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O Conteúdo de Seus Complexos: O Arquétipo do Líder Ferido

Explorado em Martin Luther King, Jr. e Barack Obama

Dr. Jennifer Selig

Tradução: Camilo Ghorayeb

Publicado online em 01 de outubro de 2015

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O Conteúdo de Seus Complexos: O Arquétipo do Líder Ferido
Explorado em Martin Luther King, Jr. e Barack Obama

Dr. Jennifer Selig

Eu gostaria de começar discutindo o título da minha palestra, apresentando a


teoria que desenvolvi. Então, aplicarei esta teoria a dois líderes populares do meu país
– Dr. Martin Luther King, Jr., e Presidente Barack Obama. Depois, gostaria de pro-
mover uma discussão sobre a teoria, me interessando, particularmente, em como
vocês a veem sendo aplicada na questão da liderança no Brasil. Eu fiz uma pequena
pesquisa sobre seu país, seu presidente anterior e a presidente atual Dilma Rousseff,
mas claro que vocês sabem muito mais do que eu, então vou principalmente ouvir a
discussão.
A primeira parte da minha discussão é “O conteúdo dos seus complexos”. É um
eco da frase mais famosa do discurso de 1963 “Eu Tenho um Sonho”, de Martin Luther
King, Jr, onde ele diz que deseja que suas crianças, um dia, não sejam julgadas pela
cor de suas peles, mas pelo conteúdo de seus caráteres. Eu estou afirmando, aqui,
que também somos julgados pelo conteúdo de nossos complexos e, em verdade,
nosso próprio caráter é composto em grande parte por nossos complexos.
Sei que a maioria de vocês está familiarizado com a teoria dos complexos de
Jung, mas me deixe resumi-la um pouco aqui, para que vocês possam ver como eu a
entendo e onde meu trabalho está situado. Nós sabemos que a teoria dos complexos
foi muito importante para Jung, bem no início de sua carreira. Como pesquisador ini-
cante, ele se dedicou aos Testes de Associação de Palavras, que era uma maneira de
desvendar complexos. Jung diria uma palavra, e o paciente estava instruído a dizer a
primeira palavra que viesse à cabeça. Os pacientes estavam conectados a um gal-
vanômetro que media mudanças fisiológicas – suas respostas também eram cronome-
tradas, e as palavras anotadas. Desta forma, Jung foi capaz de avaliar quais palavras
desencadeavam estranhas associações, afetos incomuns ou tempos de resposta retar-


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dados, etc. Por exemplo, se eu dissesse mãe, e você pai, era uma reação normal, mas
se eu dissesse mãe e você corasse, seu coração acelerasse, e você gritasse "bruxa",
poderíamos estar presenciando um complexo materno!
Psicologia dos Complexos era o nome que a colega e associada de Jung, Toni
Wolff, preferia para psicologia dele e, de fato, em 1948, quando o C.G. Jung Institute
foi inaugurado, Jung se referiu a ele como o Instituto para a Psicologia dos Complexos.
Ele diferenciou a psicologia dos complexos da psicologia analítica, a psicologia
analítica estava preocupada com o encontro analítico, enquanto que a psicologia dos
complexos estava preocupada com tudo. Literalmente. Em seu discurso de abertura,
ele discute as preocupações da psicologia dos complexos, que incluem religião, fol-
clore, mitologia, física, alquimia, simbolismo, psicologia familiar e de grupo, parapsi-
cologia, as humanidades, estudos biográficos, etc. Seus seguidores preferiram
chamá-lo de Instituto C.G. Jung, e agora em seu site, é dito que o Instituto está centra-
do na formação de analistas junguianos e psicoterapeutas.
Trago um pouco de história não só porque é interessante, mas porque me pre-
ocupa que algo tenha sido perdido quando perdemos o termo “psicologia dos com-
plexos”, algo que termos como “psicologia junguiana”, ou “psicologia analítica” não
capturam. Eu tenho duas principais preocupações. A primeira é que o foco em treina-
mento de analistas pode significar que algumas das frentes mais radicais do trabalho
de Jung, alguns dos alcances mais extensos, podem estar perdidos. Eu conheço
muitos analistas que estão escrevendo sobre o mundo além do encontro terapêutico, e
eu me beneficiei grandemente destes trabalhos, agradeço e admiro muito eles. Mas
sendo uma pessoa que não é analista e nunca desejou ser, quero que continuemos o
trabalho da psicologia dos complexos em ambientes acadêmicos também, livre das
demandas do treinamento analítico. Isto é o que fazemos no Pacifica Graduate Insti-
tute, no Programa de Estudos Junguianos e Arquetípicos que eu conduzo; enquanto
alguns dos nossos alunos são terapeutas, a maioria não é; eles são alunos interdisci-
plinares interessados em aplicar os princípios e práticas junguianas e arquetípicas ao
mundo fora do encontro analítico, assim como Jung estava interessado em fazer com a
psicologia dos complexos e o instituto original.

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Minha segunda preocupação com a perda do termo “psicologia dos complex-


