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FESTIVAL INTERNACIONAL

DE DANÇA CONTEMPORÂNEA

10 A N O S
EM ENCONTROS

ORGANIZ AÇ ÃO
JUSSAR A X AVIER E
MARTA CESAR
FESTIVAL INTERNACIONAL
DE DANÇA CONTEMPORÂNEA

10 A N O S
EM ENCONTROS

ORGANIZ AÇ ÃO
JUSSAR A X AVIER E
MARTA CESAR
Para Neiva Ortega
(in memoriam)
© Jussara Xavier e Marta Cesar (organizadoras)

Coordenação executiva e editorial: Jussara Xavier


Organização: Jussara Xavier e Marta Cesar
Projeto gráfico e diagramação: Paula Albuquerque
Capa: Paula Albuquerque sobre ilustração de Fabio Dudas (Espetáculo
Céu na Boca, Quasar Cia. de Dança (GO), fotografia de Cristiano Prim)
Revisão: Taciana Innocente
Assessoria de comunicação e imprensa: Néri Pedroso
Autores dos textos: Ana Maria Alonso Krischke, Ana Luiza Ciscato, Andréa
Scansani, Claudia Muller, Cristiano Prim, Ida Mara Freire, Inês Bogéa, Isabel
Marques, Jussara Xavier, Lilian Vilela, Manoel J. de Souza Neto, Marila Velloso,
Marta Cesar, Néri Pedroso, Olga Gutiérrez, Paula Albuquerque, Rui Moreira,
Sandra Meyer, Thembi Rosa, Vanilton Lakka
Imagens: Cristiano Prim
Edição: Múltipla Dança

Os comentários e opiniões emitidos pelos autores


são de sua inteira responsabilidade.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Múltipla Dança : festival internacional de dança contemporânea [livro eletrônico] :


10 anos em encontros / Ana Maria Alonso Krischke ... [et al.] ; organização Marta
Cesar , Jussara Xavier; coordenação Jussara Xavier ; ilustração Fabio Dudas. -- 1. ed.
-- Florianópolis, SC : Jussara Xavier, 2020.
PDF

Vários autores.
ISBN 978-65-993431-0-0

1. Artes 2. Cultura 3. Dança 4. Fotografias I. Krischke, Ana Maria Alonso. II. Cesar,
Marta. III. Xavier, Jussara. IV. Xavier, Jussara. V. Dudas, Fabio. VI. Título.

20-53349 CDD-792.8

Índices para catálogo sistemático:


1. Dança : Artes 792.8
Projeto realizado pelo Governo do Estado de Santa Catarina, por meio da Fundação Catarinense de
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129 Cultura (FCC), com recursos do Prêmio Elisabete Anderle de Apoio à Cultura ∕ Artes – Edição 2019.
APRESENTAÇÃO Jussara Xavier e Marta Cesar | 11

CURADORIA DE DANÇA COMO ABERTURA AO DIÁLOGO Jussara Xavier | 26

POR UMA ARTE ACESA E RESISTENTE Inês Bogéa | 48

TRIUNFO DO ETERNO RECOMEÇO Néri Pedroso | 56

MÚLTIPLAS DANÇAS | MÚLTIPLAS CRÍTICAS | MÚLTIPLAS ESCRITAS Sandra Meyer | 84

ALGUMAS LETRAS DO ALFABETO DO MÚLTIPLA DANÇA Ida Mara Freire | 102

DANÇANDO COMO ARTISTA-ETC. Cláudia Müller | 134

HISTÓRIAS DE VIDA EM DANÇA Lilian Vilela | 146

O CORPO COMO MORADA DO TEMPO Andréa C. Scansani | 162

MÚLTIPLAS IMAGENS Cristiano Prim | 184

PARÂMETROS EM MOVIMENTO . 2.0.1.6 _ Thembi Rosa | 210

BLOCO DE NOTAS DE MONO-BLOCOS: ANOTAÇÕES DE UM CORPO QUE FOI À RUA EM BUSCA


DA FRICÇÃO COM A CIDADE Vanilton Lakka | 228
A DANÇA COMO ENCONTRO Ana Maria Alonso Krischke | 248

DANÇAR, UM FIO CONDUTOR PARA A INCLUSÃO Ana Luiza Ciscato | 276

CALENDÁRIO DE ENCONTROS: DANÇA E TRANSFORMAÇÃO Isabel Marques | 290

GESTÃO PÚBLICA EM CULTURA E DANÇA: APONTAMENTOS INICIAIS PARA UMA REFLEXÃO


SOBRE CONTRADIÇÕES ENTRE DISCURSO E PRÁTICA Marila Velloso e
Manoel J. de Souza Neto | 306

VAMOS FALAR SOBRE DANÇAS NEGRAS Rui Moreira | 332

ESTO NO ES UN TEXTO, ES UN CUERPO Olga Gutiérrez | 356

ISTO NÃO É UM TEXTO, É UM CORPO Olga Gutiérrez (versão em português) | 380

CARTA DE AMOR A FLORIANÓPOLIS Marta Cesar | 404

EPÍLOGO: UMA HOMENAGEM A NEIVA ORTEGA | 418

LÍRIO DA PAZ, O GESTO DA DELICADEZA Néri Pedroso | 422

PRESENTE Paula Albuquerque | 425


APRESENTAÇÃO
DANÇA E MULTIPLICIDADE.
DANÇA É MULTIPLICIDADE.
MÚLTIPL A DANÇA.

A
palavra múltipla serve para designar algo que abrange
muitas partes e é dotado de complexidade. Por isso, o ter-
mo foi escolhido para reforçar a heterogeneidade como
traço próprio da dança. Por outro lado, ainda que dança seja um
substantivo regularmente pronunciado no singular, trata-se de
uma palavra que abraça uma variedade de técnicas e jeitos de dan-
çar: balé clássico, moderno, sapateado, jazz, dança popular, de
salão, de rua... Ou seja, o termo dança é, nele mesmo, um ele-
mento carregado de pluralidade. De maneira especial, o conceito
de multiplicidade colabora para olhar e discutir uma produção de
dança que denominamos como contemporânea: sistema específico
organizado a partir de diferentes modos de pensar, criar, prati-
car e experimentar dança. Simultaneamente singular e múltipla,
a dança contemporânea oferece discursos polissêmicos, multipli-
ca imagens e sentidos, forja diferenças e possibilidades, evidencia
uma variedade de usos do corpo e da cena. Interessa-nos, acima de
tudo, a perspectiva dialógica implicada em sua constituição. É com
essa visão e a partir das considerações acima que surge o Múltipla
Dança – festival e livro. Ambos lançam um olhar para uma diver-
sidade de corpos, contextos e propósitos, buscando compreender
a integração da qual emerge uma dança múltipla. Por ser múltipla,
escapa de qualquer tentativa de ser reduzida.

SEMINÁRIO, FESTIVAL, ENCONTRO

O projeto Múltipla Dança nasce de inúmeras inquietações,


dentre as quais a de buscar uma articulação entre aqueles que

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compartilham o interesse pela dança contemporânea enquanto de complementaridade entre criação, difusão e reflexão. Planeja
proposta de produção do conhecimento; bem como, conceder es- atividades que facilitem e fomentem o acesso a diferentes canais
paço à ocorrência de diferentes modos de diálogo, procurando de distribuição (teatros, espaços alternativos ou mesmo a rua), o
aproximar sempre o pensar e o fazer dança. Com essas intenções, acesso do público em termos físicos (variedade de localidade geo-
buscamos desenhar um programa regular de integração, ou seja, gráfica, gratuidade de ingresso), o acesso intelectual (organização
uma ação voltada ao compartilhamento de ideias, a difusão da in- de oficinas, palestras, diálogos, publicação de programa, lança-
formação e de incentivo à transformação da dança contemporânea mento de livros, entre outras). O interesse é ampliar o intercâmbio
como arte acessível a um público mais vasto. Múltipla, portanto, e a troca de informações por meio de propostas que contemplem
porque também capaz de alcançar um número cada vez maior de a diversidade nacional e internacional. Além de mostrar traba-
pessoas, sejam criadores, intérpretes, críticos, gestores, apreciado- lhos artísticos, os convidados ministram oficinas, palestras e/ou
res ou formadores de opinião. participam dos diálogos temáticos entrando em contato com um
público variado, alunos e profissionais da dança local. Ou seja,
Inaugurado em 2006 como seminário, sendo mais tarde Múltipla Dança está focado na dança como experiência produtora
denominado como festival, Múltipla Dança acontece anualmen- de conhecimentos e acontecimentos.
te durante o período de uma semana em diversos espaços de
Florianópolis, capital de Santa Catarina, Brasil. Trata-se de um Além de considerar a variedade de pontos de vista como
programa de ações dedicado a promover a criação e difusão da motor do desenvolvimento da dança, o projeto Múltipla Dança
dança e arte contemporânea, tecido na articulação de artistas surgiu apostando nos encontros interpessoais e na tessitura de re-
profissionais, convidados e público. A programação prevê a ofer- des de contatos. Com efeito, sua viabilização sempre ocorreu via
ta de espetáculos, oficinas, palestras, diálogos, mostra de video- apoio e parcerias locais, nacionais e internacionais. Instituições
dança, conferências, ensaios abertos, exercícios de escrita crítica como Aliança Francesa de Florianópolis, Sesc-SC Universidade do
e performances. De âmbito internacional, o encontro firmou-se Estado de Santa Catarina (Udesc), Universidade Federal de San-
no calendário cultural da cidade, e recebeu, inclusive, o Prêmio ta Catarina (UFSC) e Fundação Cultural Badesc; projetos como
Cultura 2008, oferecido pela Prefeitura Municipal de Florianó- Tubo de Ensaio, Entrando em Contato e Acervo Mariposa; festi-
polis e Fundação Franklin Cascaes para projetos de destaque na vais como o Dança em Foco; patrocinadores como Caixa, Funar-
área cultural. Ano após ano, o encontro ganha projeção nacional te e Governo Federal, estiveram unidos ao projeto, colaborando
e internacional, fato atestado por meio das significativas matérias para viabilizar sua programação e continuidade. De fato, uma das
publicadas na imprensa. grandes dificuldades do mercado da dança é garantir a permanên-
cia de suas ações, frequentemente ameaçadas de extinção por mo-
Como o próprio nome afirma, concepção e programa são tivos que vão da carência de apoio financeiro até a falta de cone-
calcados na multiplicidade. Afinal, assim funciona o campo de xão entre seus participantes. Para nós, realizar o Múltipla Dança
interesse fundamental do festival: a dança e arte contemporânea, é um permanente desafio, o qual coincide com nosso compromisso
território de conexões singulares entre corpos, movimentos e con- de gerar condições de existência à própria dança. Julgamos que a
textos diversos. Múltipla Dança vai além da perspectiva de exi- perseverança é uma forma eficaz de fomento.
bição de trabalhos artísticos. Seu programa é pautado em ações

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Acreditamos, também, que qualquer tentativa de compreen- LIVRO, REGISTROS, REL ATOS, TESTEMUNHOS
são do momento atual passa pelo reconhecimento de uma história
que, mesmo sendo um passado, vive e opera no presente. Compro- Na esteira da manutenção de sua função primordial – insti-
metido com a disseminação de informações de importância histó- tuir espaços de troca, sensibilizar o público em geral para a dança
rica, especialmente àquelas associadas ao estado de Santa Catari- e arte contemporânea, favorecer a profissionalização de artistas e
na, homenageamos e celebramos importantes nomes, como Ana gestores – propomos a publicação desta edição comemorativa aos
Luiza Ciscato, Anderson Gonçalves (1964-2010), Diana Gilarden- 10 anos de realização do festival Múltipla Dança.
ghi, Ida Mara Freire, Renée Wells (1925–2007), Sandra Meyer e
Grupo Cena 11 Cia. de Dança. Este livro assume significação pelo ponto de vista da memória
e do arquivo. A publicação pretende demonstrar como o projeto atua
O propósito do Múltipla Dança é o de buscar e organizar en- na construção do circuito de dança contemporânea em Santa Ca-
contros, pois entendemos que eles levam-nos a pensar-criar. Sendo tarina, como estimula trajetórias, pesquisas e atua no índice de de-
assim, cada edição procurou construir diferentes oportunidades senvolvimento humano. Vale ressaltar que a noção de arquivo aqui
de interação, de exercício e aprofundamento de nossa capacidade mencionada está em sintonia com o desejo de inaugurar diálogos
relacional. Cabe considerar, a exemplo, que para além dos espetá- com diferentes temporalidades. O livro representa a possibilidade de
culos, a programação sempre inclui aulas práticas e conversas com arquivar pensamentos no desdobramento de itens distintos – histó-
os criadores convidados. Ao longo do tempo; perseguindo o pro- ria, criação, crítica, pesquisa, inclusão e gestão; que se conectam com
pósito de sobrepor diferentes práticas e discursos, privilegiando a noções e afinidades do presente a-histórico, ou seja, a publicação não
aventura do conhecimento e a diferença como potencial instaura- aposta no cronológico, mas no anacrônico, um viés significativo do
dora de novas perspectivas; o festival Múltipla Dança firmou-se discurso contemporâneo. Enquanto gesto crítico-criativo de reco-
como um espaço favorável a uma variedade de falas e proposições nhecimento de trajetórias, a publicação lida com memórias e modos
para se aproximar da dança. E, ainda, constituiu-se como uma es- de dançar, atravessando, sempre, outros importantes universos: o
pécie de rede potente para firmar encontros e reencontros, criando cultural, o social, o político, o econômico e o da comunicação1.
um ambiente de familiaridade entre artistas e a comunidade de
Florianópolis.

Na origem da palavra festival, encontramos os termos ce- 1


Desde o início, Múltipla Dança investe na execução de um plano de comunicação consis-
lebração e integração, os quais explicam nosso desejo de orga- tente e fundamentado em duas bases: 1) Uma assessoria de imprensa profissionalizada, sob
a responsabilidade da jornalista Néri Pedroso. Tal aspecto é significativo, configurando-se
nização e continuidade do evento. Queremos ver e experimentar
como importante potência do projeto, posto que assegura, inclusive, a visibilidade em outras
dança, registrar e falar sobre o que retemos, entrar em acordo geografias. O investimento em uma assessoria de imprensa de qualidade alinha-se à ideia de
e desacordo. Múltipla Dança valoriza um contexto artístico que produzir pensamento e sensibilizar diferentes públicos. O conteúdo adquire força estética
está sempre em processo e recusa um único padrão de existência, com as imagens de Cristiano Prim, fotógrafo profissional especializado em dança, que regis-
um modo que escolhe o risco e, com coragem, insiste na necessi- tra as ações do festival desde a primeira edição. 2) A criação de um design gráfico eficiente,
capaz de conjugar os aspectos visuais e funcionais de modo a comunicar a qualidade e o
dade urgente de (re)descoberta. Um encontro que investiga alguns
diferencial do Múltipla Dança. A designer Paula Albuquerque comanda a campanha e cria as
dos infinitos possíveis que nascem do e no dançar.
peças gráficas do festival.

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Além disto, trata-se de um dispositivo capaz de fortale- em fomentar conhecimento. A riqueza de um diálogo estaria
cimento e qualificação dos debates travados nas edições reali- exatamente no contato entre diferenças e não entre iguais.
zadas do festival Múltipla Dança. E, ainda, de uma excelente
ferramenta para produção de novas narrativas sobre as realida- O texto de Inês Bogéa contextualiza os 10 anos do Múltipla
des vivenciadas. O livro propõe um entrelaçamento de olhares Dança no Brasil e reflete sobre a importância de encontros simi-
e uma multiplicidade de vozes relacionadas ao evento e suas re- lares para o fomento e a difusão da dança nesse país. A autora
percussões, com o objetivo de constituir-se enquanto operador reconhece que mesmo na aridez de recursos e no deparar-se com
significativo de mudanças e transformações em seu ambiente de muitos desafios, o evento configura-se “como um espaço movente
realização. A publicação segue algumas das metas do evento: de aproximações singulares e reconfigurações do próprio espaço
abrir possibilidades de criação e circulação do pensamento espe- da dança, que leva em conta a resistência do mundo para encon-
cializado além do ambiente acadêmico; colaborar com a forma- trar fluidez e sustentabilidade artística”.
ção de plateias e leitores da dança; ampliar conexões com outros
artistas do país e do mundo; promover a articulação entre dança Néri Pedroso amplia o olhar sobre o Múltipla Dança, ao
e cidade. analisar seu contexto de ocorrência: o circuito de dança contem-
porânea em Santa Catarina. Ao observar esse ambiente, a jor-
Os escritores convidados a compor este livro são artistas, nalista aponta diversas debilidades - como a aridez de verbas, a
professores, críticos, pesquisadores, enfim, profissionais conec- ausência de políticas públicas, o descaso empresarial; mas tam-
tados a área da dança que participaram, pelo menos, de uma bém vitalidades – como a qualidade dos profissionais atuantes, a
edição do festival Múltipla Dança. Ou seja, são pessoas que de riqueza e ressonância de seus trabalhos. Sem fixar-se nos lamen-
algum modo vivenciaram o encontro, em suas diferentes oportu- tos, oferece uma perspectiva otimista acerca do circuito investiga-
nidades de ação, e que agora ou refletem sobre o próprio Múlti- do, apontando que, paradoxalmente, a falta de apoio é capaz de
pla e seu contexto, ou apresentam pensamentos voltados a cam- “moldar novos modos de criar e produzir pensamento”. Ela diz:
pos específicos de conhecimento, a exemplo da crítica, criação, “Embora vitimado pelas descontinuidades, se não robusto, o mo-
história, pesquisa, inclusão, gestão e política da dança. vimento existe. Informe, tem riqueza, produz texturas, ocupa um
espaço social público. Os artistas da dança produzem arte como
No texto “Curadoria de dança como abertura ao diálo- um ato de resistência”. Nunca desistimos de acreditar.
go”, Jussara Xavier discute possíveis funções de um curador e
revela especificidades dos processos e práticas curatoriais de- A crítica e seus movimentos: tal é o mote do texto de San-
senvolvidas nas edições do Múltipla Dança. Sua hipótese afir- dra Meyer, que expõe ideias sobre escrita crítica em dança na ca-
ma a curadoria de dança como proposição dialógica, aberta a pital do estado de Santa Catarina, incluindo os escritos que se
diferentes posições e pontos de vista, incentivadora de leituras e desdobraram a partir da programação do Múltipla Dança. Segun-
perguntas distintas. Ao fazer escolhas, o curador assume riscos do a autora, textos críticos podem revelar aspectos da dança que
e considera, inclusive, que nem todos os públicos estão dispostos aqui se produz e que por aqui circula, bem como, evocar dizeres
ao diálogo. Para a autora, o diálogo requer o estabelecimento de próprios das danças. Meyer chama atenção ao fato de que novos
um ambiente de cooperação, esforço de compreensão e interesse modos de se fazer arte demandam novas práticas de escrita. No

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entrelaçamento de múltiplas danças, críticas e escritas, distingue a individual e coletivo, dado que pode constituir um acervo de refe-
colaboração do Múltipla Dança “para diminuir a acrisia presente rências para a interpretação do presente e para a antecipação de
em grande parte dos festivais de dança catarinenses”, bem como, futuros possíveis. Ela elucida: “Aprendi que as narrações têm a
para permitir “que a contemporaneidade da dança (que inclui a possibilidade de modificar nossas ideias e conceitos sobre o que foi
dança contemporânea) aqui circule e ganhe vigor”. vivido, ressignificando o presente e modificando o que está por vir.
É o futuro que nos interessa quando lidamos com as memórias. É
Ida Mara Freire, que acompanha e escreve sobre o Múltipla “para o que virá” que existem pesquisas históricas, para iluminar
Dança desde a primeira edição, compôs um alfabeto para indexar nossa ação no mundo ao nos projetarmos sobre o que foi vivido”.
suas anotações, escritas e críticas publicadas no Caderno Plural do Vale sublinhar que tal é o propósito do Múltipla Dança ao definir
Jornal Notícias do Dia. O resultado é um mosaico de memórias e homenageados em suas edições, divulgando pedaços da história
afetos, que remetem a um universo de artistas, histórias, espetácu- da dança local, desejando despertar investigações deste teor.
los, práticas, diálogos, encontros, homenagens e perguntas. Poesia
e informação de A à Z. “O corpo como morada do tempo” é o título do texto de
Andréa C. Scansani, também conhecida como Daraca. Recorren-
Cláudia Müller distingue a noção de artista-etc.; termo do a poesia e filosofia, a autora desenha encontros entre a imagem,
cunhado pelo artista, professor e crítico Ricardo Basbaum; para o movimento e o tempo. Um texto que transborda a força e a
questionar a natureza e função do artista. Para facilitar seu reco- delicadeza próprias de um ato cinematográfico e de uma ação de
nhecimento enquanto uma artista-etc., a autora recorda e proble- dança. Daraca anuncia: “A dança, bem como a imagem cinemato-
matiza importantes trabalhos de sua trajetória, como o projeto gráfica, teria então como matéria-prima o próprio tempo inscrito
Dança Contemporânea em Domicílio e a ação Precisa-se Públi- no corpo”. Sua reflexão passeia por um corpo-imagem em movi-
co. Longe de ocupar-se apenas com a produção de suas próprias mento e transformação no e com o tempo.
obras, o artista-etc. deseja “imaginar e construir circuitos férteis,
gerar contextos e pontos de contato, tecendo possíveis redes que Thembi Rosa cria um tempo próprio “sem começo meio e
engendrem possibilidades de existência, de visibilidade, de debate fim”, para continuar dançando ou buscando “sempre e de novo,
e de construção de espaços para produções artísticas. A artista-e- de novo, e de novo”. Em seu relato, ela testemunha escolhas, sen-
tc. emite, portanto, discursos no plural e se afeta por êxitos e fra- sações e impressões de alguns de seus trabalhos criativos na dança,
cassos que não os seus”. Estamos convictas que o Múltipla Dança como as intervenções urbanas parquear e parquear bando, a ins-
nasceu como possibilidade de encontro e geração de “artistas-etc”. talação parâmetros em movimento, a performance perceptrum,
o espetáculo 1331” e a instalação coreográfica verdades inven-
“Quantas pessoas conhecem histórias pelos/dos/com corpos tadas. Ao revelar estratégias inventivas, a autora expõe a riqueza
que dançam?”. Na esteira dessa pergunta, Lilian Vilela desco- que nasce do entrelaçamento entre dança, música, sons, softwares,
bre Denise Stutz e esclarece a pesquisa biográfica em dança. Um imagens, ambientes, companhias, etc. Para ela, “a rádio, a rua, as
modo de investigação atravessado por processos de transformação intervenções, as redes, as publicações, os encontros corpo a corpo,
e criação, muito além da mera coleta de dados. De acordo com tudo isso está para mostrar que a dança, os processos de criação
a autora, produzir memórias é fundamental para o aprendizado não se resumem a um fórmula única de existir, vai além, vai para

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as situações que nos impulsionam a criar novos lampejos de con- implica em acolher simultaneamente artistas e públicos diversos
tinuidade”. entre si.

Criar novas situações e problemas para o corpo que dança Encontrar e reunir projetos artísticos com pensamentos di-
é uma das preferências criativas de Vanilton Lakka. Ele escreve versificados nem sempre é fácil. O texto de Ana Luiza Ciscato
sobre a trajetória que o levou a desenvolver conceitos e práticas trata exatamente do desenvolvimento de um trabalho artístico in-
focados na relação entre corpo, dança e cidade. Para abordar a clusivo, realizado a partir de uma visão abrangente de mundo.
formação do artista cênico em sua relação com a arquitetura da Ela propõe pensar a inclusão por meio da conscientização de que
cidade, o autor reflete sobre diferentes aspectos e etapas da pes- todos temos reconhecimentos, inteligências, formas de expressão,
quisa, elaboração e realização do projeto Mono-Blocos. Segundo aprendizados e capacidades diferentes. A autora relata sua expe-
Lakka, Mono-Blocos resulta de um estudo que iniciou com a ne- riência profissional em dança: mais de 25 anos de trabalho junto
cessidade de “dançar na cidade, rolar no piso duro, experimentar a pessoas com deficiências. Sem ditar modelos de ensino-apren-
os volumes e texturas da praça, negociar com a horizontalidade e dizagem, Ana Luiza Ciscato permite vislumbrar o que significa
com a verticalidade do urbano. Negociar também as dimensões transformar restrições em possibilidades criativas.
histórica, técnica, política e social presentes no corpo de cada
um, bem como verificar as possibilidades de convivência e sobre- Convidamos Isabel Marques para escrever sobre possíveis
vivência de um corpo na interação com a arquitetura física e so- transformações humanas e sociais por intermédio da dança. Ela
cial das praças ocupadas em festivais e programas artísticos”. O inicia seu texto dizendo voltar-se “às memórias presentes de en-
trabalho cênico é organizado por meio de uma lógica de jogos e contros que me fazem refletir sobre a dança em tempos e espaços
envolve diversos modos de interação com o público. de educação e arte. Comemoro 10 anos de verdadeiros encontros
proporcionados pelo Múltipla Dança”. Marques acredita que a ex-
Assim como Lakka, Ana Alonso também aborda uma periência da dança é capaz de inaugurar espaços para a imaginação
dança sempre fruto do encontro. Ela concentra-se na prática e e criação e, assim sendo, de transformar pessoas e contextos sociais.
pesquisa da técnica Contato Improvisação (CI), para tratar da Ela critica o hiperindividualismo da sociedade atual que inviabiliza
dança como experiência de encontro e o encontro na vivência da encontros e diálogos, ao mesmo tempo em que enaltece a improvi-
dança. Neste contexto, a relação interpessoal implica em apro- sação enquanto estratégia de dança e arte compartilhada.
ximação, compartilhamento, colaboração, crença, liberdade e
responsabilidade. Na esteira do pensamento da autora, CI en- Marila Velloso e Manoel J. de Souza Neto escrevem em in-
globa um processo capaz de gerar ruído e desacordo e, por isto, terlocução com autores da dança, do direito e da política, de modo
prioriza aspectos como confiança, segurança e escuta, de modo a específico das políticas culturais. O texto revela contradições entre
desenhar um campo que permita expressar diferenças e exercitar o que é dito e o que é praticado nas gestões culturais do Estado,
a coexistência. Tal exercício é caro à manutenção dos princípios no Brasil, as quais afetam a gestão pública e a implementação de
que regem a composição de cada programa e edição do festival qualquer programa setorial. O artigo é oportuno para fundamen-
Múltipla Dança. A construção deste espaço supõe um perseguir tar estudos na área da gestão em dança e de outros setoriais, tendo
a possibilidade da coexistência de diferentes, o que, por sua vez, em vista a carência de publicações que apresentem as dimensões

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e as relações entre os setores e a estrutura do Estado. A hipótese exercidas: bailarina, pesquisadora, professora, diretora e produto-
dos autores é de que a burocracia do Estado moderno é o que de- ra em diferentes espaços artísticos (Centro Integrado de Cultura,
limita o que é ou não possível em uma gestão pública de cultura Ateliê Cia. de Dança, Cravo-da-Terra, dentre outros); gestora de
e de dança. artes e cultura em instituições privadas (Aliança Francesa), públi-
cas (Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes) e no
“Isto não é um texto, é um corpo”. Sob esta afirmação/pro- terceiro setor (ONG Arte Movimenta); colaboradora em associa-
vocação, a criadora mexicana Olga Gutiérrez reúne escritos pro- ções e comissões da classe da dança (Aprodança, Colegiado Seto-
duzidos em diferentes ocasiões de sua trajetória profissional: situ- rial de Dança). O escrito destaca o momento de criação e manu-
ações de residência, colaboração artística, criação de espetáculos e tenção do festival Múltipla Dança. Com ele, Marta Cesar registra
até momentos de ócio em países como México, Espanha, Alema- sua gratidão pelo tempo vivido na capital catarinense, brindando,
nha e Argentina. Suas reflexões circulam em torna das perguntas: de modo especial ao seu encontro com Neiva Ortega, a quem esta
“O que pode um corpo?”, “O que é um artista-gestor?”, “Que publicação é dedicada.
tipo de trabalho realiza?”. Interessada em investigações em torno
da singularidade do corpo conectado com a arte e o político, Olga O livro inclui, ainda, um texto imagético do fotógrafo Cris-
busca desenhar outros modos de mover, novos espaços e imaginá- tiano Prim, profissional com uma trajetória de mais de 20 anos
rios acerca da construção de coletividades. Aqui cabe sublinhar e na cidade de Florianópolis, especializado em retratar o movimento
agradecer a tradução do espanhol para o português realizada pela evidenciado na dança de Santa Catarina. Prim veicula parte do tra-
artista e professora de dança, argentina radicada em Florianópo- balho realizado no festival Múltipla Dança, ao captar seus momen-
lis, Diana Gilardenghi. Sendo assim, o texto de Olga Gutiérrez é tos e criar novos olhares e temáticas em torno do vivido. Seu texto
publicado em sua língua original – espanhol, acompanhado da veicula fotografias de espetáculos, performances e conferências
tradução em português. dançadas captadas em várias edições do evento. Além disso, repre-
senta uma oportunidade de conhecimento e interrogação acerca da
Rui Moreira faz um texto-convite intitulado “Vamos falar dança, apontando questões poéticas, históricas, sociais, políticas,
sobre as danças negras”, apontando pensamentos e ações de dança tecnológicas e econômicas, vislumbradas em suas imagens.
alçados no universo da produção cultural negra. Seu escrito in-
clui uma lista de pessoas e de iniciativas referências neste contex- Acreditamos que leituras sobre dança contemporânea levam
to, destacando os encontros da Rede Terreiro Contemporâneo de o leitor a uma melhor percepção e compreensão do assunto. É
Dança. O autor conclui com um chamado à valorização dos “po- uma rica possibilidade de obter informação, ter contato com uma
vos afrodescendentes”, os quais “representam um grupo distinto cultura especializada, acessar seus comportamentos e histórias e,
cujos direitos humanos precisam ser promovidos e protegidos”. consequentemente, lidar melhor com aquilo que é “diferente”. Tra-
ta-se da possibilidade de exercitar a formulação de reflexões sobre
Marta Cesar escreve sua “carta de amor” para a cidade de a dança, ou seja, de encaminhar-se para formar ideias próprias
Florianópolis, onde residiu de 2001 a 2017, quando retornou à e maduras dos fatos. Por fim, registramos nossos sinceros agra-
capital São Paulo, sua terra natal. A narrativa concentra-se em sua decimentos aos autores dos textos deste livro por suas valiosas
trajetória profissional, passeando por encontros pessoais e funções contribuições.

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Esta publicação deseja sublinhar o compromisso de forma-
ção abraçado pelo festival Múltipla Dança em todas as suas edi-
ções. Disseminar conhecimento em dança. Construir relaciona-
mentos. Gerar diálogos e pensamento crítico. Múltipla Dança é
um espaço aberto para.

Boa leitura!
Jussara Xavier e Marta Cesar

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JUSSARA XAVIER atua como crítica de dança, CUR ADORIA DE DANÇA COMO
diretora de espetáculos de dança e teatro, pes- ABERTUR A AO DIÁLOGO
quisadora, professora, gestora, coordenadora Jussara Xavier
e parecerista de projetos culturais. Pós-dou-
tora em Filosofia (UFSC), doutora em Tea-
tro (Udesc), mestre em Artes, Comunicação

A
e Semiótica (PUC/SP), especialista em Dança o desenhar o projeto de um seminário, festival e/ou encon-
Cênica (Udesc). Professora dos cursos de Licen- tro de dança (três designações que costumamos usar para
ciatura em Dança, em Teatro e em Música da denominar o Múltipla Dança), uma das funções exercidas
Universidade Regional de Blumenau (FURB). é a de curadoria. Num primeiro momento, este texto busca pensar
Publicou os livros Grupo Cena 11. Dançar é acerca de tal encargo. Encargo porque trata-se de um compromis-
conhecer (2015) e Acontecimentos de dança: so, quer dizer, do exercício de uma responsabilidade pessoal que
corporeidades e teatralidades contemporâneas considera e deseja modificar o campo em que se atua profissional-
(2013). Coorganizadora dos livros Tubo de En- mente: dança, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Num segundo
saio. Composição [Intervenções + Interseções] momento, o texto reflete sobre uma ação específica dentro do Múl-
(2016); Histórias da Dança (2011); Pesquisas tipla Dança: os diálogos, ou seja, espaços planejados para a realiza-
em Dança (2008); Tubo de Ensaio. Experiên- ção de conversas acerca de assuntos específicos, definidos por nós
cias em Dança e Arte Contemporânea (2006). e inicialmente abordados por um grupo de pessoas convidadas. A
Responsável pela pesquisa, realização e direção seleção desse recorte justifica-se, inicialmente, pela importância que
do Documentário Ballet Desterro: Contempo- tanto eu quanto Marta Cesar; profissional com quem compartilhei
raneidade na Dança Catarinense (2010). Na a curadoria das 10 edições do Múltipla; conferimos à criação de
função de coordenadora dos Seminários de espaços de conversa e aproximação com e entre artistas, bem como,
Dança do Festival de Dança de Joinville, orga- desses com o público. Apesar desta iniciativa, ano após ano, reunir
nizou os livros 1, 2, 3 e já! A criança pinta, um número muito restrito de público, nunca abdicamos de incluir
borda e dança (2018) e Dança não é (só) coreo- o momento. Nele encontramos a possibilidade privilegiada de estar
grafia (2017). O site Midiateca de Dança (midia- com aqueles que escolhemos para arquitetar relações entre ideias e
tecadedanca.com) disponibiliza gratuitamente proposições, construir e fortalecer vínculos pessoais e profissionais.
livros, textos e vídeos de sua autoria, além de Por fim, busco pensar a curadoria como processo potencializador
reunir um acervo documental relacionado à his- de diálogos entre diferentes e diferenças.
tória e memória da dança catarinense.

UM COMEÇO: PROCESSO DE CUR ADORIA DE DANÇA

Na etimologia da palavra curadoria está o latim curator,


que significa aquele que administra, que tem cuidado e apreço.

26 27
Também quer dizer o ato de “curar” que, por sua vez, relaciona-se a vídeos de espetáculos, bem como, ler críticas especializadas em
com o zelo e a atenção com alguma coisa. Considero estes concei- jornais e revistas. Há um grande mercado virtual de dança pronto
tos bastante apropriados, pois vão ao encontro de minha experi- para ser desbravado. Ao contatar um artista ou uma companhia
ência no papel de curadora na área da dança, prática inicialmente profissional de dança, você pode solicitar seu portfólio, requerer o
exercida com base na intuição e no desejo de realizar. Mas cuidado, projeto de venda de algum trabalho coreográfico, questionar sobre
apreço e zelo com o quê ou com quem? Com a cidade e o estado em o repertório em exibição e até mesmo trocar ideias sobre os pa-
que habito, a partir da constatação de falta: muito pouca oferta de res, recebendo indicação de outras obras e possibilidades. De todo
informação especializada na minha área de trabalho em termos de modo, com ou sem dinheiro, acredito que a investigação, ainda
aulas, palestras, conferências e/ou espetáculos de artistas e compa- que mínima, é parte de todo processo de curadoria.
nhias profissionais de dança provenientes de outros estados e países. Se o curador é também aquele que administra, está envol-
Entre ação e reclamação, abraço sempre a primeira opção, a princí- vido em uma complexa rede de gerenciamento de recursos (finan-
pio rascunhando alternativas e desenhando planos. O cuidado com ceiros, materiais e humanos) e de tomada de decisões. Ele tem o
meu ambiente manifestou-se na tentativa de modificar uma conjun- dever de orientar suas escolhas para que suas ideias sejam efetiva-
tura precária e insuficiente. Tal seria o empurrão que deu início a mente implantadas e seus objetivos alcançados. Sua competência
um processo pessoal de curadoria, realizado de modo independente inclui não somente saberes conectados aos artistas, espetáculos e
e interessado em abrir e fundar espaços de acesso à dança. A ação atividades que deseja programar, mas implica em conhecer suas
de “curar”, conectada à concessão de atenção com algo, também possibilidades reais de ação. No caso do Múltipla Dança, tínha-
diz respeito ao conhecimento de uma área de interesse: a produção mos como pressuposto a realização de ações em diferentes canais
profissional de dança no Brasil e no mundo. Nesse contexto, a fun- de distribuição e bairros da cidade. Num primeiro momento, lis-
ção de um curador passa pela compreensão do mercado, pela ma- távamos os espaços – teatros, salas de exibição, instituições, aca-
nutenção do interesse em seus elementos (artistas, obras, festivais, demias, escolas e até mesmo a rua, potencialmente aptos a receber
ações, etc.) e pelo cultivo de contatos. nossas ações e/ou estabelecer parcerias. O Centro de Artes (Ceart)
A falta de recursos financeiros interfere enormemente e de da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), por exem-
diversos modos no tipo de curadoria praticada. Por vezes um cura- plo, é um local que possui salas que servem tanto à exibição de es-
dor atua como uma espécie de explorador, buscando descobrir petáculos quanto à oferta de cursos de dança. Contudo, especial-
e gerar visibilidade para novos artistas e obras. Neste sentido, o mente em relação à mostra espetacular, há restrições em termos
ideal é que ele possa viajar, circular, acessar diferentes canais de espaciais: as salas não são apropriadas para companhias de dança
distribuição: festivais, teatros e eventos de dança por diferentes com elenco numeroso, dificilmente atendem à montagens comple-
partes do Brasil e do mundo. Assim pode ampliar seu repertório, xas em termos técnicos e não comportam um público numeroso.
suas fontes de conhecimento e possibilidades de seleção. Quando Ou seja, tanto esse quanto outros espaços possuem limites e pos-
as finanças impedem as viagens de conhecimento, cabe recorrer a sibilidades que devem ser analisados: características e tamanho
internet e aos contatos pessoais. A internet permite acessar a pro- do palco (italiano, arena, multiuso, etc.), equipamentos (som, luz,
gramação de mostras e festivais por todo o mundo, verificar tem- vídeo), recursos (equipe de limpeza, banheiros, linóleo, técnicos,
poradas de dança em teatros e demais canais de exibição, pesqui- cadeiras, etc.) disponíveis e capacidade de abrigar o público (em
sar sites de instituições, artistas e companhias de dança, assistir termos quantitativos e qualitativos).

28 29
Planejamento e organização são funções que exerci como de avaliação, concordávamos exatamente sobre aqueles que não
curadora do Múltipla. Logicamente, o volume de recursos finan- deveriam retornar tão cedo (ainda que seu trabalho artístico fosse
ceiros disponível para o pagamento de cachês, despesas de trans- excelente).
porte aéreo e terrestre, hospedagem, alimentação, locação de espa- Um curador de dança assume a tarefa de intervir no mercado
ços e equipamentos, dentre outros itens, determinavam as escolhas do micro ao macro. Em nosso caso: Florianópolis, Santa Catarina,
curatoriais. Neste sentido, permanecemos distantes de incluir na Brasil e mundo. Nossa cidade e estado por serem a sede do festival
programação muitos nomes e obras internacionais que desejáva- e, sendo assim, os ambientes que impactamos mais diretamente.
mos ter nas edições. Para atender nossa dimensão orçamentária e Mas também nosso país e os demais, posto que construímos pon-
operacional, optamos majoritariamente por trabalhos coreográfi- tes com diversas localidades e oportunizamos trabalho para pro-
cos no formato solo e duo ou grupos com equipe e elenco reduzi- fissionais de várias regiões. Oguibe (2004, p. 11) distingue como
dos. Isto mostra que o curador como administrador deve ter uma um dos tipos de curador o “corretor cultural”, apontando-o como
visão integrada das diferentes etapas e necessidades envolvidas aquele que “emprega seus conhecimentos, autoridade e contatos
no processo de realização de um festival ou evento de dança. A direcionando-os à arte e aos artistas, que podem não ter acesso
concretização de um projeto curatorial envolve constante adapta- imediato [...] ao público, de modo a fixar-se no papel de agencia-
ção e negociação, inclui a avaliação das alternativas disponíveis, a dor cultural intermediário”. Como mediador, o curador promove
antecipação de possíveis consequências e o controle de atividades o acesso do artista a plateia, aproximando-os. Assim, atua como
gerenciais, processo que vai muito além da escolha isolada de ar- um facilitador capaz de gerar visibilidade e reconhecimento para
tistas, grupos, trabalhos, espetáculos e ações de dança. determinados profissionais e obras. Indo mais fundo, buscamos,
Um ponto definido em nosso esforço de curadoria para o no Múltipla, não apenas possibilitar mero contato entre dança e
Múltipla Dança é o de aproveitar ao máximo os convidados. De público, mas ofertar alternativas capazes de auxiliar a fruição e
fato, em nossas convocações, costumávamos brincar dizendo que leitura das obras veiculadas. De encontro a tal propósito, progra-
“explorávamos” as pessoas que trazíamos para Florianópolis. As- mamos ações como oficinas, palestras, conferências e diálogos.
sim, por exemplo, o artista apresentava seu solo de dança, partici- A palavra curadoria vem das artes visuais, o que talvez sirva
pava de um diálogo, ministrava uma oficina e era levado a acom- para justificar uma produção considerável de textos acadêmicos e
panhar toda a programação do encontro. Este seria, talvez, um livros sobre o assunto nessa área. A abordagem nas artes cênicas
traço curatorial do Múltipla Dança: incluir pessoas interessadas é ainda tímida, especialmente na dança. Neste contexto, destaco
em trocar experiências, em conhecer o outro. Nunca foi nosso a dissertação de Rolim (2015), que investiga o pensamento cura-
propósito programar apenas profissionais e trabalhos que já co- torial orientador de três importantes festivais de artes cênicas no
nhecíamos, ao contrário, escolhíamos aqueles pelos quais éramos Brasil, a partir de depoimentos de seus curadores: Luciano Ala-
atraídas, que nos geravam curiosidade, com os quais desejávamos barse, do Porto Alegre em Cena – Festival Internacional de Ar-
criar proximidade. Foi uma espécie de risco assumido, pois al- tes Cênicas; Guilherme Reis, do Cena Contemporânea – Festival
guns (muito poucos, diga-se de passagem e de modo agradecido) Internacional de Teatro de Brasília, e Antônio Araújo, da Mostra
convidados concordavam com nossa proposta de imersão e parti- Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp. Ressalto em segui-
cipação ampliada de modo puramente formal, permanecendo no da falas de cada um destes profissionais, pois dizem pensamentos
Festival com uma atitude solene e distanciada. Em nossas reuniões e práticas também vivos no Múltipla Dança.

30 31
[...] não gosto dessa ideia de uma curadoria conceitual. Eu sou rando novos desenhos e inesperadas soluções, além de auxiliar a
bem Millôr Fernandes, que tinha uma coluna muitos anos na Veja compreensão daquilo que, na gênese do projeto, ainda era vago e
e ele assinava assim: “Millôr, enfim, um escritor sem estilo”. Lu- disforme. Ou seja, nada muito diferente de qualquer outra práti-
ciano, enfim, um curador sem estilo. O que é que eu quero dizer ca performativa, como, por exemplo, dirigir uma peça de teatro.
com isso? Que eu não gosto de um só teatro, eu acho isso uma (ARAÚJO apud ROLIM, 2015, p. 109)
prisão, eu gosto dos teatros. Então eu sou capaz de admirar um
teatrão muito bem feito ou uma peça experimental; eu sou capaz De modo análogo à fala de Luciano Alabarse, consideramos
de ver um solo de um ator que se joga nesse solo; e o que me atrai a curadoria que exercemos no Múltipla Dança bastante aberta e
é um trabalho que prenda a atenção. Para começar, é a minha inclusiva. Não definimos um conceito e buscamos encaixar obras
atenção. [...] a minha curadoria mostra um consumidor ávido, um em torno do mesmo. Nem estamos interessadas num modo úni-
consumidor que não quer um só tipo de teatro, um consumidor co de dança (ainda que explicitamente o foco seja a contempora-
que não tem preconceito contra nada, né? Contra comédia, contra neidade): do modo experimental ao “clássico”, a diversidade da
tragédia, contra drama, contra teatro de mágica. (ALABARSE dança é o que interessa. Guilherme Reis enfatiza o que foi dito
apud ROLIM, 2015, p. 66) anteriormente: todo o processo de seleção e formatação de um
programa obedece ao quadro orçamentário, levando em conta
Talvez eu adorasse ter um coordenador-geral que me contratasse possíveis parcerias e apoios. Por fim, Antônio Araújo chama aten-
para fazer o que eu faço. Para não perder tanto tempo em plani- ção à adequação permanente que ocorre na trajetória que vai do
lhas e coisas que me dão dor de cabeça. Mas não é a nossa realida- desenho à execução de um projeto curatorial. A flexibilidade para
de. A outra coisa que impacta com essas decisões e que tem a ver resolver imprevistos indesejáveis e formular soluções pertinentes
com tudo isso é que o nosso festival é um festival privado feito por é indispensável. A posição de curador pode ser bastante descon-
artistas: não tenho respaldo do Estado. Se a gente errar nas contas fortável. Afinal, você responde ao público (formado também por
e ficar uma dívida, isso não vai ser pago por uma secretaria ou seus pares de profissão) sobre o funcionamento ou não do festival,
por uma prefeitura. Então a gente tem que ter um cuidado muito constata erros e acertos. Cada edição é um aprendizado, o que
grande quando a gente olha do ponto de vista econômico e finan- considero muito estimulante.
ceiro do festival. E isso condiciona escolhas. Parece que sempre o
curador do festival é o cara que livremente escolhe o que ele quer.
Só se ele tiver rios de dinheiro, ou sacos de dinheiro sem fundo.
Não é o nosso caso. (REIS apud ROLIM, 2015, p. 90)

Fazer a curadoria de uma mostra é tarefa ao mesmo tempo desa-


fiadora e ingrata. O abismo entre o projeto inicial e as possibilida-
des reais – decorrentes de restrições econômicas ou de agenda dos
artistas convidados – exige plasticidade e um grau de adaptação
que, muitas vezes, parecem desvirtuar ou trair o desejo original.
Por outro lado, o imperativo do possível também vai configu-

32 33
UM FIM: DIÁLOGOS POSSÍVEIS sobre algum tema pré-determinado com convidados considerados
a partir de uma afinidade e/ou interesse no assunto. Estabelecido
Dois monólogos não fazem um diálogo. um tema como foco da conversa, selecionávamos criteriosamente
_Edward Murphy um grupo de profissionais para trocar informações, inicialmente
entre si mesmos e, num segundo momento, incluindo o público
presente como interlocutor. Para convocar um profissional, pon-
O que é um diálogo? Como ele se efetua? Quem fala? Quem derávamos sobre sua trajetória profissional no campo da dança,
é autorizado a falar e sobre o quê? seu conhecimento e experiência no contexto do assunto escolhido
Em uma acepção habitual, diálogo é uma conversa, é uma para o debate.
discussão oral que se desenvolve com a manifestação de pontos
de vista sobre determinado assunto entre duas ou mais pessoas, Na inauguração do Múltipla, em 2006, realizamos dois mo-
que explicitam suas ideias de forma alternativa. Acredito que para mentos: o primeiro designado “Diálogos Brasil-França: produção
um bom diálogo ocorrer, é necessário estabelecer um ambiente de e contexto da dança contemporânea” com a participação de Inês
cooperação, reciprocidade, esforço de compreensão e interesse em Bogéa (SP), Osman Khelili (França) e Sandra Meyer (SC); e o se-
fomentar o conhecimento sem preconceitos. Tal sistema de con- gundo denominado “Experiências interdisciplinares em dança”,
versação requer o estabelecimento de uma relação entre iguais, os envolvendo Ângelo Madureira (SP), Ana Catarina Vieira (SP), Ale-
quais dirigem aos interlocutores seus próprios pensamentos, sejam jandro Ahmed (SC), Eva Schull (RS) e Zilá Muniz (SC).
eles semelhantes ou diferentes do outro. Neste caminho de troca
constrói-se um mundo comum de percepções, sublinhe-se: con- Em 2007, o primeiro diálogo teve como foco a “Gestão
traditórias ou não. O propósito de um diálogo é ampliar a esfera da dança: novos modos de produção e distribuição”. Reunimos
de nossos conhecimentos, não manipular opiniões para convencer Elke Siedler (SC), Florencia Olivieri (Argentina), Neto Machado
o outro acerca do próprio ideário. Ao meu ver, a riqueza de um (PR), Rui Moreira (MG) e Stéphany Mattanó (PR) para pensar
diálogo está exatamente no contato entre diferenças, no encontro possibilidades criativas eficientes de sobrevivência no mercado da
com o díspar. Qual seria a graça de colocar num diálogo pessoas dança. O segundo foi uma conversa sobre criação, com enfoque
que pensam e agem exatamente do mesmo modo, compondo uma nos trabalhos colaborativos realizados entre pessoas de diferentes
troca de falas concentrada em salientar o mesmo? Na contramão vivências, bem como, nas relações que surgem entre a pesquisa
dos processos de comunicação enfadonhos e redundantes, a cura- em dança contemporânea e o produto artístico gerado. Intitulado
doria do Múltipla Dança estipulou preceitos e ações que revelaram “Trabalhos colaborativos em dança: procedimento investigativo
um interesse em ouvir, saber mais e melhor, compreender e fecun- x produto artístico”, juntou os artistas Alejandro Ahmed (SC),
dar pensamentos diversos, enriquecer formulações conceituais e Clara Trigo (BA), Cláudia Müller (RJ) e Thembi Rosa (MG).
experimentais. Essa postura estende-se à composição deste livro,
cujas ideias de diferentes autores são ofertadas aos leitores para A terceira edição, em 2008, promoveu uma conversa entre
que dialoguem, concordando ou não com suas declarações. curadores e programadores para (re)pensar alternativas de acesso
As dez edições do Múltipla Dança incluíram “Diálogos” em à dança, o fluxo das informações no setor e a descentralização
sua programação: tempos e espaços organizados para conversação dos circuitos de dança. “Difusão da dança” contou com a par-

34 35
ticipação de Nayse Lopes (do Festival Panorama de Dança, RJ), veu a reflexão sobre a economia da cultura, a implementação de
Sacha Witkowski (Festival Diagnóstico da Dança, GO) e Simo- ações integradas por meio da constituição de redes de parceria
ne Avancini (Sesc/SP). As perguntas: Como fortalecer o mercado para a profissionalização do trabalho artístico. Também propôs a
da dança? Qual o papel da educação, da política e das mídias? disseminação de conhecimentos sobre a aplicação de métodos, ín-
Quais as responsabilidades dos profissionais da área para superar dices, processos e ferramentas da economia na área da gestão cul-
a invisibilidade social?, instigaram Armando Menicacci (França), tural. Nesse ano organizamos um terceiro diálogo: “SIM > Ações
Sandra Meyer (SC) e Sonja Gradel (RJ) a pensar sobre possibili- integradas de consentimento para ocupação e resistência”, foi uma
dades capazes de gerar “Visibilidade à dança” (título do diálogo conversa orientada sobre a pesquisa coreográfica do Grupo Cena
em questão). 11 Cia. de Dança (o nome do trabalho da companhia coincidiu
com o título do diálogo). Fabiana Dultra Britto (SP) como inter-
“Política e economia da dança” foi o tema de um dos diálo- locutora do grupo guiou a proposta, que também contou com a
gos programados na edição de 2009. Ao considerar que a economia participação dos integrantes da companhia catarinense.
da cultura envolve produção, circulação e consumo de produtos e
serviços culturais, respondendo por cerca de 7% do PIB mundial, Foram 3 os diálogos programados em 2013: “Políticas pú-
o diálogo desejou tratar das ações políticas que consideram a dan- blicas e a Aprodança – Associação dos profissionais de dança de
ça como fonte geradora de renda e emprego, bem como, vetor de Santa Catarina” com Lisa Jaworski (SC), Bia Mattar (SC) e Marta
desenvolvimento humano na sociedade. Para discutir o assunto, Cesar (SC); “Como se constrói uma dramaturgia de afetos?” com
reuniu Christophe Martin (França), Ernesto Gadelha (CE) e Ma- Andrea Bardawil (CE), Alejandro Ahmed (SC) e Sandra Meyer
rila Velloso (PR). Outro diálogo - “Dramaturgia da dança”-, ques- (SC); e “Dança, memória e história: pesquisas em dança nos esta-
tionou os convidados Márcia Milhazes (RJ), Milton de Andrade dos de Santa Catarina e Rio Grande do Sul” com Vera Torres (SC)
(SC) e Sandra Meyer (SC) a tratar de modos e processos particula- e Mônica Dantas (RS).
res de organizar material criativo no corpo e na cena.
Em 2014: “Pesquisa biográfica em dança” com Alejandro
2010. “Improvisação em espetáculos de dança”, com Ana Ahmed (SC), Denise Stutz (RJ) e Lilian Vilela (SP); e “Fomento à
Alonso (SC), Cristina Turdo (Argentina) e Zilá Muniz (SC). Este dança: ações de sustentabilidade”, com Ana Francisca Ponzio (SP),
diálogo partiu da premissa que o ato de improvisar é usualmen- Bia Mattar (SC) e Marcelo Leal (RJ).
te utilizado como recurso para composição coreográfica e prática
democrática de ensino da dança. A proposta foi a de refletir sobre Na edição de 2015 criamos uma espécie de jogo em que
a improvisação em seu modo espetacular. Lançamos perguntas convidados e público trocaram perguntas e respostas, elegendo,
como: Trata-se de uma dança não planejada? Um espaço para o juntos, o tema da conversa. Denominado “Faça uma pergunta”, o
risco, acaso e imprevisto? Quais as consequências dessa escolha no diálogo ocorreu com Eduardo Fukushima (SP), Elke Siedler (SC),
impacto com a plateia? Num outro momento, Ana Carla Fonseca Fabiano Carneiro (RJ) e Marina Abib (SP). O segundo momento
Reis (SP), Marcos Moraes (SP), Vanilton Lakka (MG) e Luciana sob o título “Dança e cinema e vídeo e teatro e performance e
Ribeiro (GO) destrincharam o assunto “Economia da cultura: as fotografia e música”, partiu do pressuposto da dança como um
redes como forma de articulação solidária”. Esse diálogo promo- tipo de conhecimento conceitual e estético de ordem colaborativa

36 37
e, sendo assim, a conversa desejou aprofundar aspectos operati-
vos desta linguagem em conexão ao cinema, vídeo, teatro, artes
visuais, música e performance. Foram convidados: Andréa Scan-
sani (cinema, SC), Cristiano Prim (fotografia, SC), Maria Eugenia
Almeida (dança, SP) e Leandro Fortes (música, SC).

No ano de 2016 repetimos a proposição “Faça uma pergun-


ta”, chamando Elías Aguirre (Espanha) e Vera Torres (SC) para
dialogar. “O que você está pensando/dançando?” – questão que
juntou Alejandro Ahmed (SC), Olga Gutiérrez (México) e Them-
bi Rosa (MG) para compartilhar ideias e prenunciar comporta-
mentos no mundo artístico. Ainda tivemos um encontro com Rui
Moreira (MG) e Bia Mattar (SC) sobre a “Política Nacional de
Artes”, os quais abordaram propostas públicas à área da dança
em nível federal.

(1)
2017: “Néri Pedroso entrevista Cristiano Prim”. Diálogo ex-
clusivo atrelado à realização da exposição “O Fotógrafo também
Dança”, exibida durante o período de execução do Múltipla Dan-
ça. Assim, a jornalista Néri Pedroso, profissional reconhecida por
sua atuação no campo do jornalismo cultural em Santa Catarina,
entrevistou o autor da exposição, o fotógrafo e artista Cristiano
Prim. Em outra proposta, os convidados Jussara Belchior (SC),
Key Sawao (SP) e Marila Velloso (PR) discutiram sobre “Dança
Etc.”. O título faz referência à definição de “artista-etc.”, de Ricar-
do Basbaum. A conversa guiou-se por questionamentos acerca dos
significados do dançar, abordando conexões entre dança e vida.
Ana Alonso (SC), Mariana Pimentel (CE) e Rodolfo Lorandi (SC)
dialogaram sobre “Economia Solidária”. Nesse sentido, explici-
taram variadas práticas organizadas sob a forma de autogestão,
âmbito em que todos aqueles que integram um empreendimen-
to são, ao mesmo tempo, trabalhadores e donos. Esse momento
lançou um olhar para modos exemplares de economia solidária,
numa tentativa de pensar possibilidades de cooperação no campo
artístico. (2)

38 39
(3) (5)

(4) (6)

40 41
LEGENDAS
(1) Inês Bogéa | Edição 2006
(2) Cláudia Müller, Jussara Xavier, Alejandro Ahmed, Thembi Rosa e Clara Trigo | Edição 2007
(3) Paulo Caldas e Marta Cesar | Edição 2009
(4) Mônica Dantas e Vera Torres | Edição 2013
(5) Alejandro Ahmed, Lilian Vilela, Denise Stutz e Jussara Xavier | Edição 2014
(6) Marcelo Leal, Ana Francisca Ponzio e Bia Mattar | Edição 2014
(7) Eduardo Fukushima. Ao seu lado: Elke Siedler e Fabiano Carneiro | Edição 2015
(8) Cristiano Prim e Néri Pedroso | Edição 2017
Todas as fotos: Cristiano Prim, exceto (8), de Gisele Martins Prim | Acervo Múltipla Dança

ENTRE O REAL E O IMAGINADO

A maioria das pessoas imagina que o mais importante no


(7)
diálogo é a palavra. Engano: o importante é a pausa. É na pau-
sa que duas pessoas se entendem e entram em comunhão.
_Nelson Rodrigues

O diálogo tem como pressuposto a capacidade de fala e de


escuta. Tendemos a participar de diálogos sobre assuntos que nos
interessam e/ou em nossos campos de atuação profissional e de
estudos. No papel de curadora, nunca me pareceu viável ou pro-
veitoso colocar um profissional, como um médico, por exemplo,
sem qualquer conhecimento sobre dança, num lugar privilegiado
de fala sobre essa arte. Considero argumento lógico e razoável,
promover um debate qualificado sobre um tema de determinada
área, selecionando profissionais com trajetória de vida, pesquisas
e realizações importantes neste mesmo campo de saber. Contudo,
para estabelecer uma conversa é necessário mais do que qualifi-
cação técnica na área: requer competência para dialogar, ou seja,
dialogar vai além de um mero discursar. “Ao contrário do que se
(8) costuma pensar, dialogar não quer dizer criar um monólogo no

42 43
qual apenas um membro fala na medida em que os demais escu- pontes. Precisamos de fazedores de pontes. Até agora, só temos
tam. Uma profusão contínua de palavras bem articuladas e em- construtores de muros. Isso começa lá em cima e se reflete na
pregadas nunca foi, é ou será diálogo. Dialogar não é monologar” sociedade. Tudo é politizado, tudo envolve briga. [...]. Quando
(CAMPOS, 2010, p. 10). Tal habilidade compreende a capacidade eu arrecado doações, eu levo para quem votou no Lula ou no
de colocar-se no lugar do outro, com intenção legítima de ouvir sua Bolsonaro, para o homossexual, o heterossexual, o preto, o bran-
perspectiva e compreender seu ponto de vista, mesmo que discor- co. Estamos todos no mesmo barco e precisamos entender que só
dante e contrário à própria posição. A postura arrogante, defensiva sairemos deste labirinto juntos.
e fechada é oposta à atitude de escuta rogada pelo diálogo.
O que temos hoje no Brasil? Um país dividido incapaz de Entre o real e o imaginado há um longo caminho a enfrentar.
estruturar diálogos entre diferentes. Você é esquerda então é igual Na função de curadora, considerando o mercado da dança brasi-
a x. Você é centro, equivale a y. Direita, certamente um z. Você é leiro e as condições financeiras/operacionais já destacadas, acredito
do teatro, é isto. É da dança, é aquilo. É do balé, é assim. É do con- que o diálogo oferece uma metodologia de ação e está no topo da
temporâneo, é assado. Como assim? O que dizer destes discursos conquista como valor inegociável. Unindo esforços teórico-práti-
generalistas e superficiais pouco interessados em escutar o outro, cos, os quais envolvem articulação conceitual e gestão executiva,
ao invés, apressados em rotulá-lo, pior, atacá-lo, diminuí-lo? Ao a curadoria implica em reconhecer a importância de comunicar e
invés de etiquetar uma pessoa, não seria razoável escutá-la e bus- fazer com o outro.
car compreender seus desejos e motivações? Quer dizer, dialogar? Smith (2012, p. 21) identifica elementos do pensamento cura-
Será que o fato dos diálogos programados nas edições do Múltipla torial contemporâneo como uma mistura concreta de princípios,
Dança contarem sempre com um número pequeno de participantes valores, ideias, regras práticas e necessidades éticas. O autor lista
é revelador do quão pouco somos disponíveis a escutar o outro? sete componentes da prática curatorial designados pelo especialis-
Manifestaria também o pouco interesse despertado pelo outro em ta em história da arte e curador nascido na Inglaterra e habitante
mim? na Austrália Nick Waterlow (1941-2009), num documento intitu-
O empreendedor paulista Edu Lyra, filho de uma diarista e lado “A Curator’s Last Will and Testament” (O último desejo e o
de um ex-presidiário, fundador da rede de ONGs Gerando Falcões, testamento de um curador): 1. Paixão; 2. Olho de discernimento;
arrecadou em cerca de duas semanas o valor de R$ 10,8 milhões 3. Um vaso vazio; 4. Uma habilidade de ser incerto; 5. Crença
para beneficiar 170 mil pessoas em favelas de 14 Estados brasi- na necessidade da arte e artistas; 6. Um meio de trazer, de modo
leiros. Seu objetivo: combater a fome e a pobreza agravadas pela apaixonado e informado, a compreensão de obras de arte para
crise do Coronavírus. Ao avaliar o cenário de intensa polarização um público de modo que se estimulem, inspirem, questionem; 7.
reforçado pela pandemia no Brasil, Lyra (2020) declara: Tornar possível a alteração da percepção (Ibidem, p. 21-22). Tais
pressupostos corroboram com minha hipótese de compreender
Essa polarização, a ignorância, o ódio, esses muros destroem e curadoria de dança como proposição dialógica, aberta a diferentes
matam vidas. As pessoas acham que só a corrupção mata. A falta posições e pontos de vista, incentivando leituras e perguntas dis-
de pragmatismo das nossas lideranças, de proposição, de diálogo, tintas sobre uma mesma proposição artística. A “habilidade de ser
isso destrói as famílias nas pontas e retarda o desenvolvimento incerto” implica em fazer escolhas e assumir riscos, compreenden-
das pessoas. Nós precisamos derrubar os muros e construir as do, inclusive, que nem todos os públicos dispor-se-ão a dialogar.

44 45
Cabe dizer que, como curadora, o estar sempre certa e o agradar po que nunca acabamos de adentrar, pois sua própria natureza é
a todos (até mesmo a si) é bem pouco provável. transformação e multiplicidade.
A capacidade de colocar novos problemas condiz, também,
com o campo da dança contemporânea, foco da curadoria do
Múltipla Dança. Como afirmei em minha tese de doutorado:
REFERÊNCIAS
O contemporâneo na dança reflete uma visão particular de mundo
e não se restringe a um único modo de composição no corpo e na • CAMPOS, Tânia Cristina Cavalcanti. A importância do diálogo
cena. Tampouco carrega a missão unívoca de negar uma técnica na gestão de pessoas. 2010. Monografia (Pós-Graduação em Ges-
ou movimento artístico qualquer. Ocupa-se em perguntar, conhe- tão de Recursos Humanos). Faculdade Cândido Mendes. Rio de
cer e escolher. Tal liberdade criativa permite desde a apropriação Janeiro, 2010.
da poética etérea da dança clássica, à qualidade expressionista • LYRA, Edu. “Quando arrecado doações, levo para quem votou
da dança moderna, à variedade das danças populares, de salão e no Lula ou no Bolsonaro”, diz Edu Lyra, da Gerando Falcões.
de rua, até o uso de gestos cotidianos e a própria recusa do mo- [Entrevista concedida a] Moacir Drska. NeoFeed. 19 abr. 2020.
vimento enunciada pela dança pós-moderna americana nos anos Disponível em: https://neofeed.com.br/blog/home/quando-arre-
1960. A função conservada se refere a de questionar, e até mesmo cado-doacoes-levo-para-quem-votou-no-lula-ou-no-bolsonaro-
demolir, suas próprias categorias de enunciação e elementos com- -diz-edu-lyra-da-gerando-falcoes/
positivos. Desfazer a si mesma. Não cansa de interrogar e criticar • OGUIBE, Olu. O fardo da curadoria. Revista Concinnitas. ano
seus contextos: arte e vida. Localizada num território sem leis 5, vol. 1, n. 6, 2004. p. 7-17.
fixas, modelos e convenções imutáveis, a dança contemporânea • ROLIM. Michele Bicca. Pensamento curatorial em artes cênicas:
desenha linhas que antes de dividir, apontam outros caminhos de interação entre o modelo artístico e o modelo de gestão em mos-
pesquisa e significação. [...] Trata-se de um mapa movediço, que tras e festivais brasileiros. 2015. Dissertação (mestrado em Artes
não cessa de mover-se e expandir-se. [...] A dança é confirmada Cênicas). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Ale-
como possibilidade desimpedida que preserva e enaltece a inde- gre, 2015.
terminação e o risco, caminhos importantes para descobridores • SMITH, Therry. Thinking Contemporary Curating. ICI Perspec-
obstinados. (XAVIER, 2012, p. 11) tives in curating n.1. New York, 2012, ebook.
• XAVIER, Jussara Janning. Acontecimentos de dança: corporei-
O termo diálogo resulta da fusão das palavras gregas “dia”, dades e teatralidades contemporâneas. 2012. Tese (doutorado em
que significa “através”, e “logos”, “razão”. O anseio da razão Teatro). Universidade do Estado de Santa Catarina. 2012.
é conhecer e criar sentidos. A razão é tensão manifesta, a qual
impulsiona o homem à aventura do conhecimento, numa viagem
que nunca se esgota. Uma curadoria de dança como abertura ao
diálogo empreende um movimento que supera o limite fixado pela
falsa sabedoria e segurança opressiva. Ela instaura dinâmicas de
encontro mantendo um olhar aberto para o outro, espaço-tem-

46 47
INÊS BOGÉA é diretora da São Paulo Companhia POR UMA ARTE ACESA E RESISTENTE
de Dança (SPCD) desde sua criação em 2008. Inês Bogéa
Doutora em Artes (Unicamp, 2007), bailarina,
documentarista, escritora e professora no cur-

Q
so de especialização Arte na Educação: Teoria
e Prática da Universidade de São Paulo (USP). uem organiza seminários internacionais de dança con-
De 1989 a 2001, foi bailarina do Grupo Cor- temporânea experimenta a sensação de trabalhar ideias
po (Belo Horizonte); de 2001 a 2007, crítica e olhares distintos. Ou seja, os encontros muitas vezes
de dança da  Folha de S. Paulo. É autora dos questionam entendimentos ao oferecer possibilidades infinitas de
livros infantis:  O livro da dança, Contos do imaginação, vivências e produções. É nesse enfrentamento que o
balé e Outros Contos do balé.  Organizadora trabalho ganha corpo e se dá a ver. Este texto contextualiza os
dos livros Oito ou Nove Ensaios sobre o Gru- 10 anos do Múltipla Dança no Brasil e reflete sobre a importância
po Corpo (CosacNaify, 2001), Passado-Futuro desses encontros no fomento e na difusão da dança no nosso país.
– Textos e fotos sobre a São Paulo Companhia Que estradas podem ser trilhadas para se continuar fazendo
de dança (Martins Fontes, 2014), entre outros. arte em Florianópolis? Como criar espaços de experiências, diálo-
Na área de arte-educação foi consultora da Es- gos, intercâmbios, e espetáculos numa grande ilha bem ao sul do
cola de Teatro e Dança Fafi (2003-2004) e con- país? Como ampliar os espaços de interrogação, encontros e po-
sultora do Programa Fábricas de Cultura da tencialidades da arte da dança? Nas palavras das curadoras Marta
Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo César e Jussara Xavier, o “Múltipla Dança surge como um progra-
(2007-2008). É autora de mais de quarenta ma regular de integração e uma ação cultural voltada ao compar-
documentários sobre dança, entre eles  Renée tilhamento de ideias. A proposta é ainda de difusão da informação
Gumiel, A Vida na Pele (2005), Maria Dusche- e de incentivo à transformação da dança como arte acessível a um
nes – o espaço do movimento  (2006), Lenira público mais vasto.”1
Borges – uma Vida para a Dança (2011) e da Ao comemorar 10 anos de existência (2006-2016) o Múl-
série Figuras da Dança da SPCD (2008-2017). tipla Dança mostra uma história de resistência, de tensão e ex-
INESBOGEA.COM.BR. pansão dos espaços da arte em diferentes dimensões e realidades.
O processo se efetivou por um trabalho incansável, enfrentando
as adversidades dos momentos de crises do país (em 2011 e 2012
ele não aconteceu), transformando a realidade, estabelecendo redes
de informações, saberes e diálogos, justapondo elementos e trans-
pondo limites pelos processos que desencadeia. Como dizem as
curadoras: “[...] um acontecimento que vinga a despeito das tantas

1 Texto do catálogo 2016

48 49
dificuldades implicadas na conservação de um festival cujo foco espaço de difusão, apoio à criação, à formação e ao intercâmbio
é a dança profissional (totalmente desamarrado do mercado da artístico. [...]”.3
competição), com realização em Florianópolis, Santa Catarina, O Festival Cena CumpliCidades (Recife, 2008), com direção
Brasil. É preciso permanecer afrontando todo cansaço e adver- artística de Arnaldo Siqueira, é “[...] uma plataforma interativa
sidade, converter obstáculos em potência inventiva, ir além já.”2 entre artes, artistas, produtores, instituições culturais, patroci-
nadores e projetos que, articulando-se em torno de necessidades
e interesses comuns, colaboram entre si compartilhando ideias e
CONTEXTO proposições com o intuito de criar sinergias que beneficiam a to-
dos coletivamente”.4
Perguntas feitas pelas curadoras em 2008 são ainda hoje re- A Mostra Brasileira de Dança (MBD, Recife, 2003) foi cria-
levantes para o Múltipla Dança e outros festivais e mostras que se da por Luis Takeji Tamashiro [conhecido como Shiro, falecido em
realizam no Brasil: Qual o significado dos festivais em seu ambien- 2004] e Paulo de Castro. Hoje é promovida por Iris Macedo e Cas-
te? Que mudanças produz? Como contribuir com a sustentabilidade tro e “[...] celebra a dança em suas mais distintas vertentes, abrindo
deste mercado artístico? espaço para espetáculos completos e coreografias isoladas, além de
No Brasil há festivais com formatos, propostas e papeis dis- um olhar especial para a formação com oficinas de iniciação e reci-
tintos na dança. O Múltipla dialoga com mostras e festivais com clagem, seminários, exposições e exibição de vídeos sobre a arte do
ações voltadas à dança profissional que aliam apresentações com dançar. [...]”.5
atividades formativas e de reflexão crítica sobre essa arte produzi- O Fórum Internacional de Dança (FID, Belo Horizonte,
das por artistas, produtores e pesquisadores. Cada um desses festi- 1996) foi criado por Adriana Banana (hoje coordenadora geral e
vais apresenta singularidades que trazem referências do local onde diretora artística) e Carla Lobo (que permaneceu até 2014). “[...]
se realizam e ao mesmo tempo ampliam a troca de informações e tem como compromisso trabalhar pela difusão, reflexão e formação
experiências com grupos artísticos e profissionais de outras regiões de novos públicos e criadores no campo da dança contemporânea.”6
do Brasil e do mundo. São espaços que fortalecem o desenvolvimen- Festival Panorama (Rio de Janeiro, 1992) criado por Lia Ro-
to das linguagens da dança, ampliam a circulação e o acesso a infor- drigues, é dirigido, desde 2007, por Eduardo Bonito e Nayse Lopez.
mações, em diferentes dimensões, ou seja, alguns apresentam recor- “O Festival busca não somente oferecer uma programação inovado-
tes mais específicos, enquanto outros buscam uma maior amplitude ra e experimental, mas também promover discussões que atinjam o
na curadoria, uns têm amplo público enquanto outros trabalham na pensamento e a participação social sobre as mais variadas vertentes
formação de plateia. Para ilustrar essa reflexão apresentamos oito performativas.”7
exemplos desses festivais, criados entre os anos 1990 e 2000:
A Bienal Internacional de Dança do Ceará de Par em Par
(Fortaleza, 2008) tem direção geral de Davi Linhares e direção ar- 3 www.bienaldedanca.com/2016/main/de-par-em-par-2016.html (acesso em 05/02/2017)
tística e pedagógica de Ernesto Gadelha “configura-se como um 4 www.facebook.com/CenaCumplicidades (acesso em 05/02/2017)
5 Catálogo de 2014
6 www.fid.com.br (acesso em 02/02/2017)
2 Texto do catálogo 2015 7 http://www.acpanorama.org/?page_id=9220 (acesso em 05/02/2017)

50 51
Festival Internacional da Novadança (Brasília, 1996) cria- possibilidade de formação de redes de produção ampliando os
do por Giovane Aguiar, “é um projeto de comunicação e inter- circuitos. No caso específico do Múltipla, o lugar onde se realiza
câmbio, formação de opinião e de aperfeiçoamento para dança- este encontro é Florianópolis, mas ao trazer pessoas de diferentes
rinos, coreógrafos, diretores e profissionais da dança. Durante países e cidades do Brasil propõe um enfrentamento de ideias, que
os últimos anos este projeto está criando uma rede de comuni- delineiam a natureza e o sentido da arte, identifica e promove opo-
cação entre profissionais brasileiros e estrangeiros, permitindo a sições ao mesmo tempo em que amplia e fortalece as inter-relações
reflexão, o desenvolvimento de pesquisa e o aprimoramento de humanas. Os desdobramentos das interrogações de uma edição
trabalhos”.8 nutrirão as outras edições com a ampliação ou o redimensiona-
Paralelo 16º Sul (Goiás, 2005) é uma mostra cênica produ- mento das ações. Apesar da programação ser gratuita, o público,
zida por Vera Bicalho. “A vontade de ser dança, de fazer dança, de de maneira geral, ainda pode ser ampliado para que o Múltipla
ver dança, falou muito alto e mobilizou artistas e produtores. O tenha maior penetração na própria cidade.
palco: quente e de brisas leves. Os protagonistas: fazedores de arte As composições propostas ao longo dos anos pelas curado-
dispostos a germinar um novo cenário para a dança contemporâ- ras revelam um corpo prático e teórico que ao mesmo tempo busca
nea. O paralelo 16º sul deixou de ser linha imaginária. Passou a significação e resistência nas atividades contemporâneas da dan-
ser linha concreta. Ponto de encontro de bailarinos, coreógrafos, ça: “O conceito de multiplicidade colabora para olhar e discutir
pesquisadores, comunicadores, no Centro-Oeste do Brasil.”9 a produção da dança contemporânea atual em suas diferenças e
Festival Contemporâneo de Dança (São Paulo, 2008) tem possibilidades. Rica e dinâmica, este sistema específico organiza-
direção artística de Adriana Grechi e a direção geral de Amaury do em diferentes práticas gera significados únicos e resulta em po-
Cacciaro Filho. A edição de 2016 “reuniu artistas interessados lissemia. E é nesta multiplicação de imagens e entendimentos que
em experimentar dança como reinvenção do espaço comum, mo- se costura uma identidade. Ou várias.”11
vimentando modos de perceber e potencializar nossos campos re- Ao longo dos anos foram várias atividades relacionadas:
lacionais. Que alternativas de convívio, conexão e partilha pode- Diálogos no qual convidados de diferentes atuações no Brasil e
mos tramar em tempos de crise? Como transformar um contexto interessados se reúnem para problematizar temas da dança como:
tão adverso para a arte e a cultura? Que outras formas de afeto produção e contexto da dança contemporânea, gestão, política e
são possíveis e necessárias diante de um cenário cada vez mais economia, pesquisa, fomento, crítica, difusão, visibilidade, expe-
tenso, violento e voltado aos encontros efêmeros, ao êxito indi- riências multidisciplinares, trabalhos colaborativos, dramaturgia,
vidual e ao aniquilamento da arte como laboratório comum?” 10 improvisação. A cada ano aconteceram palestras, cursos, oficinas,
As perguntas feitas por Marta e Jussara podem ser aplica- conferências dançadas, jam sessions, espaços para compartilhar
das aos diferentes exemplos acima e as respostas se dão na pró- pesquisas coreográficas, residências com artistas do Brasil, Fran-
pria realização destes encontros em distintos lugares do país e nas ça, Argentina, Portugal, México, Espanha, ampliando o espaço de
troca de experiências. Uma plataforma de produção de textos crí-
ticos “Múltiplas Escritas intensificando a proposta dialógica: en-
8 http://festivalnovadanca.blogspot.com.br/ (acesso em 06/02/2017)
9 http://paralelo16-dancacontemporanea.blogspot.com.br/ (acesso em 07/02/2017)
10 http://www.fcdsp.com.br (acesso em 05/02/2017) 11 Texto do catálogo 2016

52 53
tendida como telefone-sem-fio conceitual, busca desencadear uma
rede de escritas a partir de um texto inaugural”. Não faltaram
homenagens, lançamentos de livros, exibição de filmes de dança,
mostras de videodança, curtas, com intuito de disseminar infor-
mações de importância histórica, ampliar o registro e reflexão da
dança e apresentar olhares de diferentes lugares do mundo pela
produção audiovisual de distintos países como Argentina, Cana-
dá, Alemanha, Itália, Espanha, Portugal, Chile, México, Bélgica,
Hong Kong, Reino Unido, Brasil. Espetáculos, mostra de bolso
com artistas catarinenses, performances e intervenções urbanas
nos palcos e nas ruas proporcionaram a variados públicos a frui-
ção da arte da dança.
Múltipla Dança revela uma relação profunda nas ativida-
des que não se esgotam no final de cada encontro. Há um esfor-
ço de estabelecer relações e desdobramentos com consequências
imprevisíveis. A própria dinâmica dos encontros marcados pela
pluralidade de atividades simboliza e solicita outros entendimen-
tos da ação da arte no país. Trocas são movimentos vitais pro-
porcionados pelo Múltipla. Na aridez de recursos ou na potência
dos mesmos o evento se configura como um espaço movente de
aproximações singulares e reconfigurações do próprio espaço da
dança, que leva em conta a resistência do mundo para encontrar
fluidez e sustentabilidade artística.
Nestes 10 anos de existência, o Múltipla Dança se depa-
rou com vários desafios e revelou uma arte acesa e resistente pela
dinâmica de suas atividades e engajamento nas suas realizações.
Não se trata só de levar o foco da dança contemporânea para essa
região do país, mas também de nutrir as carências da dança, em
contato vivo com várias plateias.

