia. Para que não continue desconfiando de
mim, poderei passar a noite explicando-lhe o que sei deste
assunto. Assim ficará convencido de que estou de seu lado.
Que receia?
— Não receio nada — replicou desabridamente o
homem. — Tomou parte nisto?
— Modestamente, eis a verdade. Mas por vontade
própria, entenda-se, já que preferi me manter à margem. As
vezes é desagradável que os outros façam o trabalho
rotineiro, elementar: investigação, preparo do terreno,
obtenção de informes... Coisas assim. No caso presente,
estive um tanto... preguiçosa, confesso. Mas não penso
perder o final, está claro.
O homem sentou-se numa das cadeiras e ficou olhando
hesitante a formosa jovem que se dizia chamar Galina
Markova.
— Prove-me que está envolvida nisto.
— Como queira. Vejamos... Por onde devo começar?
Por sua falsa morte, por exemplo, general Armando de
Lerma?
— Pode começar por aí.
— Bem... A verdade é que não conheço todos os
detalhes. Sei apenas que o senhor, para todo o mundo, tinha
que morrer. E sem dúvida seu funeral foi deveras
emocionante. Eu estive lá. Emocionante mesmo. Não
imagina como lhe queriam bem os seus compatriotas! Diga-
me uma coisa: como foi organizada sua morte? Eu não pude
atender a essa parte do affaire. Como se passaram as coisas.
Oh, aposto que de forma interessantíssima!
O general Armando de Lerma sorriu secamente.
— Deveria saber como tudo aconteceu. Convenci José
Juan que devia aceitar tudo aquilo, já que era em benefício
da pátria. Vladimir tinha preparado cuidadosamente o
plano...
— Ah, sim, Vladimir... Suponho que o tenha liquidado,
de acordo com as instruções que naturalmente lhe foram
dadas.
— Sim, com efeito... Vejo que está bem ao corrente.
— Apenas de um modo... global. Ignoro alguns dos
detalhes. Muito bem: Vladimir, o meu pobre companheiro
da MVD, planejou tudo... Continue, por favor.
— De acordo com seu plano, José Juan procurou por
todo o país, até encontrar, um homem que possuía minhas
características físicas. Deu-lhe dinheiro, garantindo-lhe que
ia ter um trabalho muito importante. Convenceu-o, em
suma. E durante três semanas, o homem esteve deixando
crescer a barba. Na noite anterior à de minha morte, José
Juan o trouxe e o conservamos escondido em minha casa. E
na noite seguinte o pobre-diabo saiu com um uniforme meu.
Vladimir preparou bem o carro, para que se incendiasse.
Depois adormeceu o infeliz com clorofórmio e lançou o
carro inundado de gasolina contra uma árvore... E assim
morreu, para todos, o general Armando de Lerma, que ficou
completamente irreconhecível.
— Mas, felizmente para o senhor, o cadáver que repousa
no Panteão não é o seu, general.
— Felizmente, claro — sorriu Armando de Lerma.
— Ah, foi uma jogada de grande astúcia! Depois o
senhor permaneceu escondido em casa, até que tudo ficou
preparado para a viagem que José Juan e Vladimir deviam
empreender no “Ondina”. Tudo estava bem estabelecido,
inclusive as datas, naturalmente. Deste modo, Vladimir e
José Juan obtiveram suas passagens e providencia-. ram
para que, a determinada hora, fossem buscar sua bagagem a
fim de trazê-la para bordo. Mas antes que tal acontecesse, o
senhor matou os dois e enterrou-os em seu próprio jardim,
de modo que jamais poderão ser encontrados...
— É pouco provável, de fato — admitiu Armando de
Lerma.
— Sim... É pouco provável, certamente, pobres
rapazes... Refiro-me a Vladimir e José Juan, claro. E ao
infeliz chiruaviano que teve a pouca sorte de parecer-se com
o senhor. Oh, e ao cubano também... José Juan lhe disse seu
nome?
