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A criação

Introdução
Segundo Paulo, Deus é aquele que chama à existência as coisas que não existem
[Rm 4.17] por pura bondade e pura liberdade, pois pela fé entendemos que foi o
universo formado pela Palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das
coisas que não aparecem.187 Estas palavras precisam ser aplicadas à primeira obra
de Deus, que de forma deliberada, definida e específica criou todas as coisas. A
primeira criação é obra que aconteceu pela vontade absolutamente livre e não
por qualquer necessidade natural. Isso envolve não somente os atos da criação,
mas toda a espécie e formas presentes na criação de Deus. Na eternidade [quer
dizer, fora do nosso tempo] Deus desejou criar o mundo e isso ele o fez no
nosso tempo.
A doutrina cristã da criação é questionada por pensamentos que a
caracterizam como acidental, enquanto outros a consideram como algo que não
tem fim e outros a veem como sendo algo bom ou ruim, um dualismo. Contra
estes pensamentos, a teologia se posiciona afirmando que, ao produzir todas
as coisas, Deus manifestou o seu poder. Segundo, ao separar todas as coisas e
com isso dar-lhes individualidade, conformidade, harmonia e classificação,
Deus manifestou a sua sabedoria. Terceiro, ao adornar essas coisas com funções,
beleza e charme, Deus manifestou sua bondade.

|| 187 BÍBLIA SAGRADA. Almeida Revista e Atualizada – com Números de Strong. Sociedade Bíblica do Brasil, 2003;
2005, S. Hb 11.3.
150 A criação

Este último ponto é muito importante para nós porque descreve o Deus
da criação não apenas onipotente e sábio, mas bom. Foi por sua boa vontade
que todas as coisas foram feitas. É o Deus bom e de amor quem cria. Esta é a
perspectiva narrada nas Escrituras nos dando a tonalidade do alvo da criação:
a relação entre Deus e o homem.
Apresentamos agora alguns elementos importantes para analisarmos a
doutrina da criação a partir do texto bíblico.

9.1 Criação através da palavra


É através da palavra que Deus cria o mundo. Quando ele fala e ordena.
A Palavra de Deus é algo real, uma ação que ao falar na criação as coisas se
tornaram criadas.
Geralmente atribuímos a ação de falar à segunda pessoa da Trindade [Jo 1.3;
Cl 1.16; Ef.3.9; 1 Co 8.]

A razão principal para se enfatizar que a criação é através da palavra


é contrapor a ideia de uma inatividade de Deus e todas as ideias de
um conjunto de deuses que estariam na origem do universo. A criação
de Deus através da palavra distingue a Deus como um Deus vivo e
pessoal que age pelo falar e cujo falar é sempre ação. A doutrina da
criação através da palavra nos diz não apenas algo sobre como Deus
fez o mundo e todas as coisas, mas nos diz algo sobre o próprio Deus.
Pois Deus é ainda o Deus Criador, vivo e ativo, criando uma igreja
mediante a sua Palavra, e criando um novo céu e uma nova terra
para seus eleitos quando essas coisas temporais tiverem passado. E
tudo é feito por meio da sua palavra.

9.2 Criação do nada


Este aspecto da doutrina da criação nos leva a ensinar que a criação é
consequência direta da Palavra de Deus. Tudo o que existe e veio a existir o foi
por meio da Palavra de Deus [Rm 4.17; Hb 11.3]. Dessa forma, com a ênfase
na criação a partir do nada, proclama-se que Deus é vivo e transcendente e isso
A criação 151

serve de consolo e conforto por sabemos que Deus se faz presente em meio à
sua criação.
Podemos perceber também que ao criar do nada Deus pode continuar sua
obra; ele não a abandona. Ao dividir sua criação, Deus a organiza de forma
delicada e com a atraente possibilidade de que esta continue. Deus não quer se
separar de sua criação, pois, se nada veio a existir por si mesmo ou por mutação
ou por qualquer sentido fora do controle total de Deus, Deus é um Deus vivo
e ativo intimamente relacionado com cada passo e aspecto da sua criação (Sl
136.5; Sl 33).
Há várias imagens descritas no texto bíblico que nos ajudam a entender esta
concepção da criação: “formar” (Gn 2.7; Is 43.7); “preparar cuidadosamente” ou
“fixar” (Sl 74.16); “ordenar ser” (Sl 33.9; 148.6); “fazer maravilhoso” ou “adornar”
(Jó 26.13); “fundar” (Sl 89.11; 104.8); “estender” (Sl 136.6; Is 42.5); “edificar” (Hb
3.4; 1 Pe 3.20; Hb 11.7); “formar” ou “construir” (Hb 11.3).

9.3 A criação e o evangelho


A doutrina da criação nunca é vista como um mero estudo do mundo. A
doutrina Bíblica da criação é algo que devia ser posto em uso, e isso é feito quando
procuramos entender qual a importância do homem perante Deus. Com isso
queremos afirmar que nada, cada evento, cada coisa criada está fora da criação
e vontade soberana de Deus. E a vontade de Deus não é apenas soberana, mas
é boa e de amor, ou seja, sempre dirigida ao bem do homem. Por isso o Deus
da criação é de Deus de graça cuja criação é um ato de amor e tem em mente
um objetivo benevolente e de amor.
E é também uma ênfase muito forte o fato de que devemos usar a doutrina
da criação de tal maneira que o homem em Cristo vela toda a atividade de Deus
na criação como atividade de um Deus de amor e beneficente que está pessoal
e intimamente relacionado com todos os seus filhos ainda hoje. A doutrina da
criação é tão antideísta quanto ela pode ser, e ainda, ao todo, marcadamente
livre de quaisquer noções de magia e superstição. É uma doutrina que faz da
dependência constante do Deus de amor e da constante comunhão com ele a
chave para uma vida significativa e feliz na Terra.
152 A criação

