Você está na página 1de 16

SÕREN KIERI<EGAARD

(1813-1855)

J. Vida e obras1

N ascido em 1813 em Copenhague de um pai velho e melancólico, angus-


tiado pela idéia da culpa sentida como algo ameaçador e inevitável, não
experimentou na infância a despreocupação e a vitalidade sadia peculiares a
essa idade. P. Mesnard afirma: "Não teve a religião pueril na qual a criança
se familiariza primeiramente com o Menino Jesus no presépio e só vai des- ·

1. As obras de Kierkegaard no texto original (Samlede Vaerker) foram publicadas em


Copenhague, 2ª ed., 1920-1936. ·
Cornelio Fabro traduziu as principais obras de Kicrkegaard para o italiano e coligiu
suas traduções em um único volume: S. KlERKEGAARD, Opere, Florença. Sansoni, 1972.
Além disso, indicamos: O banquete, Lisboa, Guimarão, s.d., Diário de um sedutor, São Paulo:
Nova Cultural, 3ª ed. , 1988; Temor e tremor, São Paulo: Nova Cultural, 3ª ed., 1988; O
desespero humano (doença até à morte), São Paulo: Nova Cultural, 3ª ed., 1988; O conceito
de ironia, Petrópolis, Vozes, s.d.; O matrimônio, s.d., Psy, 1994; Migalhas.filosóficas, Petrópolis, '
Vozes, s.d.
Uma bibliografia sobre Kierkegaard está contida na Introdução de C. Fabro em: S.
KlERKEGAARD, Briciole di filosofia e Postilla non scientifica, Bolonha, Zanichelli, 1962. Da
imensa bibliografia kierkegaardiana limito-me a lembrar. além das Introduções de C. FABRO
nas traduções citadas (introduções que. de algum modo, resumem a interpretação adotada por
Fabro em numerosos ensaios): J. WAHL, Études kierkegaardie11nnes, Paris, Aubier. 1938: P.
MESNARD, Le vrai visage de Kierk.egaard, Paris, Beauchesne, 1948; R. CANTONI, IA coscienza
inquieta, Milão, Mondadori, 1949. ·

-
HlSTÔRlA DA FILOSOFIA COITTEMI'ORÃNEA

cobrindo aos poucos a identidade da Encarnação e da Redenção. O cristianis-


mo é Cristo, e Cristo morrendo na cruz. O sangue, a dor, o pecado, a massa
damnata, tais são os patronos desta estranh~ família n~ ~uai..: formação
moral e religiosa de Kierkegaard se dá sob o signo da angustia... . Em l830
matriculou-se na Universidade, na Faculdade de Teologia; interessou-se viva:
mente também por filosofia e literatura e levou uma vida despreocupada.
Entre 1835 e 1838, deu-se o acontecimento que Kierkegaard indica como 0
"grande terremoto" e que foi talvez a revelação de uma culpa paternal. A
crise se resolveu com uma reaproximação de Kierkegaard do cristianismo e
com uma reconciliação com o pai, do qual o afastara a vida dissipada dos
anos anteriores. Em 1838, o pai veio a falecer. Em 1840, prestou os exames
de teologia para tornar-se pastor; no mesmo ano, ficou noivo de Regina
Olsen, "como início e compromisso da seriedade da vida à qual durante
tantos anos as recriminações do pai o haviam incitado em vão"\ mas, um ano
mais tarde, rompeu o noivado, não se sabe por que razão. As páginas do
Diário atestam que ele se sentiu inseguro, lutou consigo mesmo, depois jul-
gou impossível casar: ao que parece, o obstáculo foi sua melancolia.
Kierkegaard fala também, usando um termo paulino, de um "espinho na
carne", interpretado de maneiras diversas. Em 1841, viajou para Berlim, onde
assistiu às aulas de Schelling, filósofo que de início o entusiasmou, mas em
seguida o decepcionou.
À publicação, em 1841, da tese de doutorado em filosofia, Sobre o
conceito de ironia, as outras obras se seguiram em breve lapso de tempo: em
1843, Aut-Aut; nos anos 1844-1845, Temor e tremor. A repetição, O conceito
de angústia, Migalhas filosóficas, Estágios no caminho da vida. Todas essas
obras foram publicadas com pseudônimos; a estas, alternaram-se, publicados
com seu nome, os Discursos edificantes. Em 1846, publicou, com o pseudô-
nimo de Joannes Climacus Gá usado para as Migalhas), os Pós-escritos de-
finitivos não-científicos das Migalhas filosóficas, que é a mais filosófica de
suas obras. Em 1846, travou intensa polêmica com um jornal humorístico de
Copenhague, "O Corsário", que foi motivo de grande sofrimento para ele.
Em 1849, publicou. Doença até à morte (escrita em 1847) e Exercício do
cristianismo. O cristianismo é por ele apresentado cada vez mais como um
paradoxo, oposição à existência burguesa, interioridade: daí a polêmica com
o cristianismo oficial da Igreja dinamarquesa, que culminou com o artigo Era
o bispo Mynster uma testemunha da verdade?, numa polêmica com o teólogo
Martensen que assim o definira no elogio fúnebre. O artigo suscitou polêmi-

2. P. MESNARD, Le vrai visage de KierkLgaard, cit, p. 46.


3. Cf. C. FABRO, lntroduzione ai Diario. cit, pp. 34ss.
4. C. FABRO, lntroduzione al Diario, p. 24.

104
··-·-- . .. ...

cas e Kierkegaard, em uma série de artigos coligidos sob t'


. o itu1o geral de O
momento, atacou energicamente a Igreja oficial e rompe . _
"' . bo . u com e1a. A pa1xao
dessa polem1ca aca u esgotando K1erkegaard que morreu re entin
dia 11 de novembro de 1855. P amente no

2. A verdade subjetiva

A esquerda hegeliana e Marx representam uma reação à filosofia d


Hegel em nome das ~~igências do homem real, do homem que tem proble~
mas concretos e cot1d1anos para resolver: em primeiro lugar, 0 problema
econômico, o problema do reconhecimento de seu trabalho em uma socieda-
de que reconheça o seu valor de homem. Em Kierkegaard há também uma
reação ao "especulativo" Hegel, mas em nome do homem individual que se
conscientiza de seu ser precário, contingente diante de Deus, e se resgata por
meio da fé nele. A religião, tão duramente criticada pela esquerda hegeliana,
volta aqui ao primeiro plano como uma dimensão essencial do homem, e isto
em pleno século XIX, depois das críticas iluministas e ao mesmo tempo que
as da esquerda hegeliana.

