Histórias Partidas - Mulheres, Violencia e Trauma

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Salvador, 23/04-2019

Uma data de começo – 23 de abril de 2019. Dia de S Jorge a quem peço amparo para enfrentar
as horas à frente e o tema que trabalho há tempos. Não é de agora. O enfrentamento é longo e
dissimulado. Violência doméstica contra as mulheres. Como começou? Pelo desejo. Desejo de
reencontrar uma amiga perdida no tempo que revelou, em constantes conversas à distância,
dolorosos abusos na infância. Aos nove anos. E o trauma que ficou. Trauma que não era
reconhecido como trauma. E permaneceu como escolha (?) de vida pelo sexo violento,
destruidor, pela cocaína, pelo álcool, pela dor dissimulada em ponta de faca pronta para se ferir.
Fiquei abalada como se eu mesma fosse a abusada. Impossível não lembrar, e lembrar não diz
quase nada, da imagem da jovem linda mulher que conheci aos 15, 17 anos? E lá já havia o
enfrentamento dissimulado da violência. Só vi a jovem linda amorosa com belos olhos grandes
e um futuro largo adiante. O que conseguimos ver de fato dos nossos encontros? Meu abalo foi
brutal. Ouvir aqueles relatos que revelavam muito além do que diziam as falas corriqueiras
sobre amores, família, trabalho, vida que passou, filhos que existiam, vontades, verdades,
mentiras, muitas mentiras... fábulas. Vi de frente uma mulher destroçada. Com uma energia
exuberante para a autodestruição. Mas quem sou eu para dar conta disso? Tentei também
fabular, emendando a minha história na dela, como se houvesse um enredo possível. Depois de
um tempo a fábula esvaneceu e me deparei com uma imagem mais realista e dolorosa da que
tinha antes. Mas também com mais aceitação pelos destinos possíveis. Alguma generosidade
sobreviveu. E talvez essa generosidade me fez cavar ali naquela terra arrasada, para outro lugar
que não mais dizia respeito a meu enredo individual. Cavei onde pude e encontrei mais
mulheres abusadas, muitas mais. Estes são os seus relatos e os meus entrelaçados, durante todo
o ano de 2017.

O ano de 2017 foi só um marco para começar a enfrentar o tema da violência contra as
mulheres. Mas de fato, além do (re)encontro com a amiga perdida no tempo, eu mesma, já,
desde a infância, também existo nesse enfrentamento dissimulado com a violência. E comigo
sempre foi o enfrentamento com o masculino, com o que ele representou como limite e
imposição a um feminino que para existir e ser legitimado, precisava estar indexado a ele. O que
comer, o que vestir, como ser, se comportar... o processo educativo de ser mulher no mundo,
filtrado pelo pertencimento a uma família, a um local, um tempo X, passou comigo por uma
violência simbólica que teve a presença de um pai como horizonte dessa lei em que o homem
dita as regras e só nos resta seguir ou rebelar-nos, com todas as ambiguidades dessa relação no
tempo. Na maioria das vezes essas regras e comportamentos são assegurados pela voz da mãe,
que aplica essa lei como norma a qual ela também está indexada e legitima como natural e
eterna, fazendo essa roda girar e girar como um destino sem fim. É claro que todos, homens e
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mulheres, passam por uma violência simbólica para se adequar aos papeis sociais. Mas o papel
social da mulher é muito restrito, muito determinado pelo olhar do homem, pela lei masculina,
pelo desejo do masculino, enfim, essa indexação desigual nos define. É claro também que meu
destino foi o de ser rebelde, e, lembro com um certo horror, como fui levada desde cedo a
psicólogos e psiquiatras que, na época, meados dos anos 70, viam nessa inadequação algum mal
maior, talvez um estupro esquecido, traumático, que poderia ser a causa dessa rebeldia a essa lei
não escrita mas que determinava minha existência. De fato, foi um estupro. Um estupro diverso
daquele de quem é violentada sexualmente por um homem. Esse não existiu. Mas sim a luta
continua com essa lei não dita que modelou meu rosto, corpo e mente com uma violência feroz.
E as marcas dessa luta sobrevivem como traumas, feridas, cicatrizes, em um corpo
desobediente, que hora incha hora vaza, buscando encontrar seu próprio rosto, tom e voz. Todas
as mulheres carregam traumas.

E na história dos traumas ficamos sem saber o que dizer em linha reta, balbuciamos discursos
fragmentados, que hora vem e vão como um sonho ruim, mas que também nos determinam
porque não conseguimos esquecer nem lembrar a história inteira. A identidade construída pelo
trauma é como uma voz que não anda em linha reta, um tartamudeio assaltado as vezes por
imagens, sons, vozes, cheiros que vêm de outro lugar, outro tempo... É preciso inventar uma
história plausível entre os buracos da memoria. E também uma identidade estável, como prêmio
pela costura atravessada pelas histórias desses tantos personagens desconexos. Minha
descoberta ou aposta é que essa estabilidade é sempre precária, seja porque vivemos sobre um
solo instável, seja porque as máscaras sempre caem pelos caminhos. Talvez esses traumas
atravessem a vida inteira das mulheres que se rebelam e também daquelas que foram
violentadas, não sei. E me pergunto se essa passagem pelo trauma é uma saída para construir
outra identidade feminina nesse mundo. Será possível supor que essa passagem pelo trauma
pode resultar em descoberta e invenção? Apesar de dolorosa, porque rima mais uma vez amor e
dor, essa é a aposta positiva que faço eu mesma e constato e torço pelas muitas mulheres que
por aí também passaram e passam.

Inventando um método ...

Quando saí do meu dia a dia de aulas na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB),
em fevereiro de 2017, para começar meu período de pós doutorado no Programa Avançado de
Cultura Contemporânea (PACC/ UFRJ), sob supervisão da muito querida professora e amiga
Heloisa Buarque de Hollanda, comecei a fazer contato com outra amiga querida, Greice Maria
de Souza Menezes, pesquisadora do MUSA/ISC/UFBa., que trabalha com o tema de mulheres
há bastante tempo. A partir dela conheci Francisca Eleonora Schiavo, também pesquisadora do

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MUSA, que me colocou em contato com várias pessoas, entidades e coletivos em Salvador que,
de diferentes formas, trabalhavam em uma rede ampla de enfrentamento a violência contra a
mulher.

O primeiro contato foi com o Grupo de Trabalho (GT) da Rede de Enfrentamento a Violência
contra a Mulher, que reúne homens e mulheres ligados a órgãos estaduais e municipais da
cidade Salvador/ BA e coletivos em comunidades populares. Comecei conversando com os
organizadores, apresentando o projeto e frequentando as reuniões mensais e conhecendo todos
eles. Através da Rede abri diálogo com o Centro de Referência de Atenção à Mulher Loreta
Valadares, ligado a Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude, com
o Projeto GEDEM- em defesa das Mulheres, ligado ao Ministério Publico do Estado da Bahia, e
também com o Projeto Viver (Serviço de Atenção a Pessoas em Situação de Violência Sexual)
da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS) do Estado da
Bahia. Cada um desses centros tinha uma dinâmica própria de trabalho com mulheres que
sofreram algum tipo de violência doméstica. As equipes, em geral eram compostas de
assistentes sociais e psicólogos, que faziam o acolhimento e acompanhamento dessas mulheres.
Os dois primeiros, na época, tinham reuniões semanais, que consistiam em rodas de conversa,
dirigidas por uma ou mais psicólogas e/ou assistentes sociais, que acompanhavam as falas das
mulheres pelas difíceis histórias de violência que passou cada uma delas, criando um território
de empatia, reconhecimento e reflexão entre e para todas. Me apresentei a cada um dos grupos e
ao projeto que propunha reunir aqueles relatos e produzir um texto que contasse a história delas
com o compromisso de resgatar a voz e a singularidade dessas vozes. E que difícil tarefa essa
que me propus. As mulheres vinham dos mais diversos contextos e histórias. Brancas, negras,
novinhas ou mais velhas, de classes populares, baixa renda ou mais abastadas, unidas ali pelo
enredo da violência doméstica. Era surpreendente perceber como as diferenças se
transformavam logo em reconhecimento e empatia como se o pano de fundo da violência
terminasse por nivelar elas todas. Mas era engraçado como o singular de cada voz aparecia. Para
mim foi uma surpresa e emoção perceber essas vozes; a forma de falar, de juntar os pedaços de
cada história, os ritmos, as pausas. Pura literatura. O espaço para se ouvir e ouvir as outras
produzia essa reverberação, esse aumento de volume que tornava audíveis e límpidas aquelas
vozes singulares. Uma espécie de amalgama unia todas nós ali naquele espaço. Sempre saia das
reuniões agradecida por ter sido aceita e compartilhar aquelas histórias e aquele vínculo com
elas.

O Projeto Viver passou por um período de reorganização nesse ano de 2017. Toda a equipe foi
trocada e com isso as rodas de conversa foram suspensas durante todo esse ano. Mas o diálogo
lá também foi produtivo, com uma dinâmica um pouco diversa com as mulheres que sofreram

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violência sexual e eram lá acolhidas. Primeiro fiz contato com a Coordenadora do Projeto, na
época Dayse Dantas, tomando conhecimento do funcionamento, história e dinâmicas do Viver.
Após a contratação de novas psicólogas e assistentes sociais, comecei a ter contato direto com a
terapeuta Potira Rocha, e através da sua indicação da sua indicação, fui entrando em contato
com algumas mulheres que se dispuseram a participar. Meu trabalho foi apresentar minha
proposta de trabalho e pedir permissão para a realização de entrevistas individuais com elas.

O trabalho de entrevistas individuais foi realizado em todos os centros de acolhimento. As


entrevistas eram gravadas e não tinham um roteiro pré-definido de perguntas ou questões. Em
geral eram realizadas nos locais de reunião dos projetos de acolhimento em horários pré-
marcados, antes ou depois das rodas de conversa, no caso do Loretta e do Gedem, e no Viver,
próximos aos encontros das terapias individuais. No Gedem, as rodas de conversas eram
coordenadas pela psicóloga Carmefran Viana Araujo Teixeira, que dirigia um grupo de
psicólogas e assistentes sociais. Acompanhei a dinâmica do grupo desde o início do processo
neste ano de 2017, participando de cada encontro ativamente. Antes de participar discuti o
projeto com a Carmefran e também com a Dra Lívia Maria Santana e Sant’Anna Vaz,
Promotora do Ministério Publico da Bahia e Coordenadora do Gedem. Sinal verde para
prosseguir.

As entrevistas individuais se deram após um longo processo de interação com o grupo, com
permissão consciente e voluntária de todas que participaram. Também optaram por ter o nome
divulgado ao final de cada relato. Após as entrevistas e o fechamento dos grupos no final de
2017, comecei a transcrição do material gravado. Eram mais de trinta entrevistas individuais e
umas dez gravações de alguns encontros. Fiz foco nas entrevistas individuais e, depois do
material transcrito, comecei a leitura de cada relato. Cada um deles seguia mais ou menos uma
linha de tempo e tinha como foco identificar eventos violentos que as trouxeram até ali. Precisei
de tempo para, a partir do material, identificar o caminho a seguir.

A Criação do Texto...

A primeira questão foi como me relacionar com os relatos. O tempo entre a escuta, as primeiras
percepções sobre o material e o trabalho com as transcrições foi longo. As histórias me
encantavam. Ouvia uma voz tão singular em cada uma delas que me surpreendia com a
desimportância da provável ausência de uma educação formal para muitas. Os relatos ou seus
fragmentos tinham a força de me tocar profundamente. Isso pelo que diziam, e também pela
forma como eram ditos. As sínteses das frases faladas eram precisas na forma de dizer e em
como atingiam quem ouvia ou lia. Pela verdade, pela emoção e porque apontavam para uma voz

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subjetiva naquele discurso tão traumático, tão violento, que seria mais fácil supor que nada mais
ali existia ou sobreviveria. Mas as vozes contradiziam essa logica. Elas existiam e a única
forma de me relacionar com elas era como outra voz, outra subjetividade. Nunca houve
nenhuma relação hierárquica nesses espaços e nessa troca. E a minha promessa era traduzir
essas vozes em relatos, narrações. A princípio, como estava completamente implicada no tema
da violência contra mulheres, pelo que já contei no início do texto, pensei que meu trabalho
seria produzir uma autoficção. Mas não conseguia me convencer de estar implicada a ponto de
não mais haver diferença entre minha voz como narradora e as vozes das mulheres com quem
dialogava. A possibilidade de propor um artificio onde os relatos individuais poderiam assumir
os papeis de personagens, não me atraia. Achava artificial e não me seduzia a ideia de rechear o
conteúdo com histórias outras, não referidas pelas donas dos relatos. Em algum momento ficou
claro que não era uma literatura do eu que perseguia. Talvez uma literatura do nós. Silviano
Santiago chega a um texto híbrido 1 ao pensar a autoficção como duas formas que se
contaminam; a autobiografia contamina a ficção e vice-versa. E sublinha, que só ao leitor cabe a
tarefa da leitura, deixando para trás toda a querela do gênero como garantia da inteligibilidade
do texto.

E a ideia do híbrido me seduziu. Ela me deu espaço na busca pelo caminho do texto.
Nessa busca encontrei “Vozes de Tchernóbil”, de Svetlana Aleksiévitch. Para ser sincera
encontrei os textos dela antes. Minha querida Heloisa havia me apontado logo no início do
trabalho, que os textos dela eram a chave da minha procura. Comprei os livros e li primeiro “A
Guerra não tem rosto de Mulher”. Não conseguia achar a chave. Continuei com “Vozes de
Tchernóbil” e larguei o texto várias vezes. Até que, em uma das releituras, ouvi a voz de quem
estava por trás daqueles relatos. Notei também que ela usava o artificio de narrar em primeira
pessoa uma narrativa assinada pelo dono da voz. Então entendi que aquela também era uma
narrativa hibrida, entre a literatura de testemunho, a reportagem, a narrativa histórica e muitos
outros gêneros literários. Depois de um tempo já nessa trilha, chegou a mim essa fala da
Svetlana Aleksiévitch sobre seu trabalho literário:

“É assim que eu ouço e vejo o mundo – como um coro de vozes individuais e como uma
colagem de detalhes do dia a dia. É assim que meus olhos e ouvidos funcionam. Desta forma,

1
SANTIAGO, Silviano. Meditação sobre o ofício de criar. Aletria: Revista de Estudos de Literatura,
[S.l.], v. 18, p. 173-179, dez. 2008. ISSN 2317-2096. Disponível em:
<http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/1450/1546>. Acesso em: 05 nov.
2019. doi:http://dx.doi.org/10.17851/2317-2096.18.2.173-179.