A partir da bondade e da misericórdia, ao homem resta louvar a obra do


Deus Criador. Por isso, passagens como Jó 38; Sl 104; Is 40 são grande hinos de
louvor a Deus pela sua obra. Ver a esplendorosa criação de Deus nos faz adorá-
lo por sua bondade, poder e sabedoria e a nos entregarmos a nós mesmos a ele
em doxologia.
Este culto só pode ser rendido a partir da fé cristã. Sem a fé, ninguém poderia
saber que a criação foi um ato da bondade, do amor e da liberdade transcendental
de Deus, pois nenhum humano poderia antecipar como Deus teria exercido
essa liberdade e esse amor.
A partir de Hb 11.3 compreendemos a criação de tal maneira que ficamos
convencidos de que Deus criou todas as coisas e é o único que também pode
recriar-nos em Cristo e renovar-nos para a sua glória. Somos convencidos de
que Deus, que primeiro fez boas todas as coisas, incluindo o homem, não fez
do homem um pecador, mas é capaz de, por sua graça, libertá-lo do pecado
em Cristo. Somos convencidos de que Deus, que não fez coisas que são vistas a
partir de coisas que aparecem, é capaz de, por nossa salvação, realizar aquelas
coisas que somos incapazes de ver ou entender.

9.4 Os seis dias da criação


É muito difícil resolver a questão dos dias da criação. Agostinho, Atanásio
e Hilário, pais da Igreja Antiga, acreditavam que o mundo fora criado em um
instante. Há outros que consideram a criação dentro do processo evolutivo. Dizer
que o mundo foi criado em seis dias nos ajuda a perceber que a intervenção de
Deus na história não só é possível como real e verdadeira. Explicá-los é difícil.
Melhor é descrevê-los e perceber neles como Deus está atuando.
Eis o relato da criação segundo Gn 1: 1 No princípio, criou Deus os céus e a
terra. 2 A terra, porém, estava sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do
abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas.
3
Disse Deus: Haja luz; e houve luz. 4 E viu Deus que a luz era boa; e fez
separação entre a luz e as trevas. 5 Chamou Deus à luz Dia e às trevas, Noite.
Houve tarde e manhã, o primeiro dia.
A criação 153

6
E disse Deus: Haja firmamento no meio das águas e separação entre águas
e águas. 7 Fez, pois, Deus o firmamento e separação entre as águas debaixo do
firmamento e as águas sobre o firmamento. E assim se fez. 8 E chamou Deus ao
firmamento Céus. Houve tarde e manhã, o segundo dia.
9
Disse também Deus: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num só lugar, e
apareça a porção seca. E assim se fez. 10 À porção seca chamou Deus Terra e ao
ajuntamento das águas, Mares. E viu Deus que isso era bom. 11 E disse: Produza
a terra relva, ervas que deem semente e árvores frutíferas que deem fruto segundo
a sua espécie, cuja semente esteja nele, sobre a terra. E assim se fez. 12 A terra,
pois, produziu relva, ervas que davam semente segundo a sua espécie e árvores
que davam fruto, cuja semente estava nele, conforme a sua espécie. E viu Deus
que isso era bom. 13 Houve tarde e manhã, o terceiro dia.
14
Disse também Deus: Haja luzeiros no firmamento dos céus, para fazerem
separação entre o dia e a noite; e sejam eles para sinais, para estações, para dias
e anos. 15 E sejam para luzeiros no firmamento dos céus, para alumiar a Terra.
E assim se fez. 16 Fez Deus os dois grandes luzeiros: o maior para governar o dia,
e o menor para governar a noite; e fez também as estrelas. 17 E os colocou no
firmamento dos céus para alumiarem a Terra, 18 para governarem o dia e a noite
e fazerem separação entre a luz e as trevas. E viu Deus que isso era bom. 19 Houve
tarde e manhã, o quarto dia.
20
Disse também Deus: Povoem-se as águas de enxames de seres viventes; e voem
as aves sobre a terra, sob o firmamento dos céus. 21 Criou, pois, Deus os grandes
animais marinhos e todos os seres viventes que rastejam, os quais povoavam as
águas, segundo as suas espécies; e todas as aves, segundo as suas espécies. E viu Deus
que isso era bom. 22 E Deus os abençoou, dizendo: Sede fecundos, multiplicai-vos
e enchei as águas dos mares; e, na terra, se multipliquem as aves. 23 Houve tarde
e manhã, o quinto dia.
24
Disse também Deus: Produza a terra seres viventes, conforme a sua espécie:
animais domésticos, répteis e animais selváticos, segundo a sua espécie. E assim
se fez. 25 E fez Deus os animais selváticos, segundo a sua espécie, e os animais
domésticos, conforme a sua espécie, e todos os répteis da terra, conforme a sua
espécie. E viu Deus que isso era bom.
26
Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa
semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre
154 A criação

os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam
pela terra. 27 Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o
criou; homem e mulher os criou. 28 E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos,
multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre
as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra. 29 E disse Deus ainda:
Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície
de toda a terra e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será
para mantimento. 30 E a todos os animais da terra, e a todas as aves dos céus, e a
todos os répteis da terra, em que há fôlego de vida, toda erva verde lhes será para
mantimento. E assim se fez. 31 Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito
bom. Houve tarde e manhã, o sexto dia.
Assim, pois, foram acabados os céus e a terra e todo o seu exército. 2 E,
2.1

havendo Deus terminado no dia sétimo a sua obra, que fizera, descansou nesse dia
de toda a sua obra que tinha feito. 3 E abençoou Deus o dia sétimo e o santificou;
porque nele descansou de toda a obra que, como Criador, fizera.188

