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(1813-1855)
J. Vida e obras1
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HlSTÔRlA DA FILOSOFIA COITTEMI'ORÃNEA
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2. A verdade subjetiva
,
porta sua existência (e neste sentido, parece-me, e pa.tx •
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!:!Hl~Sf~Ó~RIA~D~A~Fl~L~OS~O~F~IA~CO~NTE~~M~ro~RÁ~NEA~------------------
3. Aut-Aut
-~---5. Tradução italiana de R. Cnntoni com o título Don GfoWllllli, Milão, Dcnti, 1943.
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA coITTEMPORÁNEA
do foi despertado. mas não está ainda em movimento, está ainda em repouso,
não chegou à alegria e à conquista, mas se encontra em uma profunda me-
lancolia. o desejo é apenas uma tristeza repleta de pressentimentos, da quaJ
surge como um incerto crepúsculo o objeto do desejo" (Entweder-Oder, I, p.
68<>). "O desejo. neste primeiro estágio, é apenas um pressentimento de si
mesmo" e ainda não tem um objeto determinado (op. cit., p. 69). O segundo
estágio é representado por Papageno em a Flauta mágica. O desejo desper-
tou, mas ainda não se fixou como desejo: busca, esvoaça, roça, sem deter-se
em um objeto. O terceiro estágio é representado por Don Giovanni: "O de-
sejo neste estágio é absolutamente verdadeiro, triunfante, irresistível e demo-
níaco.. (op. cit., p. 77). Don Giovanni é uma figura tipicamente medieval, que
representa o demoníaco sob o aspecto da carne, assim como Fausto é o
demoníaco sob o aspecto do espírito, da revolta do espírito. Por isso, enquan-
to Fausto pode ser expresso pela poesia, porque é uma idéia, Don Giovanni,
que é uma força da natureza, o demoníaco que nunca se cansa de seduzir, que
se desencadeia como o vento, só pode ser expresso pela música.
À figura do sedutor, Kierkegaard dedicou outro ensaio de Aut-Aut, o
Diário de um sedutor, sob a forma de cartas entre o sedutor Joannes e sua
vítima, Cordélia. Ao contrário de Don Giovanni, o sedutor do Diário não
representa uma força natural, mas uma força intelectual: ele visa seduzir com
os dons ~o espírito e se deleita em testar seu domínio sobre a alma da jovem,
em scntJr-se seu dono. O sedutor tem suas vítimas e sempre na primeira
parte de Aut-Aut, Kierkegaard descreve algumas fig~as• de heroínas trágicas.
Ao falar, nos Pós-escritos, de sua obra anterior ("Olhar sobre um esfor~
ço contemporâneo etc."), Kierkegaard comentou a respeito desta primeira
parte de Aut-Aut· "A p · · · tên-
. · nmeira parte representa uma possibilidade de exis
eia que não pode alcançar a existência" isto é uma tentativa de viver sem
sme clomprl?meter, "~ma melancolia que d~ve ser •elaborada eticamente. É uma
e anco 1a essencial tão f d te se
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ocupa, com o fito do enga d . . d gana
sob ás no, os sofnmentos dos outros ( ...) e am a en
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estetizante, que é A r UJ ermc, 0 qual, dirigindo-se a um Jovem
personagem da primeira parte, exalta o va or
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6. Cito a tradução alemã de Aut•Aut ·iadJ pO"
Chr. Schrempf e outros, Jcna, o·cc1 . (En~dtr-Othr) na edição cm Obras organt _
. l Cilcbs, 1909-1912.
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SÔREN KIERKEGMRD
matrimônio. Nesta segunda parte estão dois textos principais: "O valor esté-
tico do ~atri~ônio" e '_'0 "e~uilíbrio do estético e do ético na formação da
personalidade . O matr1momo, afirma o assessor Guilherme, representa a
seriedade da vida, mas não se deve crer que essa seriedade tome a vida fria,
privando-a da beleza, da poesia, do eras (Entweder-Oder, II, p. 9), apenas
impõe-lhe a disciplina necessária para valorizar os aspectos imediatos da vida.