Não é fácil compreender o pensamento de Kierkegaard porque ele nunca


o expôs de forma sistemática; ao contrário, sempre zombou do sistema como
tentativa de enclausurar a verdade em uma exposição objetiva. Um capítulo
(o 2° da segunda seção da segunda parte) dos Pós-escritos definitivos não-
científicos das Migalhas filosóficas é dedicado à verdade subjetiva, à verdade
como subjetividade. Talvez seja útil falar preliminarmente desse capítulo para
tentar compreender o discurso de Kierkegaard. Ele se baseia inicialmente na
definição escolástica da verdade como conformidade do pensamento com o
ser, mas se pergunta em seguida: com que ser, e de que pensamento•? N-ao
com o ser empírico, por parte de um pensamento_ que já é, d~sde sempre,
pensamento em devir, nem com o ser abstrato. E a conformidade de um
espírito existente com o ser que é capaz de sattsfazer · · - "A tarefa
sua paixao.
d0 pensamento subjetivo é compreender a s1· mesmo na exis · t''eneia"_(Postilla '
p. 452). "O ponto culminante da interioridade em um sujeito exiStente é ª
• - à paixão
paixao; . corresponde a verdade como paradoxo • e o fato de_ que a
verdade se torna paradoxo fundamenta-se precisame • nte em sua relaçao com
0 sujeito existente" (Postilla, p. 365). ·
. . .st te? Antes de mais nada,
O que entende Kierkegaard por suJetto exi e~ ·ar _ um sujeito
um sujeito individual - não o Eu transcendente do ide ismo_ ;o qual im-
"infi1 · . . ,. ( cit p 424), ou seJa,
rutamente interessado no exisur op. ·• ·, . ão) enquanto sente a

,
porta sua existência (e neste sentido, parece-me, e pa.tx •
105
!:!Hl~Sf~Ó~RIA~D~A~Fl~L~OS~O~F~IA~CO~NTE~~M~ro~RÁ~NEA~------------------

. t"ncia Quando Kierkegaard afinna que "existir , .


ecariedade dessa cx1s e . . . e v1r
pr ., . 366 e passim), entende Justamente a insuficiência d
a ser (op. _cit., p. si a razão do próprio ser. A verdade subjetiva _ 0
existente nao ter em I . ou
' b' t'vidade
1 _ é o modo com o qua o existente se refere
verdade como su ~e _ . ao
Co mo se po-e em relaçao com o absoluto. Digo se põe e
absoluto, o modo _ . . m
_ - se trata de referir uma relaçao objetivamente dada ma
relaçao porque na0 . _ . _ , , s
- ou seia de tomar uma dec1sao, e a dec1sao e um ato
de se pôr em relaça0 , J • " •
de fé. A fé é também O modo desta relação, e como sem nsco não existe fé"
(op. cit., p. 368), a verdade subjetiva, isto é, est~ ~ôr-se en:1 relação com 0
absoluto mediante um ato de fé ..é a incerteza objetiva mantlda na apropria-
ção da mais apaixonada interioridade, e esta é a verdade maior que há para
um existente" (op. cit., p. 368). Falei em absoluto, mas Kierkegaard fala
sempre em Deus, no Deus da Bíblia. Não devemos esperar, portanto, que
Kierkegaard nos diga ou tente nos dizer como estão as coisas: ele sempre nos
descreverá o modo como o existente vive individualmente sua relação com
Deus. E, note-se, não é necessário que esta relação seja fé positiva para que
haja verdade subjetiva, basta que seja vivida de forma apaixonada. Isto, me
parece, resulta do que Kierkegaard afinna a propósito do juízo "que sancio-
nará a separação dos homens segundo a relação de interioridade que eles têm
com o cristianismo" (op. cit., p. 384). Se alguém afirmasse: não tive fé, mas
refleti toda a minha vida sobre o cristianismo; um segundo afinnasse: perse-
gui os cristãos porque "o cristianismo inflamou minha alma de tal modo que
eu não quis outra coisa senão extirpá-lo do mundo. justamente porque com-
preendi seu t~rrível poder"; um terceiro afinnasse: abjurei o cristianismo
porque percebi que, se lhe desse um dedo, me tomaria tudo, e eu não queria
pertencer-lhe totalmente; um quarto, um livre-docente afinnasse: "eu não
sou ~om~. estes três; eu não só acreditei no cristíanis~o, como também 0
exphquei do modo como "a especulação o compreendeu" justamente este
quarto se encontraria na s· - • ' -o
, . . , ,, po içao mais assustadora, porque "crer com a raza
e coisa 1mposs1vel (op. cit., p. 384).
' · Outra dificuldade p . · ão
· d' ,, ara se expor K1erkegaard é seu uso da "comunicaç
m 1reta . A fim de expli , . da
compara ao d car O que e a comunicação indireta, K1erkegaar
a A •
mo o como Deus se mamfesta . na criação· "nenhum escritor
nommo pode ocultar-se • , . · bt air-
-se com mais hab'J'd d com mais astucia e nenhum maiêuta pode su r
da criação mas i- i a e, do que D eus. Ele está, na cnaçao,
. -
em todas as partes
' nao esta nela d' • d' 'duo se
volta sobre si mesm ( iretamente, e somente quando o tn ivt d )
0 portanto . (vida e
ele se torna atento e • somente na mterioridade da auto-a 1 . 0
do Deus absconditus consegue
(Is 45 .
ver D " ( . 91) É o monv
~us op. c1t., pp. 390-3 . . - ristã,
que Kierkegaard tom 5
,l ), frequentemente ilustrado pela tradrçao e ot
ou como modelo em suà atividade de escritor, parq
106
SÔR.EN KIERXEGMllD

"entre espírito e espírito é impensável uma relação direta no que concerne à


verdade essencial" (op. cit., p. 393). E o tomou não apenas porque se ocultou
(de forma muito relativa) sob pseudônimos, mas porque expôs seu pensamen-
to apresentando certas figuras (o sedutor, o assessor Guilherme etc.) ou des-
crevendo certos estados d'alma (a angústia) em lugar de expor doutrinas.