os” é que perdemos a excelência da teoria dos complexos sem ele. De fato, no discur-
so de abertura de Jung, ele credita tudo que veio mais tarde em seu pensamento à
descoberta dos complexos. Sem os complexos, não teria descoberto a tipologia, ele
disse, porque ao tentar entender nossa atitude frente aos complexos, ele formulou os
tipos de atitudes. Ele também afirma que seu trabalho com os complexos o levou à
descoberta do inconsciente coletivo – o levou para fora dos limites da psicologia e
ampliou a perspectiva de pesquisa “sem limite”.
Não sei bem qual a popularidade da teoria dos complexos no Brasil, mas em
meu país muito pouca atenção é dada a ela, e uma revisão da literatura mostra que
muito pouco foi escrito sobre ela em qualquer lugar do mundo, quando comparada a
outras idéias junguianas. Alguns de vocês podem estar familiarizados com o analista
junguiano Dr. James Hollis, que vive e trabalha em Houston, Texas. Ele escreveu 13
livros e, embora nenhum deles trate de complexos, ele acredita que a teoria dos com-
plexos seja a mais importante de todas as teorias junguianas na prática. E a menos
valorizada e utilizada. Mais uma vez, eu não sou uma analista e não posso opinar so-
bre como analistas em qualquer país estão usando a teoria dos complexos, mas con-
cordo com Dr. Hollis que ainda há ouro não extraído dela, e muito do meu trabalho está
focado no realocamento da teoria dos complexos a um lugar central de excelência.
Entre os anos de 2001 e 2003, eu estava escrevendo minha dissertação de
doutorado sobre Martin Luther King e o Movimento dos Direitos Civis. Eu usei o termo
“terapia cultural”, e argumentei que pessoas como Martin Luther King podem servir
como terapeutas para a cultura, o país ou o mundo em geral. Eu mostrei como King
usou princípios junguianos para ajudar a curar a alma dos Estados Unidos, ou como
ele a ajudou durante seu caminho de individuação. Sem conhecimento, ao mesmo
tempo em que estava escrevendo sobre o nível cultural da psique, Thomas Singer e
Samuel Kimbles estavam compilando artigos para o livro deles chamado O Complexo
Cultural: Perspectivas Junguianas Contemporâneas acerca da Psique e da Sociedade,
publicado no mesmo ano de minha dissertação, em 2004. Singer e Kimbles, ambos
analistas junguianos, sugerem que Jung não era muito bom em usar sua própria teoria

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dos complexos para compreender culturas, grupos e nações, e que, ao invés disso,
voltou-se para os arquétipos, como por exemplo o arquétipo de Wotan, quando estava
investigando a psique alemã.
Naquele volume, está um artigo que vocês certamente conhecem da analista
junguiana Denise Ramos, onde ela explora os complexos culturais do Brasil. Através
de sua pesquisa triangulada usando pesquisa de campo, dados antropológicos e so-
ciológicos, e pesquisa com analistas junguianos, Ramos identifica o complexo de infe-
rioridade como o grande complexo cultural no Brasil, e cita a corrupção no país como
um sintoma do complexo. Espero que possamos ter a oportunidade de discutir isso no
final da minha palestra.
A teoria dos complexos culturais é uma ferramenta poderosa para a compreen-
são das sombras dentro de uma cultura, e a publicação deste livro em 2004, assim
como o trabalho posterior neste campo é um passo importante para a psicologia dos
complexos de Jung. Eu quero me voltar, agora, para o subtítulo do meu discurso, e
sugerir um possível próximo passo para a teoria dos complexos.
Meu subtítulo é "o arquétipo do líder ferido, explorado através de Martin Luther
King Jr. e Barack Obama”. Nós todos conhecemos o arquétipo do curador ferido, o
principal arquétipo que, muito provavelmente, leva todos à obra de Jung, certamente
os analistas. Sabemos que os analistas trabalham no campo da transferência. Nor-
malmente, um cliente escolhe um analista e, então, projeta uma relação ferida da in-
fância nele; uma contratransferência pode surgir do analista para o cliente, o que é
uma importante fonte de informação sobre o que este cliente está projetando no anal-
ista, e, também, que complexos ainda podem residir no analista como trabalho psi-
cológico inacabado que precisa de cuidado. Tipicamente, o que o analista e o cliente
estão trabalhando em conjunto é um complexo parental, e o analista deve suportar a
tensão da transferência até que ele ou ela se torne a mãe suficientemente boa, e a
própria relação se torna o terceiro transcendente.
Meu colega do Pacifica Graduate Institute, Robert Romanyshyn, aprofundou
essa teoria do cuidador ferido em um livro sobre pesquisa chamado O Pesquisador
Ferido: Pesquisas com a Alma em Mente. No livro, ele aplica a mesma teoria da trans-

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ferência entre o pesquisador e a pesquisa. Da mesma forma que um cliente escolhe


um analista para elaborar uma ferida da infância, um pesquisador também escolhe um
tema de pesquisa e tem a oportunidade de elaborar uma ferida em particular, cuidan-
do de negócios inacabados presentes na alma da pesquisa. O pesquisador ferido de-
senvolve uma transferência com a pesquisa, e Romanyshyn também incumbe a
pesquisa, afirmando que os temas da mesma nos escolhem tanto quanto nós os es-
colhemos, da mesma forma que podemos imaginar que o analista atrai para si pre-
cisamente os clientes necessários para trabalhar com a cura inacabada de sua própria
psique. O trabalho de pesquisa, portanto, é feito no campo transferencial, com o
pesquisador ferido trabalhando em seus próprios complexos, a fim de completar a
pesquisa boa o suficiente. Gosto muito da teoria de Romanyshyn – está em sintonia
com minha própria experiência tanto como pesquisadora, quanto como supervisora de
cerca de 50 teses de doutorado. Em todos os casos onde uma dissertação foi comple-
tada com sucesso, o pesquisador ferido experimentou a cura resultante da tensão su-
portada, até que a própria dissertação tenha se tornado o terceiro transcendente.
Aos trabalhos sobre o curador e o pesquisador ferido, ofereço meu trabalho so-
bre o líder ferido, com base no mesmo modelo básico. Neste caso, existe uma relação
entre o líder e seus seguidores – em meu discurso de hoje, vou usar o exemplo de
líderes e seus países. Na minha teoria, o país escolhe o líder de que necessita para
trabalhar com e por meio de um ferimento anterior. Um campo transferencial surge en-
tre os dois, e ambos devem manter a tensão até que, se acontecer, surge o terceiro
transcendente. Em um relacionamento de sucesso entre o líder ferido e seu país, o ter-
ceiro transcendente pode assumir a forma de movimentos progressistas, leis ou
avanços em direção à justiça social, igualdade e liberdade. Em relacionamentos bem
sucedidos, o país se move em direção a sua individuação própria, a sua própria pleni-
tude, seu próprio destino. Em relacionamentos mal sucedidos, assim como numa
análise mal sucedida, o país segue preso em seu próprio complexo, ou pior, o com-
plexo se torna ainda mais reforçado e enraizado, na medida em que mais evidências
de que esta é apenas a maneira que as coisas sempre são e sempre serão se acumu-
lam. Em relacionamentos bem sucedidos, tanto o país quanto o líder irá dissolver al-