O primeiro dia da criação


“No princípio” quer dizer “quando este mundo começou a existir”. Apenas
quando as coisas fora de Deus começam a existir é que temos um começo. Tanto
o relato de Gn 1.1 como o de Jo 1.1 nos mostram que a criação é uma ação de
começo.
A expressão “céus e terra” designa biblicamente o universo bem como todas
as coisas conforme Paulo em Cl 1.17 e At 17.24. Deus ainda está criando uma
matéria bruta, que foi a primeira coisa a ser criada no universo. Tanto a terra
como a água são criadas neste dia.
A terra está sem forma e vazia, o que se entende com um estado caótico de
todas as coisas criadas antes da mão de Deus ter separado e disposto tudo em
ordem.
A luz é uma luz elementar, em contraste às trevas [2 Co 4.6]. Segundo
Mueller, “a partir do primeiro dia do mundo e sempre, a repetição regular de

|| 188 BÍBLIA SAGRADA. Almeida Revista e Atualizada – com Números de Strong. Sociedade Bíblica do Brasil, 2003;
2005, S. Gn 1.1-2.3.
A criação 155

trevas e luz demarca o período de um dia, como nós agora o dividimos em vinte
e quatro horas”.189

Segundo dia
“Firmamento” é, de acordo com Gn 1.6-8, o que divide as águas que lhe ficam
em cima e embaixo de forma que devemos supor águas além do que vemos
na abóboda celeste. O que se quer mostrar com este relato é a onipotência e
majestade de Deus nem sempre conhecidas pela mente humana.

Terceiro dia
Segundo Mueller, “neste dia Deus concluiu a sua obra criadora com respeito
às coisas inanimadas ao mandar a sua ordem onipotente para que todas as águas
debaixo dos céus, debaixo do firmamento que ele construíra, se ajuntassem
num só lugar para si. Enquanto perdurava o caos, tão completa era a confusão
de sólidos e líquidos que excluía a designação ‘porção seca’. Já os sólidos e
líquidos deveriam separar-se, de maneira que se tornava visível a porção seca
como a conhecemos”.190 É na porção seca que conhecemos a atividade criadora
propriamente dita.
As palavras do Sl 104.6ss são uma bela forma de descrever o que ocorreu
no terceiro dia.

Quarto dia
Há um “geocentrismo” no relato da criação conforme o Gênesis. No entanto,
não se trata de uma posição científica a respeito da geografia do universo. A
astronomia comprovou que a Terra gira em torno do Sol, não o contrário. O
Gênesis simplesmente mostra que Sol, Lua e estrelas foram formados por causa
da Terra, não em volta dela. E, naturalmente, isso se deve pelo que deveria
acontecer na Terra. A criação do homem viria a ser o ápice da criação. O relato
é feito da perspectiva que Deus dá à sua criação e o que vem depois dela, visto

|| 189 MUELLER, John. Dogmática cristã, p. 186.


|| 190 MUELLER, John. Dogmática cristã, p. 186.
156 A criação

que a revelação tratará das coisas que vão acontecer na Terra (algumas delas,
vindas do céu! – Lc 2).
Gerhard aproveita o relato da criação no quarto dia para falar contra a
astrologia! Ele admite que certas condições climáticas possam ser previstas
pela posição dos astros. No entanto, atribuir influência dos astros sobre a vida
(destino) das pessoas seria ignorar a providência divina e o poder que Deus dá
às nossas orações, pelas quais o curso da história pode ser mudado!

Quinto dia
Deus fez os peixes e as aves não a partir do nada, mas da terra. Chemnitz:
“Que tremenda maravilha é esta, que há tamanha diferença entre as criaturas
aquáticas e os pássaros – pois o peixe morre no ar, e o pássaro sufoca na água –,
todavia, quando Deus fala, ambos são produzidos do mesmo material”. Com esta
manifestação de Chemnitz, notamos mais uma vez que não podemos especular
sobre cosmologia ou ciência natural, a partir do relato da criação. Eles veem na
criação do mundo assunto para maravilhar-se e louvar a Deus.

Sexto dia
No sexto dia Deus fez os animais e o homem da mesma maneira como
trabalhou no quinto dia: Fez haver vida em um elemento inanimado. E como
a terra produziu animais e homens sob a ordem de Deus, isso não é menos
admirável do que a criação de Deus, do nada, no primeiro dia. No entanto,
quando ele fez o homem, não disse: “Haja”, antes, porém, “Façamos”. Deus
revela deliberação enquanto cria a natureza humana. Ele prepara o material do
qual faz o corpo humano (Gn 2.7). Ele não diz “produza a terra”, mas ele forma,
acomoda, molda [cf. Jó 10.8]. Ele fez dos animais almas viventes, enquanto no
homem soprou o espírito da vida que não deixa de existir quando o homem
morre (Ec 12.7; Mt 10.28) (p.188). Ao contrário dos animais, o homem foi
criado para eterna comunhão com Deus (embora essa imortalidade tenha
sido perdida com a queda). Pelo soprar divino para dentro do homem, por
conseguinte, Deus faz do homem algo muito especial: Deu-lhe sabedoria, luz
e justiça. Deus o fez à sua própria imagem, uma imagem perdida com a queda,
porém restaurada novamente por Cristo através de novo soprar para dentro do
A criação 157

Espírito (Jo 20.22). Assim como a luz, o abismo e os anjos, também a alma do
homem foi criada do nada.
Toda a criação conduz ao que Deus fez finalmente no sexto dia, quando
ele fez o homem à sua imagem. Já mencionamos isso quando relatamos que a
criação deveria ser ensinada de tal maneira que o homem aprendesse, a saber,
quão importante ele é para Deus. Essa importância do homem perante Deus
foi realçada no sexto dia, pois nesse dia Deus lhe deu todo o mundo, o mundo
que ele criara muito bom.
Ao concluirmos uma breve análise do relato dos seis dias da criação,
destacamos que este relato nos demonstra a bondade, a sabedoria e o poder de
Deus, causando no homem admiração e louvor.