3. Aut-Aut

O título da primeira obra publicada por Kierkegaard depois da disser-


tação de doutorado é Aut-Aut, título que já denuncia a oposição a Hegel. Para
Hegel, a filosofia é mediação entre os opostos, seu lema poderia ser et-et,
enquanto para Kierkegaard o lema é aut-aut, escolha de um dos opostos: os
contrastes não se prestam à mediação. Com uma ficção literária, Kierkegaard
apresenta a obra como a edição por parte de Victor Eremita de dois manus-
critos, A e B, que, afirma Kierkegaard, são provavelmente de um mesmo
autor e representam dois tipos de existência, o estético e o ético. O estético
corresponde a um momento vivido pelo próprio Kierkegaard, é a atitude
hedonista. O manuscrito A, depois de uma série de pensamentos intitulados
Diapsalmata, inclui um comentário à ópera Don Giovanni de Mozart com o
título "Os estágios do erótico imediato ou o erótico musical"5 • Don Giovanni
de Mozart é uma obra clássica, afirma Kierkegaard, porque nela há uma
plena compenetração de forma e conteúdo. A forma é a música, que é a
perfeita expressão do erótico, e Don Giovanni é a figura que encarna o
erótico, a sensualidade entendida como momento independente da vida hu-
mana, diria quase como categoria. Ora, urna expressão da sensualidade não
poderia existir senão no mundo cristão, afirma Kierkegaard. Parecerá estra-
nho, ele reconhece, mas é assim. No mundo pagão a sensualidade era incons-
ciente, era um apêndice da vida. O cristianismo opõe a sensualidade ao es-
pírito e com isso o torna urna categoria, um modo de existência. Don Giovanni
é a encarnação desse modo de existência, e um Don Giovanni não teria sido
possível fora do mundo cristão. No cristianismo, a carne é o demoníaco, e a
música é sua expressão adequada. A palavra, a linguagem, é a expressão
adequada à idéia; a música é a expressão adequada ao sentido. Eis por que
Don Giovanni é a obra-prima por excelência: porque Mozart encontrou o
objeto para o qual a música se destina.
. ~ierkegaard distingue três estágios ~o erótico na músic~ de ~ozart. ?
Pnme1ro é representado pela figura do paJem nas Bodas de Flgaro. O sent.l-

-~---5. Tradução italiana de R. Cnntoni com o título Don GfoWllllli, Milão, Dcnti, 1943.

107


HISTÓRIA DA FILOSOFIA coITTEMPORÁNEA

do foi despertado. mas não está ainda em movimento, está ainda em repouso,
não chegou à alegria e à conquista, mas se encontra em uma profunda me-
lancolia. o desejo é apenas uma tristeza repleta de pressentimentos, da quaJ
surge como um incerto crepúsculo o objeto do desejo" (Entweder-Oder, I, p.
68<>). "O desejo. neste primeiro estágio, é apenas um pressentimento de si
mesmo" e ainda não tem um objeto determinado (op. cit., p. 69). O segundo
estágio é representado por Papageno em a Flauta mágica. O desejo desper-
tou, mas ainda não se fixou como desejo: busca, esvoaça, roça, sem deter-se
em um objeto. O terceiro estágio é representado por Don Giovanni: "O de-
sejo neste estágio é absolutamente verdadeiro, triunfante, irresistível e demo-
níaco.. (op. cit., p. 77). Don Giovanni é uma figura tipicamente medieval, que
representa o demoníaco sob o aspecto da carne, assim como Fausto é o
demoníaco sob o aspecto do espírito, da revolta do espírito. Por isso, enquan-
to Fausto pode ser expresso pela poesia, porque é uma idéia, Don Giovanni,
que é uma força da natureza, o demoníaco que nunca se cansa de seduzir, que
se desencadeia como o vento, só pode ser expresso pela música.
À figura do sedutor, Kierkegaard dedicou outro ensaio de Aut-Aut, o
Diário de um sedutor, sob a forma de cartas entre o sedutor Joannes e sua
vítima, Cordélia. Ao contrário de Don Giovanni, o sedutor do Diário não
representa uma força natural, mas uma força intelectual: ele visa seduzir com
os dons ~o espírito e se deleita em testar seu domínio sobre a alma da jovem,
em scntJr-se seu dono. O sedutor tem suas vítimas e sempre na primeira
parte de Aut-Aut, Kierkegaard descreve algumas fig~as• de heroínas trágicas.
Ao falar, nos Pós-escritos, de sua obra anterior ("Olhar sobre um esfor~
ço contemporâneo etc."), Kierkegaard comentou a respeito desta primeira
parte de Aut-Aut· "A p · · · tên-
. · nmeira parte representa uma possibilidade de exis
eia que não pode alcançar a existência" isto é uma tentativa de viver sem
sme clomprl?meter, "~ma melancolia que d~ve ser •elaborada eticamente. É uma
e anco 1a essencial tão f d te se
pro un a, que, embora própria a quem a sen '
ocupa, com o fito do enga d . . d gana
sob ás no, os sofnmentos dos outros ( ...) e am a en
a m cara da alegria d ano e
a m~scara são ' ª compreensão, da perversidade; mas o eng a
, ao mesmo tempo fi . força n
• sua orça e sua 1mpotenc1a, sua . está
A •

fantasia e sua impot" .


o desespero" (Posr;,nciallpara se realizar na existência(...) no seu vértice
I a, • p. 396).
A segunda parte de A editor
atribui a B, 0 asscsso G . ~t-Aut contém os escritos que o ~seudo- ígO