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minha mente e emoção chegam ao seu potencial máximo. Dessa maneira eu posso ser, ao
mesmo tempo, escritora, repórter, socióloga, psicóloga e pregadora 2.”

E isso confirmava mais uma vez que havia escolhido o bom caminho. Quando essas
ressonâncias começaram a aparecer, intuição e razão estavam juntas. Mais uma semelhança com
o método ou modelo de texto da Aleksiévitch, eram os testemunhos de sobreviventes de
catástrofes, guerras ou acontecimentos traumáticos. Os relatos remetiam a acontecimentos
vividos, experiências sempre dolorosas e com características próximas as das mulheres que
entrevistei, por também terem vivido traumas violentos.

A vivência de traumas violentos tem relação direta com a dificuldade de simbolização, a


fragmentação cognitiva, o esquecimento ou a lembrança de fragmentos desconexos da violência
sofrida. Cathy Caruth transcreve a definição de Freud de trauma como “uma experiência que
traz a mente, em um curto período de tempo, um aumento de estímulo grande demais para ser
absorvido”. (Caruth: 1996; 91-112). São lembranças que aparecem em um tempo complexo que
envolve passado e presente em atos, obsessivos, repetitivos e inconscientes. Ainda segundo
Caruth a característica essencial do trauma é o adiamento ou a incompletude do que se sabe. O
sobrevivente de uma experiência traumática é sempre assaltado pelo passado que retorna e que
ele não apreende completamente.

O testemunho é uma forma de acesso a essas memórias traumáticas. Memórias que não se
deixam capturar pela possibilidade de encadeamento narrativo, porque existem nos fragmentos
e nas falhas do terreno mental. A possibilidade de narrar o trauma através do narrativização do
testemunho é um desafio de estabelecer pontes com “os outros”, com o mundo. Para Shoshana
Felman3, o testemunho é um ato de fala performático. Ele quebra a barreira do silêncio e da
fragmentação da memória, e retoma a possibilidade de simbolização do acontecimento
traumático. Por isto talvez a voz seja o elemento que diferencie essa literatura, que para a autora
é o discurso literário por excelência dos tempos atuais. Literatura que é um registro histórico,
clínico e de linguagem ao mesmo tempo. Todas as formas de registros condensadas em
testemunhos de vida, singulares e ao mesmo tempo coletivos, pela capacidade de remeter ou
recuperar memorias que transcendem em muito um único individuo. As memórias traumáticas,
sejam de eventos históricos, de guerra, ou aparentemente individuais, pelo seu caráter de

2
Revista TAG. As Últimas Testemunhas. Junho, 2018.
https://issuu.com/taglivros/docs/tag_revistajulho_issu?
issuu_product=header&issuu_subproduct=document_page&issuu_context=signin&issuu_cta=log_up
3
Felman, Shoshana. Educação e Crise ou as Vicissitudes de Ensinar. in Nestrovsky, Arthur;
Seligmann-Silva (orgs). Catástrofe e Representação. São Paulo, Escuta, 2000

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repetição inconsciente, contaminam e resvalam por gerações. Os exemplos de apartheid na


Alemanha Ocidental e Oriental atuais, apesar da queda do muro de Berlim há trinta anos atrás,
são exemplos de como persiste na ruptura traumática, a repetição de eventos que permanecem
na mente coletiva e também dos indivíduos por gerações.

Nas narrativas que seguem de mulheres que sofreram vários tipos de violência, ferimentos no
corpo e na alma, constato também essa repetição inconsciente, efeito dos traumas que persistem.
São gerações de mulheres abusadas, famílias inteiras que repetem acontecimentos violentos
também por gerações.

Optei por escolher sete testemunhos de mulheres que acompanhei durante o ano de 2017 e
narrar suas histórias. As narrativas falam por si. Elas apontam para questões históricas da cidade
de Salvador que perpassam gerações como a exclusão social, a violência camuflada e silenciada
por gerações de mulheres negras, os traumas da violência sexual vividos por famílias de
mulheres, por gerações de mulheres. A construção das narrativas seguiu o modelo da Svetlana
Aleksiévitch, com narração em primeira pessoa assinada pelas mulheres e seus testemunhos. O
trabalho de narrar foi o de encontrar pontes entre os vários fragmentos, pontes sensíveis, que
produzissem relatos coesos e verdadeiros. Também nesse trabalho de construir coerência, fiquei
atenta para não disfarçar ou apagar as falhas, os acidentes cognitivos e da memória, que revelam
muito mais do que a coerência sozinha. Por fim, esses são relatos ou narrativas de guerra. Uma
guerra não dita de violência sistemática contra mulheres. São como uma forma de epidemia,
uma doença social e psíquica que permite que essa realidade aconteça, seja possível. Na
construção das narrativas conclui que elas desenham uma espécie de mapa espacial e sensível,
um mapa de dor, mas que também traça um itinerário, uma cartografia que pode e deve ser
revelada e reescrita. Essa é a aposta.

A aposta também é na composição de narrativas individuais. De relatos singulares que ao fim


apontam para o coletivo, e rompe a sina dos fragmentos. Recuperam a voz. Seguem as
narrativas, sublinhadas pelo que disse a autora de Passagens da Memória, sobrevivente dos
campos de concentração; “mesmo cada cachorro é único”4.

4
Klüger, R. (1994). Weiter leben. Eine Jugend. Frankfurt/M.: DTV. in, Narrar o Trauma – a questão
dos testemunhos de catástrofes históricas. http://www.scielo.br/pdf/pc/v20n1/05

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Tem gente que pensa que criança não lembra? Lembra sim ...

Minha mãe viveu pouco com o meu pai e o pouco que a gente viveu com ele era ruim. Foram
uns quatro anos mais ou menos. Ele era muito bravo e lembro que quando estava em casa, eu
tinha medo. Ele brigava muito com minha mãe, ameaçava, dizia que ia matar, bater. Um dia
descemos pela garagem e saímos, eu, minha mãe e minhas irmãs. Perguntei; ... “Mãe, a gente
vai pra onde? Não vamos voltar mais, mãe?”. Ela disse... “Vamos para casa de sua avó e não
voltamos mais aqui”. Ele gritava muito, sempre. Ela não aguentava mais e dizia “meu Deus,
não quero mais viver nesse inferno não, tenho que ir embora”. Depois que ela se separou só
voltou pra pegar as roupas. Ela não quis nada, nada, nada... Disse; “Não vou brigar por nada,
para que vou brigar? Só levo minhas roupas e as roupas das minhas filhas”. E eu aqui comigo:
“tem gente que pensa que criança não lembra? Lembra sim...”. Que bom que é ter mãe viva!

Hoje, com 42 anos, vejo como meu ex marido também era violento, e é ainda. Se acha mais
poderoso que qualquer homem. Parece que tem o cão no corpo. Se íamos em uma festa e tinha
uma confusão qualquer ele entrava na briga e eu ia junto. Era meio maluquinha na época e
achava que aquilo era porque a gente dava certo. Mas depois vi que aquilo não era nada.
Quando ele queria bater ele batia e tinha dia que eu aceitava a porrada calada. Mas em outros
dias eu partia para cima dele. Acho que a maioria dos homens batem por nada. No meu caso, ele
chegava, encontrava tudo prontinho, eu trabalhava, ele trabalhava. No relato das meninas a
estabilidade delas era o marido e achavam que a maioria dos homens ruins delas era por isso.
Elas não trabalhavam, dependiam deles para tudo. Eu nunca dependi do meu ex marido para
nada.

Nos conhecemos na adolescência, no mesmo bairro. Ele foi meu primeiro namorado, mas
depois acabamos e tive um filho com outro rapaz. Depois de um tempo voltamos, casamos,
fomos morar juntos e eu já com esse meu primeiro filho que não era dele. Um dia ele me bateu
para impedir que eu fosse ao aniversário do meu primeiro filho. Me deu um soco e fiquei com o
olho roxo. Como fazer para trabalhar no outro dia? Quando cheguei no trabalho falei que fui
assaltada. E nessa loja em que eu trabalhava todo mundo perguntava: “Onde você foi
assaltada? Foi ladrão”? Vamos lá descobrir quem foi...”.

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Depois ele vinha ... “Me perdoe, não sei o que deu em mim”. E eu dizia; “...um dia isso tudo
vai acabar, um dia vai ter um fim. Estou aguentando, aguentando, mas no dia que eu sair, você
vai ver. No dia que der a primeira queixa sua, não vou mais querer saber de você”. Me lembro
que dei a primeira e voltei. Depois dei a segunda e acabou. O que adianta você dar queixa do
agressor e conviver com ele? Fiquei dois anos sozinha. Quando me mudei para uma outra casa,
mais abaixo da nossa, ele me ajudou na mudança. Depois minha geladeira quebrou, ele soube,
foi lá e comprou uma geladeira nova bem cara. Falei; ... “Rapaz, tá querendo me comprar com
uma geladeira? Não estou lhe pedindo nada”. E ele, “não, essa é presente de aniversário ...”.
Depois ... “Ah, tá tarde, posso dormir aqui?” e foi ficando dizendo... “Não, você vai ver, eu
mudei, eu mudei...”. Não mudou. Ficou 1 mês, 2, 3, 4, 5, 6 meses quando chegou o sétimo mês
começou tudo de novo.

As agressões continuaram. Era bebida e mulher. A mãe dele sempre falou que ele era
mulherengo igual ao pai. Um dia a namorada do meu filho mais velho contou que ele chorou,
chorou tanto parecendo uma criança, dizendo; “...isso um dia vai acabar, meu pai nunca mais
vai bater na mãe... ele vai ver o que vai acontecer com ele... nunca mais vai bater em mulher
nenhuma”. E cumpriu. Aquilo me doeu tanto, tanto. Porque é um absurdo um filho bater no
pai. A gente sabe que aquilo está errado, mas a gente vai deixando, “amanhã melhora”, aí outro
dia, “amanhã melhora”, e aquela melhora nunca vem e você só perde. Falei para ele; ... “rapaz,
eu perdi 20 anos de minha vida do seu lado. A gente não construiu nada”.

Um dia minha mãe perguntou para ele; “... Você pagou quanto por minha filha? Porque ela
não é sua propriedade, você age como se ela fosse sua propriedade e ela não é sua
propriedade. Você me pagou alguma coisa por ela?...”. Venho de uma família de mulheres
guerreiras. Minha avó era do interior, de uma cidade pequena chamada Terra Dura, perto de
Feira de Santana. Ela criou os filhos e ajudou nossa mãe a nos criar. Carregava cesto de
mercadorias na feira para se sustentar e a família. Minha mãe conta que ela teve dois maridos.
Era pequena mas muito bonita, chamava muito a atenção. E sofreu muito. Acabou vindo morar
em Salvador muito moça, porque foi estuprada pelo cunhado, irmão do meu avô. Saiu de lá
deixando tudo para trás, casa, terras, tudo. Há pouco tempo descobri na carteira de identidade de
minha mãe que o nome do pai era ignorado, não tem nome nenhum. Ela contou que veio a
conhecer o pai quando ele estava de câncer em um hospital na cidade. A vida toda ela não
falava o nome desse homem. Tinha muito ódio dele. Mas no fim da vida dele acabou
perdoando.

O avô que eu conheci era o pai da minha tia, irmã da minha mãe. Ele viveu com minha avó e até
pouco tempo pensava que ele era meu avô, mas elas eram filhas da mesma mãe de pais

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diferentes. Todas essas histórias ficavam escondidas. Os irmãos tinham combinado que
ninguém comentava nada sobre isso. E assim foi, até bem pouco tempo. Acho que isso vem
desde a escravidão. E continua velado, escondido até hoje. Nas conversas no grupo as meninas
falam sempre dos estupros dos próprios maridos. Porque marido também estupra. E essa história
ninguém conta.

Andrea Queirós França

É assim; estou bem, mas triste. As vezes a gente está bem, assim, por fora, mas, o
coração ...

Me chamo Maria de Lurdes, tenho 42 anos e morei em convento desde os quinze dias de
nascida até os quatorze anos. Minha vida foi sempre de regras. Regras para cortar, regras para
tomar banho, regras para comer. Se batesse o sino e não estivesse na mesa até dez minutos
depois, ficava sem o café. Mas foi bom, porque aprendi a ser responsável. O convento ficava na
Casa da Misericórdia, em frente a Ladeira da Independência... um portão enorme. Era um
convento de freiras. Minha mãe não tinha condições financeiras. Eu e minhas três irmãs, ela foi
deixando lá. Eu era a mais velha.

Desde pequena sempre fui deprimida, sempre me senti um pintinho, um patinho feio. Minha
mãe não era carinhosa. Não lembro de alguém ter enxugado minhas lágrimas quando era
pequena. Não lembro de ninguém me abraçar ou dizer que gostava de mim. Na época tinha uma
música assim; ... “Nega preta do bozó, toma banho e não lava o pó, rala a bunda no cimento
pra ganhar 2.500 ...”. Me sentia ofendida. Fui muito judiada quando pequena.... “até minha
mãe me chamava de negona!”. A maioria das meninas que foram do meu convento têm
problemas de depressão... todas têm!

O convento acolhia meninos até os seis anos e meninas até os dezessete. Todo mundo tinha
obrigações que mudavam com o tempo. A que eu mais gostava era cuidar das crianças. Elas
gostavam de mim. Não tinha cor, não tinha feiura, não tinha nada, quando elas gostavam, elas
gostavam... Lá estudei, tomei curso de bordado e as freiras me tratavam bem. Algumas delas
percebiam meu isolamento e levavam para passear. Escolhiam as mais quietas e levavam para
passar o fim de semana fora do convento em um grupo que se chamava “cruzada infantil”. Eu
era muito isolada. Quando as pessoas iam ver as crianças para adotar, algumas diziam: ... “Ó
linda!” ... E eu ficava assim olhando, para ver se alguém me carregava porque eu não lembro

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de ninguém ter me carregado. Não lembro de minha mãe ter me carregado”. Uma mulher uma
vez tentou me adotar, fiquei uma semana em observação, mas não deu certo. Ela falou: ... “Não
pega esse cuscuz. Não sei o que foi que meu dedo disse: ... Tum, no bolo!”. Ela acabou me
agredindo. Minha mãe me tirou de lá. Qualquer coisa que via e não gostava, sempre dava um
jeito de me proteger. Ela não tinha condições, mas não me abandonou. Até hoje na televisão
vemos sempre os negros sendo deixados na fila de espera. As pessoas adotam mais crianças
claras.