Referências comentadas
AULÉN, Gustaf. A fé cristã. 2. ed. São Paulo: ASTE, 2002.
Diferente da Dogmática cristã de Mueller, apresentada anteriormente, o texto
de Aulén reflete o estudo da sistemática a partir da metade do século XX. Por
isso, representa uma abordagem diferente e mais próxima de nossa realidade.
Não são tantos assuntos tratados nesta sistemática teológica, mas são os assuntos
mais importantes dentro da sistemática. Comparando com Mueller, a doutrina
do pecado é tratada na dogmática dentro da antropologia; já em Aulén, a
doutrina do pecado está relacionada à doutrina da pessoa de Cristo, não estuda
em nosso livro. Este é apenas um exemplo, o que torna A fé cristã de Aulén um
texto fundamental para a biblioteca de um estudante de teologia.

BRAATEN, Carl & JENSON, Robert [editores]. Dogmática cristã. São


Leopoldo: Sinodal, 2002.
Diferente das duas dogmáticas anteriores, a de Mueller e a de Aulén, esta
apresenta uma abordagem atomística da teologia, isto é, uma série de autores
descrevem os vários assuntos da sistemática, cada um de seu ponto de vista
confessional. Na doutrina da criação, assunto deste capítulo, a dogmática utiliza o
texto bíblico apenas como referência e não de forma a tirar conclusões da Bíblia.
158 A criação

É sem dúvida uma forma de fazer teologia própria dos dias atuais, especialmente
no âmbito do estudo sistemático da teologia.

Referências
AULÉN, Gustaf. A fé cristã. 2. ed. São Paulo: ASTE, 2002.
BÍBLIA SAGRADA. Almeida Revista e Atualizada – com Números de
Strong. Sociedade Bíblica do Brasil, 2003; 2005.
BRAATEN, Carl. & JENSON, Robert [editores]. Dogmática cristã. São
Leopoldo: Sinodal, 2002.
MUELLER, John. Dogmática cristã. Porto Alegre: Concórdia, 2004.

Autoavaliação
1. Como a teologia nos ajuda para entendermos a criação como sendo algo
fruto da ação de Deus amoroso e não casual, meramente ao acaso da
matéria que evolui, transformando-se no que vemos na criação hoje?
2. Por que a teologia cristã é contra qualquer forma de dualismo?

3. Quando Deus diz que tudo o que ele fez era “muito bom”, ele quis
dizer:
a) que tudo que foi feito era completo em si.
b) que tudo era perfeito e capaz de ser expressão do próprio Deus.
c) que nada poderia destruir a criação de Deus.
d) que a autonomia do ser humano tinha endereço certo: as outras
criaturas.

4. Por que a doxologia é uma atitude importante diante da criação de


Deus?
A criação 159

5. A imagem divina no ser humano antes do pecado significava:


a) capacidade de escolher entre o bem e o mal.
b) discernimento espiritual entre vontade de Deus e os limites do ser
humano.
c) conhecimento perfeito da vontade de Deus aplicado à vida como ser
criado.
d) disposição especial em atender a voz de Deus.

Respostas:
3) a, b, c e d.
5) a, b, c e d.
Criação e evolução
Introdução
Há uma aparente contradição em dois discursos que seguidamente ouvimos
em nosso meio.
No contexto teológico e eclesiástico, os cristãos confessam com o Credo
Apostólico: “Creio em Deus Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra”.
Esta confissão cristã reproduz o testemunho bíblico: “porque em seis dias fez o
Senhor os céus e a terra, e o mar e tudo o que neles há, e ao sétimo descansou”,
registrado em Êxodo 20.11. Assim, confessando a criação como obra de Deus,
caracterizando-o como todo-poderoso, como faz o Credo, a Igreja Cristã expressa
sua fé sobre a veracidade do relato da criação conforme o Gênesis.
Já nos meios de comunicação, ouvimos que o mundo está caminhando
para um fim através da contínua e implacável devastação da natureza em todo
o mundo na forma de eliminação de florestas e ecossistemas, poluição da água
e do ar, chuva ácida, destruição da camada de ozônio, aquecimento global e
outras agressões ao meio ambiente. Recentemente, a gravidade do problema
ficou ilustrada de modo dramático quando foram divulgadas fotos do monte
Kilimanjaro, o mais alto da África, sem a sua milenar cobertura de neve. É certo
que o meio ambiente sempre sofreu violências ao longo da história do planeta
Terra, mas quase todas foram resultantes de causas naturais, espontâneas. A
diferença é que nos últimos séculos são os próprios seres humanos que têm
agredido de maneira crescente o seu precioso e frágil habitat. Este iminente fim
162 Criação e evolução

causado pelo ser humano faz com que cientistas estimem um fim próximo para
o nosso ecossistema. Esta visão de um fim é fruto de uma reflexão que podemos
denominar de naturalismo.
Contrário ao pensamento teológico da criação do mundo através da
intervenção de Deus, o naturalismo defende a tese da progressividade que
evoluiu e que agora chega a ponto tal que o próprio homem pode gerar o fim
do mundo criado ao longo de milênios.
O presente capítulo irá descrever as duas abordagens, ampliando o capítulo
anterior que tratou da doutrina cristã da criação.