Ao contrário, pretender permanecer no estético, colher o prazer do instante
sem se comprometer, deixar abertas todas as possibilidades, sem realizar se-
riamente nenhuma delas - porque realizar uma delas implicaria fechar-se à
possibilidade de realizar outras - significa desperdiçar a própria vida em uma
multiplicidade inconsistente e encontrar-se, a certa altura, diante do vazio. A
atitude hedonista não é manifestação de vitalidade, mas falta de coragem, da
coragem de se comprometer, de viver no tempo, e não no instante.
No segundo escrito, o autor insiste na obrigação do matrimônio (no
primeiro, falara de sua beleza) entendido como escolha. Na vida, é preciso
escolher (aut-aut): a atitude estética é a afirmação de que todas as possibi-
lidades se equivalem, a atitude ética é decisão e escolha. Tu crês, afirma o
assessor Guilherme a seu jovem amigo, poder viver sempre como em um
baile de máscaras, colocando ora uma máscara ora outra: "Não sabes que
chegará a meia-noite, e todos terão de tirar a máscara? Crês que a vida se
deixa sempre viver como um passatempo?" (Entweder-Oder, II, p. 133). (Pode-
-se perceber aí uma alusão à parábola das virgens prudentes e das virgens
tolas.) "O espírito não se deixa escarnecer" (op. cit., p. 173), e a saída do
estético (isto é, do hedonismo) é a tristeza e o desespero. Não desespero por
algo ao qual um indivíduo tenha vinculado toda sua vida e que, a certa altura,
venha a faltar, não é este o desespero no qual desemboca o estético, porque
o esteta (o hedonista) não se prende a coisa alguma O desespero ao qual
conduz a atitude estética é a desesperança de toda possibilidade da vida (op.
cit., p-. 164), e Kierkegaard a compara à condição dos operários de que fala
o Evangelho, os quais, antes de ser contratados para trabalhar no vinhedo,
estavam ociosos na praça. Mas aqui, na segunda parte de Aut-Aut, ainda não
é possível sair do desespero pela fé: sai-se pela escolha, que não é, origina-
riamente, escolha entre bem e mal (esta se dará depois), mas é a opção de
optar, se é que assim poderíamos dizer, é sair da indiferença (op. cit., p. 141).
Ora, esta opção exige um salto, um ato de liberdade que a filosofia não sabe
explicar. A filosofia de que Kierkegaard fala é a filosofia hegeliana, que
concilia os opostos, que consiste na mediação. A especulação demonstra que
o que aconteceu não poderia ser diferente do que aconteceu (explicar signi-
fica demonstrar que algo é necessári o), ou seja, explica o passado; a escolha
ética, ao contrário, tem diante de si um futuro para decidir. Nas Migai/ias de
filosofia, Kierkegaard dir6, mais tarde, que nem mesmo o passado, pelo fato
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA CONTEMPOIWff.A
4. A fase religiosa
~
homem é medida pela grandeza daquilo que ele ama: "aquele que ama a Deus
é maior que todos". É medida também por sua esperança, e "quem espera o
impossível é maior que todos"; é medida pela grandeza daquilo contra o qual
ele luta, e "quem luta contra Deus é maior que todos". Por isso Abraão é
grande, ele "venceu Deus com sua impotência", ele é "grande pela força, cujo
vigor é a impotência; grande pela sabedoria, cujo segredo é a estultícia;
~ grande pela esperança, cuja forma é loucura; grande pelo amor, que é ódio
para conosco mesmos".