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guns de seus complexos compartilhados, e a cura acontecerá. Em relacionamentos


mal sucedidos, só ocorrem mais ferimentos, feridas para o país, para o líder e, talvez,
ferimentos mútuos que projetam para fora na forma de guerras, terrorismo e outros
atos de violência. Adicionamos mais esta outra camada às teorias de complexos pes-
soais e complexos culturais, onde olhamos para a relação simbiótica entre o complexo
pessoal do líder e do complexo cultural do grupo.
Então deixe-me abordar, agora, meus dois estudos de caso, o de Martin Luther
King Jr., durante o Movimento pelos Direitos Civis, e o da eleição e o primeiro mandato
da presidência de Barack Obama. Antes de fazê-lo, deixe-me pedir desculpa anteci-
pada pelas limitações desta apresentação. Vou explorar destes feridas estes dois
homens, seus complexos subseqüentes, e os efeitos desses complexos em suas lider-
anças, mas é claro que o tempo é limitado para fazer justiça a tudo isso. Por esta
razão, só vou discutir um complexo por homem, aquele que passei a acreditar ser o
complexo central, apesar de sabermos, ao estudar a teoria dos complexos de Jung,
que cada um de nós está assentado com múltiplos complexos.
Meu segundo pedido de desculpas ecoa uma carta que Jung escreveu, certa
vez, sobre a natureza problemática da compreensão. Ele escreveu: "A compreensão é
um poder terrivelmente vinculativo … às vezes, uma verdadeira assassina da alma, já
que achata diferenças de importância vital. O núcleo do indivíduo é um mistério da
vida, que é extinto quando ‘captado'. É por isso que os símbolos querem ser miste-
riosos”.
Tanto King quanto Obama são símbolos extraordinários, e ambos estavam
cientes de sua natureza simbólica. King falou de estar despreparado para o papel
simbólico que a história tinha imposto a ele e, diz-se que Obama afirmou: "Eu me tornei
um símbolo da possibilidade da América voltar às nossas melhores tradições”.
Desde que estudo King e Obama, eles seguem sendo fundamentalmente mis-
térios para mim, tão numinosos em suas estaturas simbólicas hoje como eram no dia
em que os encontrei pela primeira vez. Esta apresentação, portanto, não é uma con-
clusão precipitada. Não estou sugerindo que tenha "captado" uma certa compreensão
destes homens, ao invés disso, espero que seja ouvido como uma análise introdutória

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que não pretende ser redutiva, mas sugestiva. Ao invés de fechar o diagnóstico e
prognóstico, espero abrir o diálogo acerca das maneiras possíveis em que as feridas
de nossos líderes são projetadas sobre o público e projetadas de volta sobre eles por
esse mesmo público.
A terceira desculpa é pessoal. Devo admitir que sou uma estudiosa ferida, com
meus próprios relacionamentos transferenciais com estes homens, e está claro que os
complexos que identifiquei como deles também a mim pertencem. Outro estudioso
poderia ter identificado outros complexos. Com reconhecimentos e desculpas dados
e, espero aceitos, continuemos aos estudos de casos.
Ao olhar para a causa de um complexo, Jung afirmou que estes são muitas
vezes causados pelo “dito trauma", ou um choque emocional da psique. O uso do ad-
jetivo "dito" é crucial aqui, porque o que é traumático para uma pessoa pode não ser
traumático para outra. Isso pode ser especialmente verdade para as crianças, que ap-
resentam diferenças notáveis em relação à sensibilidade a partir de uma idade muito
precoce.
Ao estudar a infância de King e Obama, segui a conhecida máxima "imagem é
psique", e procurei por uma imagem em suas autobiografias que eles oferecessem
como um momento de ferimento psíquico ou um "dito trauma". Para King, está presente
no primeiro parágrafo de sua autobiografia. Ele descreve o seu nascimento em 1929,
quando o país estava à beira da Grande Depressão. A primeira imagem que ele com-
partilha conosco sobre de sua infância é a de pessoas famintas em pé na filas de pão.
Ele atribui seus sentimentos anticapitalistas àquele momento específico no tempo.
Para outra criança tal cena poderia não ter sido traumática, porém King era uma
criança de vários modos, sensível. Ele também foi relativamente protegido, tendo sido
criado numa comunidade de classe média em Atlanta, Georgia, sem nunca ter experi-
enciado, pessoalmente a pobreza em sua comunidade. A partir de sua origem relati-
vamente privilegiada, o pequeno e sensível Luther King desenvolveu um complexo de
culpa durante a Grande Depressão Econômica, do qual ele nunca pôde se livrar, e que
foi mantido por uma crença enraizada de que todos os “filhos de Deus” deveriam ser
tratados igualmente, sendo um mundo injusto se dividido entre os que têm muito e os

