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ANTONIO DIMAS

c
Para Joaquim Alves de Aguiar, o Juca.
ada um no seu canto, olhan-
do-se de canto. A desconfi-
ança era recíproca. Sempre
se viram a distância, mes-

Barco de proa dupla mo quando perto um do


outro, o que muito pouco
aconteceu. Seguravam sua admiração recí-
proca, mas, no fundo, sabiam-se embarca-
dos em projeto comum, ainda que em tom-
badilhos diferentes. Em momentos diferen-
tes e dessincronizados, ora aventuravam-
se pelo mar largo de praias distantes, ora
recolhiam-se à cata das pérolas em praias
mais próximas. Se o paulista acusava o
pernambucano de falta de método, que se
Este ensaio deverá fazer parte da
edição de Casa Grande & Senza- convertesse este pecado em virtude, que
la organizada por Edson Nery da
Fonseca, Enrique Larreta e atiça a imaginação. Se o pernambucano não
Guillermo Giucci para a Coleção
Archives de Paris. perdoava no paulista seu artificialismo e
sua pose, que disso se fizesse incentivo à
especulação intelectual. Em vidas parale-
las que ora se aproximavam, ora se afasta-
vam, ora ainda invertiam o curso de modo
simétrico, mas ainda lado a lado, esses dois
intelectuais criaram e lideraram núcleos de
reflexão, cujos efeitos ainda se desdobram
até hoje, tantos anos depois. A favor ou
contra, ainda se desdobram.
Embora se mirassem a distância e mal
se digerissem em termos pessoais, um não
negava ao outro, em meio a alfinetadas
ANTONIO DIMAS mútuas, o reconhecimento de uma tarefa
é professor do
Departamento de ambiciosa, mesmo que através de aborda-
Literatura Brasileira da gens distintas: a de avaliar a cultura do país
FFLCH-USP.
em que ambos viveram a todo vapor, na
primeira metade do século XX.
Mário e Gilberto palmilharam sempre
o mesmo chão, por caminhos diversos e
com bússolas diferentes, no entanto. Atra-
vés dos dois, o Brasil, seu objeto comum,
ora foi contemplado em dimensão regional
e fragmentada, ora foi apreciado e projeta-

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do numa escala cosmopolita e unitária.
Visões tensas e adversas entre si, é claro, Gilberto Freyre
mas complementares e nunca excludentes
ou irreconciliáveis. Como complementar
parece ter sido a formação e a personalida-
de intelectual dos dois, o que ainda requer
reflexão mais demorada e extensa. Seden-
tário, um; itinerante, o outro. A origem e a
formação católica de um opunham-se às
raízes protestantes do outro. O pendor para
a música, setor em que o paulista se pro-
fissionalizou, foi contrabalançado pela in-
clinação ao desenho em que o pernam-
bucano nunca foi além do amadorismo. Cro-
nistas de jornal os dois, fizeram da crônica
extenso laboratório de ensaio intelectual,
ao mesmo tempo em que disseminavam,
com generosidade e de modo atraente, a
informação variada, levemente crítica e
com traço documental, resultante de suas
viagens de formação. Delas manaram li-
vros com títulos parecidos: um chamou-o
de O Turista Aprendiz; o outro, de Tempo
de Aprendiz. No início da carreira, Mário
pautou-se pelas referências francesas e pra-
ticou a poesia da fraternidade unanimista,
escorado em Verhaeren e Jules Romain;
Gilberto preferiu os norte-americanos e os
ingleses, encantando-se com as experiên-
cias do Imagismo, propostas por Amy
Lowell e Ezra Pound. Aquele embrenhou-
se pelo país, meio a contragosto, para me-
lhor compreendê-lo e ensiná-lo; Gilberto
viajava, com alegria, por Oropa, França e
Bahia, sempre de olho no Brasil, que lhe
mereceu aulas inesquecíveis. Este defen-
deu o regionalismo, de forma intransigen-
te; aquele rejeitou-o, de forma também in-
transigente. Mário preferia a discrição do
gabinete, a vida particular protegida e o Mário de Andrade
contacto epistolar; Gilberto apreciava a

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sociabilidade extensa, encantava-se com o Em 11 de dezembro de 1928, encon-
reconhecimento público e tendia para o traram-se Mário de Andrade e Gilberto
contacto ao vivo. Mário zelava pelas car- Freyre no Recife, sob as vistas de Manuel
tas, organizando-as, classificando-as, arqui- Bandeira.
vando-as e delas fazendo instrumento di- Entre novembro de 1928 e fevereiro de
dático e material para construção da ima- 1929, Mário fez sua segunda expedição ao
gem intelectual póstuma; Gilberto apenas norte do Brasil, detendo-se, dessa vez, ape-
as lia e as respondia, vez ou outra. Mário nas no Nordeste. Das duas viagens que
era professor; Gilberto era conferencista. empreendeu, deixou ele registros, hoje re-
Tanto um como outro tiveram em Paulo colhidos em O Turista Aprendiz, volume
Prado uma espécie de referência mundana organizado por Telê Porto Ancona Lopez
e intelectual obrigatória. Gilberto atribuiu- (1). Manuel Bandeira, por sua vez, partira
lhe uma das raízes de sua investigação his- também em novembro de 28 para o Recife,
tórica sobre o povo brasileiro; Mário dedi- a convite de Gilberto Freyre, que lhe arran-
cou-lhe Macunaíma, resposta possível à in- jara “uma inspetoria de bancas examina-
dagação sobre o caráter deste povo. En- doras”, segundo carta sua a Mário (2). Quan-
quanto o pernambucano, afundando-se no to a Gilberto, seu depoimento sobre o en-
Tempo, decompunha o todo para se fixar contro pode ser lido em livro que homena-
na parte, o paulista, vasculhando o Espaço, geia os cinqüenta anos do poeta de “Evoca-
montava um painel com peças de proce- ção do Recife” ou em Perfil de Euclides e
dência vária. Ambos, no entanto, reconhe- Outros Perfis (3).
cem a origem alemã de suas inquisições: Comecemos pelo depoimento de Mário.
Gilberto não se cansa de mencionar Franz Em 1976, ao editar O Turista Aprendiz,
1 Mário de Andrade, O Turista Boas como um dos professores que mais o pela primeira vez, Telê P. A. Lopez mante-
Aprendiz, estabelecimento de
texto, introdução e notas de marcaram; Mário faz questão de reconhe- ve o título dado por Mário, bem como a
Telê Porto Ancona Lopez, São cer Koch-Grümberg como a ponta de seu
Paulo, Livraria Duas Cidades/
autonomia das partes. Isto é, depois das crô-
SCCT, 1976. novelo macunaímico. Porém, enquanto um nicas formalizadas, tal como haviam apa-
2 A rica correspondência entre insistia na contribuição do negro para a recido no Diário Nacional, a organizadora
Mário e Bandeira viu-se ainda
mais enriquecida, há pouco nossa cultura, o outro valorizava o índio anexou as Notas de Viagem, apontamentos
tempo, com a dissertação de espertalhão como nossa possível ascendên- manuscritos que Mário conservou junto
mestrado de Marcos Antonio
Moraes: Diálogo Epistolar , cia. Negra ou indígena, não importa, o que com os originais de um livro que nunca
edição da correspondência
Mário de Andrade/Manuel
importa é que ambos estão articulados na passou de projeto.
Bandeira, 3 vols., São Paulo, prospecção da cosmogonia brasílica, de que Graças a essa duplicidade, estamos,
USP-FFLCH, 1997. Carregada
de fartas notas elucidativas, resultou um texto indiretamente literário, portanto, diante de duas modalidades de
essa edição cruza a correspon- no caso de Gilberto; indiretamente etno- texto, duas versões da mesma viagem: uma
dência dos dois poetas, ofere-
cendo ao público, pela primei- gráfico, no caso de Mário. Com um livro pública e externa; uma outra, pessoal e par-
ra vez, as cartas de Bandeira.
A carta em que Bandeira co- sociológico, Gilberto deslizou para a lite- ticular. Em princípio, públicas são as crô-
munica a Mário sua viagem ratura; com um outro ficcional, Mário bei- nicas que o Diário Nacional estampou,
ao Recife data de 9/nov./
1928 e está no vol. 2, p. 163. rou a etnografia. Cada um, a seu modo, entre dezembro de 1928 e março de 1929.
3 Homenagem a Manuel Bandei- deslocando um pouco o branco europeu do Privados são os apontamentos de Mário que,
ra, Rio de Janeiro, s. l., 1936. centro de nossas atenções e subtraindo-lhe anos mais tarde, a pesquisa foi recuperar lá
Consultei a edição fac-similar
(São Paulo/Rio de Janeiro, o acúmulo de créditos com os quais, duran- “dentro da capa feita com papel de rascu-
Metal Leve/Sociedade Sousa
da Silveira/Instituto de Letras te anos, se regalara. nho que leva a indicação do autor [Mário
da UFF, 1986), em que Gil- Nada mais sintomático dessa comple- de Andrade] manuscrita a lápis: ‘Notas de
berto Freyre contribui com arti-
go sobre “Manuel Bandeira e mentaridade, ora convergente, ora diver- viagem ao Nordeste’: registros de 28 nov.,
o Recife”, nas pp. 87-92. Esse
mesmo artigo, com o título de
gente, que o breve encontro de Mário com 1928 e 24 fev. 1929” (4).
“Manuel Bandeira, Recifense”, Gilberto, no Recife, décadas atrás. O mes- Tal distinção é importante não só por-
Gilberto republica em Perfil de
Euclides e Outros Perfis (Rio de mo passeio, comentado por um e por outro, que revela o zelo informativo do viajante
Janeiro, J. Olympio, 1944. pp. ilustra bem a diversidade de temperamen- seletivo, como também expõe um dado
175-81).
tos, de percepções e de visões, ainda que curioso e intrigante das relações entre Mário
4 O Turista Aprendiz, op. cit., p.
341. repartissem, literalmente, o mesmo barco. e Gilberto.