Sempre fui uma pessoa só. Eu mesmo me matriculava na escola, resolvia minhas coisas,
procurava meu emprego... Até hoje não tenho uma amiga. Sou uma pessoa só. Um dia, quando
fui ao médico, encontrei um cidadão e fiquei com ele dez anos. Ele era mesmo que militar,
controlava tudo. Conheci, depois engravidei e fui tentando, tentando... Me separei duas vezes.
Ele dizia que ia melhorar. Tive uma filha com ele, Emily, que está com nove anos hoje. Ele é
louco por ela. Só tenho ela de filha. De homem ruim a gente só tem um filho e nunca mais. Eu
sou a rainha da paciência de ter ficado esse tempo todo com ele. Uma vez ficamos presas em
casa, eu e a Emily, dois dias seguidos. Ele levou a chave, meu celular, levou tudo. Ficamos sem
comunicação nenhuma. Nem no trabalho sabiam onde eu estava. Não gostava de perguntar nada
a ele. Mas acho que foi ciúme. Ciúme e bebida. Ele estava bebendo com um amigo e eu disse oi
para o rapaz. Foi o que bastou para ele me xingar de tudo quanto é nome e no outro dia sumir
levando a chave da casa. E eu não sou nenhuma Gisele Bündchen. Eu me sinto um lixo! Desde
pequena...

Em outra ocasião ele me agrediu com uma porta da casa. Suspendeu a porta e ia jogar na minha
direção, quando Emily falou; “... Deixa minha mãe aí... não faça isso com ela não. Venha meu
pai, vamos dormir, deixe minha mãe em paz”. Ela tinha uns cinco anos nessa época. Isso porque
ele queria dinheiro emprestado e eu disse que não tinha para dar. Ele ficou com raiva e me
agrediu. Me deixou em uma situação, que fiquei lá a noite toda, no mesmo lugar, não consegui
me levantar dali. E aquilo não podia continuar. Quando amanheceu, acordei, ele acordou ...
“bom dia” .... como se nada tivesse acontecido. Eu disse; ... “a partir de hoje você vai pra lá e
eu vou pra cá. Não vou fazer um arroz para você. Não vou fazer nada pra você”. Passou uns
dias e quando voltei para casa do trabalho ele tinha levado tudo meu. Móveis, sofá, geladeira, só
a televisão ele tinha comprado e levou também. Uma vizinha perguntou; “Lurdes, seu marido
está de mudança? Vocês se mudaram?”. E eu; ... “Não, não, ele me deixou e a menina”. E
então os vizinhos ajudaram, deram um colchão, comida e ficamos nesse sufoco até tudo ir se
estabilizando aos poucos. Os homens são assim, quando ele diz que não quer, a gente fica
chorando, mas quando a gente diz que não quer eles vêm atrás. Porque não gostam de ser
abandonados. É a mulher que tem que ser abandonada. Já são quatro anos separada. E ele fica

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querendo voltar. Já tem outra mulher e tudo. Mas diz que quer voltar. Tem dias que têm dez,
vinte ligações dele.

Nessa época eu trabalhava e fui ficando com depressão. Ele torturava minha cabeça. Um inferno
de marido. Ele é uma pessoa que só pensa em si, egoísta! Chegava do trabalho e se eu falava
qualquer coisa, ele: ... “Ah, começou!...”. Quando chegava da rua e eu estava assistindo
televisão ele ia lá e mudava o canal. Eu ficava calada. Eu ia pro Zap que adoro e ele; ... “Ah,
você só fica nesse negócio...” ... Eu revidava ... “Se falo alguma coisa levo patada, não posso
assistir TV. Você quer que eu faça o quê?”.

Ele deixava a família em risco. Creio que usa droga. Já encontrei um pó branco nas coisas dele.
Depois me disseram que era cocaína. Ele pega dinheiro com agiota e depois eles vêm me cobrar
porque não paga. Não ficava em trabalho nenhum! No máximo três a seis meses, e olhe lá!
Instável demais, perturbado, agitado! Ele não raciocina... faz as coisas sem pensar. Eu tinha que
pensar por mim e por ele. Ele gastava minhas energias. Era desgastante. Mas para ele não, era
confortável. Achava roupa lavada, camisa lavada. Saia e entrava quando queria. Era favorável
para ele. Eu não sou de briga, só achei desaforo pegar uma porta para me agredir. Já tentei me
suicidar duas vezes. Só não faço por causa de Emily, minha filha.

Emily adora o pai. Ela já disse que dá nota mil para ele e cem para mim. Mas não ligo. É porque
o pai dela não dá regra nenhuma. Só lazer, cinema, parque, praia... diversão! Na hora do dever
ele não existe. Está ausente. Na hora de colocar para dormir, para levar no médico no outro dia
quando está com ele, perde a hora. Ela está com déficit de atenção por conta da violência que
vivemos. Ela se metia muito nas confusões. Um dia, brigando com ele, falei que era usuário e
ela me chamou de mentirosa; “... você está mentindo, quer condenar meu pai...”. Ele não ajuda
em nada. Diz que está sem dinheiro. Daquele homem sei que não vai sair nada!

Disse a ela em outra ocasião; “...Emily, vamos em uma audiência. Você tem que falar tudo que
eles perguntarem. Tem que falar a verdade.”. Ela disse: ... “Se for para meu pai ser preso eu
não vou falar a verdade”. Era uma audiência de alienação parental, para não ficar nos
perseguindo. Não dá nada e fica botando ordem! Se vou na casa de minha cunhada, quer ir
atrás, se coloco no meu perfil do celular a foto de um homem bonito, manda tirar. Pega nossa
filha na escola sem eu saber. Disse a ela que o pai não seria preso, mas é difícil para ela.

Ela tem medo dele. Medo assim: ... “Minha mãe, diga que eu não quero ir para casa dele, mas
não diga que é porque eu não quero não. Diga que você não quer deixar”. Porque se sou eu
que estou mandando, ela não vai magoar o pai. Emily fica muito sozinha quando vai para casa

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dele. A mulher e ele saem para beber nos bares e ela tem medo. Eu jamais quero tirar ele dela,
porque ele é louco por ela. Eu quero respeito e que me deixe em paz.

Com tudo isso, trabalhei durante um bom tempo até ser encostada por problemas de depressão.
Sempre me sustentei e a minha filha. Trabalhava na Pane House, que produz e vende pão de
fôrma. Era para ser assistente de cozinha, mas como tinha jeito para a comunicação me
colocaram para atendimento ao publico. E os clientes gostavam de mim, me procuravam.
Ganhava tanto presente! Aí comecei a ficar esquecida dos pedidos que os clientes faziam.
Sugeria os recheios, os pães, mas na hora de montar esquecia. Também comecei a chorar sem
saber porque. Alguém perguntava: ... “Oi Lurdes, tudo bem?” ... e desandava a chorar sem
motivo. Foi por isso que saí de lá. Fui encostada pelo INSS. Outro dia tentei outra perícia, para
voltar ao trabalho, mas não consegui. Preciso continuar me tratando.

Sinto até hoje que as pessoas me olham pela cor. Me olham enviesado. Cansei de ser seguida
nas lojas onde fui comprar um brinco, um chip para celular e notar um funcionário atrás de
mim. Disse um dia a um deles que não estava ali para roubar não. Eles disfarçam, mas não tem
como não perceber. Cheguei a falar que estava bem acabadinha, mas não era ladra. Me olhei no
espelho e me achei tão feia, tão feia, que acabei desistindo de comprar. Mas é assim, muito
preconceito.

No fundo acho que aprendi muito. A vida ensina muitas coisas. Eu aprendi a amar, a ser
educada, sentimental.... aprendi a ser grata. Quando a gente sofre, aprende a ser sensível.

Maria de Lurdes Alves de Souza

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Essa menina me dá um pouco de medo, não sei lidar muito com ela...

Lembro que tinha oito anos e gostava de desfilar de biquíni. Era gordinha, tinha aquelas coxas
que chamavam a atenção, a barriguinha saliente e minha avó ria de mim. Vivia desfilando. Tive
uma prima que foi Miss Bahia e ficava imitando. Morávamos nessa época em frente a praia, na
cidade de Salvador. Nasci lá. Meu pai era engenheiro ferroviário, então nos mudávamos muito.
As meninas viviam de biquíni para lá e para cá. Certa vez meu pai recebeu algumas pessoas, eu
estava de maiô e levei um tapa assim nas costas, ... “vai botar uma roupa, não pode andar
assim” ... aquilo ali... eu fiquei! Não tinha visto que era uma maldade andar de maiô, até porque
a gente estava, né? Na praia.

Quando se é criança o que o outro diz sobre você vai moldando sua personalidade. Escutava
muito dos meus pais, quando criança, que gostava muito de questionar. Era muito corajosa.
Minha mãe me conta que aos dois anos, mais ou menos, disse para o meu pai: ... “Pai, sou besta
e sabida ao mesmo tempo”. E ele achou que aquela foi a maior ofensa que poderia ouvir. Se
sentiu desafiado. Eles diziam sempre que eu gostava de desafiar. A mãe dizia que eu adivinhava
o futuro porque de repente falava; ... “tira a roupa do varal que vai chover” ... e daqui a cinco
minutos caia a maior chuva. Ou então: ... “Mãe, faz mais comida porque o pai vai trazer gente
para jantar em casa”, e mais tarde chegavam ele e os convidados. Nessa época morávamos em
Caculé, no interior. Não tenho memórias dessas histórias, minha memorias mais antigas são de
cinco ou seis anos. Mas o que ficou foram as palavras: ... “essa menina me dá um pouco de
medo, não sei lidar muito com ela”, “essa menina é muito desafiadora, meio bruxa, meio

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assim”. Então eu aceitei esse papel. Como já ouvia isso desde criança, achava que tinha alguma
coisa errada comigo. Na minha cabeça eu já tinha aceitado o papel de rebelde.

Me chamo Andréa, tenho 36 anos, estou morando atualmente em Salvador, retornei por conta da
separação, dos abusos que sofri. Despois de muita violência fiz uma mala muito rapidamente e
estou aqui desde setembro de 2017.

Mas os abusos são antigos. Com mais ou menos oito anos, sofri meu primeiro abuso. Meu pai
recebeu um casal de amigos com filhas da minha idade e da minha irmã mais velha, entre oito e
dez anos. Somos três irmãs de sangue, contando comigo e dois irmãos adotados, uma menina e
um menino, o bendito fruto. Achava a família dos amigos do pai estranha. Todos entravam para
tomar banho brincando no banheiro, nós também, e eu nunca tinha visto nada da nudez
masculina. Nunca me imaginei entrando no banheiro com meu pai. Sentia um olhar diferente
desse amigo do meu pai, ficava constrangida de ficar com ele no mesmo espaço. O olhar é como
um imã, você percebe que está sendo olhado. E eu nem me achava bonita. Meio gordinha,
cabelos curtos, na minha percepção de oito anos minha irmã era muito mais bonita. Loira,
branca e eu sempre fazia o papel de menino nas festas de forró, por conta do cabelo curto.
Nunca me vi com esse poder todo. Eu simplesmente vivia como uma molequinha, brincando.

Um dia brincando no meu quarto com uma das filhas dele, pediu que me sentasse no seu colo e
fui, a contragosto. Mas sabe aquela educação que a gente sempre tem que dizer “amém” para os
adultos? Hoje não faço isso com minha filha; ... “se não quer beijar ninguém ou abraçar, eu
não obrigo, porque às vezes a criança manda sinais e você tem que ler o sinal”. Mas naquela
época criança não tinha vez. E ele falou; ... “você sabe como os artistas beijam? Deixa eu
mostrar como é beijo de televisão”, e me apalpou e me beijou. Saí de junto desse homem e fugi
dele como o diabo foge da cruz. Essa memória fica um pouco perdida, mas eu acho que ele fez
isso na frente da filha. Onde ele estava, na praia, qualquer lugar, ele encostava e eu fugia. Sabia
que tinha alguma coisa errada. E eles foram embora e nunca mais voltaram ou tiveram contato
com nossa família. Como meu pai tinha sinalizado que eu estava de maiô e era errado, achei que
tinha provocado aquilo. Olha a cabeça! ... que era culpada daquilo. Não contei para ninguém até
os dezesseis anos. E essa história meio que se apaga da minha memória e volta com força
depois, com dez, onze, doze anos, fase em que fiquei mais revoltada e tive problemas de
distúrbios alimentares por conta da aparência. Tinha medo de homem, tinha um medo terrível
de homem.

Depois disso quis ser freira. Com mais ou menos doze anos nos mudamos para Alagoinhas e
estudávamos no Santíssimo Sacramento. Via aquelas roupas das freiras e achava o máximo ser
freira. Até hoje quando vejo uma freira me emociono. Nessa época fiquei com muito medo de

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homem, de toque, de contato. De minhas amigas fui a que beijou mais tarde. E minha relação
com os homens nunca aconteceu de forma confiante. Depois de tudo que passei, se fosse freira
hoje, seria uma freira feminista.

Na época do meu pai, criança obedecia e pronto, não questionava. Acredito que por ter uma
personalidade diferente das minhas irmãs, ele me via como a ovelha negra da família. Gostei
tanto dessa expressão, que quando escutei a música da Rita Lee, achei que era para mim. Na
minha infância meu pai pegou muito pesado, foi muito cruel comigo. ... “Por que você não fica
calada?” e minhas irmãs calavam, por inteligência emocional ou sobrevivência, não
questionavam e eu não. Dizia; ..., “mas isso está errado, como assim? E paft, paft... Levava as
minhas bofetadinhas, minhas palmadinhas”. E vez ou outra era muito humilhada na frente dos
outros. Quando você retoma uma memória, às vezes distorce um pouco. E depois na
adolescência o que eu falava sempre colocava em dúvida, de forma muito insegura porque fui
perdendo a confiança. Quando criança era corajosa. Mas sempre o pessoal falando que isso é
ruim, isso é ruim e você acredita que você é ruim. Me sentia um pouco um saco de pancada.
Teve uma hora que me cansei das injustiças e tive um ataque de fúria. Fui para cima do meu
pai, dei uns tapas, sacudi ele e gritei; ... “para de ser tão injusto comigo...”. Atravessei a
fronteira... Por isso ele tem mágoa de mim.