~
A fé, cujo modelo Abraão nos oferece no sacrifício de Isaac, é contrária
a toda raz~o: Abraão acreditou por causa ~o absurdo; ele teve fé não a~nas
na outra vida, mas também por esta; acreditou que aquilo ao qual renunciava
lhe pudesse ser restituído por milagre (op. cit., p. 16). A fé, de certo modo,
se opõe também à ética, porque "o ético é universal, e o universal ~ aquilo
que é válido para todos" (p. 51); a fé, ao contrário, é a resposta do indivíduo
ao chamamento de Deus, e põe o indivíduo diante de Deus. "A fé é o para-
doxo pelo qual o indivíduo é maior do que O universal" (p. 52). O sacrifício
que Deus pede a Abraão é pedido a ele como indivíduo, ao passo que 0
~acrifício ético é um sacrifício pelo universal, pelo povo, pelo Estado. Por
isso, afirma Kierkegaard, o herói trágico (ético) pode sentir-se confortado
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SÔREN KJERKEGAARO
5. A liberdade e o pecado
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HlSTÓRIA DA FlLOSOFrA CONTEMPORÁNEA
oscilar entre a atração e a repulsa. Mas o trecho mais claro é talvez este: ..A
angústia pode ser comparada à vertigem (...). Assim, a angústia é a vertigem
da liberdade, que surge enquanto o espírito está para realizar a síntese, e a
liberdade, olhando para baixo em sua própria possibilidade, agarra o finito
para deter-se nele. Nesta vertigem, a liberdade cai. A psicologia não pode ir
além disso ..." (p. 140). A angústia é, pois, o sentido de poder, é a possibili-
dade da liberdade, JX)Ssibilidade que provoca vertigem. Agarrar-se ao finito
significa cair, pecar. Mas não podemos explicar por que motivo pecamos:
pecamos JX)rque pecamos. Pecar é dar crédito ao nada: "(...) o nada, que é o
objeto da angústia, quase se transforma cada vez mais em algo" {p. 140).
Kierkegaard exclui, em seguida, algumas explicações do pecado: o pecado
não é a sexualidade, não é egoísmo, porque o conceito de egoísmo é dema-
siado vago; para determiná-lo seria preciso definir antes o que é o eu, mas
o eu é indefinível, o eu significa a contradição (p. 150).
O pecado é decidido no momento (ou instante), e o momento é "o
presente enquanto não tem passado nem futuro" (p. 155), ou seja - se bem
entendi - o presente não como simples limite entre o passado e o futuro, não
como determinado pelo passado, mas como momento da decisão, da escolha.
e de uma escolha que vale eternamente. ''Entendido desse modo, o 'momen-
to', no fundo, não é o átomo do tempo, mas o átomo da eternidade; é o
primeiro reflexo da eternidade no tempo" (pp. 155-156).
O pecado não é ainda o demoníaco. O demoníaco é "a não-liberdade
que quer fechar-se em si mesma" (p. 175); quer, mas jamais consegue intei-
ramente porque permanece sempre relacionada ao bem - ou seja, permanece
sempre a possibilidade de nos convertermos.
~
Esse fechamento se manifesta como taciturnidade. "A essência do de-
moníaco é ser taciturno e tomar-se manifesto contra a vontade" (p. 175). E
Kierkegaard apresenta vários exemplos desta taciturnidade: o delinqüente
obstinado que recusa a confissão, o pecador que nem mesmo quer reconhecer
seu pecado (que cala até diante de si mesmo). Em contraposição à taciturnidade.
o demoníaco pode explodir como "inesperado" (p. 179), mas, em última
análise, será sempre monótono, vazio. Todas essas formas estão relacionadas
à angústia, porque o demoníaco é a angústia do bem (p. 182). Ou seja, o
, ..: demoníaco é fechar-se no pecado, fechar-se na não-liberdade, recusar a pos-
J;'t si bitidade de se converter; mas a liberdade permanece sempre (somos conde-
t; nados a ser livres, afirmará Sartre), e isso gera a angústia do bem, isto é, a
angústia de poder decidir pelo bem que eu não quero. Aqui está uma nota de
Kierkegaard que afirma, entre outras coisas: "(...) a não-liberdade é um fenô-
meno da liberdade e não pode ser explicada pelas categorias da natureza.