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São duas as entradas referentes ao Re- esforço pra observá-lo. O que vejo é mesmo
cife, no dia 11 de dezembro de 1928, em O o valor decorativo da matéria: uma coisa
Turista Aprendiz (5). refletidamente festiva, rica, sóbria, solene.
Na primeira, defrontamo-nos com um A gente enxerga mas é o azulejo, o conjunto
texto elaborado, em dupla perspectiva. e isso é um encanto. Está claro que assim,
Numa primeira tomada, de caráter panorâ- decorando o baixo das paredes, se o azulejo
mico, Mário enfoca o vilarejo de Igaraçu não fosse historiado perdia noventa por cen-
como se fosse um quadro primitivo, em que to do poder plástico, porém aqueles cava-
é forte o contraste de cores, a insistência los, gentes, castelos, paisagens, passam dum
nos diminutivos, a simpatia pelo despoja- quadro pra outro, movimentam o conjunto
do e em que se abre espaço para acolher a numa procissão estourada de festa, golpes
voz simples da “velha guardiã” da igreja, de sino dentro da sensação” (8).
“mulata gasta e aprendida, falando que nem
whisky com água-de-coco” (6). Frente Nessa montagem textual, que veio a
àquele povoado que mais parece um presé- público em 3 de janeiro de 1929, através do
pio, Mário de Andrade simula modéstia ou Diário Nacional, um narrador atento ao
desfaz-se no anonimato, recusando a pri- popular e ao erudito bifurca-se e permite
meira pessoa verbal e escondendo-se atrás que essa bifurcação vaze através de esco-
de indefinidos substantivos com semântica lhas pronominais, ajustadas aos objetos
coletiva. Assim é que esse narrador se en- contemplados. Ora a simplicidade do vila-
canta com as casinhas humildes em cujos rejo, que clama por um despojado “a gen-
frontões surpreende rosetas, florões ou te”; ora a imponência de um convento que
passarinhos, “boas da gente estudar com abriga “as pinturas, das melhores” (9).
descanso”. Em seguida, perambulando Nas Notas de Viagem, por sua vez, de-
pelas ruas da vila, “a gente desemboca, num saparece o espanto de Mário frente ao con-
passado evocador e segue mais ou menos vento. Nelas, o viajante apenas destaca a
assustado por aquelas ladeiras, ruas tortas, importância do convento, quando compa-
praças ocasionais, nascidas duma fantasia rado com a irrelevância da igreja matriz de
de arruamento, bem de gente com vagar”. S. Cosme e S. Damião.
Ou detém-se diante da igreja matriz de S. Mas o que importa mesmo no cotejo
Cosme e S. Damião, sem valor arquite- entre a crônica publicada e a nota reservada
tônico, que faz a “gente perde[r] tempo nela é a escolha adotada por Mário.
quase que só por delicadeza” (7). Na matéria pública no jornal, ao abolir
Quando o foco abandona o geral e se a tarde, o cronista ganha espaço precioso e
estreita sobre o particular do extraordiná- espicha a manhã, dentro da qual cabem tanto
rio convento de São Francisco, entretanto, sua reconstituição naïve do vilarejo de
o narrador renuncia à modéstia do popular Igaraçu, como os comentários de caráter
“a gente”, agarra-se à primeira pessoa do técnico sobre o convento de S. Francisco.
singular e adere ao discurso com viés téc- Com esse procedimento, Mário finge mo-
nico, mesmo fingindo incompetência para déstia e enleia o leitor, porque, ao mesmo
apreciar o componente anedótico dos azu- tempo em que demonstra simpatia pela sim-
lejos do claustro: plicidade do vilarejo, deixa claro seu co-
nhecimento técnico de arte religiosa, em-
“O claustro é um carinho, a estante e os bora admitindo que sofra “uma incapaci-
5 As duas entradas estão nas
próprios móveis do coro, com o jacarandá dade vasta de observar o trabalho propria- páginas 221 e 347.
pretejado, são coisas sem preço. Os azule- mente artístico no azulejo” (10). No entan- 6 O Turista Aprendiz, op. cit., p.
jos da igreja contam em bom estado os to, nessa mesma crônica, matéria pública 221.

milagres de São Francisco. Aliás tenho uma que se destina à coletividade, que dela fará 7 Idem, ibidem.

incapacidade vasta de observar o trabalho o uso que bem entender, naquele momento 8 Idem, ibidem, p. 225.

propriamente artístico do azulejo. O dese- ou no futuro, Mário suprime as referências 9 Idem, ibidem.
nho, o caso que ele conta, careço de fazer sobre seus encontros pessoais e omite que 10 Idem, ibidem.

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na tarde daquele dia 11 de dezembro fora verticalidade dos coqueiros, a propor-
passear de barco pelo Capibaribe, na com- cionalidade do forno ou a monumentalidade
panhia de Manuel Bandeira e a convite de das antigas casas-grandes, na descida do
Gilberto Freyre. No jornal, Mário não con- rio a euforia cede lugar a uma quietude, a
ta que visitara Igaraçu, de manhã, com que não falta leve desejo de intimidade,
Ascenso Ferreira, nem de seu passeio de misturado com a noção de purificação pes-
barco, à tarde. soal. Mas tudo sempre banhado de prazer,
Na nota reservada, pelo contrário, o via- de alegria, de bem-estar.
jante aborda a manhã, a tarde e a noite da- Mais tarde, em outra crônica para o jor-
quele dia, deixando claro que não era de seu nal, a visão da cidade é diferente, menos
interesse a revelação, em público, de seus plástica e mais adequada à imagem do in-
contactos pessoais, naquele momento. telectual que se quer crítico. No jornal, é
Eis sua nota: nítida a visão antagônica que Mário ofere-
ce do Recife: de um lado, a cidade festiva,
“Tarde M. Bandeira me busca no hotel e com muita música, muita igreja, muita luz,
me leva a Gilberto Freyre, que nos oferece muita ilusão capaz de atrair o tabaréu ingê-
um passeio de lancha pelo Capibaribe, nuo, maravilhado “com tanta moça na rua,
maravilhoso, com vista da cidade, depois se pegava nelas, íamos beber a monjopina
dos arrabaldes, o da Madalena, com os pra depois dormir no amor. E os teatros,
velhos cais das vivendas das famílias ricas então!…Tudo fácil, médico, dinheiro, tudo
antigas, alguns deliciosos de monumen- fácil” (12). De outro, a expansão aplastada
talidade simples, os coqueiros sempre es- da pobreza e do inchaço urbano que destrói
pantados; que verei eu que cada vez que a imagem soberba do coqueiro e aniquila
enxergo um coqueiro nordestino me espanto sua verticalidade imponente. “Hoje”, arre-
com a beleza dele? Passa um creio que for- mata Mário na crônica que veio a público
no de olaria tão perfeito nas proporções, em 4 de janeiro de 1929, “os mocambos
tão exato no equilíbrio, que é um monu- são tão numerosos como os coqueiros.
mento nobre, sereno, duma grandeza que Alastram o tamanho da cidade grande, for-
se poderá chamar de clássica na paisagem mando na barra dela, um babado de barro e
amável. Passa o arrabalde do Poço e a boca- folhas secas. Babado crespo não tem dúvi-
da-noite se fecha apagando as sensações, da, mas babado bem triste, sujo de lama,
escondendo-as. Voltamos numa conversa sujo de gente do mangue… É triste de se
mais baixa, recontemplando em azul-ne- ver… Nem é pitoresco não, é triste…” (13).
gro de desenho, a paisagem colorida de já- Essa oposição entre uma Recife sedu-
hoje. Ao pé do gasômetro visões incen- tora e uma Recife pobre é bem menos eu-
diadas de fornos se banham no rio. Aliás fórica que a visão da nota íntima, anos mais
por todo o passeio homens, moços banhan- tarde recuperada pela pesquisa, e bem mais
do no rio. Fazem porque a gente carece próxima daquela que Gilberto Freyre ofe-
mesmo de tomar banho diário, porém ba- rece em seu depoimento, quando relembra
nho de rio dá sempre sensação de pagode e a presença de Manuel Bandeira na capital
a vista toda do Capibaribe esteve duma de Pernambuco.
alegria magnífica. De-noite, Stella, Ascenso Antes, porém, de comentar o depoimen-
e eu vamos pra Olinda…” (11). to de Gilberto Freyre, façamos um desvio
necessário para esclarecer o papel do poeta
Subindo o rio, a caminho do interior, pernambucano nesse encontro.
Mário esbanja alegria e só tem olhos para Era a segunda viagem de Bandeira ao
o equilíbrio da paisagem, que não se des- Nordeste, depois que dali partira ainda
mancha nem mesmo na viagem de volta, menino. Nascido em 1886, Manuel Ban-
11 Idem, ibidem, p. 347. quando um ligeiro tom melancólico (e deira veio de vez para o Rio, na companhia
12 Idem, ibidem, p. 226. malicioso…) invade o cenário. Se, no co- de sua família, dez anos depois.
13 Idem, ibidem. meço do passeio, o que atrai o viajante é a Por intermédio das inúmeras cartas que