— Não. Viu-o quando fechava o portão e foi atrás dele...
Era verdade que o cubano tinha visto Vladimir e José Juan
preparando o acidente. Mas José Juan o degolou.
— É certo... Muito certo. Chamava-se Diosdado
Curruca. Mas sua morte não lhe deve importar, suponho. De
qualquer modo, deve ter afetado José Juan, não é verdade?
— Ele não poderia fazer outra coisa.
— Sem dúvida — sorriu de modo estranho a bonita
loura. — José Juan estava há quinze anos com o senhor,
admirava-o e estimava-o profundamente, respeitava-o
acima de tudo e fez o que lhe mandou... E, como
recompensa por sua dedicação, o senhor lhe deu a morte...
— Vai me censurar por isso? — replicou acre-mente De
Lerma. — Não fiz mais que cumprir as ordens de vocês,
afinal de contas!
— Sim, sim... Essas eram nossas ordens. Não convinha
que ninguém ficasse vivo para cometer qualquer
indiscrição. De modo que, uma vez morto o general de
Lerma, convinha eliminar as pessoas que talvez pudessem
ser interrogadas ou vigiadas mais tarde. Ou seja, José Juan e
Vladimir. E Diosdado Curruca, naturalmente. Depois o
senhor foi trazido dentro desta mala, que se supunha cheia
de livros, para o “Ondina”. Uma vez a bordo, no
compartimento destinado à carga, saiu da mala e trocou a
etiqueta desta pela que vemos agora. Pouco depois, Piotr,
viajando sob o nome de Pedro Soto, reclamou a mala,
fazendo com que a trouxessem a este camarote, já que na
etiqueta, além do nome do japonês, estava escrito: “Para o
Sr. Pedro Soto”. E uma vez a mala aqui, tudo foi fácil. Por
fim, ao chegar a Tóquio, Piotr e Anatoli levariam a mala ou,
se surgisse algum contratempo, seria ela enviada a Naoji
Suzuki, no número 28 de Kuramae Avenue, em Taito Ward.
E esse Naoji Suzuki, que certamente trabalha para nós, ou
seja para a MVD, se encarregaria do senhor. Exato?
— Exato. Vocês prepararam bem as coisas.
— Claro que sim. Inclusive previmos a possibilidade de
que algo nos ocorra, em cujo caso o senhor chegaria
inevitavelmente até nosso associado Naoji Suzuki, dentro
da mala. As vezes, eu mesma fico maravilhada com a
perfeição de nosso trabalho na MVD. Mas há um detalhe
que não me foi revelado ainda, general: por que simular sua
morte?
— Por causa do microfilme, naturalmente.
— Ah, sim, sim... Mas convenha comigo em que nos
poderia haver entregado esse microfilme com todos os
projetos americanos para bases aeronavais em Chiruavia
sem necessidade de ter que morrer. Bastava que tivesse
fotografado o relatório... Ou não?
— Essa parte do plano não me satisfazia.
— Por quê?
— Vocês me pagaram um milhão de dólares pelo
trabalho, mas eu não poderia gastar esse dinheiro, nem
desfrutá-lo de nenhum modo, sem chamar a atenção de
meus compatriotas, de meus amigos. Então, eu...
— Por favor, não diga mais! — riu a belíssima loura. —
Deixe-me adivinhar o resto! Vamos ver: o senhor “morre”,
abandona sua pátria com um milhão de dólares no bolso,
muda de nome e dedica-se a viver alegremente o resto de
seus dias, como um milionário. E ao mesmo tempo, já que o
relatório que revela a estratégia norte-americana no Pacifico
para os próximos dez ou vinte anos estava bem guardado
em seu cofre, ninguém suspeita de que o senhor tenha
vendido esse segredo aos russos.
— Evidentemente, se os americanos tivessem a mais
leve suspeita de que seus projetos são conhecidos,
mudariam toda sua estratégia para os próximos anos.
— Evidentemente. Mas eles não sabem, o senhor tem
um milhão de dólares e nós todas as informações sobre
essas bases aeronavais... Magnífico!