54 55
NÉRI PEDROSO – Jornalista. Desde 2013, faz TRIUNFO DO ETERNO RECOMEÇO
parte da equipe técnica do Múltipla Dança Néri Pedroso
– Festival Internacional de Dança Contem-
porânea como assessora de imprensa. Auto-
ra dos livros Hassis (Tempo Editorial) e Co-

M
letiva de Artistas de Joinville: construção istura humana, ampla rede que envolve processos, en-
mínima de memória (FCJ) e de Superlativa contros e desencontros entre diferentes pessoas e lu-
Marina (Instituto Juarez Machado). Assina gares, o sistema ou circuito de dança requer trabalhos
artigo nos livros Tubo de Ensaio – Compo- artísticos, espetáculos, pesquisas, instituições, entidades, gestores,
sição [Interseções + Intervenções], Percurso curadores, críticos, produtores, coreógrafos, intérpretes-criadores,
do Círculo – Schwanke Séries, Múltiplos e o mercado e o público. Orgânicos ou não, esses relacionamentos
Reflexões (Contraponto), e é uma das orga- pedem o tempo todo uma série de mediações. Na trama entre po-
nizadoras do livro Interlocuções Possíveis: lítica e mercado, criadores e legislação cultural, órgãos de governo
Kosuth e Schwanke (Instituto Schwanke). e entidades corporativas, empresas privadas e instituições de ensino
Integra a Associação Brasileira de Críticos constitui-se a base de uma obra que não está, naturalmente, desgru-
de Arte (ABCA). dada de emoções, percalços e a experiência pessoal do bailarino.
Resultado de fluxos e descontinuidades, entrelaçamentos e ruptu-
ras, esforço e disciplina, um trabalho artístico, portanto, agrega ca-
madas investigativas, pensamento e arcabouços inventivos.
A palavra circuito deriva da cibernética,1 ciência multidis-
ciplinar que investiga os sistemas e mecanismos automáticos nos
seres vivos e nas máquinas que, em permanente movimento, por
meio de elementos regulatórios e comunicacionais, operam possi-
bilidades de retroalimentação. Aplicada em contextos físicos e so-
ciais específicos, o termo migra para outros universos, amplamente
usado na dança e nas artes visuais. Nessas relações sem fim do
circuito, em ampla fluidez, como é o panorama de dança, como os
artistas atuam e enfrentam seus impedimentos, como pensam e de-
senvolvem os projetos? Quais são as parcerias? Como fazem neste
emaranhado de interações e retroações? Qual a sua herança? Pela
complexidade e abrangência do tema, uma possível leitura sobre o

1 Cibernética surge em 1942 com os renomados cientistas Norbert Wiener (1894-1964) e


Arturo Rosenblueth (1900-1970).

56 57
circuito de dança contemporânea em Santa Catarina sempre será um modo de viver, pulverizado em incontáveis e simultâneos estí-
redutora. À luz de alguns teóricos e pesquisadores, o pensamento mulos e informações”.3
aqui delineado tem como base as respostas de um questionário, o Entre os fenômenos artísticos que irão configurar o espírito
acompanhamento e registro de encontros, seminários, discussões contemporâneo na dança estão a música pop, os videoclipes, o
e cursos realizados em Florianópolis e Joinville, sobretudo entre dancing days, a dança jazz. A essência do experimentalismo in-
2015 e 2016. sere a produção na esfera cotidiana, muda o modo de fazer arte
Multifacetado, com entrecruzamentos de difícil descrição, e sobretudo de ver. O espanto que desnorteia os apreciadores de
cada um dos artistas carrega em si um arquivo sobre o qual nem dança no fim dos anos 20 nos Estados Unidos só alcança os que
todos têm plena consciência. Poucos são os que reconhecem o valor prestigiam as raras apresentações de dança em Florianópolis em
dos interstícios entre o presente e o passado, a passagem do tempo meados dos anos 1970, quando no desejo de oferecer bons espe-
e as atuações dos pioneiros. A história não pode ser negligenciada. táculos de música erudita, a Associação Pró-Música de Florianó-
Ninguém nasce do nada. O modernismo tardio no Brasil reflete-se polis, presidida por Darcy Brasiliano dos Santos, agrega em sua
com um atraso ainda maior em Santa Catarina. As experimen- programação a dança e traz o Balé Stagium a partir de 1975 para
tações e o processo modernizador, as rupturas e a renovação de uma apresentação no Lira Tênis Clube. O estrondoso sucesso de-
linguagem aparecem de forma extemporânea. Há defasagem no te- termina, até 1997, nove vindas da célebre companhia paulista que
atro, na literatura, nas artes visuais e na dança. As afrontas da Se- triunfa por sua ousadia criativa e uma proposta politizada para
mana da Arte Moderna em São Paulo, em 1922, só irão ressoar no pensar o Brasil. Prestigiado na capital catarinense às vezes em
Estado em 1947, com o chamado Grupo Sul. Na dança, as novas até duas noites consecutivas, o Stagium ajuda a moldar um outro
ideias e conceitos em torno do moderno ficam represadas no atraso olhar sobre a dança que dialoga com outras possibilidades conso-
inaugural da primeira instituição de ensino de dança oficial no Bra- nantes com o que ocorre fora do País. Outro fato determinante,
sil, a Escola de Bailados do Teatro Municipal, no Rio de Janeiro, em 1984, a criação do Ballet Desterro, instaurador de uma nova
criada em 1927.2 Na intrincada injunção entre a arqueologia do sensibilidade e apontado como o primeiro grupo de dança inde-
modernismo e do contemporâneo, as inquietações de Isadora Dun- pendente do Estado. O que é isso, perguntam alguns, perplexos
can (1877-1927) e Martha Graham (1894-1991), entre outros pre- com “aquilo” que incorpora outros padrões, os embates políticos
cursores da dança moderna, são lentamente introduzidas no Brasil. e estéticos da época. Libertos, com os pés descalços, os movimen-
A incorporação de novos conceitos se dá em meio aos impactos tos dos bailarinos ainda têm resquícios do clássico e do jazz, mas
dos anos 1960 e 1970, ao caldeirão efervescente da contracultura, isso pouco importa aos espectadores. Além dos aspectos formais,
da arte marginal, do tropicalismo e do drama da ditadura militar. a renovação introduz a criação coletiva, algo inédito na cidade
“Todo o pensamento que norteou a passagem do moderno ao con- que sinaliza um novo jeito de fazer e pensar. Premiado, legitimado
temporâneo advém de reformas processadas nos anos 60, e se hoje pela mídia e crítica, o Desterro estende suas atividades até 1992.
está plenamente sedimentado é porque corresponde precisamente a Além da notoriedade e da projeção no contexto brasileiro, as co-

2 XAVIER, Jussara; MEYER, Sandra e TORRES, Vera (org.). Histórias da Dança. Florianópolis: 3 CANONGIA, Ligia. O Legado dos anos 60 e 70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2005,
Editora da Udesc, 2012, p. 143. p. 60.

58 59
reografias deixam forte influência no cenário local, ativam outra Cena 11 surge para dar visibilidade à escola em mostras e festivais.
possibilidades discursivas, temáticas e corporais. Onze bailarinos são selecionados por meio de audição realizada
Ainda nas referências do passado, neste breve panorama em janeiro de 1986. “O primeiro trabalho, assinado por Ander-
de legados produzidos entre 1982 e 1991 estão Albertina Ganzo son Gonçalves (1965-2010), chamava-se O importante é começar
(1919-2000), Ramon Jisnisky (1939-2011), Jaques Oliver, Mari- (1987) e, na época, o estilo de dança escolhido foi o jazz”.7 Dirigi-
na de Carvalho, Bila D’Avila Coimbra (1934-2011), Rennée Wells da por Alejandro Ahmed8 desde 1993, a companhia constrói uma
(1925-2007), Jussara Terrats, Martha Mansinho e Sandra Nolla. poética marcada por singularidades. “A dança do Cena 11 é de
“Os construtores da dança cênica em Florianópolis”,4 segundo risco”,9 legitima a crítica Helena Katz. Com forte carga inovadora,
Sandra Meyer.5 Outra pesquisadora sistematiza as iniciativas esta- os espetáculos mexem com a percepção de uma plateia com baixa
belecidas nos anos 1980. Jussara Xavier6 cita o Shapanã, Móbile, informação sobre os desafios e linguagens contemporâneas em que
Vidança, Alma Negra e Cena 11 Cia. de Dança, esse último o a arte se situa em campo ampliado,10 pede interdisciplinaridade,
único ainda existente. Com amplo repertório, ao longo dos anos, entrelaçamento de saberes, justaposição de discursos e práticas,
torna-se uma das mais importantes companhias de dança con- além de outras possibilidades. Ahmed apresenta um novo corpo,
temporânea do Brasil. Fruto de uma iniciativa de Rosângela Mat- um corpo imperfeito em movimentos e quedas jamais vistos. Suas
tos, professora e dona da Academia Rodança, em Florianópolis, o coreografias embaralham informações, aproximam dança, ciência
e tecnologia, demandam capacidade cognitiva, impõem reflexões e
múltiplas incertezas. Alijado da dança certinha e da aura autoral,
sem entender quase nada, o espectador é arremessado para dentro
4 NUNES, Sandra Meyer. A dança cênica em Florianópolis. Florianópolis: Fundação Franklin ou fora da cena, chacoalhado em suas convicções e passividade.
Cascaes, 1994.
5 Sandra Meyer: artista, pesquisadora e professora. Atua no programa de pós-graduação
em teatro – mestrado e doutorado do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa
7 SPANGHERO, Maíra. A dança dos encéfalos acesos. São Paulo: Itaú Cultural, 2003, p. 16.
Catarina (Udesc). É doutora em arte, comunicação e semiótica pela (PUC/SP). Ministra
disciplinas e realiza pesquisas, publicações e orientações na área de dança e teatro. 8 Alejandro Ahmed: diretor, coreógrafo, professor e bailarino do Grupo Cena 11 Cia. de
Dança desde 1993, com o qual recebeu premiações, entre elas: Ordem do Mérito Cultu-
6 Jussara Xavier: Pós-doutorado em Filosofia (UFSC), doutorado em Teatro (Udesc), Mes-
ral 2014 do Ministério da Cultura; Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia (2007); Prê-
trado em Artes, Comunicação e Semiótica (PUC/SP) e especialização em Dança Cênica
mio Bravo! Prime de Cultura (melhor espetáculo de dança de 2007); Prêmio Mambembe
(Udesc). Publicou Grupo Cena 11. Dançar é conhecer (2015) e Acontecimentos de dança: cor-
(melhor coreógrafo 1998); prêmios da Associação Paulista dos Críticos de Arte (melhor
poreidades e teatralidades contemporâneas (2013). Coorganizadora dos livros Tubo de En-
criação em dança 2014; melhor concepção cênica 1997); Prêmio Mérito Cultural Cruz e
saio. Composição [Intervenções + Interseções] (2016); Tubo de Ensaio. Experiências em Dança
Sousa (destaque na área cultural catarinense em 1997). O grupo foi contemplado pelo
e Arte Contemporânea (2006); Pesquisas em Dança - Col. Dança Cênica 1 (2008) e Histórias
Programa Petrobras Cultural 2007/2008.
da Dança - Col. Dança Cênica 2 (2011). Realizou o documentário Ballet Desterro. Contempo-
raneidade na dança catarinense (2010). Coordenadora de projetos como Tubo de Ensaio, 9 KATZ, Helena. A dança de risco do Cena 11. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 12 ab. 2000,
Laboratório Corpo e Dança, Laboratório das Artes do Corpo. Coordenadora e curadora do Caderno 2, p. D26.
Festival Múltipla Dança. Foi bailarina dos grupos Cena 11 (SC) e Raça (SP); professora da 10 Expanded field (campo ampliado), conceito de Rosalind Krauss, crítica e teórica da arte
graduação em Teatro da Udesc (2011-2016); gestora de projetos, produtora e professora norte-americana. Ao analisar a escultura, discute os procedimentos estéticos contempo-
na Escola do Teatro Bolshoi no Brasil (2001-2008). Atualmente é professora dos cursos de râneos, nos quais os artistas adotam diferentes meios. Ela cria um diagrama de relações
Licenciatura em Dança, Teatro e Música na Fundação Universidade Regional de Blumenau e distinções que coloca a escultura em relação a outras linguagens, como a paisagem e a
(FURB). arquitetura.

60 61
Fora da zona de conforto, soterrado de ruína, ninguém sai ileso ambiente peculiar e instável, estamos sempre (re) começando”,12
de uma dança apresentada como experiência e numa configuração escreve Xavier na apresentação do livro Grupo Cena 11. Dançar
até então inclassificável. é conhecer. Em depoimento, ela lamenta que as iniciativas sejam
Na arquitetura dessa “revolução”, o amplo esgarçamento estanques, circunscritas à mostras e festivais, a maioria deles com
dos limites entre as linguagens artísticas, entre dança e tecnologia. caráter competitivo.
Sem temer o silêncio e o inacabado, o coreógrafo discute tempo e Conversas sobre o circuito de dança contemporânea em San-
espaço, corpo e contexto, mostra que dança é produção de pen- ta Catarina jamais deixam de mencionar o Cena 11, assim como
samento, um amplo processo de conhecimento que se transfor- outro fato nunca esquecido. Por disseminar um modelo no Estado,
ma nas contingências da realidade. Audaz, profundo pesquisador, o Festival de Dança de Joinville sempre é fonte de análise e ponto
radical em suas experimentações, desde o início de sua carreira de partida de algumas falas. Criado no Norte do Estado em 1983,
Ahmed associa arte e ética, um conceito raramente comentado é considerado pelo Guinness dos Recordes, o maior do mundo
pela imensa maioria dos artistas em Santa Catarina. Quase um com cerca de 4,5 mil bailarinos participantes numa agenda que se
solitário nessa interlocução, adota o binômio sempre mencionado estende por 15 dias. A edição de 2016 bate recorde de inscrições:
em suas falas públicas e entrevistas. Tema de livros e pesquisas, 3.068 coreografias de 678 grupos do Brasil, Argentina, Estados
convidado a ministrar oficinas, participa de agendas internacio- Unidos, Paraguai e Uruguai.
nais, capitaliza respeito pelo mundo. Suas ações, extremamente Realizado anualmente, em julho, promove as chamadas
refinadas, são reconhecidas de modo incontestável. coreografias de dez minutos. Escolas, academias, grupos, compa-
A legitimidade do Cena 11 estimula outras iniciativas im- nhias e bailarinos enfrentam uma seletiva para uma apresenta-
portantes desenvolvidas ao longo dos anos 1990, como o Maha- ção que garanta prêmio e visibilidade. Em permanente aprimora-
bhutas, o Voga Companhia de Dança, o Khala Grupo de Dança, mento, os organizadores oferecem oficinas, mostras, seminário,
Grupo Patibiribia, o Kaiowas Grupo de Dança e o Ronda Grupo intercâmbio e asseguram uma valiosa vitrine na história de alguns
de Dança e Teatro, esse último o único ainda existente. No novo consagrados, os chamados campeões. Enquanto o público delira
século, na chamada Geração 2000, surgem o Aplysia Grupo de com as apresentações competitivas à noite, durante o dia se tenta
Dança, a Octus Companhia de Atos, a Siedler Cia. de Dança e a pensar a dança. A lotada plateia do 10º Seminários de Dança, em
Andras Cia. de Dança-Teatro.11 2016, revela o interesse no encontro de dois dias para discutir o
Em permanente transformação, o circuito está respaldado tema Dança não é (só) coreografia. Na abertura, Ely Diniz, pre-
por uma história cultural e sujeito a diferentes tensões de caráter sidente do Instituto Festival de Dança de Joinville, diz que a ideia
público ou privado. Dinâmico, pede decisões, posturas, ativações, é provocar “uma reflexão no meio acadêmico para que a arte do
diálogo, iniciativas individuais e coletivas. Em reflexões sobre o corpo em movimento se renove continuamente”. Pela importância
tema, feitas em diferentes encontros e conversas, sobressai o de- da iniciativa, cabe expor a defesa de Jussara Xavier, coordenadora
salento com a descontinuidade de projetos e companhias. “Neste da edição: “Dentro de um festival especialmente dedicado à expo-
sição de coreografias, os Seminários pretendem colaborar, por um

11 XAVIER, Jussara; MEYER, Sandra e TORRES (org.). Histórias da Dança. Florianópolis: Edi-
tora da Udesc, 2012, p. 146. 12 XAVIER, Jussara. Grupo Cena 11: dançar é conhecer. São Paulo: Annablume, 2015, p. 12.

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lado, para que coreógrafos repensem suas práticas, ou seja, ava- nea, danças populares, danças urbanas e jazz. Sob a ótica do local,
liem e aprimorem suas escolhas compositivas e, por outro, para a 18 trabalhos selecionados representam 12 grupos formados em
formação de um público mais crítico e perceptivo. Os Seminários Joinville, entre os quais estão nomes de profissionais qualificados
propõem uma jornada questionadora para que a dança não caia e reconhecidos por sua contribuição. Não se ignora nesse contexto
na inércia e redundância formal, não siga operando na mera repe- a atuação de companhias, entidades e instituições, como Patrícia
tição de modelos consagrados, fórmulas fáceis e jargões. Ao con- Dalchau, Amarildo Cassiano, Claudia Maiole, Marcos Sage, Ama
trário, que a dança trabalhe num modo de (re)descoberta, como Cia. de Dança, Cia. Didois, Associação de Grupos de Dança (Ana-
possibilidade de avivamento de si e da realidade, como produtora cã/Joinville), entre outros, a Escola Municipal de Ballet de Join-
de acontecimentos”.13 ville ou o Núcleo de Dança Contemporânea da Escola do Teatro
Ano a ano, nas edições dos Seminários, a partilha teórica Bolshoi no Brasil, Letícia de Souza e Erika Rosendo.
de convidados, que entrecruzam falas multidisciplinares, memória Inegável, no entanto, que bailarinos e coreógrafos enfren-
pessoal e a história da dança do Brasil, atende uma reivindicação tam dificuldades, não alcançam a amplitude desejada para os seus
sustentada nos anseios de conhecimento e intercâmbio em torno trabalhos quase restritos, em se tratando de plateias, a um contex-
de abordagens contemporâneas. O programa de 2016 oferece uma to regional. Circunscrito na realidade de seus cerca de 15 dias, o
conferência, dois fóruns, 12 comunicações orais, duas conferên- festival não se projeta para fora de si mesmo. Nos meses e dias res-
cias dançadas, duas vídeo-palestras e uma mostra de pôsteres, tantes, o palco está vazio, a cidade não consegue sequer acolher a
conversas e atividades que os participantes incorporam no pen- agenda das grandes companhias brasileiras que só eventualmente
samento para renovar as práticas e os processos criativos futuros. aparecem como convidadas do Festival de Dança. Anual, a edição
Apesar dos surpreendentes números, da contribuição no não assegura de modo sistemático os aspectos de formação, de
contexto da dança, do extraordinário retorno midiático e da ca- estímulo ou continuidade. Essa dicotomia incomoda a bailarina
pacidade de mudar a rotina da cidade, o Festival de Dança de Letícia de Souza,14 que vive em Joinville. Para ela, a maior fragili-
Joinville não está imune à críticas. Uma delas se associa ao fato de dade do circuito é “a falta de abertura para um pensamento além
que, por suas múltiplas articulações políticas e econômicas, se or- da dança-competição, além do que já está enraizado”. A questão,
ganiza mais como um evento/produto turístico do que um projeto de tão relevante, se introjeta no seu projeto Processo Criativo em
ou programa capaz de produzir continuidades no âmbito coletivo, Dança e Montagem do Espetáculo Sobre Anseios e Vontades que,
estimulando e apoiando o desenvolvimento da dança em Santa legitimado pelo Prêmio Klauss Vianna 2014, resulta em Frágil,
Catarina. Alguns produtores culturais veem Joinville como lugar
privilegiado que recebe expressivo montante dos escassos recursos
públicos da área cultural sem dar a devida contrapartida ao Esta-
14 Letícia de Souza: artista e produtora. É bacharel em artes cênicas pela UEL. Entre 2009
do, à cidade ou à região. Na 34ª edição, a seletiva da Mostra Com- a 2014 atuou como professora no Bom Jesus/IELUSC, Sesc Joinville e Escola do Teatro
petitiva e Meia Ponta reúne 101 coreografias inscritas nos gêneros Bolshoi no Brasil. Desde 2009 acumula prêmios no Edital de Apoio à Cultura de Joinville.
balé clássico de repertório, balé neoclássico, dança contemporâ- Produziu e interpretou os espetáculos de dança de Por um Percurso... e Interferências dos
Encontros - em parceria com os artistas Maria Carolina Vieira e Adilso Machado. Foi con-
templada com o Prêmio Klauss Vianna de Dança 2014 e estreou o espetáculo solo Frágil
com direção de Anderson do Carmo em 2016. Em 2017 estreia a performance Esboço de
13 Catálogo X Seminários de Dança de Joinville Dança não é só coreografia. Joinville, 2016. Memórias - parceria com o ilustrador Rodrigo Ascenção, contemplada no Edital de Joinville.

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ou, essa dança é 30 minutos mais longa do que poderia ser para literalmente uma ilha também o é metaforicamente, no sentido
competir. Provocador, o espetáculo pontua as contradições do pa- de que há poucas pontes de contato com a produção de danças
norama. Dança-protesto, extrai da própria existência as tessituras concebidas para serem apresentadas no aqui e agora. A especifici-
de uma poética encharcada de política e indignação. dade local é tecida em relações de poder que dificultam a existên-
O pensamento de Milene Duenha15 transita pela mesma cia de ambientes onde se possa desenvolver o exercício da criação
zona de desconforto. “Salvo por algumas iniciativas pontuais de de configurações de dança, bem como há poucos espaços cênicos
realização de festivais e projetos que buscam verba via governo disponíveis para a realização de apresentações. A política dos se-
federal e iniciativa privada, o circuito de Santa Catarina se resume tores públicos de cultura, voltada para as artes, é inconsistente, e,
em uma infinidade de festivais competitivos que mandam para as consequentemente, os parcos recursos estruturais e econômicos
cucuias aspectos pedagógicos importantes na formação do sujeito dificultam a viabilização da produção contínua e da difusão de
ante uma pronta adesão à lógica da competitividade, ao mérito ações artísticas”,17 escreve.
individual – tão condizente ao desenvolvimento de uma sociedade “Como posso sobreviver como bailarina?” A pergunta,
sem empatia –; e ante o não reconhecimento da arte como área de formulada em agosto de 2016 por Elke num outro contexto, no
conhecimento, como modo a provocar pensamento, mantendo a encontro de retomada do projeto Café com Dança, sensibiliza
dança como enfeite, como aquilo que precisa ser bonito e acrítico”. a plateia que lota um dos auditórios da Universidade Federal de
Críticas e tensões não se restringem ao Norte do Estado. Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, porque abarca uma das
Elas transparecem no doutorado de Elke Siedler,16 cuja tese Re- maiores aflições, uma angústia coletiva que está no cerne quan-
desenhos políticos do corpo: uma análise do modo de circula- do se discute o circuito de dança no Estado. Ninguém escapa da
ção e concepção da dança on e off-line, defendida em 2016 na questão, um drama para jovens que sonham com a profissionaliza-
Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP), situa a própria traje- ção nesse campo de saber. Realizado para possibilitar intercâmbio
tória e o drama de viver de dança em Florianópolis. “Além de ser entre artistas, professores, pesquisadores, coreógrafos, estudantes
da área artística e interessados na reflexão sobre dança na con-
temporaneidade, o evento tem como tema o livro Grupo Cena 11.
Dançar é conhecer, escrito por Jussara Xavier. Para enriquecer a
15 Milene Duenha: bailarina, atriz, performer e arte educadora, graduada em Artes Cêni- conversa, a autora chama outras pessoas envolvidas na história da
cas pela Universidade Estadual de Londrina/PR e pós-graduação em Artes Visuais/Arte prestigiada companhia. A dinâmica propõe uma abordagem sobre
Educação pela mesma universidade. É mestre e doutora em Teatro pela Universidade do
vidas e trajetórias, sobre o que é fazer dança em Santa Catarina
Estado de Santa Catarina, e atualmente realiza uma pesquisa de doutorado no mesmo
a partir de um roteiro de interrogações, entre elas como a dança
programa de pós-graduação. Pesquisa noções de presença em relação na experiência
artística, e tem como objeto de investigação possibilidades compositivas em arte com contemporânea pode enfrentar o desafio de inventar experiências
foco na presença do artista e suas implicações ético/estéticas. Interessa-se por questões e modos de operar? Como se constrói um corpo disponível à inves-
ligadas ao corpo e seus modos de estar/fazer como potência de afeto. Atua na inter-
secção entre as linguagens da dança, da performance e do teatro, desenvolvendo uma
pesquisa artística no Coletivo Mapas e Hipertextos de Florianópolis (SC) desde 2012.
16 Elke Siedler: doutora em Comunicação e Semiótica (PUC/SP). Mestre em Dança e espe- 17 SIEDLER, Elke. Redesenhos políticos do corpo: uma análise do modo de circulação e con-
cialista em Estudos Contemporâneos em Dança pela UFBA. Diretora e dançarina da Siedler cepção da dança on e of-line. P. 14. Disponível em <https://sapientia.pucsp.br/bitstream/
Cia. de Dança. handle/19137/2/Elke%20Siedler.pdf>. Acesso em: 27.1.2017.

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tigação em dança? Afinal, o que é dança? Elke atua por seis anos talecimento da dança na universidade e da qualificação dos profis-
e meio no Cena 11, período que define como “estruturante para sionais, reafirma a importância de manter uma programação que
pensar o mundo a partir da arte contemporânea”. alie reflexão, informação e realização em dança. Assim, retoma
Vera Torres,18 anfitriã do Café com Dança, expõe as inten- o Café com Dança com o apoio da atual gestão da Secretaria de
ções do projeto que são consoantes com anseios coletivos de co- Cultura e Arte (SecArte) da UFSC. Ou seja, a volta do projeto se
nhecimento, encontros e diálogo. A ideia é promover ações ligadas dá de forma inversa: em vez de uma participante, Vera torna-se
à dança na UFSC, como a organização de palestras, mesas de dis- uma proponente legitimada pela instituição.
cussão, projeções de videodança, vídeo-documentários, conferên- As descontinuidades, situa ela, estão relacionadas às mudan-
cias dançadas, vídeo-palestras, ações performáticas e atividades ças de gestão que, em geral, têm visões e interesses distintos rela-
afins, ou seja, “debates qualificados sobre questões relevantes e cionados à arte, mas também depende da disponibilidade daqueles
atuais envolvendo a dança em suas perspectivas pedagógica, histó- que concebem e realizam projetos de dança associados a uma aná-
rica, sociopolítica e artística; assim como contribuir para a forma- lise do contexto da cidade. “Somos poucos e temos que batalhar
ção de um público crítico e receptivo a questões relativas à dança por apoios, pensar em modelos diferentes e mais apropriados para
e à arte contemporânea”. o nosso contexto, geralmente nos desdobramos. Provavelmente
Iniciado em 2013 por iniciativa da Secretaria de Cultura um modelo formatado, que reproduz algumas visões de dança, as
(Secult) da UFSC, o programa também sofre descontinuidade. No quais eu faço críticas, teriam uma aceitação melhor. Entretanto,
começo, realiza encontros com assuntos e grupos de diferentes no atual contexto, creio que até mesmo essas propostas encontram
áreas, abertos à comunidade com debates seguidos de um café. dificuldades. O projeto só se realiza quando se torna viável em ter-
Na ocasião, Vera Torres coordena o tema sobre dança na UFSC, mos de condições mínimas (materiais e humanas) e, no meu caso,
cria o nome Café com Dança, assim como o conceito e a progra- quando é possível conciliar a realização com as demais atividades
mação das atividades. “Antes do final daquela gestão da Secult, profissionais”, pontua a coordenadora do Café com Dança.
com trocas de coordenação na esfera da cultura na instituição, Os aspectos apontados – a preocupação de Elke Siedler com
o projeto foi acabando”, lastima. Entre 2014 e meados de 2016, a sobrevivência no universo da dança e a questão da descontinui-
ela se envolve com as atividades do Tubo de Ensaio,19 não sendo dade de um projeto na análise de Vera Torres – situam parte das
possível conciliar a realização de outros projetos e as atividades debilidades da cena contemporânea de dança em Santa Catarina.
acadêmicas. Em 2016, em reflexões sobre as possibilidades de for- Enfim, a vitalidade de um processo cultural artístico não depende
apenas de inquietudes. Subordinado à infraestrutura de um deter-
minado lugar, corporifica dimensões de poder, além de questões
18 Vera Torres: professora adjunta aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina estruturais, geográficas e pessoais.
(UFSC) - DEF/CDS. Doutora em estética, ciências e tecnologia das artes: teatro e dança O circuito, na concepção de Sandra Meyer, equivale a um
- Universidade Paris 8, França (2012); mestre em artes: dança (Master 2) - Universidade sistema político amplo que envolve formação, criação, produção,
Paris 8, França (2006); mestre em artes, comunicação e semiótica - PUC/SP (2000). circulação, economia, entre outros aspectos, “em uma perspectiva
19 Projeto criado por Jussara Xavier, Sandra Meyer e Vera Torres, desenvolvido em Floria- de continuidade e acessibilidade”. A dinâmica contínua, o fluxo e
nópolis em maio de 2001 que se estende até 2005 com a proposta de oferecer apresenta-
a busca de espectadores não pode ser circunstancial. Para a pes-
ções artísticas que constroem poéticas com o corpo e o movimento, em especial a dança
quisadora, não há outro caminho que não seja o investimento em
contemporânea, seguidas de debate. A iniciativa ganha nova edição em 2015.

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formação que “deságua numa melhoria no ensino e aprendizagem são repetidos por sua relevância. Os bailarinos Marcos Klann20 e
em dança, o que por sua vez, incita a criação de novas linguagens”. Diana Gilardenghi21 advogam a ampla circulação dos trabalhos e
Num cenário em que as oportunidades de profissionalização são um programa de formação de público. A dificuldade de se manter
escassas, ela menciona como cruciais e urgentes “as políticas de o circuito, no entendimento de Klann, passa em primeiro lugar na
formação, pois não temos instâncias públicas que abarquem di- formação de plateia com a criação de interesse, ampliando o en-
ferentes estágios pedagógicos, seja em nível técnico ou universi- tendimento sobre a arte e a dança. A continuidade desses projetos
tário”. e a circulação pontual em cidades de Santa Catarina está ainda
Na escuta dos bailarinos mais atuantes sobressai o unânime mais comprometida em 2016 em razão da traumática mudança
lamento sobre a inexistência de políticas públicas no plano mu- ocorrida na política nacional e que vem contaminando a organi-
nicipal, estadual e federal. Sem defender um Estado-previdência, zação nos Estados com o corte de verbas ou o não cumprimento
contrários a uma visão paternalista do Estado, a maioria classifica de editais, como o Prêmio de Estímulo Cultural Elisabete Anderle,
as escassas interlocuções com o poder público como um descaso descumpridos no Estado em 2015 e 2016. “Uma possibilidade de
não só com relação à dança mas com a arte e a cultura de modo circulação dos trabalhos, que vinha se solidificando e permitindo
generalizado. O ponto mais nevrálgico é o não atendimento de conhecer melhor a produção, se rompe pela irresponsabilidade do
uma reivindicação que se estende há mais de dez anos, com uma governo estadual no esclarecimento do seu não cumprimento.”
luta permanente que envolve diferentes articulações, como mani- Crise estrutural e política – um dos nós da questão tam-
festações, passeatas, reuniões, debates, artigos, correspondências, bém deplorada por Diana Gilardenghi. “A cada dia minguam as
etc. O anseio da implantação do curso de licenciatura em dança, poucas possibilidades de sobrevivência já existentes, recursos e in-
elaborada pelo Centro de Artes (Ceart) da Universidade do Esta-
do de Santa Catarina (Udesc), contempla os campus das cidades
de Joinville e Florianópolis. Solenemente ignorado, resulta como
20 Marcos Klann: pesquisador, tem como foco as relações entre memória e coletivida-
vã promessa de sucessivos secretários estaduais de educação, a
de. Nesta procura, seu interesse é também atravessado pela necessidade de propor diálo-
quem compete o assunto. Não há vontade política naquilo que go entre público e artista, tendo a obra como mediadora. Reaproximar o público da arte,
os pesquisadores entendem como o mais relevante para o setor. gerando tensões mobilizadoras. Tem dois trabalhos solos O que antecede a morte (2010),
“Descaso do Estado com a formação de uma área tão importante selecionado no Programa Rumos Itaú Cultural Dança, daquele ano e  Werwolf, pesquisa
para o exercício de cidadania como as artes do corpo. O apoio sobre a solidão que teve sua estreia em 2012. Também é integrante do Grupo Cena 11 Cia.
de Dança, no qual atua como bailarino desde 2006, participando, desde então, de todas
permite a possibilidade de circulação de bens culturais”, define
as suas produções.
Sandra Meyer. Sem alternativas, muitos entram no programa de
21 Diana Gilardenghi: professora, bailarina e coreógrafa. Atua profissionalmente desde
pós-graduação em Teatro – mestrado e doutorado do Ceart, da
1978. Integrou os grupos Duggandanza, Plastercaster, Potlach e Ronda. Em 2000 foi con-
Udesc, onde se gestam trabalhos acadêmicos, espetáculos, mani- templada pelo programa Rumos do Itaú Cultural com o trabalho Crosta. Recebeu o Prêmio
festos, grupos ou coletivos de dança. Klauss Vianna 2008 para a realização de Um Duplo e Klauss Vianna 2011 para o espetáculo
Nessas discussões em que se faz uma clara distinção entre Em Constante. Tem extensa atuação como docente, ministra cursos em escolas, centros de
bem e produto cultural ou se lamenta a postura dos gestores públi- cultura, academias e eventos. Atualmente leciona dança contemporânea em Florianópolis
e integra o coletivo de pesquisa e criação Mapas e Hipertextos.
cos que ludibriam a defesa do curso de licenciatura, alguns pontos

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vestimentos são reduzidos e presenciamos o desmonte da cultura espetáculos, encontros de discussão e reflexão, oficinas e inter-
nacional. Os efeitos da descontinuidade trazem grandes perdas câmbio entre artistas.
para a criação e a formação de plateias. A circulação, sumamente O Múltipla Dança – Festival Internacional de Dança Con-
importante, possibilita um intercâmbio formador entre público, temporânea, e o Tubo de Ensaio, organizados e produzidos em
artistas e instituições, onde espaços de arte e governos estaduais e Florianópolis por profissionais locais na dependência de editais
municipais deveriam atuar juntos”. Novas e urgentes estratégias se e patrocínios, atuam na perspectiva de atenuar a lacuna formati-
fazem necessárias, defende ela. va. Jussara Belchior23 lembra também a recente Bienal de Dança,
Outro dado singular do circuito está na centralidade da pro- evento organizado na esfera pública municipal mas desativado
dução, numa concentração geográfica de atividades na Capital, após a segunda edição, e o Palco Giratório do Serviço Social do
com clara diferenciação quantitativa - em alguns casos qualitativa -, Comércio (Sesc), que traz à cidade atrações de dança. Nesses
entre o que se faz em outras cidades, como Itajaí e Balneário Cam- eventos, diz ela, fomenta-se um campo de experiência dos faze-
boriú, no Vale do Itajaí, onde o jazz e o hip-hop são bem fortes. res artísticos e formativos que sempre deixa um gosto de “quero
Concórdia, Chapecó e Xanxerê, no Meio-oeste, e Jaraguá do Sul, mais”. Restrito aos profissionais da área, ela entende que essas
no Norte, têm um movimento, porém tímido em ressonâncias. Em iniciativas são as poucas possibilidades existentes para explorar
Garopaba, no Sul do Estado, desponta a Atitude Cia. de Dança de um espaço de ação de interesse não só aos pesquisadores das artes
Garopaba. Fundada em 2006, participa de festivais competitivos mas “a um público que possa descobrir na dança algo que seja
pelo Brasil, nos quais conquista premiações. A partir de 2011, fora compatível com o modo como percebemos o estar no mundo”.
das competições, busca inserção no mercado profissional. Realiza O EmCenaCatarina, não citado por Belchior, é outro pro-
participações especiais num percurso que dá breve noção do ro- grama de circulação do Sesc que abarca o teatro e a dança criados
teiro também feito por outros grupos: Bienal de Dança de Floria- por grupos catarinenses que, submetidos a um processo de seleção,
nópolis, Festival Internacional de Hip-hop, Mostra Internacional recebem logística técnica e operacional para percorrer as regiões do
de Dança, Festival Nacional de Jaraguá do Sul, Festival Unesc em Estado. Enquanto o Palco Giratório engloba espetáculos e artistas
Dança, Fórum Municipal de Dança de Camboriú, Festival Brasil do Brasil, o EmCenaCatarina mantém o recorte estadual.
Vem Dançar e Múltipla Dança – Festival Internacional de Dança Outra profissional que avalia o cenário é Paloma Bian-
Contemporânea 2016.22 chi. Numa análise comparativa, configura o Tubo de Ensaio
24

Se o foco em Joinville converge para o mercado competi-


tivo, em Florianópolis a linha é outra. Com recursos surpreen-
dentemente baixos, geralmente ancorados em editais ou prêmios,
23 Jussara Belchior: artista da dança. Mestre em teatro no programa de pós-graduação da
aposta-se num recorte bem delineado, voltado à dança contempo- Udesc. Atua no elenco do Grupo Cena 11 Cia. de Dança desde outubro de 2007. Partici-
rânea e numa possível construção de conhecimento. Mais do que pou do projeto de crítica em dança Múltiplas Escritas dentro do Múltipla Dança – Festival
Internacional de Dança Contemporânea. Em parcerias criativas trabalhou como diretora
no espetáculo Pedaços de Vontade (2013), dançado por Cristina Schmitt; assistente de
direção em Werwolf (2012), de Marcos Klann e co-diretora em Direção Múltipla (2014), de
22 Evento criado em Florianópolis, em 2006, por Jussara Xavier e Marta Cesar. Realizado Daniela Alves. Estuda e pratica dança desde os seis anos.
até 2010, sofre uma interrupção até ser retomado em 2013. Além de espetáculos, o projeto 24 Paloma Bianchi: dançarina, performer, professora e pesquisadora. Graduada na faculda-
oferece oficinas, intercâmbio e debates. de de Comunicação das Artes do Corpo pela PUC/SP, com especialização em performance,

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como um espaço de discussão e aprendizado importante para através das afecções. Nesse sentido, quando sociedades se trans-
Florianópolis. Não se trata exatamente de um festival de dança, formam, abrindo-se à produção de formas singulares de vida, os
segundo ela, mas sim de um evento que enfoca a formação dos afetos começam a circular de outra forma, a agenciar-se de ma-
artistas locais com a oferta de oficinas extensas com profissionais neira a produzir outros objetos e efeitos.”25 Ao abordar o que se
relevantes da cena contemporânea. Já o Múltipla, um projeto anu- chama de “produtividade do desamparo”, diz que as metáforas do
al que oferece gratuitamente trabalhos nacionais e internacionais, corpo político não indicam só a busca de um coesão social orgâ-
assegura visibilidade ao que se tem feito e pensado em relação à nica, mas também a natureza do regime de afecção que sustenta
dança contemporânea em diferentes países. Se considerado o ta- as adesões sociais. “Um corpo não é apenas o espaço no qual as
manho e a dimensão da capital do Estado, lastima que as duas afecções são produzidas, ele também é produto de afecções. As
ações não consigam “suprir o buraco cultural que há em relação à afecções constroem o corpo em sua geografia, em suas regiões de
dança contemporânea na cidade”. intensidade, em sua responsividade.”26 Além de Safatle, as ciências
Nessa escritura, agora em comparação ao universo das artes cognitivas, a psicologia e outros estudos multidisciplinares facili-
visuais em Florianópolis, é possível diferenciar os dois contextos. tam uma compreensão em torno de tema tão complexo.
Na dança, as relações se circunscrevem por dispositivos de solida- Embora não esteja focando no circuito dos afetos, Marta
riedade que levam um observador a falar em engajamento e parti- Cesar, 27 idealizadora e coordenadora do Múltipla Dança, tangen-
cipação afetiva. A agenda de eventos mobiliza o conjunto dos intér- cia a análise de como se desenrolam algumas questões. O evento,
pretes criadores que lembra o comportamento de uma comunidade, em sua concepção, ocupa um espaço inquestionável, salutar e be-
pessoas associadas pela cultura, interesses e tradições comuns. As néfico ao circuito. Para ela, a “suspensão momentânea do festival
fragilidades do setor e o descrédito da ação pública não turvam
o sentido coletivo. Agregação social, sentimento de compromisso
e adesão caracterizam esse panorama. Não há guetos. Ranços e
25 SAFATLE, Vladimir. Circuito dos Afetos. Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo.
arrogâncias não impedem que um determinado grupo participe das Belo Horizonte: Autêntica editora, 2016, p. 16.
iniciativas de um outro. Um, entre possíveis fatores, se atribui às 26 SAFATLE, Vladimir. Circuito dos Afetos. Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo.
atuações diferenciadas com o corpo, uma ferramenta imprescindí- Belo Horizonte: Autêntica editora, 2016, p. 20.
vel para a dança capaz de forjar subjetividades mais agregadoras. 27 Marta Cesar: graduada em direito pela Faculdade de Direito da USP em 1985, seguiu
O filósofo Vladimir Safatle propõe no seu último livro uma a carreira artística que já desenvolvia como bailarina do Balé da Cidade de São Paulo no
reflexão sobre os afetos como transformadores de corpos políti- qual permaneceu até 1994. Especialista em dança cênica pelo Centro de Artes da Udesc,
atuou em diferentes funções na área cultural, especialmente na área da dança e da mú-
cos, individuais e coletivos. “Há uma adesão social construída
sica na esfera nacional e internacional. Desde 1998 em Santa Catarina, desenvolveu fun-
ções na área da produção cultural, atividades pedagógicas, acadêmicas e artísticas, assim
como na área política, como representante de Santa Catarina no Colegiado Setorial de
atualmente é doutoranda em teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina. For- Dança (2005-2011), vice-presidente da Associação dos Profissionais de Dança de Santa
mada como educadora do movimento pelo método Reeducação do Movimento de Ivaldo Catarina (Aprodança-2010/2011) e presidiu o Conselho Municipal de Políticas Culturais
Bertazzo e em Bharathanatyam pela filial brasileira da Natyalaya School of Classical Dan- de Florianópolis (2010/2011). Ocupou o cargo de diretora de artes da Fundação Cultural
ces. Como artista-pesquisadora participa, desde 2013, do coletivo de pesquisa e criação de Florianópolis Franklin Cascaes (01/2013 a 05/2016). Dirige o Múltipla Dança – Festival
em artes presenciais Mapas e Hipertextos. Internacional de Dança Contemporânea - desde sua criação em 2006, além da curadoria
deste e outros festivais.

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em 2011 e 2012 comprova a importância da sua realização, para de si como artista”, há ainda outras demandas como “escrever,
além de desejos pessoais, vaidades ou interesses institucionais”. A falar e conversar, procurar constituir-se em grupo, publicar e edi-
continuidade do evento, além de propiciar satisfação, confere senti- tar”.29 Agenciador de eventos e fomentador de produções, o artis-
mentos de integridade. Ela se sente parte de um programa que “pas- ta, segundo ele, precisa produzir discursos, ocupar um espaço pú-
sa por um profundo respeito e pela generosa inteligência da valoro- blico, ter jogo de cintura para marcar posições, provocar questões,
sa equipe entrelaçada com parceiros, participantes e simpatizantes”. configurar polêmicas, problematizar, intervir, mediar interesses,
Outra configuração do circuito, que não pode ser diferente criar mecanismos de circulação. “Esta movimentação para fora
porque afinal o pano de fundo desse panorama se dá no triunfo de si não deixa de ser uma condição do próprio exercício do gesto
da era neoliberal, no qual as relações socioprofissionais estão na poético, que foge do loop narcísico e busca hospedagem no corpo
sombra da ameaça de desemprego, o drama enfrentado em am- do outro – espectador, audiência, público...”30
plos setores no contexto brasileiro e internacional. A globaliza- Cena de combate sem sangue, na resistência os intérpretes
ção da economia impõe profundas transformações das relações criadores se moldam e modelam agendas significativas em Floria-
humanas, no âmbito individual, familiar e profissional. A falácia nópolis. No fim de 2016, uma breve sistematização resulta num
dos anos 1980 de que as novas tecnologias diminuiriam a carga conjunto de profissionais com pesquisa e trabalhos, quer envol-
de trabalho não se sustenta na crua realidade da segunda década vidos com companhias ou em apresentações solo, eles ora são
do século 21. Bem distanciados das possibilidades do chamado bailarinos, coreógrafos, diretores, dramaturgistas, ora diretores,
ócio criativo, 28 as dolorosas implicações estão na carne e nos ele- cenógrafos, figurinistas, produtores ou articuladores. Tiram leite
vados índices de doenças associadas ao estresse que envenena o das pedras. O Grupo Cena 11 Cia. de Dança desponta ao lado de
corpo com depressão, gestos suicidas e atitudes violentas. Como Siedler Cia. de Dança, Ronda Grupo de Dança e Teatro, Lucas
fazer, como sobreviver num contexto desumanizado? Cá estamos, Gabriel Viapiana e Thaina Gasparotto, Letícia de Souza e Ander-
de volta à pergunta inicial formulada por Elke Siedler. Não só o son de Souza, Sandra Meyer e Diana Gilardenghi, Grupo Laut!, o
bailarino, mas outros artistas são obrigados a assumir múltiplas coletivo Mapa e Hipertextos, além das atuações de Karina Colla-
tarefas ao mesmo tempo: além da criação propriamente dita, do ço, Mônica Siedler, Marcos Klann, Karin Serafin, Elisa Schmidt,
pensamento em torno do espetáculo, da disciplina e treinamento, Jussara Belchior, Jussara Xavier, Daniela Alves, Ana Alonso, Ana
dos estudos e viagens, precisam produzir, tecer as relações institu- Luiza Ciscato com a sua Companhia Lápis de Seda, Maria Clau-
cionais e empresariais, fazer curadorias, negociar patrocínios, ela- dia Reginato e Rodolfo Lorandi.
borar projetos para editais, cuidar de figurino, cenário, contratos, Pertinente registrar dois fatos recentes relevantes para o cir-
enfim toda a logística e demanda de um bem cultural. cuito. Um deles, a legitimação pelo programa Rumos Itaú Cultu-
Nessa rede de acontecimentos, muita tensão e cansaço. Ri- ral 2015/2016 do solo Peso Bruto da bailarina Jussara Belchior,
cardo Basbaum, pesquisador das artes visuais, situa as práticas cuja montagem questiona o estranhamento do corpo gordo na
desse universo que se aplica a muitos outros. Fora da “formação

29 BASBAUM, Ricardo Roclaw. Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Beco do Azougue,


28 Título de um livro do cientista e sociólogo italiano Domenico De Masi. O ócio, segundo 2013, p. 22.
ele, seria positivo para a criatividade. 30 Idem, p. 69.

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dança, explora questões de beleza e sensualidade, tabus e preconcei- cultura, o montante de profissionais atuantes no Estado e as resso-
tos. O trabalho atende as cidades de Florianópolis e Teresina (PI), nâncias dos trabalhos alcançadas em nível nacional e internacional
onde vive a pesquisadora Soraya Portela, interlocutora convidada não são inexpressivos. Falta muito, sabe-se, para alcançar tratamen-
do projeto. Outra repercussão celebrada coletivamente é o convite to digno e um efetivo patamar de reconhecimento. Independente
internacional para um diálogo acadêmico sobre o projeto Corpo, das instabilidades e avanços necessários, um caminho possível para
Tempo e Movimento em Seis Ações de Dança. Realizado em 2016 ultrapassar o muro de lamentações seria reconhecer, de modo mais
em Florianópolis, ele estabelece uma potente aliança entre a cidade, otimista, o que há no panorama. A falta de apoio acaba por moldar
a história e o movimento. Após 40 anos de atuação, Sandra Meyer novos modos de criar e produzir pensamento. Embora vitimado pe-
e Diana Gilardenghi, intérpretes e pesquisadoras de dança, “se en- las descontinuidades, se não robusto, o movimento existe. Informe,
contram para entrelaçar a trajetória pessoal, o contexto social e tem riqueza, produz texturas, ocupa um espaço social público. Os
o passado da dança em composições que produzem gestos e falas artistas da dança produzem arte como um ato de resistência. Com
permeadas pelo corpo de uma e de outra. A proposta é investigar atuações distintas, em palcos, nas ruas e nas praças, trabalham as
como as duas profissionais atuantes e com trajetórias próximas, diferenças, criam fissuras, suspendem o fluxo humano para instau-
porém diferenciadas, criam contrastes, oposições e dissonâncias rar momentos de reflexão, inventam parcerias e, ao final das contas,
em uma exploração de certos espaços de uma ilha ‘mito-mágica’ representam um núcleo que ninguém pode ignorar. A maioria dos
constantemente agredida por movimentos de especulação”.31 Em “espetáculos” confunde-se com ações culturais, aqui numa formu-
Lisboa (Portugal), na Faculdade de Motricidade Humana, Sandra lação do estudioso Teixeira Coelho. Ao reunir procedimentos no
Meyer participa do seminário Corpo e Imaginário na Cena Con- fazer-cultural - administração, animação, arte-ação, arte educação,
temporânea com uma abordagem sobre Imagens Políticas no Pro- circuito, fabricação, mediação, transmissão e sistema de produção
jeto Corpo, Tempo e Movimento em Seis Ações de Dança. cultural -, o teórico define ação cultural como “o processo de cria-
A política impregna o campo imagético da dança contem- ção ou organização das condições necessárias para que as pessoas e
porânea de Santa Catarina. As poéticas, saturadas de mal-estar, grupos inventem seus próprios fins no universo da cultura”.32 Con-
fragmentação e jogos interdiscursivos, criam rupturas no cotidiano junto de atividades que afetam outros universos, o cultural, o so-
e nas sensibilidades. No palco ou na rua, se assentam no desejo de cial, o político e o econômico, uma ação cultural é diferente de um
problematizar tudo o que envolve a vida humana e a cidade. “Nós evento. Distanciada da noção de festa, espetáculo, comemoração,
artistas não somos dependentes dos editais, nós somos dependen- solenidade, mais complexa, ela transita pela construção simbólica e,
tes da troca das nossas pesquisas com os outros. No entanto, para como tal, amplia consciência, possibilita mudar o homem e o mun-
gerar tais encontros, é preciso compreender que estes são mesmo do, “resume-se na criação e organização das condições necessárias
necessários, ou estaremos sempre produzindo num ambiente frágil, para que as pessoas inventem seus próprios fins e se tornem assim
flertando com a extinção”, situa com propriedade Jussara Belchior. sujeitos – sujeitos da cultura”.33
Diante da aridez de verbas, da insensibilidade empresarial e
da ausência de vontade política das gestões públicas no campo da
32 COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural. São Paulo: Fapesp e Iluminuras,
1997, p.33.
31 Texto do projeto elaborado por Paloma Bianchi e Milene Duenha. 33 COELHO, Teixeira. O que é ação cultural. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 14.

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Os impactos da política e da economia, como já se disse, Com lucidez extraordinária e exuberância verbal, ele está
obrigam a mudar crenças e modos de operação. A maioria cuida convicto de que o momento atual exige pensar a sustentabili-
da própria produção, agencia eventos, pesquisa, atua em múltiplas dade, a natureza das coisas e sobre as múltiplas camadas que
funções. Independentes, os artistas suplantam lacunas. Apesar do constituem a realidade. “As coisas nunca são uma coisa só. Além
desamparo financeiro, numa profusão de técnicas e referências, da autonomia, é preciso entender os outros e a si mesmo.” Para
diferentes tendências de movimento e abordagens, delineiam cam- ele, não importa quem é o melhor, o mais belo, o mais forte, se o
pos autônomos. Conscientes das precariedades, com pesquisas e Estado só funciona como fomentador de um único modelo, se a
discursos curatoriais distintos, chamam a atenção para trajetórias natureza é participar de Joinville. Cabe a cada um incorporar ou
e a força da produção. Vitalidade mais do que quantidade. não no desejo de mercado. Importa separar a ficção e a realidade,
Em se tratando de ajustes operativos e conceituais, Alejan- estar consciente, reconhecer que tudo se dá de modo paralelo,
dro Ahmed ensina quando decide ficar na Ilha de Santa Catarina, sem exclusões. Importa sair do neocolonialismo cultural, buscar
lugar isolado, limitador para a maioria. Sem se ater ao dilema ge- autonomia, escapar das armadilhas, saber o que é natural, “olhar
ográfico, conectado com os ditames da globalização ou hipermo- para si mesmo estando em outros lugares e em diálogo com os
dernidade,34 estabelece trocas regionais, transnacionais e interna- outros”. Atento, não está indiferente às mudanças mundiais no
cionais. No contexto local, de Florianópolis, o coreógrafo defende campo da ecologia e do consumo. “Cidadão geográfico”, como
o valor do pensamento interdisciplinar e da circulação de infor- se define às vezes, afirma como ambição seguir com ética, simpli-
mações. Em maio de 2016, integra um dos Diálogos proposto no ficações e coerente com o seu desejo artístico.
Múltipla Dança. Na Associação Cultural Arte.Dança, ao lado das A crise, sabe-se, é também um discurso da modernidade e
pesquisadoras Olga Gutiérrez e Thembi Rosa, ele tenta responder do contemporâneo. O fim do poço, como se diz, sempre é mais
a pergunta proposta: O que você está pensando/dançando? fundo. A crise não se esgota, assim como a necessidade de eterno
Ao condensar a história da companhia, numa perspectiva recomeço. Para muitos há mais fragilidades do que êxito. No
cronológica das coreografias criadas pelo Cena 11, Ahmed situa o entanto, na oposição do discurso sombrio há a clarividência de
significado operacional de uma estrutura de quatro toneladas para Ahmed que põe a dança também na rota da sustentabilidade.
a produção do espetáculo Violência (2000) ou das 1,5 toneladas Ou, nesse movediço território, quem sabe reafirmar o valor da
para In’Perfeito (1997). O coreógrafo contextualiza as mudanças ancestralidade, reconhecer os chamados “construtores” que, ao
mundiais com a crescente necessidade de práticas sustentáveis e enfrentar terrenos inóspitos, deixam trabalho relevante no ensi-
como o seu pensamento de dança aos poucos agrega possibilida- no e na preparação dos bailarinos – como já é o caso do próprio
des mais adequadas às demandas ambientais. Assim, a companhia Cena 11.
alcança resultados econômicos mais viáveis. “Máximo de precisão No contemporâneo, a cena em Santa Catarina segue mar-
e simplicidade possíveis”, diz. cada pelo distanciamento da rota de circulação de espetáculos
nacionais e internacionais, pela completa ausência do Estado
como possível gestor ou norteador de uma política pública; por
uma produção centralizada na Capital, por ações culturais e pos-
34 Termo criado pelo francês Gilles Lipovetsky que situa o atual momento da humanidade,
turas de artista-etc. Há afetividade, engajamento e resistência.
ou seja, um tempo de enorme fluidez, de progresso técnico científico de individualismo
Trata-se de uma dança valente, como define a jornalista Luciana
exacerbado.

80 81
de Moraes, 35 porque supera “os desafios, além dos habituais em
qualquer área, porque é uma arte pouco compreendida e fun-
damental para o desenvolvimento humano”. Se não grandilo-
quente, o cenário é vitalizador. Com mais indagações do que
respostas, a maioria dos espetáculos tem qualidade artística, é
politicamente desestabilizadora, alinha corpo e linguagem com
implicações antropológicas e sociais. Com múltiplos atravessa-
mentos no cotidiano da cidade e das pessoas, se impõe inventiva
no discurso da crise.

AGR ADECIMENTO:

Alejandro Ahmed, Diana Gilardenghi, Iraci Seefeldt, Jussara


Belchior, Jussara Xavier, Letícia de Souza, Luciana de Moraes,
Marta Cesar, Marcos Klann, Milene Duenha, Neiva Ortega,
Paloma Bianchi, Sandra Meyer e Vera Torres.

35 Luciana de Moraes: jornalista que trabalha com comunicação na área de dança, além
das áreas de arquitetura e design. “A dança sempre esteve no meu foco de interesse, diz
ela. Danço desde pequena e o movimento permanentemente foi a forma de me entender,
organizar e também (des)estabilizar.”

82 83
SANDRA MEYER é artista, pesquisadora e pro- MÚLTIPLAS DANÇAS
fessora titular aposentada da Universidade do MÚLTIPLAS CRÍTICAS
Estado de Santa Catarina (Udesc). É doutora MÚLTIPLAS ESCRITAS
em Comunicação e Semiótica pela PUC – São Sandra Meyer
Paulo. Escreveu A Dança Cênica em Florianó-
polis (FFC, Florianópolis: 1994) e As metáfo-
ras do corpo em cena (AnnaBlume, São Paulo:
2009, 2011). É co-autora dos livros Tubo de MÚLTIPL AS DANÇAS
Ensaio - experiências em arte e dança contem-

O
porânea (Florianópolis, edição de autor, 2006); convite para escrever sobre crítica de dança em Florianó-
Tubo de Ensaio – Composição [Intervenções polis foi aceito, e decerto o assunto poderia render mui-
e Interseções](Florianópolis, Instituto Meyer tas linhas, por incrível que pareça a uma cidade que não
Filho; Itaú Cultural (2016); Seminários de possui tradição em crítica. A proposta aqui é expor algumas ideias
Dança I e II (Joinville, 2008 e 2009); Coleção sobre escrita crítica em dança nos últimos anos na capital do esta-
Dança Cênica – Pesquisas em Dança, Volume do de Santa Catarina, coincidindo com a época do surgimento do
1 (Joinville, Letra d’Água, 2008) e Coleção Múltipla Dança. Não sendo a relação entre crítica e mídia estável,
Dança Cênica – Histórias de Dança, Volume no sentido de continuidade de espaço para veiculação de textos
II (Florianópolis, Editora Udesc, 2012). Integra em jornais e outras plataformas, os escritos que se desdobraram
o Projeto Corpo, Tempo e movimento. a partir da programação do Múltipla Dança podem nos revelar
aspectos da dança que aqui se fez/faz e a que por aqui circulou/
circula, bem como os discursos que elas têm evocado.
A escolha inicial do nome, Múltipla Dança, expunha o de-
sejo de suas mentoras, Marta Cesar e Jussara Xavier, de abrir-se à
multiplicidade da dança contemporânea e, ao mesmo tempo, res-
ponder à urgência de instaurar outros modos de fruição de dança
que não somente a amostragem de espetáculos, comum a dezenas
de festivais em Santa Catarina surgidos desde os anos 1980. O
subtítulo do evento em 2006, em seu ano inaugural – Seminário
Internacional de Dança Contemporânea –, bem como a ausência
do nome festival já demonstrava um interesse de diferenciação,
distante do formato de apresentação de festivais com curtas core-
ografias de grupos e escolas de dança. Para tanto, espetáculos pro-
fissionais, debates e oficinas foram introduzidos na programação,
permitindo outras formas de circulação de saberes numa perspec-
tiva mais crítica.

84 85
O surgimento do Múltipla Dança está inserido num contex- o depoimento de Cássia Navas, uma das palestrantes convidadas
to de tentativas para repensar o papel de um evento de dança; e para o evento2. A pesquisadora paulista elege em seu depoimento
algumas delas tiveram êxito, embora por pouco tempo. Voltemos a não competitividade como uma marca de diferença da II Mostra
ao passado. Numa crítica intitulada Mais que Festival, publicada de Novos Coreógrafos da Região Sul, reforçando-a como um novo
em 1998 no Jornal A Notícia, de Florianópolis, chamei a atenção modelo de encontro entre artistas dos três estados do sul com foco
para o fato de que os festivais e as mostras de dança começavam na criação artística destes. Infelizmente, estas iniciativas voltadas
a firmar seu gênero em Santa Catarina, entretanto, sua vitalidade à criação em dança tiveram curto fôlego.
dependeria de uma abertura a mudanças e uma troca eficaz com o Diante do contexto acima exposto, fica evidente o papel do
seu meio. Com o intuito de discutir o perfil da recém criada Mos- Múltipla Dança enquanto evento endereçado à arte contemporâ-
tra de Dança de Florianópolis, organizada pela hoje Fundação nea, em seus desdobramentos e continuidades. O perfil curatorial
Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes, elaborei uma escrita buscou investir cada vez mais nesses dez anos em uma dança que
crítica salientando que esta teria surgido a partir da Mostra de prima pela pesquisa, provocando desta forma discursos outros
Novos Coreógrafos1, mas que, contudo, perdera um importante provenientes de corpos críticos - como o assim denominou Lauren-
diferencial presente na mostra anterior: o de incentivo à pesquisa ce Louppe (2012) àqueles que produzem dança contemporânea. Se
de linguagem. Transcrevo aqui um trecho: concordarmos que o corpo da dança contemporânea é um corpo
crítico, seu fazer “coloca em crise” [Krinein]3 não somente a sua
Mas, a Mostra de Dança de Florianópolis, ao aproximar-se de- constituição poética e estética, em confronto com o seu ambiente,
masiadamente do formato comum aos festivais, embora diferen- mas o entendimento da atividade de escrever criticamente sobre
cie-se por não ser competitiva, perdeu um interessante foco: o de estas danças como “juízo e julgamento” [Kritikis]4, evocando aqui
investir em novos coreógrafos e em uma possível inovação estética as raízes etimológicas grega e latina do termo crítica. Neste sen-
que poderia emergir deste investimento. O enfoque na pesquisa e tido, considero a escrita crítica não como a escrita valorativa ou
criação de novas linguagens para a dança mudou de eixo e passou imperativa a posteriori de um espetáculo, tampouco como a tradu-
a ser quase um adereço (MEYER, 1998, p. C 2). ção do significado de uma do obra a fim de ser compreendida pelo
espectador, mas uma tentativa de articulação de fazeres, saberes e
Após a realização da segunda mostra voltada aos novos co- dizeres envolvidos numa ação em arte (MEYER, 2016).
reógrafos, a Folha da Cultura, jornal da Fundação Franklin Cas- Nos apropriamos aqui da perspectiva de Claire Bishop
caes, na matéria intitulada Sul em Movimento, de 1994, publica (2012, p. 131), ao comentar sobre a participação do observador e

1 A primeira edição, ocorrida de 13 a 16 de setembro de 1988, intitulava-se I Mostra de


2 Cássia Navas falou sobre a dança no Brasil, Eva Schul sobre a dança no sul e Sandra
Novos Coreógrafos do Sul Cidade de Florianópolis, e foi coordenada por Martha Mansinho.
Meyer expôs sua pesquisa que culminou no livro A dança cênica em Florianópolis, publicado
A segunda, realizada de 23 a 26 de junho de 1994, tem o nome alterado para II Mostra de
em 1994 e lançado no evento.
Novos Coreógrafos da Região Sul, sob direção de Simone Simon. A Mostra de Dança de
Florianópolis também foi extinta, bem como a Bienal de Dança, iniciativa que sucedeu a 3 A palavra grega krinein, que significa “separar, quebrar”, levou ao entendimento da pala-
antiga mostra, que por sua vez pouco acrescentou para o contexto local, além da mudança vra “crise”, ou seja, “por em crise” uma obra pela sua separação em partes.
do nome. 4 A tradução latina de kritikê levou o termo para a ideia de julgamento e apreciação.

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da ativação do público, de que “toda arte – seja imersiva ou não – Quanto à escrita crítica, as primeiras investidas publica-
pode ser uma força crítica que se apropria de valores e os redistri- das em jornais da cidade relacionadas ao MD foram elaboradas
bui, distanciando nossos pensamentos do consenso predominante por jornalistas não especialistas em dança, a exemplo do texto
preexistente”. Em se tratando de um evento, como instaurar uma Propositalmente fora do compasso de Ainá Vietro, publicado
força crítica? O que seria crítico, ou criticado? E mais especifica- em 2007 para o Caderno cultural Anexo. Ao comentar sobre
mente, quais os dispositivos elaborados pelo Múltipla Dança para Dança Contemporânea em Domicílio, da bailarina e coreógra-
lidar com a ideia de crítica? fa Cláudia Müller (RJ), Vietro ressalta o fato de que se poderia
ligar e encomendar alguns minutos de dança contemporânea
em um endereço solicitado, destacando que o trabalho “desfaz
MÚLTIPL AS CRÍTICAS a ideia de que a performance deve ser obrigatoriamente feita
no palco de um teatro. Esse é um dos trabalhos (diferenciados)
Iniciativas implementadas pela curadoria do Múltipla Dan- que está na programação do Múltipla Dança 2007 – Seminário
ça, formada por Marta Cesar e Jussara Xavier têm instaurado Internacional de Dança Contemporânea, que começa hoje em
nesses dez anos um ambiente favorável para o exercício crítico (e Florianópolis” (grifo nosso). A questão da diferença apontada
da crítica) de artistas e de públicos, após ajustes em suas primei- no texto da jornalista – não esmiuçada e posta entre parênteses
ras edições, posto que a programação passou a incluir espetácu- – convida o leitor a presenciar outros modos de perceber um
los mais dissensuais e intempestivos. Mostra de Bolso, de 2008, espetáculo. A dança-delivery que Müller oferece a pessoas que
apresentava a produção local para curadores e programadores de lhe solicitam desempenha um papel de disparador da atitude
outras regiões do país, propiciando o contato entre ambos. Com a suspensiva em relação a uma normatividade estética, crucial
proposta Ensaios Abertos – Trânsitos, Teoria e Prática, de 2010, para uma experiência em arte e dança diferenciada.
foi instaurado um espaço para exibição e discussão de trabalhos A presença de jornalistas sensíveis à dança vem garan-
coreográficos de grupos catarinenses, promovendo o encontro en- tindo a veiculação desta arte nos jornais locais, e o fato não
tre eles, com a participação de pesquisadores convidados como se restringe ao contexto do Múltipla Dança. Desde a década
debatedores5. Ao longo destes anos, projetos diferenciados como o de 1970 há registros de escritos que permitem aferir os modos
Acervo Mariposa (SP), Dança em Foco (RJ), Rumos Dança do Ins- como a dança moderna ia sendo reconhecida e percebida como
tituto Itaú Cultural (SP) e Tubo de Ensaio (SC) uniram-se ao Múl- uma arte de seu tempo. O Jornal O Estado, o mais importante
tipla Dança para viabilizar a programação, permitindo o aden- veículo na época, em matéria intitulada Balé: o mundo na pon-
samento de instâncias críticas. Somadas às demais palestras e ta dos pés, de 1973, destacou a evolução da dança clássica em
debates, tais iniciativas propiciaram oportunidades de abertura Santa Catarina, notadamente em Florianópolis, considerando a
a novas percepções e redistribuição de valores e sensibilidades, frequência de alunos nas academias, num quadro estimado na
envolvendo as poéticas, os discursos e as escritas. época de 400 bailarinas (a matéria aponta a falta de homens na
dança). O longo texto não assinado ressalta a incipiente pre-
sença da modernidade da dança na cidade: “Dançando mais
o balé, pois que o moderno ainda não conseguiu sua perfeita
5 Oportunidade em que pude, junto à Christine Greiner (SP), refletir sobre algumas pro-
integração no contexto da dança florianopolitana, sendo ape-
posições de dança.