'
0
1
estetizante, que é A r UJ ermc, 0 qual, dirigindo-se a um Jovem
personagem da primeira parte, exalta o va or
do ;m
6. Cito a tradução alemã de Aut•Aut ·iadJ pO"
Chr. Schrempf e outros, Jcna, o·cc1 . (En~dtr-Othr) na edição cm Obras organt _
. l Cilcbs, 1909-1912.
108
SÔREN KIERKEGMRD

matrimônio. Nesta segunda parte estão dois textos principais: "O valor esté-
tico do ~atri~ônio" e '_'0 "e~uilíbrio do estético e do ético na formação da
personalidade . O matr1momo, afirma o assessor Guilherme, representa a
seriedade da vida, mas não se deve crer que essa seriedade tome a vida fria,
privando-a da beleza, da poesia, do eras (Entweder-Oder, II, p. 9), apenas
impõe-lhe a disciplina necessária para valorizar os aspectos imediatos da vida.
Ao contrário, pretender permanecer no estético, colher o prazer do instante
sem se comprometer, deixar abertas todas as possibilidades, sem realizar se-
riamente nenhuma delas - porque realizar uma delas implicaria fechar-se à
possibilidade de realizar outras - significa desperdiçar a própria vida em uma
multiplicidade inconsistente e encontrar-se, a certa altura, diante do vazio. A
atitude hedonista não é manifestação de vitalidade, mas falta de coragem, da
coragem de se comprometer, de viver no tempo, e não no instante.
No segundo escrito, o autor insiste na obrigação do matrimônio (no
primeiro, falara de sua beleza) entendido como escolha. Na vida, é preciso
escolher (aut-aut): a atitude estética é a afirmação de que todas as possibi-
lidades se equivalem, a atitude ética é decisão e escolha. Tu crês, afirma o
assessor Guilherme a seu jovem amigo, poder viver sempre como em um
baile de máscaras, colocando ora uma máscara ora outra: "Não sabes que
chegará a meia-noite, e todos terão de tirar a máscara? Crês que a vida se
deixa sempre viver como um passatempo?" (Entweder-Oder, II, p. 133). (Pode-
-se perceber aí uma alusão à parábola das virgens prudentes e das virgens
tolas.) "O espírito não se deixa escarnecer" (op. cit., p. 173), e a saída do
estético (isto é, do hedonismo) é a tristeza e o desespero. Não desespero por
algo ao qual um indivíduo tenha vinculado toda sua vida e que, a certa altura,
venha a faltar, não é este o desespero no qual desemboca o estético, porque
o esteta (o hedonista) não se prende a coisa alguma O desespero ao qual
conduz a atitude estética é a desesperança de toda possibilidade da vida (op.
cit., p-. 164), e Kierkegaard a compara à condição dos operários de que fala
o Evangelho, os quais, antes de ser contratados para trabalhar no vinhedo,
estavam ociosos na praça. Mas aqui, na segunda parte de Aut-Aut, ainda não
é possível sair do desespero pela fé: sai-se pela escolha, que não é, origina-
riamente, escolha entre bem e mal (esta se dará depois), mas é a opção de
optar, se é que assim poderíamos dizer, é sair da indiferença (op. cit., p. 141).
Ora, esta opção exige um salto, um ato de liberdade que a filosofia não sabe
explicar. A filosofia de que Kierkegaard fala é a filosofia hegeliana, que
concilia os opostos, que consiste na mediação. A especulação demonstra que
o que aconteceu não poderia ser diferente do que aconteceu (explicar signi-
fica demonstrar que algo é necessári o), ou seja, explica o passado; a escolha
ética, ao contrário, tem diante de si um futuro para decidir. Nas Migai/ias de
filosofia, Kierkegaard dir6, mais tarde, que nem mesmo o passado, pelo fato