Aos quinze anos o jogo mudou. Decidi, entre os quatorze e quinze anos que não queria ser mais
gordinha. Descobri que a comida para mim era um alimento emocional. Adolescente já tem
dificuldade de se aceitar. É uma época complicada. E então descobri que podia fazer jejum vinte
e quatro horas e só almoçar alguns dias da semana. Era a anorexia. Comia uma maçã e passava
o resto do dia sem comer nada, até esquecia de beber água. E assim fui perdendo peso, me
acostumando, acostumando, as pessoas elogiando... Todo mundo quer que você seja magra, mas
lhe estimulam a comer. Coisa doida! Teve um período que fiquei bem magra e acabei com um
problema sério de saúde. Todos achavam que ia morrer. O diagnostico era que o sistema
nervoso não suportou. Precisei tomar calmante e fui voltando aos poucos a comer. Minha
menstruação ficou desregulada. E aquilo me deu um medo! Minha mãe começou a falar em
suicídio – olha só! Suicídio! Aí as culpas... todas as culpas da infância fui colocando em mim; ...
“olha como eu sou má, estou querendo me matar... eu vou fazer isso com minha mãe???”. Fui
guardando todas as culpas comigo.

Hoje estou me policiando, ninguém imagina o quanto estou me policiando com esse negócio de
medo. Fui criada nesse medo e isso não me salvou de nada. Não me salvou dos abusos, não me
protegeu de nada, me deixou uma boba para me defender. E hoje entendo e tento entender o que
minha filha passa para não fazer isso porque é muito nocivo. Depois dessa fase da anorexia
entrei no efeito sanfona, engorda, emagrece. Mas sempre que tinha uma emergência, até pouco

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tempo atrás eu fazia isso ... “vamos passar 24 horas sem comer nada”. Está na moda agora
jejuar.

Quem me salvou foi minha avó, mãe da minha mãe. Com ela não precisava fingir. Me ensinou a
recitar e com oitenta anos publicou seu primeiro livro. Faleceu com noventa e hum anos, depois
de lançar seu segundo livro. Era de Caetité, terra de Anísio Teixeira e me passou o gosto pela
literatura. Escrevia cartões, costurava bonecas e fazíamos teatro juntas nos Natais em casa. Teve
dez filhos e viveu para eles. Ela falava; ... “Andréa, me ajude a escrever isso. Você é tão
inteligente, sabe escrever”. De repente me vi essa pessoa inteligente e capaz de fazer. Eu
achava aquilo o máximo e falava para ela... “vó, então eu tenho que casar virgem de branco?”.
Éramos amigas. Com ela entrei naquele universo do final do século XIX, conheci Jane Austen,
comecei a amar mais literatura, Agatha Christie e devorava livros. E comecei a gostar mesmo de
literatura e escrever.

Nos anos dois mil meu pai foi a falência e era época do vestibular, que acabei não fazendo por
falta de condições. Precisei trabalhar. Tomei coragem e fui para Salvador com um namorado.
Comecei a estudar para concurso, trabalhei em clínica, agência de modelo como produtora,
aprendi a viver, aprendi a pegar ônibus, a viver com salário curto no apartamento da minha tia e
gostei disso. Mas não queria fazer concurso para tribunal. Queria fazer literatura! Não tinha
seguido meu sonho ainda. Meu segundo abuso aconteceu com esse namorado. Ele era muito
ciumento e me traía sempre. Em uma festa que ajudei a organizar na agência de modelos que
trabalhava, teve uma crise de ciúmes com um modelo que estava me paquerando. Quando
chegamos em casa me deu um murro nas costas e me tomou a força. Ele me estuprou. Só fui
entender o que se passou há pouco tempo. Achava na época que tinha o direito de me tomar a
força, porque era meu namorado. Se já tinha perdido minha virgindade com ele, então podia.

Depois disso me mudei para Barreiras onde meus pais estavam morando, terminei com ele e
minha vida foi melhorando. Fiz teatro com uns professores da UFBa de Artes Cênicas que
deram um curso de extensão na cidade. Tive aula com pessoas incríveis que tenho contato até
hoje, pessoas maravilhosas. E o teatro foi me abrindo e tive coragem... “finalmente vou fazer
Letras”. Meu pai falou; ... “ah, você vai morrer de fome”. Fiz Letras, passei em Letras. Lá
mesmo em Barreiras. No primeiro semestre ganhei um prêmio internacional. Conheci um rapaz
russo pelo Messenger, me apaixonei e, por conta dos olhos dele que eram cinza, escrevi um
poema, Moscou e ganhei o segundo lugar desse concurso de poesia em Portugal. Em dois mil e
onze, com esse prêmio, ganhei 1500 euros. Meu pai ficou caladinho. O russo acabou indo fazer
um doutorado no México e lá se apaixonou por uma moça. Valeu pelo poema. O prêmio foi
muito bom para conseguir destaque na Universidade. Era a primeira vez que um aluno ganhava

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um prêmio como esse. Também tive acesso a dramaturgia, com Tchekhov no teatro e, a Rússia
começou a aparecer na minha vida.

Entrei no curso mais ou menos velha, com vinte e oito, vinte e nove anos. Fiz muita coisa com o
impulso da Universidade e desse prêmio. Comecei a ensinar, através de projetos com educação
e comunicação para a comunidade de Santa Cruz, em Ilhéus. Fizemos, eu e minhas irmãs, um
programa de rádio para falar sobre meio ambiente, ganhamos prêmios, levamos muita gente
importante para entrevistar, fizemos uma Eco Novela. Eu escrevia e nós mesmas atuávamos. No
interior foi ótimo para mim. Nesse momento de muita energia foi que conheci o abusador, o
terror que acabou sendo o pai da minha filha.

A história quando começou foi muito bonita, como um conto de fadas. Ele conhecia os editores
da TV onde estagiava e ia para Rússia, passar três meses a trabalho. Fomos apresentados e a
Rússia me fascinou outra vez. Estava indo para São Petersburgo, de lá para Omsk, na Sibéria e
depois para Bucareste, a terra do Conde Drácula, onde me pediu para namorar. Trocávamos
mensagens quase todo dia. Era vinte e dois anos mais velho, engenheiro agrônomo e professor
de espanhol, sua segunda língua. A escrita era nossa liga. Escrevíamos muito, ele gostava
também de literatura, arte, e a imaginação foi nossa cumplice nesse encontro à distância. Era um
homem viajado e pensei ter finalmente encontrado com quem pudesse conversar. Oh ilusão!
Quando voltou para Barreiras começamos a namorar e com dois meses me pediu em casamento.
Foi na casa de meus pais, meio a contragosto e com a aliança que trouxe da viagem, oficializou
o pedido. Mas na verdade não queria casar. Preferia que morássemos juntos. Como meus pais
eram contra, acabou aceitando para me agradar. Casei com três meses de grávida. Ele foi pegar
o resultado do exame e foi tudo muito bonito. Parecia romance de Sabrina.

Quando fomos ao cartório saí de lá querendo chorar. Estava indecisa, insegura e atrasei quarenta
minutos para a cerimônia. Pressenti que alguma tragédia estava para acontecer na minha vida.
Logo que saímos ele falou; ... “Agora você tem o que quer”. Já na semana do casamento
começou a ficar tudo horrível. Disse que não trocaria meu sobrenome pelo dele, que
retrucou; ..., “mas quem disse que eu ia dar meu sobrenome para você?”. Somente uma das
irmãs dele esteve presente. Os pais já eram mortos. O filho mais velho, que até então não sabia
que existia, começou a ter crises de ciúmes com a chegada de um irmão ou irmã. E não levei a
mala para morar na casa dele. Deixei na casa dos meus pais.

A casa era afastada, quase uma chácara e, quando chegamos nessa primeira noite, cada um foi
para um lado e mais tarde, na cama, ele me procurou para fazer sexo. Veio, se encostou,
tivemos relação e ele virou para o outro lado, nem boa noite, nem oi no outro dia. Ele me
ignorava todo o tempo. Foi assim a vida com ele. Minha vida mudou. Cuidava da casa, grávida

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perdi o estágio na TV, tentei dar aula em um cursinho que faliu e fiquei sem um tostão. A casa
era cheia de entulhos no quintal, mal cuidada, ninhos de rato nas gavetas e a empregada não
dava conta do serviço. Lá era tudo do jeito dele, a casa dele, os moveis, nunca pude opinar. E lá
era a casa dos homens, onde ele ia com amigos fazer churrasco, levar mulheres, beber. Tentei
fazer o papel da minha mãe e meu marido começou a desdizer tudo que eu falava. Se dizia que a
piscina era azul, ele dizia que não. Com tudo era assim. Comecei a achar que minha voz não
tinha mais valor. Como meu pai ele agora me invalidava.

Em uma noite, fiquei em casa sozinha. Ele saiu com um amigo, demorou, não deu sinal de vida,
e liguei para meu cunhado, peguei umas roupas e fui passar a noite na casa da minha mãe. No
outro dia pela manhã ele levou todas as minhas coisas para lá e me devolveu. Eu tinha muito
medo de ficar só, à noite, grávida, naquela casa. Era um lugar perigoso. Ficamos uns três meses
separados. Foi a primeira de muitas separações. Depois de um tempo começou a mandar
mensagens; ... “ah, mas estou arrependido de ter casado, você não é a mulher que eu pensava
que fosse”, e falei; ... “e você tampouco o homem que achava que fosse”. Começou a alegar
que estava comigo por pena porque perdi meu emprego. Foi passar uma temporada no Sul para
fazer exames. Quando as coisas estavam difíceis ele sempre arranjava a desculpa de estar
doente. Quando voltou de viagem me chamou para conversar. Eu estava me sentindo
pressionada por estar na casa de meus pais e ainda queria que desse certo. Voltamos.

Tudo continuou do mesmo jeito. Durante os dias me ignorava e a noite queria sexo. Foi um
arrependimento e fiquei por muito tempo fingindo felicidade. Perto do Natal, disse; “Vamos
viajar, você vai adorar passar o Natal no Sul comigo, vai ser ótimo”. Já estava com meus sete,
quase oito meses. Mas o relacionamento desde a volta tinha conexão zero. Foi diminuindo
drasticamente o contato emocional, físico... tudo. Na viagem para o Sul passamos primeiro em
Brasília e ficamos hospedados na casa de uma das irmãs dele, em um bairro nobre. A irmã me
ignorou, ele foi para o computador trabalhar e no outro dia foi a Goiânia, buscar o filho. Fiquei
no quarto sozinha quase todo o tempo, sem muita interação com a casa, a irmã. Seguimos para o
Sul e, chegando em Porto Alegre, o cunhado nos esperava para irmos a Xangrilá, litoral do Rio
Grande do Sul. Foi ótima a viagem e o cunhado dele foi amigável e gentil todo o percurso. Mas
chegando lá a mulher dele não me recebeu. Chamou todos para dentro da casa, o irmão, o filho
de Goiânia, o marido e me deixou lá fora. A filha do casal também me ignorou. Continuei a ser
maltratada e fui andar a esmo pela praia em frente. Chorei, chorei, até cansar. No outro dia a
irmã dele me tratou de forma agressiva e comecei a perder líquido. Estava me sentindo em um
filme de Fellini, total nonsense. Ninguém falava comigo e perguntei a meu marido; ... “você
percebeu como a sua irmã me trata?”. A resposta foi que eu não tinha dado tempo para ela me
tratar bem.

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Perdendo líquido e sem aguentar mais ser maltratada decidi ir embora. Liguei para minha mãe e
combinamos que eu pegaria um ônibus para Porto Alegre, eles me mandariam a passagem para
Brasília e iriam me pegar lá, de carro, para voltarmos juntos para Barreiras. Mais tarde chamei
meu marido no quarto, na frente do cunhado para ter testemunha e avisei que estava voltando.
Tentou me impedir, quis pegar minha carteira de identidade, mas fui firme e avisei que meus
parentes estavam sabendo. Meu pai ligou para ele depois e foi duro. Ele teve medo do meu pai
nessa ocasião. Quando estava indo embora, falou; ... “não, realmente minha irmã lhe tratou
mal, não tinha percebido” ..., mas não pediu desculpa. Foi comigo de ônibus para Porto Alegre.
Chegando lá peguei um taxi, fui para um hotel e ele ficou me ligando, mandando mensagem, ...
“vem passar o Natal aqui com a gente, a minha família, a minha irmã gostou de você, vem
conversar comigo”? E foi assim que passei o Natal sozinha e chorando. Mas ainda assim,
depois, fui visitá-lo na ilusão de que ele iria trocar as passagens e voltar comigo. Não acreditei
que deixaria a mulher grávida de quase oito meses viajar sozinha de avião, perdendo líquido.
Ele falou; ... “eu te acompanho no aeroporto, porque quero ver se consigo um desconto na
passagem que foi cancelada”.

No aeroporto tive que mentir que estava com seis meses para me deixarem viajar. O avião fez
escala em São Paulo, um sufoco, e eu querendo chorar a viagem toda. Chegando em Brasília, no
aeroporto, minha mãe estava lá, esperando. Era na época do aniversario dela. Fiquei
emocionada. Passamos o aniversario juntos, toda a família que também como eu tinha passado
um Natal triste, preocupados com minha situação. O aniversario foi maravilhoso e resgatei um
pouco o amor e acolhimento com minha família. Meu marido voltou das “férias” quase um mês
após minha saída de lá. Em 27 de janeiro minha filha nasceu e estávamos mais uma vez
separados.

Minha mãe fez um quarto para a neta na casa dela, onde moramos após a separação. Queria
tanto que a história da minha filha com o pai fosse diferente! Ele não teve conexão nenhuma
durante a gestação comigo e com ela, mas quando nasceu ficou muito emocionado, mudou da
água para o vinho. Tinha amor por ela, dedicação... brincava, conversava, tocava a filha com
tanto carinho. O problema era comigo. A vida toda ele quis muito ter uma menina e fui um meio
para realizar esse desejo. Ia visitar a filha sempre na casa de meus pais e isso começou a dar
problemas. Tratava meus pais de forma grosseira, como se não existissem. E meus pais se
ressentiam dos maus tratos que eu havia sofrido. Meu pai chegou a dizer: ... “se quiser ver sua
filha pode vir, mas não vá entrando dessa maneira”. Começaram os gritos e eu de resguardo
pensando que minha filha ia crescer sem o pai por perto. Acabei decidindo voltar para ele por
causa disso.