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que não têm nada. Assim, culpa, desigualdade e injustiça estavam amarradas para ele
como um inescapável nó psíquico, no qual ele esteve envolvido durante toda sua vida.
Sua esposa, Coretta Scott King dizia que King era “o que os psicólogos consid-
erariam um homem sobrecarregado de culpa” com sua ultra desenvolvida consciên-
cia. Seu bom amigo e conselheiro Stanley Levison foi ainda além e o considerava um
homem “intensivamente sobrecarregado por culpa”. Luther King veio de uma extensa
linhagem de pastores batistas e foi criado num ambiente religioso, onde o aspecto
pecador do ser humano era enfatizado. Poderíamos dizer que o cristianismo por si só,
como uma cultura, tem um complexo de culpa envolvido em sua ferida original – a
queda da inocência e a expulsão de Adão e Eva do jardim do Éden. Este complexo
cultural foi algo que King tornou pessoal também.
Eu quero oferecer dois exemplos de sua juventude que clarificam a força de seu
complexo de culpa pessoal. Embora não seja uma parte conhecida de sua autobi-
ografia atualmente, foi amplamente conhecido durante a vida de King que ele tentou
suicídio por duas vezes, antes dos 13 anos de idade.
Na primeira vez, King e seu irmão mais novo estavam escorregando sobre o
corrimão da escada de sua casa de dois andares, quando seu irmão, acidentalmente
derrubou sua avó materna, que ficou inconsciente. Sua avó morava na casa da família
e King era extremamente próximo dela. Considerando que a imprudência deles a
havia matado, King se sentiu tão culpado que subiu os degraus correndo e se jogou
pela janela.
Sua segunda tentativa de suicídio veio quando ouviu sobre a morte de sua avó
por um ataque do coração. Embora fosse domingo, King tinha de ficar em casa fazen-
do sua lição de casa, mas ele escapou para ir a uma passeata sem a permissão dos
pais. Ao ouvir que sua avó havia falecido, ele pensou que seu pecado a havia matado
e novamente se atirou da janela do segundo andar de sua casa. Um de seus biógrafos
escreveu que King tinha “uma extraordinária compulsão por tomar para si grandes
cargas de culpa”.
Então, voltemos para a teoria desta apresentação e vejamos como o complexo
pessoal de culpa de King refletiu sobre o complexo cultural coletivo de seu país, e

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como King, sendo um líder ferido lidou com o complexo de culpa, situado no campo
transferencial entre ambos.
King sabia que os cidadãos brancos americanos sentiam um tipo de culpa cole-
tiva pelo que haviam feito aos cidadãos negros, uma culpa sentida especialmente pe-
los brancos do sudeste com sua herança de escravização dos negros. Ele analisou o
sul como “assombrado pelo senso de profunda culpa pelo que foi feito ao negro – cul-
pa por o subestimar, degradar, brutalizar, despersonalizar, coisificar: culpa por mentir a
ele. Esta é a causa da esquizofrenia que o sul sofrerá até passar por sua crise de con-
sciência”.
Durante o movimento pelos direitos civis, King provocou a crise se utilizando
das passeatas não violentas e protestos pelos negros inocentes para instigar re-
spostas violentas de brancos culpados, com o intuito de atingir suas consciências e
criar conscientização em todo o país.
O plano era simples e claramente colocado em quatro partes.
1. Protestantes não violentos vão às ruas para exercer seus direitos constitu-
cionais;
2. Racistas resistem violentamente contra eles;
3. Americanos com consciência, em nome da decência demandam justiça so-
cial e legal;
4. O governo sob massiva pressão intervém remediando imediatamente, geral-
mente através da legislação.
Uma simples fórmula psicológica orientou estes quatro passos: a não violência
negra somada à violência branca, que multiplica a culpa e vergonha brancas. Ele
sabia que isto levaria à necessidade dos brancos de balancearem a equação, adicio-
nando redimidamente, atos de justiça, efetivamente expiando sua culpa e recuperando
sua inocência novamente. Este é o terceiro transcendente – entre a tensão dos opostos
negros e brancos, o surgimento deste terceiro ajudaria o país a se curar e além, se in-
dividuar, tornando-se mais integrado.
Com o intuito de fazer isso, King precisou fazer a América branca ver seu
próprio demônio, ou nos termos junguianos, confrontar-se com sua própria sombra.

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Por exemplo, um aspecto da sombra que os brancos projetaram nos negros foi sua
barbárie física. Mas depois de Birmingham e Selma, quando os policiais – símbolos da
justiça – iniciaram os ataques aos manifestantes, batendo, arrastando, chicoteando,
intoxicando com gases, mangueiras de extintores e espancando os homens, mulheres
e crianças manifestantes contra a injustiça, como poderiam os americanos brancos
evitar a revelação de suas projeções e ver que poderiam ser culpados por atos de
barbárie física também? King sabia que as pessoas brancas com consciência sentiri-
am-se envergonhadas com o aumento da perda de sua inocência e aumento da apro-
priação de sua culpa.
A redenção exerceu um papel chave no trabalho de King com seu próprio com-
plexo de culpa, assim como a culpa que ele provocou no país. Ele acreditava que a
redenção poderia ser atingida de duas formas: pela aceitação do perdão infinito de
Deus, através do conceito de graça e pela luta contra o pecado e o comprometimento
em praticar o bem. King usou ambos os caminhos para a redenção em seu trabalho
com os cidadãos brancos americanos. Uma vez tendo aceito sua culpa, os cidadãos
negros ofereceriam o perdão apenas se os brancos se comprometessem em fazer o
bem. Para cada batalha empreendida por King, ele criou um lista do que fazer. Quanto
mais culpados os brancos se sentiam, mais forte a redenção de suas ações para livrá-
los da culpa. Por exemplo, o marco do Ato pelos Direitos Humanos de 1964, seguido
pela violência em Birmingham e o Ato pelo Direito ao Voto de 1965, seguido da terrível
violência em Selma. O historiador August Meier escreveu em 1965, “Ele irrepreen-
sivelmente sabe como explorar ao máximo a efetividade do crescimento do sentimento
de culpa”.
Vamos nos lembrar que na teoria do líder ferido, o campo transferencial é mutu-
amente projetivo. Como King fez os brancos no país sentirem sua própria culpa, eles a
transferiram de volta para ele, procurando por meios de julgá-lo como culpado.
Ele foi levado à corte sob numerosas acusações falsas, incluindo sonegação de
impostos. Passou um tempo na cadeia e foi investigado pelo FBI, que procurou por
pecados que pudessem o descreditar ou chantagear. Num exemplo particularmente
penoso, retornando às precoces tentativas de suicídio de King, na véspera de sua

