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MORTE E VIDA SEVERINA

Acabou a ouverture. O protagonista se posiciona no centro do palco e introduz


os demais personagens. Alguns versos e, em uma ponte instrumental, a seguinte fala é
proferida: “No nosso primeiro encontro, você me levou pra ver [Morte e Vida
Severina]… E como nós rimos!”, satiriza Mortícia Addams na canção de abertura do
musical mais comicamente lúgubre do entretenimento. Claro que aqui no Brasil “Death
of a Salesman” teria que ser substituído para que o humor ácido d’A Família Addams
fizesse sucesso, mas eu arrisco dizer que, nesse primeiro encontro, Gomez e Mortícia
viram a animação inspirada nos quadrinhos de Miguel Falcão.

Admito que inicio esse texto com ares muito presunçosos, mas sou um homem
de teatro e, como tal, sei do peso que o poema narrativo de João Cabral de Melo Neto
tem na dramaturgia brasileira, porém a animação foge do drama visceral e cai na chatice
muito mais rápido que Severino consegue nos narrar como é só mais um entre tantos e
tantos outros. E é justo culpa de Severino – ou melhor, de seu dublador – que, numa
história tão densa, não consegue passar emoção alguma. O tom monocórdico do ator
Gero Camilo não transmitia a tristeza ou desesperança da obra e parecia ter sido
gravado com o único propósito de se tornar uma faixa de áudio-descrição. E não, não
tem a ver com a história do poema. Laila Garin nos entregou uma Macabéa
monocórdica também, mas profundamente empática e amável na recente montagem
musical de A Hora da Estrela.

Gero não estava sozinho nessa, pois o elenco cai numa mecanicidade sofrível e
ajudam a arrastar o ritmo do filme (até cometendo a gafe de pronunciar a palavra
“incelença” errada durante toda a animação), mas por ser o principal contador dessa
história, a culpa acaba caindo mais em seus ombros. A animação – que usava uma
técnica onde o 3D é caracterizado com efeitos para parecer 2D – usava do preto e
branco como uma alegoria à vida sem cor de Severino, porém isso estava longe de ser
excepcional (O Mágico de Oz, de 1939, que o diga). Os traços dos personagens e a
animação em si foram bem executados e cenas como a marcha das pás de coveiro e os
presentes ao recém-nascido do mangue me pareceram engenhosas. Pessoalmente, foram
essas cenas e – com o perdão do trocadilho, colocando mais um prego no caixão – a
apatia do dublador de Severino que me deram vontade de montar esse texto no palco.
Reconheço o marco educativo e cultural que esse filme representa, afinal, não é
todo dia que um projeto assim é executado, porém a importância dele corre o risco de
ser esquecida pelas falhas do mesmo. Falta no filme uma “vontade” de ser algo, de ser
assistido e de ter a atenção do público para que a mensagem seja não só entregue, mas
absorvida e compreendida. Ele transmite uma mensagem, mas não é absolutamente a do
poema e qual é essa mensagem vai depender do espectador. No meu caso foi “quero ver
esse texto com vida num palco”. O que mais ele pode transmitir, eu não sei, mas foi o
que chegou a mim.

Gabriel Fontoura – Produção Cultural, 2020.1.

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