10.1 O naturalismo evolucionista


No ano de 2009, o mundo celebra os 200 anos do nascimento de Charles
Darwin [1809-1882] e os 150 anos do lançamento de sua obra intitulada A
Origem das Espécies [1859], na qual Darwin propôs que todas as espécies de
seres vivos hoje existentes, inclusive o ser humano, evoluíram a partir de um
ancestral comum por meio de mutações graduais (variações espontâneas) e da
seleção natural (sobrevivência dos mais aptos). Assim, ao longo de um imenso
período de tempo, organismos vivos simples deram origem a outros mais
complexos meramente através de leis naturais intrínsecas, sem intervenção
externa sobrenatural.
A ideia da evolução não surgiu com Darwin. Na Antiguidade, ela já havia
sido proposta pelo filósofo grego Anaximandro. Nos séculos 17 e 18, Kant
e Hegel, os pais da filosofia moderna, eliminaram completamente qualquer
conceito de revelação de Deus de forma direta na criação e também de forma
especial na Bíblia. Para Kant, a natureza torna-se completamente autônoma
e faz emergir o que ela determina. Hegel ampliou a reflexão de Kant, a partir
de seu método de pesquisa que afirmava o confronto entre a tese e a antítese:
tem-se a síntese e este processo se repete de tal forma que busca um constante
aperfeiçoamento. No século seguinte, na primeira metade do século 19, a busca
pelo constante aperfeiçoamento tinha sido levantada por diversos cientistas,
inclusive o avô de Darwin. Inicialmente, foi aplicada à geologia, para então
estender-se à biologia.
Criação e evolução 163

Um evento decisivo para Charles Darwin foi a famosa viagem de estudos


que fez à América do Sul no navio Beagle, durante cinco anos, na década de
1830. Nessa viagem, ele passou pelo Brasil, mas fez suas observações mais
importantes nas ilhas Galápagos. Darwin inicialmente era um homem religioso,
tendo inclusive, quando jovem, considerado a carreira ministerial. Em A Origem
das Espécies ele deixou algum espaço para a crença em Deus. Todavia, em sua
outra obra sobre o assunto, A Descendência do Homem (1871), assumiu uma
postura mais agnóstica. Ainda assim, quando morreu foi sepultado na Abadia
de Westminster, a poucos metros do túmulo de Isaac Newton.
O que Darwin fez foi apenas usar algumas evidências científicas para
encaixá-las no esquema evolucionista de Kant e Hegel, formulando a teoria
do evolucionismo com respeito ao surgimento do homem e do universo. Se
prestarmos bem atenção, a teoria evolucionista surgiu como uma alternativa à
explicação sobrenatural do surgimento do homem e do universo, utilizando-se
de evidências científicas com um pressuposto filosófico.
Rapidamente, a teoria da evolução alcançou notoriedade e crescente
aceitação. Um dos principais responsáveis por isso foi T. H. Huxley, o indivíduo
que cunhou o termo “agnóstico”, que utilizou para descrever sua própria posição.
Curiosamente, muitos líderes religiosos foram simpáticos à nova teoria. Dentre
eles, podem ser mencionados Frederick Temple, futuro arcebispo de Cantuária,
Lyman Abbott, influente clérigo norte-americano, e Henry Drummond, biólogo
e pastor escocês. Para eles, a evolução era um sinal da providência de Deus e de
seu contínuo trabalho em sua criação. Outros, porém, como o pregador calvinista
inglês Charles H. Spurgeon, manifestaram sua contrariedade. Na comunidade
científica, com o passar dos anos, a teoria evolucionista se tornou a doutrina
universalmente aceita, a posição consagrada pela academia.
Nos primeiros cinquenta anos após a publicação do clássico de Darwin, as
reações contra o conceito de evolução biológica foram relativamente limitadas
nos círculos cristãos. Na verdade, alguns aspectos do evolucionismo ganharam
simpatizantes não só entre os teólogos liberais, mas também entre alguns
conservadores. Dois exemplos conhecidos são o presbiteriano Benjamin B.
Warfield e o batista Augustus H. Strong. Essa situação mudou radicalmente a
partir da década de 1920, com a eclosão do movimento fundamentalista nos
Estados Unidos. Em sua luta ferrenha contra o modernismo, os fundamentalistas
adotaram uma posição antievolucionista radical. Para eles, a teoria da evolução
164 Criação e evolução

era um sério atentado contra a inspiração e a autoridade das Escrituras, pois


colocava em dúvida o relato da criação contido no livro do Gênesis.
Um episódio constrangedor para esse grupo ocorreu em julho de 1925 na
cidadezinha de Dayton, no Tennessee. John T. Scopes, um professor de biologia,
havia ensinado a teoria da evolução em suas aulas no curso secundário, o que
violava uma recente lei estadual. Quando o caso foi levado a julgamento, os
dois principais assistentes da acusação e da defesa foram, respectivamente, o
ex-candidato a presidente William Jennings Bryan, representante da posição
fundamentalista, e o advogado agnóstico Clarence Darrow. O evento, que ficou
conhecido como “julgamento do macaco”, teve enorme cobertura da imprensa,
tendo sido o primeiro julgamento dos Estados Unidos a ser transmitido pelo rádio
em âmbito nacional. Ao ser interrogado por Darrow sobre questões de Bíblia
e ciência, Bryan se mostrou vacilante em muitas de suas respostas. A posição
conservadora deixou uma imagem de estreiteza de mente e superficialidade.