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maior conquista, o recebimento do Prêmio Nobel da Paz, ele e sua esposa receberam
uma fita de áudio de King fazendo sexo com uma outra mulher e juntamente, uma car-
ta do FBI sugeria que ele cometesse suicídio antes que fosse exposto publicamente.
A culpa projetada sobre King era marcada por um caráter bipolar, ou seja, “não
interessa se você fez algo errado ou não”. Ele foi culpado por ter infligido leis pelas
quais foi para a cadeia e considerado covarde pelas vezes em que evitou ir preso ou
saiu da cadeia através de pagamento de fiança. Ele se sentiu culpado por seu silêncio
quanto à guerra do Vietnã, mas quando começou a falar sobre o assunto, alguns par-
ceiros de luta pelos Direitos Civis dos Negros o acusaram de ter desviado a atenção
das questões raciais. Ele foi culpado por ser tão pacifista e por ser tão militante. Foi
culpado por toda a violência branca ocorrida nos protestos e também quando algum
negro agisse violentamente em um protesto pacífico. No início do Movimento pelos Di-
reitos Civis, quando King tinha 27 anos e disse: “Eu comecei a sentir uma culpa pes-
soal por tudo que estava acontecendo” – este sentimento pessoal de culpa iria contin-
uar até a exata semana de sua morte, 11 anos depois, quando ele foi atingido pela
culpa pelos atos violentos dos negros num protesto em Memphis, Tennessee. Dave
Garrow, ganhador do prêmio Pulitzer pela biografia Carregando a Cruz, descreveu em
detalhes sôfregos a depressão, o desapontamento e o desespero que King sentiu ao
longo de sua vida, na medida em que carregava o seu fardo vindo de seu senso de
responsabilização exacerbado. O que parece é que seu complexo de culpa foi como
uma terrível cruz que King teve de carregar, adicionando um peso às palavras esculp-
idas em sua lápide: “Enfim livre, livre enfim. Obrigado Deus Poderoso, Estou livre en-
fim”.
Como coloquei anteriormente, quando a relação analítica entre o líder e o país é
de sucesso, algumas das feridas deste país são curadas e este é certamente o caso
do Movimento pelos Direitos Civis liderado por King. Leis efetivas foram aprovadas, a
segregação acabou e a integração entre brancos e negros teve seu início. Cidadãos
brancos se apropriaram de parte de sua sombra coletiva e buscaram a redenção. A
mesma cura ocorreu com o líder ferido? Aqui se coloca a tragédia. King parece ter se
libertado de seu complexo de culpa, apenas com sua morte – em grande parte eu

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diria que por conta de seu complexo de mártir, mas esta já é uma história para uma
outra palestra.
Agora vamos nos voltar para Barack Obama, um homem que tem governado
numa era totalmente diferente, na qual ele disse em suas palavras que “a culpa dos
brancos já se tornou exaustiva em si mesma na América”. Enquanto Obama admitiu
que a igualdade e a justiça não atingiram 100%, ele reconhece que houve uma pro-
funda mudança na relação entre as raças ao longo de sua vida – ele ainda era um
bebê durante o Movimento pelos Direitos Civis, com apenas 3 anos quando King gan-
hou o Prêmio Nobel da Paz e 7 quando ele foi assassinado. Obama nasceu num país
onde o direito de voto ainda era amplamente negado aos negros e tornou-se presi-
dente do mesmo país, em grande parte por conta dos votos dos negros.
Para os cidadãos brancos atualmente, sua eleição pode amenizar alguma culpa
remanescente. É claro que ainda há um terrível racismo contra alguns nos Estados
Unidos, mas é inegável o quão longe o país foi, ao vermos os negros Obamas na Casa
Branca.
Alguns podem argumentar que é exatamente porque Obama não faz com que o
país se sinta culpado é que ele se tornou elegível. Enquanto eu concordaria, também
traria à luz a teoria da liderança ferida que trabalhar através do complexo de culpa não
é o que o meu país precisa neste momento. Como um complexo de culpa não é uma
questão no momento, o país não elegeu um líder que tivesse um.
Em comparação com King, Obama não foi criado numa família religiosa e nem
se mirou na fé cristã, ou têm raízes ancestrais no cristianismo, com sua ênfase na cul-
pa e no pecado. A mãe de Obama o criou para contemplar todas as religiões do mun-
do como expressões da cultura humana, de modo a não se associar com a culpa ou a
vergonha. Ao contrário, ela lhe ensinou valores positivos como honestidade, disciplina,
trabalho duro e empatia. No entanto, já adulto ele se consideraria um cristão, o que fez
não puramente por escolha, mas porque queria fazer parte de uma comunidade, não
se baseando em um sentimento de culpa ou por uma necessidade de redenção.
King e Obama foram criados em épocas diferentes, em diferentes circunstân-
cias e em lares bastante distintos. King foi criado por dois pais amorosos afro-ameri-

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canos, numa comunidade afro-americana centrada em torno da igreja – de fato sua


mãe era secretária na igreja, seu pai era o pastor. Obama era uma criança bi-racial, de
uma mãe branca americana e um pai africano ausente. Ele nasceu no Havaí, onde a
população era uma mistura de brancos e asiáticos e mais tarde mudou-se com sua
mãe e seu padrasto indonésio para a Indonésia, onde o grupo étnico dominante era
javanês e a religião era muçulmana. Ele permaneceu lá entre os 6 e 10 anos e depois
voltou ao Havaí para ser criado por seus avós brancos do Kansas. Enquanto a vida de
King foi inacreditavelmente estável – mãe, pai, família, igreja, escola, tudo dentro da
vizinhança e cultura afro-americanas, a vida de Obama foi marcada por uma diversi-
dade incrível de experiências e ele carregava toda aquela diversidade em seu próprio
DNA.
A maior ferida da infância de Obama foi seu pai. Ele intitulou suas primeiras
memórias como Sonhos do Meu Pai e as chamou de “meditação sobre o pai ausente”,
“lembranças de uma jornada pessoal interior – a busca de um menino por um pai”, aos
30 anos. Depois de ler isto, alguém imagina porque seu editor não insistiu em intitular
como Feridas do Meu Pai, para descrever melhor o conteúdo.
Barack Hussein Obama, Sr., seu pai, era um africano do Kenya que estava es-
tudando na Universidade do Havaí quando encontrou a mãe de Obama, Sally que vivia
com seus pais que vieram do centro-oeste para o Havaí para começar um negócio. O
senhor Obama casou-se com Sally e tiveram Obama, Júnior, mas o casamento apenas
durou 2 anos antes de se divorciarem. Seu pai se foi, para estudar em Harvard e de-
pois voltou para o Kenya. Obama apenas o viu uma vez após isso, por um breve mês,
aos 10 anos. Seu pai faleceu num acidente de carro quando já tinha 21 anos.
Levaram aproximadamente 460 páginas em Sonhos do Meu Pai para explorar a
ferida do pai e a sensação que fica após ter lido e ao escutar seus discursos subse-
quentes, é a de que Obama continua a trabalhar sobre isso, apesar de já ter 40 anos
que seu pai o deixou. Através da energia de sua ferida, Obama é dedicado a nos
mostrar o que é ser um bom pai, ensinando o país sobre a paternidade, dando o ex-
emplo que apesar de um homem estar ocupado com um trabalho importante, ele ain-