— E o mais magnífico de tudo — sorriu de Lerma — é o
fato da minha morte.
— De sua morte?
— Claro. Fui enterrado em meu país com todas as
honras, compreende? Para a História de Chiruavia,
Armando de Lerma foi um personagem cujo nome se
escreverá com letras de ouro e que será sempre respeitado,
citado como exemplo, admirado... Nunca saberão que...
que...
— Que o senhor foi um traidor? — sorriu Maria Luisa
Pimentel.
— Bom... A palavra é feia, mas... expressiva. Sim:
jamais saberão que Armando de Lerma traiu sua pátria. Para
todos os efeitos, meu nome passará à história de Chiruavia
como o de seu admirado e estimado general. É um consolo,
já que a partir de agora terei que chamar-me de outro modo.
— Sim. É de esperar que em Tóquio o aguarde sua nova
documentação. E a respeito do microfilme, general?
Armando de Lerma olhou-a vivamente.
— Eu já disse a vocês... a Pedro e Bonifácio, pelo
menos, que não o entregarei antes de encontrar-me em lugar
seguro, com meu dinheiro e meu passaporte, tudo em
perfeitas condições.
— Ah, sim... Mas seria conveniente que o entregasse a
nós, pois se lhe acontecer algum contratempo...
— Se me acontecer algum contratempo, senhorita
Markova — disse De Lerma, veemente — vocês não terão
jamais esse microfilme.
— Realmente? Como devo entender isso? Acaso não
tem o microfilme consigo?
— Pensa que sou algum tolo?
— Não. Decerto que não. O senhor demonstrou ser um
traidor espertíssimo, que ludibriou sua pátria, zombou de
seus compatriotas, mas não é um tolo. Não, nada tem de
tolo, general, admito. Deduzo, portanto, que não tem o
microfilme consigo. Mas então... onde está?
— Em lugar seguro. Quando lá chegarmos, com minha
documentação e meu dinheiro, entregarei o microfilme ao
seu colega que me acompanhar.
— Compreendo. E qual é esse lugar seguro?
— Certa agência de correios de certa cidade. Já lhe disse
que pensei minuciosamente e preparei tudo.
— Sem dúvida. Mas se lhe acontecer alguma coisa, que
será do microfilme?
— Ora, estará se enchendo de pó, dentro de um
envelope, numa caixa postal de certo lugar.
— Oh... Nesse caso, podem passar-se vinte anos antes
que... Mas não. Terminará o contrato de aluguel da caixa
postal, ela será aberta, verão o envelope e...
— Teria que ser dentro de dez anos, que é quando
terminará o período de aluguel que paguei. E depois,
quando encontrassem o envelope, este seria depositado na
agência, onde talvez permanecesse outros dez anos. Já vê
que soube me garantir bem.
— De fato, o senhor é muito vivo, general. De modo
como fez as coisas, se sofresse algum percalço, nós, os
russos, não teríamos jamais esse microfilme. Ou, se um dia
o conseguíssemos, já se teria passado tanto tempo que não
nos serviria de nada.
— Exatamente.
— O senhor foi genial. Dá-me licença?
Maria Luisa Pimentel levantou-se, sacou de sua maleta
um pequeno bloco de notas e uma esferográfica e, com letra
que certamente não era a sua, mas de qualquer modo
elegantíssima, escreveu alguma coisa. Depois arrancou a
folha e olhou sorridente para Armando de Lerma, que a
observava intrigado.
— Que foi que escreveu?
— Uma mensagem. Estou certa de que chegará a seu
destino. Quer lê-la, general?
Estendeu-lhe a pequena folha e de Lerma apressou-se a
ler o seguinte:

A MVD, POR INTERMÉDIO DO SENHOR


NAOJI SUZUKI:
Muito receio que não entre em meus projetos
facilitar-lhes o microfilme que estão
esperando. Mas facilito-lhes o cadáver do
traidor Armando de Lerma. Por favor,
guardem um minuto de silêncio, que o
general apreciará muito.