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Logo que voltei o João, o filho dele de 15 anos, foi morar conosco. Era um adolescente
problemático, morrendo de ciúmes, que não se relacionava muito com as pessoas. Era um
garoto meio sonso, que todo mundo achava bonzinho, mas que aprontava. Levantava as cinco
horas da manhã para acordar o filho. Era o tipo de pai que faz tudo, leva, pega, etc. E comigo
era um horror. Comecei a disputar atenção com o garoto, as coisas foram piorando e ele
começou a gritar comigo na frente do filho. O medo de ficar sozinha em casa voltou e agora
pior com a bebê pequena. O sexo era esporádico e depois da cesárea fiquei um pouco inchada.
Voltei a fazer dieta porque ele me olhava e dizia que parecia uma matrona. Quis muito
emagrecer para ser aceita de novo. Comecei a emagrecer muito, mas as coisas não mudaram.
Todas as decisões na casa eram dele. Levava a filha na médica, que ele mesmo escolhia e
conhecia previamente. Não me deixava falar nas consultas. Todos o achavam um homem
integro, honesto e bom. Eu estava totalmente destruída emocionalmente depois do nascimento
da nossa filha. Depois entendi que tive depressão pós-parto e não era para menos. Eu era aquela
pessoa que sempre estava triste, sempre com fobia social, sempre aquém. E ele sempre muito
alegre, conversando e carregando a filha. Percebo hoje claramente que existia um jogo social de
poder que ele fazia para que aparecesse como o bom na história. Uma encenação.

As pessoas perguntavam como estava o casamento e eu só sabia responder que ele era um ótimo
pai. Não podia dizer que brigava comigo, não olhava nos meus olhos, acordava e não dava bom
dia, e à noite, no escuro, todo mundo dormindo, encostava e queria sexo. Não podia dizer isso.
Enquanto algumas pessoas diziam que eu era inteligente, que produzia, fazia algumas coisas
bacanas, dele só sentia desprezo e era como se eu não existisse. Invisível!

Ele me disse em uma ocasião que se quisesse ir embora, podia, mas a filha era dele. Pensei
várias vezes em dar fim na minha vida e da minha filha, mas não tive coragem. Como me
permiti ficar em uma situação tão desconfortável? É ruim, é desconfortável e fui ficando. Por
quê? A gota d’água, uma delas, foi quando o filho, em uma briga minha com o pai dele, saiu
para defender o pai e me atacou. Me defendi e dei um tapa nele sem querer. Não machucou, mas
meu gesto me fez perceber que estava ultrapassando uma fronteira perigosa. Senti como se
estivesse ficando louca. O garoto foi para o quarto e ficou me esperando lá com um taco de
beisebol.

Dias antes já havia saído na rua sem destino. Morava bem longe e, fui parar andando a esmo na
casa dos meus pais. De volta à casa fui fazer terapia, mas ele não quis. Disse que a psicóloga
incentivava meu olhar crítico da relação. E eu naquele inferno! Minhas anotações da terapia
desconfiei depois que ele bisbilhotava. Durante nossas brigas reproduzia, as vezes com as
mesmas palavras, o que eu dizia para mim mesma no diário da terapia. Uma vez me bateu no
rosto, empurrou e senti que se saísse de casa naquele momento uma coisa pior podia acontecer.

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Me trancava em casa. Saía e levava a chave. Tive muito medo. Um dia que ele estava na
cozinha, vi que a porta da rua estava aberta. Peguei minha filha no colo e saí correndo para a
casa da vizinha. Saímos com a roupa do corpo, eu e minha filha. A vizinha chamou um taxi, fui
para a casa da minha mãe que não estava. Fui para casa da minha irmã e de lá para a delegacia.
Fizemos um boletim de ocorrência porque me disseram que ele poderia alegar abandono do lar.
Me separei oficialmente em dois mil e quatorze. Ele ia visitar a filha e começaram as
chantagens emocionais. Dizia que ia se matar. Meus pais viajaram e me deixaram só na casa
deles. A advogada alertou que eu não deveria ficar sozinha, precisava de um tempo para
assentar as ideias. E foi tudo rápido. Depois da queixa, a separação, assinamos o divorcio, braço
roxo, carência nas alturas. Fiquei só e, com a viagem dos meus pais, ele foi me buscar e eu fui.
Voltamos mais uma vez, a terceira agora. Dois dias depois já estava tudo na mesma. Minha mãe
quase teve um infarto e ficaram sem falar comigo por seis meses.

Dois mil e dezessete foi o ano mais violento da minha vida. As coisas não melhoraram. Cheguei
muito destruída nessa nova tentativa de retorno. Os cabelos caindo horrores, com medo ainda do
que estavam falando, se o que estava pensando era certo ou não. Só que nesse tempo terminei o
curso na universidade e um pouco depois recomecei a trabalhar. Voltar a trabalhar foi muito
importante para mim. Nessa época minha filha teve problemas de saúde e comecei a retirar o
véu da ilusão do pai perfeito. Ele não tinha paciência para fazer tarefa da escola com ela, gritava
muito e percebi que esse ambiente não fazia bem também para ela. O amor dele precisava de
plateia e perceber isso me fortaleceu. Minha filha começou a vomitar dormindo, e ele quis leva-
la para fazer exames no Sul já que o plano de saúde lá era melhor. Fomos. Chegando lá
começaram os insultos verbais. Ele me chamava de prostituta e em parte acho que era pelo meu
sucesso na Universidade e no trabalho. Ao mesmo tempo que perdia a crença em mim, por
conta das agressões, era uma pessoa que produzia, que as pessoas queriam trabalhar. Todo
mundo gostava das coisas que escrevia, consegui publicar um livro, ganhei concurso e fiz muita
coisa bacana.

Em visita a casa de um casal de amigos dele na viagem, começou a me agredir com ciúmes do
irmão da amiga dele. Dizia que minha roupa estava muito curta, que estava me exibindo. Já de
volta em casa, me jogou na cara uma cueca suja que estava na mala. Fui para cima dele e recebi
murros de volta. Muitos murros na cara. Nossa filha viu tudo e começou a bater nele também.
Foi o fim. Falei para ele; ... “Foi a última vez que você fez isso. Vou sair daqui agora, vou para
um hotel, acabou”. Liguei também dessa vez para minha mãe, pedindo socorro e ela falou:
“Não temos condições de te ajudar financeiramente para você sair daí agora. Se finja de
morta, que quando você chegar na Bahia, salvamos vocês”. Pensei um pouco e lembrei do que
ele falou quando ameacei ir para o hotel; ... “se você sair daqui alguém vai morrer”.

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Estávamos em uma cobertura, no decimo terceiro andar. Fui para sala chorar e no outro dia
segui o conselho de minha mãe. Agi como se nada tivesse acontecido.

Mas ao mesmo tempo mandei mensagens para o meu chefe, cuja mulher era uma feminista
ligada à política, fiz minha rede de apoio e contei: ... “gente, estou querendo sair de casa.
Todas as vezes que eu saio de casa meu marido me prende. Então vou precisar da ajuda de
vocês para sair de casa. Fui ameaçada de morte, ele me bateu na frente da nossa filha...”. Falei
para todo mundo... Sabia que estava tomando uma decisão sem volta e muito feliz de estar
tomando essa decisão. E na volta, quando cheguei em Barreiras, foi tudo como havíamos
planejado. Uma amiga foi lá em casa me ajudar a fazer as malas e ele ficou rodando como fera
acuada. Disse; ... “Você vai mesmo?” e eu falei, “vou”. E tem um policial já sabendo! Se
acontecer qualquer coisa comigo o pessoal vai entrar aqui. E ele; ... “você acha que vou
impedir? Você é livre”. E disse na despedida; ... “Nunca vou desistir de você. Pode passar
quatro, cinco anos, nunca vou desistir de você”. Não ouvi aquilo como amor. Era ameaça.

Quando entramos no ônibus de volta para Salvador, para a casa dos meus pais, minha filha
vomitou. Chegamos no outro dia e quando minha mãe olhou para mim não me reconheceu; ...
“Andréa, você envelheceu uns 20 anos nessa viagem!”. Foi uma viagem difícil, esses 15 dias no
Sul.

Foram muito difíceis os três primeiros meses de separação. Perdi minhas coisas e tive que
entender que precisava passar pelo luto. Fiquei muito reticente de passar pelo luto da relação.
Porque achava que como ele era o agressor, não merecia que eu fizesse luto. Entendi depois que
eram muitos lutos e eu estava neles todos. Quando consegui a medida protetiva, que impedia
qualquer contato ou aproximação dele, achei que foi a melhor coisa que aconteceu na minha
vida. Depois da pressão psicológica o outro acaba tendo um domínio sobre você, mesmo de
longe. E hoje vai fazer hum ano que tudo acabou. E me sinto muito forte agora. Quero dizer
para todo mundo que passa por isso que é muito difícil. No meu caso tive que começar do zero e
depender de novo de meus pais, largar para trás emprego, amigos, tudo. Agora sinto que minha
vida voltou. Como já disse antes, nossa memória gosta de pregar peças; ... “ah, não era tão
ruim assim, não era tão ruim... e é sempre bom a gente lembrar que era ruim mesmo”.

Andréa de Castro Duarte Moura

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Quero viver, superar essas situações e mostrar que sou gente, sou alguém e mereço
respeito...

Sou Maria Rita, tenho 59 anos e nasci em São Bento, pequeno município rural de Santo Amaro
da Purificação, no Recôncavo Baiano. Comecei a sofrer na barriga da minha mãe. Ela ficou
grávida do meu pai, um petroleiro que chamava muito a atenção das mocinhas na época. A
família toda se uniu para fazer o enxoval da noiva. Levou dois anos para ficar pronto. Quando
meu pai voltou de viagem a trabalho para marcar a data do casamento, veio acompanhado de
um cigano, pai de outra adolescente que ele também engravidou. O cigano ameaçou matá-lo
caso não se casasse com a filha. Meu pai achou melhor casar e deixou para trás, minha mãe e o
baú cheio de roupas e bordados do enxoval do casamento que não houve. Minha mãe tinha
dezoito ou dezenove anos e foi abandonada por meu pai comigo na barriga. Tentou abortar,
tentou de tudo para que eu não vingasse. Lembro bem pequena ela dizer; ... “Você só veio para
estragar minha vida”. Então, quando fiz dois anos ela me entregou para a mãe de meu pai,
minha avó paterna. Meus avós moravam no mesmo vilarejo desse interior e me criaram até
meus sete anos.

Com sete anos minha avó veio se tratar de uma cegueira em Salvador e minhas tias ficaram
comigo. Elas me maltratavam; batiam sem piedade, me faziam de empregada e uma delas,

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minha madrinha, me maltratava porque sou negra e ela dizia que meu pai era branco. Não era
nada! Porque ele tinha uma corzinha que não era negra, como a minha e a da minha mãe, ela
dizia que era branco. Minha avó falava: ... “É, seu pai não lhe assumiu, não é por causa disso
que vou lhe rejeitar. Então você vai ser bem tratada aqui; quando ele puder e quiser vir aqui
você vai estar comigo”. Minha avó me criou com muito carinho, mas não tive nem amor de pai
nem de mãe.

Uma das minhas tias tinha um noivo, que morava em Salvador. Quando ia lá, tinha que ficar na
casa de uma amiga, para eles ficarem à vontade. Um dia o noivo dela apareceu e não avisou que
ia. Chegou de surpresa e perguntou: ... “Cadê sua madrinha?” ... “tá na casa da amiga dela”,
falei. Ele passou por dentro da fazenda para chegar na casa da amiga e acabou encontrando
minha tia namorando no meio das bananeiras com um rapaz. Foi uma briga daquelas e ela
descontou depois em mim. Fugi para a casa de uma tia, mas foi uma amiga de infância que
achou um portador e mandou uma carta para minha mãe, que trabalhava em Salvador, em casa
de família. Isso me marcou muito, muito! Minha mãe veio para Salvador trabalhar, cuidar da
vida e depois disse que voltava para me pegar. Já tinha engravidado de novo e teve outra filha
de outro homem, que assumiu. Ela foi lá no interior me buscar, me levou ao médico em
Salvador e disse; ... “Eu não tenho onde botar você. Moro em casa de família, meus patrões
não vão aceitar você lá, mas eu já falei com minha comadre”. Voltei mais uma vez para a
fazenda, onde morava toda a família de minha mãe, cada um em seu pedaço de terra. Lá fui
morar com a comadre de minha mãe para ajudar a cuidar da filha dela pequena, com três ou
quatro anos. Estava com oito anos.

Com nove anos começaram a aparecer meus seios. O marido da comadre da minha mãe, que
chamava de madrinha, fazia brincadeiras sem graça comigo; beliscava meus seios e me dava
presentes. Achava natural, porque minha madrinha me tratava como filha. Um dia íamos todos
a inauguração da Fonte Nova, em Salvador. Minha madrinha iria mais cedo com a filha, e eu
mais tarde com meu tio, irmão dela. Fui tomar banho quando cheguei do colégio e o marido
dela começou a forçar a porta. Ele entrou e me estuprou. Não sabia o que era sexo. Consegui
fugir pulando o muro da casa porque a porta estava trancada. Torci o pé e corri para a casa da
irmã da minha madrinha. Contei a ela que não se espantou e já esperava por isso. Havia flagrado
ele espiando as meninas tomando banho pela porta entreaberta do banheiro. Ligou para minha
mãe, pediu que contasse tudo a ela e também a madrinha. Ambas me ouviram e culparam pelo
estupro. Disseram que me insinuava e, mesmo com nove anos, quis ter relações sexuais com ele.
Fui expulsa e minha mãe me levou para a casa que trabalhava em Salvador. A patroa de minha
mãe, casada com um médico muito conhecido na cidade, conseguiu um convento para mim.

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Esse convento acolhia os filhos das crianças abandonadas, filhos de prostitutas e crianças de
rua. Na década de setenta se chamava OAF (Organização do Auxílio Fraterno) e existe até hoje.
Nesse convento fui estuprada mais uma vez. O acolhimento era para meninos e meninas. E
chegando nova do interior, fui presa fácil para os meninos que viviam em bandos e só não
faziam matar. Fui estuprada por vários deles e acabei na enfermaria com infecção. Muitas
histórias horríveis corriam na época. Diziam que havia um padre que estuprava meninos e
meninas. Um outro, italiano, que levava as meninas sem pai nem mãe para adoção na Itália.
Preferiam as negras. A adoção, se conta, era disfarce para escravidão sexual.