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da pode ter tempo para ajudar suas crianças a ficarem prontas para o primeiro dia de
aula e ir a uma reunião de pais ou a um jogo de futebol.
O chefe em comando também é o pai em comando, um pai que está nos ensi-
nando o respeito profundo pela igualdade da paternidade e da maternidade, que é o
amante de sua mulher, que ao mesmo tempo é sua esposa e mãe de suas pequenas e
amadas filhas. As imagens icônicas dele e de sua esposa com suas filhas estão mais
impressas em nossa psique cultural, do que qualquer imagem de Obama com seus
membros de gabinete ou chefes de estado. Estas marcantes imagens de um novo tipo
de paternidade pode ser um dos seus maiores legados, tudo isso derivando do es-
forço que ele fez em defesa de sua criança interna ferida, para se tornar um bom pai.
A despeito do fato de que a ferida do pai em Obama tenha claramente definido
sua vida, eu afirmaria que este é um complexo consciente, o qual ele curou em grande
parte e portanto, se há alguma transferência do país em direção a Obama como pai,
esta é positiva, o que é aparentemente bem merecida. Acredito que a ausência do pai
é metade do que define sua ferida, que mais especificamente define sua liderança
ferida. Não foi o pai ausente que o feriu, mais profundamente: foi o pai negro ausente,
o pai africano ausente, um pai que era uma presença estrangeira, não apenas sua
ausência. Quando Obama se referiu às suas memórias como “lembranças de uma jor-
nada pessoal e interior – a busca do menino por seu pai”, ele completou sua frase as-
sociando esta busca com “o sentido preciso para sua vida como um negro
americano”. Não um americano bi-racial, mas um americano negro. Esta frase em sua
totalidade aponta para o que eu acredito ser o complexo fundamental de Obama: um
complexo de identidade.
Vamos seguir o mesmo caminho com a psique de Obama, que seguimos com
King: através do olhar para uma lembrança de infância que ele identifica como
traumática. Em Sonhos do Meu Pai, Obama relembra quando tinha 9 anos folheando
revistas no local de trabalho de sua mãe. Ele se deparou com a imagem de um homem
cujos lábios, nariz, face e mãos tinham, como descreveu, “uma irregular tonalidade
fantasmagórica”. Quando Obama leu o texto, ele descobriu que aquele era um homem
negro que havia voluntariamente se submetido a um tratamento químico para clarear a

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J. Selig

cor de sua pele. O artigo falava sobre milhares de pessoas que como ele haviam se
submetido aos mesmos tratamentos dolorosos, todos na tentativa de se livrar de sua
negritude. Obama reagiu fisicamente, sua face e pescoço se enrubesceram, seu es-
tômago se embrulhou, seus olhos embaçaram e ele sentiu “um desesperado impulso
de pular de onde estava sentado, para mostrar a eles (referindo-se a mãe e seu chefe)
o que eu havia visto, para pedir-lhes alguma explicação ou confirmação”. De outro
modo, King que perguntou abertamente sobre o significado das filas dos famintos pelo
pão, Obama guardou suas perguntas e seus medos dentro de si, aparentemente
porque eles eram muito incipientes.
Quando Obama descreve sua infância até aquele ponto, a raça não era uma
questão para ele. “Que meu pai tinha uma aparência nada parecida com as pessoas à
minha volta – que ele era preto como piche, minha mãe branca como leite – quase não
constava em minha mente”. Quando o pai o deixou, ele foi criado por sua mãe branca
e seus avós e se integrava com a mistura racial que era o Havaí.
Quando se mudou para a Indonésia com sua mãe e padrasto, ele teve uma irmã
que era metade branca e metade indonésia e lá experienciou relativa aceitação racial.
Em vários momentos de suas memórias ele usou a palavra “inocente” para descobrir
sua infância, especialmente no que diz respeito à raça.
No entanto, aquela inocência foi quebrada quando viu a imagem na revista. Ele
descreveu isso como “violento para mim, um ataque repentino”. Quando foi para casa
naquela noite, ele parou em frente ao espelho e encarou sua pele negra, sabendo que
ele tinha a aparência que sempre havia tido, mas imaginando pela primeira vez se
algo estava terrivelmente errado com ele.
Ou algo estava errado com ele, raciocinou, ou a resposta era a de que os adul-
tos à sua volta “viviam em meio à loucura”. Onde ele não havia notado a raça antes
como algo problemático, ele descreveu que sua “visão se tornou permanentemente
alterada”, e ele começou a notar as raças em todos os lugares, desde a falta de mode-
los negras em catálogos até o fato de Papai Noel ser um homem branco.
Ele recontou histórias de confusão racial, momentos em que ele negaria sua
negritude, depois momentos em que negaria o fato de ser também branco – suas