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nas lecionado na Escola de Balé do Teatro Álvaro de Carvalho” descreve como “obscuro”, revelando já um certo estranhamento
(1973, p. 9)6. provocado pela dança moderna e dança jazz do Studio de Dança.
Com o surgimento do Studio de Dança, dirigido por Jus- No período de atividade do Ballet Desterro, entre 1984 e
sara Terrats (hoje Zerbino) a mídia impressa passa a reconhecer 1991, os espetáculos do grupo referência do anos 1980 (XAVIER,
os primeiros espetáculos de dança moderna, momento em que se 2010) ganhavam o olhar de um crítico de outra área, as artes visu-
percebe um olhar atento ao contexto e aos movimentos críticos ais, com o catarinense João Otávio Neves Filho, o Janga. No texto
provocados por estas novas danças. O Jornal O Estado, de 19 de que consta no programa do espetáculo Em busca de um espaço
dezembro de 1978 sublinha a liberdade de movimentos dos corpos perdido (1990) ele propõe um olhar para a dança que instaura
aos acordes do jazz e “da difícil dança contemporânea que, para criticidade e possibilidade de reflexão ao ressaltar a “sintoniza-
sua fluidez e destreza exigem um trabalho pequeno e quase obscu- ção com a contemporaneidade” das coreografias do grupo, sendo
ro do dia a dia” (grifo nosso), e “é por isso que aplaudimos antes, que seus bailarinos e coreógrafos “recusam-se a fazer da dança
desde hoje, estas criaturas que unem saúde à beleza, de modo in- mera diversão, ornamento ou passatempo social inconsequentes”
defectível e audaz”. Num convite à fruição do espetáculo, o texto (1990, p. 2). Janga destaca ainda que as coreografias colocariam
ressalta que o espetáculo Jazz (1978), com coreografias de Jussara o público “diante de seus próprios problemas interiores, buscando
Terrats, Karla Prattes e Monteserat Borredá7, “[...] deve encantar aumentar os níveis de experiência do intérprete e da plateia” (p. 2).
a todos, pois é feito de carne e sangue. De alma e sentimento: a Os exemplos acima destacados demonstram as relações que
dança.” Ao mesmo tempo em que expõe uma ideia de dança como foram se estabelecendo pouco a pouco entre arte crítica e escrita
a expressão de suaves ninfas, feita por jovens da Ilha de Santa crítica em Florianópolis, na medida que as composições em dança
Catarina que se vê na escola, na praia, no cinema, a matéria jor- propunham modos outros de lidar conceitualmente com o corpo
nalística (não assinada) chama a atenção para uma dança custosa no mundo, bem como as críticas acerca destas danças foram dia-
que deixa a ver os esforços da carne e dos músculos do artista por logando com estas especificidades.
meio de um árduo e meticuloso trabalho diário, que o repórter Os anos 1990 marcam a participação maior de críticos de
dança nos jornais locais. Foi nessa época que iniciei uma trajetória
de escrita crítica em dança de forma mais contínua no caderno
cultural Anexo, do jornal A Notícia (Joinville, SC), no período de
6 A escola era dirigida pela professora Bila D’Avila Coimbra (1934-2011), com um trabalho 1998 a 20068, momento este inaugural do jornalismo cultural ca-
baseado num programa oferecido pela Escola do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, local
tarinense voltado às artes, no sentido de um investimento e conti-
onde a professora teve sua formação em balé.
nuidade de uma pauta crítica para além da cobertura jornalística,
7 Apresentado no Teatro Álvaro de Carvalho, em Florianópolis, em 19 de dezembro de
1978. As coreografias partiam das técnicas de jazz de Luigi, nascido Eugene Louis Faccui-
to, bailarino com passagem pelo cinema no Estados Unidos que desenvolveu sua técnica
de estudo do movimento considerada clássica e elegante, elaborada após acidente auto-
mobilístico que o deixou com paralisia parcial; de Matt Mattox, pioneiro do jazz que se
destacou nos anos 1950 em muitos musicais da Broadway, sendo que sua técnica utilizava 8 Outras duas pesquisadoras da área de dança também contribuíram na época para este
referências do balé, sobretudo nos exercícios de barra; bem como da dança moderna de contexto ao publicarem críticas no jornal A Notícia: Jussara Xavier, de 2001 a 2010, tendo
Martha Graham (Informações presentes na matéria Dança: Um Studio na Ilha, Jornal O Es- assinado cerca de 25 críticas, algumas delas com autoria compartilhada comigo e com
tado, 12/03/79, p. 6). Vera Torres.

90 91
por meio da manutenção de pesquisadores no quadro editorial9. guinte título: CRÍTICA: Múltipla Dança terminou no domingo
A elaboração das escritas em dança coincidiu com o período de enfatizando que dançar é também um ato político11 . O termo crí-
meu doutoramento10, instigando-me a um olhar contaminado por tica, em caixa alta, chama a atenção do leitor. O texto ressalta a
epistemologias do corpo provenientes da arte, da semiótica, da pluralidade do festival ao apostar na ocupação de vários pontos
filosofia contemporânea a das ciências cognitivas. Esta experiência da cidade, alcançando cerca de 1500 espectadores, e na visibili-
foi fundamental para o entendimento da crítica como um cons- dade da dança inclusiva ministrada pela professora e artista Ana
tante exercício de percepção atenta às questões que as próprias Luiza Ciscato, a homenageada do evento em 2016. No final do
criações de dança apresentavam e o modo como convocavam um texto, Ida Mara convoca o leitor para observar as relações entre
texto próprio. A proposta era a de abdicar de uma crítica mais for- memória e esquecimento: “Leitora e Leitor,  percebo que  vocês 
malista para poder “dialogar com as inflexões que cada dança im- não se esqueceram  que  dançar é também  um ato político. E isso
primia (ou não) aos modos de criação, percepção e circulação da é memorável...”
arte, especialmente em Santa Catarina, incluindo o leitor” (Meyer, Elke Siedler, outra artista que colaborou com o MD escre-
2016, p. 56). Sendo que a composição em dança, a “coreo-grafia”, vendo críticas, também enfatiza a dimensão política do evento
“situada entre evanescência e escrita”, como salienta Marie Bardet na resenha 7o Múltipla Dança – Festival Internacional de Dança
(2014, p. 151), já é uma escrita no espaço/tempo. (2014), uma vez que este “se presta a dinamizar, local e nacional-
O mais livre possível (2009), de Ida Mara Freire, publicada mente, a expansão da dança cênica. Numa tentativa de contribuir
no Caderno Plural do Jornal Notícias do Dia inaugura o espaço de para a fertilização do campo da produção em arte contemporâ-
escrita referente ao Múltipla Dança por pesquisadores de dança. nea, destaca-se o esforço pela formação de plateia e, também, a
O escrito convida o público à fruição dos espetáculos, sem ater-se colaboração na formação, profissionalização e divulgação de ar-
demasiado a uma leitura especulativa dos aspectos poéticos das tistas residentes na cidade” (2014, p. 123). Siedler descreve ainda
obras. “Você tem que ser crítico com o seu movimento!” Com a presença crescente de uma plateia interessada em manifestações
esta fala contundente da coreógrafa francesa Nathalie Pubellier distintas e plurais em dança que “‘fogem’ de modos hegemônicos
na ocasião de sua oficina no MD Freire inicia o texto O mais livre de produções criadas para e na indústria lucrativa da dança de en-
possível, demonstrando que a perspectiva crítica está implicada tretenimento, vinculadas a eventos de competição” (2014, p. 125).
desde o processo de formação e de criação de um artista. Desta forma reforça com seu discurso a atitude de resistência que
O texto que encerra o circuito de escritas críticas da edição o Múltipla Dança tem sustentado nesses dez anos, e que não pode
de 2016 do Múltipla Dança no Jornal Notícias do Dia traz o se- perder-se de vista nos tempos de hoje.

9 Eliane Lisboa e Edelcio Mostaço escreviam sobre teatro, Lola Aronovich sobre cinema,
Wladimir Soares sobre música e Charles Narloch sobre artes visuais.
10 Cursado no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pon-
tifícia Universidade Católica de São Paulo (2002-2006), aliado aos encontros de pesquisa
no Centro de Estudos em Dança, vinculado à PUC/SP, sob coordenação da professora e
crítica de dança Helena Katz, uma das referências nacionais no campo da crítica e do 11 Disponível em: http://ndonline.com.br/florianopolis/plural/critica-multipla-danca-ter-
jornalismo cultural. minou-no-domingo-enfatizando-que-dancar-e-tambem-um-ato-politico

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MÚLTIPL AS ESCRITAS MD no dia seguinte, levando em conta o calor da experiência recém
vivida pelos artistas convidados a escrever, o que incluía outros in-
Além da ampla cobertura da imprensa local, com críticas teressados em cooperar com o projeto13. Vale ressaltar que alguns
publicadas pelo jornal Notícias do Dia, de Florianópolis, a sétima dos textos produzidos para a primeira edição do Múltiplas Escritas
edição do MD, que aconteceu de 20 a 25 de maio de 2014, marca foram publicados na InterArtive14, que funciona como uma revista
o surgimento do projeto Múltiplas Escritas, a primeira ação do digital internacional de publicação mensal e como uma associação
evento voltada especificamente à problematização da crítica. Con- cultural que realiza projetos em outros espaços.
cebido por Anderson do Carmo e coordenado pelo mesmo (e por Em 2016 o projeto retorna ao Múltipla Dança com uma pro-
mim nessa edição), a proposta alinha-se a outras iniciativas que posta mais intensiva. Múltiplas Escritas: reinventando a pertinên-
tencionam arte, crítica, criação e escrita12. cia crítica aconteceu em parceria com o website Conectedance,
Múltiplas Escritas acontece com o propósito de experimen- criado e coordenado pela jornalista e crítica Ana Francisca Ponzio.
tar outras possibilidades de relacionar arte e crítica não restritas Além de constar no Facebook do evento15 e no Jornal A Notícia,
ao procedimento especialista de escrever de modo analítico sobre de Florianópolis, todos os textos passaram a ser publicados no
um espetáculo após a sua apreciação. Neste propósito, cabe repen- Conectedance, considerando que as redes sociais cada vez mais
sar a própria crítica em sua tradição especulativa e valorativa, para vem ocupando espaços de articulação crítica, restritos antes aos
adensar outros discursos atentos aos fazeres e dizeres das múltiplas jornais impressos.
danças curadas na programação do MD, incluindo a fala crítica de A segunda edição do Múltiplas Escritas atuou na tentativa
artistas, esses que são comumente alvo do discurso de especialistas de “deslocar o protagonismo da opinião do autor para o aconte-
em crítica. Leia-se nesta proposta de agenciar escritas múltiplas o cimento crítico em si”, guiado pela percepção de uma “perigosa
desejo de “entender o acontecimento crítico como uma das possíveis tendência nas estruturas acadêmicas e jornalísticas da reflexão”16.
versões da dança que se frui e não como sua inquestionável tradu- Segundo o coordenador Anderson do Carmo: “fazer uso das obras
ção”, como ressalta Anderson do Carmo (2016). Para este inten- de dança para dar a ver ideários previamente instituídos que –
to, foram convidados artistas de diferentes áreas e entendimentos concretamente – não pensam arte, mas parasitam suas discussões
acerca da arte para escrever sobre as atividades do Múltipla Dança para delas servirem-se” (2016).17
2014, incluindo oficinas, mostras de vídeo, debates e espetáculos. O
interesse era o de que cada texto, em sua singularidade, tencionasse
o evento como um todo, formando um mapa não unificado, sujeito
a fissuras, diferenças e assimetrias. Os textos emergiam feito um te- 13 Textos de autoria de Anderson do Carmo, Jussara Belchior, Oto Henrique, Luana Leite,
lefone sem fio, pois cada um deles carregava alguma informação do Daniela Alves, Sandra Meyer, Kamilla Nunes, Vicente Concílio, Maria Carolina Vieira, Pedro
Coimbra, Sarah Ferreira, Elke Siedler, Oberdan Piantino, dentre outros.
texto precedente, para abrir-se inevitavelmente à sua diferença. Vale
14 Surgiu em 2008 e é coordenada por Herman Bashiron Mendolicchio, Modesta Di Paola,
ressaltar que o texto era produzido para ser publicado no página do
Marisa Gómez Martínez, Christina Grammatikopoulou e a brasileira Lucila Vilela. 
15 https://www.facebook.com/festivalmultipladanca/
16 http://www.conectedance.com.br/ponto-de-vista/multiplas-escritas-reinventando-a-per-
12 Tais como 7x7 (SP), Precisa-se público (MG), Crítica com dança (CE/PR) e CTRL+ALT+DANÇA tinencia-critica/
(RJ). 17 Idem.

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Arte versus universidade: uma relação delicada que merece filósofos ou artistas - mas também coisas, plantas, até animais,
atenção. Com o aumento do ingresso de artistas da dança na uni- como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados,
versidade, especialmente em programas de pós-graduação de áre- é preciso fabricar seus próprios intercessores. (DELEUZE, 2013,
as afins, incluindo artes cênicas18, a articulação de saberes trans- p. 45).
versais é inevitável e, sob muitos pontos de vista, imprescindível, a
fim de que a dança não se feche em si mesma. Contudo, há que se De modo sagaz, o formato experimental da plataforma
pensar em uma ética e uma política de boa vizinhança para cons- Múltiplas Escritas buscou repensar a fisiologia da crítica em dan-
truir intercessores. Com a ideia de intercessão, Deleuze tenta des- ça a partir do movimento próprio da dança. Neste sentido, Ander-
fazer o primado da filosofia fazendo a mesma relacionar-se com a son do Carmo propôs uma desafiadora “inversão epistemológica”,
arte e a ciência, promovendo desta forma um atravessamento da sempre atento às possibilidades da reflexão escrita, que “não refle-
filosofia pelo que não é filosófico. O movimento de perceber a dan- te as obras de dança a partir dos parâmetros críticos, mas sobre
ça pelo que não é dancístico19 (ou que comumente seja considerado o fazer crítico a partir dos parâmetros das obras de dança [...].
como dança) pode ser profícuo. A filosofia, a arte e a ciência, em Se a arte se tornou crítica, talvez seja proveitoso que a crítica se
seu exemplo, entram em relações de ressonância mútua e em rela- estetize”20.
ções de troca, mas a cada vez por razões intrínsecas, sendo o mo- O desafio parece estar na percepção de que certas obras
vimento próprio de cada área o que permite repercutir umas nas contemporâneas de dança que circularam no Múltipla Dança nos
outras, para que não haja parasitas obstaculizando a percepção anos 2014 e 2016, citadas no Múltiplas Escritas, tais como Fole,
do que da dança emerge como acontecimento, em sua múltiplas de Michelle Moura (SC/PR), Sobre expectativas e promessas, de
conexões com o mundo. Alejandro Ahmed (SC) e Finita, de Denize Stutz (MG/RJ) pro-
põem seus próprios parâmetros críticos, desafiando com sua po-
Uma disciplina que se desse por missão seguir um movimento ética e estética a percepção crítica do outro e, consequentemente,
criador vindo de outro lugar abandonaria ela mesma todo papel tencionando o que se escreve sobre elas.
criador. O importante nunca foi acompanhar o movimento do Em Bio+grafia = tensão entre corpo e escrita, (2016) um dos
vizinho, mas fazer seu próprio movimento. Se ninguém começa, textos do Múltiplas Escritas publicado na Revista Interative, apre-
ninguém se mexe. As interferências também não são trocas: tudo sento uma perspectiva crítica do que seja autobiografia na dança
acontece por dom ou captura. O essencial são os intercessores. A a partir do solo Sobre expectativas e promessas. Para o diretor do
criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pes- Grupo Cena 11 Cia. de Dança, Alejandro Ahmed, a biografia é
soas - para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, feito “vestígio”, uma espécie de “genealogia não narrativa”21, ou

18 Até 2020, o Brasil conta com cursos de pós-graduação em Teatro (Udesc), Artes Cênicas 20 Disponível em: http://www.conectedance.com.br/ponto-de-vista/multiplas-escritas-
(tais como UNIRIO, UFBA, UFRGS, UFRN) e Artes da Cena (Unicamp) cujas linhas de pes- -reinventando-a-pertinencia-critica/. Acesso em: 15 de Fevereiro de 2017.
quisa contemplam a dança e um programa de doutorado e mestrado em dança (UFBA). 21 Durante a mesa de debate “Pesquisa biográfica em dança”, realizada na edição de 2014,
19 Aproprio-me aqui do termo em espanhol, no sentido de gêneros dancísticos, ou seja, Ahmed expôs sua concepção de autobiografia como uma “genealogia da experiência” do
formas de classificar a dança por suas características e estilos. corpo no tempo e no espaço.

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seja, o artista agencia a ideia de memória como modulável, sem sabe-se lá…) a frase “Luz… luz… mais luz”. Concílio se deixa
identidade fixa, que não apresenta garantias de sua sobrevivência. atravessar por associações que desviam sua escrita de um com-
O seu corpo em cena, inquieto e vibrátil, intensifica sobremaneira promisso meramente analítico. Na continuidade do seu texto,
esta perspectiva crítica não narrativa. declara: “Depois de ontem, se eu estivesse ao lado de Goethe,
No texto Temporalidade Amplificada, publicado no Múlti- teria satisfeito seu pedido oferecendo a ele uma sessão do espe-
plas Escritas de 201422 , o bailarino e pesquisador Oberdan Pian- táculo Finita. Sua autora, Denise Stutz, sabe produzir clarões,
tino inicia assim sua crítica: “– Diante de um testemunho vivo, tanto em cena como em nossa percepção”.
em que momento escolho fechar os olhos? [..] seu nome é Michelle A fala de Bishop (2012) assinalada no início deste texto é
Moura; nos quarenta minutos de apresentação do espetáculo Fole, aqui relembrada. A força crítica de performances como Finita,
posso chamá-la Sobrevivência, Rasura, Reminiscência e Contes- Fole e Sobre expectativas e promessas conduz a percepção tanto
tação. Neste momento de escrita, procuro alguma fala conforta- do artista quanto de seu espectador a lugares ainda inexplora-
velmente autoral que possa sintetizar as diversas impressões que dos. Se as danças contemporâneas aqui referenciadas são danças
ainda pulsam na mente”. Este não saber, promotor de instabili- críticas, posto que o movimento crítico já se encontra em curso
dade do sensível e do controle sobre a autoria textual resvalou da nas obras, as escritas que a elas se referirem não poderiam tra-
apreciação da dança vigorosa de Michelle Moura para o ato da es- í-las em sua ontologia. O que não pode ser perdido de vista é a
crita, posto que os afetos que a obra Fole convoca provocaram em atenção aos novos modos de se fazer arte, que por sua vez de-
Piantino estados de crise - portanto críticos - que desestabilizam mandam novas práticas de escrita, e assim por diante. E é com
pré-julgamentos e discursos especializados pré-elaborados. o entrelaçamento de múltiplas danças, críticas e escritas que o
Já o olhar de Vicente Concílio para Finita, de Denise Stutz, Múltipla Dança vem colaborando nos últimos dez anos para di-
aponta para a cumplicidade entre artista e plateia, sendo essa minuir a acrisia presente em grande parte dos festivais de dança
“sempre convidada a refletir sobre as lacunas criadas pela dinâ- catarinenses, bem como vem permitindo que a contemporanei-
mica entre ausência e presença propostas pelo espetáculo”. No dade da dança (que inclui a dança contemporânea) aqui circule
texto Luz…luz…mais luz! Considerações entorno de Finita, de e ganhe vigor.
Denise Stutz 23 o ator e diretor teatral expõe suas considerações
de modo afetivo: “Não sei bem por que razões me vieram à men-
te, e depois aos dedos que digitam este texto, as últimas palavras
de Goethe. É bem conhecida a história (ou lenda, ou anedota, REFERÊNCIAS
ou mentira das boas, sabe-se lá….) que antes de falecer o au-
tor de Fausto teria sussurrado (ou gritado, ou simplesmente dito, • BARDET, Marie. Filosofia da dança. Um encontro entre
dança e filosofia. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2014.
• BISHOP, Claire. Antagonismo e Estética Relacional. Tradu-
ção: Milena Durante. Revista Tatuí. Recife: n.12, 2011, pp.
22 Disponível em: https://www.facebook.com/festivalmultipladanca/
109-132. www.revistatatui.com
posts/248504248683687. (Acesso em: 21 de fevereiro de 2017)
• DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pel-
23 Disponível em: http://interartive.org/2014/06/denise-stutz/. (Acesso em: 22 de feve-
bart. São Paulo: Editora 34, 2013.
reiro de 2017)

98 99
• DO CARMO, Anderson. 5 variações sobre crítica. In: DOS tiplas Escritas 2014. Disponível em: https://www.facebook.
SANTOS, Carlos Alberto Pereira. Húmus 5. Caxias do Sul: com/festivalmultipladanca/posts/248504248683687. Acesso
Lorigraf, 2016. em: 21 de fevereiro de 2017.
• FREIRE, Ida Mara. O mais livre possível. Jornal No- • SIEDLER, Elke. 7o Múltipla Dança - Festival Internacional de
tícias do Dia - Caderno Plural, Cobertura Especial, 26 e Dança. Revista Dança. Salvador, v. 3, n. 1, Janeiro/julho 2014,
27/05/2009. p. 122-125. Disponível em: https://www.portalseer.ufba.br/
• ______________. CRÍTICA: Múltipla Dança terminou no index.php/revistadanca/article/download/11295/9322.
domingo enfatizando que dançar é também um ato político. • VIETRO, Ainá. Propositalmente fora do compasso. Caderno
Jornal Notícias do Dia, 31/05/2016. Disponível em: http:// cultural Anexo. Jornal A Notícia, Florianópolis, 02/10/2007.
ndonline.com.br/florianopolis/plural/critica-multipla-danca- • XAVIER, Jussara. Ballet Desterro: contemporaneidade na
-terminou-no-domingo-enfatizando-que-dancar-e-tambem- dança catarinense. In: XAVIER, Jussara; MEYER, Sandra;
-um-ato-politico. Acesso em: 10 fev. 2017. TORRES, Vera (Org.). Histórias da Dança: Coleção Dança
• FOLHA DA CULTURA. Sul em Movimento, Jornal da Fun- Cênica, volume 2. Florianópolis: Editora Udesc, 2010, pp.
dação Fundação Franklin Cascaes. Prefeitura Municipal de 137-167.
Florianópolis, Ano 2, n. 6, Julho/Agosto 1994, p. 13.
• JORNAL O ESTADO. Balé: o mundo na ponta dos pés. Co-
luna Cidade. Florianópolis, 03/06/1973, p.9.
• ________________. Dança e Harmonia no TAC. Coluna
Teatro. Florianópolis, 19/12/1978, s/p.
• ________________. Dança: Um Studio na Ilha. Florianópo-
lis, 12/03/1979, p. 6.
• LOUPPE, Laurence. A poética da dança contemporânea. Lis-
boa: Orfeu Negro, 2012.
• MEYER, Sandra. Corpos e livros abertos em situação crítica.
In: DOS SANTOS, Carlos Alberto Pereira (Org.). Húmus 5.
Caxias do Sul: Lorigraf, 2016.
• ______________. Mais que Festival. Jornal A Notícia. Flo-
rianópolis: 1998, p. C 2.
• ______________. Bio+grafia = tensão entre corpo e escrita.
InterAtive. Disponível em: http://interartive.org/2014/06/cor-
po-escrita/. Acesso em: 22 de fevereiro de 2017.
• NEVES FILHO, João Otávio (Janga). Ballet Desterro. Pro-
grama do espetáculo Em busca de um espaço perdido. Flo-
rianópolis, 1990.
• PIANTINO, Oberdan. Temporalidade Amplificada. Múl-

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IDA MARA FREIRE – Pós-doutorado em Dança, ALGUMAS LETR AS DO ALFABETO
University of Cape Town, África do Sul, 2012. DO MÚLTIPLA DANÇA
Professora associada aposentada da Universi- Ida Mara Freire
dade Federal de Santa Catarina. Atualmente
dedica-se à escrita e também ao projeto Jor-
nadas Criativas, no qual encoraja pessoas a

“O
dançarem suas histórias. Membro do Conse- corpo, a dança, a política, estamos aqui: parque,
lho Editorial do periódico Research in Dance praia, teatro, universidade, Iphan… Que governo é
Education. Textos publicados: To see or not possível? Quem aprecia a dança poderá responder,
to see: Dance as Perceptive Journey, e-book, escrever, observar as possibilidades dessa questão de Olga Gutiér-
2017; Toyi-Toyi: a dança sul africana entre a rez, que ecoa nas proposições do Múltipla Dança. A começar por
memória e o perdão, Revista Alegrar, 2016; imaginar, com Elías Aguirre, um pássaro que não voa. Reconhe-
Merleau-Ponty and Buber on seeing and not cer as memórias vivas narradas e cantadas nas danças de Diana
seeing the Other: inclusion and exclusion in Gilardenghi e Sandra Nunes. A Atitude Cia. de Dança atenta se
education, co-autoria Alexandre Guilherme, estamos cimentando sensibilidades ou encorajando a desesperan-
International Journal of Inclusive Education, ça. Será que estamos com eles? Rui Moreira explora ações cênicas
2015; Toyi-toyi: a dança de uma nação e a no- da dança negra aqui e em Dakar. Elke Siedler sinaliza com ver-
ção de liberdade em Merleau-Ponty, capítulo melho a fragilidade on-off-line das relações afetivas. Marta Ce-
de livro, Editora Fi, 2015; Tecelãs da Existên- sar e Jussara Xavier celebram a 9a edição do festival, valorizando
cia, Revista Estudos Feministas, 2014; Dança o contexto artístico em constante mudança que recusa o padrão
e Cegueira: a criação no lugar da falta, Revista único e abraça a inclusão ao homenagear a professora Ana Lúcia
Dança UFBA, 2014. Autora do site Danças In- Ciscato. A cena se completa com a participação: leitor, leitora que
visíveis e Outras Corpografias: arriscam com coragem fazer parte dessa múltipla dança” Publica-
WWW.IDAMARAFREIRE.COM.BR do em 24/05/2016. Uma década do Múltipla Dança. Leio, reviso,
IDAMARA@IDAMARAFREIRE.COM.BR atualizo: as notações, a escrita da dança, as conversas dançadas.
São tantas pessoas, movimentos, palavras e nomes, que embora
presentes em meu coração, mas nesse texto impresso tenho que
pedir desculpas pelas omissões, pois, menciono aqui somente as
resenhas críticas de minha autoria, publicadas em sua maioria no
Caderno Plural do Jornal Notícias do Dia, nas generosas edições
de Néri Pedroso e Dariene Pasternak, com as belas e surpreenden-
tes imagens de Cristiano Prim.

ARTISTAS. Adilso Machado, Al Crisppinn, Alejandro Ahmed,


Alex Sander dos Santos, Alexandre Bhering, Alexandre Veras,

102 103
Aline Blasius, Álvaro Dantas, Ana Alonso, Ana Amélia Vianna, Eis um fragmento de um instante ficcional de João Gilberto Noll
Ana Carla Reis, Ana Francisca Ponzio, Ana Lúcia Ciscato, Ander- que nos sugere indagar como o olhar, o escrever, o mover-se, re-
son do Carmo, Anderson Gonçalves, Andréa Bardawil, Andrea velam gestos instantâneos cujo entrelaçamento forjam o vídeo, o
Elias, Beatriz Milhazes, Bia Mattar,  Camilo Chapela, Carolina livro, e a dança. Podem nossos olhos interrogar o mundo e, através
Ribeiro, Cássio Brasil, Christianne Galdino, Christine Greiner, deles, o mundo apresentar-se a nós? Ballet Desterro: contempora-
Cláudia Shimura, Clébio Oliveira, Cristina Turdo, Daniela Al- neidade na dança catarinense, dirigido por Jussara Xavier, regis-
ves, Deivison Garcia, Denise Stutz, Diana Gilardenghi, Dorothé tra em voz e imagens a trajetória pioneira de um grupo que, como
Depeauw, Eduardo Maggiolo, Elías Aguirre, Elke Siedler, Erika relata a arguta diretora, realizou experiências inovadoras ao ado-
Rosendo, Esther Weitzman, Fabiana Dultra Britto, Felipe Padilha, tar procedimentos criativos diferenciados do padrão e provocar a
Fernanda Eugénio, Fernanda Reis, Fernando Martins, Florencia percepção do público. Identifica em seus espetáculos: a articula-
Vecino, Glauce Milhazes, Goldie, Heder Magalhães, Hedra Ro- ção inédita de diferentes linguagens e mídias, a simultaneidade de
ckenbach, Hendrik Lorenzen, Henrique Rodovalho, Irani Apoli- ações na cena, a valorização da singularidade, a experimentação
nário, Jânia Santos, Jean Jacques Lemêtre, João Paulo Gross, João coreográfica, a diversidade de motivações e as tentativas de dirigir
Fiadeiro, José Geraldo Furtado, Joselma Soares, Joubert Arrais, a dança às infinitas coisas do mundo. Seria a escrita da dança um
Jussara Belchior, Jussara Xavier, Kaká Antunes, Karin Serafin, mapeamento e codificação literários das regiões do corpo? O livro
Karina Collaço, Leo Bungarten, Leticia Lamela, Letícia Sekito, As metáforas do corpo em cena de autoria de Sandra Meyer é re-
Lincon Soares, Lisa Jaworski, Luis Garay, Marc Leclair, Lilian Vi- sultante da sua tese de doutorado e relaciona o método das ações
lela, Marcela Reichelt, Marcelo Lopes, Marcia Milhazes, Marco- físicas com estudos do corpo na contemporaneidade. Os processos
ni Araújo, Marcos Buiati, Marcos Klann, Margô Assis, Mariana cognitivos que envolvem a formação do ator e do bailarino são
Romagnani, Marta Cesar, Martha Cano, Mauro Ariel Panzillo, discutidos no âmbito das ciências, da filosofia e das artes, a partir
Mayara Costa, Michele Moura, Michelle Pereira, Mônnica Emi- do problema corpo-mente. Como o gesto daquilo que fica em
lio, Nastaja Brehsan, Nathalie Pubellier, Nelson D, Nina, Néri suspenso em cada ação busca um sentido? Anderson Gonçalves
Pedroso, Olga Gutiérrez, PC Castilho, Pedro Paulo Rosa, Peter (1964-2010) bailarino, dançou em grupos como Desterro (SC),
Mark, Porter Ricks, Ray Conniff, Rodrigo Lemos, Rodrigo Mi- Cia. Jazz Brasil (SP), Vacilou Dançou (RJ). Foi professor e coreó-
notti, Rogério Almeida, Rozeane Oliveira, Rui Moreira, Sandra grafo de diversas escolas e grupos nacionais. Integrou o Cena 11
Meyer Nunes, Sarah Ferreira, Stacey Kent, Suely Machado, Tânia como intérprete e figurinista. A maneira de Clarice Lispector, ele
Ikeoka, Taylor Deupree, Telli Narcizo, Thembi Rosa, Thiago Sch- interrompe a dança com silêncio espaçoso, e deixa o corpo num
mitz, Tom Monteiro, Umebayashi Shigeru, Valeska Figueiredo, feixe de atenção intensa e muda. Ficamos à espreita de nada. Dan-
Valeska Gonçalves, Vandré Vitorino, Vera Torres, Zilá Muniz. cemos. Seu silêncio não é o vazio, é a plenitude.

BALÉ DESTERRO. 27/05/2010. “Como se chamava a sensação flui- COMPREENSÃO. 28/05/2010. Na noite de quinta-feira ocorreu a
da de todo final de tarde? O sopro escorrendo pelo estômago sem conversa orientada sobre a nova pesquisa coreográfica do Grupo
desenlace seguro, o que era? Estava sentado num café, absorto Cena 11 Cia. de Dança, intitulada: SIM > ações integradas de
nesse laivo de instante. E isso lhe deixaria aquele sumidouro de consentimento para ocupação e resistência, mediada pela profes-
lembrança cada vez mais distantes de uma nascente precisa...” sora Fabiana Dultra Britto (BA) e tendo como participantes o dire-

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tor e coreógrafo Alejandro Ahmed, o elenco composto por: Adilso fessora Diana Gilardenghi é uma dessas estrelas, ela apareceu em
Machado, Aline Blasius, Cláudia Shimura, Jussara Belchior, Karin nossa galáxia dançante causando uma explosão criativa que re-
Serafin, Leticia Lamela, Marcos Klann, Mariana Romagnani e, verbera na vida de quem dela se avizinha e, consequentemente, 
a plateia do Múltipla Dança – Festival Internacional de Dança se sente tocado por sua inconfundível delicadeza e sua admirável
Contemporânea. Uma tarefa foi solicitada: que formássemos três disposição. Diana é uma incansável descobridora de talentos; não,
grupos para descrever a experiência de compreensão e o sentimen- mais do que isso. Ela é uma mestre em desvelar o que há de melhor
to do SIM. Tal ação me pôs a pensar acerca da compreensão, que nas pessoas. Experiente, ela arrisca, confia no processo e não se
na concepção de Hannah Arendt é interminável, começa com o apega no produto. Nos descaminhos da dança, na insegurança
nascimento e termina com a morte, é a maneira especificamente dos passos, na incerteza do gesto – dela se ouvirá: Erra! Mas, não
humana de estar vivo. Como plateia “teste” escolhi ficar no grupo duvida! Grata Diana, por tornar nossos dias mais belos pela luz
para descrever a compreensão da coisa. Em três começamos a ta- amistosa que sua vida irradia. Cantemos com Juanca Tavera: “[...]
refa, descrevendo a nossa atitude frente à coisa: distanciamento de vamos, todavía, que en la vida hay un cacho de alegria para ser
uma, aproximação de outra. Mas, o que é descrever a compreen- feliz.”
são de uma experiência vivida acerca de ocupação de espaço e re-
sistência num ambiente cênico? Mediante a resignação, a atividade DUAL. 26/05/2010. A dualidade é um conceito definido pela
da compreensão é necessária, por conferir sentido e produzir uma geometria em que são chamadas de ‘duais’ duas figuras que podem
nova desenvoltura no espírito e no coração humanos. Faltou-nos ser obtidas uma da outra, refere-se a relação que une dois objetos
tempo para cruzar o abismo entre experiência e a compreensão quaisquer, de tal modo que um pode transformar-se no outro me-
dela. Nessa ausência notamos a essência do interrogar-se. O re- diante operações oportunas. Camilo Chapela, Carolina Ribeiro,
sultado da compreensão é o significado, que produzimos em nosso Fernando Martins, João Paulo Gross, Kaká Antunes, Marcos
próprio processo de vida, à medida que tentamos nos reconciliar Buiati, Martha Cano e Valeska Gonçalves, elenco da Quasar Cia.
com o que fazemos e com que o sofremos. Neste último dia do de Dança (GO), rastejam, se arrastam, caminham, se abraçam, se
Múltipla Dança, a quem interessa buscar uma compreensão da afastam, se falam, se beijam: desenham acontecimentos de dança
dança enquanto processo, recomendo os Ensaios Abertos, que se em busca da felicidade. Durante 70 minutos seus gestos gotejam
inicia com o Projeto Açúcar, Fel e Afeto que apresenta Apenas risos, alfinetam surpresas e sugerem sensações na plateia presen-
Espécie dirigido por Diana Gilardenghi (Florianópolis) e tendo te no espetáculo Céu na Boca, dirigido por Henrique Rodovalho
como intérpretes-criadoras: Michelle Pereira e Nastaja Brehsan. e apresentado na noite de terça-feira no Múltipla Dança – Festi-
Noto que uma experiência mais profunda com a dança demonstra val Internacional de Dança Contemporânea. A musicalidade de
que um coração compreensivo e não a mera reflexão ou o mero Hendrik Lorenzen, Taylor Deupree, Marc Leclair, Goldie, Stacey
sentimento, torna suportável para nós a convivência com outro. Kent, Umebayashi Shigeru, Porter Ricks, Ray Conniff, dilatam o
estado de espírito, nos colocando reféns dos desejos alheios mani-
DIANA GILARDENGHI. 02/06/2015. Começa o Múltipla Dança e a festos num contato aparentemente absurdo, numa comunicação
estrela é Diana Gilardenghi. Em 1993 apareceu uma supernova estranhada, num deslocamento horizontal. Impulsionam-nos a re-
que é chamada estrela companheira, pois duas estrelas interagem conhecermos numa atitude epicurista que o conhecimento seguro
e causam uma explosão cósmica. A dançarina, coreógrafa, pro- dos desejos leva a direcionar toda escolha e toda recusa para a

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saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto que esta é a fotografamos. Cristalizamos no tempo-espaço a dança que vemos
finalidade da vida feliz. A movimentação de um corpo intenso e agora para recordar depois o corpo em movimento, acessível para
presente é vestida por Cássio Brasil. Camuflagem desnudada em todos que se interessem por conhecer a história da dança. Esse
cena com o intuito de assumirmos como nossas as ações de tecer, é um dos objetivos do Acervo Mariposa, uma videoteca pública
em duo, em trio, trançar fios existenciais que nos afaste da dor e especializada em dança que gerencia o acesso gratuito de vídeos
do medo. A ausência de cenário metaforiza o outro como o céu, o digitalizados de dança. As relações entre o gesto e imagem que
ideal inatingível; e o corpo-próprio como a boca, a realidade pala- incitam nossas noções de tempo e a memória são desveladas nas
tável. Nessa atmosfera difusa, a iluminação faz nascer o corpo de proposições do videodança. Fronteiras são rompidas, propõe-se
outrem no tempo/espaço daquele que vê. Nas pausas contornadas uma dilatação dos sentidos: ver o que não se mostra facilmente,
pelo silêncio, noto que não só o uso das palavras, mas também o vivenciar um alargamento sensorial ao ser tocado pelo olhar atra-
movimento, o gesto, o tocar e o sorrir nos fazem singulares, neste vessado do outro sobre si mesmo. O Dança em Foco ocupa-se des-
desenho que é a pluralidade humana. tes “entre-lugares” que surgem do encontro da dança com as ima-
gens virtuais. Notavelmente, para você que se interessa pelas entre
ENTRE LINHAS E IMAGENS. 28/05/2009. Como um dançarino linhas e cultiva a imagin-ação são várias as opções de se envolver
se recorda de uma coreografia? A dança é uma arte efêmera. E, com a dança. Agende: será exibida uma série de documentários da
nesse sentido, o registro em texto escrito ou em imagem se faz dança francesa na Fundação Badesc de maio e novembro de 2009.
necessário. A escrita da dança é uma atividade fascinante, pois
é muito difícil separar o corpo que dança do gesto que escreve. ESCRITURAS COREOGRÁFICAS. 28/05/2014. A chuva e o frio não
Muitas vezes uma pessoa que dança pode ser afetada pelo seu foram impedimentos para plateia do Múltipla Dança participar
modo de escrever sobre a dança, de maneira que essa escrita altera assiduamente das oficinas, dos diálogos e dos espetáculos e escre-
sua maneira de dançar e consequentemente o seu jeito de apreciar. ver suas “corpografias”: uma escrita movente, articulada no des-
“Estudiosos, pesquisadores, curiosos e até mesmo os mais distra- locamento do gesto que escreve para o gesto que dança, notações
ídos habitantes permanentes ou provisórios podem constatar que das marcas de passos, lapsos e lampejos da memória intercorpo-
o Recife é uma cidade que dança.” Essa é a frase introdutória do ral entre o dançarino e a plateia. Experimentação identificada nas
livro Balé Popular do Recife: a escrita de uma dança, autoria de proposição das Múltiplas Escritas, coordenado por Anderson do
Christianne Galdino lançado na noite de abertura do Múltipla Carmo e Sandra Meyer Nunes, cujo procedimento para os interes-
Dança. A autora pauta-se na trajetória dos 32 anos desse Balé sados em escrever um texto sobre as atividades da programação
para entender o diálogo entre a tradição e a contemporaneidade, deixavam uma pista de pensamento para quem escrevesse o pró-
considerando a recuperação da memória da dança cênica local. ximo texto. Com isso se pratica a reflexão na dança, enfatizada
A dança que assistimos ontem será igual a que veremos hoje? A na contaminação mútua de quem escreve e lê acerca da experiên-
coreografia poderá ser a mesma, mas os dançarinos e a plateia não cia do dançar, presente no exercício crítico debatido na tarde de
serão. Eles terão tido vivências diferentes que alterarão seus gestos, quarta-feira no Centro de Desportos da UFSC, no Diálogo entre
poderão estar mais atentos, talvez, uma pessoa tenha torcido o Ana Francisca Ponzio, Joubert Arrais e Sandra Meyer, no qual a
tornozelo e toda vez que faz um determinado gesto sente dor. Por jornalista Néri Pedroso tematizou a importância do discurso crí-
o corpo não ser mais o mesmo de ontem à noite, então, filmamos e tico como ponte e não como barreira entre a obra do artista e o

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público. Escrituras que o leitor e a leitora espero terem tido duran- exercício sugerido: fazer as ações compostas em três frases de mo-
te a semana a oportunidade de apreender, seja ao testemunhar no vimento, acompanhadas com a nossa própria voz. Sim, tínhamos
solo Solidão Pública de Adilso Machado, um partir de si mesmo que nos convencer que a nossa fala correspondia exatamente à
em direção a um outro que nunca se alcança, sensação desértica da intensidade da realização da nossa ação. O grupo de alunas do
afetividade aterrissada pelas composições de Tom Monteiro. Tal- curso de pedagogia que estava assistindo a aula pode perceber
vez, no trabalho da dançarina Michele Moura, Fole, a percepção que reflexão e linguagem podem ser lições de um corpo em movi-
de vocês tenha se alterado, por segundos, quem não notou em mento. A masterclass de dança contemporânea ocorreu na sala de
seu próprio corpo o eco dos vocalizes amplificados por Rodrigo dança CDS/UFSC e foi promovida pelo Projeto Tubo de Ensaio,
Lemos, ou como as reverberações dos intensos movimentos criam em parceria com o Múltipla Dança. Se por um lado a experiência
histórias de corpos desnudos, destituídos de um querer que nem com dança das 25 pessoas participantes era variada, por outro, a
todos querem ver. O solo de Alejandro Ahmed, Sobre Expectati- unidade do grupo no transcorrer da atividade é meritória da co-
vas e Promessas se instala em uma vontade de desaparecimento. reógrafa francesa Nathalie Pubellier, acompanhada de perto pelo
Acompanhado de Hedra Rockenbach, ocupam o espaço vital dei- assistente e tradutor Alex Sander dos Santos. Como trazer mais
xando rastros sonoros e luminosos de seus movimentos que de- liberdade para o corpo do dançarino? Essa indagação motivou
safiam o espectador em busca de autoria. Dilema contemporâneo a coreógrafa a buscar uma formação polivalente, que inclui balé
que junto com Ítalo Calvino nos induz desvendar quem é cada um clássico, dança moderna, jazz, tai chi, bem como estudos cientí-
de nós senão uma combinatória de experiências, de leituras, de ficos em medicina e biologia celular. Na perspectiva de Nathalie,
imaginações, de movimentos. Maneries, espetáculo que encerrou o dançarino deve ser disponível e bem preparado corporalmente,
o Múltipla Dança no domingo, dirigido por Luis Garay, expõe o para ser o mais livre possível. Durante sua aula, ela apresentava
corpo como produtor e receptor de possibilidades linguísticas, os princípios básicos de sua pedagogia composta por exercícios de
que a dançarina Florencia Vecino, banhada pela luz de Eduardo respiração, alongamentos, deslocamentos no solo, fazendo uso de
Maggiolo, forma e, com a música de Mauro Ariel Panzillo, trans- brinquedos, tais como um palhaço de madeira e bolas; cada gesto
forma diante do nosso olhar contemplativo. O Múltipla Dança, era descrito, enfatizado com intuito de despertar a sua corporei-
confirmando aposta inicial da curadoria, apresentou em sua diver- dade. A cada variação da frase de movimento se esculpia no corpo
sa programação a dança para além de um eu individual, a dança níveis profundos de sensações. Fazer novamente uma sequência
que dá lugar para a ausência, a dessemelhança, ao que está só, que de movimentos não tinha como meta somente um refinamento
abre espaço para a descontinuidade e promove uma escrita crítica técnico, mas juntamente com a prática evocar no dançarino uma
e criativa para fazer falar o que não tem palavra: o ninho de João- consciência corporal. Instigava-se àquele que dança a perceber o
-de-Barro na sacada, os utensílios de uma bolsa alheia, o pescar a jogo lúdico sensorial, que começa no centro do corpo e expande
luz com paciência no poço da escuridão... para as partes periféricas. Poderia se dizer que ação e percepção
se apresentavam numa relação de figura e fundo. Ao terminar as
FRASES DE MOVIMENTO. 27/05/2009. “Você tem que ser crítico atividades acrescentei essa simples notação: quem participou ou
com o seu movimento!”, alerta a dançarina Nathalie Pubellier assistiu essa aula, além de aprender um pouco de francês, talvez
com a turma de dançarinos que buscava seguir com afinco suas tenha tido a sensação que a liberdade é azul.
sugestões de ações. Afunda, corta, toca, alonga, desenvolve... O

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GINGA. O Múltipla Dança no ano da França no Brasil, além etc. Pedro convida: “As portas do coletivo estão abertas para to-
de destacar a dança francesa, acerta em mostrar a contribuição das as pessoas que tem interesse em fazer um intercâmbio por uma
da dança brasileira no contexto francês, ao divulgar o trabalho de semana, fazer uma residência... É aberto para uma pesquisa, um
Pedro Rosa, dançarino brasileiro, que escolheu fazer sua carreira processo de criação, um estágio, uma pesquisa sobre os brasileiros
no exterior. Em 13/10/2009, ele apresentou o monólogo inspirado que vivem no exterior...” Pedro Rosa, que traz o samba na ponta
do texto Quase do escritor Luís Fernando Veríssimo, um estudo do pé, protegido pelos Orixás, dança o tempo menino. Celebra
dos movimentos e das expressões que, através da dança, exploram ao som do maracatu, seus 60 anos de vida, 40 deles dedicados à
o “quase” – a fragilidade humana, as lembranças, o equilíbrio e dança, no seu falar vem o movimento de uma ginga brasileira com
o desequilíbrio, o esgotamento físico e o reencontro com a leveza. um sotaque francês.
Quasi aponta para uma quase-resposta, um questionamento do
caminho percorrido e do que está pra nascer. Pedro Rosa é brasi- HEDRA ROCKENBACH. 30/05/2009. O Guia de Ideias Correlatas
leiro radicado em Rennes, dançarino, com formação em balé clás- não se trata de uma aula, tampouco de um espetáculo, esclarece
sico, dança contemporânea, dança afro-brasileira, jazz e teatro. o diretor e coreógrafo Alejandro Ahmed. Coerentemente, o core-
Pedro Rosa dançou para vários coreógrafos tanto no Brasil como ógrafo apresenta assim a sua cartografia, indicando nas marcas
no exterior. Desde da década de 90 reside na França, em Ren- projetadas na pele trilhas de acesso à informação. O grupo com-
nes, onde consolidou uma sólida carreira como professor, dan- posto por Adilso Machado, Aline Blasius, Cláudia Shimura, He-
çarino e coreógrafo, e atualmente dirige a Companhia de Dança dra Rockenbach, Jussara Belchior, Karin Serafin, Leticia Lamela,
OCHOSSI. Na entrevista realizada em Rennes 16/07/2014, Pedro Marcela Reichelt, Marcos Klann, Mariana Romagnani e Nina, a
Rosa conversa acerca de sua proposta de criação vinculada à dan- cachorra, recorre às ações de Skinnerbox e Pequenas frestas de
ça afro-brasileira contemporânea, presente no teatro, na capoeira, ficção sobre realidade insistente, revelando ao público algumas
no samba, no candomblé e no carnaval brasileiro. Ele encontrou cenas que sustentam a proposição da dança como estratégia cog-
em Rennes o ambiente propício para desenvolver-se como dan- nitiva. Com a sonoridade de Hedra Rockenbach e a interface in-
çarino de dança contemporânea afro-brasileira. Em contato per- terativa de Telli Narcizo o Cena 11 decompõe diante de todos as
manente com o Brasil, e em contato com artistas e coreógrafos ideias que estruturam as definições de corpo, investigadas com a
brasileiros, ele busca as origens e o fortalecimento da sua dança. interlocução da crítica de dança Fabiana Britto, para tornar dança
Alimentado por suas convicções políticas, Pedro tem como inspi- as questões propostas a cada trabalho. Assim, se apresenta um
ração a canção de Milton Nascimento, que diz: “todo artista tem verbete na tela. A dançarina em cena faz uma demonstração de
que ir aonde o povo está, se foi assim, assim será...”. Reconhece, uma queda. Escuto alguém da plateia dizer: dor. “O que os nossos
que é muito difícil sustentar uma carreira independente, em suas corpos dizem? E o que eles estão nos contando? A imaginação hu-
palavras: “...é com muito suor”. Ele constata que é necessário so- mana está enraizada nas energias do corpo. E os órgãos do corpo
mar forças. E assim, ele formou o Coletivo Brasil, compostos de são determinantes dessas energias e dos conflitos entre os sistemas
artistas, professores universitários e suas famílias. Após mais de de impulso dos órgãos e a harmonização desses conflitos, escreve
24 anos morando e atuando na Bretanha, seu trabalho conseguiu Joseph Campbell. A noção de corpo que vivenciei enquanto espec-
trazer o Brasil para Rennes, a partir da criação da sua companhia tadora dessa leitura demonstrativa, foi a do corpo próprio como
de dança foram criadas escolas de percussão, escolas de capoeira, rito de iniciação onde fui convocada a renunciar pré-conceitos e

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submeter-me a uma prova do olhar. Percebi que devo aceitar essa sivelmente deslocada entre sorrisos e lágrimas, colhe para si. “A
prova sem esperança de obter sucesso, ou seja, de conhecer tudo, vida vai depressa e devagar. Mas a todo momento penso que posso
porque sempre algo do outro me escapa. Na verdade, devo me acabar.” Cecília Meireles com seus poemas enraíza nossa finitude
preparar para uma abertura diante da provação da imagem espe- em nossa mente. Similarmente, Denize Stutz ao dançar faz que o
lhada, destituída de sentidos para mim. Ao escrever esta última espectador escave para além dos tecidos de sua pele suas memórias
notação sobre o Múltipla Dança 2009 faço votos que se mantenha corporais. Ambas nos oferecem o cálice da demora da ausência
viva a prioridade “de conceder espaço à ocorrência de diferentes em nosso próprio ser, essa despedida pronta a cumprir-se. Diante
modos de diálogo, procurando aproximar sempre mais o pensar e do aplauso dá-se o sinal que o espetáculo acabou, desconfiado o
o fazer dança” assinalada pelas organizadoras do evento. Espero, público não sabe como se comportar ao ver que a bailarina Denise
leitor, que as minhas intenções de proporcionar algumas razões Stutz não para de dançar. “Meu processo de criação me ocupa o
para apreciar a dança tenham tido êxito. Ainda há tempo de con- dia todo. Às vezes estou na rua, e não estou enxergando, acordo
ferir suas noções de corpo no espetáculo Quinteto da Staccato a noite para resolver um problema. Porque são problemas ou re-
Cia. de Dança. soluções. É muito interessante quando estou nesse estado de cria-
ção que é necessário dizer. Você tem a sensação da necessidade
INFINITA. 26/05/2014. Na noite de quarta-feira, no teatro da de falar e você começa a construir. A construção e desconstrução
UBRO, o Múltipla Dança apresentou o solo Finita, dirigido e in- de um material de criação é quase matemática. A criação é uma
terpretado por Denise Stutz, dedicado à sua mãe. Surgido da ne- desorganização.” Essa escrita de Denise Stutz está impressa no
cessidade de compreender a falta, o que se vivenciou durante o livro de Lilian Vilela intitulado Uma vida em dança: movimentos
espetáculo foi o exercício de equilíbrio sutil entre a lembrança e o e percursos de Denise Stutz, lançado na noite de quinta-feira na
esquecimento. Enquanto a plateia buscava um lugar para assistir Fundação Badesc, juntamente com o filme Limiares, dirigido por
a dança, ao fundo do lado esquerdo palco, ainda em penumbra, Sandra Meyer, sobre a vida do dançarino Anderson João Gonçal-
Denise Stutz já estava a se movimentar. Ela caminha para a frente ves. Mais um momento que fomos suspensos pela percepção que o
do palco, agora um pouco mais iluminado, conta estalando os corpo é finito, mas a dança é eterna.
dedos, anda em direção, ao que faz imaginar ser uma vitrola, e a
sonoridade de Prelúdio e Fuga em Dó Maior de J.S.Bach invade LIVRE PARA TODOS. 27/05/2016. O Festival Múltipla Dança apre-
o ar, vai para trás das cortinas. No palco, a cadeira vazia preen- sentou no feriado de quinta-feira, 26 de maio, intervenções e espe-
che-se com os pensamentos da plateia. Vestida com uma bermuda táculos livres para todos os públicos, demonstrando também seu
xadrez, camiseta e um calçado confortável, ela se mostra à vonta- compromisso de ir ao encontro do espectador. Pela manhã o sol
de com o corpo, com a dança, e com o lugar onde está: o teatro. aquece o corpo e traz vivacidade à paisagem outonal do Parque
Não se trata de um texto decorado, nem de passos demarcados, de Coqueiros. As dançarinas Margô Assis, Thembi Rosa, Karina
mas de um degustado trabalho de memória viva. Narra para a sua Collaço e Dorothé Depeauw da Dança Multiplex ora são seguidas
mãe ausente como que a vida de uma bailarina é sustentada por por uma plateia, ora o espectador compõe a cena da dança oriun-
um infinito contar: um, dois, três, quatro... Desfia como contas de da de um trabalho cuidadoso com o corpo, com o lugar e com os
um colar, fragmentos de uma vida permeada pela ausência e pelo objetos – bambus, tecidos e outras delicadezas, retiradas da aba
desaparecimento de alguém que se ama; pérolas que a plateia, sen- de um chapéu ou escondidas dentro da meia – que conduzem os

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participantes à leveza, à delicadeza e ao lirismo interno e externo. cabeça?  As crianças respondem: concentração! Os adultos cons-
Em conversa com a dançarina belga Dorothé Depeauw acerca da tatam: contemplação. Perceber que quando não fazemos nada, o
intervenção, ela comenta que a experiência de dançar num parque silêncio faz tudo dentro de nós. Essa é uma dança livre para todos
se distingue de um teatro, principalmente pela proximidade entre os públicos.
o dançarino e o público, sem a elevação de um palco percebe-
-se com nitidez a humanidade de cada comum. No período da MEU PRAZER. 29/05/2009. O espetáculo Meu Prazer, encenado
tarde, na praia do Campeche, em frente ao rancho da canoa, os por Marcia Milhazes Cia. de Dança. “Saber que não escrevemos
movimentos da dança breaking do grupo Atitude Cia. de Dança para o outro, saber que essas coisas que vou escrever jamais me fa-
de Garopaba, prendem a atenção da plateia de aproximadamente rão amado de quem amo, saber que a escrita não compensa nada,
180 pessoas. O conhecido pescador sr. Getúlio, assegura que todo não sublima nada, que ela está precisamente ali onde você não está
artista deve ir aonde o povo está. Trazer para a comunidade o que – é o começo da escrita.” Os fragmentos do discurso amoroso de
não está visível na comunidade. As crianças  atentam-se para o Barthes parecem-me oportunos para introduzir meus comentários
figurino cujas cores preta e terracota mesclam com a areia umede- acerca do espetáculo Meu Prazer dirigido por Marcia Milhazes,
cida que exige dos dançarinos destreza e resistência para controlar apresentado na noite de quarta-feira no Múltipla Dança. Os bai-
o gesto dançante, ritmado pela a composição musical de Davide larinos Al Crisppinn, Ana Amélia Vianna, Felipe Padilha e Fer-
“Nelson D” Merra e o som das ondas do mar. Outro morador nanda Reis escrevem cartas de amor gestuais que revelam desejos
da região, sr. Osmar João da Cunha, surpreende-se com os movi- de proximidade e intimidade. A solidão se espessa quando aquilo
mentos de defesa e a escalada de um dançarino nas costas de um que nos é íntimo está certo de se alcançar, contudo um gesto es-
outro, para saltar mais alto. Mas, alto está a plateia dos prédios trangeiro nos faz duvidar e põe fim na estória antes mesmo dessa
ao redor do pátio do TAC que testemunha de longe, o tempo que começar. O cenário, criação de Beatriz Milhazes, é um jardim de
o corpo de Elías Aguirre leva para desfigurar-se em movimentos, flores agigantadas que subverte o espaço e acolhe os movimentos
manifestando em essência e em aparência um conflito interno de de suspensão. O espectador é convidado adentrar neste pequeno
alguém que aprende a viver envenenado. A noite chega, em um universo, perceber como seu o frêmito do corpo da dançarina e
clima de contação de história, Rui Moreira habita o espaço entre surpreso constatar uma esquisita alegria. O gesto do outro nos
o desejo de partir sem saber ao certo que destino seguir, interage aproxima, porém sem intimidade. São como os grandes círculos
com o público indagando sobre a juventude aos muitos jovens que vazados, lembrando-nos dos espaços vazios ao nosso redor. Pode
assim se apresentam, e também às crianças de colo, que durante o a textura, a cor de uma vestimenta tecer intuições? Demonstrar
espetáculo seus choros, balbucios, por alguns momentos chamam leveza, transparência, maleabilidade e com isso demarcar seme-
a atenção da plateia. Para Rui, nada atrapalha, pelo contrário, a lhanças e distinções nas tramas e nos dramas existenciais de cada
ação cênica criada numa atmosfera ritualística em meio de mulhe- um? A iluminação de Glauce Milhazes endereça a mensagem. Ple-
res anciãs de um vilarejo em Senegal, as crianças estão presentes. na, denuncia que andamos a procura do desconhecido. Generosa,
Coerente com seu trabalho intitulado Co Ês (com eles),  elas: as nos permite perceber o aqui e o agora. Convergente, irradia o só
pessoas comuns, as mulheres, as crianças, não ficam do lado de ser e o seu reverso: o ser só. A sonoridade de Francisco Alves, as
fora. E assim, o Múltipla convida: vamos todos parquear e notar o composições de Francisco Mignone, Henrique Oswald, Ernesto
que acontece no corpo ao equilibrar um bambu no topo da própria Nazareth e Maria Kalaniemi, prenhas de sentidos nos constran-

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ge admitir as ausências. O silêncio intimida ao desnudar nossa em parceria com o projeto Entrando em Contato, desenvolvido
presença no simples ato de respirar. O espetáculo da Marcia Mi- por Ana Alonso aqui na cidade; os videodanças de Sarah Ferreira
lhazes Companhia de Dança pode ser lido como uma carta que foram exibidos. Outros destaques do seminário incluiu: o diálogo
deseja, como toda a mensagem de amor, uma resposta. E assim, sobre economia da cultura com Ana Carla Reis. A presença da
diante dessa imposição implícita o outro responde. Como espec- Quasar Cia. de Dança (GO), uma das mais importantes compa-
tadora, talvez seja essa minha simples notação uma retribuição, nhias brasileiras. A performance de Letícia Sekito, da Companhia
porém reconheço de antemão que o amor pode estar precisamente Flutuante (SP) no Jivago Lounge, local que enfatizou o interesse do
ali onde não parece por inteiro, mas apenas num fragmento de um Múltipla em ocupar outros espaços, alcançar novos públicos, en-
gesto... amoroso. fim, não perder de vista a multiplicidade, foco do encontro desde
seu surgimento. A dança aconteceu novamente na cidade múltipla
MULTIPLICIDADE. 06/2010. A quinta edição do Múltipla Dan- e variada: muitas danças em contraposição a “uma”. Mas, não
ça: Seminário Internacional de Dança Contemporânea, uma re- se trata de dispersão ilimitada, mas de número: quando a dança
alização da Aliança Francesa de Florianópolis, Santa Catarina, que se aprecia é uma e, ao mesmo tempo, múltipla. Mas, inde-
ocorreu de 25 a 29 de março de 2010, tendo como participantes pendentemente da ordem e da unidade que a dança receba, seja
aproximadamente 900 pessoas. As organizadoras, Marta Cesar da sensibilidade e do intelecto, o espectador ao se deparar com
e Jussara Xavier, mais uma vez se desdobraram para colocar em a multiplicidade de conhecimento acerca da dança apresentada
foco uma programação diversa e aguardada pelo público de dan- nas propostas, nos espetáculos, nas oficinas, nos debates e ensaios
ça catarinense. O Múltipla Dança, semelhante à web, pareceu-me abertos do Múltipla Dança, sentiu-se desafiado a buscar sentido
ser uma fonte de inúmeras informações. Mas, as sugestões de ra- para tal experiência em todo esse conteúdo sensível. Neste estado
pidez, exatidão, multiplicidade, consistência, leveza, visibilidade, aparentemente desconexo ou bruto, instaura uma experiência es-
descritas por Ítalo Calvino me ajudaram a traçar um caminho, tética da dança que convida: aprecie com compreensão.
provocando as notas aqui expressas. Neste caso, a ação de anotar
é destacada do saber como modelo, coisa para copiar, imitar. Ela NÓS. 30/05/2013. Afeto, diz respeito a tudo que nos afeta e que
é escritura, não memória; está na produção, diríamos, na criação nos faz existir, explicita Sandra Meyer ao participar juntamente
e não na representação. Os artistas e os trabalhos da dança catari- com  Andréa Bardawil e Alejandro Ahmed no Diálogo ocorrido
nense foram o destaque do seminário, indicou a curadora Jussara em 28 de maio no Múltipla Dança. Sandra Meyer, professora dou-
Xavier: Anderson Gonçalves (1964-2010) foi homenageado; houve tora do Ceart/Udesc, inicia a conversa reconhecendo que não há
o lançamento do livro As metáforas do corpo em cena, de Sandra como não  pensar uma dramaturgia do afeto. Menciona a noção
Meyer, e a estreia do documentário Ballet Desterro: contempora- de afeto de Espinosa que ajuda perceber como nossa existência
neidade na dança catarinense, dirigido pela curadora; o Cena 11 manifesta em nossos encontros com os outros, é permeada de re-
compartilhou seu processo criativo com o público por meio de lações impressas no afeto. E o espetáculo Nós apresentado a noite
uma ação no palco e de uma conversa no dia seguinte; em en- pela intérprete-criadora Erika Rosendo, concebido e dirigido por
saios abertos com discussão sobre dramaturgia, grupos e artistas Jussara Xavier, pode ser um belo exemplo das noções desveladas
de Florianópolis e Jaraguá do Sul conversaram com as professoras na conversa. Andréa Bardawil, coreógrafa e diretora da Cia. da
Christine Greiner e Sandra Meyer; foram promovidas atividades Arte Andanças, indaga com Espinosa: que afetos você é capaz de

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criar ao interagir com o mundo? Afetos ternos ou tristes? A lei- acolhimento. Assim, quando o diferente aparece o corpo não mais
tora e o leitor podem prestar atenção no afeto como intensidade. se retrai, mas se expande.
Pensar como seus afetos  aumentam a capacidade de agir ou nos
afetos que reduzem as ações ao nada. O vídeo que inicia o espetá- OBSERVAR. 27/05/2013. O Festival Internacional Múltipla Dança
culo Nós projeta ao mesmo tempo o rosto da artista, falando de está de volta. Dirigido por Marta Cesar e com curadoria compar-
seu processo criativo e sobre as suas performances em Joinville. tilhada com Jussara Xavier, mantém a sua principal característica
Erika narra que um certo dia ao dançar no centro da cidade, uma – a multiplicidade de possibilidades do espectador interagir com
voz vinda do outro lado da rua lembra a ela que o festival de dança o mundo da dança: espetáculos, diálogos, oficinas, vídeos, jam
já havia acabado. Ela, por sua vez pergunta ao transeunte se não session, residência, conferência-demonstração, ensaio aberto. No
era ali a capital da dança? Suas intervenções dançantes no centro transcorrer desta semana estarei aqui a escrever para ti amante ou
de Joinville tornam-se um jogo de afetações entre o que percebe quem sabe inimigo da dança. Ao ler estas palavras, vocês poderão
e o que é percebido. Convida assim o espectador a exercitar a to- reconhecer que elas guardam uma estreita relação com o trabalho
lerância estética forjada na escolha de se dedicar um tempo para atual da companhia de Dança Cena 11, intitulado Carta de amor
investigar o que não se gosta, como nos ensina Alejandro Ahmed, ao inimigo. E a 6ª edição do Múltipla ao homenagear os 20 anos
diretor e coreógrafo Grupo Cena 11. Em suas proposições, como do Cena 11, sugere que arrisquemos o estilo epistolar e tentamos
os espetáculos Violência, SIM, e Carta de amor ao inimigo, o co- estabelecer uma correspondência, palavra bonita, mas bem fora
reógrafo busca com esmero alterar a percepção do espectador ao de moda em um tempo de e-mails, Facebook, Twitter e Instagram.
problematizar a atitude contemplativa na relação público e dança- Por conseguinte, uma carta evoca uma exposição de si, sugere
rino e ao explorar, na perspectiva de Hannah Arendt, a noção de um reconhecimento do outro. E ao endereçado cabe a atenção, o
aparência como responsabilidade e não como crosta representativa acolhimento das palavras gestuais, dançadas, o envolvimento nas
na comunicação com o outro. Ele, que minutos antes estava senta- proposições, e quem sabe responder em seu tempo com sua pró-
do na plateia, aceitou o convite para dançar com Erika. Observo-o pria corporeidade palavras amistosas, intuitivas, reflexivas, inda-
parado no centro do palco, segurando  em suas mãos a roupa e os gativas. Dançar pode ser escrever uma ação amorosa – convencer
sapatos dela. Ao fundo a tela projetava as sombras dela a dançar com arte e beleza que vale o risco de estar vivo. Como Sherazade,
em meio à manchas multicoloridas, que se misturavam as sombras ao narrar as mil e uma noites, criar, inventar razões para amar a
dele ali presente e estático. Compartilho a teoria do convite de vida independente da possibilidade da morte à deriva, da violência
Wladimir Garcia que acena para a uma ética e uma estética em à espreita, ou da dor que se avizinha. Escrevemos todos  cartas de
torno do outro e das políticas de amizade e da hospitalidade. Ob- amor à vida que inspira nossa dança de cada dia.
servo que quando Erika Rosendo, convida um a um para dançar,
o seu convite efetua uma estética imprevisível e movente. E todos PERGUNTAS. 20/05/2014. “O que ou quem te move? Por quais
ali presentes  são esteticamente afetados. As noções e as filosofias forças você é tomado?”, perguntam Jussara Xavier e Marta Cesar,
que ancoram essas investigações dramatúrgicas são introduzidas curadoras do Múltipla Dança – Festival Internacional de Dança
na conversa não com o intuito de se fundar uma Filosofia da Dan- Contemporânea, premiado pela Funarte, que hoje volta à cena ca-
ça, mas, para experimentar, degustar a dança em sua filosofia pri- tarinense em seu sétimo ano. Ao sustentar a experimentação de
meira: o movimento em direção ao outro sustentado na ética do um eu que não vive só para si, mas também para os outros, o Múl-

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tipla esse ano oportuniza ao espectador a experiência biográfica nais de dança, vivida em busca da sustentação do próprio gesto,
na área da dança, seja ela escrita, dançada, falada ou filmada. E pode nos provocar a indagar acerca de uma existência livre e feliz.
talvez, o enigma que caberá o leitor e a leitora decifrarem será: o Eis a proposição: escreva, dance e pergunte: dançar para quem?
que faz a dança se entrelaçar com a vida ao ponto de desconhe-
cermos se é a vida dedicada à dança, ou se a dança que é dedicada QUEM PODE APRECIAR A DANÇA? 26/05/2009. A palavra apreciar
à própria vida? O filósofo grego Epicuro (341 a.C.) ensina que a está associada ao ato de dar valor a, ter em apreço, estimar, pre-
felicidade está sustentada em três elementos essenciais para a vida zar, ter consideração por. O Múltipla Dança está repleto de ativi-
humana: a liberdade, a vida analisada e a amizade. Pensar a felici- dades para o espectador vivenciar a experiência estética, que pode
dade na dança está em descobrir um tempo e um lugar para ela em ser um deleite para uns e desafios para outros, só não vale a in-
nosso corpo. Isso favorece investigar como o ato de dançar susten- diferença. Chega o mês de maio e a quarta edição do Seminário
ta a minha liberdade. O segundo elemento, uma vida analisada, Internacional de Dança Contemporânea propõe uma programa-
corresponde a ocupação de um campo perceptivo na dança para ção com o intuito de deixar na agenda cultural de Florianópolis
refletir sobre a própria existência. Por fim, a amizade, o encontro uma marca indelével. As organizadoras do evento, Marta Cesar e
inspirado pela dança explicita como quem dança partilha sua vida Jussara Xavier, convictas de que o encontro é de relevância para
com os outros. Vamos atentar para quem nos move. E o Múltipla a profissionalização da dança local, salientam na página de aber-
acerta ao homenagear Sandra Meyer Nunes. Dançarina, professo- tura do site (www.multipladanca.webnode.com): “Nosso convi-
ra, doutora, pesquisadora, crítica de dança, palavras insuficientes te é quase um apelo: aproveitem este tempo-espaço. Construam
para inventariar sua contribuição para a Dança em Santa Catari- conosco uma história que deseja manter a dança, possibilidade
na. Muitas são as funções que têm desempenhado para responder humana de conhecimento e comunicação, viva.” É atenta a esse
as perguntas feitas por Jussara Xavier no dia mundial da dança à convite desejoso de receptividade que busco oferecer aqui algu-
comunidade dos profissionais de dança: “Dançar? Para que estu- mas razões para que a pessoa que aprecia ou quer apreciar ou
dar dança? Para que ensinar dança? Para que uma faculdade de que atua na criação, interpretação, crítica dessa experiência tão
dança? Para que investir dinheiro em dança? Para que dançar?” peculiar que é a dança, participe, desfrute desse evento que resis-
E quem é afetado pela vida de Sandra Nunes, pode arriscar uma te brava e criativamente às intempéries econômicas, políticas e
resposta: para ser feliz! Pois, Sandra com sua amizade acolhe o culturais. Durante essa semana estarei colaborando com o Jornal
que é singular na pluralidade mundana, escreve para não esquecer Notícias do Dia, neste caderno Plural, comentando o Múltipla.
a quem se ama, e ensina que a dramaturgia de um corpo manifesta Vale salientar que esse espaço é compreendido pelos profissionais
uma estética e também uma ética. O Múltipla Dança, ao sobre- da área da dança de Florianópolis como um reconhecimento e
por diferentes práticas e discursos, privilegiando a aventura do incentivo ao trabalho do artista que em vários momentos de sua
conhecimento e a diferença como potencial instauradora de novas carreira não encontra um meio de interlocução com o público.
perspectivas, desafia manter viva a vontade de perguntar. E numa Então, aproveite e desperte a sua curiosidade para a diversidade de
atmosfera do jardim epicurista oferece para quem aprecia a dança, contextos, imagens, diálogos e dança. O Múltipla vai apresentar
encontros oportunos para cultivar as amizades e criar dança com uma série de atividades relacionadas ao Ano da França no Brasil,
liberdade, e diálogos para analisar a vida. Estarei por aqui nos com a presença de convidados franceses, como também do dan-
próximos dias para descrever, narrar como a vida dos profissio- çarino Pedro Rosa, brasileiro que reside em Rennes/França, que