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trocou com Mário de Andrade, hoje reco- bava por impor. Se, durante a primeira via-
lhidas e generosamente anotadas por Mar- gem, a companhia de d. Olívia Guedes
cos Antonio Moraes (14), é possível recons- Penteado, dama da alta aristocracia cafeeira
tituir com cuidado a primeira e segunda paulista, abrira portas rápidas à comitiva,
viagem ao Norte-Nordeste do Bandeira era de se esperar que a conseqüência neces-
adulto, já com seus quarenta anos. sária fosse também um conjunto de forma-
Entre janeiro e abril de 1927, Bandeira lidades tácitas que embaraçassem a pes-
foi a Belém do Pará, com escalas na Bahia, quisa livre e inibissem o comportamento
onde se declara “apaixonadíssimo” pela pessoal do viajante curioso.
cidade (15); em Recife, onde conhece Nas duas passagens pelo Recife, duran-
Ascenso Ferreira (16), passeia com Gilber- te a segunda viagem, em dezembro de 1928
to Freyre e se apaixona por uns “coqueiros, e fevereiro de 1929, o viajante paulista
magricelas com ar cansado de sujeito que mergulha na cidade como se disposto a não
andou muito e não tem onde sentar, [e que] perder nenhum prazer intelectual, estético
deixam uma sombra tão gostosa” (17). e pessoal. Desobrigado, portanto, de se
Bandeira e Gilberto já se conheciam espartilhar em regras por causa de acompa-
havia algum tempo, desde quando o poeta nhantes do sexo oposto, Mário baixa as
publicara sua famosa “Evocação do Reci- reservas e se solta na camaradagem alegre
fe” no Livro do Nordeste, número come- de Ascenso Ferreira, Hernani Braga, Cíce-
morativo dos cem anos do Diário de Per- ro Dias, José Pinto e outros, sobretudo
nambuco, organizado por Gilberto Freyre, durante a escala de retorno a São Paulo, em
em 1925 (18). Datam de então a forte rela- fevereiro de 1929. No cardápio da pânde-
ção entre ambos e a função de liaison, que ga, reforçada pelos dias de Carnaval da-
Bandeira acabou por assumir, na esquiva quele ano, não falta nada, porque os fanfar-
relação entre Gilberto e Mário. rões, entre uma ressaca e outra, abasteci-
Poucos meses depois desse primeiro am-se e bem de muito álcool, cocaína, éter
reencontro de Bandeira com suas origens, e de comilanças regionais (20). Até mesmo
lá vai o poeta de novo para o Recife, a con- com um passeio de avião, o primeiro em 14 M. A. Moraes, Diálogo
Epistolar, vol. 2, op. cit.
vite de Gilberto Freyre (19). sua vida, Mário pôde deliciar-se. Sua apre-
15 idem, ibidem, p. 76. Carta de
Nessa ocasião, novembro-dezembro de ensão da cidade se dá, portanto, em grande 3/jan./1927.
1928, Mário de Andrade está em sua se- angular, porque vai do rés do chão das igre- 16 Idem, ibidem, vol. 2, p. 78.
gunda viagem ao Nordeste, da qual nos jas às alturas que lhe propiciam “maravilha Cartão-postal de 1/fev./
1927.
deixou as crônicas e as notas de O Turista de sensações novas” (21).
17 Idem, ibidem, vol. 2, p. 79.
Aprendiz. Diferente da primeira, em que Inteiramente “livre”, pois, “de protoco- Carta de 5/mar./1927.
cobriu larga porção do Norte brasileiro, los e dono de seu tempo” (22), Mário em- 18 Em carta de 21 de julho de
1925, Manuel Bandeira con-
afundando-se pelos afluentes amazônicos brenha-se pela capital de Pernambuco, ora
ta a Mário: “Eu andei fazendo
e chegando até a fronteira do Peru e da acompanhado por Bandeira, ora cicero- uma ‘Evocação do Recife’ para
o álbum comemorativo do cen-
Bolívia, em forquilha fluvial esgalhada a neado por Ascenso Ferreira, nunca perden- tenário do Diário de Pernam-
partir de Itacoatiara, essa segunda viagem do de vista o prazer da pesquisa e muito buco. A pedido do Gilberto
Freyre que é um rapaz inte-
de Mário, livre das formalidades sociais menos o pessoal. ligentíssimo de lá. Você conhe-
ce-o? Mandou a ele a Escra-
que lhe facilitaram a primeira, mas que tam- Dá-se, então, em dezembro de 28, o en- va? (M. A. Moraes, op. cit.,
bém o embaraçavam, teve cunho de espe- contro de Gilberto, que convida Mário, que vol. 2, p. 185).
Cinco dias depois, Mário res-
cialização, de afunilamento e de confirma- é levado por Bandeira, indo os três por ale- ponde: “Não conheço o Gil-
berto Freyre e acho que não
ção de dados obtidos na viagem anterior, gre passeio de lancha, Capibaribe acima. mandei meu livro pra ele”
na medida em que pôde se dedicar apenas Depõe, então, Gilberto: (idem, ibidem, vol. 2, p. 190).
ao Nordeste, onde descreveu largo périplo 19 M. A. Moraes, op. cit., vol. 2,
p. 163. Carta de 9/nov./
costeiro e interiorano. Mais à vontade, “Já o passeio de lancha que fizemos juntos 1928.
Mário poderá desfrutar das companhias uma tarde, pelo Capiberibe, Manuel Ban- 20 Ver O Turista Aprendiz, op. cit.,
como bem entender, sem se preocupar com deira, Mario de Andrade e eu, não teve o pp. 364-8.

o tom cerimonioso que, na viagem anteri- mesmo gosto de reconciliação dramática 21 Idem, ibidem, p. 368.
or, a presença de várias senhoras finas aca- do poeta [Bandeira] com o seu meio de 22 Idem, ibidem, p. 20.