10.2 As consequências da explicação


evolucionista da criação
Para os cristãos, o maior problema de muitos evolucionistas está em sua
postura filosófica - o naturalismo - que nega a priori qualquer lugar para Deus
nos fenômenos estudados pela ciência. Esses cientistas afirmam dogmaticamente
que questões de fé e questões de ciência são compartimentos estanques,
incomunicáveis. Os estudiosos denominados teístas argumentam que existem
questões cruciais para as quais a abordagem naturalista não tem uma resposta
convincente, a começar da origem da vida e das leis precisas e universais que
regem toda a realidade. Alguns deles, não necessariamente religiosos, têm
proposto o conceito de “projeto inteligente”.
No âmbito do cristianismo tem existido uma variedade de posições em
relação ao assunto. Uma abordagem é o “evolucionismo teísta”, segundo o qual
Deus criou de maneira direta no início do processo e desde então atua somente
através de causas secundárias por meio da evolução biológica. Um exemplo
clássico desse enfoque é o teólogo e antropólogo católico Pierre Teilhard de
Chardin (1881-1955), que reinterpretou toda a mensagem cristã em termos
evolucionistas. Outra perspectiva, o “criacionismo progressivo”, entende que as
Criação e evolução 165

atuais variedades de organismos são resultantes do processo de diversificação


por meio da microevolução, a partir dos protótipos criados originalmente por
Deus. Por fim, há o criacionismo clássico, segundo o qual cada espécie foi criada
diretamente por Deus. Essa posição inclui o entendimento literal dos dias da
criação (24 horas), de uma terra jovem (cerca de dez mil anos) e de um dilúvio
universal que explicaria os depósitos sedimentares e os fósseis de hoje.
Todas estas propostas interpretativas nos levam a refletir sobre os princípios
hermenêuticos do relato da criação. Se considerarmos que Deus criou o mundo,
mas não considerarmos o como ele o mantém, cairemos num subjetivismo como
proposto pelas diferentes teorias para explicar a criação. Outro problema surge:
o que fazer com o relato da criação de seis dias e um dia de descanso? O que
fazer com os detalhes de que Adão foi feito de barro e Eva foi amoldada a partir
de uma das costelas de Adão?
Para muitos teólogos, o que importa é que Deus fez sua criação, mas não se
importam com o como. O que se perde com esta interpretação é a historicidade
do fato. Não é o “como” da criação que importa. É o “quê” – é o fato de o universo
não ser entendido como realidade casual, mas como obra de Deus, o qual se
revela na sua criação e que tem um propósito definido com o mundo que cria
– Deus, que fez o homem à sua imagem, isto é, que lhe deu a dignidade de ser
agraciado consciente de sua condição de humano, de parceiro responsável de
seu Criador.
Temos que ter cuidado ao assumir esta linha de pensamento porque
estaremos desacreditando o próprio texto bíblico na perspectiva de desconsiderar
o elemento determinante da atuação de Deus com a história do ser humano. O
relato da criação no Gênesis precisa ser entendido como o primeiro elemento
na argumentação teológica cristã que irá envolver todo o conjunto da atuação
de Deus na história, centrada na vinda de Jesus Cristo. Quando Gênesis nos
remete “ao princípio” de tudo, ele nos mostra como Deus começa a sua atuação
na história dos seres humanos. Outra indicação desta história é a descrição
sucessiva dos seis dias da criação, terminando com o descanso no sétimo dia.
Quando o apóstolo Paulo escreveu “Deus, que disse: Das trevas resplandecerá
a luz, ele mesmo resplandeceu em nosso coração, para iluminação do
conhecimento da glória de Deus, na face de Cristo” [2 Co 4.6], ele, simplesmente,
autoriza o texto de Gênesis 1, caracterizando-o como fato histórico, pois a
166 Criação e evolução

veracidade da criação está intimamente ligada à sua descrição; somente se ela


de fato ocorreu como foi descrita, ela poderia ter sido assim descrita.
Negando a historicidade do como da criação, corremos o risco de negar
também a ressurreição como fato histórico como fizeram muitos teólogos que
se utilizaram do método histórico-crítico em relação ao texto bíblico. Paulo
novamente nos alerta e ajuda na interpretação histórica a respeito da ressurreição
de Cristo quando escreve: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda
permaneceis em vossos pecados” [1 Co 15.17].
Juntando o cientificismo do método aplicado pelos pensadores modernos,
encontraremos muitos cristãos em nosso meio, neste período pós-moderno,
confessando parcialmente que creem em Deus Pai todo-poderoso, Criador
do céu e da terra, esvaziando o conteúdo desta confissão, transformando o
Deus todo-poderoso, pessoa-infinito ou transcendente, cada vez mais num ser
imanente e impessoal, deixando o homem num beco sem saída. Portanto, o
pensamento criacionista e o pensamento evolucionista não podem conviver.
Outro problema relacionado ao relato da criação, no posicionamento crítico,
é o relato da criação que ocorre em dois capítulos diferentes, dando a entender
que há autores diferentes para os relatos, em diferentes épocas, com pressupostos
teológicos diferentes, inclusive com detalhes diferentes.
Mas em um estudo detalhado dos dois relatos, dentro do todo do livro
do Gênesis, perceberemos que os dois relatados na realidade são únicos.
Considerando que o livro de Gênesis nos relata a intervenção de Deus na história
do mundo para salvar o homem do pecado, tanto o relato de Gênesis 1-2.4a como
Gênesis 2.4b-25 relatam apenas um fato histórico, sendo que Gênesis 2.4b-25
precisa ser lido como um resumo do relato anterior, introdução a outro grande
assunto que inicia no capítulo 3 de Gênesis: a queda do homem e a promessa
do Salvador.
Outro problema levantado pelos intérpretes do texto da criação é com
relação à extensão do dia em Gênesis 1. Antes das influências do pensamento
evolucionista na teologia, cria-se que o mundo tinha sido formando em torno
de 4.000 antes de Cristo, totalizando 6.000 com os anos depois de Cristo. A base
deste cálculo eram as listas genealógicas de Gênesis 5 e 11, considerando-as
como contínuas. No momento em que o pensamento evolucionista começou
a influenciar a reflexão teológica, muitos começaram a ampliar a idade do
Criação e evolução 167