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o público poderá conferir mesmo depois do Múltipla, inclusive rentes lugares da Ponta do Coral, sugerida na intervenção urbana,
uma mostra de documentários da dança contemporânea francesa. as dançarinas Diana Gilardenghi e Sandra Nunes, compõem com
Aguce sua percepção. Atente-se para um gesto sutil, o figurino, a um coral silencioso uma caminhada, a mostrar que nos movemos
iluminação, a cenografia dos distintos espetáculos de dança que dentro de uma realidade impregnada de um passado exuberante
ocorreram durante o Seminário. Veja, escute, cheire, prove, sabo- e de um futuro obscuro, revelado no contraste de cada passo do
reie, toque, perceba como essas sensações podem ser elementos da momento atual, pois, embora não se possa negar a beleza da pai-
composição coreográfica ao participar das aulas teóricas e práti- sagem, é necessário o uso de máscaras para não se intoxicar com
cas ministradas por Nathalie Pubellier (Paris/França). Esteja aber- o cheiro ao redor e, o uso de luvas para não se contaminar com
to para aprender. A dança contemporânea é uma oportunidade aquilo que está a alcance das mãos. Na noite de sábado, no teatro
para conhecermos novas possibilidades de comunicação em uma do Sesc Prainha, estreia no Múltipla o espetáculo Rec(L)usadx,
profusão de linguagens, tais como as disponibilizados no Lounge que se mostra como uma memória episódica dos eventos que es-
do Acervo Mariposa. Aprofunde seus conhecimentos acerca do cancaram a vulnerável condição feminina que deixa qualquer me-
vídeo dança ao participar da Mostra Sul Americana do Dança em nina amedrontada. Tendo como espaço de ensaio a sala de sua
Foco. Compreenda ao prestigiar os Diálogos como a ação política casa, a dançarina Elke Siedler compõe seu solo para guitarra em
e a economia afetam a dança, e como ocorre o processo individual Sol Maior, sua dança soçobra a plateia na fragilidade nua de ser
de criação que vai do corpo à cena. A dança é sempre um convite humana. O tecido vermelho que no início da cena desenha um
para a criatividade de ver movimentos comuns em contextos dis- círculo imperfeito no chão, em um tempo ritual, veste o corpo com
tintos e criar movimentos originais em lugares comuns. Mas isso requintada fatalidade e dor. A luz que inebria, de súbito estoura,
só tem graça se for compartilhado, a dança sem a sua presença abrindo os olhos do espectador que já não vê mais a dança, mais lê
não acontece, seu olhar interior e exterior é que sustenta o gesto no programa que: “A intervenção estética pela metáfora do exces-
do artista. Apreciar a dança demanda uma disposição de buscar so de derramamento de sangue expõe a urgência em ressignificar
compreender o como, o para onde e com quem, bem isso já é as- experiências relacionais intersubjetivas.” No círculo das memórias
sunto para outra notação. internas e externas proposto por Rui Moreira, na oficina Danças
Negras Contemporâneas, no Studio Afrika, localizado no Canto
REC(L)USADX. 31/05/2016. O lembrar e o esquecer nos tornam da Lagoa, na sexta-feira pela manhã, a simplicidade tem o seu
humanos, ensina as leituras de Paul Ricoeur. O tempo vivido em lugar garantido, a busca do prazer pela dança é questionada e am-
lutas, doenças, feridas, traumas cravam na memória corporal po- pliada pelo compromisso consigo e com o outro. Jussara Belchior,
voando-a de lembranças. A recordação, os graus de rememoração participante da oficina e integrante do Múltipla Escrita, descreve
vão pouco a pouco preparando a narração a ser escrita, dançada, que: “Compartilhar as sensações e reflexões advindas da prática é
e por que não gritada. Grito diante da plateia paciente a esperar um jeito de dilatar a memória. No início, Rui Moreira mencionou
o espetáculo começar… como provoca Olga Gutiérrez ao encerrar que o trabalho da memória contava com um pouco de imagina-
ontem à noite, no Ceart/Udesc, o Festival Internacional Múltipla ção, ao fim, a imaginação concretiza-se como uma experiência-
Dança, que neste ano apostou na ocupação de vários pontos da -convite da partilha. Essa experiência, de “danças negras contem-
cidade, alcançando assim um número aproximado de 1500 espec- porâneas” é, sobretudo, um chamado a refletir sobre as bagagens,
tadores. Como no sábado, dia 28 de maio, a contemplação de dife- os cruzamentos e as potências nas histórias dos corpos.” Homena-

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gear é também um ato de rememorar, nas palavras de Ana Luiza que ousam parar um minuto para ver aquela que trajava um ves-
Ciscato “receber uma homenagem é sempre muito bom. Reafirma tido preto com rendas e de alças, e seus pés calçados  com uma
uma trajetória e traz estímulo para a continuação da mesma. Um sandália de salto alto e fino, que desafiavam sorrateiramente a
festival que tem como objetivo a visualização da Pluralidade da gravidade, o esmalte vermelho das unhas se destacavam tanto nos
dança, homenageando um trabalho que busca a profissionalização pés como nas mãos. A cabeça era coberta com um capuz de couro
de bailarinos considerados com deficiência, mostra que um espaço preto, com orifícios nos olhos, nariz e boca. As pessoas passavam,
para dança inclusiva está sendo aberto.” Leitora e leitor, percebo olhavam, aproximavam, se afastavam. Chegam até comentar o
que vocês não se esqueceram que dançar é também um ato políti- uso da água e do dinheiro público. Uma menina buscava entender
co. E isso é memorável… com seu olhar sincero o drama ali proposto pelo casal, manifesto
na  ausência de comunicação.  Na hora do banho, escuto comen-
SENSÍVEL. 31/05/2013. “É sempre bom lembrar que um corpo tário: “mas não estão jogando água nela? Ah, agora estão”; Olho
está cheio de ar.” Altero a canção de Gilberto Gil para comen- o balde de água sendo jogado no corpo da dançarina encharcado.
tar os espetáculos de dança Transborda de Valeska Figueiredo, na Presenciar Um banho de água fria ali no calçadão, faz pensar que
noite de terça dia 28 e o Um banho de Água Fria de Elke Siedler, a negação da dor do outro não é uma falha intelectual, mas uma
no fim de tarde de quarta, dia 29, apresentados no Múltipla Dan- falha na sensibilidade. Espetáculos como os de Valeska e de Elke
ça. Valeska Figueiredo explora a sensação de não se conter às ex- podem nos auxiliar a exercitarmos a atenção sensível e habitarmos
periências circunscritas no cotidiano. Investiga o cheio e o vazio o próprio constrangimento de testemunharmos a dor do outro.
de si convidando o espectador a respirar junto,  gestar um gesto Percebermos como o ato de constranger e ser constrangido  opera
sustentado pelo som e pela luz. A sonoridade criada por Rogério na constituição da nossa própria fala e também do nosso silêncio.
Almeida favorece perceber com nitidez o rastro do deslocamento Atentar é um ato sutil e delicado. Pode ser um esforço profundo
sonoro vibrante e descontínuo. A luz de Irani Apolinário desenha compreender a si mesmo e essas pessoas que dançam num palco
com a sombra um cenário imaginário. Sutileza. Uma atenção deli- sem cenário ou no calçadão da Felipe Schmidt. Eis o exercício de
cada é o que se vai exigir do espectador. Procurar no corpo o ca- transbordamento ofertado pela alteridade, que aprofunda a noção
minho percorrido pelo ar inalado. Atentar para o que não é dito, de empatia, pois não exige que calcemos os sapatos do outro, mas
mas é dado pela expressão facial, pelos gestos, pelos movimentos que fiquemos descalços em sua presença.
do corpo, pela voz que surge do ato de respirar. Fiona Ross, pes-
quisadora sul-africana, observa a inter-relação entre as palavras e TEMPO. 27/05/2014. O Festival Internacional Múltipla Dança,
o silêncio, e constata como um pensamento criativo diante daquilo na tarde de terça-feira, iniciou-se com um diálogo entre o Alejan-
que se vê e se ouve contribui para novos modos de lidar com o con- dro Ahmed, Lilian Vilela e Denise Stutz, acerca da pesquisa bio-
flito e a diferença. Enquanto conversávamos no calçadão da Felipe gráfica em dança. No auditório do Centro de Desportos da UFSC,
Schmidt, demoramos alguns segundos para percebemos a ocupa- um público de estudantes, dançarinos, pesquisadores e professores
ção silenciosa da dançarina Elke Siedler e de Thiago Schmitz. A tiveram a oportunidade de ouvir, conversar sobre a articulação
performance que leva para o meio da rua as incertezas presentes da narrativa com o tempo e explorar como uma escrita biográfica
nas relações interpessoais. A vulnerabilidade e a falta de controle auxilia a dar forma à experiência humana. A pesquisadora Lilian
vividas intimamente entre quatro paredes são expostas a todos Vilela descreve seu processo de escrita biográfica sobre a dança-

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rina Denise Stutz, registrando uma intrincada teia textual entre um esperar para compreender. Para o corpo que dança, o instante
memória, corpo e escritura. A composição do diálogo coloca lado não é uma ficção, e sim, o ponto em que um gesto se acaba e um
a lado aquela que escreve a respeito da vida daquela que dança. outro começa.
E Denise Stutz, também presente na conversação, desvela que sua
história e sua memória estão presentes mais em seu corpo que UNIVERSAL. 03/06/2013. Como viver juntos? Recebo o e-mail: A
em suas palavras. O coreógrafo e dançarino Alejandro Ahmed, cidade em estado de Múltipla Dança. Belo modo de ocupar o es-
permite que sua trajetória de vida embaralhe-se com a da Com- paço público. Marta Cesar, coordenadora geral, agradece as par-
panhia de Dança Cena 11, busca apreender a biografia como co- cerias institucionais, representadas pelas professoras Vera Torres
municação de ideias do corpo presente no tempo e no mundo. Por da UFSC e Sandra Meyer da Udesc, e a curadoria compartilhada
conseguinte, a narrativa no contexto da dança expõe os eventos com Jussara Xavier, o apoio do Edital da CAIXA, dentre outros.
dentro de uma ordem particular e nos faz perguntar: como o cor- E agradeço aqui você, leitor e leitora que apreciaram ao seu modo
po lembra? Ao trazer à cena a biografia no contexto da dança, seja as proposições do Múltipla. E no abrir e no fechar dos olhos des-
ela escrita na carne, ou palavras verbalizadas, o Múltipla Dança crevo brevemente algumas atividades. Cubra os seus olhos com as
sugere o exercício de vasculharmos nossa atitude perceptiva e ten- mãos e conte até dez. E lá estamos todos nós, mães, pais, filhas e
tarmos identificar como o tempo afeta a nossa compreensão de filhos, acompanhando, rindo, cantando, dançando entrelaçando
nós mesmos. Essa busca da temporalidade ancorada na interroga- no corpo o passado, o presente e o futuro, por sugestão do espe-
ção prioriza a descrição da experiência vivida. Tal conhecimento táculo Entrelace do Teatro Xirê apresentado no Múltipla Dança.
incentiva a leitora e o leitor a contar diferentes estórias sobre si A plateia busca perceber espaços sutis de encontro e convivência
mesmo no transcorrer da vida. Surpreendentemente, a narrativa durante a performance coreografada e dirigida por Andrea Elias.
sobre a vida de cada um de nós mudará durante o tempo que es- No brincar entre crianças e adultos, entre cantos e parlendas mu-
tivermos vivos. O que se mantém, o que se modifica na existência, sicados por PC Castilho, identificamos nos passos das dançarinas
e no corpo, que cria a sensação dessa dança escorrendo entre os Andrea Elias, Mayara Costa, Tânia Ikeoka e o dançarino Heder
dedos do tempo vivido? Indagação essa que Alexandre Bhering, Magalhães, os lugares do corpo que eternizam o encontro com
Marcelo Lopes, Mônnica Emilio, Peter Mark, Vandré Vitorino, o outro na memória. E abrimos os olhos para contemplar as epi-
elenco da Companhia de dança Esther Weitzman, encorajou a pla- fanias visuais Partida, Marahope, O Regresso de Ulisses, e Os
teia a pensar ao apresentar a coreografia intitulada O Tempo do Tempos apresentadas por Andréa Bardawil e Alexandre Veras, na
Meio. Dirigido por Esther Weitzman, o espetáculo de abertura do sessão de videodança que celebra os 10 anos do Alpendre Casa
Múltipla enfatiza a valorização do movimento como um aconte- de Arte, Pesquisa e Produção. O olhar do espectador se aproxima
cimento único e inusitado, chamando atenção, por exemplo, para para explorar e compreender o percurso do movimento antes de
o instante entre o passo e o estalar dos dedos do dançarino, na ser dança, ao participar da Conferência-Demonstração resultante
composição do silêncio circunscrito na musicalidade de Jean Ja- do projeto Laboratório Corpo e Dança, coordenado por Jussa-
cques Lemêtre, no qual o tempo nunca passa. A pausa revestida ra Xavier, que enfatiza os processos de composição desenvolvi-
pela luminosidade impressionista de José Geraldo Furtado e as dos pela dançarina Daniela Alves com a experimentação Direção
transposições do movimento entre os corpos que ali no cenário de Múltipla Virtual; e pelo dançarino Lincon Soares, cuja pesquisa
Leo Bungarten são traduzidas na leveza e no vazio, descortinam parte da exaustão do corpo e do desequilíbrio em sua organiza-

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ção, para buscar modulações da aparência. O espetáculo Proibido tudante perguntava à Martha Graham (1894-1991) se ela achava
Elefantes, coreografado e dirigido por Clébio Oliveira, sugere uma que ele poderia ser um dançarino? Ela respondia: Se você tem dú-
experiência perceptiva para o espectador e lembra com Agnes Hel- vida, a resposta é não. E aconselhava: Somente embarque numa
ler: “quem não se liberta de seus preconceitos artísticos, científicos carreira como a dança se ela é um caminho que torne a vida mais
e políticos acaba fracassando, inclusive pessoalmente”. Quando o vívida para você e para os outros. Dançar é uma vocação ou uma
elenco da companhia Gira Dança composto por Álvaro Dantas, profissão? O Múltipla Dança contribui para aprofundar esse de-
Jânia Santos, Joselma Soares, Marconi Araújo, Rodrigo Minotti e bate na cena pública quando inclui na programação um espaço
Rozeane Oliveira, se coloca no palco descrevendo alternadamente para o dançarino aperfeiçoar o seu gesto enquanto artista, ao
os movimentos um do outro em um microfone, põe em evidência mesmo tempo que oferece diálogos acerca da profissionalização
como o que estamos a ver, também está a nos olhar. De modo que da dança tendo como tema as Políticas públicas e a Aprodança –
percebamos a diferença nos corpos que dançam, visíveis no peso e Associação dos Profissionais de Dança de Santa Catarina. Na
tamanho, nos excessos e nas faltas. E faz, também, perguntarmos: tarde de segunda-feira, a fala de Lisa Jaworski, como presiden-
como nós, com todas essas diferenças, podemos viver juntos? Mas, te dessa entidade informa sobre as ações que se tem realizado
antes que você tenha alguma ideia, pare e repare. Pergunto: conhe- com intuito de agregar os associados: um exemplo é a criação
ces o jogo das perguntas? Pois, o Múltipla Dança termina nesta do fórum de dança. Bia Mattar, representante da região sul no
semana com a Residência de João Fiadeiro (Portugal) e Fernanda Colegiado Setorial de Dança, vinculado ao MinC, traz infor-
Eugénio (Brasil), intitulada: Modo operativo AND, um modo de mes dos desdobramentos das ações do Plano Nacional de Dan-
relação composto do jogo das perguntas “como viver juntos?” e ça. Os relatos de Deivison Garcia, representante da entidade no
“como não ter uma ideia? Deixo-os agora, leitor e leitora, ao sabor Conselho Estadual da Cultura, tornam evidente a necessidade
dessas e outras indagações. de mais recursos para área da Dança. Suely Machado, com sua
experiência como diretora do Grupo de Dança Primeiro Ato, na
VOCAÇÃO E PROFISSÃO. 29/05/2013. Na manhã de segunda-feira, conversa, lembra que ao se colocar dançarinos no palco, estamos
dia 27 de maio, uma brisa fria no ar, o sol ainda se escondia detrás gerando empregos não só para aqueles que dançam, mas para
das nuvens, acompanhada com a pequena, nos deslocamos para o marceneiro que faz o cenário, a costureira que confecciona o
a Casa das Máquinas no centrinho da Lagoa, para observarmos figurino. Deve-se levar em conta  também editais diferenciados
a primeira atividade do Festival Internacional Múltipla Dança, para grupos iniciantes e grupos com muitos anos  de experiência.
a saber, a oficina Criação do Gesto. Chegamos lá, notamos os No final deste painel, ficamos com a questão sobre como chamar
participantes deitados no assoalho movendo-se de acordo com as o dançarino para participar desse diálogo? A vocação, nos pare-
instruções da bailarina e coreógrafa Suely Machado: “...Olha a ce no caso da dança, exige que se pratique não só o movimento
sua mão, foca a sua mão... deite-se como se tivesse deitado em sua no corpo singular, mas também exige-se praticar o movimento
cama. Calma. Calma, a gente não vai chegar  em lugar nenhum no corpo social, que inclui, dentre outras ações, associar-se a
com essa pressa. Perceba novamente a sua mão, o contato com uma entidade de profissionais da dança e perceber que dançar
o chão, perceba como vai usar a articulação, o lado que apoia e também é um ato político. Lições bem assimiladas e  praticadas
o lado que é apoiado...” Tornar-se um dançarino leva-se muito pelos dançarinos sul-africanos, lá onde você dança, com quem
tempo. Muitos anos de muita prática. Quando algum jovem es- você dança, e que tipo de dança você executa e, sua atitude frente

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à dança dirá alguma coisa sobre você, como uma pessoa política, atenção. Deveras, a improvisação proporciona uma experiência
bem como sobre você como artista. mais interativa com a dança que desvela algumas intuições acerca
desse tema instigante.
ZILÁ MUNIZ. Diz que um objeto está presente quando é vis-
to ou é dado a qualquer forma de intuição ou de conhecimento
imediato. O que é a presença na dança? Na tarde de quarta-feira
a coreógrafa Zilá Muniz (Florianópolis/SC) mediou o Diálogo en-
tre Ana Alonso (Florianópolis/SC) e Cristina Turdo (Argentina),
sobre a improvisação em seu modo espetacular, e comentam se a
improvisação seria uma dança não planejada, um espaço para o
risco, acaso e imprevisto; e quais seriam as consequências desta
escolha no impacto com a plateia. Um público composto por dan-
çarinas, coreógrafos, produtoras culturais, professoras e pesqui-
sadoras universitárias participantes do Múltipla Dança – Festival
Internacional de Dança Contemporânea, contribuíram para enri-
quecer o debate. A mediadora Zilá Muniz inicia o debate ao fazer
referência à composição instantânea como um processo presente
na dança contemporânea, e ao destacar sua natureza experimen-
tal. Esclarece que não se trata de um trabalho sem rigor, mas pelo
contrário, exige olhar crítico de quem dança, tão necessário para
não se correr o risco de não aprofundar na pesquisa do movimen-
to. Ana Alonso indaga “se é necessário buscar sempre o novo?”.
Ela percebe a improvisação como comunicação. Defende a impor-
tância da presença na cena, mais do que o movimento inovador.
Afirma o corpo como presença: o aqui e o agora. A improvisação
é um grande tema na vida para Cristina Turdo. Para a profes-
sora improvisação é sua vida. Um caminho de crescimento. Se a
arte não é crescimento não é arte. Apresenta a improvisação como
paradoxal e revolucionária. Ao improvisar, busca o suporte, um
lugar para voltar, uma âncora que assegure não nos perder nas
múltiplas possibilidades que esse processo propicia. Observa que
sem a censura de um juízo de certo e errado, as crianças são as
melhores improvisadoras. Noto que há na improvisação uma in-
teração de presença e ausência que merece ser investigada, tende-
mos enfatizar a presença na dança, mas a ausência também requer

132 133
CLÁUDIA MÜLLER é artista-etc com projetos de- DANÇANDO COMO ARTISTA-ETC.
senvolvidos em dança, performance e vídeo. Cláudia Müller
Investiga as poéticas e políticas do encontro,
as margens dos espaços tradicionalmente des-
tinados à arte, a crítica institucional e o binô-

E
mio visibilidade-invisibilidade nos processos nquanto rascunho este texto, faço uma pausa e reabro o
artísticos. Doutoranda e mestre em Artes pela livro que me acompanha do lado esquerdo da escrivaninha:
UERJ (2012). Professora do curso de Dança Leer es respirar es devenir do artista dinamarquês Olafur
da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Eliasson1. Na página 11, sublinho:
Atuou em companhias de dança em SP, RJ e
na Alemanha (1990-2000). Em 2000 começou Se eu fosse uma obra de arte, não me sentiria autossuficiente. [...]
a desenvolver seus próprios trabalhos, apre- seria uma rede de lugares, agentes e intenções inextricavelmente
sentados em festivais e centros de arte no Bra- conectados e sempre em um movimento correlacionado. Esta rede
sil (Palco Giratório, Panorama de Dança/RJ, consistiria em uma instalação experimental (aquilo que se cos-
Mostra Sesc de Artes/SP), Argentina (Festival tuma chamar “a obra de arte em si”), os visitantes ou usuários,
de Danza de Buenos Aires), Chile (Escena Do- o lugar onde se apresenta – o museu, a galeria de arte, a casa do
méstica, Festival UARCIS/Santiago), Colômbia colecionista, o espaço público etc -, o sistema de comunicação que
(Festival de Danza Contemporánea/Bogotá), rodeia a instalação e a sociedade. 2
Espanha (In-Presentable/Madrid, BAD/Bilbao,
La Laboral Escena/Gijón, ARTIUM/Vitoria), No fazer desse artista e no modo de funcionamento de seu
Marrocos (On Marche/Marraquexe), e Portu- estúdio (do qual participam dezenas de profissionais dos mais di-
gal (Festival Al Kantara/Lisboa), entre outros. versos campos da arte e da ciência), destacam-se o interesse pelas
Em 2017 fez parte da equipe de curadoria da relações entre os projetos desenvolvidos e o contexto onde se rea-
Bienal Sesc de Dança, sendo responsável pelas lizam ou são expostos, o desenvolvimento de atividades diversas
ações formativas do evento. que não se limitam à produção de obras, bem como as estreitas
conexões entre os trabalhos e o público. Seus projetos fundam-se,
sobretudo, em experiências relacionadas à exploração dos senti-

1 Olafur Eliasson (Copenhague, 1967) é artista visual. Seu trabalho caracteriza-se pela ex-
ploração de modos de percepção materializada em filmes, instalações, fotografias, vídeos
e esculturas em projetos realizados em locais diversos: galerias, museus, espaços públicos
e intervenções na arquitetura.
2 Olafur Eliasson, Leer es respirar es devenir: escritos de Olafur Eliasson. Barcelona: Edito-
rial Gustavo Gili, 2012, p. 11.

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dos e visam o diálogo com o público, convidando o espectador Quando um artista é artista em tempo integral, nós o chamare-
a construir conjuntamente a obra. Seu estúdio é uma espécie de mos de ‘artista-artista’; quando o artista questiona a natureza e
laboratório destinado não só a produzir ou instalar projetos de a função de seu papel como artista, escreveremos ‘artista-etc..’
arte e exposições, mas também a realizar pesquisas, publicações, (de modo que poderemos imaginar diversas categorias: artista-
workshops e projetos pedagógicos. No mesmo endereço, funciona -curador, artista-escritor, artista-ativista, artista-produtor, artis-
também, desde 2009, o Institut für Raumexperiment3, fundado ta-agenciador, artista-teórico, artista-terapeuta, artista-professor,
em parceria com Christina Werner e Eric Ellingsen, promovendo artista-químico etc.)
atividades e pesquisas relacionadas às práticas artísticas e educa-
ção experimental. A7 artista-etc. não se ocupa somente da produção de suas
Esses múltiplos interesses e colaborações, gerando uma atu- próprias obras (sem menosprezar, de forma alguma, a artista que
ação dinâmica e comprometida com seu entorno, evocam um ter- faz essa opção, o objetivo aqui é apenas apontar as diferenças).
mo do qual não sei se Eliasson já ouviu falar: artista-etc. Uma artista assim denominada cuida de arar a terra e plantar se-
mentes num terreno muito mais amplo que o pequeno jardim onde
seus trabalhos florescem. Seu desejo é imaginar e construir circui-
ARTISTA-ETC. tos férteis, gerar contextos e pontos de contato, tecendo possíveis
redes que engendrem possibilidades de existência, de visibilidade,
A próxima Documenta deveria ser curada por um artis- de debate e de construção de espaços para produções artísticas.
ta era o título do projeto-provocação, lançado, após a abertura A artista-etc. emite, portanto, discursos no plural e se afeta por
da Documenta 114 em 2003, pelo curador Jens Hoffman a uma êxitos e fracassos que não os seus.
série de artistas como Marina Abramovic, Daniel Buren, Liam A “atuação etc.” de Basbaum como artista, curador, pro-
Gillick, Tino Sehgal Alfredo Jaar, Laura Belem e Ricardo Bas- fessor, escritor e pesquisador foi, evidentemente, determinante na
baum, entre outros5. invenção da denominação. Entretanto, além desses motivos mais
A proposição artista-etc., desenvolvida por Basbaum em seu óbvios, os próprios modos de construir seu fazer, muitas vezes
texto-resposta intitulado “Eu amo os artistas-etc.”6, alimenta as perpassado por ações coletivas em oficinas, conversas, debates,
reflexões que quero desenvolver nas próximas páginas. textos, curadorias, publicações, na articulação de encontros e
ações com outros artistas, os espectadores e o circuito; contribuí-
ram para forjar o conceito artista-etc.
A artista-etc. está atenta aos diálogos, negociações e em-
3 Como professor da Universität der Kunste de Berlim, Eliasson inaugurou o instituto, bates com os múltiplos agentes do circuito de arte: o público, a
idealizando propostas e recebendo alunos em parceria com esta universidade. crítica, a curadora, o patrocinador, as instituições em suas múlti-
4 Documenta consiste em uma exposição de arte contemporânea que acontece a cada cin- plas formas e contextos (festivais, teatros, centros culturais, uni-
co anos na cidade de Kassel/Alemanha. A primeira Documenta foi idealizada pelo artista
e curador Arnold Bode em 1955.
5 The next Documenta should be curated by an artist (título original) consistia em convidar
31 artistas a comentar essa proposição. As respostas foram publicadas em livro homônimo. 7 O uso do termo artista-etc. no feminino é intencional e uma recusa ao automatismo do
6 Ricardo Basbaum, Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 167. uso dos substantivos majoritariamente no gênero masculino.

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versidades, congressos etc.). Nessas relações, procura articular e Em rotinas regidas por projetos, deslocamentos, viagens e horá-
defender os interesses de seu campo artístico e seus trabalhos (ar- rios maleáveis, o trabalho da artista é considerado, atualmente,
tísticos, pedagógicos, teóricos etc.). Sabe reconhecer o movimento exemplo para muitos outros setores produtivos. A criatividade, a
das diversas instâncias que deslocam trabalhos e práticas artís- liberdade e a autonomia preconizadas pelos trabalhadores da arte
ticas pra lá e pra cá no intuito de adequá-los a determinados es- e da cultura passaram a ser valorizadas em vários outros segmen-
paços, programações e/ou preferências institucionais. Ao assumir tos: da direção de empresas ao trabalho nas fábricas.
papeis diversos em sua atuação, a artista-etc. busca pensar e agir
de forma ampliada, compreendendo as implicações das relações
entre artista, circuito de arte e sociedade. A PRECARIZAÇÃO E O ARTISTA-ETC.
Atenção: esse particular afeto pela artista-etc., explicita-
do no texto de Basbaum, não se deve ao mero apreço por uma Do aprendizado voltado para o “sucesso” individual na
profissional atarefada – uma espécie de “faz tudo” da arte. Esse dança – permeado pela constante disputa em aulas e festivais10 –
termo não preconiza o compromisso com inúmeras atribuições à profissionalização – caracterizada por audições e pela luta por
em decorrência da precariedade da profissão e das dificuldades lugares de destaque nas companhias - impera a competição. Os
de sobrevivência da artista. Não se trata de glamourizar o dito números de identificação afixados nas roupas de ensaio a cada tes-
“empreendedorismo de si” – um tipo de Uber ou Rappi8 da arte te são marcas na vida de muitos dançarinos. Não se dá um passo
que aceita ou mesmo defende a própria exploração, enaltecendo-a sem receber avaliação. Quem atua na dança habitua-se com rapi-
através de discursos de superação. Seria um equívoco romantizar dez aos julgamentos constantes. E já não apenas nas audições para
o trabalho sem fim, sem garantias, sem pausas, sem nenhuma es- escolas ou grupos profissionais: os ambientes nos quais os colegas
pécie de contrato. Essa é uma diferenciação importante a fazer são quase sempre percebidos como adversários se multiplicaram
entre a artista-etc. e a artista-faz tudo9. A artista (que eu nomeio, na forma de submissão às curadorias, concorrência em editais,
num gesto provocativo, artista-faz tudo), sugere Paolo Virno, vem concursos para docência etc. etc.
sendo o modelo de grande parte das trabalhadoras e trabalhadores A busca incessante de oportunidades e espaços de visibili-
no pós-fordismo: opera numa zona de indistinção entre trabalho dade não cessa ao longo da carreira. Mesmo após muitos anos de
e vida em seu labor instável continuamente testado e exposto a profissão, nada está garantido. A ausência de políticas públicas
público, marcado pela insegurança, flexibilização e precariedade. para a cultura, a incipiência do circuito, a falta de perspectivas,
de continuidade dos projetos e de garantias mínimas para sobre-
vivência imprimem suas violentas cicatrizes. A sensação de reco-
8 O Rappi é um serviço de entregas em domicílio de produtos de supermercados, restau- meçar a cada ano ou a cada projeto acirra, ainda mais, a disputa.
rantes, farmácias, entre outros. Criado na Colômbia em 2015, alcançou rápida expansão
em todo o mundo. O Uber é uma empresa multinacional americana, prestadora de serviços
na área do transporte privado urbano, através de um aplicativo de transporte que permite
a busca por motoristas baseada na localização. Em ambos os casos, não há vínculos entre 10 Impressiona a quantidade de festivais de dança competitivos no país existentes ainda
entregadoras e empresa. Embora não trabalhem por conta própria, as funcionárias assu- hoje. O Festival de Dança de Joinville, modelo máximo desse tipo de empreendimento,
mem todos os riscos e as empresas se isentam de qualquer responsabilidade. é considerado o maior festival de dança do mundo em número de participantes e reúne,
9 Termo cunhado por mim mesma. atualmente, cerca de 6,5 mil bailarinas profissionais e amadoras.

138 139
Obviamente, a rivalidade não é privilégio da dança ou das áreas autorregulação do mercado, o comum é o autogoverno pelos cida-
artísticas. No entanto, a precariedade nas artes as tornam cam- dãos; mais propriedade exclusiva, o comum reivindica mais bens
pos, majoritariamente, de desagregação. comuns de posse e uso coletivo; onde o neoliberalismo diz mais
Imersos nesse cenário, no melhor estilo “farinha pouca, meu investimento de si, o comum é cuidado e corresponsabilidade...”.
pirão primeiro”11, como os artistas se envolvem na construção de Nesse sentido, explicita, o comum, “como relação, é o ‘entre’, é
um comum12 na dança? Como podem se deslocar da luta pelo pro- aquilo que produzimos entre todos, o que é de todos e ao mesmo
tagonismo para a construção de um corpo coletivo? tempo não é de ninguém. É outro regime de participação e de
Não tenho resposta. partilha13.
Arrisco que formar outras e outros artistas ajuda. Ser do-
cente em uma universidade pública vem dimensionando meu papel Nas diversas frentes artista-etc., ressalto a importância da
de artista-etc. por suscitar múltiplas perguntas: Para onde irão construção do comum através da partilha de tudo o que produzi-
esses alunos? O que farão? Como se profissionalizarão? Do que mos: trabalhos artísticos em suas diversas formas, pesquisas aca-
viverão? Como se alimentarão? dêmicas, organização de eventos, curadoria etc. Para quem faze-
Para responder a essas preocupações, preciso descobrir e mos? Com quem dividimos nosso fazer? Alimentamos apenas a
fabricar continuamente meios que me auxiliem na partilha de co- nós artistas, aos especialistas, aos intelectuais e aos nossos pares
nhecimentos, dúvidas e reflexões, alimentando e desafiando mi- ou acolhemos todo aquele que se aproxima e diz: “não entendo
nhas alunas e alunos. nada de dança”14.
Nossos fazeres, sob a perspectiva artista-etc., precisam de
público. Precisam ser públicos. E é, sobretudo, nas formas de par-
POR UMA ÉTICA DA PARTILHA tilha que percebemos a dimensão ética dos trabalhos artísticos.
Observando, há muitos anos, um entregador de farmácia
Sigo, consequentemente, uma “pergunta-guia”: Como con- que atravessava a rua de bicicleta com os medicamentos numa
tribuir para a construção de políticas do comum? Minha concep- cestinha, tomaram corpo algumas perguntas que me inquietavam:
ção de comum comunga com as reflexões do filósofo italiano An- Como aproximar a dança do espectador em seu cotidiano? Como
tonio Negri: levar em conta o olhar do público?
Dança Contemporânea em Domicílio, projeto criado entre
Onde a ordem neoliberal diz: mais competição, o comum é coo- 2004 e 2005, foi minha resposta a essas indagações. O trabalho
peração; mais independência, o comum é interdependência; mais é divulgado por meio de anúncios no programa de mão do festi-

11 Ditado popular para se referir a quem defende unicamente seu quinhão quando a quan- 13 Antonio Negri na conferência intitulada A constituição do comum realizada em 2005, cia
tidade não é suficiente para todos. no Palácio Capanema, no Rio de Janeiro.
12 Pela impossibilidade de me aprofundar em discussões sobre o comum neste texto, 14 A frase está entre aspas propositalmente. Discordo da afirmação absoluta de que um
recomendo a leitura das diversas acepções dos autores italianos Antonio Negri, Roberto espectador não habitual não entende nada de um trabalho artístico. Caberia um debate
Esposito e Paolo Virno. sobre o que significa ser entendedor ou não de artes que não me é possível aqui.

140 141
val ou espaço que o tenha programado. O produto anunciado é a Precisa-se público é uma ação artística na qual os especta-
entrega de dez minutos de dança contemporânea. A encomenda dores performam, dando concretude aos afetos16 despontados no
pressupõe um dançarino que realiza seu ofício, em qualquer local contato com as danças que assistem. A crítica que nos interessa
onde seja solicitado, entregando um bem não utilitário, uma mer- não é a profissional, nem necessariamente a especializada, mas a
cadoria não usual, cujo consumo está na fruição do espectador. que parte do espectador instigado a articular seu posicionamento
Atuando na contramão da obra de arte tradicional que exige diante, com e a partir de um trabalho de arte. Buscamos remexer
seu lugar sagrado e uma recepção silenciosa, Dança Contempo- a hierarquia frequentemente definida pelo discurso especializado:
rânea em Domicílio busca integrar as práticas artísticas ao coti- quem fala, quem pode falar, quem é autorizado a escrever com e
diano, perguntando-se como a arte pode fazer parte do dia a dia sobre trabalhos artísticos.
de qualquer cidadão, qual seu lugar e papel nos momentos mais Trabalho normal, estreado no fim de 2018, tem como mote
ordinários da vida. embrionário a pergunta: como realizar uma prática artística que
Em 2004 e 2005, enviei o material do trabalho para festivais seja, ao mesmo tempo, um “trabalho normal”? Instigava-me,
e espaços de arte. Poucos curadores se interessaram em programar como em várias outras criações, trazer para o cerne o que parece
essa proposição artística que não seria visível no espaço do teatro. marginal à obra: a construção do papel do artista no âmbito so-
A dificuldade inicial de circular com o trabalho me levou a ideali- cial, político e nas instituições artísticas; e as articulações entre
zar um vídeo para despedir-me dessa performance. artista, obra, instituição e sociedade. Trabalho normal dura, na
Em Fora de Campo (2007), é a ausência que dá visibilidade íntegra, 40h – propositalmente, o mesmo tempo de uma jorna-
a Dança Contemporânea em Domicílio. Como o título indica, o da de trabalho convencional. O projeto compõe-se de cinco ações
vídeo mostra unicamente o que se passa fora do campo de ação da (que acontecem uma em cada dia da semana) e cada uma delas se
obra. Em nenhum momento se assiste a uma bailarina dançando. prolonga por oito horas. Trabalho normal é a minha resposta a
Ao ver o vídeo, somos espectadores dos espectadores que recebem uma pergunta que comumente se faz a certos artistas: e trabalhar,
a dança em domicílio. Uma dança que só se dá a ver pelos gestos, assim, ‘normal’, você trabalha?
falas e olhares destes. Enxugo gelo, assopro uma montanha de açúcar, marco os
Sete anos mais tarde, atendendo a um convite do Semanas de 28.800 segundos de minha jornada de trabalho, choro ou perma-
Dança 2014 – evento promovido pelo Centro Cultural São Paulo - neço imóvel por oito horas. Esses são meus trabalhos em Trabalho
para realizar um trabalho artístico tendo o espectador como foco, Normal.
Clarissa Sacchelli e eu idealizamos a primeira versão de Precisa-se Uma funcionária da área de comunicação do Sesc Campi-
Público15. Nessa ação, convidamos o público a elaborar uma crítica nas, chora. Três senhoras, enquanto varrem a entrada da institui-
em qualquer formato (texto, desenho, imagem, áudio etc.) sobre al- ção, me perguntam: Você vai ficar aí por quantas horas? Igual
gum dos trabalhos artísticos incluídos na programação do evento.

16 Afetos são compreendidos aqui no sentido espinosista. Os afetos se referem ao modo


15 Esse projeto foi reinstalado, posteriormente, na Bienal de Dança do Sesc (Campinas, como um corpo é afetado por outro. Para Espinosa, a maneira como somos afetados pode
2015), no FIAC-Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia (Salvador, 2016) e na cida- diminuir ou aumentar a nossa vontade de agir.
de de Uberlândia por ocasião da mostra Sala Aberta UFU (2017).

142 143
à gente. - me relatam após minha resposta. O que é isso? O que As danças da artista-etc. complicam a vida, complicam o
você está fazendo? Espero que seu filho te deixe descansar quan- ambiente, complicam o campo no qual operam. Como não se sa-
do você chegar em casa, ouço. Uma moça que trabalha em outro tisfazem com definições prévias, não se sabe exatamente o que
setor da instituição me pede um abraço, retoma seu posto no escri- delas esperar. Assumem não só a forma de espetáculos, interven-
tório, volta depois de alguns minutos e me oferece uma flor. Uma ções e performances, mas também de aulas, teses de doutorado,
senhora me pergunta o que aconteceu. Explico, de forma simples, reuniões de curadoria, encontros pedagógicos, manifestações etc.
o decorrer das ações. Ela me responde: Mesmo assim, se precisar etc.etc. São danças que rejeitam definições permanentes e inven-
de mim, estou ali. Volto amanhã – uma outra me diz. tam operações diversas para se perguntarem sempre que formas de
Esse último comentário me remete ao diálogo entre dois vida estão concebendo.
amigos artistas: A dança da artista-etc. e a artista-etc. com suas danças se
– Como é o retorno do público? – diz o primeiro. envolvem na luta contra o senso comum e o entorpecimento. Tal-
– Eles voltam. vez o que mais temam seja a confirmação da catastrófica previsão
As relações – com e entre o público, os pares e os contextos – de Lygia Clark: “...ele (o artista) será o engenheiro dos lazeres do
são os nortes da artista-etc. Suas danças se fazem coisas públicas. futuro, atividade que em nada afeta o equilíbrio das estruturas
Suas danças se desenham a partir desses vínculos que pressupõem sociais.”18
iniciativas para, com todas essas esferas, imaginar possíveis comuns. Ninguém é menos artista por não se reconhecer artista-etc.

RETR ATO CONCISO DAS DANÇAS DA ARTISTA-ETC.

As danças da artista-etc. não são ensaiadas, necessaria-


mente, em espaços amplos, vazios e protegidos, reconhecidos
como “salas de dança”. São danças que também emergem em
ambientes imperfeitos, chãos pedregosos, espaços apertados,
campos abertos, solos encardidos17. Podem ocupar ruas, livros,
palcos, ambientes online, telas de cinema, salas de aula, folhas
de papel.
As danças da artista-etc. não medem esforços para man-
ter uma relação estreita com os espaços reais ou simbólicos onde
acontecem: seu contexto social, político e histórico.

17 Essa discussão é proposta por André Lepecki, “Planos de Composição”. In: Christine
Greiner, Cristina Espírito Santo e Sonia Sobral (orgs.), Criações e Conexões. São Paulo: Itaú 18 Lygia Clark apud Suely Rolnik, Arquivo para uma obra-acontecimento. Ativação da memó-
Cultural, 2010. ria corporal da poética de Lygia Clark e seu contexto. São Paulo: Sesc SP, 2011, p. 43.

14 4 145
LILIAN FREITAS VILELA é artista da dança, pes- HISTÓRIAS DE VIDA EM DANÇA
quisadora e professora. Possui graduação em Lilian Freitas Vilela
Dança (bacharelado e licenciatura), mestrado
na área de Educação Motora e doutorado em
Educação, todos pela Unicamp. Tem forma-
ção como Educadora do Movimento Somático O COMEÇO DA HISTÓRIA

Q
no programa Body-Mind Centering™ (BMC)
e especialização no Sistema Laban/Bartenieff uando criança gostava de escutar as histórias narradas
(FAV/RJ). Possui obras artísticas premiadas por minha avó materna Helena, histórias vindas de seu
por instituições de fomento tais como: MinC, potente imaginário de mulher goiana. Reparo assim, que
Funarte, SEC-SP e Secretaria da Cultura de meu interesse em conhecer histórias se estende desde a infância,
Campinas. Escreveu artigos em periódicos e abrange gerações e lugares diferentes nos quais morei e visitei. In-
livros, autora dos livros Metodologia SESI SP teressada nesta relação gerada entre as pessoas, ao redor de fatos
de Dança e Uma vida em Dança: Movimen- imaginados ou revividos pela memória, muitas vezes me perguntei
tos e percursos de Denise Stutz. Desde 2015 é sobre o momento em que os seres humanos começaram a contar
professora do Instituto de Artes da Unesp em histórias uns para os outros, e se essa característica seria própria
São Paulo. da cultura humana.
LILIAN.F.VILELA@UNESP.BR Ao ler o historiador italiano Carlo Ginzburg (1989), co-
LILIANFVILELA@GMAIL.COM nheci sua hipótese sobre a origem da narração: iniciada na pré-
-história e nascida numa sociedade de caçadores. Estes caçadores
ordenavam os fatos em uma sequência narrativa para os outros a
fim de transmitir um evento que esses não haviam testemunhado
diretamente. Com o trabalho de Ginzburg pude perceber a im-
portância da narrativa para a humanidade, ao saber que ela per-
siste em hábitos de diferentes culturas e abarca nossa capacidade
e desejo de falarmos sobre eventos passados, e criar memórias
com fatos e experiências vividas.
Essa produção da memória foi (e é) fundamental para o
aprendizado individual e coletivo, pois trata de um acervo de re-
ferências para a interpretação do presente e para a antecipação de
futuros possíveis. A narração de memórias contribui para a orien-
tação individual no mundo ao informar sobre pessoas, lugares e
coisas, influenciando crenças e comportamentos (BOYD, 2009).
Desde a pré-história até a atualidade, vivemos imersos em
narrativas sobre pessoas e acontecimentos, e há muitos anos na

146 147
existência humana, a dança, a narrativa e a ficção caminham de dos e silenciados dos arquivos e documentos oficiais nos relatos
mãos dadas. Como desde antes de tornar-me pesquisadora aca- da História.
dêmica já apreciava esta área, resolvi enveredar por este campo Em meu estudo, uma relação próxima foi construída com
em meu doutorado1, unindo dança, narrativas e ficção de si, ao a metodologia de tratar fatos não abordados nos documentos ofi-
construir um trabalho unindo estes elementos a partir do relato ciais de dança. Afinal, poucos se debruçam e escrevem especifica-
de história de vida artística 2 da bailarina Denise Stutz3. mente sobre os bailarinos. E me pergunto, quantas pessoas conhe-
Busquei uma maneira de poder criar com os dados, de cem histórias narradas pelos/dos/com corpos que dançam?
aprender com a experiência alheia, de buscar referências para A abordagem pela História Oral permitiu “a construção
interpretar o presente da dança contemporânea no meu país, em histórica provisória de versões e novas formas de pensar, sentir e
modos de viver da arte com diferentes padrões de comportamen- conhecer, explicitadas por entrevistas produzidas conjuntamente
to. Com o desejo de desvelar o presente pelo passado, a pesquisa pelo entrevistador e entrevistado” (ATAIDE, 2006, p. 314). Em
foi sendo delineada em seu próprio percurso. Fui uma pesquisa- meu caso, uma artista-pesquisadora, esta metodologia não apenas
dora ativa (PRADO et al, 2008 in SOUZA, 2008), me inscreven- serviu como procedimento de realização, mas era em si um propó-
do ao escrever a história, e ao buscar metodologias da História sito para pesquisar.
Oral como possibilidade criativa para elaborar um estudo multi- Durante o doutorado, busquei transformar, ou trazer pro-
disciplinar contemporâneo. cessos de criação para dentro dos modos de pesquisar, em um en-
A História Oral surgiu há muitos anos, em 1948, na Uni- trelaçamento no qual pesquisadora e corpo-sujeito da pesquisa (eu
versidade de Columbia, graças ao aparecimento do gravador e e Denise), revelávamos representações de nós mesmas e da realida-
da fita magnética de áudio (ATAIDE, 2006), e até os anos 1960 de. Não me interessava apenas coletar dados, e sim, a possibilida-
não havia causado nenhum impacto especial nos estudos histó- de de criar dados. Busquei conteúdos históricos de dança e recolhi
ricos e acadêmicos. Somente após os movimentos contestatórios materiais audiovisuais com registro coreográficos de obras artís-
da década de 1960, essa forma de pesquisar ganhou traços de ticas da trajetória de Denise e adotei procedimentos de rememo-
uma nova história, não tão convencional, que incluía os excluí- ração com o exercício de evocação de memórias4 (IZQUIERDO,
2002) durante a apreciação de vídeos dançados.
A evocação de memórias com a apreciação das obras teve a
intenção de que estas obras fossem (re) vistas pelo olhar do presen-
1 Doutorado intitulado: Uma vida em Dança: Movimentos e percursos de Denise Stutz, orien-
te, já que o propósito implicado “não era simplesmente restaura-
tado pela profa. Dra. Márcia Strazzacappa, finalizado em 2010, e realizado no Grupo Labo-
rarte- Laboratório de Corpo, Arte e Educação na Unicamp. ção do passado, mas também uma transformação do presente, tal
2 As narrativas de histórias de vida são fontes da biografia, gênero literário estabelecido que, o passado não fique o mesmo, mas seja, ele também, retoma-
em finais do século XVIII, muito difundido no campo das artes em geral.
3 Denise Stutz dançou no Grupo Corpo, na Lia Rodrigues Cia. de Danças, atuou no Cole-
tivo Improviso, na Cia. Brasileira de Mysterios e Novidades, em trabalhos colaborativos,
parcerias e criou solos de dança. Com uma vida dedicada à dança, desde a década de 1970 4 Não se tem certeza do que foi e de como ficou registrado na memória, apenas sabe-se
até os dias atuais, mostra em seu percurso diversos modos de fazer, adequações e trans- que nos lembramos de algo quando exercitamos a evocação de memórias, ou quando ela
formações estéticas nos diferentes períodos de sua atuação e das escolhas traçadas em é vivificada por fato externo, provavelmente uma situação muito semelhante a do apren-
sua própria trajetória pessoal. dizado original. (IZQUIERDO, 2002)

14 8 149
do e transformado” (GAGNEBIN, 1994, p. 17). Nestes encontros, marcas da colonização deixados por uma idealização do exterior
a apreciação dos vídeos de obras dançadas permitiu criar arquivos e do referencial estético europeu e norte-americano no campo da
orais gravados com depoimentos mais densos, espontâneos e in- dança cênica.
terativos, construindo entre pesquisadora e bailarina uma relação A escolha por ser uma bailarina a ser pesquisada também
empática estimulante para a reflexão. A escolha do material para trouxe um cruzamento com a minha própria escolha de vida: uma
rememoração se deu em interação entre ambas, com intuito de bailarina falando de outra, em uma relação de identidade e alte-
ficcionalizar um campo experimental de experiências, unindo mo- ridade constante na pesquisa, em ressonância dialógica entre os
mentos passados e presentes, atualizando sensações, afetos e fatos. papeis. A bailarina pesquisada se cria na pesquisa, e a pesqui-
Muitas pessoas me perguntaram o motivo propulsor da sadora que a cria, o faz para entender a si mesma no encontro
pesquisa biográfica. Uma pesquisa profunda com quatro anos de reverberado.
duração deve despertar uma motivação capaz de envolver a inves- Outra dimensão importante da pesquisa foi a perspectiva
tigação durante tão longo tempo. Analiso que minha motivação feminista, em que mulheres falam por si mesmas e interpretam
pelo campo biográfico, já revelado anteriormente, foi intensificada experiências por meio de seu próprio conhecimento (THOMAS,
no decorrer do ato de pesquisar, com a possibilidade de me tornar 1993). Com intento de examinar as forças sociais e culturais dos
coautora de memórias, uma fabricante de fatos, “manipuladora” discursos de poder que constroem nosso ser no mundo, a mate-
de tempos passados, com certa magia artesanal de ficcionalizar a rialidade da pesquisa reflete as intenções de compreender e tornar
realidade ou, de tornar fato um dado criado por nós mesmas5. possível as mudanças de discursos e seus narradores. Para trans-
Ao realizar esta pesquisa na Faculdade de Educação da Uni- mitir uma proposta feminista, o conhecimento do corpo, entendi-
camp, pretendia também deslocar o recorte histórico de obras e do no sentido de “memórias corporais”, deve ser incluído. São as
coreógrafos para uma bailarina como corpo-sujeito da pesquisa. memórias corporais que guardam as experiências de vida (SHA-
Essa escolha colocou a investigação sobre um engajamento políti- PIRO, 1998, p. 39) e na dança, as memórias do corpo são, em sua
co em tripé de apoio6: 1- pela escritura de alguém que se faz “clas- maioria, as histórias vindas de mulheres7.
se combatente” (BENJAMIN, 1994), a classe dos bailarinos nos Meu interesse em dança contemporânea também foi o de
quais a história grava suas inscrições e torna-se visível; 2- por uma escavar as referências históricas dentro do contexto brasileiro8,
perspectiva feminista, que requer de nós, mulheres, uma investi- não apartado das dominâncias estéticas europeias e norte-ame-
gação de nossas biografias individuais, revisitando eventos histó-
ricos e as relações de poder que modelaram e restringiram nossas
vidas (SHAPIRO, 1998); 3- por poder problematizar a dança con-
7 Um dos dados para essa constatação está no Censo do Ensino Superior, divulgado pelo
temporânea no contexto brasileiro já que, no Brasil, temos muitas Ministério da Educação, que registra ao longo da década de 1990, cerca de 4.000 alunos
e alunas matriculados no nível superior de dança no Brasil. Na região Sudeste está con-
centrado o maior número de vagas. As mulheres predominam nesse curso. Analisando as
matrículas do curso superior de dança, pode-se afirmar que a futura bailarina é do sexo
5 Neste caso, eu e Denise Stutz, pesquisadora e corpo-sujeito da pesquisa, respectiva- feminino, uma vez que em cada dez alunos, nove são mulheres (SEGNINI, 2013).
mente. 8 Com o recorte no sudeste brasileiro, local de minha trajetória e de Denise Stutz, visto a
6 Em referência ao tripé de sustentação dos arcos dos pés, muito utilizado como imagem vastidão deste país continental. A história da dança contemporânea no Brasil é recente,
de apoio para o movimento de bailarinos no aprendizado da dança. com os experimentos iniciais localizados na década de 1970.

150 151
ricana, visto que seria tarefa inexequível, mas pela compreensão Eu, durante todo este mergulho em percurso alheio, também revi-
das apropriações e relações antropofágicas reveladas no calor dos sitei minha formação: meus estudos, criações, temática, estética;
corpos tropicais. As dominâncias estéticas tão presentes no Brasil em aproximações e desencontros com as trajetórias de Denise. Seu
que podemos conferir pela declaração de Paschoal Carlos Magno mundo penetrou o meu e, neste múltiplo caleidoscópio, nós nos
para Renée Gumiel, depois de sua apresentação em Brasília, da transformamos com a atualização de fatos e afetos. Conhecendo
A Lenda do Rei Nagô, em 19639: Eu vi milhares de As bodas de seu percurso pude também rever o meu próprio.
Aurora e balés clássicos, e a única coisa brasileira foi apresentada Durante quatro anos, a pesquisa ganhou forma e volume,
por uma francesa. neste texto pretendo relatar algumas reverberações do tempo após
Nesse país mestiço (não tão cordial), nossas danças cênicas à conclusão, e trazer uma passagem vivida para mostrar parte de
foram elaboradas com o referencial técnico do balé e da dança um processo biográfico de investigação em dança.
moderna que chegaram pelos estrangeiros que decidiram ficar no
Brasil, os professores convidados para dar cursos aqui e pelos bra-
sileiros que deixaram o país e retornaram ensinando as técnicas MARIA, MARIA
aprendidas (GREINER, C., s/d).
Com esta mistura de códigos e acessos aliada à tradição oral “Nossas memórias são diferentes...”10
desta forma de arte, identificar fontes e referências da dança que São as reticências da fala que trago como lembrança do en-
estava sendo produzida no Brasil nunca foi simples. Saber como contro com Denise, em agosto de 2008. Ela havia assistido a es-
foram os contágios e as reverberações do que foi visto no corpo e treia de Breu, espetáculo do Grupo Corpo no Teatro Municipal
se revelou nas coreografias sempre se constitui em tarefa lenta e do Rio de Janeiro, e após a apresentação recebeu das mãos de
minuciosa. Rodrigo Pederneiras, seu livro biográfico Rodrigo Pederneiras e o
Neste tripé de apoio, revisitar as experiências vividas por De- Grupo Corpo. Assim que chegou em casa, Denise leu o livro com
nise pode funcionar como ponte para construir sentidos partilhá- a história contada por Rodrigo, escrita pelo jornalista Sérgio Reis.
veis entre a coletividade da dança, e com isso, diferentes modos de Ao ler, percebeu que suas memórias do período que dançaram
interpretar e atribuir sentido às questões que envolvem corpo, gê- Maria, Maria eram diferentes das memórias dele. Teria o tempo
nero, referências culturais e atuação cênica na contemporaneidade. as transformado ou teriam convivido histórias pessoais distintas
Denise Stutz atuou em companhias, coletivos artísticos, par- dentro de uma coletividade partilhada?
cerias e solos. Esqueceu e relembrou sua própria história algumas O texto literário oriundo de fontes biográficas é constru-
vezes durante a pesquisa, recriou fatos e recontextualizou outros. ído sobre aquilo que foi rememorado, ressignificado, transfor-
mado, alterado pelo tempo e a percepção dele. A leitura do
texto a surpreendeu, atiçou suas próprias lembranças e as atua-
9 As bodas de Aurora é um trecho da obra clássica A bela adormecida de Marius Petipa. Car- lizou para o presente, e o que havia vivido há mais de 20 anos.
los Magno foi dramaturgo e crítico teatral. Renée Gumiel (1913-2006) foi bailarina, coreó-
grafa e atriz francesa radicada no Brasil e considerada a precursora da dança moderna no
Brasil. A citação apresentada pertence ao século XX, período de formação da bailarina
Denise Stutz e, segundo Benjamin, a época está conservada na obra de uma vida e faz-se 10 Fala de Denise retirada de diário de campo de agosto de 2008.
necessário trazê-la junto para entender o curso da história.

152 153
Na juventude, Denise tinha o desejo de dançar em uma gran- argentino Oscar Araiz com a música brasileira em uma represen-
de companhia de dança, de estar-junto criando artisticamente tação do Brasil com a história de vida de duas Marias negras: a
entre amigos. Para ela, sua memória era de uma comunidade Maria, ex-escrava, e Maria Tatão, jovem que morreu aos 20 anos
artística “meio Hippie”, uma proposta colaborativa entre pares de idade.
que se envolviam na dança e entre si, em relacionamentos entre- O teatro dançado, musical ou dança dramática Maria, Ma-
cruzados entre afetividade e profissionalismo. Para ela, a união ria (Jornal O Globo, 07-04-1976) com plumas, santos católicos
do grupo havia sido feita pelos relacionamentos afetivos: eram e candomblé, foi definido como um marco “de novo posiciona-
todos amigos, Milton Nascimento, Oscar Araiz, os “Pedernei- mento em relação à dança por incorporar os temas populares à
ras”, as bailarinas... dança, retirando-a da postura elitista, ao mesmo tempo que uniu
Para Rodrigo, relatado em seu livro, a composição de Ma- de maneira feliz o texto ao balé” (Jornal Estado de Minas, 15-01-
ria, Maria foi pensada, planejada para fazer sucesso e atender os 1980)13.
anseios de brasilidade que o público desejava na época. Com aproximadamente dez anos de circulação, o espetáculo
consagrou a estreia do Grupo Corpo. Foi o primeiro espetáculo
A intenção para nossa estreia era criar um grande balé, uma su- brasileiro a se apresentar no Théâtre de la Ville em Paris, realizan-
perprodução que causasse impacto. Sabíamos que precisávamos do 18 apresentações lotadas. A música tema composta original-
de algo que marcasse a nossa chegada e decidimos convidar uma mente para o espetáculo por Milton Nascimento e Fernando Brant
equipe de peso, liderada pelo coreógrafo argentino Oscar Araiz, sobrevive atualizada até os dias de hoje.
Milton Nascimento e Fernando Brant (REIS, 2008, p. 45).
Maria, Maria,
Era o ano de 1976 e o ambiente de criação de Maria, Ma- É o som, é a cor, é o suor
ria estava cercado de censura e medos do regime militar instaura- É a dose mais forte e lenta
do no país desde 196411. Todas as obras artísticas passavam pela De uma gente que ri
aprovação da censura, e na dança deveriam ser apresentadas para Quando deve chorar
averiguação. Maria, Maria não só passou pela censura como se E não vive, apenas aguenta14
tornou um “mini emblema” (KATZ, 1995) do Brasil no exterior12.
Reuniu as misturas de códigos da dança moderna trazidos pelo Este marco brasileiro na dança, entre laços de união entre
popular e erudito, com misticismo cultural, atravessou montanhas
e mares. Dançar as músicas de Milton Nascimento era a tendência
11 A Ditadura militar no Brasil teve seu início com o golpe militar de 31 de março de 1964,
resultando no afastamento do Presidente da República, João Goulart, e tomando o poder
o Marechal Castelo Branco. O regime militar durou até a eleição de Tancredo Neves, em
1985. Os militares na época justificaram o golpe sob a alegação de que havia uma ameaça 13 Nesse período os artigos de jornais não eram necessariamente assinados por seus au-
comunista no país. tores, o que nos impede de conhecer a identidade e história dos críticos de arte nos textos
12 Para colocar em relação com produções internacionais podemos considerar que em apresentados.
1976, estreou Einstein on the beach, de Robert Wilson e Philip Glass, em 1977, Kazuo Ohno 14 Trecho da letra da música Maria, Maria, composição de Milton Nascimento e Fernando
dançou La Argentina, e em 1978, Pina Bausch criou Café Muller. Brant, 1976.

15 4 155
mais engajada daquele momento, e essa proposta reverberou tam- Conheci Denise Stutz um ano depois, como professora de
bém pelo interior de Minas Gerais, no desejo de brasilidade dos balé em um curso intensivo. Nós nos reencontramos muitos anos
corpos que dançavam. depois no Festival Internacional de Dança de Araraquara, ela apre-
Na década de 1980, eu fazia aulas de dança no Conservató- sentava Absolutamente Só e eu, Rodapé com a Balangandança
rio Municipal de Poços de Caldas, em Minas Gerais. Minha pro- Cia16 . Mais adiante, nos revimos em Campinas, em um curso de
fessora de dança chamava-se Rosana, era uma mulher negra alta, BMC™17, durante o Feverestival18. Nesse encontro, marcamos
de pernas grossas e braços fortes. Seu biótipo não era o que tradi- para conversar sobre o Coletivo Improviso e minha pesquisa de
cionalmente se encaixava no estereótipo de professores de dança: doutorado, e ainda alguns anos depois sentamos juntas para assis-
era grande, musculosa e mantinha seus cabelos crespos soltos na tir à gravação filmada de Maria, Maria19.
altura do ombro. Fazia parte de meu doutorado a investigação de histórias
Nas aulas, gostava de ouvir e dançar músicas de Milton dançadas e a rememoração de fatos. Sentar com Denise, para as-
Nascimento. Lembro de uma sequência em cânone que realizáva- sistir uma cópia gravada do espetáculo Maria, Maria causou emo-
mos atravessando o palco alternando as diagonais do espaço cêni- ções diversas. Para mim, era o primeiro contato com a obra, re-
co ao som de Travessia. Nunca havia assistido Maria, Maria, mas, cheado de impressões imaginadas do que poderia ser; para Denise,
de certa forma, a produção (e tudo que essa carregava de códigos um reencontro com as imagens de sua juventude.
e estética) havia soprado nas Gerais para dentro das salas de aula, Denise cantava as músicas do espetáculo Decor, eu também
ao significar, ainda que de modo ingênuo, um novo posicionamen- as conhecia muito. Denise ficou com as mãos úmidas e o coração
to em relação à dança cênica. batendo forte, me mostrava isto no corpo e se admirava em cons-
Na tradição oral da dança, e na época sem internet, YouTube tatar fisicamente como as lembranças ainda estavam encarnadas
ou Google, os compartilhamentos eram ventanias que nos chega- em sua fisicalidade. Eu fiquei emocionada em estar participando
vam sem que soubéssemos por quem e de onde, mas chegavam e daquele momento. No quarto, em frente ao computador, estáva-
contagiavam corpos, movimentos e comportamentos. Dancei ao mos nós duas paradas e um tempo estendido de muitos e muitos
som de Milton Nascimento por alguns anos de minha vida sem anos trazidos por giros, saias brancas, coroas e canções.
saber de qualquer relação com o sucesso de Maria, Maria do Gru- Os sentimentos eram muito distintos, mas de certa forma,
po Corpo. Como aluna, com 15 anos, produzimos um espetáculo estávamos as duas revisitando passados, aparentemente sem co-
chamado Brasil Exportação, com músicas de Milton Nascimento,
e rodamos estradas apresentando no sul de Minas com uma Kom-
bi branca. Logo depois, decidi me tornar bailarina profissional,
mudei com 17 anos para Belo Horizonte, onde fui estudar na Es- 16 Fui uma das fundadoras e bailarina da Balangandança Cia. por 8 anos.
cola de Dança Corpo15. 17 BMC™ é a sigla para Body-Mind Centering, uma abordagem somática criada por Bonnie
Brainbridge Cohen muito utilizada como prática investigativa expressiva por bailarinos e
artistas na área de artes cênicas.
18 Feverestival é o Festival de Teatro de Campinas que acontece no mês de fevereiro.
15 A família Pederneiras inaugurou sua própria escola de dança que gestou a criação do Desde sua primeira edição em 2004, organiza cursos e apresentações nacionais e interna-
grupo Corpo, no ano de 1975. A Escola de dança existe até os dias atuais, no bairro das cionais na área de artes cênicas.
Mangabeiras em Belo Horizonte, com o nome de Corpo Escola de dança. 19 Esse encontro de rememoração com Maria, Maria aconteceu em 2009.

156 157
nexão, porém interligados. Assistimos do começo ao fim sentadas existem pesquisas históricas, para iluminar nossa ação no mundo
em frente à tela. Nós rimos juntas, silenciamos e cantamos. ao nos projetarmos sobre o que foi vivido.
Maria, Maria acabava de entrar também para minha histó- Segundo Ivan Izquierdo (2004, p. 22), “cada um de nós é
ria naquele dia. quem é porque tem suas próprias memórias”, e para mim, hoje,
cada um pode se tornar aquilo que projetar para seu futuro a par-
tir das múltiplas percepções do que foi vivido.
CONCLUSÕES

Meu interesse pelo campo biográfico cresceu ainda mais


após a finalização do doutorado, ao constatar que abordagens REFERÊNCIAS
biográficas possibilitam a produção de conhecimento pela história
vivida. E, por certificar que, no campo da pesquisa biográfica, • ATAIDE, Yara Dulce Bandeira. História Oral e construção
“todas as vidas são importantes e merecedoras de atenção” (DE- da história de vida. In SOUZA & ABRAHÃO (orgs.) Tem-
MARTINI, 2008, p. 46), um certo alento para aqueles que se sen- pos, narrativas e ficções: a invenção de si. Porto Alegre: EDI-
tem “outsiders” da história formal. PUCRS, 2006.
Denise me ensinou com sua história encarnada: o poder da • BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra
resiliência, do movimento de busca pelos seus próprios interesses de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e política: ensaios
sem cair na tentação de permanecer na “zona de conforto” dos sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense,
locais estabelecidos. Foi perseverante em abraçar o inusitado em 1994, p. 197-221.
cada mudança (dançou vários anos com o Grupo Corpo, vários • BOYD, Brian. On the origin of stories. 1. ed. Cambridge:
anos com Lia Rodrigues Cia. de Danças, dançou solos, fez parce- Harvard University Press, 2009. 540p.
rias e colaborações diversas), e com elas me fez repensar a emanci- • GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em W. Ben-
pação da bailarina em novas formas de produzir danças. jamin. São Paulo: Editora Perspectiva: FAPESP: Campinas,
O que aprendi com sua história de dança vai além de dados SP: Editora da Unicamp, 1994. – Coleção Estudos: 142.
da informação de fatos, nomes, períodos, tendências e estéticas. • GINZBRUG, C. Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e his-
Aprendi que a história é viva, multifacetada e construída também tória. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
pelo seu registro. Aprendi que as verdades são mutantes e variá- • GREINER, Christine. Revista Dançar 10 anos. São Paulo:
veis, dependem da perspectiva vivida pelo narrador, do momento Dançar editorial, s/d.
que as narrações foram coletadas e o modo como foram registra- • IZQUIERDO, Iván. Memória. Porto Alegre: Artmed, 2002.
das. O registro dá contorno nas formas elásticas da história vivida • _______________. A arte de esquecer: cérebro, memória e
e encarnada nos corpos de dançarinos. esquecimento. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2004.
Aprendi que as narrações têm a possibilidade de modificar • JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação.
nossas ideias e conceitos sobre o que foi vivido, ressignificando o São Paulo: Cortez, 2004.
presente e modificando o que está por vir. É o futuro que nos inte- • KATZ, Helena (texto). Grupo Corpo - Companhia de dança.
ressa quando lidamos com as memórias. É “para o que virá” que Rio de Janeiro: Salamandra, 1995.

158 159
• MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. 5a
edição. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
• PRADO, Guilherme V. T. et al. GEPEC: da educação con-
tinuada ao desenvolvimento pessoal e profissional em uma
perspectiva narrativa. IN SOUZA, Elizeu et al. (orgs.) Pesqui-
sa (auto) biográfica e práticas de formação. Vol. 04. Natal:
EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008.
• REIS, Sérgio Rodrigo. Rodrigo Pederneiras e o Grupo Corpo.
Coleção Aplauso Dança. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008.
• SEGNINI, Liliana Rolfsen Petrilli. Formação profissional
de artistas: além dos números, experiências vividas. Artigo
ComCiência no 148. Campinas mai/2013.
• SHAPIRO, Sherry. Em direção a professores transformado-
res: perspectivas feminista e crítica no ensino da dança. Pro-
-posições, Campinas, v. 9, n. 2, p. 35-53, jun. 1998.
• THOMAS, H. Do you want to join the dance? Postmoder-
nism/Poststructuralism, the body, and dance. In: MORRIS,
G. (Org.). Moving words: re-writing dance. Londres/New
York: Routledge, 1996. p. 63-87.
• VILELA, Lilian F. Uma vida em Dança: Movimentos e Per-
cursos de Denise Stutz. São Paulo: Annablume editora, 2013.

160 161
ANDRÉA C. SCANSANI – Professora do curso de O CORPO COMO MOR ADA DO TEMPO
Cinema da Universidade Federal de Santa Ca- Andréa C. Scansani
tarina (UFSC) e coordenadora do grupo de
pesquisa Fotocrias; doutora pelo programa
em Meios e Processos Audiovisuais da ECA/
USP com período sanduíche (bolsista CA- Ora, a Dança engendra toda uma plástica: o prazer de
PES) no Institute du recherche sur le cinema dançar irradia ao seu redor o prazer de ver dançar
et l’audiovisuel da Sorbonne Nouvelle/Paris 3; _Paul Valéry
mestre em Cinema pelo Instituto de Artes da
Unicamp; especializada em Fotografia Cinema-
tográfica pela Academia de Cinema e Drama de IMAGEM E CORPO
Budapeste/Hungria; graduada em Cinema com

C
especialização em Fotografia Cinematográfica hamado por Andrei Levinson (1887-1933) de filósofo da
pela ECA/USP. Área de pesquisa e atuação: dança, Paul Valéry (1871-1945) dedicou parte de sua vas-
teoria do cinema e da imagem, cinematografia, ta obra à sua apreciação. São seus os textos A alma e a
processos foto-cinematográficos. dança, Filosofia da dança e Degas dança desenho (publicados em
DARACA1@GMAIL.COM 1921, 1936 e 1938, respectivamente). Menos impressionado com
as complexidades do desenrolar de passos e gestos, Valéry dia-
loga com a dança através dos mistérios que emanam dos corpos
em movimento e, a partir de uma conexão, segundo ele, volátil,
empenha-se em sondar suas potencialidades no desenvolvimento
do pensamento de sua, por quê não dizer, filosofia. Quando o po-
eta escreve “Ora, a Dança engendra toda uma plástica: o prazer
de dançar irradia ao seu redor o prazer de ver dançar” (2012, p.
30), ele nos coloca frente aos processos de composição, decompo-
sição e recomposição dos corpos em movimentos que formariam,
a seu ver, ornamentos de duração – dados pelo ritmo dos traços
desenhados no espaço –, e ornamentos de extensão - criados a
partir da repetição desses mesmos traços no tempo. Ao colocar a
duração (tempo) e a extensão (espaço) como elementos inerentes
à dança e à observação da dança, Valéry expande os corpos que
dançam e nos chama a atenção para a materialidade pulsante dos
músculos no ar que ressoa e se faz sentir nos corpos dos especta-
dores. A própria ação de observar reverbera imagens em nossas
mentes e estas ondas de imagens (sempre carregadas de tempo)

162 163
acionam outras sensações que expandem o ato de olhar para todo MOVIMENTO E PAUSA
o corpo. “As imagens exteriores influem sobre a imagem que cha-
mo meu corpo: elas lhe transmitem movimento. [...] este corpo in- “Como pode uma imagem carregar-se de tempo?”, indaga
flui sobre as imagens exteriores: ele lhes restitui movimento. Meu Giorgio Agamben (1942 – ) em Ninfas: uma reflexão sobre a na-
corpo é, portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem tureza da imagem (2012) baseada no painel homônimo de número
que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movi- 46, constituinte do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg2. O autor
mento” (BERGSON, 1999, p. 14). (que também aproxima tempo, dança e imagem), na tentativa de
Se pensarmos o corpo como imagem, tal como proposto por esboçar uma resposta a tal pergunta, inicia seu percurso através
Henri Bergson em Matéria e memória (publicado pela primeira do Tratado da arte de bailar e dançar3 (ca. 1455) do coreógra-
vez em 1896), veremos que a associação feita entre os pensamen- fo renascentista Domenico de Piacenza, onde esse enumera seis
tos do poeta e os do filósofo1 parece oportuna. E a partir do ca- elementos fundamentais da arte da dança, sendo a fantasmata o
minho intrincado entre imagens que transmitem e/ou restituem elemento “absolutamente central”:
movimento e onde a duração se faz presente no desenho que os
corpos esboçam no espaço, podemos pensar outro tipo de corpo: Digo a ti, que quer aprender o ofício, é necessário “dançar por
o corpo fílmico. Um corpo constituído por imagens (e sons), cuja fantasmata”, e nota que fantasmata é uma presteza corporal [...]
impressão de movimento oferece a quem o assiste, outros tipos de “parando de vez em quando como se tivesse visto a cabeça da
ornamentos de duração, outras formas temporais. Portanto, nos- medusa [...] isto é, uma vez feito o movimento, sê todo de pedra
so percurso nas próximas páginas têm como meta pensar a dan- naquele instante, e no instante seguinte cria asas como o falcão
ça como ondas corporais de imagens em movimento ao mesmo que tenha se movido pela fome”.
tempo em que olharemos para o cinema como uma dança entre
corpos que filmam, corpos filmados e o próprio corpo fílmico ma- Segundo Agamben o termo fantasmata é usado por Aristó-
terializado em película (ou dígitos) que quando projetado afeta teles para pensar a conexão entre tempo, memória e imaginação,
os corpos que os assiste tal qual os espectadores extasiados pela pois apenas os seres que percebem o tempo, podem recordar. E para
dança como aponta o poeta. recordar, para perceber o tempo, a imaginação se faz necessária. “A
memória, segundo o pensador grego, não é possível sem imagens
(sem ‘fantasmata’). E essas imagens, acrescenta, podem chegar a
mover o corpo” (AGAMBEN, 2004). Desta forma, a fantasmata

1 Como não faz parte de nossos objetivos nos aprofundarmos nas relações entre Paul 2 Para outros desdobramentos sobre a obra de Aby Warburg (1866-1929) e sua relação
Valéry e Henri Bergson, recomendamos a leitura da obra que inaugura uma reflexão sobre com o cinema ver SCANSANI, 2019.
esta aproximação: Paul Valéry de Albert Thibaudet, Paris: Grasset, 1923 e também o ótimo 3 O título aqui mencionado é o utilizado por Agamben (2012). Segundo PONTREMOLI
artigo de Judith Robinson que apresenta as críticas do próprio Valéry sobre essa influência: apud FERNÁNDEZ, 2013, p. 40, a obra original é duplamente nomeada sendo o primeiro
“Valéry, critique de Bergson”. In Cahiers de l’Association internationale des études françaises, nome em italiano: De la arte di ballare et danzare; e o segundo em latim: De arte saltandi et
1965, n. 17, p. 203-215, doi : https://doi.org/10.3406/caief.1965.2288 choreas ducendi, sendo esse último o mais utilizado.