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SÔREN KIERKEGMRD
Mesmo que a não-liberdade diga, com as expressões mais fortes, que não
quer a si mesma, isso não é verdade; nela existe sempre uma vontade que é
mais forte do que o desejo" (p. 182).
Kierkegaard distingue dois tipos fundamentais de demoníaco: o psicos-
somático, que culmina no embrutecimento (p. 183), e o demoníaco pneumá-
tico, que é a indiferença diante dos valores, diante da verdade que é o objeto,
o conteúdo da liberdade. E, a propósito de verdade, Kierkegaard destaca que
ela não se encontra mediante a especulação, não é verdade objetiva; ele chega
a afirmar, inclusive, que o que importa não é tanto a verdade quanto a cer-
teza. As demonstrações da existência de Deus, da imortalidade da alma não
nos dão a certeza que nasce da interioridade (p. 185).
Assim como a angústia pode desembocar no pecado, e inclusive no
demoníaco, pode levar também à salvação, pode desembocar na fé. "A angús-
tia é a possibilidade da liberdade" (p. 193) e por isso é profundamente for-
madora, educadora, mas é também "a mais pesada de todas as categorias"
(ibid.). A realidade é sempre finita, determinada, já pronta; aquele que foi
formado pela liberdade só precisa enquadrar-se em um mundo já dado, já
pronto; só precisa inserir-se em uma rede de relações já fixadas; ao contrário,
aquele que se encontra diante da possibilidade deve escolher, deve fazer por
si seu próprio mundo, não criá-lo à maneira idealista, mas "reassumir" a
situação dada como algo que se quer, se aceita, assim como Sócrates aceitou
a cicuta (p. 195). Àquele que se deixa formar pela possibilidade, àquele que
"não engana a angústia que quer salvá-lo, tudo é restituído, como jamais
acontece com um homem na realidade, ainda que recebesse dez vezes mais;
porque o discípulo da possibilidade consegue o infinito, enquanto a alma do
outro exala o último suspiro no mundo finito" (p. 195).
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA CONTEMPORÁNEA
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unidade , com o homem,
. é preciso que Deus se torne igual ao hornem,, (p
21 6).. E este o milagre
. que toda
, criança aprende no catecismo, mas que nem·
por isso é menos milagroso. E um paradoxo que choca a inteligê ·
· 1· " · , b . neta, mas
q~e a mte !gene!ª e o ngada a aceitar como sua derrota (p. 220). A inteligên-
c1a, a razao, nao pode demonstrar a existência de Deus (pp. 22lss.). "A
paixão da intel~gência pelo paradoxo esbarra sempre neste Incógnito, que
com certeza existe, mas é também desconhecido, e sob este ponto de vista
não existe" (p. 223).
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HISTÓRIA DA FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
~
pode teorizar a respeito disso. "No conhecimento histórico, o homem conse-
gue saber muitas coisas sobre o mundo, nada sobre si mesmo" (op. cit., p.
301); e, no entanto, é justamente a respeito de si mesmo que importa ao
homem conhecer alguma coisa. Segundo Hegel, deveríamos passar do conhe-
~ cimento histórico ao conhecimento especulativo; ora, o conhecimento
, especulativo é um conhecimento que abstrai a existência e considera as coi-
sas sub specie aeterni (ibid.), ou seja, abstrai justamente aquilo que nos
importa. "Justamente porque o pensamento abstrato é sub specie aeterni, ele
prescinde do concreto, do temporal, do mundo da existência, do desconforto
do existente pelo fato de ser composto de tempo e de eternidade" (Postilla,
p. 423). A existência não é percebida com o pensamento: também não per-
cebo minha existência no pensamento, como afirmava Descartes e como
reitera a filosofia moderna que se declara nascida do cogito ergo sum, mas
na subjetividade ética (op. cit., p. 432). .
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SÕREN KIBIUCEGAARD
7. Ética e religião
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