universo e do aparecimento do homem, argumentando simplesmente que o


dia em Gênesis poderia ser interpretado como um período muito maior do
que 24 horas.
A resposta para este questionamento começa com a definição de dia em
Gênesis. Em 1.5, o dia corresponde ao período de 12 horas de luz; já em 1.14,
temos um dia de 24 horas; já em 2.4, temos o período de seis dias como sendo
os dias da criação e a melhor forma de entendermos este período de seis dias é
aplicarmos a expressão “houve tarde e manhã”, o que nos leva a um dia normal,
inclusive aplicado ao dia em que o Sol foi criado.
Se considerarmos as genealogias em Gênesis para datarmos o mundo,
podemos incorrer em erro, visto que não é a intenção delas descrever um
período de tempo. O escritor bíblico não tem a intenção de contabilizar os
anos antes de Abrãao. Neste caso, a Escritura não nos fornece um calendário
preciso, visto que não é sua intenção. Mas a Escritura nos dá a impressão de que
estamos em uma terra bem mais jovem do que as teorias de alguns cientistas
sugerem. Nenhum lado pode ser definitivo. No entanto, o cristão precisa estar
certo de que quaisquer conclusões a que ele chegar precisam estar claramente
em harmonia com um grande ato criador, com o homem criado especialmente
por Deus à sua imagem, com a queda do homem em pecado, e com a primeira
promessa de um Salvador em Gênesis 3.15. E perder estas verdades preciosas
seria verdadeiramente trágico.

10.3 Os desafios cristãos


a partir do relato da criação
Para muitos cientistas, a perspectiva criacionista deve ficar restrita ao
âmbito da confissão de fé, separando-se definitivamente do mundo científico.
Infelizmente, o termo “criacionismo” está desgastado. Muitas vezes, é usado
para descrever uma posição religiosa estreita que adota uma determinada
interpretação da Bíblia e rejeita em bloco o que entende ser uma visão científica
antibíblica. Todavia, no melhor sentido do termo, o criacionismo é a afirmação
de uma das convicções mais básicas do cristianismo. Ao contrário dos gregos,
que criam na eternidade da matéria, e dos gnósticos, que a consideravam
intrinsecamente má, os cristãos abraçaram a posição conhecida como “creatio
168 Criação e evolução

ex nihilo”, ou seja, Deus criou todas as coisas a partir do nada, sem utilizar
qualquer material preexistente. A criação é, portanto, boa e valiosa. Essa verdade
é a primeira declaração da Escritura – “No princípio criou Deus os céus e a
terra” –, e do Credo Apostólico – Creio em Deus Pai, todo-poderoso, criador
do céu e da terra” –, e por isso o assunto deve ter importância crucial para o
teólogo cristão.
Nossa primeira preocupação deve começar com uma consciência ecológica.
De acordo com Gênesis 1, o universo como um todo, e em especial a Terra,
agraciada com o maravilhoso dom da vida, é obra das sábias e poderosas mãos
de Deus (ver Sl 136.3-9; Pv 8.22-31). A natureza, em toda a sua complexidade e
beleza, testifica sobre a grandeza e a bondade do Criador (Dt 33.13-16; Sl 104.10-
24, 27-30). São muitas as passagens bíblicas, algumas de grande sublimidade
poética, que visam inculcar nas pessoas uma atitude de respeito e admiração
pelos encantos do mundo natural (Jó 40.15-19; Sl 65.9-13; 147.7-9,15-18; 148.1-
10; Ct 2.11-13; At 14.17). Nos seus ensinos, Jesus fez muitas referências à natureza
para exemplificar o cuidado providente de Deus (Mt 6.26,28; 13.31-32; Lc 12.6).
Nos anúncios proféticos do novo tempo que Deus irá criar, a natureza ocupa
um lugar de destaque (Is 11.6-8; Ez 47.7,12; Ap 22.1-2).
Ainda que Deus tenha feito o ser humano como o coroamento da sua obra
criadora, ele não lhe conferiu o direito de abusar da terra e de seus recursos.
Fica implícita em toda a Escritura a responsabilidade humana de cuidar e de
guardar do “jardim do Senhor” (Gn 2.15). O conceito de mordomia se aplica
de modo especial nessa área à Terra, e suas riquezas pertencem a Deus, que as
confia ao homem para que as administre com cuidado e sabedoria. O pecado
humano gerou alienação em relação a Deus e à natureza. Por isso agora a criação
“geme e suporta angústias” até que seja “redimida do cativeiro da corrupção”
(Rm 8.21-22). Os cristãos têm o dever inescapável de usar criteriosamente as
coisas que Deus criou, visando dar-lhes vida, sustento e alegria.
Aqui poderíamos ampliar nossa responsabilidade através de uma educação
consciente para que todos possam usar dos recursos naturais dados por Deus de
forma criteriosa, responsável, levando em conta as atuais necessidades bem como
as das futuras gerações. Os cristãos conscientes irão propor um desenvolvimento
sustentável para que a natureza criada por Deus continue sendo uma bênção.
Criação e evolução 169