16 4 165
seria uma espécie de pausa dinâmica atrelada não apenas à imagi- nômeno phi em combinação com o movimento beta)5 para a qual
nação (às imagens) mas repleta de movimento latente. Sendo assim, o intervalo é absolutamente imprescindível. Todos os mecanismos
a proposta de abordar a dança como imagem ou a imagem como proto-cinematográficos praticaram esse conhecimento mesmo
um corpo que dança, estaria na latência de seu movimento, em sua quando a ciência ainda apostava na persistência retiniana como o
vital pausa dinâmica: “A dança [...] é para Domenico, [...] uma com- único elemento responsável por nossa capacidade de acompanhar
posição dos fantasmas - das imagens - [...]. O verdadeiro lugar do visualmente o movimento. A apreensão do movimento pelo olho
dançarino não está no corpo e em seu movimento, mas na imagem – ou pela câmera – necessita da pausa. A dança da película cine-
[...] como pausa não imóvel, carregada, ao mesmo tempo, de memó- matográfica, no passo de vinte e quatro quadros por segundo ou o
ria e de energia dinâmica” (AGAMBEN, 2012, p. 23-25). movimento dos fótons varrendo o sensor eletrônico de uma câme-
Sendo assim, a fantasmata corrobora com a ideia de que ra, pixel a pixel, só é capaz de produzir imagens discerníveis como
a imagem encerra em si uma pausa dinâmica.4 Essa imobilidade semelhantes àquelas vistas pelo olho se efetuar pausas de duração
apenas aparente abriga desde imperceptíveis movimentos físicos constante nos intervalos de seu movimento. Portanto, a formação
em seus componentes materiais a mobilizações da memória, asso- da imagem cinematográfica depende do movimento e também do
ciações de formas, signos e sentimentos que se cruzam no tempo. absoluto repouso; da observação e da latência; da continuidade e
É sabido, por exemplo, que a imagem cinematográfica é composta da descontinuidade. É o que o cineasta Jean Epstein (1897-1953)
por imagens fixas cuja origem remonta à fotografia. Todo meca- problematiza de maneira exaustiva em seu capítulo “O quiproquó
nismo de retenção da imagem cinematográfica pressupõe um ou do contínuo e do descontínuo”, escrito originalmente em 1946, em
mais movimentos intercalados a momentos de extrema fixidez do A inteligência de uma máquina (2015):
suporte. Algo semelhante ocorre em nossa visão, onde a sensação
de movimento é causada por uma sucessão de imagens fixas (fe- Certas análises da luz fazem aparecer uma estrutura granular,
descontínua. [...]. Outros fenômenos luminosos só se explicam
admitindo que a luz é, não uma descontinuidade de projéteis, se-
não um fluxo ininterrupto de ondas. A mecânica ondulatória não
4 Uma outra maneira de pensar a pausa dinâmica - que foge ao escopo deste texto mas
que, no entanto, pode contribuir para o aprofundamento da questão - encontra-se no
chega a dissipar totalmente esta incompreensível contradição, ao
conceito de dialética na imobilidade de Walter Benjamin (1892-1940) [quem, para Theodor supor em um raio luminoso uma natureza dupla, imaterialmente
Adorno (1903-1969), é possuidor do ‘olhar de Medusa’]: “Não é que o passado lance luz contínua e materialmente descontínua, formada por um corpús-
sobre o presente ou que o presente lance luz sobre o passado; mas a imagem é o ponto culo e por uma onda piloto6 [...]. Diante de um problema insolú-
em que o ocorrido encontra, num lampejo, o agora formando uma constelação. Em outras
palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com
o passado é puramente temporal, contínua, a relação do ocorrido com o agora é dialética:
não é progressão, mas imagem, repentinamente emergente” (Benjamin, 1999, p. 462 [N2a, 5 Fenômeno descrito pela primeira vez por Max Wertheimer (1880-1943), um dos funda-
3], tradução nossa). dores da Teoria da Gestalt, em seu artigo Experimental Studies on the Perception of Motion
Original inglês: “It’s not that what is past casts its light on what is present, or what is present (1912).
its light on what is past; rather, image is that wherein what has been comes together in a ash 6 Em artigo publicado em março de 2015 pela Nature Communications temos, pela primeira
with the now to form a constellation. In other words, image is dialectics at a standstill. For vez, uma única imagem da luz como partícula e onda. Disponível em:
while the relation of the present to the past is a purely temporal, continuous one, the relation http://www.nature.com/ncomms/2015/150302/ncomms7407/full/ncomms7407.html,
of what has been to the now is dialectical: is not progression but image, suddenly emergent.” acesso em maio 2020.

166 167
vel, diante de uma contradição inconciliável, com frequência há uma espécie de embriaguez que vai do langor ao delírio, de uma
motivos para suspeitar que, na realidade, não há nem problema espécie de abandono hipnótico a uma espécie de furor.” (VALÉRY,
nem contradição. O cinematógrafo nos indica que o contínuo e 2012 p. 29). O estado da dança, nas palavras de Paul Valéry, é
o descontínuo, o repouso e o movimento, longe de serem duas criado a partir desta dupla via entre a hipnose e o delírio, entre o
formas incompatíveis de realidade, são duas formas de irrealida- transe e a atenção plena, onde nem o repouso nem o movimento
de facilmente intercambiáveis, dois destes ‘fantasmas do espírito’ podem se expressar isoladamente, pois a dança é da ordem da res-
[...]. Não há nada de excludente entre elas como não há entre as sonância, da reverberação, da vibração. No afã de descortinar os
cores de um disco em repouso e o branco que forma este mesmo mistérios dos movimentos, os estudos proto-cinematográficos de
disco em rotação. Contínuo e descontínuo, cor e branco tomam Étienne-Jules Marey (1830-1904) trazem visibilidade aos impulsos
alternadamente o papel de realidade (EPSTEIN, 2015, p. 19-20, dos corpos e suas vibrações, através da captura dos desenhos for-
tradução e grifo nossos). mados por seus trajetos, via de regra, curvilíneos (figura 1):

Se a pausa contém o movimento e o movimento é composto


de pausa dinâmica, o corpo que dança (quer seja ele um corpo
humano ou um corpo fílmico) carrega em suas entranhas os com-
passos desse fluxo temporal que se apresenta aos olhos numa con-
tinuidade aparentemente contraditória.

Explorar todas as maneiras possíveis de dar forma a uma tensão


contraditória, (pausa e movimento, peso e leveza, matéria e es-
pírito) como se as imagens [...] tivessem precisamente a virtude
– talvez a função - de conferir plasticidade, intensidade ou redu-
ção da intensidade às coisas mais opostas da existência [...]. Seu
próprio movimento - seu ciclo, sua vibração - pressupõe a coexis-
tência dinâmica, não resolvida, dos polos opostos. Estes nunca
são eliminados um pelo outro, nem tampouco por uma terceira
entidade superior que os ‘harmonize’, que os abarque e que apazi-
gue qualquer tensão: eles persistem em suas contrariedades postas
em movimento, ou melhor, em vibração. (DIDI-HUBERMAN, Etienne-Jules Marey - Le Mouvement (1894)

2013, p. 159-161)
Como vimos, a percepção da imagem é dependente do mo-
Não estariam as vibrações que emanam da plasticidade das vimento e, paradoxalmente, não nos parece possível haver uma
imagens no mesmo ciclo em que se encontram os impulsos muscu- imagem estrita ‘do’ movimento, apenas notações especulativas,
lares na dança? Os “membros podem executar uma sequência de mais ou menos bem elaboradas, do deslocamento dos corpos em
figuras que se encadeiam umas às outras, e cuja frequência produz movimento. Mesmo o trabalho meticuloso e muito inspirado de

168 169
Etienne-Jules Marey parece ladear o movimento. O que elas nos (decomposição, degradação, decadência) com a palavra fantasia, o
mostram são as posições relativas desses corpos no decorrer do vínculo entre os desejos intangíveis e as suscetibilidades orgânicas
tempo: uma notação coreográfica do movimento em fotografias. dos corpos é estabelecido (além de ressoar a decomposição dos
Se o movimento pode ser entendido como o deslocamento de um membros em ornamentos de duração do nosso poeta e a fantas-
corpo no espaço físico durante um espaço de tempo – ou mesmo o mata do tratado da dança de Domenico de Piacenza).
deslocamento da imagem deste corpo como mostram as cronofo-
tografias (figura 2) do pesquisador – este mesmo corpo criará uma
relação (e uma duração) com estes objetos concretos e, quiçá, com
outros corpos. O movimento de um corpo (ou da sua imagem)
em interação com outros corpos ou outras matérias (ou imagens
desses) poderia, desta forma, ser descrito como uma dança. Assim
como nas fotos de Marey, a imagem desse movimento se dá como
notação coreográfica e não como captação integral de um fluxo
inalcançável. A dança, bem como a imagem cinematográfica, teria
então como matéria-prima o próprio tempo inscrito no corpo.

CORPO-CÂMER A
Fotograma de Decasia (2001) de Bill Morrison
O estado de dança que, segundo Valéry, reverbera no espaço (fotograma do filme capturado pela autora)
as vibrações dos corpos em movimento, sua duração e sua decom-
posição, aproxima-se, a nosso ver, de maneira íntima ao cinema,
desde a execução dos planos filmados à projeção da obra sobre os O filme é emoldurado – plano inicial e final – pela dança sufi
corpos dos espectadores. A imagem vista abaixo é um fotograma (figura 3) que convida o espectador à entrega, por que não dizer, espi-
da abertura de Decasia (2001), filme de Bill Morrison (1965- ) ritual na vivência da obra multimídia. O ritual executado pela ordem
criado para uma apresentação multimídia da sinfonia de Michael dos dervixes tem como objetivo a meditação ativa onde, através do
Gordon7. Uma potente experiência da tênue, talvez ilusória, fron- giro, o corpo suspende sua materialidade, sua densidade, para des-
teira entre os aspectos materiais e imateriais da arte cinematográ- frutar da unidade do Ser. Durante essa cerimônia solene, acredita-se
fica8. Ao compor, por aglutinação, as palavras em inglês decay que o poder sagrado entra pela palma da mão direita, apontada para
cima, passa pelo corpo e sai pela palma da mão esquerda, apontada
em direção à terra. O dervixe, deste modo, não retém energia, muito
menos a direciona. Ele aceita ser um instrumento da potência divina
7 Primeira exibição em tela tripla numa performance da Basel Sintonietta em novembro
que supõe atravessá-lo numa reticência do tempo.
de 2001.
Esse estado espiritual buscado pelos dervixes assemelha-se
8 Uma pequena parte do que aqui se apresenta foi desenvolvida com outros fins no artigo
às circunstâncias da própria realização e experiência cinematográ-
“A dança dos fotogramas: o corpo da imagem em Decasia” (SCANSANI, A.C., 2016)

170 17 1
ficas. Quer seja pela predisposição do espectador em render-se à como a uma espécie de catalisadora do cinema. No momento em
obra ou pela sintonia de uma equipe no momento da filmagem. É que a câmera é acionada um estado criativo especial – que envolve
pela suspensão da matéria e sua relação direta com o corpo que a tanto o que está sendo filmado e o corpo que filma – é estabelecido.
abriga que Decasia inicia seu projeto. Essa condição fluida do giro Esse vínculo criado entre os gestos da câmera cinematográfica e os
– que aparece nos primeiros fotogramas do filme - muitas vezes é gestos dos atores no momento da filmagem guarda seus mistérios e
incorporada pelo operador de câmera e já foi descrita pelo docu- transforma-se numa espécie de comunhão.
mentarista Jean Rouch (1917-2004) em seu Cine-transe (2003). Um Podemos evocar outro testemunho, aqui do cineasta e fotó-
estado criativo especial, induzido pela lente da câmera, que envolve grafo Artur Omar (1948-) que em seu texto Foto-gnose, publicado
tanto o que está sendo filmado, o corpo que filma e os espectadores. no livro A antropologia da face gloriosa de 1997, proclama que
Uma dança entre o corpo que empunha a câmera e o que por ela estar com uma câmera
é capturado. O encontro cinematográfico, um acontecimento pre-
ponderantemente intangível, é o exato momento onde a câmera é torna-se uma ação, um agir em si mesmo e dentro de si mesmo [...].
movida por seu completo estado de presença e por sua consonância Na reposturação indispensável e inevitável, na relação entre pensa-
com o entorno. Mesmo que possa soar paradoxal, o transe poten- mento e luz, na alteração de ser que ocorre quando o pensamento
cializa o encontro, a confluência de corpos e estratos de tempo. Nas e a luz se encontram no interior de uma câmera, [...] uma máquina:
palavras de Rouch: “quando estou com a câmera (...), não sou o que um aparelho em que se dá a união ou a interseção entre a luz exte-
normalmente sou, fico num estado estranho, num cine-transe. Este rior e a luz interior. Na outra ponta do iceberg está o [...] [o câmera]
é o tipo de objetividade que podemos esperar, a total consciência velocíssimas operações de [...] discriminação sensorial são exigidas
da presença da câmera por todos os envolvidos. Deste momento em pela câmera [...] e esta lhe faculta, esse pequeno estar fora de si, esse
diante, vivemos em uma galáxia audiovisual” (ROUCH in YAKIR, pequeno êxtase, quando a pulsão fotográfica o transforma numa
1978, p. 07). espécie de caçador feroz e puramente instintivo, um animal fótico.
Essa conexão imaterial produz a matéria-prima que conce- [...]. As narinas latejam, e ele avança com sua ativíssima, especialís-
berá o corpo fílmico que, ao ser projetado, criará novos momen- sima e secreta passividade. [...]. Não se trata de captar a realidade.
tos de suspensão, novas camadas temporais no espectador, outros É apenas o ato que está circulando em suas veias (OMAR, 1997,
transes. O filme é matéria viva e abre-se à percepção de outros cor- p. 30-32).
pos formando um corpo único e em constante transformação. A
realização cinematográfica, como forma artística, não é construída O ato cinematográfico convida-nos a refletir sobre essa ‘re-
através de um ideal pré-estabelecido, mas através de uma experi- alidade’ que circula nas veias, sobre essa comunhão, esse gesto,
ência sensorial, onde o mais abstrato e o mais concreto se unem. esse mistério, essa hora mágica entre o lobo e o cão na qual não
Onde a parafernália técnica corrobora com as sutilezas da criação. distinguimos com clareza o corpo humano e o corpo técnico e
Independentemente do tipo de produção, do tamanho da equipe, sobre a qual “nunca seremos capazes de reivindicar (qualquer) co-
ou mesmo da finalidade da criação, a câmera – elemento técnico nhecimento final [...] salvo o que for descrito em carne e osso”9.
central – se transforma no agente de uma força centrípeta para o
qual convergem todos os gestos, físicos e mentais dos sujeitos envol-
vidos. Saberes, sensações, estímulos de toda sorte lhe são oferecidos
9 “Digamos que a verdade significaria uma correspondência precisa entre nossa descrição

17 2 17 3
CINEMA: UMA FORMA TEMPOR AL nhardt11: “aprenda a sentir a inquietação interior que produz uma
tomada ou um plano tão longo que freia o movimento ou esta
No cinema, o transcorrer do tempo parece ser seu código ini- deliciosa aquiescência íntima em cujo manto passa-se de um plano
cial. Nele coabitam tempos de diferentes naturezas como o tempo ao outro”. O ritmo do cinema, para o filósofo, está “apto a fazer
histórico de suas determinantes técnicas, o tempo imediato captu- aparecer a união do espírito e do corpo, do espírito e do mundo e
rado em filme, o tempo ritmado na montagem, o tempo diegético, o a expressão de um no outro.” Se Merleau-Ponty toma seu tempo
tempo da idade da obra, o tempo de sua reflexão teórica e as infin- para pensar o cinema é porque para ele “a filosofia contemporânea
dáveis sensações temporais ativadas no corpo do espectador. Tem- não consiste em encadear conceitos, mas em descrever a mescla
pos mensuráveis e tempos efêmeros. A repercussão das durações da consciência com o mundo, seu engajamento em um corpo, sua
cinematográficas encerra essa multiplicidade temporal e, a cada coexistência com os outros, e este assunto é cinematográfico por
novo plano assistido, uma relação (e uma duração) com as imagens excelência” (MERLEAU-PONTY, 2009).
é criada. Há, a cada nova posição dos objetos e corpos filmados, Seguindo a ideia de Merleau-Ponty, na qual a descrição da
a memória e o envelhecimento do instante anterior, criando uma “mescla da consciência do mundo” é um atributo do cinema “por
nova presença e a antecipação do momento seguinte como latência. excelência”, podemos nos perguntar de qual instrumento a ex-
Não é de hoje que o cinema tem sido pensado como uma pressão cinematográfica se vale para desenvolver tal tarefa. Nossa
expressão do tempo. Em sua conferência “O cinema e a nova aposta se volta para o que o próprio Merleau-Ponty chama de
psicologia” proferida na Escola de altos estudos cinematográfi- intercorporalidade12.
cos (IDHEC)10 em 13 de março de 1945, Maurice Merleau-Ponty
(1908-1961) afirma: “digamos primeiramente que um filme não Há uma relação do meu corpo consigo mesmo que o converte no
é uma soma de imagens, mas uma forma temporal” (2009). Ao vinculum entre o eu e as coisas. Quando minha mão direita toca mi-
trazer a percepção para o centro da questão cinematográfica (são nha mão esquerda, sinto-a como uma “coisa física”, mas no mesmo
dele as palavras “o filme não se pensa, ele se percebe”), Merleau- momento, se eu quiser, ocorrerá um acontecimento extraordinário:
-Ponty nos chama a atenção para o tempo de cada plano, para o eis que a mão esquerda também começará a sentir a mão direita [...].
encadeamento de imagens e sons, suas durações, seus desassosse- Logo, toco-me tocante, meu corpo efetua “uma, espécie de reflexão”.
gos internos e nos lembra do conselho do realizador Roger Lee- Nele, por ele, não há somente relação em sentido único daquele que
sente com aquilo que sente: a relação inverte-se, a mão tocada torna-
-se tocante, e sou obrigado a dizer que o tato está espalhado em meu
corpo, que o corpo é “coisa que sente”, “sujeito-objeto”.
e o que descrevemos ou entre nossa rede total de abstrações e deduções e certo enten-
dimento total do mundo externo. Verdade neste sentido não seria alcançável. E mesmo [...]
se ignorarmos os obstáculos da codificação, as circunstâncias nas quais nossas descrições
serão em palavras ou figuras, salvo o que for descrito em carne e osso e ação - mesmo
desconsiderando as barreiras da tradução, nunca seremos capazes de reivindicar o conhe-
cimento final sobre o que quer que seja” (BATESON, 2002, p. 26, grifo nosso). 11 Cineasta e ator francês que realizou o curta-metragem Paul Valéry (1960) com textos do
10 Fundado em 1943 por Marcel L’Herbier e hoje conhecido como La Fémis (École nationale poeta lidos por seu filho Claude Valéry.
supérieure des métiers de l’image et du son que guarda a antiga sigla derivada da Fondation 12 Nas traduções do termo em francês, intercorporalité, encontramos duas versões: inter-
européenne des métiers de l’image et du son). corporeidade e intercorporalidade, utilizamos a segunda.

174 175
Não é de modo diferente que o corpo do outro anima-se diante e que há invasão, encavalgamento, não apenas entre o tocado e
de mim, quando aperto a mão de outro homem ou quando sim- quem toca, mas também entre o tangível e o visível que está in-
plesmente a olho. [...] Minhas duas mãos são “co-presentes” ou crustado nele [...]. Toda visão efetua-se algures no espaço tátil
“coexistem” porque são as mãos de um único corpo: o outro apa- (MERLEAU-PONTY apud DIDI-HUBERMAN 2010 p. 31)
rece por extensão dessa co-presença , ele e eu somos como que os
órgãos de uma única intercorporalidade (MERLEAU-PONTY, Relembrando que para o poeta o prazer de dançar irradia
1991, p. 183-186, grifo nosso). o prazer de ver dançar, podemos agora sentir com maior clareza
sua afirmação, pois ao assistirmos a dança, ela literalmente nos
A co-presença entre a ação e a percepção desta mesma ação toca e o outro (o ser que dança) “aparece por extensão dessa co-
num único corpo faz com que não haja uma “relação em sentido -presença, ele e eu somos como que os órgãos de uma única inter-
único daquele que sente com aquilo que sente: a relação inverte- corporalidade” (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 186). Deste modo,
-se, a mão tocada torna-se tocante, e sou obrigado a dizer que enquanto Merleau-Ponty nos mostra a natureza táctil da visão e
o tato está espalhado em meu corpo, que o corpo é ‘coisa que suas dobras no tempo, Valéry, ao pensar nesse tempo singular que
sente’” (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 184). Essa espécie de re- configura a dança, olha para os “membros compondo, decompon-
flexão através do corpo também se manifesta, como nos atenta do e recompondo as suas figuras” (VALÉRY, 2012, p. 30) numa
Merleau-Ponty, com o simples olhar, o que coloca a visão numa espécie de ornamento da duração que, ao estender-se nos ritmos
dimensão táctil (como veremos logo à frente). Sendo assim, para e repetições de seu próprio corpo, na coreografia que executa
além da reciprocidade das sensações, o que o filósofo chama de com outros corpos e sua reverberação nos corpos que assistem,
intercorporalidade tem a faculdade de reformular nossa concep- são criados os ornamentos de extensão, algo muito próximo ao
ção sobre a percepção. Esta deixa de ser fruto de um estímulo, que Merleau-Ponty descreve como intercorporalidade. A dança,
dentro de uma sequência lógica que parte da ação e termina com a nosso ver, encarna essa outra forma de tempo na sua evidência
a percepção desta mesma ação, e passa a compor um outro tipo plástica e, no desejo de trazer visibilidade a esse tempo encrustado
de tempo, uma duração não linear, onde passado e futuro coabi- nos corpos que dançam, escolhemos dois cineastas que criam di-
tam em um só toque. Para compreendermos um pouco mais os ferentes maneiras de expressar a extensão e a duração dos (e nos)
liames desses nossos caminhos, voltemos brevemente ao nosso corpos em movimento.
poeta, Paul Valéry. Para ele, a dança seria uma evidência plástica
do tempo desenhado nos corpos em movimento configurando-se
em “uma forma de tempo” (nos mesmos moldes em que Merleau-
-Ponty pensa o cinema), uma “criação de um certo tipo de tempo,
de um tipo completamente distinto e singular” (VALÉRY, 2015, p.
8). Não estariam as palavras do poeta nos trazendo a visibilidade
da duração inscrita nos corpos?

Precisamos nos habituar a pensar que todo visível é talhado no Pas de deux (1968), de Norman McLAren (fonte: montagem feita pela autora a partir de
fotogramas do filme)
tangível, todo ser tátil prometido de certo modo à visibilidade,

176 17 7
Acima vemos alguns fotogramas do curta-metragem de Nor-
man McLaren (1914-1987), Pas de deux (1968) (figura 4), produ-
zido pelo National Film Board do Canadá onde Margaret Mercier
dança com imagens de si mesma antes de se unir a Vincent Warren
numa coreografia de Ludmilla Chiriaeff. Em seus 13 minutos e Unfolding (2002), de Egbert Mittelstädt (fonte: montagem feita pela autora a partir de
pouco, vemos a composição, decomposição e recomposição dos fotogramas da obra)
membros de um único corpo que, ao expandir-se, funde-se com
o outro, tornando-se uno no desenho do movimento e na plástica
de sua duração. A dança é acolhida pela câmera que transforma o A obra de Egbert Mittelstädt (1963-), Unfolding (2002)14,
movimento em camadas do tempo, onde a reverberação dos cor- como o próprio nome sugere, se concentra em dar visibilidade a
pos inscreve-se na na película. Deste modo, somos convidados a essas dobras do tempo. A nosso ver, o trabalho de Mittelstädt
participar do eco desses corpos, a tocá-los com os olhos, com nos- (figura 5) corporifica a lacuna temporal inacessível à nossa per-
so próprio corpo movido pelo prazer de ver o enlace do tempo na cepção visual e cuja vibração acreditamos ser sentida por nossas
dança. Ou, nas palavras de Maya Deren (1917-1961)13 (que fazem moléculas. Filmado em split-scan15, vemos em seu curto vídeo
coro às de Merleau-Ponty e Valéry): “A ação criativa no filme [...] uma mulher (não creditada) mergulhar em sua própria figura di-
ocorre em sua dimensão temporal; e por esta razão o cinema, mui- latada no tempo. O corpo que dança parece fundir-se à própria
to embora composto por imagens espaciais, é basicamente uma matéria do vídeo e devido a isso presenciamos o prolongamento
forma de tempo.” (DEREN, 2012, p. 145). Talvez esse seja um não apenas do tempo, mas da carne deste corpo espichado, der-
atributo da imagem, de todas as imagens: “a imagem não é o cam- retido, liberto das amarras de sua própria figura. Unfolding nos
po de um saber fechado. É um campo turbilhonante e centrífugo. faz imergir na natureza do tempo e a partir de nossa permanên-
Talvez nem sequer seja um “campo do saber” como outros. É um cia distendida nesta camada habitualmente intangível, as imagens
movimento que requer todas as dimensões antropológicas de ser parecem desenredar as tramas dos ornamentos de duração, tal
no tempo (DIDI-HUBERMAN in MICHAUD, 2013, p. 21, grifo qual propostos por Valéry. Aqui não estamos mais diante de uma
nosso). decomposição e recomposição de membros e sim de sua própria
Sem dúvidas que a natureza da imagem é vasta e escapa a dissolução, como se movimento e tempo se unissem em uma outra
delimitações de um único campo do saber. O fato dela parecer fu- dimensão, quiçá, a mesma onde a imagem faz sua morada.
gir a qualquer tipo de cerceamento, nos diz muito sobre sua sorte Para concluir, salientamos que tanto em Pas de deux quan-
da qual emana um constante movimento. A imagem do cinema, to em Unfolding podemos testemunhar, com nossos corpos, que
por sua vez, através de suas diversas técnicas, pode nos colocar em
contato com aquilo que os olhos não chegam a conceber, abrindo
outros modos de percepção e afecção, outras dimensões de ser no
tempo (como nos diz Didi-Huberman). 14 Disponível em http://www.atelier-fuer-medienprojekte.de/video.html, último acesso
em maio 2020.
15 Para um maior aprofundamento sobre a técnica e seus exemplos na história da fotogra-
fia e do cinema sugerimos o sítio Flong, disponível em http://www.flong.com/texts/lists/
13 Cineasta estadunidense cujo trabalho está intimamente ligado à dança. slit_scan/, último acesso em maio de 2020.

178 179
“de todas as artes, a dança se revela a mais material e também • BERGSON, H. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação
a mais abstrata. Ela soluciona a antítese da carne e do espírito; do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
este é seu milagre”16 (LEVINSON, 1927, tradução nossa). No • DIDI-HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente: história da
percurso que passa pela fantasmata - proposta por Domenico arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de
de Piacenza, ainda no século XV, como um lugar da dança que Janeiro: Contraponto, 2013.
está fora do corpo e se apresenta como imagem através de sua • EPSTEIN, J. La inteligencia de una máquina - una filosofía
pausa dinâmica-, e culmina no desenrolar dos corpos em dan- del cine. Buenos Aires: Cactus, 2015.
ça encarnados nos corpos dos próprios filmes aqui enunciados, • FERNÁNDEZ, Zoa Alonso. “Vocabulario latino de la danza
pudemos aproximar as naturezas da dança e da imagem, mais en los tratados del Quattrocento italiano: De arte saltandi et
particularmente da imagem cinematográfica, como expressões choreas ducendi y De pratica seu arte tripudii vulgare opus-
que têm como matéria-prima o próprio tempo inscrito no corpo culum” in ActaLauris, n.1, 2013, p. 37-56.
que se move, se transforma e se consome. Um corpo que, mesmo • LEVINSON, A. I. Paul Valéry: philosophe de la danse. Paris:
múltiplo, se torna uno na co-presença de outros corpos e do tem- La tour d’ivoire, 1927 (Les Cahiers Valéry/exemplaire no. 458).
po expandido pelo cinema. • MAREY, E. Le Mouvement. Paris: G. Masson, 1894.
• MERLEAU-PONTY, M. Signos. São Paulo: Martins Fontes,
1991.
• MERLEAU-PONTY, M. Le cinéma et la nouvelle psycholo-
REFERÊNCIAS gie: dossier. Paris: Gallimard, 2009.
• MERLEAU-PONTY, M. O Visível e o Invisível. São Paulo:
• AGAMBEN, G. “Creación de un lugar donde el baile pue- Perspectiva, 2012.
de ocurrir” in Flamenco, un arte popular moderno. Sevilla: • MICHAUD, P. Aby Warburg e a imagem em movimento.
2004. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
• AGAMBEN, G. Ninfas. São Paulo: Editora Hedra, 2012. Co- • OMAR, A. “Foto-Gnose” in A Antropologia da Face Glorio-
leção Bienal. sa. São Paulo: Cosac & Naify, 1997.
• AGOSTINHO, H. Confissões. Petrópolis: Vozes, 2011. • ROUCH, J. “The camera and man”. In: FELD, S. Ciné-Eth-
• BATESON, G. Mind and Nature: a necessary unity. Cres- nography: Jean Rouch. Minneapolis: University of Minneso-
skill: Hampton Press, 2002. ta Press, 2003. p. 29-46.
• BENJAMIN, W. The Arcade Project. Cambridge: Harvard • ROUCH, J.; YAKIR, D. “Cine-Trance: the vision of Jean
University Press, 2002. (edição brasileira: Passagens. Belo Rouch” in Film Quaterly, Oakland, XXI, n. 3, primavera
Horizonte/São Paulo: Editora UFMG/Imprensa Oficial do 1978, p. 29-46.
Estado de São Paulo, 2006). • SCANSANI, A. C. “A dança dos fotogramas: o corpo da imagem
em Decasia” in Imagofagia, Buenos Aires, 14, outubro 2016.
• SCANSANI, A.C., “Tempo e cinema: um diálogo entre Aby
Warburg e Bill Morrison in Revista Famecos, v. 26, n. 2,
16 Original francês: “De tous les arts, la danse se révèle le plus matériel mais aussi le plus
2019 (no prelo).
abstrait. Elle résout l’antithèse de la chair et de l’esprit ; c’est là son miracle”.

180 181
• VALÉRY, P. “L’âme et la danse” in La revue musicale, de-
zembro 1921.
• VALÉRY, P. Degas dança desenho. Cosac Naify, 2012. (ori-
ginal francês: 1938).
• VALÉRY, P. Philosophie de la danse. Paris: Éditions Allia,
2015.
• WALL-ROMANA, Christophe (org). Jean Epstein: Corpo-
real Cinema and Film Philosophy. Manchester University
Press, 2016.
• WERTHEIMER, M. “Experimental Studies on Seeing of
Motion” in: On Perceived Motion and Figural Organization.
Cambridge: MIT Press, 2012.

182 183
CRISTIANO PRIM é especializado em retratar o MÚLTIPLAS
movimento evidenciado na dança de Santa Cata- IMAGENS
rina, com uma trajetória profissional de mais de Cristiano Prim
20 anos na cidade de Florianópolis. Seu trabalho
representa uma oportunidade de conhecimento
e interrogação acerca da dança, apontando
questões poéticas, históricas, sociais, políticas,
tecnológicas e econômicas, vislumbradas em
suas imagens. Realizou a exposição autoral O
Fotógrafo também Dança, veiculada no Floripa
Shopping (2017) e na Galeria Municipal de Arte
Pedro Paulo Vecchietti (2016), em Florianópolis
(SC). Fotógrafo do teatro Ballhaus Naunyns-
traße em Berlim/Alemanha (2016). Fotografou o
Grupo Cena 11, Eduardo Fukushima e Michelle
Moura no evento The Sky Is Already Falling –
HAU, em Berlim e Düsseldorf. Integrante do
Grupo Cena 11 Cia. de Dança como fotógrafo
e cenotécnico (1995-2014), atualmente realiza
trabalhos de foto e vídeo para o grupo. Fotógra-
fo das principais escolas de dança de Florianó-
polis, como Arte.Dança, Bia Vilela e Garagem
da Dança. Fotógrafo de shows nacionais como
Elza Soares, João Bosco, Ney Matogrosso, Pau-
linho Moska, Ivete Sangalo, Arnaldo Antunes e
o uruguaio Jorge Drexler. Fotógrafo de festivais,
como o Festival Internacional de Música Con-
temporânea, Fita Floripa, Múltipla Dança, Baila
Floripa, Palco Giratório e Floripa TAP. Coorde-
nador da equipe fotográfica responsável pela co-
bertura da Maratona Cultural de Florianópolis.
(1)
Licenciado em Educação Artística pela Udesc.
CRISTIANOPRIM.COM.BR
(1) Solidão Pública
Adilso Machado (Florianópolis/SC)
Edição 2014

18 4 185
(2)
(2) Sobre Expectativas e
Promessas
Grupo Cena 11 Cia. de Dança
(Florianópolis/SC)
Edição 2014

(3) Möbius
Aplysia Grupo de Dança
(Florianópolis/SC)
Edição 2007

(4) Clandestino
Ângelo Madureira e Ana
Catarina (São Paulo/SP)
(4)
Edição 2006

(3) 187
(5)

(7)

(5) Guia de ideias correlatas


Grupo Cena 11 Cia. de Dança
(Florianópolis/SC)
Edição 2009

(6) Protocolo Elefante


Grupo Cena 11 Cia. de Dança
(Florianópolis/SC)
Edição 2017

(7) Rétrospective
Cie à fleur de peau
(Paris/França)
Edição 2007

(6) 189
(8) (10)

(8) Dança contemporânea


em domicílio
Claudia Müller
(Rio de Janeiro/RJ)
Edição 2007

(9) O passar em branco:


poemas urbanos
Daggi Dornelles
(Porto Alegre/RS)
Edição 2007

(10) Tudo que se espera...


Cia Clébio Oliveira
(Rio de Janeiro/RJ)
Edição 2008

(11) Deslimites
Clara Trigo (Salvador/BA)
(9) Edição 2007 (11)

190 191
(12)

(14)

(12) Entrelace
Teatro Xirê
(Rio de Janeiro/RJ)
Edição 2013

(13) “ninhos” - performance para


grandes pequenos
Balangandança Cia.
(São Paulo/SP)
Edição 2014

(14) Finita
(13) Denise Stutz (Rio de Janeiro/RJ)
Edição 2014

192 193
(15)

(16)

(15) Direção Múltipla


Daniela Alves (Florianópolis/SC)
Edição 2015
(17)

(16) Solução para todos os problemas do mundo


Couve Flor Minicomunidade Artística Mundial (Curitiba/PR)
(17) Nós
Erika Rosendo (Joinville/SC)
Edição 2007
Edição 2013

194 195
(18) (20)

[18] O Tempo do Meio


Esther Weitzman
Companhia de Dança
(Rio de Janeiro/RJ)
Edição 2014

[19] Homem Torto


Eduardo Fukushima
(São Paulo/SP)
Edição 2015

[20] Vistas I + II
Florencia Olivieri
(La Plata/Argentina)
Edição 2007 (21)

[21] Um banho de água fria


Siedler Cia. de Dança
(Florianópolis/SC)
Edição 2013

(19) 197
(22) (24)

[22] Proibido Elefantes


Gira Dança (Natal/RN)
Edição 2013

[23] Ensaio para Algo


que Não Sabemos –
Protótipo 1: construção
Daniela Alves e Karina Collaço
(Florianópolis/SC)
Edição 2017

[24] O Jogo das Perguntas


Fernanda Eugénio (Brasil) e
João Fiadeiro (Portugal)
Edição 2013
(25)

[25] Guia Improvável para


Corpos Mutantes
(Porto Alegre/RS)
(23) Edição 2015

198 199
(26) (28)

[26] Experiência 4
Key Sawao (São Paulo/SP)
Edição 2017

[27] Convite ao olhar


Cia. de Dança Lápis de Seda
(Florianópolis/SC)
Edição 2017

[28] Para Todos os Seguintes


Key Zetta e Cia.
(São Paulo/SP)
Edição 2017

[29] O corpo é a mídia da


dança? Outras partes
Vanilton Lakka
(Uberlândia/MG)
Edição 2010
(27) (29)

200 201
(31)

(30)

(32)

[30] Meu Prazer [31] Werwolf [32] Experimento portátil, uma ação sob encomenda
Marcia Milhazes Cia. de Dança (Rio de Janeiro/RJ) Marcos Klann (Florianópolis/SC) Companhia Flutuante (SP)
Edição 2009 Edição 2013 Edição 2010

202 203
(33) (35)

[33] Quinteto
Staccato (Rio de Janeiro/RJ)
Edição 2009

[34] Rinha
Entropia Experiências
Artísticas (Florianópolis/SC)
Edição 2017

[35] Perception of the other


Siedler Cia. de Dança e
Stormental
(Florianópolis/SC)
Edição 2008

[36] O fio das miçangas


(3 4) Otávio Bastos (Recife/PE)
Edição 2013

(36)

204 205
(37)

(38) (39)

[37] Estratégia [38] A Última Estrada [39] Vi-vidas


Ronda Grupo (Florianópolis/SC) Cia. Soma (São Paulo/SP) Sônia Mota (Brasil|Alemanha)
Edição 2013 Edição 2015 Edição 2008

206 207
(40)

(42)
[40] Céu na Boca
Quasar Cia. de Dança
(Goiânia/GO)
Edição 2010

[41] Confluir
Thembi Rosa
(Belo Horizonte/MG)
Edição 2007

[42] Receita
Rui Moreira
(Belo Horizonte/MG)
Edição 2007

(41) 209
THEMBI ROSA é artista, pesquisadora e pro- PAR ÂMETROS EM MOVIMENTO . 2.0.1.6 _
dutora. Doutora em Artes na linha de pes- Thembi Rosa
quisa Poéticas Tecnológicas da Escola de Be-
las Artes da UFMG (PROEX/CAPES), com
orientação do Prof. Dr. Carlos Falci. Mes-
tre em Dança pelo PPG-Dança da UFBA um começo
(2010); graduada em Letras pela FALE | uma imagem
UFMG (2002). Integra o Dança Multiplex e um gesto
a CasaManga. Produziu o Motion Bank Lab um som
Brasil (2019), o CCL7 (2016), ambos com Scott um espaço
deLahunta; o Interferencias Brasil (2013), resi- um fluxo
dência da Alma Quintana; dentre outras. Seus um estado
trabalhos são apresentados em festivais de dan- uma continuidade daquilo que vem sendo feito
ça no Brasil, Sesc, File, Inhotim, participou de
residências em Portugal, Viena, Bruxelas, Mé-

A
xico, Uruguai e Portugal. Foi contemplada pe- juntamento . confluir . regra de dois . verdades inventadas
los editais Rumos Dança, Funarte, Filme Mi- . dança: modos de estar princípios organizativos do mo-
nas e Cena Minas. vimento . lugar I . parâmetros em movimento . jam mul-
THEMBIROSA@GMAIL.COM tiplex . 1331” . escada adentro . cada começo é só continuação
WWW.DANCAMULTIPLEX.COM.BR . perceptrum . parquear . parquear bando . jazz_tracker . dese-
nhador_tracker . kubrickianas . dança: arquivos como invenções
corpo dança memória tecnologia

em novembro de 2016, apresentei no festival internacional de


dança, fid, em belo horizonte, uma demonstração de alguns dos meus
trabalhos, e para isso selecionei algumas ações e princípios de movi-
mentos que o público pudesse experienciar ao longo da conversa.

no início, foram os bambus, dispositivo de desaceleração que


estamos usando desde 2011, com a intervenção urbana, parquear1.

1 Parquear – trabalho de intervenção urbana com Margô Assis, Renata Ferreira, Thembi
Rosa e Kênia Dias contemplado na carteira infantil pelo Rumos Dança Itaú Cultural (2012).
Posteriormente, integraram o Parquear Heloisa Domingues e Dorothé Depeauw, e em

210 211
começamos no jardim do palácio das artes, na entrada da sala ju- vembro de 2016, após o impeachment da presidente dilma roussef,
venal dias em cuja palestra anterior, a pesquisadora tereza rocha ouvia-se um gigante #foratemer, ecoando e reverberando por vá-
havia acabado de fazer a sua fala em diálogo com a “sobrevivência rios lugares de resistência no país, e inclusive, ali, no parque.
dos vagalumes”2 , livro de didi huberman, que lança luz ao peso
sombrio da noção da expropriação da experiência, tema também concatenando com a fala anterior da tereza, relacionando
debatido no livro “infância e história”3, de giorgio agamben. com questões acerca da experiência, além da sua ação proposta ao
público na qual sugeria um caminhar pelo palco com a interferên-
para começar, ainda não tinha a certeza se iniciaria ou ter- cia dos movimentos de bolas de gude lançadas ao chão. situação
minaria com a prática dos bambus, eles estavam à mão, ao lado que instigava outros modos de lidarmos com o chão, com o equilí-
da entrada do teatro, onde tem um jardim interligado ao parque brio, com a nossa percepção do caminhar, ou seja, pisávamos com
municipal de belo horizonte, que naquela mesma tarde acabara de obstáculos moventes... tanto a sua fala, como esse despertar para
acontecer a passagem de som do show do ney matogrosso. estáva- à atenção ao corpo, também ancoradas às referências suscitadas
mos ao lado do festival sarará com a presença de ney, criolo, tulipa por tereza em relação ao trabalho do klauss vianna ressaltando as
ruiz, dentro outros ícones da mpb. os bambus e o show - ainda observações referente aos pés, as espirais, e a coluna vertebral, fez
não sabia bem como conjugar as duas experiências. pois os bam- com que me parecesse urgente a experimentação com os bambus.
bus, sugerem o silêncio, a dilatação do tempo, a contemplação, era parte de um fluxo, estava em um nexo de histórias de vida, de
o desafio de enraizar-se, e mantermos o equilíbrio do bambu na dança, nas quais as ações do parquear bando pareciam emergir
cabeça, à escuta do corpo, do espaço. todavia, do outro lado, bem como um chamado, um acontecimento para aquele instante. os
próximo, estava a euforia, a efervescência do festival de música bambus já estavam ali, na porta da entrada da sala juvenal dias,
dentro do parque, separando-nos apenas por uma grade de ferro. em frente ao jardim. ultimamente, prefiro as ações do lado de fora
ainda reverberava-se o fervor do momento político em pleno no- da caixa preta, ao ar livre. assim, começamos com essa ação pro-
posta no fid-bh 2016 enquanto no parque tocava um reggae mixa-
do ao burburinho da entrada para os shows, havia o lançamento
do livro da tereza rocha, “o que é dança contemporânea”, além do
2015, no FID – BH tivemos a estreia do Parquear Bando, com direção de Margô Assis e fórum doc, festival de cinema na sala humberto mauro, que não
Thembi Rosa e com até 20 participantes mediante inscrição.
fica distante do jardim. ou seja, uma simultaneidade de aconteci-
2 A experiência estaria para o saber assim como uma dança na noite profunda está para uma
mentos naquele instante em que dávamos início as partituras e as
estase na luz imóvel. Ora, na noite, nem o olhar nem o desejo cessam, capazes de aí encontrar
experimentações com os bambus.
lampejos inesperados: o sujeito da experiência, afirma Bataille, [...] é um espectador, são olhos
que procuram o foco, ou pelo menos, nessa operação, a existência espectadora se condensa nos
olhos. Esse caráter não acaba se a noite cai. O que se encontra, então, na escuridão profunda é
um áspero desejo de ver, quando diante desse desejo, tudo escapa. Mas o desejo da existência
assim dissipada na noite recai sobre um objeto de êxtase. (BATAILLE (1973) Apud DIDI-HU-
BERMAN, 2011, p. 144)
3 Porém, nós hoje sabemos que, para a destruição da experiência, uma catástrofe não é de
modo algum necessária, e que a pacífica existência cotidiana em uma grande cidade é, para
esse fim, perfeitamente suficiente. (AGAMBEN, 2005, p. 21)

212 213
para a criação e improvisação. ainda que haja uma estrutura de
improvisação pré-definida.

os outros, o espaço, o tempo, a multiplicidade de interações


simultâneas, o percurso, as mudanças, o fluxo dos transeuntes,
todos esses elementos dialogam e instigam uma partitura que pre-
cisa manter-se flexível e rearranjar-se a cada instante. a vontade
de conseguir manter o bambu em equilíbrio no topo da cabeça e
caminhar, boa parte da partitura é dedicada a essa ação. há tam-
bém a sua impossibilidade, o bambu sempre cai e emergem outros
desejos de composição, outras relações despontam ao longo do
percurso, inclusive situações involuntárias que demandam por de-
cisões no momento. por mais que tenhamos estabelecido uma par-
parquear bando (margô assis, thembi rosa e convidados) foto: guto muniz titura inicial, ela sempre será atravessada por novas geometrias,
fluxos, trajetórias, relações, equilíbrios, instabilidade, desacelera-
esse relato surge como testemunha, tentativa de descrever ção, enraizamento, observação, composição, arquitetura, chuva,
escolhas, sensações e impressões do processo de criação, da com- sol, luzes, sombras só para citar alguns dos elementos imbricados
posição da versão parâmetros em movimento 2.0.1.6, realizada no em parquear.
fid no dia 19 de novembro de 2016 na sala juvenal dias.
o início dos encontros para parquear foram em 2011, no
na primeira parte, realizada com os bambus na área externa parque das mangabeiras, uma pequena floresta dentro da cidade,
estabelecemos uma relação direta com as tomadas de decisões no foi onde escolhemos para trabalhar instigadas por alguns mate-
instante. na estrutura do parquear bando4 , assim como em demais riais disponíveis no parque, dentre eles, o bambu. estar naque-
ações de intervenções urbanas, costumamos lidar constantemente le tempo, navegar por ele, por seus hábitos e habitantes, e desse
com o acaso, com as instabilidades, as variações de cada espaço modo surgiu a relação com os bambus, caminhando pelos bam-
público, àquilo que acontece a cada dia, a cada momento. são re- buzais no parque, criando trajetórias, traçando desenhos na areia,
lações singulares nas quais a composição no instante, à escuta do pescando sombras com tecidos, e em interação com as crianças
próprio corpo, dos outros, do espaço são os principais elementos e frequentadores do parque. foram várias manhãs de sexta-feira
parqueando. deslocamos a verticalidade dos bambus plantados
na terra em direção ao céu, para a sua horizontalidade, agora,
equilibrados no topo da cabeça, solicitando ao corpo um ater-
4 Parquear Bando _ registro dos workshop e entrevista sobre a partitura e intervenção rar, enraizar, a cabeça empurrando o topo, com leveza e com os
urbana Parquear Bando no Motion Bank Lab Brasil, realizado em parceria com Scott de- pensamentos mais soltos. firmeza e flexibilidade para caminhar
Lahunta no Sesc Palladium em Maio de 2019. Motion Bank Lab Brazil. Disponível em:
com o bambu na horizontal. palavra, hoje, que denota posição de
<http://www.sdela.dds.nl/motionbank/brazillab2019/> Acesso em: 25 fev. 2020.
insurgência política, modo, método, modelo de gestão, ainda que,

214 215
nem sempre, seja bem assim. tentativas de se estabelecer outras co- tanto quanto romântico algo que, por muitas vezes, é também in-
nectividades e apropriações dos nossos espaços públicos, dos nos- dignação e frustração. faz parte da performance não dar certo,
sos modos relacionais, de apontarmos e estarmos produzindo arte não cumprir às expectativas, ser um fracasso, não conectar-se com
independente de sistemas fortemente estabelecidos de arte. princi- nada, nem com quase ninguém. ainda que seja um dos trabalhos
palmente, na rua, nos espaços públicos das cidades, transeuntes e mais vivos e atuantes com os quais estou envolvida desde 2011.
performer ampliam a chance em mesclarem-se, o ambiente sempre
interfere nas nossas ações e as nossas ações são também acopladas Em última instância, os artistas dedicam-se à sua profissão não
e atuam como ignições para modificações dos ambientes nos quais com o intuito de contar alguma coisa a alguém, mas como uma
estamos e dos quais somos parte. afirmação da sua vontade de servir as pessoas. Fico chocado com
artistas que supõem que criam livremente a si mesmos, que su-
diferente da caixa preta, do cubo branco, as ruas, praças, põem que isso seja realmente possível; pois cabe ao artista aceitar
parques são lugares comuns e específicos para cada um, pleno de que ele é criação do seu tempo e das pessoas em meio às quais
memórias, histórias, permeáveis e em constante construção. vive. Como disse Pasternak:

poder estar em qualquer lugar, relacionar-se com qualquer Alerta, artista, alerta,
pessoa, e não apenas com um público específico de dança, de arte Não te entregues ao sono...
tem sido instigante nas experiências em parquear por diversas ci- És refém da eternidade
dades e países. alguém que possa ter ido para ver a intervenção E prisioneiro do tempo.
urbana; ou aqueles que estejam passando ao acaso e surpreen-
dem-se, ou simplesmente ignoraram. isto não importa; interagir E estou convencido de que, se um artista consegue realizar algu-
ou não é uma escolha, algumas pessoas simplesmente passam pela ma coisa, isso só acontece porque é disso que os outros precisam
intervenção quase sem se aterem. tal reação é também instigante e – mesmo que não saibam naquele momento. E assim, a vitória é
coloca em questão o recorrente narcisismo vigente na dança. como sempre do público, é ele quem ganha alguma coisa, enquanto o
é dançar e não ser visto? a chance de sermos ignoradas nas mais artista perde, e paga.
diversas esferas, tal como, ao aplicarmos uma, duas, três vezes
para editais de manutenção, circulação, e não sermos aprovadas Não posso imaginar minha vida de tal forma livre que me fos-
e, ainda assim, continuarmos. não ter verba para manutenção, se dado fazer qualquer coisa que eu quisesse; tenho de fazer
ensaios, e às vezes, nem para apresentar e dar oficinas, mas se- o que parece importante e necessário nas condições dadas.
guirmos fazendo por necessidade maior de mover, trocar, tocar Além do mais, a comunicação com o público só é possível se
outros corpos e ocupar espaços onde sabemos que precisamos de ignorarmos os oitenta por cento de pessoas que, por algum
mais movimento. não abandonar as proposições e sentir o modo motivo, acham que nossa função é diverti-las. (TARKOVSKI:
como tais ações acabam por ressoar nos encontros, facilitando o 1998, p. 218-219)
eixo, desanuviando pensamentos, promovendo novas circulações
nos nossos fazeres, e nas vias públicas das cidades. ao escrever eterno retorno é o nome da mostra do cineasta russo andrei
e tentar fixar em texto algumas dessas sensações pode soar um tarkovski realizada em janeiro de 2017, em belo horizonte, no cine

216 217
humberto mauro, reunindo os seus sete filmes, além de várias re-
ferências que dialogam com a sua filmografia.

rever, reatar-me com a sua obra foi tão impactante naquele


momento que fez reacender questionamentos sobre por que, como,
e para quem fazemos arte. talvez explicite um perguntar-se sobre
por que continuar, ou a busca por buscar sempre de novo, citando
uma das premissas que está em seu livro Esculpir o Tempo.

continuar e buscar sempre e de novo, de novo, e de novo.


até poder ver ou desaparecer. ainda sem saber por que continuar...
buscarei expandir essas questões compartilhando algumas
das partituras e imagens relacionadas a busca por ver, mover,
mover com algo novo, em comum, elas redimem a importância
do foco no performer, espraiam o movimento em outras mídias.
aqui está um divagar nas relações, nas mediações e nos rastros e
vestígios que uma dança, uma experiência podem gerar. são par-
tituras, ideias, mapas, princípios organizativos de movimentos essa primeira imagem foi uma partitura inicial para o de-
que estiveram presentes em alguns dos meus processos de criação senvolvimento do software desenhador_tracker utilizado nas per-
com o dança multiplex, com o grivo, com a instalação parâmetros formances cada começo é só continuação realizada com o dança
em movimento, e certamente em tantas outras experiências que multiplex, e na performance perceptrum5, desenvolvida com ma-
sempre ao tentarmos nomear, listar, serão sempre deslizantes. por nuel guerra, matemático e artista digital, o grivo, lucas sander e
isso proponho algumas imagens, partituras a fim de se mantenha dorothé depeauw, projeto contemplado pelo rumos itaú cultural
alguns destes arquivos vivos, dinamizá-los. ou seja, sugestões a dança 2012-2104.
serem colocadas em movimento.
o mapa do jazz surgiu quase como sonho, ainda bem antes
de saber como poderia ser realizado com dispositivos e interfaces
digitais. nesse período trabalhávamos com câmeras e kinects para
capturas de movimentos, e com o desenvolvimento softwares para
interações entre sons, imagens e movimentos. a intenção era que

5 O Registro da performance Perceptrum está disponível em: <http://cargocollective.com/


multiplex/filter/thembi/Perceptrum-2013-1> Acesso em: 20 fev. 2020.

218 219
todo o movimento gerado na área mapeada pelas câmeras pudes- verdades inventadas10 (2008-2011) a interação entre sons e mo-
sem gerar e interferir nas sonoridades. assim, decidimos gravar vimentos centrava-se ao som produzido de um modo mecânico,
alguns sons de sopro, bateria, harpa de piano e baixo formando e analógico, apenas pela fricção do movimento do corpo, da distri-
um banco de dados sonoro que interagia com a movimentação nas buição do peso em contato com as tábuas de pinus e os seus meca-
áreas em que esses sons eram acionados a partir dos movimentos. nismos sonoros atrelados na parte debaixo das tábuas.
a ideia de uma banda de jazz; de modo a improvisarmos com es-
truturas de sons e movimentos. a vontade de trabalhar com o jazz
vem também da origem do meu nome, pois thembi é o nome de
um disco e de uma música de jazz do compositor e músico esta-
dunidense pharoa sanders. é também o nome da sua companheira
para quem ele dedicou o disco e a música. em dialeto africano
thembi é uma abreviação de nomathemba que significa esperança,
fé e amor. sempre ouvi essa música e quis experimentar um pro-
cesso de criação mediado pela tecnologia no qual pudéssemos ter
uma interação mais estreita entre dança e sons. tivemos algumas
versões de performances utilizando o software jazz_tracker; a pri- verdades inventadas. foto: renato paschoaleto

meira delas com o dança multiplex6 com cinco dançarinas e sem a


projeção do mapeamento sonoro; perceptrum7, com duas dançari- ao findar as performances com o verdades inventadas e ex-
nas e o grivo tocando ao vivo bateria, violão e sopro; e outra ver- pandir e complexificar as relações entre sons e movimentos, pas-
são parâmetros em movimento8 e desenhador_tracker apenas com sando, então, a ser gerado pelo mapeamento de todo o corpo, pela
uma dançarina, um músico e a projeção sendo desenhada ao vivo, definição de diversos parâmetros de deslocamento, velocidade, e
determinando as áreas selecionadas onde os sons são disparados. outros, expandíamos a sensação de tocar por todo o espaço, mo-
dificando as frequências sonoras, alterando o volume dos sons,
antecedeu aos projetos citados o 1331”9 (2012), primeiro provocando outros, dentre tantos efeitos sonoros possíveis de se-
trabalho no qual dediquei-me às relações com dispositivos e cria- rem feitos ao estreitarmos os envios de sinais midi interconectados
ções de softwares, realizada por manuel guerra; esta pesquisa, por aos movimentos. a sensação de interagir com estes softwares e
sua vez, ampliava todo um campo sonoro, que no solo anterior, sistemas de trackeamento traz como referência o theremin, instru-
mento que sempre me fascinou, cuja uma das vertentes das pesqui-
sas foi justamente com o therpistone, pesquisa de leon theremin,
e clara rockmore, uma das principais theremistas no início dessa
invenção. em 1932, ambos criaram uma plataforma com antenas
6 Cada começo é só continuação _<https://cargocollective.com/multiplex/Cada-comeco-e-
-so-continuacao-2013>
7 Perceptrum _<https://cargocollective.com/multiplex/Perceptrum-2013-1>
8 Parâmetros em Movimento _<https://vimeo.com/109379352> 10 Verdades Inventadas _<https://vimeo.com/28834241>
9 1331” _ < https://vimeo.com/51821197>

2 20 2 21
que captavam os movimentos dos dançarinos e geravam os sons pelas em 1331” assim como no jazz_tracker iniciamos com uma
relações de proximidade e distâncias. (SANTANA, 2006, p. 118). partitura, uma proposta de aquecimento baseada no tempo e em
qualidades específicas de movimentos. em geral, para cada pesqui-
são mágicas as possibilidades de interações entre corpo, sa estabeleço um tipo de aquecimento que acaba por adentrar-se
som, movimentos e imagens, e os processos para o desenvolvimen- nas performances. pode ser uma proposta nova ou uma conti-
to de tais projetos demandam por tempo, especificidades técnicas nuidade relacionada às questões específicas em cada trabalho. ou,
e artísticas, além de financiamentos que permitam a viabilidade e simplesmente àquilo que sinto vontade de fazer, e seguir fazen-
continuidade de tais investigações. portanto quase inviável seguir do, a rotina de uma prática corporal que se dá ao longo de um
adiante com tais projetos frente ao nosso atual panorama cultural processo de criação. a partitura do 1331” foi uma proposta que
e educacional. são ferramentas que ao serem inventadas ativam surgiu na residência que fizemos na bélgica, em 2012, com a cia
a nossa sensibilidade para a escuta, composição, e para o jogo. mangrove tentactille, a convite de dorothé depeauw e com a par-
são interfaces de conexões instigantes para as sensações corporais ticipação do o grivo, e manuel guerra que, então, dedicava-se ao
e suas diversas interconexões com a virtualidade, com os dispo- desenvolvimento de um software para a interação entre dança,
sitivos tecnológicos, a ubiquidade, a extensão da presença, além som e imagem. a partitura era realizada com um cronômetro, que
de tantos outros elementos que referem-se diretamente ao nosso estabelecia o tempo com as seguintes ações:
modo atual de ser e agir no mundo. assim, investigar e aprofundar
com tais dispositivos implica em tocar sinestesicamente, encontrar 1331”
novos modos de agir e expandir potencialidades a serem instaura-
das. não apenas ser o usuário que desconhece a caixa preta, mas 0 - 1” – Pausa
adentrar-se nessa escuridão a fim de lançar novas luzes e experiên- 1” - 3” – Pêndulos - velocidade normal
cias. pois, apesar de tudo, a expropriação da experiência não pode 3” - 4” – Pausa - mudanças de direções
ser normatizada, nem normalizada, ela é tédio e morte. 4” - 6” – Movimentos rápidos – cortados
6” - 9” – Movimentos lentos - redondos
9” - 11” – Caminhadas - velocidade normal
11” - 12” – Movimentos rápidos - cabeça
12” - 13” – Movimentos lentos - quadril
13” - 13”31’ – Pausa

o título 1331” permaneceu por ser um palíndromo, uma su-


gestão da cia mangrove tentactille, que na época tinha um projeto
no qual os títulos dos trabalhos eram definidos por um site que
fornece várias opções de palíndromos, anagramas dentre outras
combinações formadas por jogos de palavras. !Co LAPse koDe,
foi uma residência artística do grupo da qual participei em belo
parâmetros em movimento. mis–sp. foto: letícia godoy horizonte, no marginália, em 2011. o título da residência era uma

222 2 23
da variações da palavra kaleidoscopio, uma das combinações ge- com um timer com os tempos e as sugestões das movimentações. a
rada por esse site. pois, a cada etapa do projeto, decidiam estabe- trilha sonora, utilizada nessas jams está disponibilizada online11.
lecer um novo título baseado nesse sistema. https://soundcloud.com/user6378793/1331_partitura-jam-multi-
plex_ricardo-carioba-thembi-rosa

a última partitura trazida para esse ensaio faz parte do solo


verdades inventadas, realizado com o grivo na instalação alarm
floor de rivane neunschwander. nessa partitura temos um pulso
e uma sugestão de início de movimento por uma parte específica
do corpo, ao fim do texto segue a partitura e o link da gravação
sonora para quem quiser experimentar. https://soundcloud.com/
user6378793

gráfico do software 1331” _ manuel guerra em 2014, à convite de elisabete finger gravei com o marcos
moreira marcos do o grivo uma conversa para a série discoreogra-
com a prática de experimentações a partir dessa partitura, fia, música, dança e blá blá blá12 , da rádio itaú cultural. dispo-
manuel guerra propôs o software 1331” que pode ser visualizado nibilizo o link como sugestão quem queira adentrar-se mais nos
no gráfico acima e demonstra três dos cinco parâmetros de movi- processos de criação e nas relações musicais estabelecidas pelos
mento que atuam na interação com os sons, são eles: coreógrafos. inventar arquivos em dança, tocar na rádio, dançar
nas ruas são modos peculiares de estabelecer redes, mover os ar-
1 – velocidade da área (expansão e contração do movimento do quivos, instigar publicações, promover encontros corpo a corpo, e
corpo) _ linha verde todas as demais ações que ressaltam os diversos modos de existir
2 - velocidade centro (locomoção medida pelo centro do corpo) _ em dança, e instigam situações a fim de impulsionar e criar novos
linha vermelha lampejos de continuidade.
3 – balance (número de pixels em determinada área do corpo) _ |
4 – posição x (deslocamento do corpo no eixo x) _não está de-
monstrado no gráfico
5 – posição y (deslocamento do corpo no eixo y) _ a sombra do
corpo em amarelo que amplia e diminui

em uma outra versão com o uso dessa partitura, porém sem


o software, fizemos quatro sessões de improvisação no sesc pinhei- 11 Jam Multiplex com Renata Ferreira e Ricardo Carioba. Disponível em: < https://sou-
ndcloud.com/user6378793/1331_partitura-jam-multiplex_ricardo-carioba-thembi-rosa>
ros em são paulo, em 2012. na jam mulptiplex eu e renata ferrei-
ra improvisamos com o músico ricardo carioba, expandindo tais 12 Discoreografia, música, dança e blá blá, blá. Programa 9 <http://www.itaucultural.org.
br/explore/canal/detalhe/discoreografia-musica-danca-e-bla-bla-bla-programa-9/>
proposições para a participação do público. havia uma projeção

2 24 2 25
Verdades Inventadas (2008) Princípios de movimento

números naturais

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9
(pausa) (olho) (ombro) (passo) (quadril) (joelhos) (braço) (eleve) (cabeça) (escápula)

1-0 1-1 1-2 1-3 1-4 1-5 1-6 1-7 1-8 1-9
(olho-pausa) (olho – olho) (olho-ombro) (olho-passo) (olho-quadril) (olho-joelhos) (olho-braço) (olho-eleve) (olho-cabeça) (olhoescápula)

2-0 2-1 2-2 2-3 2-4 2-5 2-6 2-7 2-8 2-9
(ombro-pausa) (ombro-olho) (ombro-ombro) (ombro-passo) (ombro-quadril) (ombro-joelhos) (ombro-braço) (ombro-eleve) (ombro-cabeça) (ombro-escápula)

3-0 3-1 3-2 3-3 3-4 3-5 3-6 3-7 3-8 3-9
(passo-pausa) (passo-olho) (passo-ombro) (passo-passo) (passo-quadril) (passo-joelhos) (passo-braço) (passo-eleve) (passo-cabeça) (passo-escápula)

4-0 4-1 4-2 4-3 4-4 4-5 4-6 4-7 4-8 4-9
(quadril-pausa) (quadril-olho) (quadril-ombro) (quadril-passo) (quadril-quadril)(quadril-joelhos) (quadril-braço) (quadril-eleve) (quadril-cabeça) (quadril-escápula)

2 26
5-0 5-1 5-2 5-3 5-4 5-5 5-6 5-7 5-8 5-9
(joelhos-pausa) ((joelhos-olho) (joelhos-ombro) (joelhos-passo) (joelhos-quadril) (joelhos-joelhos) (joelhos-braço) (joelhos-eleve) (joelhos-cabeça) (joelhosescápula)

6-0 6-1 6-2 6-3 6-4 6-5 6-6 6-7 6-8 6-9
(braço-pausa) (braço-olho) (braço-ombro) (braço-passo) (braço-quadril) (braço-joelhos) (braço-braço) (braço-quadril) (braço-cabeça) (braço-escápula)

7-0 7-1 7-2 7-3 7-4 7-5 7-6 7-7 7-8 7-9
(eleve-pausa) (eleve-olho) (eleve-ombro) (eleve-passo) (eleve-quadril) (eleve-joelhos) (eleve-braço) (eleve-quadril) (eleve-cabeça) (eleve-escápula)

8-0 8-1 8-2 8-3 8-4 8-5 8-6 8-7 8-8 8-9
(cabeça-pausa) (cabeça-olho) (cabeça-ombro)(cabeça-passo) (cabeça-quadril) (cabeça-joelhos) (cabeça-braço) (cabeça-eleve) (cabeça-cabeça) (cabeçaescapula

9-0 9-1 9-2 9-3 9-4 9-5 9-6 9-7 9-8 9-9
(escápulapausa)(escápulaolho) (escápulaombro)(escápulapasso)(escápulaquadril)(escápulajoelhos)(escápulaquadril)(escápulaeleve)(escápulacabeça)(escápulabis

1-0-0
(olho-pausa-pausa)










1998.
UFMG, 2012.

EDUFBA, 2006.

tionbank/brazillab2019/>

2 27
cardo-carioba-thembi-rosa>

ca-e-bla-bla-bla-programa-9
tadas_partitura_numeros-naturais>
Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.

Dança Multiplex https://cargocollective.com/multiplex


Thembi Rosa Vimeo _ <https://vimeo.com/user8455027>
LINKS
REFERÊNCIAS

Motion Bank Lab Brazil_<http://www.sdela.dds.nl/mo-


https://www.itaucultural.org.br/discoreografia-musica-dan-
Discoreografia, música, dança e blá blá, blá. Programa 9 _
Grivo <https://soundcloud.com/user6378793/verdades-inven-
Partitura sonora verdades inventadas_números naturais _ O
cloud.com/user6378793/1331_partitura-jam-multiplex_ri-
Partitura sonora 1331” _ Ricardo Carioba <https://sound-
TARKOVSKI. Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes,
SANTANA, Ivani. Dança na Cultura Digital. Salvador:
AGAMBEN, Giorgio. Infância e História. Destruição da ex-

DIDI-HUBERMAN, George. Sobrevivência dos vaga-lumes.


periência e origem da história. Belo Horizonte: Editora da
VANILTON LAKKA é doutorando em Artes Cê- BLOCO DE NOTAS DE MONO-BLOCOS:
nicas no PPGAC-UFBA (Universidade Federal ANOTAÇÕES DE UM CORPO QUE FOI À RUA
da Bahia), professor na graduação de Dança EM BUSCA DA FRICÇÃO COM A CIDADE
da UFU (Universidade Federal de Uberlândia), Vanilton Lakka
mestre em Artes pelo PPGArtes-UFU e bacharel
em Ciências Sociais ambos pela UFU. Sua for-
mação é marcada pela vivência nos universos

M
da Dança de Rua e da Dança Contemporânea. ono-Blocos é resultante de uma reflexão que se iniciou
WWW.LAKKA.COM.BR no momento em que foi necessário dançar na cidade,
rolar no piso duro, experimentar os volumes e texturas
da praça, negociar com a horizontalidade e com a verticalidade
do urbano. Negociar também as dimensões histórica, técnica, po-
lítica e social presentes no corpo de cada um, bem como verificar
as possibilidades de convivência e sobrevivência de um corpo na
interação com a arquitetura física e social das praças ocupadas em
festivais e programas artísticos. 
Abordo aqui a trajetória que me levou a refletir conceitual-
mente, e elaborar, na prática, a relação corpo-cidade-dança em
um período que vai de 2008,1 participando de festivais interes-
sados em ter em sua programação trabalhos de dança que acon-
tecessem na cidade, e já incorporavam reflexões sobre o fenôme-
no dança e cidade. Passa então pela defesa no PPGArtes-MG em
2011 da dissertação de mestrado2 Para uma Cidade Habitar um
Corpo: Proposições de uso do Espaço Urbano e Seus Acréscimos
na Formação do Artista Cênico no qual a preocupação estava
focada na questão da formação do artista cênico e da relação com
a arquitetura das cidades, e culmina na pesquisa e elaboração

1 Participação no festival Escenario Urbano na cidade de Cararas-Venezuela: https://www.


youtube.com/watch?v=H1gaDoKwA8o. Além deste, outros festivais e programações con-
vidaram para participar: é o caso de Dias de Danza Festival de Danza em Paisagens Urba-
nas Barcelona/Espanha. Ver: http://www.marato.com/lang_spa/dies.html
2 FREITAS, Vanilto Alves (Lakka). Para uma Cidade Habitar um Corpo: Proposições de Uso
do Espaço Urbano e Seus Acréscimos na Formação do Artista Cênico. Dissertação de mes-
trado PPGArtes-UFU, Uberlândia – MG, 2011. Em: http://www.lakka.com.br/?md=textos

2 28 2 29
de Mono-Blocos, projeto aprovado no edital de manutenção de SUGESTÕES PAR A UM CORPO HABITAR UMA CIDADE
companhias de dança da Petrobras, que teve sua estreia em julho
de 2012. A distinção entre as categorias de espaço e lugar é central na
Proponho aqui um exercício de resgate de questões que sur- discussão entre cidade e corpo. É nela que se percebem as conexões
giram durante esse processo de busca da cidade, do espaço, do entre uma arquitetura física e uma social, e também, onde encon-
corpo. Ele está dividido em quatro tópicos: Sugestões para um tramos algumas pistas do diálogo entre ambiente e corpo. Vários
corpo Habitar uma Cidade, propõe pensar sobre a prática/ pro- autores escreveram sobre esta diferença utilizando terminologias
cedimento de habitar a cidade e seus desdobramentos; Soluções diferentes, mas com um mesmo teor. É o caso de Merleau-Ponty,
e Adequações Quanto a Variabilidade da Arquitetura Social em apontado por DE CERTEAU (1998)3.
uma Proposta Interativa com Perfis de Público Distintos, avalio Dentre os conceitos que interferem diretamente na diferença
a criação e elaboração de uma estrutura coreográfica que dese- entre espaço e lugar está a noção de experiência, pois é o que cons-
ja lidar com os comportamentos, leituras e expectativas de dife- trói o espaço “[...] O espaço é um lugar praticado” (CERTEAU,
rentes faixas de público; Sobre Técnica Corporal, Ferramentas e 1998, p. 202). Essa afirmação parte da compreensão de que sem o
Proteções resgato o workshop de Violência Cênica com Renato homem, sem a prática social, sem a história, o espaço não tem ra-
Camargos, realizado durante o processo de pesquisa de Mono- zão de ser, e se torna uma palavra vazia, uma associação de letras
-Blocos e algumas reflexões suscitadas por esta atividade; Por fim, sem significado e, por isso, o espaço é existencial e a experiência é
em O Habitar da Cidade Comunicacional, a proposta é pensar a espacial, porque é o uso que qualifica o espaço.
respeito das interferências do desenvolvimento das tecnologias de Partindo do entendimento que o uso do lugar qualifica o
comunicação no habitar a cidade. espaço, e que a visão na modernidade se estabeleceu como prin-
O teor do texto oscila entre um academicismo característico cipal sentido de captação do espaço, Mono-Blocos propôs o
de um indivíduo que possui uma carreira acadêmica como pesqui- procedimento/etapa Habitar a Cidade, no qual se pretendeu pri-
sador e professor universitário, ao mesmo tempo em que negocia vilegiar a experiência sensório-motora da cidade. Este consistiu
com a outra face, a face de um dançarino de Dança de Rua que se na ocupação de praças públicas na cidade de Uberlândia por 10
aproximou da Dança Cênica e voltou à rua de mãos dadas com a artistas de diferentes formações por um ano, na expectativa de
Dança Contemporânea. expor seus corpos ao ambiente praça, e a partir dessa experiên-
cia, avaliar: qual corpo resultaria dessa interação? Que cidade
Boa leitura! emergiria desse uso? Que estrutura de obra artística resultaria
desse processo?
Junto aos conceitos de lugar, espaço e experiência, somou-se
o de ambiente, no qual buscou-se romper com a diferenciação entre
natureza e cultura, entendendo que a prática de habitar a cidade

3 DE CERTEAU, Michael. A Invenção do Cotidiano. 3ª edição. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 202.

230 231
resultaria em um habitar da cidade no corpo dos intérpretes. Sendo o lugar social teatro oferece uma margem de previsibilidade maior
assim, abordamos a noção de ambiente em três instâncias. Na pri- quanto à resposta, afinal, o público está aí para ver uma peça.
meira, o espaço da cidade eleito, no caso a praça e suas caracterís- Isso acontece menos em uma encenação em espaço aberto. Não
ticas físicas; em segundo um grupo de princípios-técnico-corporais que seja totalmente imprevisível, pois os espaços sociais guardam
que derivaram de sistemas técnicos como o Parkour, a Dança Ur- propostas de comportamento, e estes são rastreáveis. É justamente
bana B.boy e Release Technic, representante da Dança Contempo- a capacidade de reconhecer regras sociais que nos possibilita viver
rânea; por fim, como terceiro ambiente, foi considerado o histórico em sociedade.
dos intérpretes, que apresentou uma grande diversidade represen-
tada desde indivíduos contaminados por técnicas de dança como O importante é a realidade objetiva dos fatos sociais, os quais têm
o jazz a praticantes de basquete, pois independente do código do- como característica a exterioridade em relação às consciências in-
minado, o que interessava era o histórico motor destes indivíduos. dividuais e exercem ação coercitiva sobre estas. Mas uma pergun-
Mono-Blocos é uma obra que tenciona a relação corpo cida- ta se coloca: de onde vem esta ação coercitiva? Pensemos em nossa
de, considerando as dimensões arquitetônicas físicas e sociais. O sociedade atual. Fomos criados, por nossos pais e pela sociedade,
procedimento Habitar a Cidade buscou testar essa noção, o corpo com a ideia de que não podemos, em um restaurante, virar o prato
dos intérpretes resultante desta convivência, foi a matéria prima de sopa e beber de uma só vez, pois certamente as pessoas vão rir
levada posteriormente à cena. ou talvez achar um tanto quanto estranho, já que existem talheres
para se tomar sopa. Não existem leis escritas que impeçam quem
quer que seja de virar o prato de sopa, segurando-o com as duas
SOLUÇÕES E ADEQUAÇÕES QUANTO À VARIABILIDADE DA mãos para beber rapidamente. No entanto, a grande maioria das
ARQUITETUR A SOCIAL EM UMA PROPOSTA INTER ATIVA pessoas se sentiria proibida de praticar isso. Da mesma forma, por
COM PERFIS DE PÚBLICO DISTINTOS que quando trabalhamos em um escritório ou algum lugar formal
os homens estão de terno e não de pijamas? Isso é a ação coercitiva
Durante o processo de montagem de Mono-Blocos decidi do fato social, é o que nos impede ou nos autoriza a praticar algo,
por uma estrutura de composição na qual existisse interação com por exercer uma pressão em nossa consciência, dizendo o que se
o público. Aspectos interativos já estavam presentes em composi- pode ou não fazer. (RIBEIRO, Paulo Silvino)5
ções anteriores como O Corpo é a Mídia da Dança? Outras Par-
tes (2005/07)4. A escolha da interação em um espaço aberto, como Deve haver atenção ao projeto da composição, assim como
uma praça, exigia a reflexão sobre o modo de uso e convivência a estruturação da mesma, buscando prever condutas sociais do
característicos dessa arquitetura social e como a proposta de com- público. Esse fator adquire peso ainda maior em uma obra con-
posição dialogaria com a conduta social pertencente a esse espaço. cebido para o espaço aberto, que não está socialmente preparado
Considero que elaborar uma proposta de encenação para
um teatro exige menos reflexão sobre a conduta do público, já que

5 RIBEIRO, Paulo Silvino. “Durkheim e o Fato Social”; Brasil Escola. Disponível em http://


brasilescola.uol.com.br/sociologia/durkheim-fato-social.htm. Acesso em 17 de fevereiro
4 O Corpo é a Mídia da Dança? Outras Partes: http://www.lakka.com.br/?pg=midiadadanca. de 2017.