109
..
~~~~~~~~=:.=.:.:=.:.:;,._-----------------
HISTÓRIA DA FILOSOFIA CONTEMPOIWff.A

de ter sido, se toma necessário, porque, quan?o aconteceu, aconteceu livre.


mente (Briciole, I, p. 244). E isso toma poss1vel o arrependimento.

4. A fase religiosa

o arrependimento é "a expressão mais elevada da concepção ética da


vida", afirma Kierkegaard no Diário, "e sempre devo arrepender-me; mas é
justamente esta a contradição da ética, que dá ~~ge~ ~o paradoxo da reli-
gião, isto é, a Redenção, à qual corresponde a Fé (D_1ario, tr~d. Fabro, 720).
ou seja, como resulta também do que vem em seguida, a ética pura me diz
que devo sempre estar insatisfeito comigo mes~?• q~e não ~á n~da na minha
vida que seja inteiramente bom; mas essa consc1enc1a de mmha msuficiência
moral, 0 arrependimento, me paralisaria, me deixaria desencorajado se eu não
acreditasse na redenção, no poder que Deus tem de cancelar o pecado e de
me reconstruir moralmente. A fé é um salto além do ético; seu modelo é
Abraão, que aceita o sacrifício do filho e, enquan!o se prepara para sacrificar
Isaac, acredita e espera contra toda esperança. A fé de Abraão é dedicado
Temor e tremor. O breve prefácio nos diz qual é a atitude de Kierkegaard ao
comentar o episódio de Abraão. Ele não se põe diante de Abraão como um
filósofo, um pensador, e nem como um douto exegeta da Bíblia, mas quer
revi ver a fé de Abraão e compreender sua grandeza. A grandeza de um

~
homem é medida pela grandeza daquilo que ele ama: "aquele que ama a Deus
é maior que todos". É medida também por sua esperança, e "quem espera o
impossível é maior que todos"; é medida pela grandeza daquilo contra o qual
ele luta, e "quem luta contra Deus é maior que todos". Por isso Abraão é
grande, ele "venceu Deus com sua impotência", ele é "grande pela força, cujo
vigor é a impotência; grande pela sabedoria, cujo segredo é a estultícia;
~ grande pela esperança, cuja forma é loucura; grande pelo amor, que é ódio
para conosco mesmos".

~
A fé, cujo modelo Abraão nos oferece no sacrifício de Isaac, é contrária
a toda raz~o: Abraão acreditou por causa ~o absurdo; ele teve fé não a~nas
na outra vida, mas também por esta; acreditou que aquilo ao qual renunciava
lhe pudesse ser restituído por milagre (op. cit., p. 16). A fé, de certo modo,
se opõe também à ética, porque "o ético é universal, e o universal ~ aquilo
que é válido para todos" (p. 51); a fé, ao contrário, é a resposta do indivíduo
ao chamamento de Deus, e põe o indivíduo diante de Deus. "A fé é o para-
doxo pelo qual o indivíduo é maior do que O universal" (p. 52). O sacrifício
que Deus pede a Abraão é pedido a ele como indivíduo, ao passo que 0
~acrifício ético é um sacrifício pelo universal, pelo povo, pelo Estado. Por
isso, afirma Kierkegaard, o herói trágico (ético) pode sentir-se confortado

110
SÔREN KJERKEGAARO

pelo consenso dos outros, enquanto o herói da fé está irremediavelmente só


diante de Deus.

5. A liberdade e o pecado

Um dos obstáculos fundamentais - aliás, talvez o obstáculo fundamen-


tal que a filosofia não consegue explicar, que não é vencido na fase ética -
é o pecado. No Conceito da angústia, Kierkegaard não se cansa de repetir:
o pecado não é objeto de ciência; não pertence ao mundo das idéias, no qual
se move a filosofia, a ética filosófica, mas ao mundo da existência. "A ética
quer trazer a idealidade à realidade, enquanto, ao contrário, seu movimento
não visa levantar a realidade contra a idealidade" (Jl conceito dell'angoscia,
trad. Fabro, p. 115). Ou seja: a ética propõe um ideal, mas em seguida não
se preocupa em colocar o homem em condições de realizá-lo. Kierkegaard a
compara à lei do Antigo Testamento, a qual, afirma São Paulo, me faz conhe-
cer o pecado, mas não me dá os meios para libertar-me dele. A ética parte do
pressuposto de que a virtude é realizável, pressuposto que não se verifica
para o homem do modo como é. "A ciência que se baseia na realidade
começa com a dogmática" (op. cit., p. 117), e a realidade é o pecado, o
pecado original. Mas a dogmática também não explica o pecado, ela o pres-
supõe, porque o pecado é um salto qualitativo: "o pecado penetrou no mundo
com um pecado" (op. cit., p. 124).
Se o pecado não pode ser explicado, pode-se, entretanto, descrever o
estado de espírito que antecede o pecado, e é isso que Kierkegaard se propõe
fazer. O pecado é precedido pela inocência. Os hegelianos afirmam que a
inocência é o imediato que devia ser negado e superado, mas Kierkegaard
rejeita essa explicação que transforma um fato ético em um processo neces-
sário: "a inocência só pode ser negada mediante a culpa" (p. 126). A inocên-
cia, portanto, não é o imediato, mas é, como nos diz o relato bíblico, igno-
rância. "Na ignorância o homem não é determinado como espírito, mas é
determinado psíquicamente na união imediata com sua naturalidade. No
homem, o espírito é como que sonhador ( ... ); neste estado há paz e calma;
mas, ao mesmo tempo, há algo mais que não é inquietação nem luta, porque
não há nada contra que lutar. O que é, pois? O nada. Mas que efeito produz
o nada? Gera a angústia. Este é o profundo mistério da inocência: ela é ao
mesmo tempo angústia. Sonhando, o espírito projeta sua própria realidade,
mas esta realidade é o nada, e a inocência vê continuamente este nada fora
de si" (pp. 129-130).
Outra, não direi definição, mas descrição da angústia é a segui nte: "A
angústria é uma antipatia simpática, e uma simpatia antipática" (p. 130), um

111
HlSTÓRIA DA FlLOSOFrA CONTEMPORÁNEA

oscilar entre a atração e a repulsa. Mas o trecho mais claro é talvez este: ..A
angústia pode ser comparada à vertigem (...). Assim, a angústia é a vertigem
da liberdade, que surge enquanto o espírito está para realizar a síntese, e a
liberdade, olhando para baixo em sua própria possibilidade, agarra o finito
para deter-se nele. Nesta vertigem, a liberdade cai. A psicologia não pode ir
além disso ..." (p. 140). A angústia é, pois, o sentido de poder, é a possibili-
dade da liberdade, JX)Ssibilidade que provoca vertigem. Agarrar-se ao finito
significa cair, pecar. Mas não podemos explicar por que motivo pecamos:
pecamos JX)rque pecamos. Pecar é dar crédito ao nada: "(...) o nada, que é o
objeto da angústia, quase se transforma cada vez mais em algo" {p. 140).