Ass: “Baby”
Armando de Lerma ergueu a cabeça, mostrando um
rosto de palidez cadavérica. Abriu a boca para dizer alguma
coisa, mas ficou mudo de medo ao avistar a pequena pistola
na mão da loura brasileirinha.
— Não pode se queixar, general — disse ela, friamente:
— Vai fazer jus a mais um minuto de silêncio.
Plop. Plop.
Armando de Lerma ficou com os olhos abertos, fixos em
sua própria morte, que durante uma fração de segundo viu
retratada no belo rosto da jovem de cabelos louros.
Dois minutos mais tarde, estava metido na mala. E em
sua roupa, com um alfinete, Maria Luisa Pimentel prendeu a
mensagem, bem visível: Naoji Suzuki teria que ser cego
para não a enxergar tão Logo abrisse a mala, que
inevitavelmente chegaria a seu poder.
Por fim, ela fechou a mala e deu-lhe uma palmadinha,
sorrindo graciosamente.
— Boa viagem, traidor.
***
Benito Salazar saltou de sua cadeira quando ela
apareceis na sala do capitão do “Ondina”, que saltou
também ele, com expressão de assombro.
— Como entrou aqui? — perguntou.
— Servindo-me de uma gazua — disse ela, mostrando-a;
olhou para Salazar. — Vamos, Benito.
— Um momento! — exclamou Aurélio Vargas. —
Ninguém vai abandonar este barco sem meu consentimento,
sem me dizer o que está acontecendo!
— Já não está acontecendo nada, capitão. Tudo
terminou. No banheiro do camarote 114 encontrará dois
cadáveres. Atire-os ao mar... Discretamente, claro. Depois
verá ali a famosa mala. Peço-lhe que se encarregue
pessoalmente de remetê-la a seu destino, em Tóquio. Não
devemos lograr o senhor Naoji Suzuki, que a está esperando
ansiosamente.
Vargas rodeou a mesa o mais depressa que pode, para
plantar-se diante de Brigitte.
— Mas... isso que está dizendo é impossível... Dois
cadáveres em meu barco! Benito, essa mocinha deve estar
maluca, para vir à nossa presença com semelhantes
mentiras...
— Não creio que sejam mentiras, Aurélio... —
murmurou Salazar. — Acredite no que ela diz e trate de se
conservar calmo.
— Calmo? Você também está maluco! Acha que devo
me conservar calmo quando ela vem me dizer que tenho
dois cadáveres a bordo? De que morreram?
— De pena... ao receber uma bala na cabeça — sorriu a
loura lindíssima. — Seja camarada, capitão, e faça o que lhe
pedi.
— Também eu peço, amigo Aurélio — reforçou Benito.
— E não esqueça quem sou, além de seu amigo pessoal.
Agora, por favor, dê as ordens para que arriem minha
lancha... Ou não regressamos a Ciudad. Chiruavia,
senhorita... Pimentel?
— Oh, sim, sim... Tenho lá uma porção de vestidos
novos que quero exibir em no... no Rio de Janeiro, claro.
Adeus, capitão... Não vai dar a ordem para que seja arriada
a lancha? Puxou-lhe uma das pontas do formidável bigode e
Aurélio Vargas, absolutamente encantado com isto, ergueu
os olhos para o céu, com uma cara de êxtase.
— Senhorita Pimentel! — suspirou — para servi-la,
mando arriar até a Lua, se tal for seu desejo.
— Você é mesmo um capitão bacana — riu Maria Luisa
Pimentel. — Mas no momento contento-me com a lancha.

UMA MULHER COMO AS OUTRAS...

A despedida foi uma espécie de hecatombe familiar.


Ninguém queria que a miss partisse e, menos que ninguém,
o desconsoladíssimo Felipito, o qual não cessava de soluçar
com esperneante sentimento que “Felipito queria ir
também”.