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menino, que o instante em que ele se en- homens voltam as costas. O poeta o procu-
controu tarde da noite com o Maracatu. O rou como a um velho amigo, com qualida-
gosto do Capiberibe lhe tinha ficado mais des permanentes, mesmo através do cati-
vivo nos olhos que o do Maracatu nos ou- veiro. Os dois – o rio e o poeta – passaram
vidos. Não tinha havido afastamento tão uma tarde inteira juntos” (23).
profundo.
Todo o tempo que a lancha levou subindo Para Gilberto, subir o Capibaribe é o
o rio, até Caxangá, pensei em Manuel Ban- mesmo que remontar o tempo, desmontá-
deira, através de sua Evocação do Recife. E lo em décadas e desmentir o poeta que, a
pensei no Recife de há trinta anos, de há seu pedido, compusera “Evocação do Re-
quarenta, de há cincoenta, de há cem, em cife”, uns anos antes. No mesmo instante
todos os Recifes que o rio viu nascer e em que as visitas experimentavam o prazer
morrer; em todos os Recifes que estão no de uma visão diferenciada do Recife, Gil-
poema de Manuel Bandeira. Aquele rio, berto encarregava-se de anular a idealização
aquela terra, aquela cidade, aquele poeta poética que Bandeira gravara em seus ver-
magro dentro da mesma lancha comigo e sos e reduzia a magia do Capibaribe à crua
com Mario de Andrade, estavam ligados realidade de esgoto a céu aberto. Em clara
para sempre: demonstração de precoce empenho ecoló-
Capibaribe gico, Gilberto dramatiza a degradação do
Capiberibe rio inerte, tornando-o objeto passivo de
Vi nas margens verdes, saindo do meio dos agentes ativos que nele se desafogam à vista
cajueiros, da sombra das mangueiras, meni- de todos, sem pudor.
nazinhas, meninos, muleques iguais aos que Objeto também público, além de passi-
há quarenta anos brincavam de roda na Rua vo, o rio se infama, escancara sua intimida-
da União, quebravam os vidros da casa de de, perde sua identidade, banaliza-se e per-
D. Aninha Viegas, mangavam do pince-nez mite que o tempo presente lhe destrua qual-
de Totônio Rodrigues; vi a própria D. Ani- quer veleidade de decoro próprio. Vazio de
nha Viegas (com outro nome, de certo) sen- identidade e de poesia, o cenário não se presta
tada numa cadeira de balanço num terraço mais à preservação da memória que o poeta
de casa de beira do rio, tomando fresco; vi Bandeira, um dia, ali aninhara e que, para
banheiros de palha tristonhos, negros lavan- ele, funcionava como arrimo de longínqua
do cavalos, muleques nadando na água suja identidade infantil. Identidade tão recolhida
onde já não tomam banho moças nuas como e tão pessoal que somente através de sua
no tempo em que o poeta menino passou as “Evocação do Recife” fora capaz de restau-
festas em Caxangá e um dia: rar, preservar e defender, como confessa,
Um dia vi uma moça nuinha no banho em carta, a Mário de Andrade:
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu. “Cheguei no Rio. Não gostei do Rio. Cadê
Porque o Capibaribe é hoje um rio porco. o meu Recife, a rua da União, as rodas... Os
Todos os rios da zona chamada da mata brinquedos eram os mesmos mas com dife-
em Pernambuco são hoje uns rios porcos, renças que me estragavam tudo. Os nomes
onde as usinas de açúcar mijam, defecam, eram outros. Nunca pude jogar o gude à
fazem as suas precisões; e o resto da gente moda daqui! E não haver midubim! – ‘Há
que se dane. As moças bonitas desapare- sim, menino. Quando passar eu te chamo.’
ceram dos rios. Custou a passar na minha rua. Afinal um
O poema de Bandeira está cheio de memó- dia me chamaram: ‘– Lá vai o menino do
rias de um outro Capiberibe, um Capibe- amendoim!’ Voei pra porta da rua como
23 Homenagem a Manuel Bandei-
ra, pp. 91-2. Atualizei a orto- ribe íntimo das famílias. O que nós subi- uma flecha. Quando vi aqueles carocinhos
grafia.
mos naquela tarde era, como o de hoje, um torrados, tive uma decepção. Pus na boca
24 M. A. Moraes, op. cit., vol. 1,
p. 196. Carta de 19/ago./
rio cativo e desprezado, por onde quase mas cuspinhei. Nunca perdoei ao Rio aquela
1925. ninguém passeia, para onde as casas e os desilusão” (24).

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Se no contexto mais amplo da simbolo- nífica”, que o fez pedir ao seu querido Manu,
gia clássica afrontar a correnteza fluvial em meses depois: “Me mande uma cópia da-
direção à nascente significa o retorno à fonte quelas fotos que você tirou no passeio de
divina e, por conseguinte, ao Princípio, como lancha pelo Capibaribe”. Como resposta tris-
ensinam Jean Chevalier e Alain Gheerbrant te, sinal simbólico de uma relação intelectu-
(25), não resta dúvida de que é nesta noção al que não prosperaria e, antes, estaria con-
que está mergulhado Gilberto, quando, na denada à morte, um desalentado Bandeira
companhia de suas visitas, lamenta que o diria: “Infelizmente as fotografias do
tempo presente tenha danificado o seu Capibaribe não prestaram. Nem guardei as
Capibaribe a ponto de torná-lo hostil à con- únicas cópias que se tiraram” (27).
vivência humana e à contemplação da nu- Se for imprudência tomar aquela per-
dez feminina, mesmo que imaginária. Subi- cepção antagônica do Capibaribe como ín-
lo em direção à nascente, retrocedendo no dice metafórico da divergência esporádica
tempo e anulando o presente, talvez fosse entre Mário e Gilberto, podemos, então,
expediente para recuperação de uma reali- enveredar pelo documento disponível, onde
dade histórica muito viva que, anos depois, esse confronto fica mais palpável e mais
seu monumental e poético Casa Grande & convidativo à discussão, sempre em ter-
Senzala viria sugerir. Aliás, essa identifica- mos de disputa intelectual, muito pouco em
ção do Capibaribe com a morte já lhe ocor- termos de quizília pessoal que, todavia, não
rera assim que chegara de volta de sua longa falta e até assume ares engraçados.
permanência no exterior, entre 1918 e 1923. Ao percorrer as várias páginas do “diá-
Enfrentando a cidade, logo que desembar- rio de adolescência” de Gilberto, memó-
ca, sua primeiríssima anotação em terras de rias que exigem atenção redobrada, é pos-
Pernambuco, registrada em “diário de ado- sível isolar, aqui e ali, anotações que de-
lescência e primeira mocidade”, não deixa monstram a reserva do memorialista quan-
margem à dúvida: to às novidades intelectuais que transbor-
davam do Rio e de São Paulo. Mal desem-
“Por outro lado, o rio não me desaponta. barcara no Recife, sobrecarregado de leitu-
Não é nenhum riacho: é um rio másculo, ras, museus, bibliotecas, pesquisas e con-
viril, completo, que não se amesquinhou tactos com os importantes centros de pro-
com o tempo. Ao contrário: sinto diante dução de cultura norte-americanos e euro-
dele meu velho temor às suas águas. Temor peus, o jovem pernambucano mostra-se
do tempo em que, muito menino, tomava reticente diante dos modernistas, alguns dos 25 Jean Chevalier & Alain
Gheerbrant, Dictionnaire des
banho em Caxangá, em vasto banheiro de quais já lhe eram conhecidos por nome;
Symboles , Paris, Robert
palha, com minha Mãe e minhas tias todas outros, por indicação de Zé Lins. Laffont/Jupiter, 1982.
nuas; e tendo sido uma vez deixado só, por Nesse novo aprendizado, retomando o 26 Gilberto Freyre, Tempo Morto
e Outros Tempos. Trechos de
elas, e não sei bem por quê [sic], no meio da contacto com a terra, apalpando o terreno e um diário de adolescência e
água funda, pensara ir morrer afogado. farejando o ambiente, o recém-chegado primeira mocidade, Rio de Ja-
neiro, J. Olympio, 1975, pp.
Chegara a me sentir sufocado. Desde então trava relações com o romancista do “ciclo 125-6.
‘o rio’ se tornara para mim a mais tremenda da cana de açúcar”, que o coloca a par das 27 O pedido de Mário vem em
novidades literárias e que nos conta: bilhete de março de 1929; a
realidade recifense: um Recife com gosto
resposta de Bandeira em ou-
de morte” (26). tro, de 15 de março de 1929.
Ambos estão na dissertação de
“Em 1923 havia ele chegado da Europa. E Marcos Antonio Moraes (vol.
Em oposição diametral a esse “gosto de andava em verdadeiras núpcias com a terra, 2, p. 167).

morte”, Mário detecta nas beiradas do rio após quase 6 anos de ausência. Todo o Bra- 28 José Lins do Rego, “Notas so-
bre Gilberto Freyre”, prefácio
uma fonte de vida, uma “paisagem amável”, sil lhe aparecia numa festa de luz, de cor, a Região e Tradição de G.
Freyre (Rio de Janeiro, J.
onde surpreende, rápido, até mesmo uma num deslumbramento. Os seus primeiros Olympio, 1941, p. 9). Mais
promessa macunaímica de pândega, quan- artigos eram como cartas de cronista saltan- tarde recolhido em Gordos e
Magros (Rio de Janeiro, Casa
do, malicioso, se lembra de que “banho de do de caravelas. Mas um cronista lúcido, de do Estudante do Brasil, 1943)
rio dá sempre sensação de pagode”. Não foi lucidez de quem via tudo criticando, sentin- e em Dias Idos e Vividos (Rio
de Janeiro, Nova Fronteira,
outro o motivo, senão o dessa “alegria mag- do valores, verificando erros” (28). 1981).