Kierkegaard exclui, em seguida, algumas explicações do pecado: o pecado
não é a sexualidade, não é egoísmo, porque o conceito de egoísmo é dema-
siado vago; para determiná-lo seria preciso definir antes o que é o eu, mas
o eu é indefinível, o eu significa a contradição (p. 150).
O pecado é decidido no momento (ou instante), e o momento é "o
presente enquanto não tem passado nem futuro" (p. 155), ou seja - se bem
entendi - o presente não como simples limite entre o passado e o futuro, não
como determinado pelo passado, mas como momento da decisão, da escolha.
e de uma escolha que vale eternamente. ''Entendido desse modo, o 'momen-
to', no fundo, não é o átomo do tempo, mas o átomo da eternidade; é o
primeiro reflexo da eternidade no tempo" (pp. 155-156).
O pecado não é ainda o demoníaco. O demoníaco é "a não-liberdade
que quer fechar-se em si mesma" (p. 175); quer, mas jamais consegue intei-
ramente porque permanece sempre relacionada ao bem - ou seja, permanece
sempre a possibilidade de nos convertermos.

~
Esse fechamento se manifesta como taciturnidade. "A essência do de-
moníaco é ser taciturno e tomar-se manifesto contra a vontade" (p. 175). E
Kierkegaard apresenta vários exemplos desta taciturnidade: o delinqüente
obstinado que recusa a confissão, o pecador que nem mesmo quer reconhecer
seu pecado (que cala até diante de si mesmo). Em contraposição à taciturnidade.
o demoníaco pode explodir como "inesperado" (p. 179), mas, em última
análise, será sempre monótono, vazio. Todas essas formas estão relacionadas
à angústia, porque o demoníaco é a angústia do bem (p. 182). Ou seja, o
, ..: demoníaco é fechar-se no pecado, fechar-se na não-liberdade, recusar a pos-
J;'t si bitidade de se converter; mas a liberdade permanece sempre (somos conde-
t; nados a ser livres, afirmará Sartre), e isso gera a angústia do bem, isto é, a

angústia de poder decidir pelo bem que eu não quero. Aqui está uma nota de
Kierkegaard que afirma, entre outras coisas: "(...) a não-liberdade é um fenô-
meno da liberdade e não pode ser explicada pelas categorias da natureza.

112
SÔREN KIERKEGMRD

Mesmo que a não-liberdade diga, com as expressões mais fortes, que não
quer a si mesma, isso não é verdade; nela existe sempre uma vontade que é
mais forte do que o desejo" (p. 182).
Kierkegaard distingue dois tipos fundamentais de demoníaco: o psicos-
somático, que culmina no embrutecimento (p. 183), e o demoníaco pneumá-
tico, que é a indiferença diante dos valores, diante da verdade que é o objeto,
o conteúdo da liberdade. E, a propósito de verdade, Kierkegaard destaca que
ela não se encontra mediante a especulação, não é verdade objetiva; ele chega
a afirmar, inclusive, que o que importa não é tanto a verdade quanto a cer-
teza. As demonstrações da existência de Deus, da imortalidade da alma não
nos dão a certeza que nasce da interioridade (p. 185).
Assim como a angústia pode desembocar no pecado, e inclusive no
demoníaco, pode levar também à salvação, pode desembocar na fé. "A angús-
tia é a possibilidade da liberdade" (p. 193) e por isso é profundamente for-
madora, educadora, mas é também "a mais pesada de todas as categorias"
(ibid.). A realidade é sempre finita, determinada, já pronta; aquele que foi
formado pela liberdade só precisa enquadrar-se em um mundo já dado, já
pronto; só precisa inserir-se em uma rede de relações já fixadas; ao contrário,
aquele que se encontra diante da possibilidade deve escolher, deve fazer por
si seu próprio mundo, não criá-lo à maneira idealista, mas "reassumir" a
situação dada como algo que se quer, se aceita, assim como Sócrates aceitou
a cicuta (p. 195). Àquele que se deixa formar pela possibilidade, àquele que
"não engana a angústia que quer salvá-lo, tudo é restituído, como jamais
acontece com um homem na realidade, ainda que recebesse dez vezes mais;
porque o discípulo da possibilidade consegue o infinito, enquanto a alma do
outro exala o último suspiro no mundo finito" (p. 195).

6. As "Migalhas filosóficas" e os "Pós-escritos "

A obra de Kierkegaard que contém no título a palavra "filosofia", as


Migalhas filosóficas, é na realidade uma visão teológica do homem.
Kierkegaard põe o problema: como é possível ensinar a verdade? E cita
a solução socrática: o mestre limita-se a solicitar o discípulo a lembrar da
verdade já conhecida e esquecida. O mestre humano é apenas um maiêuta,
um obstetra: somente a Deus pertence o gerar (Briciole, p. 205). Mas a
solução não satisfaz a Kierkegaard, porque ela suprime o momento, a decisão
no tempo, a decisão de conhecer, de aprender, de apropriar-me da verdade.
Se eu conhecia a verdade desde a eternidade, minha busca e meu aprendizado

11 3
HISTÓRIA DA FILOSOFIA CONTEMPORÁNEA

são ilusórios: são apenas a tomada de consciência do meu ser eterno. E, no


entanto, eu não sou eterno: para salvar minha temporalidade, para salvar o
início de meu conhecimento da verdade, ºé preciso supor que aquele que
busca não tivesse a verdade até este momento; nem mesmo sob a forma de
nesciência..." (op. cit., p. 206). O discípulo, aquele que busca, deve pois estar
na não-verdade, e, não apenas deve estar na não-verdade, como deve ter
consciência deste fato, do fato de estar na não-verdade, e Aquele que ensina
a verdade, o único Mestre verdadeiro, deve também proporcionar ao discípu-
lo as condições para compreender a verdade.
O discípulo não dispunha dessas condições ºpor sua própria causa", por
sua própria culpa. O estado em que nos encontramos, o da não-verdade por
nossa própria culpa, é o pecado. O homem não pode livrar-se do pecado por
si mesmo, porque usou a força de sua liberdade para pecar; deve, pois, ser
posto por Deus na condição de libertar-se, de sair da não-verdade. ºComo
chamaremos agora tal mestre que volta a lhe proporcionar essa condição e
com ela a verdade? Chamemo-lo Salvador, porque ele salva o discípulo da
não-liberdade, liberta-o de si mesmo; Redentor, porque liberta aquele que se
tornara prisioneiro de si mesmo ... Ele é também um Reconciliador, que eli-
mina a ira que pesa sobre sua culpa..." (op. cit., p. 209). O momento da
chegada deste Redentor é a plenitude dos tempos. O discípulo que é posto em
condição de receber a verdade, que passa do estado irremediável de não-