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memórias estão cheias de alternações dolorosas entre estes extremos. Mencionando


algumas: na escola primária no Havaí, ele foi indagado sobre seu nome pelo professor,
que lhe perguntou se ele preferia Barry, a versão americanizada de Barack, ou seu
nome africano, Barack. Ele escolheu Barry. Na mesma escola ele rejeitava a única out-
ra aluna negra de sua série, uma garota que alguns estavam dizendo ser sua namora-
da. Embora essa rejeição é parte desta fase entre garotos e garotas desta idade, ele
sabia que a havia rejeitado por ser negra e considerava este fato com um ato de
traição que o atormentava e feria internamente. Indo para o lado oposto do pêndulo,
durante seus anos na Universidade de Columbia, quando não era mais Barry, mas
Barack, ele terminou com uma namorada branca depois de visitar sua família, porque
se continuasse a namorá-la ele começaria a viver um estilo de vida branco.
Seus esforços no ensino médio eram particularmente intensos. Ele escreveu que
estava tentando se criar como um homem negro na América, mas não sabia o que isso
significava – nem seus avós brancos sabiam. Sem seu pai negro para guiá-lo, ele bus-
cava entender através da televisão, filmes e música, mas admitia: “Eu não tinha ideia
de quem eu era”. Ele passou a se distanciar da mãe branca e de seus avós.
Destes anos de formação ele reconhece as alternâncias no pêndulo da identi-
dade, escrevendo: “Eu aprendi a transitar entre os meus mundos negro e branco, en-
tendendo que cada um possui sua própria linguagem, tradição, estruturas e significa-
dos, convencido de que com uma certa tradução da minha parte, os dois mundos
eventualmente se relacionariam”. Mas isso não ocorreu. Ele passou a se sentir terriv-
elmente sozinho, começou a beber, fumar e usar drogas para se livrar da questão da
identidade em sua mente.
Na universidade, ele encontrou uma mulher negra que o desafiou compartilhar
de sua auto-centrada crise de identidade. Ele escreveu que isso o ajudou a perceber o
quanto de medo envolvia sua vida, em suas palavras, “o constante, incapacitante
medo de que eu não pertencia a nada, a não ser que eu me disfarçasse, me escon-
desse e fingisse ser algo que eu não era, eu permaneceria para sempre à margem do
mundo”.

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Naquele momento, ele escolheu acreditar que sua identidade deveria começar
com sua raça, mas isso não acabou aí. Ele saiu do isolamento e se juntou à comu-
nidade negra, mudando-se para Chicago, onde se tornou um dos organizadores da
comunidade e se uniu à uma igreja de negros. Pouco tempo depois, ele fez sua
primeira viagem para a África, onde ele esperava se integrar com a parte africana de
sua identidade afro-americana, para “de algum modo juntar meus vários mundos em
um harmonioso todo”. Obama escreveu que ao ter encontrado uma mulher no aeropor-
to que reconheceu seu sobrenome, disse: “Pela primeira vez em minha vida, senti o
conforto, a firmeza de identidade que um nome deve ter”. Ele escreveu: “Meu nome
pertence e eu também pertenço”.
A confusão sobre quem ele era, o medo de não pertencer à cultura negra ou
branca, a dúvida e desespero, o constante questionamento, as alternações do pêndu-
lo entre preto e branco que marcaram seus 30 anos, como dito em suas memórias,
sugerem um profundo complexo de identidade.
À luz da teoria desta apresentação, não é surpreendente que a liderança políti-
ca de Obama tem sido marcada por questões e confusões sobre sua identidade. Seu
complexo pessoal é projetado de volta nele pelo país, dividido e confuso sobre a
própria identidade.
Antes de examinar esta projeção, deixem-me brevemente estabelecer o com-
plexo de identidade de meu país. Talvez seja mais claramente ilustrado no próprio
nome do país. O nome apropriado do continente é América do Norte, mas o país
apelidou-se “Os Estados Unidos da América”, o que é um nome inapropriado e um
mito: inapropriado porque sugere que as Américas (Norte, Central e Sul) são unidas,
que como se sabe não estão, e mito porque a América do Norte é tudo menos unida.
O mito dos “Estados Unidos da América” vive na imagem de se trata de um lugar onde
imigrantes de todos os países se juntam e se tornam um só povo. Isto ecoa o desejo
de Obama de “de algum modo, juntar os meus mundos em um harmonioso todo”.
Quando nós juramos fidelidade ao nosso país, usamos as palavras “uma Nação,
abaixo de Deus, indivisível”, mas isto é uma fantasia – nós somos uma nação clara-
mente dividida. As divisões são, é claro, raciais. É interessante – King disse que nos

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anos 60, a hora mais segregatória na América era 11 horas da manhã de domingo, na
mais segregatória instituição, a igreja. Há igrejas brancas e negras. Apenas neste mês,
em Mississippi, uma igreja predominantemente branca se recusou a permitir que um
casal negro se casasse lá, porque nenhum casal negro jamais se casou naquela igre-
ja, mesmo sendo eles membros da tal igreja. Não, não somos uma Nação, abaixo de
Deus, indivisível. Nós somos mais integrados, mas não totalmente individuados quanto
à raça.
Mas as divisões em meu país vão além da cor da pele. Olhar para a vitória de
Obama ou para qualquer eleição presidencial recente ilustrará este ponto: nossa iden-
tidade de grupo se revela de acordo como preenchemos nossas urnas. Nós votamos
diferentemente se somos brancos ou negros, católicos ou judeus, se somos homens
ou mulheres, gays ou heterossexuais, se somos ricos ou pobres, jovens ou velhos, se
vivemos no norte ou no sul. Nós somos uma nação abaixo de muitos Deuses, divisível,
uma cacofonia da identidade de grupo, ao invés de uma harmonia de cidadãos. Se o
país pudesse falar, este ecoaria o que Obama escreveu: nós não temos a menor ideia
de quem somos.
Um país que não se conhece, constantemente preocupado em conter a tensão
entre os opostos, precisa de um símbolo de união, algo que transcenda a tensão dos
opostos. Quando Obama estourou na cena política em 2004, ele carregava a promes-
sa de ser este símbolo. O país realmente não sabia quem ele era até seu discurso na
Convenção Nacional dos Democratas em 2004. Eu certamente havia ouvido sobre ele
até então, mas quando escutei seu discurso naquela noite, eu soube que estava na
presença de algo muito numinoso e as lágrimas escorreram no meu rosto. Quem é
este homem, eu perguntei? No dia seguinte o país todo estava se fazendo a mesma
pergunta. Quem é este homem?
Naquele discurso ele expressou sua crença no país dizendo: Não há uma
América negra e uma branca, outra latina e outra asiática – há os “Estados Unidos da
América”. Este era um tema recorrente em seus discursos quando concorreu à
presidência. Num discurso ele disse: “Nós lembraremos que há algo acontecendo na
América: que nós não estamos divididos como nossos políticos sugerem, que somos