232 233
para isso, e muito menos, uma obra que contenha elementos de facilidade desaparecem na paisagem. Para esta faixa de público,
interação. não há a expectativa que assistam toda a obra, muito menos que
Em Mono-Blocos, a reflexão sobre o público interferiu dire- cheguem no horário. Mas mesmo sem terem interação ou códigos
tamente nas decisões da composição. Desse modo, decidimos divi- específicos como o Público Convidado ou as informações prévias
dir o público em 3 faixas. O primeiro é o Público da Divulgação. como o Público da Divulgação, espera-se que a força do estranho
Este indivíduo se desloca até o espaço onde ocorre a apresentação evento detectado por ele na praça consiga capturar a sua atenção
sabendo com antecedência do que se trata o trabalho, possivel- por algum momento.
mente já saiba o nome da obra e teve contato com o histórico dos Mono-Blocos não é um trabalho que usa frontalidade, tam-
artistas envolvidos. Ele é, por isso, o mais próximo que se pode bém não depende de uma audiência organizada em uma arena,
chegar do que seria o público que habitualmente vai ao teatro. tampouco exige que o público siga a obra pelo espaço como uma
Elaboramos uma segunda faixa de público denominado Pú- procissão. Apesar de ser um trabalho apresentado na rua, preten-
blico Convidado. Com o tempo, concluímos que esses indivíduos de criar uma relação intimista com o público, buscando trazê-lo
deveriam derivar do Público da Divulgação, já que era exigido para perto, para que possa ver detalhes e sentir aspectos que só
deles disponibilidade para ter uma participação na obra diferente são possíveis com essa proximidade. A organização espacial se es-
dos demais. Por isso, inicialmente, era necessário detectar quem tabelece considerando uma proposta de posicionamento do públi-
era o público da divulgação e a partir daí, abordá-lo, e após uma co no espaço. Há uma articulação com essa característica todo o
rápida conversa, pedíamos o número do telefone usado por ele tempo, por vezes se produz uma concentração do público próximo
no Whatsapp e entregávamos um pequeno manual de instrução a apenas um núcleo, outras vezes os intérpretes se ausentam dessa
com algumas indicações. Em resumo, era exigido desse indivíduo proximidade ao correrem para longe, mas voltando rapidamente.
disponibilidade para participar da obra lendo os códigos que lhe A proposta não é fazer com que as pessoas sigam a obra. Há mo-
eram enviados durante a apresentação da obra, fosse via celular, mentos ainda em que se criam vários núcleos de intérpretes, impe-
bilhetes, contato tátil ou visual. Devido ao comportamento do pú- lindo o público a decidir-se a que núcleo deseja observar.
blico convidado durante a apresentação de Mono-Blocos, com fre- Mono-Blocos está organizado através de uma lógica de jo-
quência era gerada uma confusão quanto à indistinção entre quem gos, dessa forma, não há uma coreografia com movimentos pré-
era público e quem era intérprete oficial da peça. Dessa forma, o -determinados e em uma determinada ordem. Tão pouco há o uso
público convidado se situava em uma condição de público e de de improvisação livre. A escolha do uso de jogos (caracterizados
intérprete, dependendo de qual posição ele era visto. por terem funções e regras) em um trabalho com interação inter-
Por fim, consideramos a existência do Público Transeunte, feriu diretamente na escolha dos movimentos que compunham os
indivíduos que passando pela praça se deparavam com um evento jogos e a relação com o público.
desconhecido e estranho para eles, algo que não pertence àquele Dessa forma elaborei 3 categorias de jogos: uma só para
espaço e que frustra a expectativa de ocupação social. Cabe lem- os intérpretes, geralmente com movimentos mais arriscados e que
brar que Mono-Blocos utiliza movimentos virtuosos e até acro- exigem um maior tempo de treinamento, outra categoria propu-
báticos, mas não acontece em um palco ou em uma lógica que nha a interação entre os intérpretes e o público convidado, através
se assemelhe a ele. Os intérpretes não usam figurinos com o qual de recebimento de informações privilegiadas para participar da
possam ser identificados imediatamente, e por isso, com alguma obra. Essas informações não eram repassadas para outras faixas

23 4 235
de público, portanto a noção de códigos e a recepção deles era atividades, foi ministrado o curso de Violência Cênica6 com Re-
fundamental; por fim, a terceira categoria de jogos propunha in- nato Camargos7, um mineiro que vive em Barcelona desde os seus
serir na ação todos os públicos, os convidados, o da divulgação e 16 anos de idade e que se especializou em trabalhar como Dublê
o transeunte, para isso os movimentos escolhidos eram de baixa de Ação, atuando no mercado audiovisual. Sua formação mescla
complexidade, com pouco risco físico e associados a uma comuni- inicialmente Judô, Dança de Rua, B.boy e Capoeira, e é essa for-
cação simples e direta, via repetição, contato visual e tátil. mação que interessa ao texto, apesar de posteriormente Camargos
Organizar uma proposta com diferentes faixas de público ter agregado outras informações à sua trajetória mais específicas e
– que implica na expectativa de diferentes comportamentos na re- direcionadas às atividades como Dublê.
lação com a obra – exige uma maior atenção às características do A oficina se concentrou em técnicas de contato e apoio entre
local no qual a obra é apresentada. Após a estreia de Mono-Blocos indivíduos de modo a simular, de forma realista, brigas e choques
e durante a circulação, fomos entendendo que o lugar social, o uso resultantes da ação. O uso de quedas e saltos foi uma constante,
que se teria desse espaço e o estado de uso desse espaço, com um assim como os informes sobre as partes do corpo mais adequadas
maior ou menor fluxo de pessoas por exemplo, interferia direta- ao toque com o solo. Ficou evidente que as técnicas de queda do
mente no sucesso da apresentação. Judô eram usadas com frequência por Camargos, talvez pelo fato
Nesse sentido, a experiência com as apresentações da obra de a estética das quedas propostas por ele requisitarem uma im-
nos levou a elaborar versões de Mono-Blocos que dialogavam com pressão de descontrole do indivíduo que caia. O Judô possibilitava
o espaço, o público e a interação de forma distinta. A primeira ver- a construção da imagem requisitada na ação com segurança.
são, tida como o projeto oficial ou ideal, considera todas as faixas Durante as aulas, Camargos desestimulava o uso das mãos
de público mencionadas anteriormente e acontecia em um espaço nas quedas, preferindo o uso de rolamentos. Por um lado, porque
com público da divulgação e com um relativo fluxo de pessoas. o uso das mãos não ajudava na construção da imagem de ação
A segunda versão não conta com o público da divulgação, mas esperada por ele, e por outro, colocava em risco o ator, pois é sem-
mantém a proposta de realizar jogos interativos com todos os pre- pre grande o risco de lesão em pulsos e dedos, principalmente em
sentes no espaço, essa versão também exige um espaço com mais uma atividade na qual nunca se sabe onde será a próxima locação.
pessoas. Por fim, a terceira versão não espera nenhuma interação Ele preferia o uso de músculos grandes como o Dorsal, Deltóides
com o público, o foco é a percepção visual do trabalho. e Tríceps, encontrados respectivamente nas costas, ombros e bra-
ços, pois ao serem acionados nas quedas produziam segurança,
e ao serem associados a rolamentos, contribuíam para dissipar o
SOBRE TÉCNICA CORPOR AL, impacto.
FERR AMENTAS E PROTEÇÕES

Durante o processo de pesquisa e elaboração da estrutura


cênica de Mono-Blocos, várias atividades foram realizadas: pales-
tras, debates e oficinas com artistas e pesquisadores convidados
6 Registro de oficina de Violência Cênica com Renato Camargos: https://www.youtube.
que trouxeram temas e questões relevantes ao processo. Dentre as
com/watch?v=nKckLZu1CFU
7 Renato Carmagos: http://www.recamstunts.com/

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Na escrita da minha dissertação8 eu já havia detectado essa solo como as costas (dorsal), ombros (deltóides), braços (tríceps),
organização ou postura corporal que denominei como Posição glúteos (quadril), vasto lateral (lateral da coxa), gastrocnêmio
Circular de Segurança. Durante o processo de estudos para Mo- porção externa (panturrilha).
no-Blocos, percebi que além de dorsal, deltóides e tríceps, essa Mas para que de fato essas categorias de proteções tives-
posição era ampliada para outras regiões do corpo como quadril sem eficácia era necessário que antes, o indivíduo que as usasse
(glúteos), lateral da coxa (vasto lateral), panturrilha (gastrocnê- tivesse o domínio técnico do uso da Posição Circular de Segu-
mio porção fibular). Reconheço este tipo de uso do corpo em rança. Ou seja, não bastava usar o equipamento, era necessário
técnicas corporais de algumas Artes Marciais, Dança B.boy e antes saber usar a proposição técnico corporal requisitada.
Parkour, além de técnicas de Dança Moderna. Também percebo Isso ficou evidente quando Camargos mostrou o Making
seu desdobramento em técnicas vinculadas ao universo da dança of de um comercial no qual ele era arrastado por um carro atra-
contemporânea como o release technique e o contact improvi- vés de um cabo de aço que estava ligado a um colete de proteção
sation. que ele vestia. A função do colete, usado em Motocross para
Na ocasião, algo me chamou muita atenção: como Camar- proteger partes do corpo como o tronco, e com esse intuito, ele
gos trazia com ele uma sacola enorme com proteções para várias estava posicionado nos ombros e músculos dorsais. Notei que
partes do corpo, como cotoveleira, joelheiras e tornozeleiras, para conseguir ser arrastado sem se machucar Camargos expu-
além de coletes, capacetes, luvas e botas, estes quase sempre usa- nha a parte dorsal das costas em Posição Circular de Segurança
dos por motoqueiros na prática do Motocross. e dessa forma, apenas o colete tocava o solo. Essa técnica permi-
Percebi que nas aulas existiam duas categorias de prote- tiu ao mesmo realizar o movimento sem se lesionar.
ção, a primeira, colocada nos joelhos, cotovelos e cabeça: esta- Em outro momento ficou clara a ideia de potencializar o
vam ali para NÃO serem usadas. Ou seja, elas cobriam partes uso da Posição Circular de Segurança, em movimentos de queda
do corpo como joelhos, cotovelos e cabeça, caracterizadas por de escada. Nesses exercícios, as principais partes do corpo usa-
exporem os ossos (sem uma camada muscular que as proteja), das eram as costas, os braços e as laterais da coxa, essas sim,
para o caso eventual de choque em decorrência de um acidente. devidamente protegidas.
A primeira estratégia de segurança era usar bem a Posição Cir- Na dança é comum ver estudantes e artistas usando pro-
cular de Segurança, impedindo a ocorrência de lesões através de teções da primeira categoria (joelheiras e cotoveleiras). Para tra-
choques. balhos que tomam a rua, principalmente propostas nas quais o
Entendi que a segunda categoria de proteção apresentada contato com a arquitetura física da cidade se dá de forma mais
na aula tinha a função de potencializar a Posição Circular de intensa, é relevante pensar qual a articulação há entre corpo do
Segurança, pois estas proteções eram colocadas justamente em intérprete, técnica corporal, proteções e arquitetura.
partes do corpo com as quais se esperava ter contato com o Dentre os autores regularmente utilizados por pesquisa-
dores de Artes Cênicas para analisar questões referentes à téc-
nica e ao corpo, Marcel Mauss (1872-1950) ocupa um lugar de
destaque. Em 1934 ele proferiu a conferência Noções de Técni-
8 FREITAS, Vanilto Alves (Vanilton Lakka). Para uma Cidade Habitar um Corpo: Proposições
cas Corporais na Sociedade de Psicologia, e em 1936 a mesma
de Uso do Espaço Urbano e Seus Acréscimos na Formação do Artista Cênico. Dissertação de
foi publicada no Journal de Psychologie. Com essa publicação,
mestrado PPGArtes-UFU, Uberlândia – MG, 2011. http://www.lakka.com.br/?md=textos

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Mauss inaugurou um novo campo de pesquisa denominada técni- Algumas regiões do espaço estão perto ao alcance da mão. Os
cas corporais, retirando esse fenômeno da categoria dos diversos. psicólogos as denominaram de espaço peri-pessoal. As outras zo-
nas estão fora de alcance e constituem o espaço extra-pessoal. As
Cometemos, e cometi durante muitos anos, o erro fundamental transformações no esquema corporal podem provocar extensões
de só considerar que há técnica quando há instrumento. Cumpri de espaço peri-pessoal no que antes era espaço extra-pessoal. [...]
voltar às noções antigas, aos dados platônicos sobre a técnica, A aquisição da capacidade de usar ferramentas tem o efeito de
como Platão falava de uma técnica da música e, em particular da incrementar as extensões do espaço peri-pessoal. O que estava
dança, e estender a noção.9 longe, está perto.10

Nesse fragmento, Mauss supera a questão da existência ou Distanciando de uma lógica instrumental na qual a técni-
não de um instrumento, e entra em um terreno arenoso (arenoso, ca e as proteções seriam algo que são colocados no corpo para
mas importante para o trabalho em questão), o do próprio corpo ser usado no espaço. Entende-se que há um contínuo entre estas
como objeto técnico, como primeiro objeto a receber interferência instâncias e que há uma constante troca entre elas. Sendo assim,
dos conhecimentos técnicos, ou seja, antes de tudo a técnica está as proteções são usadas em diálogo com a técnica corporal, que
no corpo. Nota-se que uma das chaves para começar a pensar téc- por sua vez entra em diálogo com o espaço no qual acontece
nica corporal é a inexistência de um instrumento fora do corpo, a ação. Mono-Blocos, portanto, é uma obra que está adequa-
e talvez por isso, o texto e o conceito inaugurado por Mauss seja da a espaços duros, ásperos e com obstáculos, pois habitamos
tão útil à dança. espaços da cidade com essa característica durante sua elabora-
Durante o processo de pesquisa e elaboração cênica de Mo- ção. Há possibilidades de apresentá-lo em outros espaços, as-
no-Blocos éramos questionados com frequência sobre a necessida- sim como há possibilidade de apresentá-lo sem proteções. Mas
de de utilizar proteções como joelheiras e cotoveleiras. A questão sempre terá que haver uma modulação e renegociação entre as
era coerente, na medida em que tínhamos como conceito central várias instâncias envolvidas do corpo, da técnica, da proteção e
do processo a noção de habitar a cidade, no qual o pressuposto era do uso do espaço.
a mútua interferência entre corpo e cidade em uma temporalidade.
Creio que uma das respostas seria fazer um caminho contrá-
rio do percorrido por Marcel Mauss, no qual ultrapassou a ideia
de técnica corporal sempre associada a um instrumento técnico
e foi capaz de reconhecer a existência de técnica mesmo quando
não há instrumento. Percebemos instrumentos como proteções
10 Tradução do autor. No original: Algunas regiones del espacio estan cerca o alcance de la
(cotoveleira e joelheira) como extensões do corpo e que alteram o mano. Los psicólogos las denominan el espacio peripersonal. Las otras zonas están fuera del
esquema corporal do indivíduo. alcance conforman el espacio extrapersonal. Las transformaciones en el esquema corporal
puedem provocar extensiones de espacio peripersonal en lo que antes era espacio extraperso-
nal. [...] La aquisición de la capacidad de usar herramientas tiene el efecto de incrementar las
extensión del espacio peropersonal. Lo que estaba lejos, está cerca. Em: NOÉ, Alva. Fuera de
9 MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Volume 01. São Paulo: EPU/Edusp, 1974, la cabeza: por que no somos el cérebro y otras lecciones de la biologia de la consciência.
p. 217. Barcelona: Kairós, 2010, p. 107.

240 241
O HABITAR DA CIDADE COMUNICACIONAL ela. Com o surgimento da escrita cria-se a possibilidade de um
registro marcado por uma maior estabilidade, de modo que era
Mono-Blocos foi a elaboração cênica das muitas aulas pre- possível reproduzir com um nível maior de precisão a descrição.
paradas e ministradas em espaços fechados e espaços abertos, Felici (2009) defende que a escrita do lugar altera a relação que
entendendo que ambos espaços são resultado de um pensamento temos com o próprio lugar, pois é bem distinto ler um texto sobre
moderno de cidade. Na dissertação, a concentração se deu na ava- um lugar do que escutar a descrição de um lugar, sem entrar no
liação da história do estabelecimento da cidade moderna, assim mérito quanto ao ouvinte e às variações quanto à interpretação,
como algumas de suas características que impactam diretamente interessa é que a escrita se manterá a mesma produzindo um nível
o corpo e a sociabilidade como o fluxo, a aceleração e o conforto. maior de estabilidade.
Nesse sentido, como procedimento busquei interagir com a cidade, A segunda virada na relação com o espaço através do ele-
experienciar a arquitetura física sempre com a expectativa de que mento técnico comunicacional, diz respeito ao surgimento da ele-
habitar a cidade produziria outro corpo, assim como por outro tricidade, não só pela possibilidade de convivência e sociabilida-
lado também interferiria na lógica da cidade sempre em mutação. de nas cidades propiciada pela eletricidade, mas sobretudo, pela
No entanto, ao me colocar no processo de preparação cê- invenção das mídias de massa e toda a profusão de imagens das
nica da experiência da cidade e minha proposição formativa de metrópoles modernas possibilitadas através do surgimento da fo-
dança elaborada durante o mestrado, deparei-me com questões tografia, do cinema e posteriormente a TV. O lugar ganha mais
relacionadas para além da arquitetura física ou social da cidade, autonomia no que se refere à comparação com o momento da es-
comecei a intuir a interferência do universo digital e o impacto crita, mas ainda assim o sujeito continua fora da tela, ou seja, ape-
dele na relação do corpo com a cidade. A leitura de Massimo de sar do denso trânsito de imagens, a relação sujeito-objeto continua
Felici (2009)11 foi crucial nesse momento, e me colocou em uma praticamente inalterada.
posição na qual decidi considerar a experiência do habitar a cida- Por fim, Felici (2009) chama a atenção para o surgimento
de em sua dimensão comunicacional. das redes digitais, mídias sociais e da geolocalização. Esta nova
Na perspectiva do autor interessa o componente midiático etapa das tecnologias de comunicação realoca o sujeito no espaço
que molda a experiência habitativa do humano de modo a interfe- e na relação com a paisagem, na medida em que a partir de agora
rir no sistema sujeito-mídia-território. Nesse sentido, Felici (2000) o sujeito está na imagem e também consegue tecnicamente mani-
faz uma revisão clássica do desenvolvimento dos meios de comu- pular a paisagem. Há portanto uma manipulação do sujeito na
nicação. Seu texto inicia chamando a atenção para a invenção da paisagem via tecnologia de comunicação.
escrita e como ela interferiu no modo de percepção e interação Isso fica evidente na facilidade com a qual se modifica ima-
com o espaço, já que antes da invenção da escrita, existia ape- gens através da utilização de aplicativos e softwares próprios para
nas o estar no lugar e a narrativa/descrição do lugar caracterizada a edição de fotos, vídeos de lugares e de pessoas em lugares, pro-
pela sua instabilidade, dada a imprecisão da oralidade natural a duzindo através disso, leituras e percepções de aspectos que ver-
dadeiramente não estão no espaço. No entanto, o que interessa é a
relação social propiciada pela imagem agora alterada.
11 DI FELICE, Massimo. Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas
comunicativas do habitar. São Paulo: Annablume, 2009.

242 243
O uso de recursos como o GPS12 tem causado uma grande Em Mono-Blocos, o processo de elaboração da proposta
interferência na relação dos indivíduos com o espaço e consequen- cênica que considerava a arquitetura das cidades como lócus de
temente nas relações sociais, pois o sujeito sai da condição de olhar investigação e apresentação da obra, nos pressionou a enfrentar
para o mapa fora dele, e passa para a condição de estar dentro do questões referentes a esta realidade, ou seja, passamos a consi-
mapa e em movimento, o que traz implicações em campos como os derar o habitar comunicacional, buscando formas de articular a
transportes e a sexualidade. estrutura da obra ao aspecto virtual da cidade moderna e não só à
Jogos como Pokémon GO! lançado no Brasil no ano passa- arquitetura física e social.
do são outro exemplo de como o universo digital tem interferido As soluções encontradas durante o processo de pesquisa de
no modo como os indivíduos têm se relacionado entre si e com o Mono-Blocos foram o uso de mensagens em celulares com aplica-
espaço. Nesse sentido, são comuns relatos de jogadores que sofrem tivos como Whatsapp e sms, o estímulo ao uso de câmeras foto-
acidentes e ou são assaltados em decorrência da exploração dos es- gráficas por parte do público e o uso de QR code14 para acessar
paços reais em busca de Pokémons virtuais. imagens das apresentações. Buscamos ainda associar códigos e
O jogo que usa tecnologia de geolocalização e realidade au- tecnologias de acesso vinculadas a aparelhos e câmeras a códigos
mentada13, consegue através de aplicativo em smartphones produzir elaborados como contato físico entre bailarinos e público e outras
uma justaposição entre realidade e ficção, colocando imagens virtu- formas de comunicação como bilhetes e contato visual.
ais em sobreposição a cenários reais que podem ser detectados atra- Dentre as várias questões que surgiram na execução de
vés do celular. Possibilidades como essa rompem com a ideia de que uma obra que considerava a cidade comunicacional, nos depara-
a tecnologia e a conexão com a internet obrigatoriamente colocam mos com o fator exclusão digital, já que muitas pessoas por vezes
o indivíduo em condição estática na frente de um computador, e por não possuíam smartphones com funções requisitadas na obra, ou
consequência, de um corpo sedentário que é obrigado a se manter quando tinham, não sabiam usar.
sentado para interagir com o número de pessoas que lhe interessa no O modo como lidamos como esse elemento foi estruturar a
globo. As tecnologias de comunicação têm interferido há tempos no obra por faixas de público distintos, no qual um núcleo de pessoas
modo como os indivíduos habitam os espaços, no entanto, as pos- assistia à obra mediada pelos códigos que disponibilizávamos via
sibilidades imersivas propiciadas pelas novas tecnologias baseadas smartphones e outros recursos, enquanto outro público acessava a
na internet e na popularização de plataformas como smartphones obra de uma forma tradicional, visualizando sua execução.
colocam estas possibilidades em uma dimensão nova e cotidiana. Entendíamos que ambos os públicos acessavam a mesma
obra, mas viam aspectos distintos, já que a mediação dos códigos,
fosse ele um código QR code ou um código tátil interferia na lei-
12 GPS é a sigla para Global Positioning System, que em português significa “Sistema de tura da obra.
Posicionamento Global”, e consiste numa tecnologia de localização por satélite.
13 Realidade Aumentada é uma técnica utilizada para unir o mundo real com o virtual,
através da utilização de um marcador, webcam ou de um smartphone (IOS ou Android), ou
seja, é a inserção de objetos virtuais no ambiente físico, mostrada ao usuário em tempo 14 QR code: É um código de barras em 2D que pode ser escaneado pela maioria dos apa-
real com o apoio de algum dispositivo tecnológico, usando a interface do ambiente real, relhos celulares que têm câmera fotográfica. Esse código, após a decodificação, passa a
adaptada para visualizar e manipular os objetos reais e virtuais. http://www.agenciadda. ser um trecho de texto, um link e/ou um link que irá redirecionar o acesso ao conteúdo
com.br/realidade-aumentada-ra publicado em algum site.

24 4 245
FINAIS • Registro da oficina de Violência Cênica com Renato Camar-
gos https://www.youtube.com/watch?v=nKckLZu1CFU
Bem, e eu continuo pensando. A noção de ambiente parece • RIBEIRO, Paulo Silvino. “Durkheim e o Fato Social”; Brasil
ser cada vez mais útil. A pesquisa me levou a considerar como am- Escola. Disponível em: http://brasilescola.uol.com.br/sociolo-
biente o espaço (físico, social e comunicacional); o sistema técnico gia/durkheim-fato-social.htm. Acesso em: 17 fev. de 2017.
corporal (hip-hop, parkour, skate, balé, não importa quais forem); • Renato Carmagos – http://www.recamstunts.com/
a biografia do sujeito (o seu histórico bio/psico/social). A resultan-
te dessa viagem é a corporeidade, ou seja, a historicidade do sujei-
to, pois não é possível passar ileso pela experiência da cidade, ou
melhor, do espaço. Afinal, mais do que dança e cidade, a questão
é corpo e espaço interpenetrados.

REFERÊNCIAS

• DE CERTEAU, Michael. A Invenção do Cotidiano. 3ª Ed.


Petrópolis: Vozes, 1998.
• FREITAS, Vanilto Alves (Vanilton Lakka). Para uma Cidade
Habitar um Corpo: Proposições de Uso do Espaço Urbano
e Seus Acréscimos na Formação do Artista Cênico. Disser-
tação de mestrado PPGArtes-UFU, Uberlândia – MG, 2011
http://www.lakka.com.br/?md=textos
• MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Volume 01. São
Paulo: EPU/Edusp, 1974.
• NOÉ, Alva. Fuera de la cabeza: por que no somos el cérebro
y otras lecciones de la biologia de la consciência. Barcelona:
Kairós, 2010.

LINKS

• O Corpo é a Mídia da Dança? Outras Partes – http://www.


lakka.com.br/?pg=midiadadanca

246 247
ANA MARIA ALONSO KRISCHKE – Dançarina, pro- A DANÇA COMO ENCONTRO
fessora, produtora e pesquisadora, com ênfase Ana Maria Alonso Krischke
na dança contemporânea e improvisação. For-
mada em DanceAbility (2011). Desde 2009
dedica-se à Improvisação por Contato. Criou
e coordenou desde então o projeto Entrando
em Contato e entre 2009 e 2019, o Festival
Transformando pela Prática. Integrou o PlanoB
coletivo de experimentações em movimento
(2011-2017). Promove eventos, participa como
dançarina e professora em jams, festivais e ou-
tras ações de Contato Improvisação, Improvi-
sação e Composição no Brasil e na América
Latina. Participa da cocriação do ET – Espaço
Transformando. Investiga relações entre água e
dança desde 2013, desenvolvendo uma propos-
ta performativa chamada Visita ao Mar (desde
2016) que derivou num convite à investigação
coletiva, o Mar Aberto (2019). Pesquisadora
das relações dança e polítca, é mestra pelo Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação – UFSC
(2012) e doutora pelo Programa de Pós-Gradu-
ação em Teatro – Udesc (2019). Atualmente
trabalha na Licenciatura em Dança da UFG.
ANALONSOK@GMAIL.COM

Jamba, Buenos Aires, abril 2019. Na foto: pessoas não identificadas.


Foto e acervo: Paula Alfieri.

24 8 249
E
ste artigo trata de questões de minha pesquisa de doutora- AUTORREFERENCIALIDADE, CORRESPONSABILIDADE,
do1 cujo campo foi a Improvisação por Contato2 (IC) em MUTUALIDADE E COL ABOR AÇÃO: MOVIMENTOS DE POSIÇÃO.
certos contextos da prática em alguns países da América
Latina3. Tendo em vista ser uma dança de colaboração mútua e Banes (1994) afirma que Paxton criou uma proposta que,
de grande entrega de peso e contato físico, cuja confiança e a au- por um lado, é uma dança a respeito de um tipo de caráter, em
tonomia são importantes entre praticantes de IC, vou falar de al- que colaboração e confiança são fundamentais, por outro, é uma
gumas experiências dentro da IC, que apontem para uma dança dança a respeito da arte da dança, no sentido de aprofundar cri-
efetivamente colaborativa e de encontro e, obviamente, suas con- ticamente a mesma. Segundo a autora, a necessidade de colabora-
tradições. De fato o que vai se apresentando é uma necessidade ção e confiança para a IC acontecer oferece um tema para a arte:
de produzir experiências que exercitem a auto referencialidade e a valores e ética em dança.
corresponsabilidade como elementos de uma ética a ser continua- Conforme Singer (2014) IC não é somente algo onde as pes-
mente revista, individualmente e num plano mais amplo, grupal, soas vão para aprender a dançar ou mover-se é também algo onde
social. as pessoas vão questionar seus papéis cotidianos e sua percepção
de realidade, em consequência há expansão de consciência. Isso
pode ser ilustrado nas palavras de Javiera, bailarina profissional e
praticante de IC de Santiago, Chile:

Si algo hizo la danza C.I. en mí, fue justamente revolucionar sen-


1 KRISCHKE, Ana Maria Alonso. Improvisação por Contato: tecendo experiências Latinoa- sacionalmente mi mapa perceptivo e intelectual, ampliándolo y
mericanas. Tese. Programa de Pós Graduação em Teatro, Udesc: 2019.
enrareciéndolo cada vez, instalando un plano más allá del análisis
2 IC é um sistema de movimento proposto inicialmente nos EUA por um grupo de bailari-
físico a uno previo, vacío de lenguaje y de significación, y ahí es-
nes junto com Steve Paxton nos anos 1970. Improvisação por Contato pode ser vista como
taba yo post primera Jam, mirando los sillones, paredes, perso-
uma prática integrativa que investiga as possibilidades de improvisação no encontro de
dois ou mais corpes tendo como marco o contato físico e as leis da física que regem o nas, luces, mesas como objetos de mi espacio cotidiano que por
movimento. Em geral, ocorrem agrupamentos mais ou menos temporários em torno des- primera vez desconocí, extrañe y en vez de ser mi paisaje habitual
ta prática promovendo o aprendizado e as contradições relacionadas à participação, ao me invitaban a tocar, rozar, posar mi cabeza, tomar el peso, rela-
acesso e à autonomia, aspectos ligados à política e à formação humana que tomam parte cionarme no eficientemente, sensorial y absurdamente, ganas de
nesta prática. Obs.: Estou usando o termo Improvisação por Contato em consonância com
rodar y deslizar paredes. Apertura de la sensación. Y lo mismo a
outres autores que assumem a tradução literal do inglês: “Contact Improvisation” para o
la vida, al tocar, como un proceso constante de abrir, develar una
português ‘Improvisação por Contato’ em vez do já popularizado ‘Contato Improvisação’.
Essa diferença vem de um desejo de enriquecer a conceituação desta prática e diversificar posibilidad hasta habituarla y pasar a otra apertura, ojalá infini-
as formas de percebê-la. Junto a isto a simpatia pela transformação do artigo e conjugação ta4. (SANHUEZA, apud KRISCHKE, 2019, p. 92).
do ‘o’ para ‘a’, saindo de lugares de conforto que vão para além do modo de perceber e no-
mear, na direção de construir/desconstruir. Para manter fidelidade na fala, na transcrição
de algumas referências, aparece como Contato Improvisação.
3 Tais contextos são: encontros, festivais, residências artísticas cuja prática da IC são cen- 4 “Se alguma coisa fez a dança C.I. em mim, foi justamente revolucionar sensacionalmente
trais. Intercâmbios com parceires de prática nestes espaços e 9 mulheres praticantes de IC meu mapa perceptivo e intelectual, expandindo e afinando-o a cada vez, instalando um
dos seguintes países: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. plano além da análise física para um anterior, vazio de linguagem e significado, e lá estava

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Pode se dizer que autorreferencialidade é uma práxis na qual No entanto, não é incomum reconhecermos contradições
se considera e se põe em balanço a percepção sensorial, as intui- entre os fazeres e novos caminhos e proposições que viabilizem
ções, as corporeidades, as histórias (no sentido genealógico) que essas pautas de forma mais contundente e politizada, visto que o
ganham forma/expressão nas interações com o outro em dança e discurso de uma integração generalizante não nos interessa se qui-
também a invenção coletiva de contextos com permissão para criar sermos politizar o debate, tampouco seria a disputa identitária ou
e encontrar-se critica e criativamente. Consideram-se confiança e de outras bandeiras e slogans que o capitalismo captura e superfi-
colaboração conceitos constantemente postos à prova, visto que cializa de forma tão eficaz. Ou seja, é no dissenso e na proposição
há interseccionalidades5, ou seja, entendendo que confiança e cola- de espaços tempo cuja visibilidade e participação ocorram é que
boração são práticas sociais, não conceitos fechados, há diferentes poderemos talvez construir a dança como encontro!
instâncias de treino e experimentação dos mesmos em escalas de Cali8 (artista trans praticante de IC em Florianópolis) fala de
experiência pessoal, interpessoal e comunitária. Nessa direção, a a IC ser uma ferramenta importante durante a experiência de dan-
corresponsabilidade6 e a coexistência7 têm sido apontadas como ça; mas, depois, o que cada um faz com isso nas suas vidas? Ela
conceitos e práticas na dança. afirma que segue sofrendo preconceito por ser ela mesma. Como
estas experiências tão reveladoras e de ruptura na dança segue
movendo as vidas?
eu, depois da primeira Jam, olhando para as poltronas, paredes, pessoas, luzes, mesas Sabemos que há correlações entre o questionamento de cor-
como objetos do meu espaço cotidiano que pela primeira vez desconheci, senti falta e em pe , de dança e questionamento de sociedade. Apesar disso, não
9

vez de ser minha paisagem habitual, me convidavam para tocar, esfregar, colocar minha podemos superestimar a dança no caso de construir mudanças so-
cabeça, tomar o peso, me relacionar de forma ineficiente, sensorial e absurdamente, dese-
ciais conjunturais: a arte é ferramenta. Mas tampouco queremos
jo de rolar e deslizar paredes. Abertura da sensação. E o mesmo para a vida, ao tocar, como
subestimar a dança retirando-a do contexto, repetindo esse mo-
um processo constante de abertura, desvelando uma possibilidade de habituá-la e passar
para outra abertura, esperançosamente infinita.” (tradução minha). delo alienado da cultura capitalista, devemos afirmar a arte que
5 Interseccionalidade é um conceito criado por Crenshaw (1991) e vem sendo desenvol- pensa/pratica/afirma conjuntamente com outros fazeres sociais
vido desde então. É uma ferramenta teórico-metodológica fundamental para ativistas e um outro mundo possível!
teóricas feministas comprometidas com reflexões e análises sobre os processos de intera-
ção entre relações de poder e categorias como classe, gênero e raça em contextos indivi-
duais, práticas coletivas e arranjos culturais/institucionais. Provando que há diferenças de
relações de poder conforme as condições em que as pessoas envolvidas se encontram, ou 8 Na oficina Corpos indóceis, corpos rebeldes, com Paula Alfieri no Espaço Transformando,
seja, uma mulher sofre maior discriminação do que um homem, uma mulher negra, mais Florianópolis, em maio de 2019.
que uma mulher, e assim sucessivamente; juntando-se a isso, determinantes morais e con-
9 Optei por escrever a maioria das palavras relativas a pessoas com a terminação ‘e’ ou
textuais, conforme a situação a opressão e os sujeitos oprimidos. Mostrando que não há
‘a’ conforme haja necessidade para facilitar a leitura. Essa forma de escrita e fala está
uma relação de poder generalizante na práxis, é necessário situar as pessoas envolvidas.
se tornando usual, como tentativa de inclusão na fala e discurso escrito, em respeito a
6 Refere-se a uma mutualidade das partes envolvidas na relação, sendo todas respon- todes aqueles que estão transitando de um gênero a outro, ou não se identificam com o
sáveis. Há uma diferença de cada uma ser responsável e todas serem corresponsáveis, padronizado binarismo de gênero, em suma representados pelas terminações ‘a’ e ‘o’. Além
porque propõe um sentido de cooperação no ato de ser responsável. de evidenciar uma radicalização na inclusão de formas de escrita que não desvalorizem
7 Em minha dissertação (2012) apresento diferentes pontos de vista desse conceito. A qualquer identidade de gênero. O termo corpo vem carregado de muitas condicionantes
dançarina de IC Nancy S. Smith apresentou propostas de investigação em IC onde coexis- culturais opressoras e de controle, usar ‘corpe’ ‘corpa’ vem no sentido de afirmá-lo, consi-
tência é praticada. derá-lo de forma libertária e mais fluída.

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Um princípio importante da prática da IC é o de que cada por praticantes de IC que se deseja seguro e de investigação em dan-
pessoa é responsável por si mesma e que a única pessoa que pode ça. Tais espaços parece que contém condições favoráveis a condutas
validar melhor minha percepção sou eu mesma. Porém as rela- que estão impedindo o desfrute da experiência da dança para todes
ções de poder podem manipular nossa percepção, numa constante es corpes presentes. O que gera muita controvérsia e ambiguidade
tensão entre o proposto na exploração corporal da dança e do para o sentido desses espaços, da participação na construção dos
jogo com es parceires enquanto autonomia/autoreferencialidade e mesmos e na leitura do que se está construindo, afinal. Visto que, se
o culturalmente imposto em nossa sociedade onde a validação do silenciada a questão, há um aprendizado sobre isto também ocor-
discurso hegemônico pode maquiar nossa percepção, confundin- rendo e garantindo a reprodução de situações opressoras mascara-
do-a. O sentido revolucionário desta prática pode ser o de tensio- das de ‘experimentação segura em dança’.
nar e reposicionar criticamente o que seria a nossa autonomia e Isso pode estar também sendo facilitado, na medida em que
suas contradições na prática da dança. é tratado como se não fosse assunto da dança em si, me pergunto
Isso pode explicar, por exemplo, o fato de em um encontro como. Se há o desvio de uma potência de investigação auto e corres-
de IC com cerca de 80 pessoas10, 90% das mulheres presentes afir- ponsável sobre es corpes para uma opressão gerando outra experi-
marem que sofreram algum tipo de desconforto ou abuso no início ência de “dança”, diferente da radicalizada no seu caráter libertário
de sua prática em IC. Ou seja, possivelmente há um aprendizado e contracultural? COMO isto não é assunto da dança?
no decorrer da prática que as faz afirmar que isto se deu no iní- Estamos em espaços de investigação e formação em dança e
cio de sua prática e que talvez agora elas tenham ferramentas em TAMBÉM, de reprodução de modos hegemônicos de opressão...
que são capazes de sentir e comunicar (física ou verbalmente) suas Algumas praticantes e comunidades de IC têm debatido sobre este
necessidades, limites, desejos, garantindo segurança para si e sem assunto, com diferentes posicionamentos a respeito.
prejudicar aos outres. Mas, os dados devem voltar a ser olhados de No primeiro semestre de 2019 tivemos a experiência de rea-
muitas outras maneiras: porque 90% daquelas mulheres iniciando lizar entre oito praticantes de IC em Florianópolis, um projeto de
a prática de IC sofreram situações de abuso? Há então a reprodução circulação, formação e acesso dessa dança na cidade, o projeto An-
de violências de gênero presentes em nossa sociedade só que num danças Poéticas na Cidade11. Nem todes es oito da equipe convivía-
contexto que se propõe libertário e inclusivo, cujo princípio é a con- mos e/ou dançávamos entre nós, havia inclusive praticantes que não
fiança! Bastante complexo este quadro, não? participavam de espaços de prática ‘comum’ (Jam da Universidade
Esses dados indicam que possivelmente os princípios da au- do Estado de Santa Catarina – Udesc12) por não se sentirem à von-
toresponsabilidade/corresponsabilidade estão sendo deturpados por tade, sentirem preconceitos variados como machismo, homofobia
comportamentos e condutas que não correspondem e que podemos e gordofobia. Durante o projeto, pudemos fazer aulas entre nós,
afirmar que são comportamentos constantes em nossa vida societal praticar e estudar de modo a rever nossas práticas, incluir diferentes
capitalista, machista e patriarcal. Ou seja, há espaços sendo criados olhares em nossas práticas, começar um processo de rever nossos
preconceitos.

10 Férias Contateiras, fevereiro 2019, Gamboa, SC. www.facebook.com/


events/1812239295519778/. Projeto independente onde fui codiretora artística e traba- 11 www.facebook.com/andancaspoeticasnacidade/
lhei na concepção junto com Autarco Arfini. 12 Espaço de prática regular existente desde 2011.

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Desde os conflitos iniciais que foram sendo explicitados até A cultura do consentimento tem se desenvolvido especial-
este momento, foram quase dois anos, que correspondem ao pro- mente nas relações de poder e gênero, no contexto da dança reco-
cesso de Golpe Político ocorrido aqui no Brasil13, causando, não por nhecemos a IC como a que se dedica de modo mais irradiado. Pos-
casualidade, a necessidade de tomadas de posição mais definidas e sivelmente outras danças que se desenvolvem por meio da partilha
comprometidas com pautas em defesa de direitos humanos, o que (Dança de Salão15, por exemplo) também têm abordado isto. Veja
acaba impactando todas as instâncias de convívio, grupalidades, o quadro a seguir16 que nos ajuda a reconhecer posturas sociais
criação, quer queiramos ou não. que podem facilitar a participação e o exercício da auto responsa-
Nesse período, houve espaço, tempo e abertura de transfor- bilidade e corresponsabilidade na dança.
mação entre nós deste grupo de praticantes de IC em Florianópo- Este quadro desenvolvido pela dançarina Megan Emerson
lis, mas obviamente não é um trabalho terminado, talvez tenhamos a partir de diversos anos de interação entre praticantes de dança
tocado no que se poderia chamar de um início ou uma experiência IC em Oregon, EUA. Parece-me que ele permite a geração de um
momentânea que podemos levar conosco em nossa formação. Para importante processo de autoavaliação e crítica de nossas relações
isso, importa o contínuo processo de aprendizado, prática e estudo e coletividades. Percebe-se no quadro a primeira coluna (vermelha)
de conceitos e valores em dança como algo a ser atualizado nas rela- que seria a que conjuga mais opressão e a última (azul) que pro-
ções de dança e convívio em IC visto que há diversos descompassos move maior inclusão e equidade. Mas é importante lembrar que
entre coexistência, participação e acesso; há pouca diversidade de a evolução, não é uma realidade na experiência humana societal.
corpes, se fazem necessárias as construções de caminhos que pro- Entendo que não há um processo linear e crescente de experiência
duzam visibilidade e efetiva participação14 na experiência de dança. social, cultural, mas sim uma diversidade de combinações e idas e
voltas, densidades e texturas que dão materialidade à práxis social
e neste caso, à experiência do consentimento na dança e da cultura
de consentimento.
13 Desde 2016 vem se configurando de forma mais contundente um processo que pode-
mos chamar de Golpe no Brasil, onde uma série de medidas vem continuamente retirando
direitos humanos e de conquistas da classe trabalhadora. Uma onda de conservadorismo
desde então vem instaurando, intensificando e reforçando opressões e violências já exis-
tentes anteriormente, mas menos explícitas e irradiadas na sociedade. Com a intensifi-
cação, produzem a necessidade de tomada de posição por parte da população nas mais
diversas instâncias, também na dança. Tomar posição seria a possibilidade de não permitir preconceito, misoginia, machismo entre outros comportamentos opressores. Portanto, há
o avanço dessa onda conservadora e neoliberal, no entanto, é sabido que esse exercício de diferenças que não conjugam inclusão e que sendo assim, não devem ser incentivadas.
tomada de posição vem acompanhado da polarização e superficialização do debate, como Pode parecer óbvio falar isso, mas é fato que muitas vezes o discurso da inclusão pode ser
modo de desorientar e criar rupturas dentro da própria população, causando fragilidade incorporado contraditoriamente por modos excludentes de relação!
no interior das relações. Por isso nos é tão caro reconhecer a necessidade do fazer crítico 15 A Cia Grão (www.graodanca.com) de dança de salão, por exemplo, tem uma abordagem
e coletivo hoje em dia. contemporânea, que, entre outras coisas, discute papéis de gênero. Outres artistas dessa
14 Junto a esse exercício de aprendizado e transformação em grupo, percebo que nos pro- dança como Débora Pazetto (SC) e Samuel Samways (MG) também tem buscado fazer a
cessos de inclusão e diversidades, o cuidado com quem incluir (quem acolher numa Jam, autocrítica.
num encontro, numa coletividade de IC, por exemplo), quando e como é fundamental para 16 Publicação feita por Bruno Garrote filósofo praticante de IC e Acroyoga https://www.
garantir coerência de nosso posicionamento em dança e vida, que é no fim, nosso posicio- facebook.com/photo.php?fbid=2316085365117142&set=gm.2183427618422400&-
namento político. Ou seja, nem todes podemos estar incluídes em caso de expressarem type=3&theater (visita em 5/06/2019).

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do Protocolo, talvez muitos de nós estejamos transitando mais em
“Suprimir” “Ignorar” e “Reagir”. Ou seja, há nas diversas comu-
nidades e entre diverses praticantes, diferentes percepções e modos
de lidar com a dança e os valores por ela suscitados.
Na minha experiência e percepção, há comunidades mais ou
menos temporárias de praticantes que vão gerando um aprendiza-
do, em constante mutação, visto que dependem da participação,
aprendizagem coletiva e manutenção/repasse do conhecimento de
dança bem como no que se refere a valores e éticas. Talvez por isso
estejam sendo publicadas as reflexões e experiências por meio de
registros práticos para o acesso a marcos de uma prática inclusiva
e equânime em dança. Se no quadro da cultura de consentimento
está a possibilidade de balizar e direcionar nossas práticas com
marcos que possibilitam a autocrítica; no protocolo aparecem su-
gestões de práticas e condutas mais inclusivas. Além disso, vale
Quadro do Consentimento17.
lembrar o caráter ligado à tradição oral da dança em especial, ou
seja, as experiências mais ou menos coletivas impressas em cada
Considero o Protocolo apresentado em anexo, outro exem- corporeidade vão adquirindo densidades variadas por onde elas
plo de reflexão e sistematização em torno da dança e consentimen- passam e importantes formas de transmissão da práxis. Por isso é
to e mostra-se como um primeiro documento criado mais oficial- importante criar estratégias de avaliação, comunicação e atuação
mente a esse respeito no contexto latinoamericano por parte de que garantam a participação de todes; afinal, políticas por dentro
praticantes envolvides. Ele mesmo contém breve apresentação con- do processo devem garantir e validar uma diversidade de falas.
textual e des autores. Está na íntegra e sem edições18. É possível
estabelecer um diálogo entre o quadro da evolução da cultura de
consentimento e o protocolo criado na Gamboa, e creio que esta-
mos transitando entre “Criar”, “Planejar” e “Sustentar”, isso para
falar do que está escrito no protocolo Gamboa, pois se considerar-
mos as reações de muites praticantes de IC frente ao documento

17 Um relato sobre a Cultura do Consentimento pode ser encontrado aqui: Twenty Years
of Coming to Terms: Shifting from Disempowerment to Activism and Systemic Thinking
Acesso em 14/10/2019.
18 As notas de rodapé ao longo do protocolo são de minha autoria, como um pensar a
respeito do texto construído.

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OUTROS PONTOS DE CONTATO Acredito que para transpor a sensação de impossibilidade de
superação, um caminho seja o de reconhecer onde estão os pon-
tos de resistência, os focos e potências de resistência cultural que
a dança, mais especificamente a IC apresenta. Paradoxalmente,
percebo que nestes pontos se encontram as contradições, desafios
e muitas vezes o seu antídoto, ou seja, neles algo que ocorre como
uma apropriação superficial da potência resistente desloca seu sen-
tido transmutando sua força. Por isso é tão necessário na prática
da IC, fazermos a autocrítica e crítica rigorosas.
Em IC, por exemplo, a abordagem de corpe e de dança, o
discurso seguidamente é o de construir caminhos para a potencia-
lização de corpe e da dança. Tais caminhos se compõem pelo efei-
to do encontro e partilha próprios dessa prática e com diferentes
abordagens das práticas de educação somática num constante con-
vite à observação e autorregulação, caminhos estes que acontecem
junto com outres pares, caminhos estes que se dão na criação de
realidades em eventos pontuais pelas grupalidades mais ou menos
Andanças Poéticas na Cidade. Foto de André Olmos.
Na foto: Cali Ossani, Alejandro Lancelotti e pessoas não identificadas. temporárias. Numa sociedade individualista como a nossa, a IC
Projeto Arco Íris19, junho de 2019. pode ser um convite à experiência de partilha e de cooperação,
o que poderia representar uma prática de resistência. No entan-
to, nenhum de nós está livre dos condicionamentos e preconceitos
Percebo neste processo de pesquisa que o aspecto resistente/ sociais a que estamos cotidianamente sujeitos, por isso, o convite
questionador do status quo na dança é seguidamente transforma- à cooperação em dança, não raro, vem paradoxalmente acompa-
do e desafiado pela lógica perversa do capitalismo, estamos ato- nhado da idealização de parceiro (e até de movimentação), o que
lados, dando voltas a modos de dialogar ou mesmo ‘raquear’20 faz apenas reforçar e frustrar nossa possibilidade de resistência, já
os condicionantes que nos levam de volta, de novo, novamente a que pessoas fora desse escopo muitas vezes não entram na dança
serviço do Capital. Afinal, há como superá-lo sem destruí-lo na ou não se sentem convidadas a entrar. Não tratar destas contradi-
raiz? Sem transformação social efetiva? ções, mantendo as afirmativas da proposta IC como dadas e não
como estando em movimento e tendo que ser validadas a cada en-
contro com cada corpe, é silenciar esses corpes e ao mesmo tempo
esvaziar o debate, despolitizando a prática. As vozes são muitas,
19 https://www.facebook.com/Instituto-Arco-Iris-Direitos-Humanos-815577011919857/ devemos abrir a percepção, incluindo em nosso campo sensorial as
20 Termo raquear da língua inglesa, ocorre no sentido de entrar no sistema operacional de que calam, as que habitualmente não capturam a atenção (atenção
computadores para romper com a configuração e lógica de funcionamento para interesses
esta que é necessariamente condicionada pelo Capital), ou seja,
próprios. Agora o estou usando com o mesmo sentido, para outro contexto: cultural e da
vamos realmente além de nossos parâmetros alienados? Estamos
dança.

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realmente criando políticas de dança mais justas para além das encontro de IC26 em Pernambuco, além de desenvolverem em suas
imposições culturais? práticas e espetáculos, estudos em IC. Numa conversa que reali-
Nos tempos atuais têm sido assunto constante a invisibilida- zamos no Centro de Artes da Udesc sobre “quais corpes podem
de social, na IC não é diferente, um exercício permanente de obser- dançar”, ambas concordaram que vivenciaram situações de gordo-
vação e crítica deve ser feito nessa direção daqueles que, por exem- fobia e homofobia no contexto de práticas de IC. Outras partici-
plo, participam da IC, incluindo as pessoas que estão de algum pantes dessa roda de conversa consideraram a normatividade dos
modo invisibilizadas. Na mesma direção, os assuntos conflitivos corpos na IC um impedimento para participarem das jams sema-
também devem sair de baixo do tapete: questões de gênero, identi- nais oferecidas no local o que levou algumas a criarem situações
dade, classe social, acesso, entre outras, permeiam nossa prática e paralelas para a experimentação em IC. Por exemplo, o vez que eu
discurso de forma a modificá-la na direção de maior equidade so- chego um projeto de montagem cênica com foco em IC e corpas
cial e diversidade na dança? Apesar de haver alguma regularidade dissidentes com direção de Talita Corrêa27 e a presença do IC em
em práticas de socialização de experiências, de discussões varia- obras da Udesc como Sob Medida com direção de Gaia Colzani28,
das em relação aos temas aqui abordados e IC; de haver referên- cuja participação em ações de IC na cidade tem contribuído para
cias práticas sobre diversidade, mediação dos conflitos; apesar de esta discussão29.
algumas de nós estarmos discutindo e experimentando políticas Em Buenos Aires, há três anos, oito mulheres30 entre 25 e 45
de cotas e de existirem muitas bolsas de participação em troca de anos, praticantes de IC criaram um tempo/espaço para elas dança-
trabalho na maioria dos festivais; e apesar de existirem atividades rem entre si, pois se sentiam desconfortáveis com certas situações
gratuitas de IC em grande maioria das cidades pelo mundo afora relacionando machismo no contexto de jams e eventos de IC. Esse
(vide Contact Quarterly21), facilitando o acesso à prática; ainda há tempo/espaço onde dançavam juntas acabou gerando também se-
um longo trabalho a ser feito. minários e uma jam regular na cidade pautadas nas suas experiên-
Em Florianópolis, durante a realização do projeto Permeável cias grupais, aberta a outres participantes.
Corpo Artístico22 , em outubro de 2018, convivemos com Liana Por um lado, se faz necessária a criação de espaços diversos
Gesteira23 e Maria Clara Camarotti24, artistas integrantes do co- conforme os interesses e necessidades des praticantes, o que me
letivo Lugar Comum 25 de Recife e que realizam bienalmente um parece ser muito saudável. Por outro, por vezes parecem serem

26 https://www.coletivolugarcomum.com/encontro-contato-coletivo/.
21 https://www.contactquarterly.com. 27 Talita Corrêa é artista da cena, praticante de IC em Florianópolis. Mestranda no PPGT/
22 https://entraemcontato.wixsite.com/sitepca. Projeto idealizado e produzido por mim, Udesc. Seu Trabalho de Conclusão de Curso (2019) discorre sobre corpes dissidentes em cena.
realizado com o Prêmio Elisabete Anderle 2017 da Fundação Catarinense de Cultura. En- 28 Gaia Colzani é artista da cena, diretora da peça teatral Sob Medida, tem contato com a
volveu as seguintes artistas convidadas: Cristina Turdo e Paula Zacharias (ARG), Iris Forelli prática de IC em Florianópolis. Mestranda no PPGT/Udesc.
e Panmella Ribeiro (BR), Mariana Casares, Catalina Chouhi (URU), Javiera Sanhuesa (CHI).
29 Outro exemplo é o projeto Andanças Poéticas na Cidade que produziu encontro entre
23 Liana Gesteira, dançarina, praticante de IC, integra o Coletivo Lugar Comum em Recife. praticantes mais ou menos engajados na prática e/ou na discussão política da prática,
24 Maria Clara Camarotti, dançarina, praticante de IC, integra o Coletivo Lugar Comum oferecendo atividades e reflexões em Florianópolis ao longo de três meses.
em Recife. 30 A grupa Mamíferas. https://www.facebook.com/mamiferasenconfusion/. Acesso em
25 https://www.coletivolugarcomum.com/. setembro 2019.

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um problema de quem está sensível ao mesmo (da vítima) e não ção na prática. Afinal, como seria a vida se a dança a inspirasse? E
um problema existente no interior das relações ali presentes, ou como seria a dança que se inspirasse na vida que criamos enquanto
seja, de todes! Afinal, geração de uma diversidade de espaços não projeto utópico-político-artístico? Faz-se urgente avançar para além
significa a tomada de consciência e corresponsabilidade frente às dos limites impostos socialmente. Nada justifica atitudes excluden-
demandas nas comunidades de praticantes, apesar de ser uma sina- tes numa prática de IC.
lização dessas demandas e da valorização da autonomia e diversi- Interessa a possibilidade constante de afirmar, afinar a radi-
dade de abordagens; as transformações na dança são demandas de calidade de resistência ao status quo com a prática na sua totalida-
responsabilidade de todes! de: relações em dança e na comunidade que dança que não estão
O caráter de cooperação e improvisação no jogo da dança da alienadas do contexto que nos cerca.
IC é, no meu entender, um convite ao exercício contínuo de atuali- Estou considerando a dança como uma prática social e que
zação, ainda mais tendo decorrido mais de quarenta anos da prática tem uma comunidade que a sustenta, portanto lugar de práticas
de IC, com uma irradiação geográfica e cultural imensa e havendo sociais variadas e contraditórias, território de disputa e criação. Em
vocabulários reconhecíveis, metodologias e acesso a materiais teó- IC podem haver mudanças nos modos de nos relacionarmos com
rico práticos. o toque, o peso, e as outras pessoas, visto que aparentemente se
Não é incomum entre os praticantes a reprodução de valores privilegia investigar e criar em vez de controlar ou manipular; e se
do tipo: a atenção vai para quem dança bem, como se quem ‘domi- prioriza construir experiências com base na autonomia criativa e
na’ a dança detivesse mais direito de fala e de atenção, reproduzin- de manutenção/produção de conhecimento que são extremamente
do de algum modo, relações de poder hierarquizantes. Como se o importantes para a formação e a atuação crítica no contexto atual.
critério de verdade fosse ‘a dança’ num tipo de espectro alienado A mutualidade parece ser um princípio motriz da política da
de suas determinações ético políticas. Se fosse possível assim, seria IC. A construção de uma ética para a dança pode colaborar para
inviável a presença do machismo entre muitos praticantes ‘concei- que a radicalidade da dança siga um pouco mais livre da captura
tuados’, já que é uma dança que, por exemplo, rompe com papéis frenética do capitalismo a toda poética que rompe com suas lógicas
estereotipados de gênero31. Ao radicalizar esse tipo de proposição desumanizantes.
crítica, o que se produz é um fenômeno que a princípio tende a A dança como encontro pode ser que venha da construção
contradizer a própria dança. Ou seja, a mutualidade dos processos crítica de atores sociais/comunidade de dança frente a esse fenôme-
sociais e da técnica/modo/dança; essa comunicação direta passa a no. Uma construção que exigiria dança e encontro e diálogo e dis-
parecer alienada, de modo a que a crítica fique rasa e sem efetiva- senso, sem medo de desestabilizar a aura de dança harmonizada e
romantizada que acaba por se afastar de seu caráter potencialmente
(e urgentemente!) transgressor e vitalizante e participativo e diverso!
31 Na dança, se pensarmos que os portés (carregamentos), por exemplo não são exclusiva- Mesmo estando num marco de ruptura frente a papéis sociais
mente feitos por homens. O foco na dança partir das leis da física e do toque físico acabou e hierarquias em dança; havendo estratégias de encontro e acesso
minando as limitações de papéis de gênero presentes na dança até então. No entanto, a prática da IC e uma crescente irradiação da prática na América
contraditoriamente, a manipulação des corpes segue aparecendo a partir da força física e Latina; há muito ainda a ser construído para se alinhar com uma
nisso, os homens em geral estão favorecidos... Isso demonstra que há uma série de condi-
crítica ao sistema capitalista, colonialista, machista e patriarcal. O
cionantes que precisam se desconstruídos para sairmos de relações de poder e gênero que
que percebo é um processo de desmistificação por parte de alguns
não sejam binárias, machistas e limitadoras.

26 4 265
praticantes (na maioria mulheres) por meio da organização em gru- conhecer e a presença do outro na dança. Dissertação. Pro-
pes, criação de encontros e diálogos que possam focalizar este deba- grama de Pós Graduação em Educação, UFSC: 2012.
te; com organização de materiais escritos (protocolo, fanzine, redes • NOVACK, Cynthia. Sharing the dance: contact improvisa-
sociais, entre outros), etc. Na minha pesquisa, foi possível verificar tion and American culture. Madison, Wisconsin: The Univer-
que o contexto político pareceu intensificar (especialmente na Ar- sity of Wisconsin Press, 1990.
gentina, Chile e Brasil) a urgência de repensar a presença de nosses • QUIJANO, A. “Solidaridad” y capitalismo colonial/moder-
corpes nas ruas, junto a isso, o discurso sobre a diversidade e os no. Otra Economía, v. 2, n. 2, 2008. p. 12-17. Disponível em:
movimentos feministas têm tensionado reflexões e mudanças frente http://revistas.unisinos.br/index.php/otraeconomia/article/
à prática e às coletividades num mundo que deve ser questionado view/1077/269. Acesso em: 10 jun. de 2017.
nos modos de ocupar e construir arte e vida. Num mundo que va- • RANCIÉRE, Jacques. Política da Arte. In: Urdimento. Revis-
lorize a dança como encontro enquanto um feito radical e contra ta de Estudos em Artes Cênicas. n. 15, Florianópolis: Ceart/
hegemônico! Udesc, 2010, pp. 45 – 59.
• REA, Kathleen. Twenty Years of Coming to Terms: Shifting
from Disempowerment to Activism and Systemic Thinking.
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Cláudio Oliveira. São Paulo: Editora Autêntica, 2013. IwAR3V15lLXvD760USphr3wp6NoQSMPy-uoyYh8gRe-
• BANES, Sally. Writing dancing in the age of post modernism. LN14LUTi1EgSQy1ibxY. Acesso em setembro 2019.
New England: Wesleyan University Press, 1994. • SEGATO, Rita. Contra-pedagogías de la crueldade. Edito-
• BOAVENTURA, S. S Meneses, M.P Epistemologias do Sul. rial: Prometeo Libros. Buenos Aires. Argentina, 2018.
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tionality, Identity Politics, and Violence against Women of • SINGER, Mariela. Contact Improvisacion el movimento em
Color. Stanford Law Review. Vol. 43, No. 6 (Jul., 1991), pp. constante presente web: http://jornadassociologia.fahce.unlp.
1241-1299 edu.ar 2014 (pesquisa feita em 26/04/2018).
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Luiz Gustavo Bieberbach; LIMA, Fátima Costa de ; MAT- 3 al 5 de diciembre de 2014, Ensenada, Argentina. EN: Ac-
TIELLO, Emanuele Weber (Org.). Imagens Políticas. Florianó- tas. La Plata: UNLP. FAHCE. Departamento de Sociología.
polis: Letras Contemporâneas, 1a edição, 2017, v. 01, p. 83-97. Disponible en: http://www.memoria.fahce.unlp.edu.ar/trab_
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Pós Graduação em Teatro, Udesc: 2019. subjetividad en contact improvisation. UNA Departamento
• ______________. Contato improvisação: a experiência do Artes del Movimiento- Argentina, 2010.

266 267
ANEXO PAUTAS PAR A ES PRODUTORES-ORGANIZADORES:

A ideia deste protocolo surgiu em um círculo de mulheres32 SUGESTÃO DE CONVITE PAR A O EVENTO:
durante o encontro Férias Contateiras33 (festival de contato impro-
visação na Gamboa, SC, Brasil, que investiga dança e autogestão) Este é um encontro aberto a todes es que tenham interesse
em fevereiro de 2019. na prática do Contato Improvisação com e sem experiência, se-
Ali abriu-se um espaço de reflexão onde pudemos identificar jam mulheres cis ou trans, homens cis ou trans, pessoas binárias
que muitas de nós (90% das que estávamos presentes) quando nos e demais interessadas, todes são bem vindes ao evento.
iniciamos na prática de CI sofremos algum tipo de “abuso/inco- A diversidade cultural e corporal é importante para a cons-
modidade” (em relação a sexualidade, a força, a entrega de pesos, trução deste evento [nome do evento]. Buscamos a presença da
etc.), por parte de algumas masculinidades. diversidade de corpes e suas culturas, como negros, povos origi-
Apesar de que o CI é uma dança que não pressupõe hierar- nários que brindem alteridade do posicionamento de seus corpes
quias de gênero nem de nenhum tipo, visualizamos que dentro tanto na pista como no espaço de convivência e autogestão.
da prática se replica o que ocorre na sociedade em que vivemos, Deixamos as portas abertas para corpos/corpas gordas, mui-
uma sociedade neo-liberal, patriarcal que normalmente afirma to magros, com capacidades diferentes, físicas, motoras ou afins.
posições de poder e dominação em relação a mulheres cis, trans, Com mais diversidade crescemos todes.
diversidades corporais e culturais.
Este “protocolo” foi elaborado como sugestões para futuros NÃO TOLERAMOS PRECONCEITOS DE DISCRIMINAÇÃO DE NENHUMA ORDEM EM ES-
encontros para gerar um marco de prática onde liberdade não seja PECIAL A: MULHERES, HOMOFOBIAS, TRANSFOBIAS, XENOFOBIAS, LESBOFOBIA NEM
delimitada pelo domínio patriarcal e onde se respeitem os limites RACISMO, ENTENDENDO QUE A PRÁTICA DE CONTATO IMPROVISAÇÃO EMERGE EM UM
de cada um assim como as diferenças. CONTEXTO CULTURAL QUE PRETENDE A EQÜIDADE DOS CORPOS NA DANÇA ASSIM
É importante que se compartilhe tanto com participantes COMO A CRIAÇÃO DE REDES QUE TEM UMA MIRADA LIBERTÁRIA. ENTENDENDO QUE AS
como com docentes, produtores e visitantes. “PIADAS” VINCULADAS A DISCRIMINAÇÃO SÃO “MICRO” PRÁTICAS DE DOMINAÇÃO, TÃO
Sentimos que estamos começando a dar visibilidade a situa- POUCO SÃO BEM-VINDOS.
ções que não eram nomeadas nem sobre as quais se refletia.
O objetivo não é estigmatizar, mas sim buscar entre todes SUGESTÃO DE ATIVIDADES:
uma solução.
1 - Aulas para iniciantes onde poder visibilizar os marcos da práti-
ca desde uma perspectiva de género dentro do contexto histórico.
2 - Incorporar como atividade do evento um “círculo de mulheres
cis e trans” nos primeiros dias do festival. Seria importante tam-
bém fazer um “círculo de masculinidades”.
3 - Designar focalizadoras* que possam criar uma rede de apoio
para mulheres e corpos dissidentes.
32 Círculo e encaminhamentos práticos dos quais participei.
4 - Ler o protocolo no círculo inicial do evento nomeando os ob-
33 Do qual participei como coprodutora/coidealizadora e dançarina.

268 269
jetivos durante a recepção, assim como apresentar as “focaliza- de comportamento apropriado no meio ambiente da jam” (Martin
doras”. Keogh 101 maneiras de dizer não)36.
*
As focalizadoras serão praticantes de CI com experiência
na prática, estarão disponíveis34 para escutar, acompanhar as pes- POSSÍVEIS ATIVIDADES PAR A TR ABALHAR
soas que se sintam abusadas no evento. Mirada aberta ao espaço DENTRO DO “CÍRCULO DE HOMENS”:
de prática.
• Brindar os marcos da prática.
POSSÍVEIS ATIVIDADES PAR A TR ABALHAR DENTRO DO “CÍRCULO DE • Corpo empático e sensível.
MULHERES LÉSBICAS, TR AVESTIS, TR ANS, BISSEXUAIS, NÃO BINÁRIAS • Como tornar-nos brandos e não utilizar a força para o
E INTERSEX” (ESPAÇO DE CUIDADO FÍSICO E SENTIMENTAL): contato?  
• Observa como estabeleces contato com as masculinida-
• Sexualidade feminina, prazer. des e como com as corpas femininas, notas alguma dife-
• Explorar maneiras de dizer não de forma física e verbal rença? Consegue nomeá-las?
(tem que ser claramente explicado aos iniciantes). Vali- • Agudizar a escuta. Entendo os limites?
dar as “sensações incômodas” para permanecer ou não • (sugestões de jogo em uma dança: abandonar o corpo
em uma dança. quando te sintas poderoso)37.
• Brindar os marcos da prática. • (experimentar a aproximação em diversos níveis - lento,
• Aguçar a escuta*. rápido, em silêncio).
• Fomentar o diálogo, leituras, reflexões e massagens en- • (afastar-se de uma dança quando te sintas poderoso e/ou
tre nós. trocar de parceiro/a).
• Criar rede. • (proposta de exercício: não tomar a decisão de iniciar
• Jam. - inibir o primeiro impulso de resposta - ir fundo na es-
pera com foco na respiração enquanto dança a espera)*.
“Quando seja que dançamos há uma prova do que é con-
*

sensual35. Vais aceitar meu peso? Podemos ir rápido? Podemos ir sugerido por masculinidades que assistiram ao círculo de homens.
*

bem, bem lento? Ocasionalmente me encontro com alguém e con-


sensualmente trazemos uma energia erótica ou sedutora para a
dança, provamos o que é bem vindo para ambos. Há segurança
no intercâmbio porque somos acompanhados por nossa sensação
36 “o que é ‘apropriado’ no meio ambiente da Jam” afirmado pelo autor, me parece indicar
que é algo construído culturalmente e que pode ser de conhecimento de todes, a media-
ção a este respeito é fundamental, especialmente para iniciantes. Entendendo que qual-
34 Sugiro também que estejam informadas de nossas construções históricas relacionadas quer cultura de dança se aprende ao longo de um tempo de dedicação, mas que podemos
ao machismo, capitalismo, colonialismo e patriarcado. sim, socializar certos marcos simplificados para garantir que todes participem de forma
35 Creio que isso é empapado de condicionantes históricos, ou seja, há que treinar/inves- mais e mais auto e corresponsável.
tigar o diálogo físico com estes marcos. 37 A pontuação e edição foi feita pelas autores.