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Devagarinho, Gilberto vai aproximan- confiáveis, são exemplo disso. Mal salta em
do-se da terra nova, sem embarcar na pro- terra, rodeia-se de admiradores e começa a
paganda modernista de São Paulo, no en- estender sua atenção para o Rio e São Paulo,
tanto. Aos poucos, ressabiado, vai deixan- ansioso por ouvir pregações e exigências
do anotações em que mostra prudência, novas, como confessa já em 1923:
discriminação, autocontrole, talvez porque
estivesse nauseado com o tanto de moder- “[…] temos que estar atentos ao que nos
nidade e modernices que pudera presenci- prometem os bons modernos do Rio e de
ar nos grandes centros urbanos lá de fora, São Paulo, que não fazendo do ‘modernis-
talvez porque desconfiasse dos/das picare- mo’ seita, começam a escrever a língua por-
tas imp(r)udentes que ameaçavam sua Re- tuguesa e a tratar de assuntos – inclusive os
cife, com a desculpa de uma reforma urba- velhos ou de sempre – com uma nova ati-
na, mais preocupada com a aparência e a tude ou lhes dando um novo sabor: Bandei-
maquiagem que com o provimento e a ade- ra, Ribeiro Couto, Drummond, Emílio
quação infra-estrutural da cidade. Moura, Prudente, Sérgio, Oswald de
Por outro lado, se o foco prioritário da Andrade. Mário de Andrade, Andrade
reivindicação paulista eram as artes e a li- Murici, Grieco. Alguns eu já conhecia des-
teratura, no caso pernambucano, depois de de a Europa. Noutros venho sendo iniciado
leitura extensa e salvo melhor juízo, fica- por José Lins” (31).
se com a impressão de que o cerne do pro-
blema era muito mais a renovação metodo- A partir dessa entrada coletiva e triun-
lógica das ciências humanas, ainda pejadas fal dos modernistas (alguns, nem tanto…)
de positivismo residual e que começavam do sul em suas memórias, Gilberto começa
a trocar Comte por Marx, como murmura a deixar claras suas reservas quanto ao ba-
ele em seu diário: “No estrangeiro Freud é rulho que provocavam, natural em meio
mais do que Marx, que começa a ser falado provinciano. E já nessa primeira anotação,
em certos meios brasileiros, de onde está mesmo reconhecendo a função renovadora
desaparecendo o velho e extremo apreço desses modernistas, separa Mário dos de-
por Augusto Comte” (29). E, no bojo dessa mais: “Não consigo me entusiasmar por
mudança epistemológica, a recuperação certas andradices de Mário”. Em seguida,
sistemática e holística da informação local o escorregão anacrônico que, vira-e-mexe,
(30), dentro da qual a literatura e as artes deixa tenso e arisco o leitor de seu diário:
seriam componentes a disputar espaço, em “Prefiro as andradices ‘modernistas’ do
pé de igualdade, com os dados de origem outro Andrade, embora ‘Noturno de Belo
antropológica, sociológica, histórica, geo- Horizonte’ – de Mário – me pareça um belo
gráfica, ecológica, etc. O que, aliás, já se poema numa nova língua portuguesa” (32).
entrevê na variedade de assuntos presentes A anotação é de 1923. “Noturno…” é poe-
no Livro do Nordeste, coletânea de ensaios ma de 1924 e saiu no Clã do Jaboti, que é
que Gilberto organizou, em 1925, a pedido de 1927.
do Jornal do Comércio de Pernambuco. As restrições prosseguem, insistindo
No entanto, cioso de sua atualização sempre no “artificialismo” de Mário, que
cosmopolita, sorvida de forma direta e si- parece a Gilberto “postiço em muita coisa”
multânea com a intermediação livresca; de (33). E culminam com a escolha de um An-
suas leituras literárias extensas; de seu aces- drade em detrimento de outro, de maneira
so pessoal e de sua convivência com algu- tal que se pode localizar nessa exclusão um
29 Gilberto Freyre, Tempo Morto
e Outros Tempos, op. cit., p. mas das figuras representativas da poesia e dos germes da oposição enganosa que se
73. da crítica norte-americana mais atual, como criou entre Mário e Oswald:
30 Idem, ibidem, p. 222. Amy Lowell e H. L. Mencken, por exemplo,
31 Idem, ibidem, p. 132. Gilberto está atento a tudo aquilo que se passa “Todo meu empenho é fazer d’A Província
32 Idem, ibidem. ao sul do Recife. Seus “trechos de um diário um jornal diferente dos outros e fiel à sua
33 Idem, ibidem, p. 207. de adolescência e primeira mocidade”, se condição de jornal de província. Autênti-

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co. Honesto. Com colaboração de alguns seu inconformismo contínuo e inesgotável.
dos melhores talentos modernos do Rio de “Oswald de Andrade”, explica Gilberto,
Janeiro e de São Paulo. Mário de Andrade
não me interessa: de modo notável, está “foi, na verdade, dos que salvaram o senti-
sendo um admirável renovador de artes e do moderno do modernismo no Brasil; dos
de letras brasileiras, mas é artificial em que cedo se dispuseram a salvar o movi-
muita coisa. Artificial demais. Oswald de mento iniciado em São Paulo em 1922 de
Andrade, também, embora bem mais inte- permanecer apenas seita modernista; dos
ligente e autêntico que Mário” (34). que cedo se empenharam em salvá-lo de
permanecer apenas literário ou estético; dos
A emulação e a disputa prosseguiriam que cedo procuraram não só pela palavra
por anos, com momentos cômicos, às ve- como pela ação acrescentar-lhe sentido
zes. Num deles, Mário chega a prever, de social e, dentro do sentido social, sentido
forma verossímil, a reação de seu rival a político. E esse sentido político, o demo-
um pedido seu. Na preparação de crático” (38).
Macunaíma, muito escolado talvez pelo
espírito chistoso de seu personagem prin- Por outro lado, a correspondência dire-
cipal, Mário apela mais uma vez para o seu ta entre Gilberto e Mário foi modesta, qua-
querido Manu, o elo permanente entre a se nula, se levarmos em conta a importân-
Lopes Chaves e Apipucos: cia intelectual dos dois, seus círculos de
relação pessoal e sua atuação profissional,
“Olhe, pergunte como coisa de você, pro enquanto líderes grupais interessados em
Gilberto se ele sabe o nome de alguma ren- leque abrangente de assuntos e dispostos à
deira célebre de Pernambuco ou do Nor- catequização cultural.
deste qualquer. Se não for de Pernambuco No catálogo da correspondência passi-
ele que diga donde ela é. É pro Macunaíma. va de Mário de Andrade, recém-liberado
Não diga que é coisa minha senão ele é pela equipe chefiada por Telê Porto Ancona
capaz de fazer perfídia e dar nome errado Lopez do Instituto de Estudos Brasileiros
só pra ter o gosto de ler besteira” (35). da Universidade de São Paulo (IEB-USP),
constam cerca de sete mil itens minuciosa-
Da parte de Gilberto, porém, a prefe- mente processados. Entre eles, apenas qua-
rência intelectual se consolidou em confe- tro assinados por Gilberto: dois com valor
rência de 1946, quase ano e meio depois da documental muito escasso e outros dois, de
morte precoce de Mário. A convite do Cen- valor quase nenhum. Em um deles, o pri-
tro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade meiro e mais significativo, o intelectual
de Direito da USP, Gilberto discutiu as pernambucano pede:
similaridades entre o cubismo e o marxis-
mo em conferência no Teatro Municipal, “Permita que lhe faça um pedido: o de en-
em 22 de junho. De raspão, logo no come- viar a um amigo meu os seus trabalhos sobre
ço, o conferencista faz uma diferença entre música e folk-lore, que falam do africano e
modernidade e modernismo, atribuindo do mestiço brasileiro. O amigo é o Pro- 34 Idem, ibidem, pp. 233-4.