Responsavelmente, a teologia da criação nos empurra para uma atuação


fora dos nossos âmbitos corriqueiros; precisamos envolver outras instituições
para se responsabilizarem no mesmo projeto. Governo, empresas, ONGs, todos
precisam cuidar da dádiva da criação.
Uma segunda preocupação deve estar na mente dos teólogos. A revelação
de Deus, através das Escrituras Sagradas, mostra-nos uma ligação bem próxima
entre os primeiros capítulos de Gênesis e os últimos capítulos de Apocalipse.
Estes dois grandes blocos nos mostram uma relação bem pessoal de Deus com
sua criação. O Apocalipse nos ensina que voltaremos a nos reunir com o Deus
que nos criou, através de Jesus Cristo.
Percebemos, ao longo do texto bíblico, uma íntima conexão entre a criação
de Deus com sua bondade de providenciar a salvação do homem pecador através
de Jesus Cristo.
Isaías nos alerta para a obra completa de Deus quando escreve: “Assim diz
Deus, o Senhor, que criou os céus e os estendeu, formou a terra e a tudo quanto
produz; que dá fôlego de vida ao povo que nela está e o espírito aos que andam nela.
Eu, o Senhor, te chamei em justiça, tomar-te-ei pela mão, e te guardarei, e te farei
mediador da aliança com o povo e luz para os gentios; para abrires os olhos aos
cegos, para tirares da prisão o cativo e do cárcere os que jazem em trevas. Eu sou o
Senhor, este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem, nem a minha
honra, às imagens de escultura. Eis que as primeiras predições já se cumpriram, e
novas coisas eu vos anuncio; e, antes que sucedam, eu vo-las farei ouvir”. [42.5-9]
Aqui temos três perspectivas da atuação de Deus: na criação, quando cria o
mundo, na perspectiva da criação do povo de Deus, que Deus reúne em Cristo,
e na perspectiva individual, quando Deus se torna o Deus pessoal em relação
ao crente individualmente. Temos a primeira criação, na criação do mundo, e
uma segunda criação, através de Cristo, que reúne os crentes como seu povo,
uma “nova criação”. É o mesmo Deus criando e cuidando de sua criação e,
como “cuidados pelo Senhor”, os cristãos aguardam a consumação quando
ressuscitarão de forma incorruptível e os vivos transformados para estar com
Deus que criará os novos céus e a nova terra como prenuncia Apocalipse 21.1.
170 Criação e evolução

Referências comentadas
LONGMAN III, Tremper. Como ler Gênesis. São Paulo: Vida Nova, 2009.
Nesta obra o autor pretende nos mostrar a importância de uma reflexão
profunda sobre a natureza literária, teológica e histórica de Gênesis, para que
possamos entender sua mensagem e aplicá-la para os dias de hoje. Como afirma
o próprio autor: “um dos maiores erros que podemos cometer na interpretação é
ler o texto como se tivesse sido escrito para nós hoje”. Para resolver este problema,
o autor sugere quatro princípios para a leitura do texto: reconhecer a natureza do
livro de Gênesis; examinar o seu contexto histórico; refletir sobre sua teologia;
e refletir sobre a condição do leitor, da sociedade e do mundo de hoje.

COLLINS, Francis. A linguagem de Deus. Um cientista apresenta evidências


de que ele existe. São Paulo: Editora Gente, 2007.
Para todas as mentes questionadoras, o livro quer esclarecer o dilema existente
entre a fé em Deus e a fé na ciência.
Com base em evidências, o autor tenta aproximar a religião dos conhecimentos
científicos, assumindo a posição de que são complementares. De um lado, a
ciência investiga o que há de natural, já a religião dá respostas a diversas questões
pertencentes a outra esfera, as quais nenhuma teoria da evolução pode explicar.
É uma tentativa de unir o espiritual e o científico.

Referências
COLLINS, Francis. A linguagem de Deus. Um cientista apresenta evidências
de que ele existe. São Paulo: Editora Gente, 2007.
LONGMAN III, Tremper. Como ler Gênesis. São Paulo: Vida Nova, 2009.
MACARTHUR, John. Criação ou evolução. A luta pela verdade sobre o
princípio do Universo. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
MORELAND, J. P. e REYNOLDS, John Mark. Criação e evolução. Três
pontos de vista. São Paulo: Editora Vida, 2006.
Criação e evolução 171

ZIMMER, Rudi. Criacionismo ou evolucionismo? Revista Igreja Luterana,


1979/3, 5-17.
ZIMMERMAN, Paul. Darwin, Evolution and Creation. Saint Louis:
Concordia, 1959.

Atividades
1. Descreva como a filosofia moderna influencia na interpretação do texto
bíblico da criação.
2. Como Hegel pode ser considerado o pai do evolucionismo desenvolvido
por Darwin?
3. Analise a forma como teólogos pós-modernos tentam coadunar o
pensamento bíblico com a teoria evolucionista.
4. Como podemos relacionar a doutrina da criação com a doutrina da obra
de Cristo?
5. Em que aspectos o relato da criação nos ajuda na interpretação da nova
criação a partir da ação de Deus em Cristo Jesus?
6. Qual é o papel dos cristãos em meio à criação de Deus?
7. Considerando a teologia da criação como obra de Deus, podemos crer que
o fim do mundo está nas mãos de Deus ou dos homens?
8. Por que é importante distinguirmos os dias da criação como sendo dias
de 24 horas?

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