Minha mãe trabalhava todos os dias e me visitava uma vez por mês. Antigamente empregada
não tinha folga. Uma época ficou um bom tempo sem aparecer e, quando foi me visitar, não me
reconheceu. Tanto tempo sem ir lá, causou uma situação difícil no convento. Sem roupa,
comida ou qualquer apoio, o convento, que vivia de doações, não podia arcar com essas
despesas. Nesse tempo peguei catapora e depois tuberculose. Eles pediram para me tirar de lá.
Com todos aqueles maus tratos, acabei ficando fraca e tuberculosa. De lá minha mãe me levou
para o Centro de Saúde Ramiro de Azevedo, onde fiz exames e tive o diagnostico de
tuberculose. Saí com um monte de comprimidos para a doença e fiquei isolada no quarto de
empregada da casa dos patrões de minha mãe. Fiquei em uma lavanderia velha, dormia em
cama de abrir e fechar e me isolaram ali. Os patrões de minha mãe eram de uma família de
políticos poderosos em Salvador e, quando fiquei boa, acabaram conseguindo uma vaga para
mim em outro convento, em Dias D’Ávila.

Nesse convento comecei a estudar e também fiquei menstruada um pouco antes dos 10 anos.
Como não sabia o que era ficar menstruada, quando aconteceu, acabei colocando nódoa de
bananeira para estancar o sangue. Era o que se fazia na roça para curar ferimentos. Fiquei muito
assustada com a sangramento e as freiras concluíram que tive relações sexuais com os homens
que estavam consertando a caixa d’água do convento. Nova expulsão. Dessa vez ao voltar para
a casa dos patrões de minha mãe, fui encaminhada ao Nina Rodrigues, no Quinto Centro, para
procurar Dr. Pedro Melo, na época ainda vivo. Recomendada pelo também médico, patrão de
minha mãe, fui muito bem tratada. Ele me examinou e contei tudo sobre os estupros que havia
sofrido. O diagnostico; menstruação precoce pelas quedas, pancadas e abusos que sofri. Fez um
relatório explicando tudo para o patrão de minha mãe e, toda semana, ia até o Nina me tratar.
Ele explicou a minha mãe que eu não estava gravida, nem tinha tido relações sexuais. E
explicou também que os abusos foram a causa da menstruação precoce.

Quando fiquei boa arranjaram novo convento, o Bom Pastor de Brotas, o melhor que já fiquei.
O convento era pago, e, dessa vez, os patrões da minha mãe arcaram com as despesas. Era

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minha segunda casa e as internas eram tratadas como pensionistas. Estudei até a quinta serie,
aprendi a costurar, a bordar... Nesse convento só entravam meninas e fiquei lá dos dez aos
quinze anos, idade máxima para ficar interna. Quando saí aos quinze anos me colocaram em
novo convento, o Sagrado Coração de Jesus, em Itaparica, onde fiquei dos quinze aos dezoito
anos. Havia muita discriminação entre as meninas brancas, que engravidavam e as mães
colocavam lá, e as pretas, em geral filhas de empregadas ou faxineiras. Quando descobriram que
eu era protegida da mulher de um político poderoso, passaram a me tratar bem. Minha irmã
também foi viver lá. A minha tia teve câncer de mama e não pôde mais cuidar dela. Foi seu
primeiro convento. Na época das férias as freiras não queriam nos deixar sair para ficarmos
lavando e passando as roupas do convento. Íamos passar nossas férias como empregadas.
Reclamei e fui defender minha irmã que a freira tinha empurrado. Empurrei a freira de volta e
ela caiu. Fomos expulsas. Eu mais uma vez. Dessa vez a minha protetora nos defendeu,
ameaçando cortar a verba publica que o convento recebia. As freiras então liberaram minha
transferência para estudar fora do convento, e foi aí, que conheci meu primeiro marido.

Minha mãe nessa época alugou uma casa no final de linha da Federação. Começou a namorar e,
nos fins de semana, ia ficar com o namorado. Passei a morar nessa casa com ela e percebi que ia
ter problemas com o namorado; insinuações, conversinhas... Resolvi me mudar para a casa de
meu primeiro namorado. Ele com vinte e eu com dezoito anos. Vivemos cinco anos juntos e
apesar de não termos casado no papel, o considero meu primeiro marido. A mãe dele não
queria, porque eu era moça de convento. Morávamos juntos e nos finais de semana eu ia para
casa de minha mãe. Éramos felizes, mas um dia uma vizinha me alertou que eu voltasse para
casa mais cedo no final de semana. Fiz isso e ele estava com outra mulher na cama. Acabamos
na delegacia. A delegada perguntou se eu ainda queria ficar com ele. Disse não! E como já
morávamos juntos há mais de cinco anos, ela ordenou que ele saísse de casa e eu ficasse lá.
Depois de um tempo acabei vendendo a casa, guardei o dinheiro e entrei em um programa da
URBIS (Habitação e Urbanização da Bahia). Depois de um tempo me mudei para essa nova
casa que comprei em Cajazeiras. Nesse intervalo fiz faxina, trabalhei em casa de família e
estudava a noite. Vivia sozinha.

Fui trabalhar, fui estudar, fiz supletivo e consegui me formar em auxiliar de Odontologia. Tudo
sozinha, por iniciativa própria. Nesse período tive minha filha com um namorado que não
assumiu a menina. Eu disse para mim mesma: ... “Minha mãe não me assumiu, mas minha filha
eu procurei e vou assumir”. Hoje ela está com vinte e cinco anos e quando tinha cinco anos, me
formei. O patrão da casa que minha mãe trabalhou foi o paraninfo da turma. Me apresentei, ele
lembrou de mim e da minha mãe e disse que sentia muito orgulho sabendo quanta coisa eu tinha
passado e consegui superar. Na época tudo isso foi muito importante para mim.

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Tive ainda outro marido que era muito dissimulado, mas me tratava como rainha. Era casado e
se fez passar por solteiro. Acabei descobrindo e terminando tudo. Depois de um tempo ele se
separou da mulher e me pediu em casamento. Veio com a certidão do divorcio, me apresentou a
família e casamos. Tive alguns problemas sérios de saúde enquanto estávamos juntos; dois
AVCs e um infarto. O primeiro AVC sofri dentro do ônibus quando voltava para casa depois
que traficantes fecharam a rua do posto de Saúde que trabalhava em Periperi. Eles controlavam
o bairro, deram o toque de recolher e não fui avisada. Ao subir a ladeira de moto taxi, fui
parada, ameaçada e quase morri de susto. Quando consegui me safar da situação, na volta para
casa, tive um AVC e acabei passando vinte dias na UTI.

Tive ainda um segundo AVC, esse isquêmico, também por contratempos com traficantes no
bairro que morávamos. Minha filha, na época, com quatorze anos, brigava muito com meu
marido. Queria que nos mudássemos de lá e ele não. Na verdade, ele fez amizade com os
traficantes. Na época não percebi que ele me amedrontava muito com as histórias horríveis que
aconteciam, para me deixar insegura. Ele era taxista. E eu havia comprado, a prestação, um
carro novo que ele usava no trabalho. Depois de tudo que passei, o café na cama, as viagens nos
fins de semana e todas as atenções dele comigo, me deixaram cega para perceber qualquer
coisa. A maioria das vezes preferi acreditar nele que na minha filha.

Um dia minha filha o viu jogando um envelope no chão, quando me dava a medicação.
Questionou e procurou embaixo da geladeira o envelope jogado fora. Ele, no lugar do remédio
correto, havia me dado um estimulante sexual que provocou o infarto. Fui levada por ela a uma
emergência e conseguiram me recuperar. Ela o acusou e ele retrucou dizendo que devia ter
matado ela primeiro. Caiu a ficha. Ele planejava me matar e a minha filha também para herdar a
casa e o carro. Uma decepção! Depois ela também encontrou uma arma em cima do guarda
roupa escondida, quando estávamos nos mudando. Acabamos dando queixa na Delegacia da
Mulher. Conseguimos uma medida protetiva e pedi o divorcio. Ainda estou aguardando para
fazer a partilha, já que nos casamos em separação parcial de bens. O carro, mesmo após a
separação, continua com ele.

Hoje minha filha está se formando, com vinte e cinco anos. Missão cumprida criar e leva-la até
a formatura em uma Universidade. Agradeço a ela ter me tirado da zona de risco e da cegueira
que vivia. Tentei até o suicídio depois de tanta vergonha. Achei lugar pra fazer a vida,
prostituição, achei lugar pra roubar. Pedi tanto à Deus para não me deixar ficar revoltada, para
não fazer coisa errada. Dizia: ... “Quero viver, quero superar todas essas situações e mostrar
que eu sou gente, que eu sou alguém. E que mereço respeito também”. Graças à Deus consegui!

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Maria Rita Silva dos Santos

Quando tudo parecia amor, já era propriedade de alguém ...

No meu tempo de criança lembro do meu pai plantando feijão e milho na roça, lá em Barrocão,
povoado de Ribeira do Pombal. Ia com meus irmãos e ficava lá, brincando com os cabelos das
espigas de milho, fazendo bonecas com elas. Desde pequena, com mais ou menos oito anos de
idade, já gostava de fazer arte. Barrocão fica muito próxima a aldeia dos índios Kiriris. Lembro
dos índios vendendo pote, moringa, aribé, panelas e pratos de barro na nossa comunidade. Eu
fazia aquelas artes dos índios com argila desde pequena. Comecei a desenvolver meu talento
cedo. Fui criada com meu pai dizendo que era neto de uma índia. Ele tinha traços de índio,
também um dos meus irmãos e eu sempre me considerei descendente de índio. Meu pai dizia
que a avó dele foi pega no mato “a dente de cachorro” como se diz por aqui. Conta também
que meu avô, descendente de português, pai dele, batia muito na minha avó. As terras do meu
pai são dentro da área indígena. Parte herança do pai e a outra parte ele comprou. No documento
as terras são dos índios. Grande parte das terras daqui do povoado estão na área indígena, mas
na mão dos brancos. No futuro, quem sabe, eles vão querer retomar? Nunca vi minha avó ou a
mãe fazendo o trabalho dos índios que faço desde pequena. Isso deve ser uma raiz que trago dos
antepassados. Essa ligação minha com os índios, muitas vezes, me faz ser discriminada. Os

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índios aqui, de certa forma, são discriminados. Existe um ódio dos brancos, principalmente, por
causa das terras. Então as perseguições são grandes.

Eu era uma moça muito bonita. Tirava boas notas em todas as matérias, mas em educação
artística as notas eram ótimas. Na época não conhecia as técnicas de como pintar telas. Mas já
sentia um desejo enorme de pintar. Na adolescência lembro de buscar água para encher o tanque
e, sempre que terminava as tarefas domésticos, já procurava tinta e alguma coisa para
desenvolver meu trabalho. Minha primeira pintura foi em cartolina, com tinta guache, porque
não tinha acesso à tela, pincel e outros materiais. O que eu gostava muito de retratar eram
paisagens nordestinas; mandacaru, casas de sapê... casinhas ruins comparadas às de hoje. Eu
gostava de fazer aquelas humildades da roça. Até hoje guardo...

Minhas primeiras agressões foram em casa, creio que pelos distúrbios que vêm de muito tempo
na família. Meu pai era uma pessoa boa na minha lembrança de criança. Mas depois, ambos,
mãe e pai, se tornaram pessoas monstruosas para mim. Pareciam estar seguindo alguma tradição
que viveram no passado; a lembrança de ver o pai bater na mãe para o pai e para a mãe, que foi
criada pela avó, o abandono da mãe. Às vezes ele diz que mulher tem que apanhar mesmo,
porque a cultura dele é que mulher não tem direito a nada. É só comida e pronto. Como fui
artista mirim autodidata, tudo que fazia - potes, flores com palha, panelas, balão de S. Joao -
tudo que gostava de retratar, minha mãe achava feio, jogava fora. Para mim era uma agressão.
Tudo que queria fazer precisava esconder de minha mãe. Muita decepção! Na verdade, nunca
ganhei um beijo dos meus pais, um abraço e nem festa de aniversário.

Acho que toda violência que sofri, esteve sempre relacionado à gênero. Os meus irmãos são
machistas e tratam filhos e filhas de formas bem diferentes. Os meninos podem tudo e as
meninas nada. Vão crescer com esse machismo. Na região, o costume eram os homens
difamarem as mulheres, principalmente as bonitas, pelo desejo de as possuir e depois perseguir,
até conseguir ou transformar a vida delas em um inferno. Foi assim que começou meu
sofrimento na vida. A perseguição começou. Me chamavam menina de “corpo de violão” e,
uma noite, quando meus pais não estavam casa, deparei com um homem puxando meu cobertor.
Foi o primeiro desmaio da minha vida, aos vinte e dois anos. Uma mulher naquela época, se
perdesse a virgindade, já não era valorizada. Era considerada puta. E na verdade, no meu
primeiro relacionamento, sete anos de namoro, tinha um medo tão grande, que casei virgem. O
meu agressor saiu comentando que foi o primeiro a botar as mãos em mim e prometeu matar
toda a família se desse queixa na polícia. Logo depois casei. Mesmo depois de casada esse
homem nunca parou de me perseguir. Com seu dinheiro achava que podia me conquistar. E só
tinha nojo e raiva dele. Acabei perdendo minha primeira filha, desfazendo meu primeiro

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casamento e indo embora para São Paulo. Era muito desgosto e não tinha mais motivo para ser
feliz. Não queria pintar e nem mais viver. E ainda tive que enfrentar minha vida lá fora sozinha.

Em São Paulo o primeiro desgaste que sofri foi ter ficado na casa do meu irmão mais velho, que
batia muito na filha. Batia tanto que quando eu tentava socorrer, ele impedia e ameaçava me
bater também. Algumas vezes vi minha sobrinha com apenas com seis anos dizer; ... “oh! tia,
eu tenho tanta vontade de morrer”. E muitas vezes eu também sentia vontade de morrer,
principalmente quando queria fazer algo relacionado à minha arte e meus pais não me davam
apoio. Parecia repetição. Não aguentei e acabei saindo de lá.

Encontrei logo depois o pai da minha filha mais velha, com quem comecei a namorar. Não foi
por amor, não tive o direito de escolher um homem para mim. A vida não permitiu. Com o
tempo senti que fui enganada, mais uma vez enganada. Queria uma pessoa para me apoiar e vivi
outro desgaste. Muito ciúme, não me deixava sair, ou então, onde fosse ele ia atrás. Como era
uma mulher bonita, gerava mais ciúme. Todas as escolhas que fiz relacionadas a homens, me
decepcionei. Tive minha filha mais velha, Anabela, em São Paulo. O único apoio que o pai dela
me deu, foi me apresentar um curso técnico de pintura. Logo, logo, aprendi as técnicas e
comecei a expor em Embu das Artes. Mas os ciúmes continuaram e vivia com medo, sofrendo.
Mais tarde fui trabalhar cuidando de crianças carentes em uma instituição, onde fazia a função
de mãe social. Eram doze crianças de rua em situação de risco por uso de drogas. Nessa época
achei melhor mandar minha filha de volta para Barrocão. Não dava para trabalhar e cuidar dela.
Todo mês enviava parte do salário para minha mãe tomar conta de minha filha. Me separei mais
uma vez e depois de trabalhar duro em São Paulo, acabei também voltando para casa. Lembro
de ter dito; ... “eu nunca mais volto nessa terra”. Mas não deu.