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um povo, uma nação e juntos começaremos o próximo capítulo na história da América,


com três palavras que ressoaram de costa a costa, de oceano a oceano. Sim, Nós
Podemos!”. Esta promessa inacreditável de começar o próximo capítulo em nosso país
o ajudou a conquistar a presidência.
Mas o homem com o complexo de identidade, rapidamente se percebeu no
campo transferencial, onde o país com um profundo complexo de identidade cultural,
projetou sobre ele seu próprio complexo. Quando Obama estava concorrendo com
John McCain para presidente, McCain levantou a questão, “Quem é Barack Obama?”
e o país nunca havia parado para se perguntar sobre isso. Digitando a exata frase
“Quem é Barack Obama” no Google, a pesquisa revela 2,5 milhões de páginas ofere-
cendo várias opiniões e respostas.
Alguém pode escutar o pêndulo balançando dentro da cabeça do país através
das perguntas que este faz. Obama é muçulmano ou cristão? Socialista, comunista,
facista, ou simplesmente um pragmático? É um americano patriota, um negro nacional-
ista, ou ele é um terrorista? Ele é um populista ou um elitista? Por que se ele é metade
branco e metade negro, nós o chamamos de o primeiro presidente negro? Ele não é o
primeiro presidente bi-racial?
Outras perguntas sobre sua identidade persistiram. Ele renunciou sua cidadania
americana pela indonésia? Ele tem dupla nacionalidade? Ele é ao menos americano,
como o grupo chamado "Nascidos" continua a perguntar? Mesmo tendo mostrado sua
certidão de nascimento, ainda há milhões que não acreditam que ele seja um cidadão
americano. Algumas pessoas o vêem como uma figura salvadora – o comediante Bill
Maher o chama de “Jesus de chocolate” – alguns pensam que é um santo. Por outro
lado, numa área de residentes de Nova Jersey, 8% pensavam que Obama era literal-
mente o anti-cristo ou satan, enquanto 13% não tinham certeza. Uma boa pesquisa
usando “Obama” e “anti-cristo”, resulta em mais de 4 milhões de páginas.
Em 2006, ele escreveu, “Eu sou novo o suficiente na cena nacional política que
sirvo de tela em branco, onde as pessoas de diferentes diretrizes políticas projetam
suas próprias visões”. O que ele escreveria agora? Parece improvável que Barack

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Obama pudesse imaginar as extremas suspeitas e projeções que enfrentaria em 2012,


depois de 4 anos como presidente.
O sociólogo Todd Giltan escreveu durante a disputa de Obama à presidência:
“Sem dúvida esta corrida é eletrizante e tensa. A América está lutando para imprimir
um nome em sua alma”. Eu afirmaria que a presidência de Obama tem sido do mesmo
modo eletrizante e tensa, porque tê-lo na Casa Branca, um líder ferido com um com-
plexo de identidade, nos dá a oportunidade não apenas de projetar a questão “Quem
é ele?”, mas também refletir sobre a questão “Quem somos nós?”. Esta não é mais a
América de Martin Luther King, mas se esta é a América de Barack Obama e nós não
sabemos quem ele é, então nós podemos saber quem nós somos? Ele poderia nos
guiar através de nosso profundo complexo com nossa identidade coletiva? Gitlan
disse então: “Obama é o novo garoto do quarteirão, o filho de imigrantes, o recruta,
fervoroso, mas sobrenaturalmente calmo, carregando um futuro complicado que ainda
não conseguimos mapear, deixe ele experienciar sozinho. Ele é impuro – o típico jeito
de andar e falar das misturas étnicas. Em sua pessoa, a América do futuro está sendo
moldada”.
Eu admitirei que estava muito esperançosa quando ele se tornou presidente,
que veríamos a nova América, experienciaríamos a próxima América, mas até agora
não vejo qualquer evidência de que estejamos mais unidos, de fato podemos estar
mais divididos. Ninguém gosta deste homem que está disputando a presidência com
Obama, Mitt Romney, mas ele tem grande chance de ganhar a corrida presidencial
este ano, porque muitos não gostam ou não confiam em Obama.
É muito cedo para saber que efeitos sua liderança ainda terá e muito dependerá
da próxima eleição, se teremos mais 4 anos com ele na presidência. A chance para
Obama e o país para trabalhar certa medida de seu complexo de identidade é certa-
mente ainda uma possibilidade psicológica, porém não a probabilidade que nós todos
esperávamos. Esta história ainda está se revelando e não é claro se nós podemos, se
trabalharemos uma pequena porção de nosso complexo de identidade como uma
nação sob a liderança deste homem, que conhece primariamente as feridas de um
complexo pessoal de identidade, do mesmo modo que trabalhamos uma significativa

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parte de nosso complexo coletivo de culpa há 50 anos atrás, sob a liderança de um


homem que conhecia primariamente as feridas de seu complexo pessoal de culpa. A
possibilidade psicológica existe para os Estados Unidos da América, de cultivar o con-
teúdo de seu caráter através de uma relação mais consciente com o conteúdo de seus
complexos, e aqueles líderes feridos que este país escolhe para carregá-los.

Tradução: Camilo Ghorayeb

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