270 27 1
SUGESTÃO A PR ATICANTES: • És praticante com experiência?
• Você gosta de investigar e explorar teus limites? Busca
Recém começas a bailar és mulher, lésbica, travesti, trans, corpos que compartilhem teu interesse39, agudiza tua
bissexual, não binárie, intersex? escuta, colabora para que o espaço de prática siga sendo
• Podes pedir que te expliquem quais são os marcos da um espaço livre.
prática.
• Contata com as “focalizadoras”. O que sucede no salão é responsabilidade de todes, é um
• Assiste ao “círculo de mulheres” espaço de construção coletiva, deste modo é fundamental que te-
• Valida tua intuição! nhamos a “escuta” e a mirada aberta ao que acontece em nosso
• Sentes que o toque está direcionado a um lugar que não espaço de prática. Em caso de ver uma situação de abuso (uma
queres? Sentes que não há equidade energética, que a dança onde não há reciprocidade, equidade energética, uma dança
manipulação não é um jogo? Abandona essa dança, bus- que se mostra “incomoda”, na qual há manipulação e não é jogo,
ca outra. E podes comunicar a “focalizadoras” e/ou a uma em que não há liberdade) podemos aproximar-nos da dança
quem esteja perto, e/ou a pessoa com quem bailas. e se é necessário intervir com nosso corpo/a ou palavras.

LIMITES: SUGESTÕES E POSSÍVEIS CAMINHOS


EM CASO DE ABUSO DENTRO DO ENCONTRO:
• Não consegues colocar o limite nem física nem verbal-
mente? Busca outro corpo dançante que te ajude ou lo- • Escutar a pessoa abusada e mediar no processo de apren-
caliza as “focalizadoras”. dizagem.
• Podes aceitar ou rejeitar danças sem ter que dar expli- • Conversar com a pessoa que cometeu o abuso.
cação. • Em caso de insistência na prática de abuso, a pessoa que
• Porém se precisas estratégias, podes dizer que vais ao não entende e insiste em ultrapassar os limites que lhe
banheiro, a beber agua ou que estas cansada38. pautam, será convidada a retirar-se do encontro40 prio-
• Vieste sozinha? Pede para a organização que te contate rizando que, o clima do encontro seja seguro para es
com a rede de apoio para mulheres. praticantes de CI.
• A prática e investigação necessita de um ambiente de
confiança, escuta e liberdade.
38 Infelizmente estas não são soluções para o problema já que não responsabiliza a pes-
soa que gera as incomodidades. Creio que ainda há um processo de responsabilização na
Gamboa, SC, fevereiro de 2019. mulheres, lésbicas, trans,
dança a ser revisto na formação em relação à formação das masculinidades. Parece-me bisexuales, não binaries, intersex de Brasil, Argentina, Bolívia,
que não se trata apenas de instrumentalizar as mulheres e outras dissidências, apesar de
ser muito importante. A criação de espaço e de danças seguras é de responsabilidade de
todes, em especial das pessoas com mais poder (homens cis estão no topo dessa relação,
professores e produtores mais ainda... Enfim, devemos nos reportar à noção da intersec- 39 E que estejam aptos a acolher ou dizer não para tuas propostas.
cionalidade para considerar a corresponsabilidade de forma equânime. 40 Sugiro incluir a possibilidade de chamar a polícia.

27 2 27 3
Chile, Colômbia, afrodescendentes e originárias. Reeditado em
Fpolis, SC em agosto de 2019 no encontro CI Consentimento41
no Espaço Transformando42 . Participaram da releitura mulheres,
lésbicas, trans, bissexuais e homens não binaries, hetero e homos-
sexuais, todas praticantes de CI.

Fim do protocolo.

41 https://www.facebook.com/events/463827607707856/
42 https://www.facebook.com/espacotransformando

274
ANA LUIZA CISCATO – Pedagoga, arte-educadora e DANÇAR, UM FIO CONDUTOR PAR A A INCLUSÃO.
professora de dança. Teve sua formação inicial Ana Luiza Ciscato
em dança clássica pela Royal Academy of Dance
(Brasil, 1985) e pela Metodologia Cubana de
Dança Clássica (Cuba, 1993). Há mais de 20

I
anos trabalha com a inclusão social por meio da nclusão é um tema muitas vezes subestimado pelo excesso de
dança. Especializou-se em dança pelos institutos seu uso. Incansavelmente discutido nos meios de comunica-
Steps e Martha Graham School, em Nova York ção, o assunto acaba nos transportando para a escola ou para
e paralelamente em uma técnica de apoio às pes- a acessibilidade das pessoas com deficiência, mas a abrangência
soas com deficiências através da dança conheci- da discussão da inclusão – nos meios específicos – vai muito além
da como Psicoballet, em Cuba, 1993. Com os do óbvio.
conhecimentos adquiridos em Cuba, iniciou em Para desenvolver um trabalho inclusivo é necessário abra-
1995 o Projeto Criança que Dança, enquanto di- çar uma visão inclusiva de mundo. Conhecer o desenvolvimento
retora do Ballet Carla Perotti de São Paulo – SP. das pessoas e acreditar nesse processo através da conscientização
Em 2003 aplicou o Psicoballet na Estação Dan- de que todos temos reconhecimentos, inteligências e capacidades
çar, escola que fundou em Florianópolis, com diferentes. Essa soma é precisamente o que agrega interesse e um
foco na inclusão de pessoas consideradas com aumento de possibilidades para a resolução de questões que dialo-
deficiência. Desde 2006, atua como professora gam com a sociedade como um todo. Todos temos formas diferen-
e diretora artística do grupo de dança da APAE tes de nos expressar, de aprender, de nos colocar diante da vida.
de Florianópolis. Por este trabalho, recebeu o A partir do momento em que essa essência for respeitada, aceita e
Prêmio Franklin Cascaes de Cultura em 2010. valorizada, teremos uma sociedade mais justa por meio de condi-
No ano seguinte, obteve certificado de professora ções igualitárias de desenvolvimento e empoderamento, seja qual
pelo método norte-americano DanceAbility. Em for a forma de expressão e de atuação, de identificação de gênero,
julho de 2012, coreografou e codirigiu o espetá- idade, etnia ou crença das pessoas.
culo BREATHE – Battle of the Winds, abertura Sob a luz de que inclusão é uma via de mão dupla – de um
oficial dos Jogos Náuticos na Olimpíada de Lon- lado a pessoa com deficiência e de outro toda uma sociedade com
dres. Desde 2014 é diretora artística da Cia. de valores e conceitos preestabelecidos historicamente a respeito da
Dança Lápis de Seda. deficiência – quando trabalhamos ou pensamos em inclusão nunca
podemos esquecer disso. O trabalho deve surtir efeito nessas duas
esferas.
Segundo Vigotsky (1924), toda deficiência afeta antes de
tudo as relações sociais da pessoa e não suas interações diretas
com o ambiente físico. O “defeito orgânico” se manifesta inevita-
velmente como uma mudança de status social. Desde muito cedo,
pais, familiares, professores e colegas dão um tratamento diferen-

276 27 7
ciado a essa pessoa. Ora de forma positiva, ora negativa. Mas ca- é possível. No entanto, a arte leva a vantagem de necessitar de
tegoricamente diferente. Se estabelece então uma relação social materialidade, de concretude.
diferente. O autor acredita ser essa a principal diferença entre o
homem e os animais: um animal que apresente qualquer defici- Qualquer modalidade artística pressupõe ação, seja através da
ência, não terá em hipótese alguma sua “personalidade” afetada. escrita, da plasticidade dos materiais, da palavra, dos sons ou
Entre o ser humano e seu ambiente físico, encontra-se um das cenas. A arte pode até nascer de um sonho, mas, para que
ambiente social: um lugar de retratação e transformação de suas seja arte, pressupõe a ação do corpo, o movimento, o comparti-
ações recíprocas com o mundo. Portanto é o problema social re- lhamento entre pessoas. Sim, pois ainda que um quadro pintado
sultante de uma deficiência que deve ser considerado principal; e jamais seja exibido para alguém, ele pressupõe, na sua própria
por essa razão, a educação social – baseada na compensação social essência, a presença do espectador.
dos problemas orgânicos – deve ser o ponto forte a ser trabalhado
para proporcionar o desenvolvimento geral (intelectual, emocio- A arte tem um alto poder transformador por estar direta-
nal, motor, sensorial) da pessoa com deficiência e, consequente- mente ligada ao fazer. A pessoa com deficiência tem, especialmen-
mente, transformar não suas atitudes, mas o olhar do outro, do te graças à segregação social, restritas possibilidades de fazer. Está
normatizado. Isso contribui para a diminuição de preconceitos e sempre diante do estigma da incapacidade e por essa razão, em
do equivocado senso comum que acredita que o deficiente intelec- grande parte das vezes, tem alguém que faça por ela. Segundo
tual não possui capacidades ou habilidades. Vigotsky (1924), o ato de fazer, ao mesmo tempo que transforma
Pensar nas artes em geral como um caminho para inclusão o mundo também nos transforma, numa dança dialética que im-
social das pessoas com deficiência pareceu, para mim, uma possi- pulsiona a evolução humana.
bilidade particularmente edificante. É trilhar por onde não exista A inclusão celebra a diversidade e a arte utiliza essa diversi-
o que é considerado “certo” e o que é considerado “errado”, como dade como matéria prima para sua realização.
em outras atividades sociais humanas. É, de certa forma, um ca-
minho não trilhado em toda a sua distância (apesar da vulgariza-
ção do termo). Um olhar libertador que promove não só a possibi- UM REL ATO EM PRIMEIR A PESSOA A RESPEITO DOS GRUPOS
lidade de uma maior expressão do que há em nós, mas também de APAEDANÇA FLORIPA E CIA. DE DANÇA L ÁPIS DE SEDA.
transformação. Quando criamos artisticamente em determinadas
condições favoráveis, estamos experimentando em nós mesmos e Relato aqui um pouco da minha experiência profissional,
criamos diferentes ângulos de contato com o mundo ao nosso re- sobre a qual utilizo a dança como um fio condutor para o desen-
dor. Esse processo pode ser altamente enriquecedor e podemos, da volvimento da pessoa com deficiência. Essa experiência foi cons-
mesma forma, descobrir e desenvolver em nós capacidades e ob- truída ao longo do dia-a-dia em mais de 25 anos de trabalho e
servações antes totalmente desconhecidas. Além de oferecer como transcende métodos e padrões. Conforme se faz, se cria.
resultado um produto artístico e a possibilidade de compartilhar Partindo do princípio de ser impossível separar o cognitivo,
esse ideal de transformação com o público. o físico e o emocional, ou seja: considerando o ser humano como
Segundo Flávio Gonzales (2009, p. 4), arte e sonho abraçam um todo, percebo que é no corpo que se é o que se é. Dessa manei-
o exercício maior das possibilidades criativas. A partir deles tudo ra, é nele que a individualidade e a integralidade se apresentam e,

278 279
portanto, convém experimentá-lo, ensiná-lo, conhecê-lo. Conhe- Com essa visão, iniciei o trabalho na APAE de Florianópolis
cer o próprio corpo faz parte da definição da identidade. É nesse em 2004. O grupo APAEDança Floripa nasceu de uma experiên-
jogo de descobertas que os outros corpos diferentes nos mostram cia de dança clássica somada ao trabalho de desenvolvimento das
quem somos. A dança – fazer artístico que mantém o corpo em pessoas com deficiência e possibilitou um ambiente onde bailari-
movimento – possibilita tais descobertas. nos experientes e alunos do Grupo de Dança da APAE formassem
A princípio, foi com base nesse entendimento que iniciei o tra- uma unidade. O foco do trabalho não deixou de ser “terapêutico”,
balho com dança inclusiva: com o objetivo único de utilizar a dança mas a partir dele desenvolvemos a produção artística: peças e co-
como elemento propulsor. Pautado no fato de possibilitar a exterio- reografias, cujas criações nasceram essencialmente do trabalho em
rização de potencialidades que permitem a vivência do corpo e, por conjunto.
meio dele, estabelecer ligações com o mundo externo. Representar Frequentar espaços sociais onde a presença de pessoas com
uma forma de expressão extraverbal, isso é o que desencadeia o deficiência é tão rara – como festivais de dança, congressos de
equilíbrio entre corpo, emoção e razão. arte e educação, hoteis e aeroportos – impulsionou nos bailarinos
Visei ampliar as capacidades das pessoas ao utilizar seus cor- um sentimento de empoderamento. Um sentimento de orgulho. O
pos de forma completa, harmoniosa, respeitosa e responsável, pro- palco e todo o seu entorno representam, agora, um lugar de reco-
porcionando um bem-estar físico e psíquico. Incentivar um maior nhecimento, de autoria. Um lugar de libertação.
poder relacional e de comunicação. Não menos importante, mes- Observei a construção desse lugar em todas as ocasiões em
mo que em segundo plano no trabalho, esse processo promove be- que tivemos a oportunidade de dançar: por exemplo no Festival de
nefícios mais conhecidos da prática da dança, ligados ao próprio Dança de Joinville, nos anos de 2008 e 2009. Mais uma vez pude
domínio e capacidade de orquestração estética dos movimentos. O presenciar a ocupação, por essas pessoas, de lugares essencialmen-
objetivo é, antes de mais nada, a inclusão e observação das diversi- te “normais”, o ambiente da competição, da apresentação de dan-
dades por meio das relações possíveis entre humano-corpo, suas ou- ça, da busca por corpos “perfeitos”, esguios, brancos, definidos,
tras dimensões e o resto do mundo, de maneira não estanque. Não esticados. E essa observação me fez concluir que, no fundo, todos
havia a preocupação com o desenvolvimento de habilidades, mas buscamos a evolução dos nossos corpos, e o resultado é sempre
com as inteligências que vem do corpo no sentido da construção e inesperado.
sustentabilidade de processos vitais, entre eles, o sentimento de per- Em 2010, no Congresso Mundial de Artes IDEA, em Belém,
tencer, a motivação e a curiosidade pelo mundo, a possibilidade de Pará, conhecemos artistas do mundo todo que desenvolviam tra-
experimentar o amor em suas relações. Construções acima de tudo balhos com a mesma proposta do nosso. Pela primeira vez, tínha-
pessoais, sem as quais a vida não se estabelece nem se sustenta. Que mos um parâmetro real de comparação, que nos dava subsídios
os “normais” vivenciam e são encorajados a vivenciar, mas que são para avaliar a qualidade artística/autoral do grupo. Foi um estí-
historicamente negadas aos “diferentes”. mulo para todos os envolvidos constatar que estávamos no cami-
Nesse ambiente, onde diferentes tipos de corpos trabalham nho certo: recebemos incentivos e aplausos de pessoas que trilham
juntos, com suas características diversas, não cabe distinção entre esse caminho há muitos anos e possuem uma rica experiência em
eles e podemos desconstruir conceitos como deficiência ou normali- arte e inclusão. Tony Horitz, diretor da ONG inglesa Diverse City
dade. Aqui, o que importa é o benefício da diversidade, e não o que foi uma dessas pessoas. Depois de conhecer nosso trabalho, nos
possa ser socialmente considerado ou entendido como deficitário. convidou para uma parceria. No decorrer dos encontros e reu-

280 281
niões sobre o tal projeto, nos vimos diante de um desafio muito Winds, um espetáculo de dança 100% inclusivo, 100% autoral,
maior do que imaginávamos: a participação no show de abertura com um nível de diversidade visível em todos os andares da produ-
dos Jogos Náuticos nas Olimpíadas de Londres de 2012. ção: o diretor, Jamie Beddard, tem diagnóstico de paralisia cere-
O trabalho começou a ser elaborado no início de 2011. Atra- bral; a roteirista, Alex Bulmer, tem deficiência visual; uma equipe
vés de encontros virtuais mensais, a criação coreográfica foi de- rica em diversidade e que, sob um olhar menos atento, poderia
senvolvida sempre em conjunto. Dividimos a direção artística eu, parecer não tão revolucionária assim: tudo estava tão organizado
Louise Katerega e Deborah Baddoo, diretoras dos grupos Foot in e funcional que as diferenças de cada um não chamavam tanto a
Hands Dance e State of Emergency, respectivamente. Nosso gru- atenção quanto às relações de equidade do conjunto. Os diferentes
po interagia com os bailarinos ingleses e conseguia se comunicar tinham a mesma importância, o mesmo empoderamento que os
apesar da barreira do idioma. Esses encontros tomaram vida pró- normais – seja como bailarinos, cargos artísticos de grande res-
pria, e se tornaram um grande intercâmbio cultural para todos os ponsabilidade, ajudantes ou colaboradores na plateia.
envolvidos. Das lições aprendidas nesse curto período, a maior foi: a
Em maio de 2012, recebemos em Florianópolis uma dele- inclusão é possível. Meu antigo sonho de profissionalizar esses
gação de aproximadamente 20 pessoas, entre elas os bailarinos, a bailarinos considerados “deficientes”, já era uma realidade do ou-
roteirista, o diretor, a figurinista e as duas coreógrafas parceiras. tro lado do oceano. Depois de todo o caminho percorrido, o re-
Trabalhamos oito horas por dia durante 20 dias. O espetáculo foi conhecimento vindo do palco, do espetáculo e dos aplausos, tudo
estruturado em meio a um ambiente de respeito, amabilidade e um isso era, é, uma possibilidade real na vida dessas e de incontáveis
nível de profissionalismo absolutamente inédito para mim. outras pessoas.
Em julho de 2012 embarcamos para o Reino Unido: Lon-
dres, Bournemouth, Weymouth e Pool, com uma delegação de 25
pessoas. Foram dias muito produtivos e de vivências inesquecíveis.
Deparamo-nos com uma realidade muito diferente da nossa em
relação à inclusão social. Essa palavra, “inclusão”, não é dita. Não
é necessária. A sociedade abraça essas pessoas e as torna parte
integrante do todo social. Todas são alfabetizadas, estão inseridas
no mercado de trabalho e, acima de tudo, têm voz no âmbito so-
cial. A pessoa com deficiência da Inglaterra continua lutando por
seus direitos, nem tanto com enfoque em sua condição, mas sim
por ser uma cidadã como qualquer outra. O Reino Unido tem se
destacado como referência em acessibilidade e equidade de direitos
das pessoas com deficiências desde o estabelecimento do Ato de
Equidade de 2010, que prevê para essas pessoas direitos trabalhis-
tas, sociais, de acesso à saúde, benefícios do governo e muito mais.
Nosso trabalho conjunto, de três diretoras artísticas e um
elenco de bailarinos-autores, culminou em Breathe – Battle of the [1]

282 283
podem criar, expressar e construir, com liberdade, individualmen-
te e em grupo. É no campo da arte, entendida como metáfora da
própria vida, que temos a possibilidade de experimentar livremen-
te, sem repressão, sem precisar ser “normal”.
Depois de um extenso período de apresentações do espetá-
culo Convite ao Olhar (2014-15), no qual embarcamos em turnês
e participamos de diversos tipos de eventos, comecei a notar nos
bailarinos aquela mesma sensação de empoderamento e autoria
que conquistamos no Breathe. Mais uma vez percebi que prevale-
ceu a química do grupo versus as disparidades corporais. Com as
questões individuais superadas, fica para trás a “auto repressão”;
vem o orgulho de si, do seu corpo, de quem nós somos. Só con-
seguimos observar essa evolução individual em sua totalidade ao
observar a evolução do grupo.

[2]

Em 2014, por intermédio de leis de incentivo à cultura do


Governo Federal, foi criada a Cia. de Dança Lápis de Seda, em
parceria com o Baobah Estúdios de Autocriação e da ÁPRIKA
Cooperativa de Arte. Essa companhia, com foco inclusivo, reúne
10 bailarinos com variadas características motoras/físicas e inte-
lectuais, sendo que algumas dessas pessoas apresentam caracterís-
ticas consideradas “comprometedoras ao desenvolvimento” (um
termo desafiador, que sempre me dá vontade de subverter).
É por meio desse grupo misto e heterogêneo que se poten-
cializou uma experiência criativa nesses indivíduos. Cada um con-
tribui a sua maneira e com as possibilidades que têm a bordo. O
que falta ou o que excede, segundo modelos adotados de “norma-
lidade”, sinceramente não poderia importar menos, especialmente
depois da nossa experiência no Reino Unido.
Ao utilizar a arte como propulsora da evolução social do
grupo, surge um domínio onde não existe certo nem errado. Todos [3]

28 4 285
[4] [5]

O processo de criação e desenvolvimento do próximo espe-


táculo, Será que é de Éter?, inspirado no trabalho de Chico Bu-
arque, levou essa evolução a um novo patamar: a rotina de pre-
paração e ensaios agora incluía novos personagens, um grupo de
músicos que se apresenta ao vivo, no palco, com os bailarinos. A
relação entre todos esses atores se aprofundou ao longo de toda a
jornada do espetáculo e, se já podia ser notada por trás das cenas
desde os primeiros momentos, hoje é perceptível para o especta-
dor, no palco. As transformações positivas em todos os envolvidos
foram impressionantes para mim, e a partir daí, sinto que a Cia.
ganhou novos membros no grupo liderado pelo diretor musical
do espetáculo, Luiz Gustavo Zago e pela cantora e parceira nesse
projeto Cláudia Passos.

[6]

286 287
LEGENDAS
Concluí que os “meus” bailarinos, sob a “minha supervi-
(1) Cia. de Dança Lápis de Seda | Foto: divulgação
são”, agora são um elenco firme, autoral, empoderado, com direito (2) Cia. de Dança Lápis de Seda | Foto: divulgação
à decisões de todos os tipos e que, livres das amarras da norma- (3) Espetáculo Convite ao Olhar | Foto: Cristiano Prim
tização social, demandam uma participação artística relevante (4) Espetáculo Convite ao Olhar | Foto: Cristiano Prim
em toda a produção da companhia. Isso acontece porque eles são (5) Espetáculo Será que é de Éter? | Foto: Tóia Oliveira
bailarinos profissionais, remunerados, conscientes e ativos na ati- (6) Espetáculo Será que é de Éter? | Foto: Tóia Oliveira
(7) Cia. de Dança Lápis de Seda | Foto: Cristiano Prim
vidade da criação. Convidam o público a olhar – não os limites
de cada um, mas o espaço que existe além. Não o que eles, nós,
temos de diferente, mas o que temos de parecido: o que não existia
e tivemos a oportunidade de criar juntos.
REFERÊNCIAS

• ARANHA, Maria Salete Fábio. Integração Social do Defi-


ciente: Análise conceitual e metodologia. Temas em psicolo-
gia 2, 1995.
• ARTE SEM BARREIRAS. Educação, arte e inclusão. Edição
Especial. Anais do 1º Congresso Internacional. Ano1, nº2.
Belo Horizonte: PUC/Minas. Dezembro de 2002 a março de
2003.
• LOURO, Viviane (Organizadora). Arte e Responsabilidade
social: inclusão pelo teatro e pela música/ Viviane Louro;
Sergio Zanck; Alex de Andrade; Lisbeth Soares; Flavio Gon-
sales. Santo André: TDT Artes, 2009.
• PESSOTTI, Isaías. Deficiência Mental: da superstição à ciên-
cia. São Paulo: T. A. Queiroz.
• VYGOTSKY, Lev Semyonovitch. Estudos sobre a história do
comportamento: Símios, homem primitivo e criança. Trad.
Lólio Lourenço Oliveira. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
• ______________. Obras Completas. Tomo cinco. Cuidad
de la Habana: Editorial Pueblo u Educacion, 1995.
• Individuals with Disabilities Education Act (IDEA), pan-
[7] fleto da American Psychological Association. Disponível em:
http://www.apa.org/about/gr/issues/disability/idea.aspx

288 289
ISABEL MARQUES – Diretora do Caleidos Cia. de CALENDÁRIO DE ENCONTROS:
Dança e do Instituto Caleidos, em São Paulo, DANÇA E TR ANSFORMAÇÃO 1
capital. Contemplada pela Bolsa Vitae de Artes, Isabel Marques
pelo Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna,
pelo Programa de Fomento à Dança para a Ci-
dade de São Paulo e pelo Programa de Ação

E
Cultural do Estado de São Paulo. Doutora em ncontros são redes de relações que se distendem no tempo
Educação pela USP, MA in Dance Studies pelo criando calendários móveis de memórias que se presentifi-
Laban Centre (hoje Trinity Laban, Londres) cam nos cruzamentos de muitos espaços. Nesse artigo, me
e Pedagoga pela USP. Dedicada à pesquisa e volto às memórias presentes de encontros que me fazem refletir
produção artística nas áreas de interface en- sobre a dança em tempos e espaços de educação e arte. Comemo-
tre dança/educação. Autora dos livros Ensino ro 10 anos de verdadeiros encontros proporcionados pelo Múl-
Dança Hoje (6ª. Ed), Dançando Na Escola (6ª. tipla Dança.
Ed), Linguagem Da Dança (Prêmio Funarte de
Dança Klauss Vianna, indicado para o Prêmio
Jabuti 2011), com Fábio Brazil publicou Arte 21 DE JULHO DE 2009
Em Questões (Prêmio Fomento à Dança SMC/ Proferi palestra de abertura sobre “Dança e Educação” no
SP, indicado para o Prêmio Jabuti 2012). Seminários de Dança 3 no Festival de Dança de Joinville.
ISABELMARQUES1964@GMAIL.COM
Reencontrei Marta Cesar. Nesse encontro de profissionais
da dança, discuti com o público as diferenças entre contatos e
relações nos processos de ensino e aprendizagem na dança, tendo
como fio condutor o livro “Educação e Mudança” de Paulo Freire.
O texto desta palestra está publicado no livro verde do seminário
para o qual olho agora na prateleira da biblioteca do Instituto
Caleidos. Volto ao livro e ao texto com frequência, pois vejo elu-
cidados ali vários aspectos do que acredito ser um dos propósitos
da dança/educação: estabelecer encontros que gerem relações ( e
não somente contatos). Digo no artigo que “os contatos são refle-
xos, enquanto que as relações são reflexivas. Contatos são incon-
sequentes, já as relações, consequentes. Para Paulo Freire, os con-
tatos não transcendem, são intranscendentes; transcendentes são

1 Agradeço a Fábio Brazil pela leitura crítica e contribuições para este artigo.

290 291
as relações. Os contatos são intemporais ao passo que as relações 23 DE FEVEREIRO DE 2016
são temporais. Em suma, os contatos são unívocos, monológicos, Ouço da janela de meu apartamento panelas batendo e
estáticos. As relações são plurais, dialógicas, transformadoras”. gritos de “fora vagabunda”. Ligo a TV e escuto o pronuncia-
Transformar, “fazer mudar de forma, de aspecto, qualquer alte- mento da presidente Dilma Roussef.
ração de um sistema”, dizem os dicionários. Encontros e trans-
formação, tema que me cabe no convite desta publicação. Acho Que país é esse em que a presidente da República é chamada
que Marta se lembrou dessa palestra e por isso me convidou para de vagabunda aos gritos pela janela de um bairro de classe média
escrever este artigo. em São Paulo? Teriam feito o mesmo se fosse um presidente ho-
mem? Fico assustada com esse comportamento misógino generali-
zado que se instaura. À misoginia alia-se a homofobia, o sexismo e
01 DE DEZEMBRO DE 2015 o machismo. Inevitável não me lembrar do quanto a dança, por ser
Visitamos uma Escola de Ensino Médio ocupada historicamente considerada “coisa de mulher”, tem também sido
na Zona Oeste de São Paulo. excluída, desprezada, diminuída nos meios educacionais e sociais.
É no máximo um enfeite, um divertimento dominical dos famosos
Primeiro impacto: se não fosse pela mobilização dos estu- que entretém as massas. Ao mesmo tempo, percebo o quanto a
dantes, acreditaria estar em uma escola do século XIX. “Celular dança tem, ao contrário disso, empoderado mulheres, LGBTQI+s
não combina com escola”, dizia um cartaz canhestro pregado na e crianças que sofrem constantemente a violência de batedores de
parede de entrada da escola. Como assim? É patente como as esco- panela. Sempre acreditei que se o encontro com a dança for de fato
las públicas não estão sendo capazes de acompanhar e compreen- uma experiência, ela não só empodera ou fortalece, ela transfor-
der os novos encontros que se dão nos twitters, tinders, facebooks, ma as pessoas e pode também transformar contextos sociais.
skypes, instagrams etc.! Essa anacronia tem desencadeado, certa-
mente, os des-encontros entre gestores, professores e estudantes
que as ocupações evidenciaram. As mobilizações dos estudantes 05 DE MAIO DE 2016
incluíam calendários com dança. Danças que aprendem pelos ce- Recebi convite para integrar a equipe de assessores do
lulares, com pessoas que conhecem pela internet e que permitem governo Fernando Haddad na Secretaria Municipal de
encontros de outra ordem – a ordem virtual, tão real e significativa Educação de São Paulo. Aceitei.
quanto a presencial. Assim eles aprendem suas danças. Pergunto-
-me: os professores são, então, dispensáveis? Confesso que ainda Quase 25 anos depois retorno à Secretaria de Educação
acredito que haja espaço para o professor. Ainda acredito que pro- como assessora na área de Dança. 25 anos antes havia trabalhado
fessores, conectados aos espaços tempos virtuais dos estudantes, no Projeto de Reorientação Curricular da mesma secretaria na
podem fazer e propor mediações entre as danças do mundo virtual gestão Paulo Freire (anos 1992-93). Uma vida se passou. Na épo-
e o conhecimento universal em dança; acredito que encontros pre- ca, já estava cursando disciplinas no curso de doutorado na USP,
senciais entre professores e estudantes podem ampliar as possibili- mas foi o encontro com Paulo Freire, “no chão da escola”, que me
dades de encontro entre a dança e a educação, entre a educação e mobilizou de fato para pensar/fazer educação e arte do ponto de
a nossa cultura-mundo. vista das relações e dos encontros que ultrapassam a perspectiva

292 293
individual e individualista. Sempre que escrevo sobre dança reen- a dança não for totalmente banida das escolas, ela será apresen-
contro Paulo Freire. Ouço também vozes dissonantes em minha tada somente como um conjunto de exercícios corporais técnicos
cabeça, “Paulo Freire de novo/ainda, Isabel?”. Paulo Freire talvez necessários ao aprendizado de passos e sequências de repertórios
não saia nunca de meus textos e de meus referenciais práticos, prontos. O que se deseja são resultados previsíveis que devem ser
teóricos, artísticos e pessoais justamente por ter sido um encontro simplesmente copiados pelos estudantes e apresentados nas festas.
marcante em minha trajetória de vida profissional para compreen- Estas propostas em geral isolam, homogeneizam corpos e pessoas,
der, formular e propor danças que gerem encontros entre a arte, o antagonizam-se aos encontros transformadores que a dança/arte
ensino e a sociedade, proposta que desenvolvo há tantos anos. Pelo pode proporcionar em contextos múltiplos de relações.
menos agora que a situação política instaurada pelo golpe parla-
mentar é muito parecida com a de 1964, talvez os “acadêmicos de
plantão” não murmurem pelos cantos que estou “desatualizada”... 19 DE JUNHO DE 2016
rs. Aliás, muitos deles estão fazendo revisão de Paulo Freire para Comecei a ler “A cultura-mundo: resposta a uma
entender novamente o papel da educação e da arte em contextos sociedade desorientada”, livro de Gilles Lipovestsky.
autoritários, para entender o sentido de pensarmos em transfor-
mação social em tempos de encontros necessários. A orelha o livro me pergunta: “Qual é a cultura que caracte-
riza o mundo de hoje? De que forma ela se relaciona com os princi-
pais eixos de nossa época – capitalismo globalizado, individualis-
25 DE MAIO DE 2016 mo, consumismo, internet?”. Tenho percebido as pessoas, diante
Vejo na internet a foto do Ministro da Educação, Men- da crise política, econômica e social que nos assola voltando-se
donça Filho, recebendo Alexandre Frota, ator pornô, para con- para si mesmas como solução – mesmo que provisória. Diante do
versar sobre as propostas do Movimento Escola Sem Partido. desconforto que as crises instalam em nossos corpos, mergulha-
mos em nossa individualidade. Voltamos a acreditar que solistas
Que escola é essa “sem partido” afinal de contas? Talvez virtuosos e bem treinados podem vencer a avalanche social – e
queiram dizer: “sem política”? Se isso vingar, seremos proibidos de isto se replica no mundo da dança e da educação de forma clara.
discutir política em sala de aula (como se educar não fosse em si Lipovetsky afirma que a descrença e a impotência da esfera públi-
um ato político); seremos proibidos de contextualizar conhecimen- ca têm causado dinâmicas de individualização que geram somente
to, de aprender e compreender a dança/mundo de forma crítica e a busca do bem-estar pessoal e de consumo. Tenho percebido
problematizadora. É isso? Os “ratos” da época do governo mili- que, diante das incertezas e das inseguranças, o esforço pessoal de
tar serão agora nossos alunos com seus celulares gravando aulas e cada um vem se voltando cada vez mais para salvar seus confor-
nos denunciando por propor processos de criação em dança. Serão tos adquiridos, seus empregos, suas danças personalizadas – cus-
eles a denunciar-nos por criarmos com dança redes de relações que tomizadas. Na página 48 de seu livro, Lipovestsky traz o termo
nos permitam questionar e criticar a injustiça social, as mudanças homoindividualis, aquele “desenquadrado, liberto das imposições
climáticas, a colonização, o racismo? Que dureza discutir transfor- coletivas e comunitárias”. Vejo um paralelo muito claro entre essa
mação frente à onda conservadora que assola o país. É possível hoje análise e o que tenho vivenciado entre artistas e estudantes de dan-
transformar de fato? Tenho o pressentimento de que, se, no futuro, ça: a “minha dança”, o “meu projeto”, o “meu solo” nem sempre

294 295
dialogam com uma ordem democrática plural. Esse hiperindivi- experiência nos toca, nos forma e nos transforma. A experiência
dualismo inviabiliza encontros, as pessoas não estão ancoradas é um modo de expandir e ampliar possibilidades do ser/estar no
no diálogo, a necessidade de segurança se impõe e se sobrepõe à mundo, de perceber conscientemente, de se relacionar e de viver
urgência da transformação. em sociedade. Neste documento diferenciamos experiência de vi-
vência (embora a experiência englobe a vivência), ou seja, enten-
demos a vivência como um simples contato ou uma atividade de
20 DE JULHO DE 2016 Dança na escola. Por outro lado, trazemos a experiência em Dan-
Foi aprovado o Programa de Fomento à Cultura da ça como um direito de aprendizagem dos estudantes”. Pergunta
Periferia de São Paulo. Lei no. 16.496/2016. que não me cala: temos hoje nos preocupado – nas companhias de
dança, nos coletivos, nas escolas, nos projetos sociais, nas acade-
Conitnuo lendo Lipovetsky. Ele afirma na página 52 que mias, nos festivais – em buscar/gerar experiências de fato ou temos
hoje os indivíduos reinvestem em suas comunidades particulares nos contentado como vivências em massa que mascaram tanto a
imediatas, pois, “ao atomizar o social, a dinâmica de individu- experiência quanto a ideia de coletivo transformador?
alização engendrou uma nova forma de insegurança identitária
baseada na perda das ancoragens comunitárias. Daí a necessidade
de identificar-se com comunidades particulares, étnicas, religiosas 04 DE SETEMBRO DE 2016
ou infranacionais capazes de recriar um sentimento de inclusão Vamos à manifestação dos 100 mil pela
coletiva”. Percebo que este é um caminho de reencontro em nosso democracia, na Avenida Paulista.
momento sociopolítico-cultural estilhaçado e que a dança pode ter
um papel importantíssimo, diferente dos anteriormente traçados, Senti no corpo a “multidão” proposta por Antônio Negri
na reconstituição do estado de direito. Só uma coisa me preocupa: em seu trabalho, aquela que abraça o coletivo, a cooperação, a
ao (re)encontrarmos nossos nichos (periféricos, étnicos, religiosos, criatividade e o compartilhamento. Multidão que se constrói a
educacionais, artísticos), seremos capazes também de manter diá- partir do reconhecimento do outro, da singularidade. Quando
logos e encontros na experiência em dança com aqueles que são e a multidão passou pelo túnel escuro entre a Av. Paulista e a Av.
estão diferentes de nós? Qual o próximo movimento? Rebouças e as luzes dos celulares se acenderam acompanhando
os cânticos no eco do cimento, o tempo foi suspenso, deu-se um
encontro entre mais de 100 mil pessoas. Dou-me conta de que a
10 DE AGOSTO DE 2016 presença da Arte em todos os aspectos desta manifestação fez dela
Entregamos a última versão escrita e revisada do documen- uma multidão de fato. O que teria sido desta manifestação sem os
to de Arte para a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.  cartazes e faixas visual e poeticamente trabalhados? Como teria
sido essa manifestação sem o som dos tambores, das cornetas e
Um dos pontos importantes dessa escrita foi revisitar a refle- das vozes que cantavam? Como teria sido esta manifestação sem
xão sobre a experiência em dança: “Seria interessante relembrar- os corpos que se moviam coletivamente, que dançavam, que mar-
mos que ter uma experiência implica um fluxo entre fazer/pensar/ chavam? O que teria sido desta, e de tantas outras manifestações
sentir, exige processos de ação/reflexão/ação sobre a linguagem; a políticas, sem a Arte? #foratemer

296 297
20 DE SETEMBRO DE 2016 Nacional) colocando o Brasil em outro patamar de compreensão da
Recebi uma mensagem/convite de Marta Cesar e Jussara Arte na Educação. Mas vamos refletir; de duas, uma: ou os manda-
Xavier para participar de um livro comemorativo do Festival tários do governo Temer menosprezam e ignoram a Arte e a Arte
Múltipla Dança, em Florianópolis. na Educação ou, ao contrário disso, eles têm plena consciência e
temem o potencial transformador da Arte na educação de cidadãos.
“Estamos elaborando um projeto de publicação de livro Nada mais apavorante para um governo conservador do que educar
(bilíngue português/inglês), versão impressa e digital comemorati- pessoas capazes de ler o mundo de vários pontos de vista e com isso
vo a décima edição do Festival Múltipla Dança, com lançamento abrir espaços para escolhas indeterminadas e abertas; nada mais
previsto para 2017. Gostaríamos de lhe convidar para compor o assustador para um governo formado predominantemente de ho-
quadro de autores e escrever sobre aspectos relacionados à dança mens, brancos, ricos e cristãos do que educar pessoas para a plurali-
como encontro, dentro do tema dança e transformação”. Como dade, para o verdadeiro e salutar encontro entre as diferenças; nada
sempre quando recebo convites assim, abertos, fiquei refletindo mais ameaçador para um governo do que educar pessoas capazes
sobre a razão de ter sido convidada para escrever nesse livro. En- de imaginar, experienciar, e, sobretudo, de criar. É isso, a dança nas
contros e a dança. Encontrei Marta pela primeira vez quando mi- escolas pode ser apavorante, assustadora e ameaçadora aos olhos de
nistrei uma disciplina no Curso de Especialização em Dança na quem pretende controlar, cristalizar e manter tudo como está. Ela
Udesc, em 2000. Nosso encontro foi proporcionado pela dança, transforma. Transforma quando se abre para a imaginação, para
pelo propósito de conhecer e aprofundar conhecimentos em dan- experiência, e, sobretudo, para a criação. Criar é transformar. Sa-
ça. Sim, a relação pedagógica se configura justamente no encontro bemos isso em nossos corpos quando dançamos.
entre professores e estudantes mediados pelo conhecimento. Nesse
sentido, o conhecimento é uma via de encontro; a dança, por ser
conhecimento, é também uma via de encontros. Nas salas de aula, 31 DE OUTUBRO DE 2016
nos palcos, nas ruas, na internet. Estudantes e professores da Escola de Aplicação da USP
vieram ao Instituto Caleidos dançar o espetáculo “Coreô”, que
comemora 20 anos do Caleidos Cia. de Dança.
22 DE SETEMBRO DE 2016
Recebo no grupo de Whatsapp que discute a BNCC Resolvemos, em ato de protesto, manifesto e resistência,
(Base Nacional Curricular Comum) a MP (Medida Provisória) fazer um vídeo com os estudantes que participaram do espetá-
que retira a Arte do Ensino Médio. culo perguntando “Por que Arte no Ensino Médio?”. Foram até
agora 4061 visualizações do vídeo pelo Facebook. Lindas e po-
Este é só o começo, penso, e justamente agora que a Lei tentes as respostas dos estudantes: “a arte é a nossa magia”, a
13.278/16 tinha sido aprovada no Senado instituindo a obrigato- Arte é importante “...para transformar e não só ficar nas mes-
riedade das quatro linguagens artísticas em todo território nacional mas coisas”, a Arte proporciona “... interagir com outras pesso-
(Dança, Música, Teatro e Artes Visuais). Foram tantos anos de luta as, com a cultura brasileira, com outros lugares”, afinal, “com a
da FAEB (Federação de Arte Educadores do Brasil) para avançar na arte a gente se encontra”. Quem afirma isso é porque realmente
legislação e atualizar a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação teve uma experiência, um encontro transformador com a dança.

298 299
09 DE DEZEMBRO DE 2016 seus corpos em seu potencial de criação. Isso é absolutamente
Nos 45 minutos do segundo tempo conseguimos ir à transformador. É isso. As propostas interativas do Caleidos Cia.
32ª Bienal de São Paulo: Incerteza Viva. de Dança geram vários tipos de encontro: encontro entre os intér-
pretes, entre os intérpretes e o público, o público consigo mesmo.
O livro da Bienal já estava descansando em minha mesa Esses encontros seriam totalmente diferentes se concebidos sob a
de trabalho há meses. Presente de Sonia Fernandes. O livro me égide do “dançar para” e não do “dançar com” que propomos em
instigava pelo título, pelo formato, pelas imagens. Jochen Volz, nossos trabalhos. Acredito que os encontros propostos pelo Ca-
curador da exposição, cita Z. Bauman lembrando-nos de uma leidos Cia. de Dança são singulares porque trabalhamos com um
imagem sua sobre o mundo atual: hoje caminhamos sobre “uma conceito que desenvolvi já em 1996 em minha pesquisa de dou-
fina camada de gelo, escorregadia demais para corrermos sobre e, torado: a proposição cênica. A proposição se diferencia de uma
no entanto, tão frágil que não podemos parar”. Penso que assim coreografia pronta, pois é lúdica, incerta, aberta; é um convite, e
é também a arte da dança, frágil e potente, escorregadia e firme, não uma apresentação a ser cultuada, distante do público. Cada
pausa em movimento. Assim são os encontros que ela permite e vez que terminamos de dançar e eu, da mesa de som digo: “este es-
possibilita. Assim construímos a dança/mundo: nas fragilidades e petáculo só se completa com a presença do público, obrigada pela
nas incertezas do viver contemporâneo. Acho que é por isso que participação de todos” compreendo que a dança pode ser um elo
dou tanto valor aos processos de improvisação em dança, para significativo entre pessoas que se compreendem no mundo, afinal,
mim eles são o nosso tempo, a nossa dança/mundo hoje. A impro- Paulo Freire sempre me ensinou que “o diálogo é o encontro dos
visação é dança/arte compartilhada é a própria incerteza quando homens [e mulheres] para a pronúncia do mundo”.
não é compreendida como exercício ou preparação para resulta-
dos. Os processos de improvisação em dança no lembram que “a
incerteza é o abraço que damos ao futuro”, diz Mia Couto nesse 23 DE JANEIRO DE 2017
mesmo livro da Bienal. Sábio. Dançando incertezas, ou seja, im- Recebo uma mensagem de Whatsapp de uma aluna/amiga
provisando, iremos ao encontro de um futuro melhor. sobre seu aluno da Escola de Aplicação da USP.

“Querida Isabel, acontecem algumas faíscas na escuridão.


22 DE JANEIRO DE 2017 Acabo de saber que um dos alunos (o Pedro) foi aprovado no curso
Hoje dançamos o “Coreológicas Ludus” no Sesc Osasco, técnico de dança. Recebi um áudio lindo de agradecimento dele
abrindo o ano de 2017 do Caleidos Cia. de Dança. e quero retransmitir essa gratidão a você. Grande parte do que
oferto aos alunos da EA [Escola de Aplicação] está ligado ao nosso
Voltei para casa e comecei a escrever esse artigo. 20 anos encontro. Aprendo muito com vocês sobre como dançar e ensi-
dançando o Coreológicas (em suas diversas versões) e ainda me nar dança de forma rigorosa, poética, clara e generosa. Nesse mo-
emociono. Crianças, jovens, adultos e idosos dançando juntos suas mento, com os olhos marejados, sou só gratidão por estudar com
próprias danças com a mediação dos artistas/docentes. O que há você e trabalhar com dança na EA. Um beijo!”. Este estudante é
de especial neste espetáculo? Acima de tudo, o encontro. Encontro o mesmo que disse em nosso vídeo: “Por que não ter arte a vida
entre pessoas que, na dança proposta pelos artistas, redescobrem inteira?”. Há esperança no fim do túnel.

300 301
25 DE AGOSTO DE 2019 humanos, pela justiça social e pela soberania nacional e aqueles
Recebo de Marta Cesar um e-mail perguntando se eu que apoiaram a volta das milícias, da censura, da privatização e
toparia escrever uma nova carta de anuência para que o livro de projetos que desacatam a humanidade. O país se dividiu entre
comemorativo dos 10 anos do Múltipla Dança participasse de aqueles acreditam nas relações humanas e no poder do encontro
um novo edital. e aqueles que idolatram seus próprios umbigos e suas contas ban-
cárias. Mais do que nunca temos de acreditar e fazer valer a força
Anos se passaram, mas a vontade e a necessidade de encon- da arte/dança para re-unir pessoas, re-criar e re-pensar coletivos;
tros permaneceram. O livro ao qual esse artigo/diálogo se desti- esperançar dançando e educando por um planeta que encontre, na
nava não foi publicado na época por falta de apoio financeiro. Em arte, sua força de vida.
2019, surge uma nova esperança de publicação por via de outro
edital. Perguntam-me se ainda desejo publicar esse artigo. A res-
posta é rápida: claro. Livros geram encontros, que geram conver-
sas, que geram reflexões, que geram novos encontros. Sou de uma REFERÊNCIAS
geração de dança que começou a valorizar a inserção da teoria nas
práticas de dança. Tive amigas que foram ostracizadas do mundo • DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins
da dança por estarem cursando mestrado. É verdade. Mas cursos Fontes, 2010.
universitários começam a surgir e as discussões sobre as relações • FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e
teoria/prática na dança se intensificaram. Hoje escrevo um artigo Terra, 1982.
para um livro na certeza de que ler e escrever sobre dança já não • ___________. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz
é mais um divisor de águas. A história traça caminhos sem volta. e Terra, 1983.
Encontros entre teoria e prática no mundo da dança nos fazem • LAROSSA, Jorge. Notas sobre experiência e o saber de expe-
“esperançar”, como nos convocou Paulo Freire. A esperança é em riência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n.19,
si um ato revolucionário, dizia. p.20-28, jan./abr., 2002.
• LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean. A cultura-mundo:
resposta a uma sociedade desorientada. Trad. Maria Lúcia
01 DE DEZEMBRO DE 2019 Machado. São Paulo: Cia das Letras, 2011.
Em pleno domingo chuvoso, típico paulistano, sento-me • MARQUES, Isabel. Ensino de dança hoje. São Paulo: Cortez,
para reler esse artigo prestes a ser enviado para a editora. 1999.
• ______________. Linguagem dança: arte e ensino. São Pau-
Esse momento poderia ser simplesmente mais um entre mui- lo: Digitexto, 2010a.
tos de leitura e escrita, #sóquenão. Daqui a um mês completa- • ______________. Dança-educação ou dança e educa-
remos um ano do governo Bolsonaro e o país entrou em queda ção? In: MARINHO, Nirvana; TOMAZZONI, Air-
livre no que diz respeito à políticas públicas voltadas para cultura ton e WOSNIAK, Cristiane (Orgs.). Seminários de Dan-
e educação. Desde que escrevi esse artigo, o país foi dividido en- ça 3. Blumenau: Nova Letra Gráfica e Editora, 2010b.
tre aqueles que acreditam e lutam pela democracia, pelos direitos

302 303
• NEGRI, Antonio e HARDT, Michael. Multidão: guerra e de-
mocracia na era do império. Rio de Janeiro: Record, 2005.
• SÃO PAULO, 32ª. Bienal de São Paulo. Material Educativo.
Incerteza viva. São Paulo: Fundação Bienal, 2016.
• SÃO PAULO, Secretaria Municipal de Educação. Direitos de
aprendizagem dos ciclos interdisciplinar e autoral. Arte. Co-
leção Diálogos interdisciplinares a caminho da autoria. São
Paulo: SME/DIEFEM, 2016.

LINKS

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wp-content/uploads/2015/10/III-Seminarios-de-Danca-Algu-
mas-Perguntas-sobre-Danca-e-Educacao.pdf
• Documento da SME São Paulo/Arte 2016 : http://portal.sme.
prefeitura.sp.gov.br/Portals/1/Files/34986.pdf
• Vídeo com estudantes do Ensino Médio da Escola de Aplica-
ção da USP, 2016: https://www.facebook.com/caleidoscia/?-
fref=ts
• Material educativo da 32ª. Bienal Incerteza Viva, 2016: http://
materialeducativo.32bienal.org.br/

304
MARILA VELLOSO é artista da dança, curitibana, GESTÃO PÚBLICA EM CULTUR A E DANÇA:
professora do colegiado de Dança do Campus APONTAMENTOS INICIAIS PAR A UMA REFLEX ÃO SOBRE
Curitiba II da UNESPAR, doutora pelo Pro- CONTR ADIÇÕES ENTRE DISCURSO E PR ÁTICA
grama de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Marila Velloso
UFBA. Professora em Body Mind Centering™. Manoel J de Souza Neto
Co-criou o Fórum de Dança de Curitiba, além
de ter sido representante da Dança do Conse-
lho Nacional de Política Cultural/MinC (2014-

R
2015). Foi coordenadora de dança da Fundação esumo: parte-se da hipótese que a burocracia do Estado
Cultural de Curitiba, entre 2005 e 2009. Moderno é o que delimita o que é ou não possível em uma
gestão pública de cultura e de dança. O texto baseia-se em
MANOEL J DE SOUZA NETO, São Paulo, Curitiba. autores do Direito e da Política articulados com autores das Polí-
Cientista político, pesquisador, escritor, agita- ticas Culturais e da Dança e objetiva revelar contradições entre o
dor cultural, defensor de direitos humanos e que é dito e o que é praticado nas gestões culturais do Estado, no
culturais. Produtor musical da cena indepen- Brasil e que afetam a gestão pública e a implementação de qualquer
dente dos anos 1990, foi responsável por shows, programa setorial. Ainda, pretende-se que este artigo fundamente
gravadora e programas de rádio. Fundador do estudos na área da gestão em dança e de outros setoriais, tendo em
MUSIN – Museu do Som Independente (2003). vista a carência em publicações que apresentem as dimensões e as
Autor (org) do livro A [des]Construção da Mú- relações entre os setores e a superestrutura do Estado.
sica na Cultura Paranaense (2004). Integrante
do Fórum Nacional de Música (2005/11), Câ- Palavras-chave: estado; burocracia; políticas públicas de
mara/Colegiado Setorial de Música e Conse- cultura; dança.
lho Nacional de Políticas Culturais do MinC
(2005/12 e 2015/17), contribuiu para a formu-
lação de políticas públicas de cultura, sendo re- ESTADO E BUROCR ACIA
lator do Plano Nacional da Música do decreto
do Plano Nacional de Cultura do MinC. Estamos imersos em sistemas que se constituem como Esta-
dos e esses são gerenciados por governos, considerando-se, nesse
artigo, que a gestão de qualquer organização, pública ou privada,
existe para organizar os fluxos entre capitais e impostos sendo
estas controladas pela endoestrutura dos Estados.
A gestão existe para efetivar determinadas funções do Esta-
do, sendo um instrumento da administração pública dos estados
modernos, e, portanto, racionais. Nesse sentido, a exigência do
formato das gestões modernas está intimamente relacionada às

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funções e obrigações com os Estados. E é, por essa razão que este como a unificação das forças militares, do espaço econômico,
texto sobre gestão pública em dança inicia abordando aspectos da instituição de impostos e da formação de uma burocracia es-
que constituem o Estado. pecializada. A concentração dessas forças consolidou os espaços
O Estado como conhecemos foi citado pela primeira vez há geográficos e, portanto os territórios, formando um acúmulo de
2500 anos na obra A Arte da Guerra de Sun Tzu, e surge da ne- capitais internos e gerando informação através de recenseamento,
cessidade de organizar as relações de agrupamentos de pessoas, estatística, contabilidade nacional, cartografia, representação de
nas primeiras Cidades-Estado. Para alguns autores o Estado surge unidades padrão como o sistema métrico, a escrita, a moeda e a
como uma forma positiva e tem funções relacionadas à manuten- criação de arquivos, especialização da comunicação, entre outras
ção da ordem social compromissada com a ética e a moral, o que medidas que resultaram na estratificação e monopólio dos letra-
se manifestaria na obra de Durkheim, como um órgão de reflexão dos que formaram os instrumentos da burocracia, criando a classe
e um instrumento racional encarregado de realizar o interesse pú- especial de funcionários do Estado.
blico, ou melhor, um órgão realizador da justiça social, organiza- Portanto, o Estado é estruturado pelo pensamento da bu-
dor da vida social, etc (OLIVEIRA, 2010). rocracia que está a serviço do próprio Estado. Essa cultura insti-
Ainda que não exista consenso absoluto entre os chamados tucional - como a soma de todas essas informações têm um papel
autores contratualistas – Locke, Rousseau, Hobbes, Tocqueville –, estruturante para Bourdieu (1996), pois isso ocorre: “…ao unifi-
que forjaram as principais teorias sobre Estados Constitucionais, car todos os códigos – jurídico, linguístico, métrico – e ao realizar
esses têm em comum a visão da necessidade de construção de có- a homogeneização das formas de comunicação, especialmente a
digos e de leis e daquilo que fundamenta o Estado Moderno, o burocracia (por exemplo os formulários, os impressos etc)”. Con-
contrato social que resulta nos conjuntos de códigos ou constitui- tinuando conforme Bourdieu (1996):
ções. Esses mecanismos foram criados, a fim de que os indivíduos
saiam do estado de natureza, no qual parte-se da prerrogativa de “nas nossas sociedades, o Estado contribui de maneira determi-
que todos estão contra todos, e que a partir disso, entrem em um nante na produção e reprodução dos instrumentos de constru-
estado de paz e justiça através de uma sociedade regulada pelo ção da realidade social. Enquanto estrutura organizacional e ins-
interesse público. Ao menos essa parece ter sido a intenção. tância reguladora das práticas ele exerce permanentemente uma
Se a burocracia surge nos antigos impérios da Mesopotâmia ação formadora de disposições duradouras, através de todos os
(Acadiano, Babilônico e Assírio), China, Grécia, Roma e antigo constrangimentos e disciplinas corporais e mentais que impõem,
Egito, somente pode ser considerado como Estado Moderno a or- de maneira uniforme ao conjunto dos agentes”. (Pierre Bourdieu,
ganização burocrática que emerge na China e em Portugal – entre Razões práticas: Sobre a teoria da ação, 1996, p.116)
os séculos XII e XIV, até a sua consolidação em diversos países
do mundo, no início da revolução industrial, como fenômenos que Neste sentido, diferentemente do que se atribui por Durke-
forçaram a crescente burocratização do Estado e das Nações. heim como papel do Estado de se realizar o bem comum, ou o
A construção dos Estados Modernos não se dá apenas pela interesse público, o Estado apresenta muito mais a função contro-
construção do capitalismo, da administração pública, da criação ladora, disciplinadora e punitiva, conforme define Weber (1991)
de exércitos e das Constituições e, sim, pela unificação de uma sendo o Estado aquele que detém o legítimo monopólio do uso da
série de instrumentos que forjam este Estado, constituindo-se força. De outro modo, o Estado está para inibir os ímpetos do in-

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divíduo, o que para Marx e Engels (2001) seria interpretado como dentro das regras próprias da administração pública, limitadas
prova de que o Estado age em benefício da burguesia industrial, ao “deve ser assim”, enquanto a gestão privada tem liberdade de
portanto um organismo repressor do proletariado. agir com intenções, recursos e ética própria, desde que não viole
É desse modo, ainda que não seja consenso – com funções as leis do Estado.
para alguns reguladoras e para outros com funções voltadas à No que concerne a outro componente importante nessa es-
realização da justiça e do bem comum –, que surgem as regras da trutura estatal, tem-se a ética no Estado que pode ser considerada
burocracia que forjam os Estados, como seus códigos de ética que sob duas perspectivas: a descritiva e a normativa e (ou) prescritiva.
regem a conduta e as relações entre os agentes envolvidos. Segundo Amoedo (1997) a primeira descreve a forma como as
Muitas vezes as regras de controle e práticas burocráticas pessoas agem e explicam sua ação em termos de julgamento de
estabelecidas pelo Estado são utilizadas para constranger o ímpe- valor e de pressuposições e a segunda, estuda a forma como as
to dos agentes em tirar vantagem para benefício próprio, ou dos pessoas devem agir e analisa os julgamentos de valor e pressuposi-
cidadãos de agirem como bem entendem. Do conjunto de normas ções que justificam tais ações.
históricas acumuladas no tempo estruturaram-se inúmeras regras Enquanto os acadêmicos no geral procuram descrever fenô-
que constituem o pesado sistema burocrático atual que se criou menos ocorridos em estudos de caso, e filósofos idealistas procu-
para garantir as boas práticas e a ética, algo que, no entanto, apa- ram apresentar como deveria ser feito, surgem descompassos entre
rentemente não se efetivou. o “ser” e o “deve ser”, com ambas as formas de apresentação sen-
Os problemas relacionados à ética, corrupção e má gestão do descritivas e normativas, muitas vezes, distantes da realidade,
são notórios dentro do Estado Moderno e decorrentes da dificul- das práticas e das dinâmicas mutáveis dos conflitos que surgem
dade em que as pessoas têm para entender a diferença entre a coisa entre administração gerencial e administração política (BOBBIO;
pública e a coisa privada. MATTEUCCI; PAQUINO, p. 14-15). Disso surge a necessidade
É, portanto na divisão entre administração pública e de aproximação entre as normas e as práticas, observando-se as
administração privada onde ficam mais evidentes as diferenças diversas perspectivas para a tomada de decisões.
entre o que é relativo ao Estado e o que é relativo à sociedade: Portanto, o afastamento da realidade e do que ocorre nas
práticas torna-se um dos problemas para a gestão porque há um
“Na administração, não há liberdade nem vontade pessoal. En- conflito entre as regras do Estado e as ações dos indivíduos. Mui-
quanto que na Administração Particular é lícito fazer tudo o que a tas das regras são engessadas e idealizadas fora do contexto real
lei não proíbe, na Administração Pública é apenas permitido fazer de como acontecem e não se efetivam na prática. Por outro lado,
o que está previsto na lei. A lei para o particular significa `pode a ação dos agentes também, é limitada por uma série de questões
fazer sim`, para o administrador público, por outro lado, significa que vão da falta de percepção, de leitura política, de compreensão
'deve fazer assim'” (MEIRELLES, 2010, p.89) das regras do Estado e até mesmo do desconhecimento de si e do
que agencia seus desejos inconscientes.
Portanto, existe aqui uma absoluta divisão entre gestão pú- A realização da denominada boa administração pública
blica e gestão privada. Ficando evidente que a gestão de políticas passa por este conflito entre o Estado e suas normas e a ação dos
públicas de cultura, e neste caso-análise deste artigo com tema indivíduos, pois muito das iniciativas de construção de códigos
de gestão da dança no setor público, se dá por força das leis de ética, regras, leis e normas etc. e mesmo as punições não pa-

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recem solucionar a má gestão, ao menos é essa a impressão que a Este conjunto de objetivos, voltados às atividades de interes-
literatura crítica de clássicos das práticas políticas no Brasil vem se público, são regidos na legislação brasileira por princípios que
revelando em obras como a de Raymundo Faoro (2008) ou Vitor visam nortear as principais normas que devem reger os atos públi-
Nunes Leal (2012), que falam do arcaísmo político brasileiro, bem cos, em especial visam distanciar as influências políticas e pesso-
como aquilo que a imprensa e a justiça, de forma reincidente, nos ais. O que infelizmente não parece ser eficaz quando observamos
revela como a constante crise de ética no trato com a coisa pública. modelos de gestão que, ainda, privilegiam uns em detrimentos de
A marca da administração pública brasileira tem sido a “clepto- outros visando benefício de determinados grupos ou indivíduos.
cracia”, incompetência e má gestão. No entanto com a finalidade de combater os problemas éti-
cos que surgem na gestão pública, foram consolidadas diversas
leis que têm base na Constituição, com princípios basilares para a
PRINCÍPIOS DE GESTÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTUR A prática da chamada “boa administração pública” que poderia ser
efetivada por meio de instrumentos legais contidos no Artigo 37
A gestão de políticas públicas baseia-se em um conjunto de da Constituição Federal/CF. São eles:
normas, medidas, e ações que visam efetivar as metas do Esta-
do. O ato de gerir ou administrar, quando se trata da atividade Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer
pública, segundo Bobbio; et al (1998, p. 10), refere-se em linhas dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Mu-
gerais, ao conjunto das atividades diretamente destinadas à execu- nicípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
ção concreta das tarefas consideradas de interesse público numa moralidade, publicidade e eficiência (...)
organização estatal. Em se tratando da administração pública há
uma enorme gama de ações que reportam ao conjunto de entes O Artigo 37 da CF 1988 rege a base para qualquer diálogo
estatais, coordenados pelos centros de tomada de decisão e aos que vise efetivar a administração pública contendo em seus arti-
organismos e atividades governamentais que visam atender aos gos apontamentos sobre como devem se dar as relações éticas, os
objetivos públicos. Ainda, segundo Bobbio; et al (1998, p.14-15) cargos, empregos e funções públicas, concurso público, as funções
existem contradições entre os interesses políticos e a gestão: de confiança, o direito de greve, a remuneração, entre outros as-
pectos, o que se difere da gestão privada.
“Enquanto se admite que a Administração pública deve atuar Enquanto a gestão pública tem seus princípios, as políti-
imparcialmente, cumprindo, de preferência, o mandado na lei, cas de cultura têm seu fundamento na Carta Magna, com quatro
verifica-se, por outro lado, estar ela organizada de tal maneira princípios constitucionais que determinam direitos culturais, con-
que se torna facilmente permeável à interferência de partes. Esta forme Cunha (2000, p.44): “1. Princípio do pluralismo cultural;
profunda contradição não tardará a vir ao de cima, colocando, 2. Princípio da participação popular; 3. Princípio da atuação es-
em termos dramáticos, o problema da separação da esfera política tatal como suporte logístico; e 4. Princípio do respeito à memória
da esfera administrativa. Entretanto, se prescindir do aspecto da coletiva...”.
tutela jurisdicional, não serão alcançadas senão soluções parciais Esses quatro princípios apontados por Humberto Cunha
e impróprias, tendo em vista as causas de fundo que originaram o revelam a direção das ações que deveriam garantir um conjunto
problema.” (BOBBIO; MATTEUCCI; PAQUINO, p. 14-15). mínimo de apontamentos do Estado para a cultura sob a lógica da

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administração pública que se obriga a ouvir as partes interessadas, integração entre políticas e programas, transversalidade, autono-
dar espaço para todos, fomentar as políticas, bem como garantir mia, descentralização, ampliação dos recursos e transparência,
a memória, não se obrigando necessariamente a outras funções. entre outros.
Contudo, o campo da cultura recebeu destaque próprio na Essa base para elaboração e execução de políticas públicas
legislação, tendo dois princípios distribuídos em artigos na cons- de cultura, fornece pistas do que fazer para o desenvolvimento do
tituição de 1988, que orientam as políticas específicas do Estado setor cultural no Brasil, porém, é apenas na parte final do Artigo
para a cultura conforme os artigos 215 e 216 da CF-88, que afir- 216, que são apresentados mecanismos estruturantes para a gestão
mam: de políticas culturais: I - órgãos gestores da cultura; II - conselhos
de política cultural; III - conferências de cultura; IV - comissões
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direi- intergestores; V - planos de cultura; VI - sistemas de financiamen-
tos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e to à cultura; VII - sistemas de informações e indicadores culturais;
incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. VIII - programas de formação na área da cultura; IX - sistemas
setoriais de cultura.
No princípio do Artigo 215 da CF-88 estão previstas a re- Portanto, para um estudo ainda incipiente que aponte as
alização de um Plano Nacional de Cultura, a formação de pes- bases para uma gestão pública da cultura, a constituição federal
soal qualificado para a gestão e a democratização do acesso aos revela estes apontamentos iniciais das estruturas básicas de fun-
bens de cultura, a valorização da diversidade étnica e regional, o cionamento e que dialogam com as demais leis e princípios já apre-
estabelecimento de formas de incentivos para a produção e o co- sentados. Sendo, portanto, fundamentos iniciais para o conceito
nhecimento de bens e valores culturais, entre outros. E conforme de gestão pública de cultura em Dança.
o Artigo 216 da CF-88 obriga-se a criar o Sistema Nacional de Após a estrutura burocrática com o estabelecimento de leis
Cultura/SNC: e normas, são feitos planos para execução das políticas públicas,
bem como programas, prêmios, editais, entre outros, estes, os ins-
Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em re- trumentos da gestão pública, com vias de efetivar os direitos cul-
gime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, turais, na forma de sistemas, planos, conselhos, planos setoriais de
institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas cultura e das artes.
públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre Para a execução da gestão cultural, constituiu-se o Sistema
os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover Nacional de Cultura/SNC como ferramenta fundamental que dita
o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercí- as regras sobre a participação dos entes da União, Estados e Mu-
cio dos direitos culturais. nicípios, sobre como se dariam as transferências de recursos para
estes entes federados e como seriam aplicadas estas verbas através
No Artigo 216 existem determinações da forma de cons- de fundos para atender os interesses sociais, bem como de setoriais
trução do Sistema Nacional de Cultura, que deve se pautar no e suas demandas.
Plano Nacional de Cultura/PNC e nas suas diretrizes que são Com a elaboração do Plano Nacional de Cultura/PNC fo-
regidas pelos seguintes princípios: diversidade, universalização ram determinadas as prioridades por meio de diretrizes e linhas
do acesso, fomento à produção, cooperação dos entes da União, de ação assim como em documentos complementares, as metas a

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serem alcançadas. Esse grande conjunto de normas e instruções rege a administração pública e que visam a realização de tais po-
foram construídas em negociação com a sociedade civil, através líticas.
de espaços de participação, como conferências, conselhos e fóruns A formação de um órgão consultivo de âmbito nacional, as
setoriais. Câmaras/ Colegiados Setoriais, significou uma mudança impor-
Esse projeto de construção de cidadania e de direitos cul- tante para a construção de programas na área, pois legitimou uma
turais, partindo das políticas gerais, alcançou planos específicos, outra instância – mesmo que consultiva – para levantar critérios
a exemplo do Plano Nacional de Dança. Um grande conjunto de e parâmetros para políticas culturais para a dança vinculado ao
metas e objetivos para a realização da administração pública, ins- Conselho Nacional de Política Cultural/MinC: “Este movimento
trumentos que foram elaborados e desenvolvidos por mais de uma possibilitou o conhecimento das realidades e atitudes relaciona-
década, e que, no entanto, ainda não foram consolidados e, do que das às potencialidades e fragilidades de cada estado criando uma
foi feito, pode-se afirmar que pouco foi concretizado. A maioria articulação nacional histórica, favorecendo a descentralização e
do que foi proposto ainda paira no ar, esperando por recursos pú- principalmente a circulação de informações” (PND, 2010, p.11).
blicos, por vontade política e por gestão efetiva que realize aquilo Porém, com uma mudança de gestão no MinC e na Funarte,
que o Estado se obriga a fazer conforme todo o conjunto de nor- em 2015, foi-se (re) formulado, pelo Estado, que as Artes deveriam
mas apresentado acima. ter um olhar particular e direcionado por sua fundação nacional.
Assim, entre 2015 e parte do ano de 2016, instituiu-se o Plano
Nacional das Artes/PNA – um outro formato para repensar e re-
A GESTÃO EM DANÇA BASEADA EM REGR AS DO ESTADO: elaborar diretrizes e ações para a Dança, Circo, Teatro, Música,
DEMANDAS DO SETORIAL DA DANÇA Artes Visuais. E toda uma nova organização foi estruturada para
escolher prioridades para o novo plano sob outros critérios e dire-
O setor de dança sendo reconhecido pela estrutura do SNC, cionamento tendo-se buscado manter como fundamento o Plano
e do PNC, recebeu especial destaque, ao ter sido um dos primei- Nacional de Dança.
ros setores contemplados com reuniões temáticas nas câmaras O PND foi estruturado inicialmente, em 2005, em seis ei-
setoriais, posteriormente denominadas de Colegiado Setorial de xos: Gestão e Políticas Culturais, Economia e Financiamento da
Dança, espaço privilegiado no diálogo e na elaboração de políti- Dança; Formação em Dança e de Público; Pesquisa, Criação e
cas para o setor, junto ao governo federal, ocorrido no âmbito do Produção em Dança; Difusão e Circulação em Dança; Registro e
Ministério da Cultura. Memória da Dança com diretrizes e ações específicas.
Como resultado do Colegiado Setorial de Dança, foram E a metodologia incluiu, conforme o Relatório 2005, a iden-
construídas propostas com diretrizes e linhas de ação para a dan- tificação de nós críticos encontrados nos elos de cada cadeia produ-
ça além de propostas de prêmios, programas, mapeamentos e ou- tiva (Formação; Criação e Pesquisa; Produção; Difusão; Consumo
tros projetos que se constituem na primeira tentativa de elabo- e Formação de Público) – para análise de contexto inicial, o levan-
ração mediada de políticas setoriais discutidas entre a sociedade tamento dos resultados almejados (que viessem a gerar mudanças
civil e o Estado brasileiro. perceptíveis na realidade) e a definição de diretrizes para atingir
Seriam as principais propostas, programas e projetos da cada resultado. A etapa final incluiu a priorização de alguns resul-
dança que dialogam com todo o conjunto legal e normativo que tados estratégicos na plenária conjunta. Grupos de trabalho foram

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constituídos a partir de cada elo da cadeia produtiva e dos elos à falta de dados e ausência de mapeamento sobre a ampla varie-
transversais. Ainda, debates por meio de videoconferências com dade da dança produzida no país. Solicitações que se repetem em
apoio da Serpro, em 11 capitais do País. diversas instâncias do MinC:
Os elos tranversais foram: Gestão Pública; Questões Traba- Quanto ao Eixo I “Do Estado”, existem diretrizes e ações
lhistas; Políticas culturais/articulação Nacional. Vê-se aqui uma propostas no sentido de articular os entes federados para o fomen-
similaridade com a proposição dos eixos transversais propostos to à produção e circulação entre outras ações visando ao processo
no Plano Nacional das Artes, em 2015-2016: Pacto Federativo, de colaboração e de complementaridade para atender às deman-
Marcos Legais e Rede de Difusão das Artes. das do setor, o que se relacionou ao eixo transversal do PNA, do
O relatório 2006 da Câmara Setorial de Dança incluiu a Pacto Federativo. E estabeleceu iniciativas para capacitar gestores
sistematização das propostas. Subdividindo-se em Financiamento públicos, privados e independentes, outro tema que é de extrema
Cultural (Fomento e Circulação); Dimensão econômica da cultura relevância para a gestão pública de cultura conforme se encontra
(Tributação e Legislação); Gestão Pública da Cultura; Dimensão em Ribugent (2016) e Barba (2009).
simbólica da Cultura (Registro e Memória; Difusão e Formação O Eixo II “Da Diversidade” trata de abranger a profusão da
de Público); Cultura e Educação: Diretrizes e Metas. Já os Grupos dança por meio de diretrizes que contemplam a diversidade artís-
de Trabalho foram subdivididos da seguinte forma: tica e cultural e diretrizes para registro e preservação da memória.
O Eixo III “Do Acesso” estabelece propostas de articulação
Grupo 1: Fomento, financiamento e difusão; entre MinC e MEC; a criação de cursos técnicos e superiores na
Grupo 2: Questões trabalhistas, formação e profissionalização. área visando atender ao que já foi exposto neste relatório como
demanda recorrente quanto à formação e capacitação.
Sendo que surgiram duas prioridades nos grupos: Questões A Diretriz 3.1.1 propõe a ampliação da oferta de cursos
trabalhistas e formação; e Economia e Fomento. técnicos e a 3.1.2 tem como meta “pelo menos um curso de gra-
Outros grupos foram constituídos para discutir: Direitos duação em cada estado e Distrito Federal, observando critérios
Autorais; Fomação – MinC e MEC; Economia da Cultura; Memó- de descentralização” (PND, 2010, p.263). O que aponta para a
ria e Patrimônio; Questões Trabalhistas e Tributação. Outros GTs relevância desta demanda, ainda hoje, para que a existência de
foram formados durante esses anos iniciais com reuniões que dis- graduações não fique vinculada apenas às capitais da maioria dos
cutiam outros temas como os editais lançados pela Funarte como estados. E para que cursos técnicos sejam criados em todo territó-
o Prêmio Klauss Vianna, composição de comissões, etc. rio nacional.
Um dos temas de debate e reflexão crítica foi a estruturação Quanto ao Eixo IV “Do Desenvolvimento Sustentável”, a
do Plano Nacional de Cultura que requereu a elaboração de do- diretriz 4.2 propõe a realização de um Mapeamento para levan-
cumentos da Câmara Setorial de Dança considerando problemas tamento de dados e indicadores. Sendo que o Colegiado Setorial
com a nomenclatura “danças brasileiras”; com a necessidade de de Dança (2013-2014) impulsionou o início desse mapeamento em
as decisões e os documentos desta Câmara serem legitimados em oito capitais brasileiras, em virtude da redução dos valores libe-
outras instâncias e sobre a segmentação do PNC. rados, inicialmente, em 2014 frente ao orçamento original. Nesse
Sobre a demanda do Estado para que as Câmaras elaboras- sentido, cabe a continuidade de investimento para o desenvolvi-
sem um diagnóstico da dança, constatou-se a inviabilidade devido mento desse e de outros projetos não apenas para mapear todas

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as capitais no país, mas também os municípios brasileiros. Deven- QUA DRO 4 – ES TR ATÉGIA S SE TORIAIS PRIORITÁ RIA S
do-se considerar que esta foi a única ação implementada e relacio- DANÇA
nada ao PND, e de modo parcial. EIXO 1: PRODUÇÃO SIMBÓLICA E DIVERSIDADE CULTURAL
A ação, 4.2.1, do mesmo eixo, propõe o cadastramento de
Criar, sistematizar e efetivar programas e projetos para a formação de profis-
acervos e mapeamentos existentes e a 4.2.3 o fomento a redes digi-
sionais na área, fomentando e facilitando a abertura de cursos de licenciatura
tais interligadas. Neste sentido, se articulava à proposta do PNA, e (ou) bacharelado em dança nas universidades públicas brasileiras, além de
de criação de uma Plataforma Digital, que poderia contar, ini- outros mecanismos de reconhecimento e (ou) qualificação para o ensino não
cialmente, com os dados levantados nessa 1ª etapa do Projeto de formal.
Mapeamento Nacional da Dança. EIXO 2: CULTURA, CIDADE E CIDADANIA
O Eixo IV também propõe a revisão e o aprimoramento da
Garantir a criação de uma Diretoria de Dança na Funarte e a implantação de
legislação que atende ao profissional da área e de mecanismos le-
Diretorias e (ou) Coordenações de Dança na estrutura organizativa dos muni-
gais tributários e se articula ao eixo transversal do PNA, de Mar- cípios, estados e Distrito Federal, com cargos ocupados por profissionais da
cos Legais. área com reconhecida atuação no campo da dança.
O Eixo V “Da Participação Social” tem as diretrizes volta-
EIXO 3: CULTURA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
das para acompanhamento e avaliação das políticas culturais com
divulgação e análise de resultados e para assegurar representações Criar marcos regulatórios – Lei da Dança – articulando ações entre o Minis-
tério do Trabalho e Emprego – MTE, Ministério da Cultura - MinC e Ministério
de dança em fundos setoriais específicos, entre outros espaços a
da Educação – MEC que assegurem o pleno exercício dessa profissão, estabe-
serem conquistados. lecendo pontes entre esses e as instâncias estaduais, distrital e municipais.
Na América Latina e península ibérica tem-se conhecimento
EIXO 4: CULTURA E ECONOMIA CRIATIVA
de mais dois planos setoriais de dança já implementados: o Plano
Nacional de Dança da Colômbia e o Plano Nacional de Dança da Criar e implementar leis de fomento e fundos setoriais para a dança nas esfe-
Espanha, ambos já implementados, avaliados e reestruturados. ras federal, estadual, municipal e distrital, com dotação orçamentária defini-
da, critérios transparentes de seleção e distribuição de valores.
Outro documento importante que contribui para balizar a
seleção de demandas e a gestão no setor são as estratégias seto- EIXO 5: GESTÃO E INSTITUCIONALIDADE DA CULTURA
riais escolhidas durante a Pré-Conferência de Cultura, realizada Assegurar que a versão completa do Plano Setorial da Dança, elaborado pelo
em Brasília, em 2010 e aprovadas na II Conferência Nacional de Colegiado Setorial em 2009, seja disponibilizada por um prazo mínimo de 45
Cultura: dias para consulta pública, e que todas as sugestões e alterações sejam con-
sideradas pela nova composição do Colegiado Setorial de Dança, e sua versão
final seja legitimada pelas instâncias legislativas em caráter de urgência.