Na semana que cheguei começaram as calunias. Estava com trinta e oito anos e ainda chamava a
atenção dos homens. Começaram a espalhar que morando em São Paulo fui mulher de
programa. Para fugir das perseguições namorei o pai da minha filha mais nova, Ana Clara, hoje
com nove anos. No começo foi tudo lindo, maravilhoso. O que observo aqui, hoje e também na
época, é que os jovens começam a beber muito cedo. Logo viram alcoólatras. Quando percebi
meu companheiro tinha virado alcoólatra e começou a me agredir quando bebia. Primeiro de
seis em seis meses e depois foi abreviando, até me bater todos os dias. As humilhações eram por
conta do meu trabalho com artes. Somente ele podia ganhar dinheiro. Eu queria expor meus
trabalhos. Minhas telas estavam repercutindo muito na cidade, e cheguei a vender cinco a seis
telas em uma exposição. Morávamos nós e as duas meninas, Anabela e Ana Clara. Minha filha
mais velha nessa época começou a namorar um rapaz com o mesmo problema de alcoolismo.
Um espelho horrível. Às vezes meu marido quebrava tudo, me agredia com palavras, batia...
Quando corria na casa dos meus pais para procurar apoio, diziam; ... “porque estava bêbado, é

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bom perdoar”. Até chorar ele chorava, dizendo que estava arrependido. Aí voltávamos. E tudo
continuava igual. Nesse sofrimento todo tive arritmia cardíaca e uma doença chamada Síndrome
do Pânico. Não conseguia dormir. Era um medo, uma sensação de medo! Já não podia mais
ouvir a voz dele.

E a única coisa que me ensinavam é que teria que ir para a igreja tentar resgatá-lo do
alcoolismo. A família dele era adventista do sétimo dia e ele estava com um espírito ruim,
diziam. Às vezes parecia mesmo. Eu achava que ia morrer e na igreja colocavam na minha
cabeça que ia morrer sem salvação, porque tudo era pecado. Era pecado vestir calça, cortar o
cabelo era pecado, tudo era pecado. Fui discriminada na igreja. Já não podia falar nada, não
podia me defender, e sem apoio da família dele ou da minha. Me senti como Maria Madalena.
Muitas pedras na minha direção e todos eram santos. Hoje tenho consciência que aqui na minha
comunidade é assim; ... “o errado é que está certo e o certo é que está errado”.

Passei hum ano fazendo tratamento para a síndrome do pânico. Tomei remédio controlado para
depressão, me curei e passei a não ter mais medo e enfrentar. Foi quando pedi para minha mãe
ir para casa dela, não mais entrar na minha vida, nem na vida dele ou na das minhas filhas. Senti
que fui perdendo minha autonomia. Minha mãe achava que era dona das minhas filhas. A
pedido dele, levou as duas meninas, a mais velha e a mais nova. Passei a ficar em casa sozinha,
abandonada. Um dos meus irmãos havia morrido há um tempo atrás por problemas também de
alcoolismo. Minha mãe nunca se conformou e acho, quis colocar minhas filhas no lugar do filho
morto.

E então aconteceu o seguinte; ele foi preso, dirigindo bêbado com o carro cheio de mulheres.
Chegou bêbado aqui na rua dizendo que os advogados de Ribeira do Pombal estavam do lado
dele, que podia fazer o que quisesse e nada aconteceria. E foi exatamente assim. Ele chegou ao
ponto de quase me matar. E o que aconteceu? A Justiça de Pombal acobertou toda a violência
dele contra mim. Desde o início, há cinco anos atrás, quando acionei a Justiça porque apanhei
do meu ex-companheiro, minha mãe se aliou a ele. Disseram, ela e também meu irmão, que era
tudo mentira e que sou louca, tomo remédio para depressão. Simplesmente porque não penso
igual a eles. Minha mãe não sabe ler, nem escrever e diz que sabe mais do que o juiz, mais do
que o promotor. E principalmente por ser artista, não querem aceitar meu jeito de ser. Mulher é
para viver sobre o domínio dos pais, do marido e sofri violência por isso. Não tenho direito de
escolher o que eu quero para minha vida. Sou julgada pela roupa que visto, tenho que vestir o
que eles querem, pensar como eles pensam. Sou mulher guerreira. Sofri agressão por isso.

Meu ex marido deturpava tudo. Me acusou até pelo pecado de Eva, da Bíblia. Disse que Adão
pecou por causa da mulher. Quando Dilma se candidatou para presidente, brigou com outro

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bêbado, dizendo que não votava em mulher não! Que mulher já queria ser alguma coisa,
imagina com uma presidente. E o outro bêbado falou assim; ... “mas rapaz, você então deveria
não ser filho de uma mulher”. Na verdade, ele tem ódio às mulheres.

Tiraram minha filha, minha casa, toda a minha estrutura. Tive arritmia cardíaca, Síndrome do
Pânico, engordei 10 kg e meu corpo de violão passou a ser parecido com uma sanfona. Mas
decidi desatar o nó. Mesmo sozinha, sem minha filha, sem ele, sem tudo isso, comecei a retratar
a história da minha vida. Na minha primeira tela imaginei uma índia, lembrando daquelas índias
que andavam na minha comunidade. Principalmente uma que admirava muito, filha da cabocla
Rosa, que morreu afogada. São relatos e mais relatos. Fiz uma mulher índia Kiriri e a tela
dizia; ... “Mulher segura não tem medo de ficar sozinha, ela tem medo mesmo de ficar mal
acompanhada”.

Na segunda tela foi um caso que não quero relatar. Aconteceu na frente da minha filha com
apenas três anos de idade. Retratei um homem com uma enxada na mão quebrando um coração,
e coloquei a seguinte frase; ... “por mais que seu coração esteja ferido, existe uma grande
protetora, chama-se persistência”. Nunca desista dos seus objetivos. Não quero desistir, porque
sina de mulher é sobreviver e contar para salvar outras mulheres, principalmente pra salvar Ana
Clara, que está no poder ainda de meus pais e das mentiras e calúnias que levantaram contra
mim.

A terceira tela diz; ... “não se cale”. Retratei um homem puxando no braço da mulher; ...
“mulher, não se cale. Porque quando uma mulher é agredida, toda mulher é agredida
também”. Na quarta tela já havia escapado de algumas frustrações. Recentemente conheci um
rapaz, vinte anos mais novo, com semblante de caipira que trabalha na roça. Estamos
namorando. Somos descendentes da roça. Retratei um casal embaixo de uma árvore seca no
entardecer, com a frase; ... “Deus fez o homem e a mulher para serem companheiros um do
outro, e não para ser pisado ou machucado”. Foi a quarta tela.

Depois das violências que sofri não conseguia mais pintar. Por isso comecei a retratar minha
história de vida. Foi a única forma que encontrei para amenizar o sofrimento, a dor. Eu contava
para Deus minha história e retratava ao mesmo tempo na tela. E sei que muitas não têm a
oportunidade de falar. O que eles não imaginavam era uma mulher, com quase cinquenta anos,
com forças para se defender. Comecei a fazer tudo o que eles me impediam. Hoje vou para
academia, faço curso, invisto na arte. E meu namorado é mais novo vinte anos que meu
agressor. Sinto que a agressão da minha família é querer que eu seja aquela pessoa de antes. E
eu não quero. Deus me livre. E digo mais: ... “que se for para ser a pessoa de antes, prefiro
morrer”. Essa é a minha história. Até aqui, termina assim!

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Josivânia Santana dos Reis (Vania Reis)

Apareceu uma menina abusada, tremendo de medo e completamente identificada com o


abusador...

Minha família é uma pipoca. Meu pai nasceu em Salt Lake City, nos EUA. Meus avós paternos
eram peregrinos mórmons, descendentes de imigrantes poloneses e austríacos, mas nascidos no
Brasil, no Sul do país. Com oito anos meu pai e família voltaram para Curitiba, onde ele e os
irmãos foram criados. Meu avô por parte de mãe nasceu em Mato Grosso do Sul, mas como
militar, viveu no Rio de Janeiro. Minha mãe nasceu e viveu lá. Meus pais se conheceram e
casaram em Mato Grosso do Sul. Ele foi visitar um tio que servia na cidade e conheceu minha
mãe. Na época meu avô materno também servia lá. Nascemos, eu e meu irmão, em Campo
Grande. Muitas mudanças ao longo da vida. Não tive a experiência de nascer e crescer na
mesma casa, cultura ou mesmo contexto. Meus pais se separaram quando eu tinha cinco anos.
Ele viveu mais um tempo em Campo Grande, já separado, trabalhando como geólogo na

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extração de calcário. Depois resolveu voltar para os EUA em busca do american dream. Se
casou com uma brasileira e foi morar no exterior. E nós ficamos. Nossa mãe ficou com a guarda
dos filhos. Sou a primeira neta e minha mãe a mais velha de três irmãos. Desde cedo fiquei
sempre muito com meus avós. O que era uma fonte de alívio para minha mãe e de ansiedade
para meu pai. Ele detestava que eu ficasse com meus avós. Cresci sendo a netinha da vovó e do
vovô. Com a separação vivi praticamente com eles. Fui sempre muito mimada. O que não
acontecia com meu irmão. Para ele não tinha mimo e nem dormia na casa deles. Então, de certa
forma, cresci afastada do pai e da mãe. Uma distância construída, me parece, agora.

Era uma relação muito forte. Lembro de querer sempre ir para a casa deles. Lá tinha tudo... café
na cama, mimos... Era tratada de forma realmente diferenciada. Com o tempo foi se criando
uma distância com meu irmão e comecei a me sentir excluída da minha família de origem.
Sentia que era cada vez mais do meu avô e da minha avó. Eles falavam mal da minha mãe, filha
deles. Que não prestava, se divorciou, era uma mulher à toa... meu pai também não prestava.
Tinha me abandonado, ido embora... e as únicas pessoas que me amavam eram eles. Acabei
comprando esse discurso e atacava meus pais. Depois me sentia deslocada. Não me encaixava
mais na família e ao mesmo tempo me sentia abandonada, rejeitada por eles. Esse padrão de
comportamento reproduzi praticamente toda minha vida. Realmente me sentia muito
confortável no mundo sendo aceita somente por eles, amada somente por eles, meus avós.
Pouco me importava o que os outros achavam. Apesar ou por causa disso, tive uma vida muito
marcada, principalmente na adolescência por uma tristeza quase constante. Minha mãe sempre
dizia; ... “Ah, a Mariana tem uma nuvem, umas nuvenzinhas negativas em torno dela”. Cresci
com esse feedback.

Cresci sentindo uma espécie de dissonância interna, uma dor que não conseguia identificar, não
sabia de onde vinha e começou a se expressar na adolescência; comportamento sexual de risco,
bebida, cigarros... uma certa dificuldade de me encontrar, achar meu lugar no mundo. Tive meu
primeiro namorado aos dezessete anos. Para mim quanto menos envolvimento emocional,
proximidade, intimidade, melhor... Mais sexo e menos afeto. Depois comecei a me envolver
com homens desconhecidos. Quanto mais desconhecidos melhor!

Fui para os EUA para a casa do meu pai duas vezes; dos dez aos doze anos, na pré-
adolescência, e dos quinze aos dezoito anos. Foram momentos de muita solidão. Não tinha mãe
e soluçava de saudades do meu pai. Por isso fomos, eu e meu irmão. Meus avós totalmente
contra! Quando ligavam pediam para voltarmos. Era um drama. Estava lá, mas o coração e a
casa ficaram aqui. Fiquei deslocada e não consegui ficar lá. Acabamos voltando, eu e meu
irmão e fomos morar na casa da nossa mãe, casada agora com outro homem. Foi uma ruptura.
Meus avós não tinham mais tanto acesso a casa e acabei os rejeitando. Não gostava mais de

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ficar com eles e só me aproximava quando recebia presentes. Também nas idas ao vôlei, nos
treinos, meu avô me levava e trazia de volta. Estava no curso normal e ganhei uma bolsa para
jogar vôlei. Treinava três horas por dia. Fiquei focada no vôlei por um tempo. Mas, com a
proximidade dos quinze anos, o encanto foi acabando. Apareceu a vontade de beber, me divertir
e não consegui mais seguir com a disciplina do vôlei.

Acabei voltando aos quinze anos para os EUA. Mato Grosso do Sul foi ficando pequena, minha
mãe e padrasto viviam uma vida de aparências e já não me identificava com eles e com minha
vida lá. Voltei para a casa do meu pai e fui estudar arte. Pintava o dia inteiro e, como já havia
feito as disciplinas do currículo básico no Brasil, pude optar pelas disciplinas ligadas a arte.
Escolhi pintura, arte digital e comecei a trabalhar. Mas a vida era pesada. Meu perfil mudou
muito nessa época e continuava perdida. Tive vários problemas de adaptação, briguei com o pai,
a madrasta e engordei muito. Me sentia muito rejeitada e acabei ficando obesa. Saí de 70kg para
110kg. Tudo era muito estressante e a situação foi me deixando louca. Comecei a pensar que
voltar ao Brasil podia ser mais leve. Minha avó falava; ... “vem pra cá! Aqui eu pago um
cursinho pra você...”. Achei melhor do que entrar no exército americano para pagar a faculdade
e voltei.

Fui para Curitiba onde morava um rapaz que namorava à distância, com quem tinha muitas
afinidades musicais, de gosto. Resolvi tentar. Morei sozinha quando cheguei, primeiro em
pensionato, depois dividindo um apartamento com um amigo, e, mais tarde, naturalmente, fui
morar com ele. Moramos juntos, comecei o cursinho para o vestibular e a vida seguia. Queria
fazer Design e Arquitetura, mas estava muito insegura se conseguiria entrar na Universidade.
Queria entrar na publica e acabei passando no vestibular em Ciências Sociais. Passei também
em Belas Artes. Entrei, mas não dei continuidade ao curso. Minha avó mandava dinheiro para
me ajudar e dava também aulas de inglês. Minha vida afetiva era bem complicada. Já não sentia
atração pelo namorado, mas como morávamos juntos, foi ficando cada vez mais difícil. Ele
queria casar, ter filhos e eu não. Comecei de novo a engordar e por pura ansiedade cheguei de
novo aos 110kg. Para sair daquela situação fui fazer um intercâmbio, fazendo serviços de
filmagem para uma ONG de proteção ao meio ambiente no sul do Chile. Era uma região
madeireira. Muito bosque, lenha, frio e lobos marinhos andando pelas ruas. Foi um período
bom!