-verdade à abertura para a verdade, "torna-se outro homem" e ºpodemos
chamá-lo de homem novo (Ef 4,24)" (p. 209). Quando o homem é posto em
condição de se abrir para a verdade, seu caminho muda de rumo: antes,
afastava-se continuamente da verdade, agora volta-se para a verdade, ou seja,
converte-se, e a conversão o faz renascer. Renascer não é lembrar de ter
participado da verdade, mas é um momento, isto é, um fato que se realiza em
determinado instante, que é decidido.

" . Esta .é a ,;isão do discípulo, e esta é o que Kierkegaard chama de


~1pótese ideal (é o subtítulo do primeiro capítulo). No segundo capítulo,
K1erkegaard expõe sua concepção no que se refere ao mestre. "A unidade
[~ntre o Mestre divino e o discípulo] realiza-se mediante uma elevação" do
discípulo ~P· 215); entretanto, uma elevação que não dá ao discípulo a ilusão
de ser ~quilo que n_ão é - igual a Deus. Para que a elevação não seja ilusória,
é preciso que o discípulo se conscientize de dever tudo a ele (ao Mestre),
"mas é justamente isso qu~ torna a compreensão tão difícil: ser reduzido a um
nada sem todavia ser aniquilado, dever tudo a Deus e todavia preservar a
confiança e~ si mesmo, compreender a verdade, mas ao mesmo tempo que
a verd~de O h~erta (Jo 8,32)" (p. 216). Se a unidade não pode realizar-se pela
elevaçao, reahzar-se-á pelo abaixamento do Mestre. "Para poder realizar a

114
unidade , com o homem,
. é preciso que Deus se torne igual ao hornem,, (p
21 6).. E este o milagre
. que toda
, criança aprende no catecismo, mas que nem·
por isso é menos milagroso. E um paradoxo que choca a inteligê ·
· 1· " · , b . neta, mas
q~e a mte !gene!ª e o ngada a aceitar como sua derrota (p. 220). A inteligên-
c1a, a razao, nao pode demonstrar a existência de Deus (pp. 22lss.). "A
paixão da intel~gência pelo paradoxo esbarra sempre neste Incógnito, que
com certeza existe, mas é também desconhecido, e sob este ponto de vista
não existe" (p. 223).

Diante do paradoxo podemos assumir duas atitudes: aceitá-lo com um


ato de fé ou escandalizar-nos e rejeitá-lo.
Suponhamos, agora, que tomemos o caminho da fé. Será uma ajuda
para a fé ser contemporâneos de Jesus? Ou seja, tê-lo visto, conhecido?
Kierkegaard afirma que não, porque ter visto um homem não basta para me
fazer crer que aquele homem é a encarnação de Deus. A contemporaneidade
imediata pode ser apenas a ocasião da fé, porque a fé me faz ver em um fato
histórico algo eterno, e "toda época é igualmente próxima" do eterno (p.
252); o salto da fé permanece um salto quer para o contemporâneo quer para
aquele que vem depois de muitas gerações: trata-se de crer "que Deus se
implanta na vida do homem" (p. 256).
É nisto que os Pós-escritos se inspiram: "Será possível fornecer um
ponto de partida histórico a uma consciência eterna?(... ) Será possível cons-
truir uma felicidade eterna sobre um conhecimento histórico?" (Postilla, p.
267). Tal é o problema de Lessing, segundo Kierkegaard.
Para Sócrates não existe problema, porque o homem sempre partici-
pou da verdade eterna, porque a alma pertence ao mundo das idéias; para
'
Lessing, o problema tem uma solução negativa porque do temporal não é
possível passar para o eterno, porque o homem se encontra totalmente no
temporal. Tanto Sócrates (o Sócrates platônico, o Sócrates da reminiscên-
cia) quanto Lessing recusam o salto: o primeiro porque crê que o homem
já se encontra onde deveria saltar, o segundo porque considera que o ho-
mem não consegue saltar.
Ora, se se tratasse de demonstrar a verdade do cristianismo como dou-
trina, Lessing estaria com a razão. Mas não se trata disso para Kierkegaard.
Não se trata "do zelo sistemático do indivíduo (subjetivamente) indiferente
em arrumar as verdades do cristianismo em parágrafos, mas da preocupação
do indivíduo que se interessa com uma paixão infinita por sua relação com
tal doutrina (o cristianismo). Em termos ainda mais simples ( ...): 'Eu, João
Clímaco, nascido nesta cidade de Copenhague, 30 anos( ...), admito que para
mim, assim como para uma simples empregada doméstica e para um profes-

115
HISTÓRIA DA FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

sor, está reservado um sumo bem que se chama a bem-aventurança eterna.


Ouvi dizer que o cristianismo é a condição para se obter esse bem e agora me
pergunto: como poderei eu remeter-me a esta doutrina?"' (op. cit., p. 268).
Kierkegaard exclui que a crítica bíblica possa demonstrar alguma coisa
pró ou contra o cristianismo. Tampouco demonstram alguma coisa a existên-
cia e o testemunho da Igreja. Mas aquilo que suscita a mais viva oposição em
Kierkegaard é a "consideração especulativa" do cristianismo, isto é, a tenta-
tiva de justificá-lo filosoficamente. A polêmica contra a especulação {contra
Hegel) retoma a todo momento: é a polêmica contra a tentativa de reduzir o
cristianismo a uma manifestação histórica. Kierkegaard cita mais de uma vez,
a fim de combatê-la, esta afirmação de Hegel: "o interno é o externo" (Postilla,
I, p. 288). Hegel fala do interno e do externo na lógica da essência da Ciência
da lógica1 , e, quando afirma que interno e externo são uma só coisa, ele quer
dizer que não existe algo além daquilo que aparece (uma coisa em si, uma
essência que esteja além de suas manifestações). Também o cristianismo,
portanto (trata-se de uma aplicação de Kierkegaard), se resolve em suas
manifestações, naquilo que foi na história. Kierkegaard, ao contrário, afirma
que o cristianismo é aquele vivido na interioridade do indivíduo, e não se

~
pode teorizar a respeito disso. "No conhecimento histórico, o homem conse-
gue saber muitas coisas sobre o mundo, nada sobre si mesmo" (op. cit., p.
301); e, no entanto, é justamente a respeito de si mesmo que importa ao
homem conhecer alguma coisa. Segundo Hegel, deveríamos passar do conhe-
~ cimento histórico ao conhecimento especulativo; ora, o conhecimento
, especulativo é um conhecimento que abstrai a existência e considera as coi-
sas sub specie aeterni (ibid.), ou seja, abstrai justamente aquilo que nos
importa. "Justamente porque o pensamento abstrato é sub specie aeterni, ele
prescinde do concreto, do temporal, do mundo da existência, do desconforto
do existente pelo fato de ser composto de tempo e de eternidade" (Postilla,
p. 423). A existência não é percebida com o pensamento: também não per-
