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06/05/2020 https://museu.rtp.pt/livro/50Anos/Prefacio/default.

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Quando tudo começou


Como em tudo na vida, também a data verdadeira de início da televisão em Portugal é objecto de
discussão. Para uns, foi em Setembro de 1956, quando, num perímetro reduzido à volta da Feira
Popular, começaram as emissões experimentais em Lisboa. Ou em Dezembro do mesmo ano, com
o segundo ciclo de experiências alargadas à cidade e arredores. Para outros, terá sido a 7 Março
de 1957, data oficial das primeiras emissões “a valer”, com as grandes áreas de Lisboa e Porto já
abrangidas. Mas ainda há a data legal, a da aprovação do decreto-lei que cria a RTP, em 1955.
Assim como a de uma experiência feita no Porto, em 1956, por empresa comercial. Ou,
finalmente, a data de chegada das imagens à minha terra, esta sim, efeméride real para tantos
portugueses. É a data que eu prefiro. Foi em 1958.

Apenas a cem quilómetros do Porto, Vila Real não ficava só para lá do Marão, ficava no fim do
mundo. Para se ir de comboio até à “capital do Norte”, tinha de se passar primeiro pela Régua.
Eram 25 quilómetros de via reduzida. As carruagens, muito estreitas, eram iguais às que víamos
nos filmes do “Far West”. Por isso o comboio tinha a doce alcunha de “Texas”. Este demorava, ao
longo de curvas apertadas do vale do Corgo, mais de uma hora para percorrer aquele curto
trajecto. Depois, até ao Porto, eram duas a três horas de esperas e apeadeiros. Em alternativa, o
carro ou a “carreira” tinham de percorrer as famosas “voltinhas do Marão”. Duas a três horas de
enjoo, curvas e perigos. Não se ia ao Porto. Ninguém se deslocava ao Porto. Ia-se de viagem, o
que era diferente. Levava-se mala, cesta e farnel. E garrafão. Mas, para a maior parte, essas
viagens eram raras. Ora, havia outras necessidades, outras urgências. Assim, quando se precisava
de alguma coisa da cidade, do Porto, documento oficial, renda ou medicamento difícil, era
necessário recorrer ao “recoveiro”, um senhor que ia todos os dias de madrugada e regressava à
noite com as encomendas que íamos, ansiosos, buscar à estação de caminho-de-ferro. Trás-os-
Montes não ficava ali. Ficava longe.

Três jornais locais, verdadeiras folhas de couve, faziam a crónica do lugar. “A Voz de Trás-os-
Montes” (“A Voz de Trás”) pertencia à diocese, era impressa nas tipografias do seminário e sempre
foi dirigido por um sacerdote. O “Vila-realense” era republicano, feito, do princípio ao fim, pelo
senhor Heitor Matos, com a ajuda de um extraordinário amador, o José Rocha, e um cronista do
outro mundo, o “Naralhas”, especialista em necrologia. O “Ordem Nova” era, obviamente, da
União Nacional, estava em todo o sítio e ninguém o lia.

As notícias importantes vinham do Porto. Quatro diários disputavam o mercado: o “Primeiro de


Janeiro”, o “Comércio do Porto”, o “Jornal de Notícias” e o “Diário do Norte”. Custavam oito
tostões, preço igual ao do café. Não parece, mas eram caros. A maior parte das pessoas que
sabiam ler iam fazê-lo nos cafés ou nas associações. Os diários do Porto chegavam todos os dias,
mas sem horas fixas: por vezes de manhã cedo, geralmente mais perto do meio-dia. Os jornais de
Lisboa eram raros. Só chegavam ao fim da tarde ou no dia seguinte. Quase ninguém os tinha ou
lia. Os meus amigos e eu íamos ler ao “Clube de Vila Real”, a associação da burguesia liberal da
cidade e dos notáveis vagamente republicanos, simpatizantes dos Rotários. Ali nos deleitávamos
com o “Diário de Notícias” e “O Século” dos dias anteriores. Tínhamos 16 anos, líamos tudo e
achávamos que Lisboa era o princípio do mundo. Os anúncios dos cinemas eram objecto de leitura
atenta e inveja intensa. O exercício tinha o seu quê de masoquista: a maior parte dos filmes que
acabavam de estrear em Lisboa (às vezes, no Porto) demoraria longos meses ou anos antes de
chegar a Vila Real. Se chegassem.

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