Com um mês de intercambio meu namorado terminou nossa relação. Acabou! ele disse. Ao
final do intercâmbio voltei para Curitiba, mas não me integrei lá de novo. Estava muito ansiosa,
perdida e depois de um tempo sem me encontrar na cidade acabei voltando aos braços dos meus
avós em Campo Grande. Estava com trinta anos e queria aconchego. Me sentia em guerra e eles
eram minha referência de cuidado. Entendi, mesmo que de forma confusa, que o problema não

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estava no namorado, nas cidades, no curso ou na Universidade... Chegando em Mato Grosso do


Sul, minha avó começou a pagar algumas terapias, para ajudar a me encontrar mais uma vez.
Comecei com um trabalho corporal com a proposta de reequilibrar o fluxo de energia no corpo e
ir liberando o que estava contido, paralisado. Fazia vivências pelo método Rességuier, trabalho
de harmonização descoberto pelo fisioterapeuta francês, Jean Paul Rességuier, em meados da
década de 80. Comecei a mergulhar nas vivências em um processo de camadas, sentindo que
muitas coisas estavam sendo liberadas. Tive seis meses de diarreia. No processo tive ataques de
pânico e fui levada pelo meu avô ao hospital com sensações de desintegração. Sentia muita
ansiedade e as terapias de fala não funcionavam muito bem comigo. Fiz também terapia
junguiana, com imaginação guiada. Não tomava medicação e aos poucos, ajudada pelas
terapias, me senti melhor, mais presente. Fazia academia, musculação e estudava para concurso.

Com uma amiga de Curitiba que estava passando um tempo a trabalho em Campo Grande,
começamos a sair, tomar cerveja, dançar, encontros sexuais... aquelas histórias loucas com
desconhecidos! Me sentia mais aberta, para fora. Em um carnaval, tocando no bloco, bebendo e
me divertindo muito, conheci o pai das minhas filhas. Dei um abraço nele e do nada, surgiu um
desejo muito forte. Foi uma paixão louca e quis muito compartilhar minha vida com ele, ter uma
família. Engravidei no primeiro mês de gêmeos. Com ele também tive experiências corporais de
desintegração. Sensações muito estranhas! Muita atração e repulsa ao mesmo tempo. E um
medo, um pavor, que não sabia identificar. Ao mesmo tempo uma atração intensa e imensa.
Muito forte! Ele era um pouco mais velho e resolvi encarar. Sentia também sua agressividade e
tentava me colocar na relação, como mulher, doce... “mulherzinha” ..., papeis femininos muito
diferentes dos que me identificava até ali. A história de vida dele também bem complicada,
tinha um pai violento, bêbado, vivências bem fortes na infância e muita dor acumulada. Este
também era um elo entre nós. Sem grana, continuei morando na casa dos meus avós. E isso com
duas meninas, recém-nascidas, as gêmeas.

Precisava de ajuda financeira e minha mãe, nessa época, morando em Salvador, continuava
muito distante. Tentou alguma reaproximação, com o nascimento das gêmeas, mas saía faísca
entre nós. Meus avós então, mais uma vez, foram os responsáveis por toda a estrutura; parto,
casa, comida, roupa lavada... O pai das meninas ia sempre lá, passava alguns dias e ia embora
tomar chá de Daime. Voltava e .... “oi, meu amor” para logo gritar em seguida. Uma loucura!
Minha impressão é que não havia conexão nenhuma. As pessoas estavam presentes, mas me
sentia totalmente abandonada e a relação com meus avós bastante tensa. Muito jogo de poder
que me excluía quase sempre. Meus avós e o pai das gêmeas se aliavam contra mim e tudo que
importava é que as meninas continuassem lá. Com acesso fácil e irrestrito.

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Meus avós tinham me dado de presente um carro. Pedi para botarem no meu nome com a
promessa que continuaria morando lá. Liguei para minha mãe e ela concordou que
precisávamos, eu e as gêmeas, sairmos de lá. Era muita humilhação o jogo de meus avós. Eles
precisavam me anular para que continuasse eternamente sob a proteção deles. E agora, essa
proteção incluía as meninas. Fiz de conta que continuaria morando com eles e vendi o carro.
Com o dinheiro fugimos com o apoio da minha mãe. Fomos para Salvador porque vi meu avô
tocando a minha filha na virilha de uma forma que não gostei. Meu corpo inteiro teve uma
descarga e aquela sensação de paralisia corporal voltou novamente. Contei para minha mãe
antes de irmos e planejamos a fuga. Ela aconselhou que procurasse minha avó antes. Tive
coragem e quando comecei a contar o que tinha visto, minha avó começou a gritar para meu
avô; ... “estão te acusando de pegar nas meninas!” ... e ambos começaram a me espancar aos
murros. Saí de lá com a roupa rasgada aos gritos de cachorra, desgraçada, traidora... Fiz um
vídeo do que aconteceu. As meninas estavam na escola e fui à delegacia fazer um boletim de
ocorrência de agressão corporal. Na delegacia questionaram se não ia dar queixa de estupro
contra minha filha, menor. Lá me disseram que aquele toque era estupro. Minha relação com o
pai das meninas estava péssima. Ele me batia, xingava, desvalorizava, mas foi ele que pegou os
documentos delas na casa dos meus avós. Formalizei a queixa contra meus avós.

Com esse pânico rondando chegamos em Salvador. Comecei a compreender que estas histórias
já estavam na família há muito tempo. Meu tio e tia, irmãos da minha mãe, se afastaram dos
meus avós e não os viam há mais de quatorze anos. Se afastaram por ter flagrado meu avô
bulinando uma das filhas. Na época, completamente envolvida pelas versões dos meus avós,
desacreditei da história. Eles faziam parte de um grupo religioso, a Cultura Racional, uma
vertente do espiritismo. Por isso também desvalorizei a versão deles. Minha prima, filha do meu
tio, conversando comigo já em Salvador, em dois mil e quatorze, também adepta da Cultura
Racional, incorporou uma entidade que conversou comigo. Na conversa comecei a chamar
minha avó de aliciadora de menores e outras coisas desconexas. Eram coisas soltas que me
estimularam a entrar em trabalho terapêutico de constelação familiar.

É um trabalho em grupo, que constela situações familiares vividas pelos integrantes do grupo,
tendo como foco uma situação específica de um dos integrantes. Começaram a surgir
movimentos, nesse trabalho de constelação, não muito simbolizáveis pelas palavras. São
movimentos inconscientes constelados no campo propiciado pelo grupo. Em um deles apareceu
uma Mariana abusada, com medo, tremendo de medo e completamente identificada com esse
abusador. Conversando com minha mãe surgiram histórias da infância dela. Ela conta de uma
criança de sete anos morando com eles. Conta que sempre havia alguém morando com eles,
uma criança, um adolescente. Falou de uma prima que contou para ela ter sido abusada pelo
meu avô. Na delegacia, quando fui registrar a ocorrência, a assistente social confirmou que uma

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das minhas filhas falou dele tirando a calcinha, passando a mão nas partes intimas da criança. E
a irmã gêmea disse; “sim, eu vi o vovô tirando a calcinha...”.

Eu nunca consegui simbolizar. Não tenho imagens. Como sempre fui uma pessoa desconexa,
com sensações corporais fragmentadas, nunca consegui encaixar esses fragmentos em nenhuma
história. Mas hoje entendo que fui vítima. É o abuso do afeto. Todos os limites são
ultrapassados com muita manipulação numa época em que devíamos ser protegidos. Então você
rompe, se fragmenta. E é tudo escondido no manto da autoridade de quem devia proteger. É um
jogo de poder, de sedução e de calar. Principalmente de calar. Você perde a sua voz. É um jogo
profundo e perverso onde a vítima, criança, vai perdendo a voz. Transferi o processo aqui para
Salvador, com acompanhamento do Ministério Publico. Toda essa história, essas informações,
essas pessoas, contatos, toda essa história familiar está sendo acompanhada.

Hoje estou me reconstruindo. Faço parte de um grupo chamado Marias, de mulheres que
sofreram violência sexual e compartilham experiências, criam novos símbolos a partir das
histórias umas das outras. Estou sentindo vontade de escrever, estou achando minha voz. Hoje
eu consigo gritar, cantar!

O valor das coisas intangíveis

Horta orgânica, uma casa viva com atividades que servem a vida - capoeira, terapias holísticas
- um terreno extenso e arborizado, balanços pendurados em galhos e até o meu amor e terror:
cama elástica! Pessoas vibrando em sintonia com tudo isso. Melhor de tudo: um palhaço
tocando músicas de Luiz Gonzaga, animando e nutrindo nossas crianças (literais e aquela
nossa interior). Programa perfeito, e todo programa tem horário! Das 8 as 11. Tranquilo, fui
dormir ontem imaginando acordar as 6 da manhã, arrumar as fraldas e alimentos para a
caçula, um café da manhã rápido para as meninas, pegar nossas moedas de 1 real e bóra de
busu. Uma hora e meia até chegar em Itapuã. Só uma passagem - uma adulta e três crianças.
Uma de colo. A gente senta bem juntinha e acoxada para amenizar o balanço da viagem, do
lado direito para ver a formosa Orla. Chegaremos com aqueles 30 minutos básicos de atraso
de quem mora na grande Soterópolis. Ninhu-ã.

O relógio marca 9:27 agora. Acordei as 6, amamentei Sofia e olhei para as meninas capotadas.
Segue. Sofia tomou sua mamadeira de complemento e dormiu. Olhei a situação e a minha
generala interna já batia palmas dizendo “bora! bora! bora! Aproveita que estão dormindo e
você consegue agilizar tudo e estarão lá no paraíso daqui a pouco!”. Deitada ao lado de Sofia
em um quarto, suas irmãs no outro, ouvia apenas os passarinhos lá fora. Moramos atrás do
Zoológico, morro este habitado por árvores, arbustos e aves. Das aves só reconheço por nome
e comportamento pomba e urubu.

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Sofia dorme, o sono e a atividade de Sofia. Lembro das meninas dormindo no outro quarto. A
generala persiste, fecho os ouvidos para ela como a criança que fecha os olhos achando que
fica invisível. Durmo. AH! DURMO! Durmo … babo.

Acordo com o barulho das gêmeas que vieram animadas ao encontro meu e de Sofia. Bom dia
de criança: PULA NA BARRIGA. Bom dia, princesas!

Levanto com ansiedade: COMO ASSIM? O PARAÍSO ESPERA VOCÊS! PROGRAMINHA!


LUIZ GONZAGA! HORTA ORGANICA! TERRA!

Já são 8:30. Começo a me mover frenética e desorganizadamente, pensando que preciso ir e


levar minhas filhas para o paraíso, PORRA! Cadê as moedas? Cartão do banco? Já era para
estar lá. FRALDAS! criança 1: MAMAE! XIXI XIXI XIXI quero fazer XIXIIIIII. Mas o que vou
fazer para almoço? Como voltaremos da IDA ao PARAÍSO? Criança 2: MAMÃE to com
FOOOOOME muita FOOOOOME. Gente, Sofia está febril … Bebê: AUUUU BLAU BLEH
MLÉ AOOOOOOOOO. Abro o Moovit app para ver que ônibus pega, quanto tempo: vejo o
WhatsApp … mensagens de amigas do coração, clientes, grupos de mães … ONDE ESTOU?
MEU DEUS?

PARA! PARA! PARA!

Disse uma autoridade muito maior que a voz da generala. Ouvi.

- ONDE você está, Mariana?

- Aqui.

Estou aqui. Agora. Estão aqui comigo três outros seres.

- O paraíso está onde? (Jan 2018)

Mariana França Ordacowski

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Bibliografia Geral:

1. Aleksiévitch, Svetlana. A Guerra não tem rosto de mulher. São Paulo, Companhia
das Letras, 2013.
2. __________________. Vozes de Tchernóbil – a história oral do desastre nuclear.
São Paulo, Companhia das Letras, 2016.
3. Buarque de Hollanda, Heloisa (org). Pensamento Feminista – conceitos
fundamentais. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo, 2019
4. _____________________________. Pensamento Feminista – formação e contexto.
Rio de Janeiro, Bazar do Tempo, 2019
5. _____________________________. Explosão Feminista – Arte, Cultura, Política e
Universidade. São Paulo, Companhia das Letras, 2019

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6. Caruth, Cathy (org). Trauma – Explorations in Memory. Baltimore, The Johns


Hopkins University Press,1995.
7. Caruth, Cathy. Unclaimed Experience _ Trauma, Narrative and History. Baltimore,
Johns Hopkins University Press, 1995
8. Fux, Jacques. Georges Perec: a psicanálise nos jogos e traumas de uma criança de
guerra. Belo Horizonte, Edições Relicário, 2019.
9. Nestrovsky, Arthur; Seligmann-Silva (orgs). Catástrofe e Representação. São Paulo,
Escuta, 2000
10. Noronha, Jovita Maria Gerheim (org). Ensaios sobre a Autoficção. Belo Horizonte,
Editora UFMG, 2014.
11. Seligmann-Silva, Marcio (org). História, Memoria, Literatura: O Testemunho na
era das catástrofes. Campinas, Editora Unicamp, 2003

Bibliografia de Apoio:

1. Assis Brasil, Luiz Antonio de. Escrever Ficção – um manual de criação literária.
São Paulo, Companhia das Letras, 2019
2. Butler, Judith. Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 2003
3. ___________. Relatar a Si Mesmo – Crítica da Violência Ética. Belo Horizonte,
Autêntica Editora, 2015.
4. Calvino, Ítalo. Mundo Escrito e Mundo não Escrito – Artigos, Conferências e
Entrevistas. São Paulo, Companhia das Letras. 2015.
5. Didi-Huberman. Peuples Exposés, Peuples Figurants. Paris, Les Éditions de Minuit,
2012
6. Gonçalves. Ana Maria. Um Defeito de Cor. Rio de Janeiro, Editora Record, 2017.
7. Risério, Antônio. A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros. Rio de Janeiro,
Editora 34, 2012.
8. Schucman, Lia Vainer. Entre o Encardido e o Branco – Branquitude, Hierarquia e
Poder na Cidade de São Paulo. São Paulo. Editora Annablume, 2014

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