essencialidade e perenidade ao primeiro ter- fessor Melville J. Herskovits, Dept. of 35 M. A. Moraes, op. cit., vol. 2,
p. 116. Carta de 5/jan./
mo, em oposição à efemeridade e à Sociology and Anthropology, Nortwestern 1928.
circunstancialidade do segundo. Para Gil- University, Evanston, Illinois. Como sabe, 36 Gilberto Freyre, “Modernidade
berto, a modernidade tem “um sentido de Herskovits é um dos maiores antropolo- e Modernismo na Arte Políti-
ca”, in 6 Conferências em
continuidade criadora” (36) que, dá-se gistas modernos, com estudos especiais Busca de um Leitor, Rio de Ja-
neiro, J. Olympio, 1965, p. 9.
como implícito, faltaria em Mário, muito sobre o negro e o afro-brasileiro. Ele leu
37 Idem, ibidem, p. 8.
satisfeito com seu “modernismo já meio sua conferência sobre os congos no Bole-
38 Idem, ibidem.
oficial” (37). tim da Felipe d’Oliveira e achou ótima. O
Do ponto de vista do sociólogo, a estudo do Aleijadinho deve ser também de 39 Item MA-C.CPL, no 3091. Car-
ta do Recife com data de 10/
modernidade estava em Oswald, movido por grande interesse para ele” (39). jul./1935.

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No mesmo ano, meses depois, Gilberto Claro que a qualidade e a relevância das
apresenta Donald Pierson, colega da Uni- anotações dependem, sobremodo, da im-
versidade de Chicago: portância da obra, umas mais estimulantes
que outras. Porque nem sempre são verbais
“Permita que lhe apresente e recomende à as anotações. Muitas vezes, a surpresa do
sua atenção e simpatia o Prof. Donald Pierson, risco de lápis colorido, azul ou vermelho,
da Universidade de Chicago, que vem ao mais confunde que esclarece, porque de
nosso país estudar aspetcos [sic] do problema difícil decifração hoje em dia. Outras ve-
de relações de raça e de cultura e que me dá zes, um rígido risco preto, rente ao parágra-
a impressão de um pesquisador consciencio- fo, embatuca o leitor, que se pergunta se o
so e digno da nossa cooperação” (40). antigo dono do livro teria mudado de lápis
de propósito ou se, simplesmente, teria
Os outros dois itens são inócuos: num perdido o que estava à mão.
deles Gilberto apresenta a Mário um poeta De qualquer forma, aos poucos, as ano-
do Rio Grande do Norte, mas não lhe decli- tações começam a se configurar diante do
na o nome, e o último é um simples cartão pesquisador curioso, se munido de paciên-
de visita, sem assinatura nenhuma (41). cia e disposto a restaurar o instante da lei-
Da parte de Mário, nenhuma carta, até tura íntima. Por meio delas, juntando-as
onde a pesquisa pôde verificar nos arqui- peça por peça, um texto virtual começa a
vos da Fundação Gilberto Freyre em Apipu- brotar, áspero e sem freio, que ainda mistu-
cos, ainda em fase de sistematização e ra o raciocínio com a reação emocional pri-
montagem. Nenhuma pasta acolhe cartas meira, componente que, com certeza, será
provenientes da Lopes Chaves. Nem mes- descartado ou arredondado se o texto vier
mo as solenes e belíssimas estantes de a ganhar letra de forma pública.
madeira nobre que ainda abrigam os livros E sobrevém, então, a tentação da tipolo-
do voraz leitor que foi Gilberto guardam gia rápida dessas notas, em hierarquia que
em seu interior exemplares diversos da bi- contivesse sua extensão e conteúdo. Desde
bliografia de Mário, onde eventual marginá- as que são mero aditamento mnemônico
lia pudesse abrir pistas. Ah, como faz falta até as que são deliberadamente críticas,
um Macunaíma anotado… passando pelas reativas.
Em contrapartida, são preciosas algu- As de aditamento mnemônico seriam
mas das anotações que Mário rabiscou nas aquelas que suscitam o comentário às ve-
margens dos livros de Gilberto, hoje to- zes alusivo, mas sempre rápido, enxuto, sem
dos catalogados e guardados no IEB-USP. nenhuma elaboração, simples chave para
Entre folhetos e livros da gilbertiana, aber- uma recuperação futura, se houver. Como
tos ou fechados, anotados ou não, estão exemplo, aquela que vem logo na primeira
disponíveis nas estantes de Mário: Bahia página de Açúcar, onde Mário aponta que,
de Todos os Santos e de Todos os Pecados entre as tantas receitas do livro, “falta [sic]
(1926); Casa Grande & Senzala (1933); Manjar branco. Bons bocados. Beija-me
O Estudo das Ciências Sociais nas Uni- depressa. Bem casados”. Ou, um outro exem-
versidades Americanas (1934); Artigos de plo de Nordeste, quando uma seca frase
Jornal (1935); Sobrados e Mucambos nominal – “!Cançoneta napolitana” –,es-
(1936); Nordeste (1937); Mucambos do trategicamente colocada ao lado dos ver-
Nordeste (1937); Açúcar (1939); O Mun- sos de uma canção, sugere que a origem de
do que o Português Criou (1940); Região “Oh, Maria, oh, Maria,/ quantas noites por
40 Item MA-C.CPL, no 3092. Car-
e Tradição (1941); Atualidade de Euclides ti sem dormir/ Oh, Maria, oh, Maria/ em
ta do Rio de Janeiro com data da Cunha (1941); Guia Prático, Históri- teus braços eu quero cair” pode ser euro-
de 5/nov./1935.
co e Sentimental da Cidade do Recife péia. E mais um, de caráter rigorosamente
41 Respectivamente: Item MA-C-
CPL, no 3093, datado do Re- (1942); Uma Cultura Ameaçada (1942) e subjetivo e involuntariamente cômico, junto
cife em 10/jan./1944, e Item Problemas Brasileiros de Antropologia a esta salivosa receita de “Doce de caju à
MA-C-CPL, no 3094, sem data,
sem origem. (1943). moda de Pernambuco”, que ensina:

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“Escolhem-se cajus, que não estejam mui- ções e até de sutilezas”, Mário, sem se
to maduros, e que sejam sem mácula, e que estender, minimiza e lembra que “a cozi-
devem ser descascados com uma casca de nha francesa, a chinesa [e] certos pratos
marisco, de modo que se tire toda a pele, e russos são mais exigentes (45).
os talos, para que o doce não fique preto; Tais comentários ganham vulto e im-
piquem-se com um palito, extraindo-se portância, no entanto, quando assumem ca-
metade do sumo; depois desta operação fer- ráter nitidamente crítico, alongando-se em
vam-se em calda, e logo que tenham fervi- considerações que exigem fluência redacio-
do, retire-se todo o doce do fogo e deixe-se nal, concatenação de idéias, raciocínio cau-
repousar até o dia seguinte, a fim de ficar a sal, contenção de subjetividade e um míni-
fruta bem repassada da calda. Depois torna mo de coesão textual interna da qual possa
a voltar tudo ao fogo, para tomar o compe- se desdobrar, mais tarde e se for o caso, um
tente ponto. Retire-se, e guarde-se em va- texto articulado em torno de um ou mais
silhas” (42). pontos críticos. Embrião, enfim, de algo
mais duradouro que a efemeridade de uma
Logo ao lado, tão seguro quanto o autor marginália delével.
anônimo da receita, Mário adverte: “O do Encaixa-se bem nessa descrição o co-
Rio Grande do Norte é melhor”. Outro mentário geral sobre Casa Grande & Sen-
exemplo ainda: diante das explicações de zala que Mário deixou nas últimas páginas
Gilberto sobre as diferenças entre o moder- de sua primeira edição. Comentário longo
nismo paulista/carioca e o movimento de que finaliza uma leitura atenta, na ponta do
“renovação intelectual e artística operada, lápis, em que não faltaram correções de
desde 1923, no Nordeste do Brasil”, Mário erros tipográficos evidentes, rabiscos grá-
fulmina: “Ele data a renovação da chegada ficos indecifráveis, intervenções mnemô-
dele. Êta, Graça Aranha!…” (43). nicas, acréscimos reativos, aplausos, mas
Por anotações reativas, deve-se enten- também um rosário insistente de recrimi-
der aquelas que provocam comentário li- nações a três aspectos metodológicos que,
geiramente elaborado, passíveis de exten- a seu ver, comprometiam a obra: repetição
são futura. Quando Gilberto ensina, em excessiva, contradições freqüentes e, o mais
Açúcar, que “o chá teve no Brasil as suas importante, falta de método.
zonas alegres, em que foi o companheiro Econômica no elogio, a leitura de Má-
de bolos, de doces, de gulodice de açúcar rio reconhece poucas passagens a merece-
servida à ceia pelas mulecas em pratos da rem avaliação positiva, sendo que a mais 42 Na edição de Açúcar (Rio de
China e da Índia e, ao mesmo tempo, as vistosa delas é o momento inicial em que Janeiro, J. Olympio, 1939) que
pertenceu a Mário, a receita
suas zonas tristes, onde até quase nossos Gilberto contrapõe o escasso préstimo dos está na p. 151. Na edição de
que a transcrevo (3a ed. ver. e
dias não passou de remédios vendidos nas grandes rios brasileiros, favoráveis a aven- aum., Recife, Fundação Joa-
boticas para os incômodos dos velhos e turas de grande porte, à utilidade regular quim Nabuco-Editora Massan-
gana, 1987), ela está na p.
para as doenças dos meninos e das senho- dos menores, esses sim, essenciais ao co- 137.
ras”, Mário junta depressa: “V. o artigo mércio cotidiano. Nessa passagem, Gilberto 43 Gilberto Freyre, Região e Tra-
sobre o chá numa revista portuguesa ou na explica que “grandes foram por excelência dição , Rio de Janeiro, J.
Olympio, 1941, p. 28.
R. do Brasil. Aqui no sul o café. ‘Venham os rios do bandeirante e do missionário,
44 Idem, Açúcar, Rio de Janeiro,
tomar café’ o que significava tomar qual- que os subiam vencendo dificuldades de J. Olympio, 1939, p. 22. Na
edição de 1987, p. 58.
quer bebida, até comer coalhada, ou o bom quedas de água e de curso irregular; os
prato de leite com farinha” (44). Frente à outros, os do senhor de engenho, do fazen- 45 Idem, ibidem, p. 18. Na edi-
ção de 1987, pp. 55-7.
vinculação necessária entre requinte culi- deiro, do escravo, do comércio de produtos
46 Idem, Casa Grande & Senza-
nário e fartura de mão-de-obra escrava, da terra. Aqueles dispersaram o coloniza- la, Rio de Janeiro, Maia &
Schmidt Ltda., 1933. Para as
sem o quê, comenta Gilberto, “não se ex- dor; os rios menores fixaram-no tornando transcrições aqui utilizadas, uti-
plica o desenvolvimento, no Brasil, de uma possível a sedentariedade rural”. Ao lado, lizei a 20a edição (Rio de Ja-
neiro, J. Olympio, 1980), co-
arte de doce, de uma técnica de confeita- Mário acrescenta: “Muito bem. Toda esta memorativa do octogésimo ani-
ria, de uma estética de mesa, de sobreme- parte sobre os rios é ótima” (46). versário de G. Freyre. Na 1a
ed., a passagem está na p.
sa e de tabuleiro tão cheias de complica- De resto, a insistência na repetição: 37; na 20a edição, na p. 26.

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“Repetição do parágrafo anterior” (p. 43) homem da Casa-Grande na política e nos
(47); “Quanta repetição. Bastava [sic] 3 ou destinos do país, na sociedade e na cultura,
4 citas e afirmações essenciais” (p. 62); afim [sic] de minorar um pouco a impres-
“Repete até expressões como esta de que são de crapulismo que o livro dá. Gilberto
gosta” (p. 90); “Tanta repetição” (p. 246); devia ter subido ao salão depois de se ter
“Volta a repisar um assunto já deixado duas demorado, talvês demais, no W. C. À pág.
vezes pra trás…” (p. 277); “3a vez!” (p. 304 ele diz que não interessa ao ensaio o
280); “Mas o autor já falou no assunto, agora lado econômico no entanto a ele faz refe-
repisa e promete repisar!” (p. 345). rências. Por que então não tocar no políti-
Ou naquilo que é visto como contradi- co-social? Supoz que estragaria o efeito do
ção e até mesmo dispersão: “Há uma tal ou escândalo da descrição do W. C.?” (48).
qual contradição nisto tudo. O A. afirma
que os índios eram mais libidinosos que os Contradição, repetição, falta de méto-
negros e se esforça em provar que não eram do, são estas as cobranças mais constantes
luxuriosos” (p. 105); “Mas então o povo da e mais duras, que fariam de Casa Grande
era das conquistas já se deve considerar um & Senzala um monumento movediço.
mal alimentado. Em toda esta parte sobre “Livro muito sem método” (p. 13), res-
alimentação em Portugal vaga uma vaga mungara Mário, já numa das primeiras pá-
contradição. Parte escrita muito apressa- ginas de seu exemplar de trabalho. “Quan-
damente, alinhavando documentação não ta repetição! O livro talvez só não seja mo-
só contraditória mas pulando de seculo a numental pela falta de método. Reduzido e
seculo sem metodo nem critica” (p. 264); metodizado dá um monumento” (p. 133),
“Há muita dispersão também. Muita fuga lamenta, mais adiante, bem antes da longa
ao assunto. E um erotismo mal disfarçado estocada final.
do A. que gosta de repisar o assunto da Certo de que, em si, a imagem de “mo-
luxuria. Desequilíbrio”. (p. 386). numento” seria adequada, mas incerto
Aliás, nessa censura ao “erotismo mal quanto à sua atribuição, Mário deixa uma
disfarçado”, Mário não estava sozinho. Foi inscrição enigmática, funcionando como
uma das que mais pesaram na recepção ain- pisca-pisca, logo na entrada do seu exem-
da assustada com aquela história bisbilho- plar de Casa Grande & Senzala, antes mes-
teira que empurrava o sexo, ainda acanhado, mo da folha de rosto: “em areia incerta uma
para o centro da sala de nossa antropologia catedral disforme… (‘Paulística’ p. VI)”.
social. Que o digam os padres encabulados Paulística é de Paulo Prado e saiu em
47 O número dessas páginas refe-
re-se à primeira edição, utiliza-
de então ou esta outra anotação, escondida 1925.
da por Mário de Andrade. na edição de Yan de Almeida Prado, tam- Convencido de que precisava abando-
48 O exemplar da primeira edição bém profusamente carregada de extensas nar a imaginação européia e voltar-se para
de Casa Grande & Senzala que
pertenceu a Yan de Almeida notas informais, de acato ou discordância. o seu país, ainda muito carente de mono-
Prado é parte de um dos acer- Nas páginas finais do exemplar hoje tam- grafias regionais, Paulo Prado aventura-se
vos fundantes do IEB-USP. Na
transcrição acima, retirada da bém depositado no IEB-USP, lê-se: na tarefa de coletar informações históricas
p. 518, o grifo é do A.
Além da farta anotação que o sobre São Paulo, deixando claro que pre-
valoriza, esse exemplar ainda “Falta a este livro método. Pisa e repisa o tendia escrever um “livro de estudos regio-
conta com a peculiaridade de
ter sido enriquecido com comen- mesmo assunto, alardeando erudição por nais” (49), ao qual não faltasse a “harmo-
tários manuscritos de Heitor
Lyra, segundo se lê na p. 57,
vezes desnecessária. Falta-lhe também uma nia dos dois métodos”, isto é, o da “docu-
em caligrafia de Yan de boa revisão. Contradições, generalizações mentação livresca” submetido à “subjeti-
Almeida Prado: “As notas de
caligrafia diferente são de perigosas ou ridículas, suposições absur- vidade do historiador” (50).
Heitor Lyra”. das, repetem-se deploravelmente. Ao mes- Preparação visível para um salto mais
49 Paulo Prado, Província & Na- mo tempo, Gilberto revela-se o único his- ambicioso a ser tentado com Retrato do
ção. Paulística – Retrato do
Brasil, pref. de Geraldo Ferraz, toriador e sociólogo brasileiro com um Brasil, que é de 1928, Paulística concilia a
Rio de Janeiro/São Paulo, J.
Olympio/Secretaria de Estado
pouco mais de envergadura do que simples informação das fontes primárias com o
de Cultura, 1972, p. 3. compilador, ou rato de arquivo. Falta tam- esmero estilístico, carregando, por acrés-
50 Idem, ibidem, p. 13. bém um pouco, pelo menos um pouco, do cimo, algumas pitadas da descrição fanta-