cebo minha existência no pensamento, como afirmava Descartes e como
reitera a filosofia moderna que se declara nascida do cogito ergo sum, mas
na subjetividade ética (op. cit., p. 432). .
"

Há nos Pós-escritos, como observa Mesnard, uma reavaliação do ético


em relação a Aut-Aut: em Aut-Aut, a ética era o compromisso no mundo, um
compromisso sério, mas sempre no. mundo, na família, na sociedade; aqui a
ética é o compromisso do indivíduo diante de Deus, é um momento que se
desenvolve totalmente na interioridade, que possui um valor independente-
mente dos resultados obtidos. Este é um ponto muito enfatizado por

7. Tradução Moni-Ccsa, Bari, Latcrza, 1968, vol, li, p. 587.

116
SÕREN KIBIUCEGAARD

l{ierkegaard, contra Hegel. Antes de mais nada, ética é comprom · . -


. . be ISSO. nao
basta pensar, 1mag1~ar o m, é preciso querê-lo, e aqui Kierkegaard escla-
rece sua tese refenndo-se à parábola do Samaritano. Talvez O levita que
seguiu adiante sem. se preocupar com o homem abandonado quase sem' vida
pelos salteadores, tivesse pensado que seria bom socorrê-lo, mas não O fez.
Por outro lado, a ação ética não é o resultado externo; e Kierkegaard pros-
segue a propósito do levita que não socorreu o ferido: "Mas suponhamos que
o remorso o aguardasse no caminho, suponhamos que tenha decidido voltar
correndo sem temer os ladrões ou outras dificuldades, temendo apenas chegar
tarde demais; suponhamos que tenha chegado tarde demais, quando já o bom
Samaritano havia carregado o infeliz para a estalagem: não teria ele agido
então? Certamente; entretanto, não teria chegado a agir na realidade externa"
(op. cit., p. 446). "O verdadeiro entusiasmo ético consiste em querer com o
máximo das próprias forças; mas ( ...) de modo a jamais pensar se isso levará
ou não a algum resultado. Assim que a vontade começa a olhar de soslaio para
se garantir o resultado, o indivíduo começa a se tomar imoral" (op. cit., p. 329).
Pensar no resultado e comprazer-se com ele é um pouco como admitir
que Deus precisa de nós para realizar o bem. "Mas isso é estupidez, porque
Deus não precisa de homem algum" (op. cit., p. 330) e o homem deve
sempre reconhecer que é um servo inútil (Lc 17,10). "A ética é, como o
absoluto, infinitamente válida por si mesma e não precisa de nenhum pre-
texto para se mostrar melhor" (op. cit., p. 333). O pretexto seria a história,
que, segundo Hegel, é o supremo juízo ou tribunal do mundo, isto é, o
supremo critério de valor.
Para a história, a intenção não tem a menor importância: o que importa
é o resultado; para a ética, o que importa é a intenção (p. 341). A história _é
história do gênero humano, a ética é a posição que o indivíduo deve asswrur
em relação a Deus (pp. 340-341).

7. Ética e religião

Voltemos ao problema dos Pós-escritos: como será possível decidir no


tempo uma bem-aventurança eterna? Esse é o problema ~u: Ki erkegaard
chama de patético-dialético. Patético porque pressupõe a paixao por um fim
(um télos) absoluto; dialético "porque a paixão é exatamente o el~mento de
tensão da contradição" (Postilla, p. 471 ). "O patos estético expnme~se e~
palavras e pode significar em sua verdade que o m · d.1v1'duo renuncia a si
mesmo para se perder na idéia, enquanto o pat~s exi~ten_ci~l s~~ge qua~do ª
idéia abarca, transformando-a, toda a existênCJa do md1v1duo (op. c1t., P·
117
HISTÓRIA DA FILOSOFIA CONTEMPOR.ÁNEA

472). "Portanto, o patos poético é essencialmente fantasia", enquanto o pathos


existencial é realidade vivida; "na esfera da realidade, o patos supremo é a
ação" (op. cit., II, p. 474). Não a ação considerada em seus resultados his-
tóricos, mas a ação ética, e a ética é a premissa da atitude religiosa: ••o
homem religioso deve ter passado pela ética" (op. cit., p. 472).
Existir religiosamente significa transformar radicalmente a própria exis-
tência, renunciar a conciliar a relação com Deus com os interesses temporais,
não aceitar a "mediação, o et-et. A existência religiosa possui alguns elemen-
tos em comum com a vida monástica. "O movimento claustral é (...) uma
decisão apaixonada, como é apropriada na relação com o télos absoluto, e
neste sentido, em sua elevação aristocrática, deve ser preferido às suspeitas
manobras da mediação" (op. cit., p. 481). Mas, ao contrário do monaquismo
medieval, não possui sinais exteriores, não exige um lugar isolado: exterior-
mente, tudo continua como antes, mas interiormente tudo mudou. O homem
religioso "vive na finitude, mas não tem sua vida nela" (op. cit., p. 486),
aceita tanto a alegria quanto a dor das mãos do Absoluto para o qual orientou
toda a sua vida e pelo qual arriscou tudo. Certamente, o sofrimento é um sinal
da atitude religiosa, porque nasce da insatisfação com todo bem finito. Mas
"a expressão decisiva do patos existencial" (o patos existencial é a atitude
religiosa) é a consciência da culpa, pois só existe culpa em relação a Deus.
De fato, quando perdemos ou esquecemos esta relação podemos explicar
certos comportamentos como conseqüência do temperamento, da estrutura
psíquica ou da situação social, não mais como culpas.
No âmbito da existência religiosa, Kierkegaard distingue ainda uma
relação A e uma relação B com a bem-aventurança eterna: a relação A - se
bem entendi - é a existência religiosa no sentido genérico, no modo como
ela pode realizar-se também na imanência, como frequentemente afirma
Kierkegaard: o indivíduo reconhece o próprio nada diante de Deus, da bem-
aventurança eterna, mas busca em si mesmo esta relação. Na religiosidade B,
o indivíduo acredita que somente um outro pode relacioná-lo com Deus, e o
outro é Cristo. É esta por excelência a religiosidade do paradoxo, porque
renuncia a explicar racionalmente a própria fé, que não é apenas fé em um
absoluto, mas fé em Cristo. "A realidade histórica é que Deus, o eterno, veio
a ser em determinado momento do tempo, como um indivíduo." O fato de
que o Eterno se apresenta no tempo, "nasce, cresce, morre, representa uma
ruptura com todo pensamento" (op. cit., pp. 582-83).
O problema de Lessing - poderá existir um ponto de partida histórico
para uma bem-aventurança eterna? - só se resolve, pois, por um ato de fé:
a fé de que um Homem nascido no tempo é a encarnação de Deus.

118

Você também pode gostar