— Poderíamos chamar um táxi... — sugeriu Agueda
Martos.
— Vovó, don Benito está ai fora, esperando com seu
carro, onde já estão as maletas.
— Ah, sim...
— Sua avó é muito desmemoriada, Tomasito — sorriu
Brigitte. — E isso não é bom. Bem, Agueda até a vista.
Agueda beijou-a sonoramente, em ambas as faces,
molhando-as com grossas lágrimas.
— Volte um dia, Brigitte, ainda que só de visita.
— Voltarei — sorriu “Baby”, olhando as crianças e
agitando a mão para o desolado Felipito. — Voltarei,
Agueda. Prometo.
Girou nos calcanhares e saiu do pátio a toda a pressa.
Tinha querido despedir-se ali, não ver as mãozinhas que se
agitavam num último adeus. Quando saiu à rua, Benito
Salazar a esperava junto a seu carro, já carregado com tudo
quanto ela comprara em Chiruavia. O chefe da Policia de
Segurança Nacional apressou-se a abrir a porta, depois se
instalou ao volante e disse:
— Você vai perder o avião
— Miss!
Tomasito apareceu correndo na rua e deteve-se ofegante
à porta do carro, estendendo a Brigitte o menor barco que
esta já tinha visto em sua vida.
— Eu... fiz este bem pequeno... para lhe dar...
— Mas deve ter custado muitos dias de trabalho,
querido!
O garoto encolheu os ombros e ela assentiu com a
cabeça.
— Até breve, Tomasito. E muito obrigada... Vamos,
Benito.
Quando o carro arrancava, a família de Agueda Martos
aparecia ruidosamente na rua, com Felipito em último lugar,
mostrando sua masculinidade, berrando a plenos pulmões...
— Bom — Suspirou Benito, quando já os tinham
deixado para trás — não há dúvida de que você sabe se
fazer querida, Brigitte.
— É uma faceta de meu caráter — sorriu ela.
— Você pode ser uma boa espiã — riu Salazar — mas
como pessoa não difere de nenhuma outra: nota-se que está
emocionada. E pergunto-me se é por causa de Felipito, ou
por...
— Lembra-se do nome que lhe dei, do homem de San
Nataniel que poderá ensinar-lhe algumas coisas. Benito?
— Claro. Você me fez compreender que não sou um
chefe de Segurança Nacional tão bom como todos, inclusive
eu mesmo, acreditávamos. A partir de agora, meus
projetos...
Quando chegaram ao aeroporto, ele se encarregou de
que a abundante bagagem de Brigitte fosse levada para o
avião e, finalmente, veio encontrá-la no vestíbulo, onde ela
estava comprando algumas revistas.
— Tudo pronto. Acompanho-a ao avião.
— Vamos... Ah, Benito, queria pedir-lhe um favor.
— Só um?
— Será suficiente. Entregue este cheque a Agueda e
diga-lhe que chame seus filhos que estão trabalhando no
norte. Quando eu voltar a Chiruavia, quero ver um
estupendo pesqueiro. O cheque é contra um banco de Nova
Iorque, em dólares. Haverá dificuldades?
— Nenhuma. A menos que a importância... — Benito
olhou-a e lançou uma exclamação de incredulidade. — Mas
é um cheque de cinqüenta mil dólares!
— Um pequeno obséquio da CIA — sorriu “Baby”.
— Da CIA? Ora, vamos... O cheque está assinado por
você, contra sua conta pessoal e.
— Vai fazer com que eu perca o avião.
— Oxalá... — murmurou Benito Salazar. — Oxalá o
perdesse e não saísse mais até... até daqui a cinqüenta anos!
— Adeus Benito.
Mas “Baby” não perdeu o avião. Em Washington
estavam à sua espera, certamente para enviá-la de imediato
a cumprir outra perigosa missão... Sim, certamente.
Portanto, perder aviões era um luxo que nunca se poderia
permitir a melhor espiã de todos os tempos.

A seguir: ESTRANHO FUNERAL

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