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siosa que pretende o épico. Sobre o longo não tem dúvida, que o A. defende apaixo-
arco compreendido entre o Caminho do nadamente o negro. Nada tenho contra o
Mar, ponto zero do território paulista, e sua negro nem sou dos que o acusam de ‘raça
porção mais ocidental, ocupado pelo café, inferior’. Pra mim, assim como não tem
desdobra-se Paulo Prado, em tentativa civilizações superiores nem inferiores mas
indisfarçável de apreender o ethos do seu diferentes, não tem raças inferiores mas com
estado e de recortar-lhe a especificidade capacidades diferentes, devidas a uma
histórica, ainda que sob o risco de ser ta- quantidade enorme de fatores, entre os quais
chado de regionalista. “Regionalismo”, convem não esquecer fatores fisiologicos
lembra ele no prefácio à segunda edição, “é proprios, peculiares e porventura inaliena-
hoje uma palavra suspeita, pelo seu ressai- veis. Bom, mas o interessante é ver que o
bo de separatismo” (51). A. na verdade não provou nada. Primeiro:
Pois é no prefácio à segunda edição de a distinção subtil e aliás justa entre o negro
1934 que aparece a metáfora “em areia in- e o escravo não prova que o negro tenha
certa uma catedral disforme”. Nessa passa- capacidades identicas ás do branco, e sim
gem, Paulo Prado está explicando que Capis- que o escravo negro do Brasil chegou a
trano de Abreu, seu mestre e amigo, recusa- uma degradação enorme. E aí o A. sem
ra a tarefa de escrever uma História do Bra- querer forçou excessivamente as cores,
sil, porque julgou lhe faltassem dados e fazendo do ‘escravo-familia’ o ser mais
pormenores de uma micro-história que des- nojento, mais degradado, mais safado, mais
se conta de parcelas do território brasileiro. vil, mais sem-vergonha e passivo que é
“Seja qual for o processo da indagação his- possivel se imaginar. E pra isso êle exagera
tórica – idealismo ou materialismo – não se tambem o sinhô-branco fazendo dêste um
pode, entre nós, compreender a História do fauno, um tirano etc. Aliás entre contradi-
Brasil sem conhecer a História de São Pau- ções subtis sempre porquê ora afirma que
lo, assim como a da Bahia, ou de Pernam- fomos de relativa brandura com os escra-
buco, ou de Minas. Foi diante dessa tarefa vos, ora mostra a atitude ativa e até concien-
gigantesca”, justifica-se Paulo Prado, “que temente ativa do escravo. Ora pra provar,
recuou a honestidade intelectual de Capis- no sentido do A. que o negro é igual ao
trano; preferiu ser o operário minucioso e branco, o que careceria é provar que ele
incansável a erigir em areia incerta uma não se degradou tanto como escravo. O fato
catedral disforme” (52). dele resistir degradado e do indio escravo
Claro que não se pode tomar, de modo desaparecer na degradação (que não foi até
categórico, o recorte da frase e sua localiza- tamanha como a do negro) só prova supe-
ção na entrada do exemplar de Casa Grande rioridade do indio sobre o negro, o que
& Senzala, como a opinião definitiva de tambem não me parece ser a verdade. Inda
Mário de Andrade sobre a obra inaugural de mais, se me parece tambem que a escravi-
Gilberto Freyre. Sua marca de privacidade, dão é de efeitos degradantes, sempre con-
bem como o imediatismo da reação à leitu- vem notar que nem todos os povos ficados
ra, passível de alteração futura, aconselham escravos se degradaram tanto como o ne-
prudência. Mas, por outro lado, a menos que gro. Assim é tipico o caso dos Hebreus no
se queira fingir de avestruz, também não se Egito. E os indianos escravos dos indianos,
pode deixar de ler nesse recorte uma espécie nas castas. Alem disso o negro já livre do
de epígrafe geral à obra. Permitem a inter- Brasil e que em suma permanece o mesmo
pretação dessa citação como síntese as ano- – o que aliás prova que não era tamanha a
tações posteriores, longas ou breves, bem degradação do escravo negro como o A. a
como o ácido balanço final, escondido entre descreve. Bem, mas mesmo aceitada a dis-
os capítulos quatro e cinco: tinção entre negro e o escravo, o A. se der-
rama liricamente em exaltar aquele, sem
“Todo êste capítulo e o livro são uma mís- avançar uma prova a mais das que deram os 51 Idem, ibidem, p. 10.
tica e adorada defesa do negro. Isso é que defensores do negro. Prova aliás que nada 52 Idem, ibidem, p. 3.

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de definitivo provaram. Careceria dar pro- ralizado, alerta para o perigo da ordem única
vas e o A. não faz – o que alias fa-lo-ia sair e universal, não condena a tradição, mas
do assunto. Mas a culpa não é minha no questiona o princípio da causalidade, pre-
exigir isso, é do A. que fez tão vigorosa ferindo o da casualidade como mais enri-
polêmica na defesa do negro. Mas defen- quecedor:
deu e não provou nada” (53).
“Quem leciona História do Brasil
Mas que método era esse que se cobra- [obedecerá a
va tanto? uma ordem que, certo, não consiste em
Ou, por outro lado, como compreender [estudar
tanta cobrança de purismo metodológico a guerra do Paraguai antes do ilustre
em tempos que timbravam por ser inven- [acaso de
tivos, criativos, renovadores, que “impu- Pedro Álvares. Quem canta seu
nham a criação de um espírito novo e exi- [subconsciente
giam a reverificação e mesmo a remodela- seguirá a ordem imprevista das comoções,
ção da Inteligência nacional”, segundo pre- [das
gação do próprio Mário, em seu balanço de associações de imagens, dos contatos
abril de 1942? (54). Ao embaralhar, de [exteriores.
forma ruidosa, uma cópia de documenta- Acontece que o tema às vezes
ção que não se dobrava, forçosamente, à [descaminha” (57).
solenidade e ao empertigamento dos ar-
quivos oficiais, não estaria Gilberto bas- Ao dar de ombros para a ortodoxia
tante próximo daquele espírito que orques- metodológica e torcer o nariz para o consa-
53 Gilberto Freyre, Casa Grande trou, em outra sala, a “orgia intelectual [da] grado, Gilberto entrelaçava o causal com o
& Senzala, Rio de Janeiro, Maia
& Schmidt Ltda., 1933, p. 437.
história artística do país” (55), aquela mes- casual, embaralhava a linguagem referen-
ma orgia que Mário consignou com gozo, cial com a poética e mostrava claro apreço
54 Mário de Andrade, “O Movi-
mento Modernista”, in Aspec- nesse mesmo balanço? Ao privilegiar as pelo descaminho, guiado pela “ordem im-
tos da Literatura Brasileira, São
Paulo, Martins, s. d., p. 231. metáforas de impacto e as metonímias prevista das comoções”, onde a memória
55 Idem, ibidem, p. 238. machadianas e certeiras, não incide Gil- pessoal não recua, atemorizada pela obje-
56 Versos de “Prefácio Interessan-
berto no culto da imagem tão reivindicado tividade enganosa. Que o diga, por exem-
tíssimo” de Mário de Andrade. por Mário em seu “Prefácio Interessantís- plo, a multiplicidade de assuntos que abor-
Edição de suas Poesias Com-
pletas, organizada por Diléa simo”? Ao imiscuir-se de modo tão desa- dou em suas crônicas de juventude, vindas
Zanotto Manfio, Belo Horizon- brido nos recôncavos de nossa formação dos Estados Unidos e da Europa, quando
te, Villa Rica, 1993, p. 66.
doméstica, não estaria o sociólogo pernam- absorvia, encantado e emocionado, o mun-
57 Idem, ibidem, pp. 66-7.
bucano se afastando bastante da “ordem do muito além do Capibaribe; que o diga,
58 Gilberto Freyre, Tempo de
Aprendiz, artigos publicados dos colegiais infantes” e se aproximando, outro exemplo, sua concepção precoce do
em jornais na adolescência e
com desenvoltura renovadora, daquela “or- artefato verbal, reforçada pela convivência
na primeira mocidade do autor
(1918-1926), pref. de Nilo dem, inda mais alta, [que existe] na fúria prematura com a poesia nova dos imagistas
Pereira, introd. do A., notas de
J. Antonio Gonsalves de Mello, desencadeada dos elementos?” (56). e não de todo isenta de premonição: “Es-
São Paulo-Brasília, Ibrasa/INL, Na sua profissão de fé poética, Mário crever é brincar com palavras como o do-
1979, vol. I, p. 80. Esta crôni-
ca é de 1920. exige descondicionamento estético gene- mador brinca com as feras” (58).

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