Fonte: II Conferência Nacional de Cultura – Estratégias Setoriais (2010)

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Quer destacar-se, ainda, quando se analisam demandas na ampliação do número de setoriais no CNPC – não dava conta de
área da Dança, tanto o aumento da atividade da dança que está um planejamento que abarcasse a história, a potência e as parti-
presente, segundo resultados da Munic de 2014, em 68,5% das cularidades das Artes, a ponto de ter sido cogitado anteriormente,
cidades, tendo aumentado em 22,1%, desde o levantamento de nas instâncias do CNPC, que as Artes deveriam ter seu sistema
2006, pelo IBGE (que era de 56,1%); quanto o fato de que a dança próprio, após a elaboração do PND.
ainda não é computada nesses números já que está também in- No vai e vem de iniciativas e direcionamentos políticos, mes-
cluída nas manifestações tradicionais populares, que ficaram em mo quando bem intencionados, porém regrados pela burocracia
segundo lugar com 71,9%, logo atrás do artesanato (64,3%). Isso de Estado sem o concreto apoio das outras instâncias de Estado e
apenas reitera a importância do setor e a necessidade tanto de sem suporte de dados, mapeamentos e indicadores vê-se uma con-
autonomia para diretrizes e ações específicas da dança como de tradição que vai além do que aquela até aqui mencionada: o Es-
maior integração com os setores culturais com os quais a dança tado permite que gestões dentro de seu sistema elaborem políticas
tem qualquer tipo de integração. que respeitam suas regras e trâmites (que são deveras lentos) e as
Várias demandas foram aqui apresentadas na tentativa de financia na elaboração, porém não implementa nem tampouco se-
elucidar por meio de um contexto histórico e documental alguns gue os processos de acompanhamento e avaliação plurianual dos
limites de análise e de gestão das necessidades do setor. planos criados. Tampouco aprova legislações de recursos e fomen-
to em outras instâncias, demonstrando que não há priorização -
não apenas da Cultura e das Artes – mas de todo um conjunto de
CONTR ADIÇÃO ENTRE O FOI DEMANDADO, gestão e de políticas onde investiu. Todo o aparelhamento de Esta-
PROMETIDO E O QUE NÃO FOI ALCANÇADO do mostra-se além de contraditório, ineficaz. E a gestão em cultura
ou em dança, deve trazer à luz essa análise quando for propor ou
Dentre todas as demandas, diretrizes e ações, após a aprova- elaborar estruturas de continuidade, além de outras reflexões mais
ção do Plano Nacional de Dança, em 2010 apenas o início de um radicais que tornam-se praticamente obrigatórias neste contexto.
mapeamento foi feito. Além disso, houve essa alteração na organi- Sem dúvida, a formulação do Plano Nacional das Artes,
zação da gestão política das Artes com a proposta de uma Política apesar de todas as restrições e incômodos que gerou, especialmen-
Nacional das Artes, em 2015 onde foram reelaboradas diretrizes te entre artistas e militantes da Cultura e mesmo da Dança, de-
e prioridades que não tiveram tempo de serem implementadas por monstrou ter lacunas na estruturação dos Planos setoriais (muitos
todo processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. planos já eram questionados pelos próprios setoriais – algo que
Essa mudança de percurso que houve com o PNA já demons- não ocorreu com a área da Dança). E o alinhamento entre esses
tra as contradições e falta de um real planejamento pautado por planos e direcionamentos pode ser uma articulação importante
indicadores e informações que contribuíssem com um diagnóstico para uma próxima gestão que venha a efetivar os planejamentos
eficaz da área, que não deixasse dúvidas sobre as prioridades ou em implementações concretas.
sobre o próprio Plano Nacional de Dança, como marco e formato Parece ainda importante ampliar o espectro decisório sobre
que sintetizava as demandas da sociedade civil que chegou a ser os desenhos das políticas, e vincular as demandas setoriais aos
consultada. Mais do que isso, demonstrava que a própria política editais e a outros mecanismos de fomento ora existentes e a essa
que abarcou conceitos ampliados de Cultura – que justificaram a compreensão ampliada da dança que é vivenciada e produzida no

32 2 323
Brasil, para desenhar uma orientação técnica para essas políticas estatal que mais apresentará contradições e desvios em um mesmo
gerais e transversais que se pretendeu no PNA. plano do que a continuidade e fluxo de desenvolvimento do mesmo.
Portanto, existem uma série de questões pendentes, que re- Das diferentes fases da construção de uma política cultural, pouco
velam contradições na elaboração, bem como execução e gestão se vê das fases de implementação, acompanhamento e avaliação de
das políticas da dança, crítica que foi identificada anteriormente uma política posta em prática.
em VELLOZO (2011) e também no caso do setorial de música, Sendo que é necessário considerar que quando a gestão está
por SOUZA NETO (2014), o que introduz pela semelhança dos atrelada a esse campo da experiência humana que são as políticas
casos, sugere ser problema recorrente nas demais setoriais, limi- culturais, outros aspectos vem a complexificar o perfil do que é ge-
tando as leis, normas, planos e metas a meras intenções, cheias de rir, a exemplo da dimensão sensível, transitória, diversa, múltipla,
descontinuidades1 e parca efetividade. multifocada e transdisciplinar da cultura. A gestão em Dança, não
de modo diferente, chega permeada por essa amplitude direcional
e que contempla a diversidade de estilos e formatos de dança e de
MEDIAÇÕES - ALTERNATIVAS EM GESTÃO, NOVOS DIÁLOGOS entendimentos cabendo, então, repensar a função do gestor cultural,
conforme Barros (2016, p.68-69): “... não é apenas um operador de
A medição das políticas, e diálogo entre Estado e Sociedade lógicas lineares e aristotélicas voltadas para a civilização da selvage-
Civil, para desenvolvimento de planos e gestão pública do setor da ria e da barbárie da cultura e seus sujeitos.” Para o autor, o gestor
dança, requer uma nova abordagem. cultural é um mediador entre diferentes dimensões e mais do que um
Do latim gerire, gestão pode estar relacionada ao ato de gerir especialista em conhecimentos e práticas excludentes ou exclusivas,
e gerenciar, de digerir incluindo ser digesto ou indigesto, e de gestar. este seria como um roteador de possibilidades como uma espécie
Desse modo, os significados possíveis permitem ampliar a noção do de mediador da construção do que é provável e, também, do que é
que pode vir a ser uma gestão, especialmente a gestão privada, já que utópico.
este artigo enfatiza os limites e dificuldades que a burocracia gera
para o gestor público de cultura e de dança. O que mais se percebe
nas gestões públicas são as consequências da gestão limitada pela ATUALIZANDO TEMAS E DESAFIOS DA
burocracia e pela falta de prioridade e de recursos públicos que aca- GESTÃO PÚBLICA DE CULTUR A
ba se tornando um processo “digestório” lento e difícil.
De outro modo, há consequências a todo e qualquer processo Um dos importantes desafios da gestão pública de cultura
de gestar, de gerenciar e de digerir o que quer que se planeje ou não no Brasil é o criar modos de gerir a partir de estruturas de pensa-
no campo da gestão, especialmente quando isso parte da burocracia mento que se diferenciem das costumeiramente utilizadas, e, que
viabilizem efetivamente, na prática das ações contemplar, confor-
me Calabre (2016):

1 Lembrando, que após a escrita deste artigo em 2017, ocorreu enorme desmonte das polí- • a pluralidade dos fazeres e para tanto, a necessidade de uma
ticas setoriais e do próprio Ministério da Cultura, inviabilizando totalmente essas políticas visão sistêmica para atuar reconhecendo a diversidade na área
setoriais, que esperam retomada em um futuro em que a nação brasileira se encontre em
cultural;
situação melhor.

324 325
• os múltiplos atores sociais por meio de diálogos menos autori- Brasil e sim, também em outros países que tomaram a importân-
tários e mais horizontais no que diz respeito às relações de poder cia de gerir sob pressupostos.
com o Estado; Entre as iniciativas em formação de gestores, menciona-se o
• a possibilidade de reajustes em mecanismos legais e de regulação método de assistência remota, à distância, realizada em 439 muni-
da área cultural. cípios brasileiros (NETO; TELLECHEA, 2016) por meio do estu-
do de planos municipais de cultura que foi mediado por tutores e
Já Barba (2016, p.18) menciona alguns dilemas que um ges- orientadores durante o processo de formação.
tor cultural enfrenta por meio de uma espécie de temáticas e ações Segundo Ribugent (2016, p. 79): “A paixão pelo trabalho e
ambivalentes: a dedicação absoluta requer conhecimento profissional de ferra-
mentas e estratégias para garantir a eficácia da gestão pública e
“(...) o passado e o presente, a conservação ou a criação, a refor- privada da vida cultural”.
ma ou a tradição, a renovação ou a permanência, conservador ou A descentralização foi foco pelo Ministério de Cultura da
liberal, impulso ou freio, livre desenvolvimento e desregulamen- Espanha, a partir de 1980. (p 74) Com políticas de aproximação –
tação ou regulamentação e legislação, instituições ou não insti- para ampliação da democracia cultural, revelando a importância
tuições, instituições públicas ou organizações independentes e da dessa amplitude na área da cultura como estratégia para ampliar
sociedade civil”. acesso democrático de modo amplo na sociedade.
A capacitação de agentes foi foco na Catalunha e na Espa-
Estes dilemas pontuados por Barba (2016) foram norteado- nha e tomou-se a responsabilidade na formação de gestores cul-
res para a elaboração de um currículo de bacharelado em gestão turais com a criação de centros de estudos e recursos culturais
cultural criado no México, em 2009, pela Iteso, em Guadalajara, (1984) quando jovens ativistas culturais assumiram postos de di-
Jalisco. Esta proposta formativa baseou-se em cinco eixos (BAR- reção política e técnica em prefeituras. Chama a atenção a consi-
BA, 2016): Teoria da Pesquisa da Gestão Cultural; Apreciação das deração desse aspecto técnico que é imprescindível para o encami-
manifestações artísticas e patrimoniais; Domínio das linguagens nhamento e implementação de propostas em uma gestão. Muito
e expressões culturais; Sistemas, instituições e políticas culturais; do que pode ser executado e atingido codepende da capacidade
Administração Cultural. Esses eixos respaldam-se na considera- técnica de uma equipe de gestão que torna viável um olhar e ação
ção de que: direcionado a pontos fundamentais para que políticas sejam, não
apenas elaboradas, mas especialmente, implementadas.
“(...) a vida social nos coloca permanentemente diante de dilemas
que movem mais para o equilíbrio do que para a exclusão, mais
para a convivência na diferença do que para a destruição do con- CONCLUSÃO
trário no campo simbólico (...)” (BARBA, 2016, p. 19).
A cultura – e neste caso mais específico, a gestão da dan-
Assim como esse exemplo mexicano existem outras iniciati- ça – está sujeita às tensões políticas e interesses do Estado e de
vas, pois a formação para gestores apresenta-se como um compo- grupos com capacidade de interferência na administração pública.
nente estruturador para o tema da gestão cultural, não apenas no O Estado racional moderno (Weber, 1991) está de modo oposto

326 327
aos interesses públicos, voltado às próprias razões de manuten- de decisão, portanto não pode ser apenas movida pelos desejos
ção do poder como uma máquina repressora (Bourdieu, 1996) da sociedade civil, pelas razões do Estado ou por um tecnicismo
selecionando políticas que serão executadas ou não, de forma às estéril e sim, através do permanente diálogo e aperfeiçoamento
vezes pessoal, política e partidária, de outras impessoal sem res- dessas relações, de suas diferentes dimensões e dos possíveis des-
peitar demandas e particularidades de diferentes setores sociais. dobramentos.
Essa forma de ação da máquina do Estado é definida por Bauman Essa contradições são inerentes. Por exemplo, em momentos
(1999) como “Estado Jardineiro”. Essa visão do Estado consolida de estudo de políticas setoriais se deixa de lado o trabalho técnico
uma visão tecnocrata, em que o Estado age como um jardineiro que também possui um teor político, para se discutir ou apresen-
que deve preservar as plantas boas e acabar com as ervas dani- tar apenas problemas políticos partidários. Não que uma discus-
nhas. Mesmo que restem dúvidas levantadas pelo autor se o Esta- são precise anular a outra, mas torna-se frágil quando os aspectos
do tem a capacidade real de afirmar o que é erva daninha e o que técnicos são reduzidos ou subestimados em relação aos aspectos
é uma flor, lança-se dúvidas claras sobre as injustiças efetivadas desse tipo de ordem política que serve a construção de projetos
na prática. hegemônicos (GRAMSCI, 1978). A gestão administrativa da coisa
No Brasil, muitas vezes o que se vê são aspectos apenas de pública, não pode se submeter demasiadamente nem aos interes-
ordem de participação política sendo considerados em momentos ses privados, e muito menos, apenas ser reduzidas aos interesses
de (pseudo) decisão ou de compartilhamento público de ações ou político partidários. Dosagens precisam ser feitas, acompanhadas
programas de Cultura e de Dança. Devendo-se considerar que na de preparo dos agentes públicos e privados, para lidarem de forma
maioria dos contextos de participação política, as decisões não são ética, técnica e responsável com questões de interesse geral.
levadas a cabo, configurando-se uma pseudo-participação (PATE-
MAN, 1992). Por outro lado, essa autora ressalta que a função de
participação na democracia - apesar das deficiências - é antes de
tudo educativa e por isso deve haver uma permanente capacitação REFERÊNCIAS
de técnicos e gestores. Pois, para além da função participativa da
sociedade na tomada de decisões, caso do Colegiado Setorial de • AMOEDO, Sebastião. Ética do Trabalho na era Pós-qualida-
Dança, do CNPC e das conferências de cultura, não se efetivam de, Qualitymark, 1997.
essas instâncias como reais espaços decisórios, sendo muitas vezes • ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico,
estes mecanismos usados para aproximação e cooptação da socie- São Paulo, Martins Fontes, 2008.
dade civil, sendo na melhor das hipóteses espaços de aprendizado, • BARBA, Alfonso Hernández. Dilemas para os gestores cultu-
como bem frisou Pateman (1992), ao destacar a função educativa rais – uma proposta formativa em cinco eixos. Rio de Janei-
da participação, ainda que as decisões sejam predeterminadas pe- ro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2009.
los gestores. • BARROS, José Márcio. Processos (trans)formativos e a ges-
Olson (2011) demonstra que o que movimenta a sociedade tão da diversidade cultural. Rio de Janeiro: Fundação Casa
civil para a participação são razões egoístas de atendimento às de Rui Barbosa, 2009.
suas próprias demandas e que a lógica da ação coletiva ocorre • BARROS, Priscila. Diagnóstico do plano setorial de dança.
do diálogo entre os interesses individuais e coletivos. A tomada Brasília: Secretaria de Políticas Culturais, 2013. Disponí-

328 329
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330 331
RUI MOREIRA é bailarino, coreógrafo e investi- VAMOS FALAR SOBRE DANÇAS NEGR AS
gador de culturas. Atuante na dança por mais Rui Moreira
de três décadas com atividades diversas no ce-
nário cultural. Trabalhou como bailarino intér-
prete e criador nas companhias: Cisne Negro, A Dança Negra é rica, variada, complexa e impossível de definir,
Balé da Cidade de São Paulo, Grupo Corpo, pois ela é como a vida, um movimento que se inscreve além
Será-Quê? e Azanie (França). Sua formação dos olhares da humanidade e da sua história.
em dança mescla as práticas: do ballet clássico, _Patrick Acogny
de danças modernas, de danças populares do
mundo e de danças africanas da contempora-

I
neidade. Coreografou para diversos elencos de nshalá o presente e o passado possam servir para a leitura dos
companhias de dança, de grupos teatrais, de ci- fatos que constroem consequências. O futuro pode estar a sua
nema e de manifestações populares. Ministrou frente ou as suas costas cada vez que você der meia volta...
aulas nos cursos de pós-graduação da Univer-
sidade de Macaé (RJ) – Corporeidades Negras A expressão “Dança Negra” oferece um leque de possibili-
e da PUC Minas Gerais (BH) – Performance e dades para abrir visões e estimular estudos dos vários aspectos do
ritual. Sua atuação artística foi reconhecida e pensamento contemporâneo sobre as cenas que derivam de matri-
premiada pela crítica especializada através dos zes culturais africanas. O termo – Dança Negra – é uma estraté-
prêmios, Associação Paulista dos Críticos de gia e não uma definição do que são ou do que podem expressar
Arte (APCA) e pela Medalha da Inconfidência artisticamente os homens e mulheres de pele preta. Ao demarcar
concedida pelo governo de Minas Gerais, pela essa denominação, os artistas da dança que militam no universo
profícua atuação artística e social em todo ter- de manifestações africanas-subsaarianas e de suas diásporas, in-
ritório nacional e nos países onde levou os valo- dependentemente de sua cor de pele, tomam o poder sobre o olhar
res da cultura do Brasil. Atualmente dedica se do outro. A partir daí promovem a desconstrução de uma dança
à Rui Moreira Cia. de Danças onde desenvol- meramente étnica para expressar uma dança universal. Uma dan-
ve pesquisas criativas cênicas em parceria com ça humana que se inscreve nas lacunas diferenciais junto a todas
artistas criadores e intérpretes, está graduando as danças que são praticadas em todos e quaisquer lugares. Assu-
na licenciatura em dança pela Universidade Fe- mindo a expressão “Dança Negra”, existe o discernimento de um
deral do Rio Grande do Sul (UFRGS). olhar sobre o termo patrimonial. “Negra” aqui designa um patri-
mônio universal explicitando cada vez mais que as questões con-
cernentes aos negros, são questões universais que tocam a todos.
Os diferentes termos: dança afro, dança negra, dança afro-
-americana, dança afro-brasileira, sugerem olhares e espaços
possíveis para a recepção de estratégias e para crítica. Essas con-
siderações gerais nos oferecem a dimensão da diversidade e das

332 333
questões em aliar as expressões artísticas de dança que dialogam guerras mundiais, revoluções industriais, somados à necessidade
corporalmente e emocionalmente com as matrizes africanas sub- de visibilidade social, levam a população negra moderna do mun-
saarianas e afro diaspóricas negras. A história da dança como arte do inteiro a acirrar seu empenho por conquista de espaços em
no ocidente é contada a partir da hegemonia branca eurocêntrica. todas as áreas de atuação, inclusive nas artes.  
Registra os primórdios de uma dança atrelada às manifestações de Na  América do Norte e  Caribe, artistas e danças cênicas
arte Romanas e Gregas, chega à corte Francesa, passa pela Rús- perpassadas por pensamentos e estética branca europeia, vão in-
sia e estabelece marcos de modernidade com o expressionismo da corporar motricidades e plasticidades das danças africanas patri-
Alemanha e de alguns países do leste europeu.  moniais e tradicionais e até mesmo gestos das práticas afro ritua-
A expressão de algumas danças negras, à primeira vista pode lísticas. Um fato novo começa então a ganhar lugar nesta região
ser percebida apenas por um olhar exótico causando a impressão do planeta.
de ser acessível a qualquer corpo desde que seja negro. Isso talvez se Obras coreográficas são desenvolvidas por criadores negros
dê por um uso de corpo que desafia a verticalidade mais do que em para a expressão corporal e espiritual de artistas negros. Alguns
outras formas de dançar, o que muitas vezes acaba remetendo suas desses criadores desenvolveram métodos que são ensinados e di-
imagens a uma ideia de dança primitiva, sem regras, feitas somente fundidos em sistemas de ensino como técnicas específicas e passa-
de maneira espontânea, o que não é verdade. Estas características ram a incorporar a narrativa histórica da arte de dançar. Esse mo-
artísticas, antropológicas e geopolíticas por muito tempo impedi- vimento afro-americano foi acolhido dentro dos signos da dança
ram que esta forma de dançar fosse considerada na narrativa da moderna por diversos títulos. Todos explicitando características
construção da história universal da arte de dançar e de construção relacionadas a questões étnicas.
de espetáculos. Isso começou a ser alterado quando as diásporas O trabalho de Katherine Dunham (1909-2006), uma lendá-
africanas na América se manifestaram como força social significati- ria dançarina considerada como a mãe da American Black Dance,
va citando sua afrodescendência. integrou uma onda de consciência negra antirracista. Seu pensa-
Em meados do século XIX na Europa ocidental surge o que mento e produção artística e seu processo de conceituação e codi-
chamamos de Dança Contemporânea, baseada na busca da essên- ficação técnica, influenciou e provocou reflexões sobre a existência
cia expressiva do homem. Na Europa, Rodolf Laban (1878-1958) de um gesto híbrido das culturas da América.
interessa-se pelo movimento e pelo  corpo  de forma holística. Seu Algumas danças do novo mundo (do sul ao norte) se origi-
trabalho originou o alastramento da dança a várias dimensões: te- naram de musicalidades afro-negras, e foram ensinadas para mui-
rapia, educação e lazer. Na América, Isadora Duncan (1877-1927) tos,  ultrapassando inclusive limites etnográficos.  Dentre as for-
renova o movimento que valoriza os fenômenos naturais, sobrepon- mas variadas de dançar originadas nos ambientes de descendência
do-se à utilização de qualquer cenário. Também neste período nos das matrizes afro podemos citar: o jazz, o sapateado americano, a
Estados Unidos, um dos grandes territórios diaspórico africano, no salsa cubana, a salsa porto-riquenha, a rumba, o samba, o tango,
movimento intitulado de Dança Moderna, aparecem as primeiras o conjunto de danças sociais norte americanas que compõem o
rupturas deste pensamento hegemônico eurocêntrico e branco.   variado repertório das danças de rua/ danças urbanas (street dan-
O desenvolvimento de ex-colônias europeias notoriamente ce) e as diversas danças do folclore de cada país. As motricidades
diásporas africanas,  as revoluções pela independência em vários específicas destas danças imprimem valores gestuais que aparecem
países africanos, aliados a uma revisão material provocada pelas nas estéticas das danças dramáticas apresentadas em teatros, ruas

33 4 335
e que são difundidas também nas  produções  cinematográficas e A análise da black dance americana sugere abordagens possíveis
nos variados produtos midiáticos audiovisuais.  para o estudo das danças de matrizes afro no Brasil. Se a dança
Mercedes Baptista (1921-2014) considerada a precursora da afro, enquanto linguagem constituída no imaginário de centenas
dança afro no Brasil (SILVA JR., 2007), foi a primeira bailari- de dançarinos, incorpora abordagens coreográficas historicamen-
na negra do Balé do Theatro Municipal, em 1948. Participou do te determinadas no Brasil, reconfigurando fazeres de artistas como
Teatro Experimental do Negro (T.E.N.) como bailarina e core- Mercedes Baptista, Domingos Campos, Raimundo Bispo dos San-
ógrafa. Estudou com a bailarina e antropóloga norte-americana tos e Marlene Silva (só para citar alguns) o uso do termo dança
Katherine Dunham nos EUA em 1951. No Brasil em 1953 criou negra, de uso mais recente entre seus produtores, adiciona novas
o Ballet Folclórico Mercedes Baptista, onde desenvolveu um estilo orientações políticas às práticas artísticas. Assim como nos Esta-
de dança com técnica e didática estruturadas, assimilando refe- dos Unidos, a dança negra no Brasil parece englobar dimensões
rências das danças rituais do candomblé, entre outras expressões estéticas diversas, constituindo um conceito elástico e caleidoscó-
das tradições afro-brasileiras. A bailarina usou inúmeras nomen- pico que testa sua coerência a cada nova abordagem agregada.
claturas para referir-se aos seus cursos. Além de aulas de dança Artistas bailarinos e coreógrafos, educadores e intelectuais
clássica, dança moderna e técnica Dunham, Mercedes também foi pensadores negros, motivados pela urgência de visibilizar e com-
professora de dança folclórica, dança étnica, dança afro-primitiva partilhar informações sobre os avanços de suas pesquisas, publi-
e, por último, dança afro-brasileira. Essa variedade não somente caram tratados técnicos sobre a arte, estética, pedagogia, antropo-
demonstra a versatilidade técnica da artista, mas também fornece logia das danças afro e africanas, expondo reflexões e ou métodos
indícios de como as últimas denominações apontam para a cons- codificadores de uma Dança Negra.  Pearl Primus,  Katherine
trução, transformação e afirmação política de um estilo próprio. Dunham, Alvin Ailey, Germaine Acogny, Bill T. Jones, Inaicyra
Ao longo dos anos sua atuação ajudou a construir uma rede de Falcão, Renata Lima, Amélia Conrado, por exemplo, estrutura-
filiações, na qual os mestres não moldaram totalmente seus dis- ram  técnicas corporais investigativas, que geraram publicações
cípulos, mas criaram conexões e alimentam processos múltiplos. que se tornaram referências bibliográficas para artistas interessa-
Embora a influência mais visualmente reconhecível na pro- dos pelas matrizes africanas ou matrizes afro diaspóricas.
dução desses grupos tenham sido as danças dos orixás em suas
mais distintas tradições, mesclam-se a elas as inúmeras variações
do samba, os passos das danças populares brasileiras e suas con- ATITUDES; SENTIMENTOS; SENSAÇÕES...
figurações regionais, os movimentos da capoeira, as influências
da dança moderna americana e até da técnica da dança clássica, As questões negras, as questões indígenas assim como todo
visto que grande parte de seus criadores também teve acesso a essa o conteúdo que aborda o hibridismo identitário, no caso do Brasil
formação. Com o decorrer dos anos os produtores desta dança dizem respeito a toda a nação.  As discussões de identidade que
afro assumiram a figura do coreógrafo criador afastando-se da permeiam todo o planeta estão cada vez mais conduzindo as gera-
mera reprodução das danças rituais e populares. Suas criações re- ções a buscar uma horizontalidade social para ocupar seus espa-
sultam de mediações entre experiências diversas, que integram sa- ços de pertencimento.
beres artísticos provenientes de espaços múltiplos, como: terreiros, O racismo é um tema que no Brasil tem relevância de longa
estúdios de dança, bancos universitários, salas de ensaio e aula. data e o foco mais intensificado está no confronto de realidade

336 337
de ter mais de 50% da população descendente de africanos sub- mais fluidamente, sem as ressalvas observadas em outros perío-
saarianos. Os negros brasileiros são resultado do hibridismo das dos geracionais. Isto vem proporcionando ampliação do desfrute
culturas africanas, europeias, indígenas e na atualidade de muitos das nuances culturais do povo brasileiro. No universo da dança
mais povos que aqui vivem. está cada vez mais comum ver os criadores considerarem os lega-
dos culturais afrodescendentes e indígenas, mesmo que os proces-
Se tais sociedades não se desintegram totalmente não é porque sos de formação sejam fortemente ancorados na supervalorização
elas são unificadas, mas porque seus diferentes elementos e iden- de discursos  canônicos  eurocêntricos. Sobretudo nos currículos
tidades podem, sob certas circunstâncias, ser conjuntamente ar- universitários. Ainda não é fluido o estudo do conjunto de concei-
ticulados. Mas essa articulação é sempre parcial: a estrutura da tos e práticas corporais que dialoguem com o exercício cultural e
identidade permanece aberta. Sem isso, (...) não haveria nenhuma produção de arte nacional. 
história. Entretanto (...) isso não deveria nos desencorajar: o des- Em função destes fatos, é muito comum ver alguns negros
locamento tem características positivas. Ele desarticula as identi- convictos brasileiros incumbidos de buscar justificativas e evidên-
dades estáveis do passado, mas também abre a possibilidade de cias sobre os pontos de confluência dos traços de origem matricial-
novas articulações: a criação de novas identidades, a produção de mente africana na identidade cultural do país. Nem sempre de pele
novos sujeitos e o que ele chama de ‘recomposição da estrutura preta, estes negros convictos muitas vezes são pessoas pardas ou
em torno de pontos nodais particulares de articulação. Em vez de brancas e acabam se responsabilizando pelo encaminhamento das
pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá- discussões. Nunca deixando de destacar que dizer ser brasileiro é
-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa também dizer ser americano do Sul; afrodescendente; ameríndio.
a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas O exercício da arte sempre deverá significar um salvo con-
por profundas divisões e diferenças internas, sendo ‘unificadas’ duto para a expressão, livre de qualquer tratado étnico ou social
apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultu- pré-estabelecido ou não… Paradoxalmente, não se deve desconsi-
ral. “Entretanto – como nas fantasias do ‘eu inteiro’ de que fala derar os aspectos culturais dos indivíduos para discorrer sobre a
a psicanálise lacaniana – as identidades nacionais continuam a manifestação das expressões artísticas.
ser representadas como unificadas.” (...) As nações modernas são, Segue um pequeno glossário de nomes influentes e referen-
todas, híbridos culturais. (HALL, 2003, p. 7-22) ciais quando se discorre de maneira sociológica conceitos e visões
cosmogônicas negras como a negritude; a crioulização; a afro-
As  múltiplas  identidades afrodescendentes são sempre te- descendência; a africanidade; o afrocentrismo; o quilombismo; a
máticas oportunas quando se discute cultura e arte. Em geral as ubuntuidade; o pan-africanismo. Todas visões formuladas a par-
manifestações de arte provenientes ou inspiradas no universo cul- tir dos efeitos do espalhamento da população africana pelo mun-
tural negro não se limitam ao espetáculo alegórico. Uma explí- do e consequentemente da formação das múltiplas identidades das
cita interferência dos processos sociais/políticos, a afirmação da novas nações:
valorização de cosmovisões específicas e exposição de convicções
ideológicas, acabam desenvolvendo formas de comunicação cria- • ACOGNY, Germaine (1944): Dançarina e coreógrafa se-
tivas e bastante peculiares. Na contemporaneidade, identificamos negalesa. Responsável pelo desenvolvimento da “Dança Africana”,
a tendência de que as matrizes culturais do Brasil sejam visitadas bem como pela criação de várias escolas de dança na França e no

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Senegal. Ela foi condecorada por ambos os países, incluindo um nistra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade
oficial da Ordre des Arts et des Lettres na França e cavaleiro da Racial do Brasil entre 2011 e 2014.
Ordem Nacional do Leão no Senegal.
• CABRAL, Muniz Sodré de Araújo (São Gonçalo dos
• ACOGNY, Patrick: Artista bailarino, coreógrafo e profes- Campos, 12 jan. 1942): Jornalista, sociólogo e tradutor brasileiro,
sor. Formou-se na Europa e África e especializou-se em técnicas professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Escola de
contemporâneas e tradicionais de danças da África. Doutor em Comunicação. É um pesquisador brasileiro e latino-americano no
dança e pesquisador vinculado à Universidade Paris 8 e membro campo da comunicação e do jornalismo.
do laboratório etnocenologia de la Maison des Sciences de l’Hom-
me de Paris Nord. • CÉSAIRE, Aimé Fernand David (Basse-Pointe, Martinica,
26 jun. 1913 — Fort-de-France, 17 abr. 2008): Poeta, dramaturgo,
• AILEY, Alvin (5 jan. 1931 – 1 dez. 1989): Dançarino, di- ensaísta e político da negritude. Além de ser um dos mais impor-
retor, coreógrafo e ativista afro-americano que fundou o Alvin Ai- tantes poetas surrealistas no mundo inteiro, inclusive no dizer do
ley American Dance Theatre (AAADT). Sua afiliada Ailey School líder deste movimento, Breton, Aimé Césaire teve a sua obra mar-
criou meios para nutrir artistas negros e expressar a universalida- cada pela defesa de suas raízes africanas.
de da experiência afro-americana através da dança. Seu trabalho
mesclou teatro, dança moderna, balé e jazz com o vernáculo ne- • CIA. RUBENS BARBOT TEATRO DE DANÇA: Funda-
gro, criando coreografias motivadas pela esperança que continu- da em 20 de agosto de 1990 no bairro de Quintino na cidade do
am a espalhar a consciência global da vida negra na América. Rio de Janeiro, pelo coreógrafo e bailarino Rubens Barbot, natu-
ral do Rio Grande do Sul e radicado no Rio de Janeiro em 1989.
• BALÉ FOLCLÓRICO DA BAHIA: Companhia de dança A primeira Companhia Negra de dança contemporânea, mantém
folclórica do Brasil. Fundada em 1988, é a única companhia fol- até hoje um trabalho singular. Sustentando sua linguagem numa
clórica profissional brasileira. Está sediada em Salvador, no Tea- análise profunda dos gestos, movimentos e imagens que se des-
tro Miguel Santana, situado no Centro Histórico. Foi reconhecida prendem dos corpos afro-brasileiros.
como a “melhor companhia de dança folclórica do planeta” pela
Associação Mundial de Críticos. • CIA. SERÁQUÊ?: Agrupamento artístico que se expressa
através da Dança. Sua história começa em 1992, em Belo Hori-
• BANDO DE TEATRO OLODUM: Companhia negra zonte - Brasil, com o encontro de bailarinos, atores, músicos e
mais popular e de maior longevidade na história do teatro baiano poetas em sua maioria negros, interessados em pensar a cena a
e uma das mais conhecidas do país. Nasceu em 17 de outubro de partir de suas referências estéticas e políticas e a partir daí, esta-
1990, em Salvador, a partir de uma parceria entre o diretor Mar- belecer diálogos com a diversidade e com a variedade de culturas
cio Meirelles e o Grupo Cultural Olodum. existentes no Brasil.

• BAIRROS, Luiza Helena de (Porto Alegre, 27 mar. 1953 • CONRADO, Amélia: Doutora e mestre em Educação pela
– Porto Alegre, 12 jul. 2016): Administradora brasileira, foi mi- Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Coreo-

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grafia pela Escola de Dança da UFBA. Membro do Programa de • FANON, Frantz Omar (Fort-de-France, Martinica, 20 jul.
Pesquisa e Pós-Graduação em Dança (PPG Dança), do Programa 1925 – Bethesda, Maryland, 6 dez. 1961): Psiquiatra, filósofo e
de Mestrado Profissional em Dança (PRODAN) e pesquisadora ensaísta marxista francês da Martinica, de ascendência francesa
do Grupo Internacional de Pesquisa RETINA - Recherches Es- e africana. Fortemente envolvido na luta pela independência da
thétiques & Théorétiques sur les Images Nouvelles & Anciennes Argélia, foi também um influente pensador do século XX sobre os
sob coordenação do filósofo François Soulages. É líder do GIRA: temas da descolonização e da psicopatologia da colonização.
Grupo de Pesquisa em Culturas Indígenas, repertórios Afro-brasi-
leiros e Populares. • GILROY, Paul (16 fev. 1956): Historiador, escritor e aca-
dêmico britânico, é o diretor fundador do Centro de Estudos de
• CHAMOISEAU, Patrick (Fort-de-France, Martinica, 3 Raça e Racismo da University College London. Vencedor do prê-
dez. 1953): Escritor francês autor de romances, contos e ensaios. mio Holberg, por suas contribuições para vários campos acadêmi-
Também já escreveu para teatro e cinema. O Prêmio Goncourt lhe cos, incluindo estudos culturais, sociologia, história, antropologia
foi concedido em 1992. Sua obra inclui os principais traços da cul- e estudos afro-americanos.
tura da Martinica, principalmente o povo e seus combates diários.
• GLISSANT, Édouard (Sainte-Marie, Martinica, 21 set.
• DAMAS, Léon-Gontran (Guiana Francesa, 28 mar. 1912 1928 – Paris, 3 fev. 2011): Escritor, poeta, romancista, teatrólo-
– EUA, 22 jan. 1978): Escritor, poeta e político francês. Era mes- go e ensaísta francês. Doutor em Letras, publicou suas primeiras
tiço de negro, ameríndio e branco. Foi um dos fundadores da Ne- obras depois de seus estudos de etnografia no Museu do Homem e
gritude, juntamente com Césaire e Senghor nos anos 1940. de história e filosofia na Sorbonne. No início, adepto das teses de
negritude (conceito desenvolvido por Léopold Senghor em prol de
• DUNHAM, Katherine Mary  (22 jun. 1909 – 21 mai. um retorno às raízes africanas), elaborou o conceito de antilhani-
2006): Dançarina afro-americana, coreógrafa, escritora, educado- dade (valorização da cultura própria, nascida nas Antilhas, consi-
ra, antropóloga e ativista social. Dunham teve uma das carreiras derando o povo das ilhas “autônomo” culturalmente em relação a
de maior sucesso no teatro afro-americano e europeu do século África) e de crioulização (valorização da cultura e língua crioula).
XX e dirigiu sua própria companhia de dança por muitos anos. 
• GRIAULE, Marcel (16 mai. 1898 – 23 fev. 1956): Autor
• FROBENIUS, Leo (Berlim, 29 jun. 1873 – Biganzolo, 9 e antropólogo francês conhecido por seus estudos sobre o povo
ago. 1938): Etnólogo alemão. Através de suas pesquisas sobre a Dogon da África Ocidental e pelos pioneiros estudos de campo et-
história africana ele ainda é lembrado em muitos países africanos. nográfico na França. Trabalhou em conjunto com Germaine Die-
Em particular, ele influenciou os fundadores da Negritude Léopold terlen e Jean Rouch em assuntos africanos.
Sédar Senghor, que certa vez escreveu que ele “havia dado à África
sua dignidade e sua identidade”, bem como Aimé Césaire, para • HALL, Stuart (Kingston, 3 fev. 1932 – Londres, 10 fev.
cuja obra poética e ensaística também foi fundamental. Frobenius 2014): Sociólogo marxista britânico jamaicano, teórico cultural
via a cultura africana como equivalente à europeia, o que era in- e ativista político. Hall, juntamente com Richard Hoggart e Ray-
comum para um estudioso de sua época. mond Williams, foi uma das figuras fundadoras da escola de pen-

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samento que hoje é conhecida como Estudos Culturais Britânicos dade branca enquanto celebravam a cultura jamaicana. Também
ou Escola de Estudos Culturais de Birmingham. escreveu contos sobre as provações e tribulações da vida como
homem negro na Jamaica e na América.
• HUGHES, James Mercer Langston (1 fev. 1901 – 22
mai. 1967): Poeta americano, ativista social, romancista, dra- • MARTINS, Leda Maria (Rio de Janeiro, 25 jun. 1955):
maturgo e colunista de Joplin, Missouri. Mudou-se para Nova Poeta, ensaísta, acadêmica e dramaturga brasileira. Leda Martins
York quando jovem, onde fez sua carreira. Um dos primeiros avalia que a importância dos diversos ritmos, dos tambores es-
inovadores da então nova forma de arte literária chamada po- palhados pelo país, está, justamente, nas “duas grandes matrizes
esia de jazz, Hughes é mais conhecido como líder do Renasci- africanas civilizatórias no Brasil”, caso da Nagô-Iorubá e Banto.
mento do Harlem.
• NASCIMENTO, Abdias do (Franca, 14 mar. 1914 – Rio
• JONES, William Tass, conhecido como Bill T. Jones, (15 de Janeiro, 23 mai. 2011): Ator, poeta, escritor, dramaturgo, artis-
fev. 1952): Coreógrafo, diretor, autor e dançarino americano. Ele ta plástico, professor universitário, político e ativista dos direitos
é o co-fundador da Bill T. Jones / Arnie Zane Dance Company. civis e humanos das populações negras brasileiras. Considerado
Diretor artístico da New York Live Arts, a sede da empresa em um dos maiores expoentes da cultura negra e dos direitos huma-
Manhattan, cujas atividades abrangem uma temporada anual de nos no Brasil e no mundo, foi oficialmente indicado ao Prêmio No-
apresentações, juntamente com programas e serviços de educação bel da Paz de 2010. Fundou entidades pioneiras como o Teatro Ex-
aliada para artistas. perimental do Negro (TEN), o Museu da Arte Negra (MAN) e o
Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO). Foi
• LOCKE, Alain LeRoy (13 set. 1885 – 9 jun. 1954): Pro- um idealizador do Memorial Zumbi e do Movimento Negro Uni-
fessor, filósofo e escritor norte-americano. Patrono das artes e ficado (MNU) e atuou em movimentos nacionais e internacionais
educador, foi o primeiro negro a receber a Rhodes Scholarship, como a Frente Negra Brasileira, a Negritude e o Pan-Africanismo.
um prêmio internacional de pós-graduação para estudantes da
Universidade Oxford. É considerado o pai do Renascimento do • PRIMUS, Pearl Eileen (29 nov. 1919 – 29 out. 1994): Dan-
Harlem. çarina, coreógrafa e antropóloga americana. Desempenhou um
papel importante na apresentação da dança africana ao público
• LOPES, Nei Braz (Irajá, Rio de Janeiro, 9 mai. 1942): americano.
Compositor, cantor, escritor e estudioso das culturas africanas,
no continente de origem e na Diáspora africana. • REIS, João José (Salvador, 24 jun. 1952): Um dos mais
importantes historiadores do Brasil, considerado uma referência
• MCKAY, Festus Claudius “Claude” (15 set. 1889 – 22 mundial para o estudo da história e da escravidão no século XIX.
mai. 1948): Escritor e poeta jamaicano, uma figura seminal no
Renascimento do Harlem. McKay floresceu como poeta durante • SANTOS, Milton Almeida dos (Brotas de Macaúbas, 3
o Harlem Renaissance, um grande movimento literário na década mai. 1926 – São Paulo, 24 jun. 2001): Geógrafo. Graduado em
de 1920. Durante esse período, seus poemas desafiaram a autori- Direito, destacou-se por seus trabalhos em diversas áreas da geo-

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grafia, em especial nos estudos de urbanização do Terceiro Mun- Grande do Sul. Militante do Movimento Negro em Porto Alegre,
do. Foi um dos grandes nomes da renovação da geografia no Brasil foi um dos fundadores do Grupo Palmares, sendo um dos líderes
ocorrida na década de 1970. Também se destacou por seus tra- da campanha pelo reconhecimento do Dia da Consciência Negra
balhos sobre a globalização nos anos 1990. Sua obra de carac- em 20 de novembro.
terizou-se por apresentar um posicionamento crítico ao sistema
capitalista, e seus pressupostos teóricos dominantes na geografia • SOYINKA, Wole (13 jul. 1934): Escritor nigeriano que em
de seu tempo. 1986 foi agraciado com o Nobel de Literatura, sendo considerado
o dramaturgo mais notável da África.
• SANTOS, Inaicyra Falcão dos (Salvador, Bahia, 1958):
Cantora lírica, professora doutora e pesquisadora das tradições
africano-brasileiras, na educação e nas artes performáticas no De- PAR A UMA AÇÃO CONTINUADA
partamento de Artes Corporais da Unicamp. É filha de Mestre
Didi e neta de Mãe Senhora, Iyalorixá do Candomblé. Rede Terreiro Contemporâneo de Dança – reflexão, prática
e troca de informações.
• SENGHOR, Léopold Sédar (9 out. 1906 – 20 dez. 2001):
Político e escritor senegalês. Foi presidente de Senegal, de 1960 a Fez-se um encontro com pessoas da arte, que pensam a partir
1980. Foi, entre as duas Guerras Mundiais, juntamente ao poeta da arte, com foco na arte para pensar a diversidade da produção
antilhano Aimé Césaire, ideólogo do conceito de negritude. de dança, cronologicamente falando, na contemporaneidade no
Brasil e o que isso significava. Naquele momento essa conversa
• SILVA, Maria Aparecida da – Cidinha Silva (Belo Hori- ressoou em várias cabeças e corpos. Essa ressonância criou em
zonte, 1967): Escritora brasileira. Graduou-se em História pela vários pontos do Brasil a necessidade de se levantar eventos e
Universidade Federal de Minas Gerais. Presidiu o Geledés - Insti- ações e conectar as iniciativas dessas pessoas no sentido de pensar
tuto da Mulher Negra e fundou o Instituto Kuanza, que promove essa diversidade. Levando em consideração o fato do Brasil ser o
ações de educação, ações afirmativas e articulação comunitária segundo país em densidade populacional negra, esse recorte da
para a população negra. diversidade e da cultura foi valorizado. Já era um foco e estava
sendo discutido no Fórum Nacional de Performance Negra1 e, es-
• SILVA, Renata de Lima: Mestre e doutora em Artes pela pecificamente, as ressonâncias se espalham pelo Brasil no fazer
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professora do de cada um. Como essa diversidade pode vir a somar na cultura,
curso de Dança da Universidade Federal de Goiás – UFG e co- no fazer e no ler desse tempo contemporâneo no Brasil? O Ter-
ordenadora (líder) do Núcleo de Pesquisa e Investigação Cênica reiro nasce nesse contexto. Aqui em Belo Horizonte, a SeráQuê?
Coletivo 22.

• SILVEIRA, Oliveira Ferreira (Rosário do Sul, 16 ago.


1941 – Porto Alegre, 1 jan. 2009): Poeta brasileiro, formou-se 1 Ocorreram quatro edições do evento na Bahia entre 2005 a 2015, com a proposta de
debate sobre as políticas públicas e seus impactos no desenvolvimento das artes cênicas
em Letras (Português e Francês) pela Universidade Federal do Rio
negras, tendo como ponto inicial, o marco da dança e teatro negros brasileiros.

3 46 3 47
Cultural, através de um edital para Pontos de Cultura, propôs ao tes abordagens artísticas, educacionais e de pesquisa. Fernando
Ministério da Cultura fazer um encontro. Esse primeiro encontro Marques Camargo Ferraz2 provoca:
aconteceu no ano de 2009 no barracão do terreiro de candomblé
Ilê Wopô Olojukan. Vieram a Belo Horizonte artistas, pensado- O que une estes produtores? Todos estão envolvidos num mesmo
res de São Paulo, Rio, Belo Horizonte e Espírito Santo. E num gênero de dança? Quais são os pontos comuns neste fazer tão
processo de roda, onde a circularidade e horizontalidade eram o múltiplo que autorize uma identificação comum? Se as danças
mote, nós trocamos pensamentos, estéticas, reflexões ao ponto de matrizes afro percorrem diversos espaços, dos terreiros das
de alimentar aqueles multiplicadores daquela ideia; saindo Brasil comunidades negras aos palcos italianos dos grandes teatros; das
afora dando continuidade a esta história. Pontos luminosos de vivências de fiéis das religiões afro-brasileiras aos procedimentos
uma grande rede: aqui em Belo Horizonte, as ações do Festival de coreográficos dos intérpretes criadores contemporâneos qual o
Arte Negra, do Coletivo Negraria, do Família de Rua. Em outros interesse em criar redes que conectem expressões tão díspares?
estados, no Rio de Janeiro, a Barbot Companhia de Dança, ali- De acordo com o tempo histórico e contexto sociopolítico, esta
ás, o espaço dela também se chama Terreiro Contemporâneo de dança já foi nomeada como étnica, folclórica, primitiva, afro-
Dança; a Carmen Luz, também no Rio de Janeiro, fizeram outros -primitiva, afro-brasileira, negra, afrodiaspórica, negra contem-
eventos, agrupando nomes e dando valor e visibilidade a este re- porânea, entre outras classificações. A despeito da diversidade de
corte da cultura nacional que é a cultura negra. (Depoimento de nomes todas essas categorizações conectam-se através de referên-
Rui Moreira em 30/08/2012 no Auditório do Memorial Vale, em cias compartilhadas que cruzam elementos da história de cada
Belo Horizonte). criador, sua formação artística, o reconhecimento de linhagens
coreográficas construídas pelas relações com mestres e bailarinos
A produção de eventos de dança em um país de dimensões da velha-guarda, sua inserção no campo de produção cultural e
continentais tem muitas complexidades. Da captura de recursos seus comprometimentos políticos e sociais. (FERRAZ, 2012)
até a mobilização de público. Não existem políticas para as artes
e os recursos são sazonais, portanto, para promover ações sobre No terceiro encontro da Rede, com apoio do Prêmio Funar-
um recorte marginalizado como é o conceito dança negra, exige te Klauss Vianna 2013, a programação destacou ações artísticas
ousadia e cuidado. Por meio da Rede Terreiro Contemporâneo de no campo da performance e ações estratégicas de formação envol-
Dança ocorreram cinco encontros que teceram uma rede de teias vendo as danças negras. Com convidados internacionais, duran-
luminosas, reunindo produtores, artistas independentes e pensa- te o evento foi lançada através de acordos de fidelidade entre os
dores que observam, valorizam e se inspiram em conceitos negros
diaspóricos e africanos. Esse movimento, que teve envolvimento
internacional, propôs colaborações com foco nas danças negras 2 Doutor em Artes e mestre em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da Unesp de São
contemporâneas, tradicionais e patrimoniais. Teve por objetivo Paulo, Bacharel Licenciado em História pela FFLCH-USP-SP. Professor Adjunto da Escola
visibilizar pensamentos, espetáculos de dança e publicações pro- de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA), atuando nos Estudos do Corpo com
duzidas com base neste universo cultural. Um evento privilegiado ênfase em Danças Populares, Indígenas e Afro-Brasileiras. Professor permanente do Pro-
abordando a multiplicidade de fazeres artísticos marginais inspi- grama de Pós-Graduação em Dança da UFBA e do Mestrado Profissional em Dança - PRO-
DAN. Coordenador do Curso de Especialização em Estudos Contemporâneos em Dança do
rados na produção negra planetária, explicitando assim, diferen-
PPGDança/UFBA. É colaborador da Rede Terreiro Contemporâneo de Dança.

348 3 49
participantes, a pedra fundamental para a criação de um núcleo diferentes formas de convênios e intercâmbios com escolas e uni-
de estudos, pesquisas e formação profissional em artes. A criação versidades da Europa, Ásia, América Central, América do Norte
da Escola Intercontinental de Formação Profissional em Artes e América do Sul, distribuindo seus alunos, depois de formados,
Negras do Brasil pretendia fomentar as possibilidades de formu- para centros de dança espalhados pelo mundo como multipli-
lações de políticas de intercâmbio. A criação de um núcleo de cadores dos procedimentos técnicos aprendidos na escola. Do
estudos e formação profissional focado em arte negra no Brasil ano de 2007 a 2015 a Associação SeráQuê? Cultural4 manteve
se contextualizava a época no propósito de dialogar com a im- relações de intercâmbios com este núcleo. Estabeleceu parcerias
plementação e fortalecimento da lei 10.639/20033 que estabelece através de projetos diplomáticos da embaixada do Brasil no Se-
as diretrizes para inclusão no currículo oficial da rede de ensino negal com apoio de outras instituições de cunho governamental,
a temática história e cultura afro-brasileira e africana. Ou seja, viabilizando a participação de dançarinos em processos de for-
criava interfaces entre educação, arte e cultura. Através deste nú- mação junto à École des Sables.
cleo pretendia-se ampliar a abrangência das discussões sobre as Observando ao longo dos anos a dificuldade de reconheci-
matrizes negras em território brasileiro, confrontando realidades mento das bases da mestiçagem no planeta e, ao mesmo tempo,
estéticas e culturais advindas das matrizes africanas e das suas considerando o campo da cultura das artes como transformador
diásporas. No Brasil, um incontável número de danças e ritmos e relevante, o projeto de uma escola intercontinental de artes
de origem matricial africana constituem o patrimônio imaterial negras no Brasil pretendia estabelecer-se como um espaço físico
da nação. Mas, por uma série de mazelas, mesmo havendo re- que pudesse servir como base e antena/eixo para artistas, pes-
conhecimento desse patrimônio, é muito difícil estabelecer um quisadores, pedagogos e demais interessados nos legados negros
diálogo efetivo com os sistemas educacionais vigentes. como patrimônio e conteúdo educacional e artístico. Um local
O modelo de núcleo educacional para este projeto era a de referência para estimular a formulação de políticas públicas e
escola de formação profissional em dança situada no Senegal, em políticas de intercâmbios nacionais e internacionais.
Toubab Dialaw (uma vila de pescadores), criada por Germaine A França por exemplo, no escopo de suas políticas de in-
Acogny em parceria com seu esposo Helmut Vogt. No período de ternacionalização pelas artes, mantém um programa de inter-
1977 a 1985, Germaine foi assistente de Maurice Béjart (1927- câmbio de artes chamado Afrique et Caraibes en Créations, e o
2007) no projeto Mudra Afrique e em 1994 criou a École des Brasil é um dos países beneficiados por este programa. Poucos
Sables (Escola de Areias) – Centro de formação profissional de projetos brasileiros participam, pois são raros os artistas que se
Danças Africanas tradicionais e contemporâneas. Esse espaço de reconhecem neste espaço afro-francófono.
formação atende a todas as regiões africanas. Mantém, também,

3 A demanda da comunidade afro-brasileira por reconhecimento, valorização e afirmação 4 A SeráQuê? Cultural – criada em 2001 é uma instituição de perfil associativo de fins
de direitos, no que diz respeito à educação, passou a ser particularmente apoiada com a humanitários, artísticos e culturais que cria condições para que processos autorais, pes-
promulgação da Lei 10.639/2003, que alterou a Lei 9.394/1996, estabelecendo a obrigato- quisas de linguagens artísticas e processos socioculturais, possam ser transformados em
riedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas. (Diretrizes Curriculares projetos, ser desenvolvidos, ser apresentados e ter seus resultados difundidos. Um grande
Nacionais para a Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultu- guarda-chuva, que funciona como uma incubadora de artes e cultura que abriga ações em
ra Afro-brasileira e Africana. Brasília: Ministério da Educação, 2005) várias vertentes.

350 351
O Centro Intercontinental de formação profissional em Dan- os povos afrodescendentes representam um grupo distinto cujos
ças Negras Tradicionais e Contemporâneas do Brasil pretendia fo- direitos humanos precisam ser promovidos e protegidos. E ainda,
mentar possibilidades de formulações de políticas de intercâmbio distingue que há cerca de 200 milhões de pessoas auto-identifica-
com abrangência cultural e social transformadores de realidades. das como afrodescendentes que vivem nas Américas e em outros
Quando se fala de África e diásporas desvela-se interesses lugares do mundo, fora do continente africano. Sendo assim, re-
comuns e diversos entre variados países/nações. Economia, saú- alizamos que o Negro não é uma questão do Negro. O Negro é
de, cultura e ancestralidade, vindouras convivência entre gerações uma questão dos países e das nações. E tudo o que ajuda os povos
africanas e afrodescendentes. Um fortalecimento identitário. Para o a assumirem seus compromissos com seu lado afrodescendente é
desenvolvimento deste ambicioso projeto se fez a interlocução entre melhor para todos.
associações culturais SeráQuê? Cultural/Brasil e Jant-Bi/ Senegal.
De modo geral, os encontros da Rede Terreiro Contempo-
râneo de Dança resultaram em articulações e constituição de es-
tratégias comuns para a promoção de culturas negras. Todos os REFERÊNCIAS
pontos luminosos dessa rede seguem circulando e criando agendas,
que se constituem em espaços de cotejo entre os tensionamentos da • ACOGNY, Germaine. Danse Africaine Afrikanischer Tanz
arte negra na contemporaneidade, constituindo espaços de autorre- African Dance. Frankfurt: Kunstverlag Weingarten, 1994.
presentação, ao mesmo tempo, que seguem questionando sobre os • ACOGNY, Patrick. As Danças Negras ou as Veleidades para
limites de sua abrangência. uma Redefinição das Práticas das Danças da África. Revista
Existe um longo caminho a percorrer para que o povo bra- Rebento. São Paulo, n. 6, p. 131-156, maio 2017.
sileiro se aproprie de sua própria trajetória. Mobilizações da socie- • BIÃO, Armindo Jorge de Carvalho (Org.). Artes do corpo e do
dade para apreciação e reflexão sobre cultura e as abordagens múl- espetáculo: questões de etnocenologia. Salvador: P&A, 2007.
tiplas dos vários conceitos concernentes à diversidade, contribuem • FERRAZ, Fernando Marques Camargo. Rede Terreiro: plu-
para o desenvolvimento do pensar e do fazer criativo. E tudo reforça ralidades na dança negra contemporânea. Revista Antropolí-
o papel da cultura das artes como uma potente ferramenta de edu- tica - Dossiê Dança nº 33, p.73-97, Niterói, 2ºsemestre, 2012.
cação holística. Avalio que estimular essa discussão é de extrema • GILROY, Paul. O Atlântico Negro. São Paulo: Editora 34, 2001.
importância para ampliar os limites das expressões da contempora- • HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.
neidade neste Brasil pós-colonial e pós-escravagista. Rio de Janeiro: Editora DP&A, 2003.
Ao acompanhar a Década Internacional de Afrodescenden- • MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória. São Paulo:
tes (2015-2024)5, onde a comunidade internacional reconhece que Editora Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.

5 A Década Internacional de Afrodescendentes foi proclamada pela resolução 68/237 da atividades no espírito de reconhecimento, justiça e desenvolvimento. Uma oportunidade
Assembleia Geral da ONU e será observada entre 2015 e 2024, proporcionando uma estru- para destacar a importante contribuição dada pelas e pelos afrodescendentes para nossas
tura sólida para as Nações Unidas, os Estados-membros, a sociedade civil e todos os outros sociedades e propor medidas concretas para promover a sua plena inclusão, o combate ao
atores relevantes para tomar medidas eficazes para a implementação de um programa de racismo, à discriminação racial, à xenofobia e à intolerância.

352 353
• MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. O Negro no
Brasil de hoje. São Paulo: Editora Global, 2006.
• SASPORTES, José. Pensar a Dança: a reflexão estética de
Mallarmé a Cocteau. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da
Moeda, 1983.

35 4
OLGA GUTIÉRREZ – Directora artística de la ESTO NO ES UN TEXTO, ES UN CUERPO
organización escénica Laboratorio puntoD Olga Gutiérrez
con la que realiza producción de obra, proyec-
tos de colaboración internacional, así como
el Encuentro Internacional de Arte Escénico

R
Contemporáneo – EINCE (https://laboratorio- espondo a la pregunta ¿Cómo poner un cuerpo? a partir
puntod.com/eince/) y la plataforma MURA en de una larga reflexión que hago desde el 2016 hasta la
Fresno (https://muraenelfresno.wordpress.com/) fecha.
Actualmente forma parte del Sistema Nacional
de Creadores de Arte del Fondo Nacional para 1.
la Cultura y las Artes del Fondo Nacional para Si desde hace mucho tiempo vivimos una vida deshumani-
la Cultura y las Artes. Este año realiza su segun- zada donde cosificamos ¿Cómo afecta la presencia del performer,
da obra Monumento de la trilogía ¿Cómo po- actor o bailarín este cuerpo a cuerpo con el espectador? ¿De qué
ner el cuerpo? en México y la obra Agotarse en manera se ve afectado el acto convivial de las artes escénicas?
Ecuador con coproducción de IBERESCENA. ¿Qué reflexiones producimos lxs artistxs, investigadores, pedago-
Creadora invitada para realizar su obra (RE) gos, productores o gestores para pensar un arte del cuerpo crítico
POSICIÓN para la plataforma CHANGING a la cosificación?
PLACES 2020 MÉXICO co-producida por la
Fundación Siemens, Goethe Institute Mexiko y Este cuerpo cosificado es un cuerpo social, es decir, es un
Secretaría de Cultura Jalisco. cuerpo que se aprende.
La palabra “aprender” proviene del latín apprehendere,
compuesto por el prefijo ad- (hacia), el prefijo prae- (antes) y el
verbo hendere (atrapar, agarrar).
Hacia – Antes – Atrapar.
Aprendizaje y aprendiz. La primera palabra conduce a la
acción, la segunda es la persona que realiza el acto de aprender. 
El aprendiz atrapa, consigue, obtiene, agarra, como la garra del
gato que coge sigilosamente un ratón o el hocico del león un ciervo.
“Todo lo que hacemos es por aprendizaje” - me decía mi
maestro de educación física en la preparatoria, seguido de: “somos
la cultura que nos vio nacer”. Esta frase lograba que consiguiese
alcanzar la meta de correr 20km.

Este cuerpo nace en esta cultura que reproduce la cosificación.


Este cuerpo se hace en esta cultura cosificada.

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Entonces ¿no tendría que ser el arte del cuerpo una práctica Por eso nuestrxs cuerpxs se levantan al primer clamor para
activista ante esta situación? manifestarse.
Son estertores de un cuerpo que se resiste a ser cosificado.
Para construir un activismo genuino, primero deberíamos Hablemos de esto y quizá muy pronto a nuestros nietos les
responder a la pregunta ¿Cómo el arte reproduce este cuerpo co- toque un mundo más conectado.
sificado? ¿De qué manera? ¿Cómo nos encargamos de difundirlo? ¡Feliz día de la danza!
¿Cómo lo reproducimos? ¿Qué instituciones lo premian? ¿Cómo
hemos creado un montón de técnicas, tecnologías, herramientas y (Texto escrito entre febrero 2019 y marzo 2020 en México)
metodologías para sostener esta cosificación?

Pienso que seríamos más activistas si en lugar de repetir una 2.


y otra vez que “el arte sirve para crear conciencia” reconociéramos Soy bailarina. Tengo 36 años. Hace 10 años dejé de entre-
y escribiéramos sobre cómo cosificamos nuestro propio cuerpo en narme en las técnicas tradicionales de danza clásica y contemporá-
el cotidiano y cómo reproducimos esto en escena. Esto ayudaría a nea que fomentan solamente las habilidades físicas en marcos muy
desmontar algunos escritos y teorías que circulan por ahí hablan- limitados. Lo hice como un acto de protesta al sistema alienante
do sobre la emancipación, el empoderamiento y la expansión que de la danza contemporánea occidentalizada. No quiero engordar
supuestamente está produciendo el cuerpo en el arte. las listas de bailarines hiperentrenados y disciplinados del régimen
de una danza que reproduce cánones de sumisión, sometimiento,
Hagamos un acto de auto-observación de cómo somos atra- escenas de violencia femenina, ideologías de creadores misóginos
vesados por esta cosificación en la que nacimos. u homofóbicos que abusan del poder en un grupo de personas e
instituciones de arte que fomentan la violencia al cuerpo.
Creemos que por el hecho de “ser artistas” nos eximimos de
la violencia que producimos al cosificar y usar nuestros cuerpos, Desconfío de las técnicas occidentalizadas de adiestramien-
los cuerpos de nuestrxs compañerxs, los cuerpos de lxs espectado- to del cuerpo porque terminan controlando el instinto y la percep-
res, los cuerpos de otrxs. ción en pro de un cuerpo amaestrado.

Hablemos de cómo los artistas nos lavamos las manos por Me pregunto ¿cuál es la similitud entre un soldado adiestra-
“ser artistas” y nos sentimos aliviados creyendo que cumplimos do para lograr un movimiento frío y un bailarín hiperentrenado
nuestra cuota ética. para hacer un movimiento preciso pedido por el coreógrafo? Que
sus cuerpos están al servicio de una batalla a la que muchas veces
Por eso no nos salen las cuentas. se entregan ingenuamente, que ponen sus cuerpos al servicio de
Por eso sentimos que seguimos en deuda. un sistema de violencia que desconocen y que pelean una batalla
Por eso sentimos que no llegamos. que no les pertenece. Claro, la gran diferencia es que en una hay
Por eso no dejamos de sentir que necesitamos justicia. cientos o miles de víctimas muertos y en la otra no, ¿cierto?
Por eso no podemos dormir tranquilos.

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Creo en el movimiento que produce mi cuerpo como un acto blaba de cómo el acuerdo del TLC (Tratado de Libre Comercio
de nombrarme y nombrar el mundo con mi propia voz. Como una de América Latina y el Caribe) permitió la entrada a industrias
manera de responsabilizarme de mi existencia, del tiempo en el extranjeras en ciudades fronterizas con Estados Unidos, provo-
que vivo y de la historia que me toca escribir. Como una manera cando con ello una escalada de violencia contra mujeres y niños:
de incitar otros escenarios más comprensibles, afectivos y poro- violaciones, secuestros, tráfico de órganos, desapariciones y fosas
sos para la humanidad, más incluyentes y respetuosos hacia la comunes.
diferencia. Como una estrategia de lo político, mover mi enojo,
mi indignación y mi inconformidad sobre los disciplinamientos Desde el 2006 cada día incrementan los desaparecidos, los
sociales. Creo en el movimiento que produce conocimiento para asesinados, los desplazados, los torturados y las fosas comunes.
mí y para todas las comunidades que conformamos esta gran co- Dice Luz Emilia Zinser “la organización civil mexicana Evalúa ha
munidad. Creo en el cuerpo desde el instinto, la percepción y no denunciado que nuestro país ha tenido una intensidad de violen-
desde este tipo de adiestramiento. Creo en el cuerpo animal que cia que es equiparable a zonas que han estado en conflicto arma-
somos más que en el cuerpo cultural que aprendemos. do, por ejemplo, los Balcanes en la década de los 90 registraron
Este mi cuerpo animal sabe moverse, conoce su espacio de un estimado de 100mil muertes violentas; la guerra de Irak tuvo
movimiento, sabe qué está moviendo y hacia dónde está movién- 114mil; México en el 2012 llegó a 101mil muertos.”1
dose. Este cuerpo animal que gatea, camina, habla, come, corre,
caga, abraza, besa, coge, da a luz. Nuestras autoridades no están haciendo nada para contra-
rrestar este estado de violencia, dicen mostrarse preocupadas y
Este mi cuerpo animal se mueve y produce un territorio, este ocupadas en este tema, pero las cifras siguen aumentando. Parece
territorio es una práctica política. Este mi cuerpo animal es una que estamos viviendo la peor crisis de violencia y lo peor, hacemos
micropolítica que hace estallar ese adiestramiento occidentalizado como si no pasara nada.
del cuerpo, ese campo de batalla, ese batallón y esa lucha.
Toda ésta situación me hace pensar que en mi país hay cuer-
(Texto iniciado en mayo 2016 en Brasil y terminado en abril pos que no valen, cuerpos que no son necesitados, cuerpos que es-
2017 en Berlín) torban, cuerpos que nos quitan la comida; parece que la economía
no alcanza para ciertos cuerpos. Es muy duro saberlo, pero es una
realidad: en mi país, la vida no vale nada o vale muy poco sobre
3. todo para los que nacen en zonas de alta marginación.
A los mexicanos nacidos en los 80 nos ha tocado vivir una
transición muy importante en la violencia de cuerpos. Esta realidad que rebasa cualquier cosa que podamos imagi-
nar, me hace pensar que en México, las artes vivas o las artes del
A partir de 1994 recuerdo escuchar sobre el caso llamado cuerpo ya no pueden ser las mismas como las habíamos conocido
“las desaparecidas de Juarez”, mujeres de ciudad Juárez con cier-
tos rasgos en común, que eran desaparecidas y luego encontradas
muertas en zonas abandonadas. Recuerdo leer un libro que ha-
1 Dieguez, Ileana Cuerpos en duelo. Prólogo a cargo de Luz Emilia Aguilar Zinser.

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hasta el momento. Frente a ésta realidad de extrema violencia de ¿Cómo está nuestro cuerpo social? es la pregunta de la te-
cuerpos en México, los discursos, las estéticas, las narrativas y los tralogía a la que cada obra responde a modo de analogía entre
dispositivos necesitan transformarse radicalmente. el cuerpo escénico/performático y el cuerpo social. La creadora
piensa cada entrega de la tetralogía a partir de una situación en
Un cuerpo en escena ya no puede decir lo mismo que hace particular: 2012 es una imagen de transición social y política por
treinta o cincuenta años, ya no puede ser solamente un cuerpo el regreso del PRI a la presidencia; 2014 es una imagen del hackeo
ficcional, ya no puede hacernos pasar bien una noche u ofrecernos al sistema; 2016 es un dispositivo a modo de la pregunta ¿Qué
una bella imagen o una imagen conmovedora; ya no basta con otra gobernabilidad podría organizarnos? y 2018 es una metarre-
hacer una danza grácil o una actuación bien hecha. presentación.

Lo lamento pero el arte del cuerpo ya no puede ser el mismo, NEA es una puesta de cuerpo que hago sobre aquello que
simplemente porque en México, nos están matando. nos despierta -consciente e inconsciente-, el vivir en uno de los
sexenios más violentos -después del 68-, producto del régimen pri-
Las artes vivas o las artes del cuerpo en México deberían ista, la política neoliberal y el narcotráfico.
de reinventarse por completo. Deberíamos reventar los escenarios
con cientos o miles de cuerpos exigiendo la aparición de los cuer- Es en el 2014 que aparece la pregunta ¿cómo poner el cuerpo?
pos que nos hacen falta; o deberíamos vaciar todas las salas y tea- Si una obra es un cuerpo a cuerpo artista-espectador, por
tros del país como un acto de desaparición. Solo por indignación eso su condición de “artes vivas”, por esa capacidad de colocarse
o por tristeza o por amor a la vida. en esa fragilidad y subjetividad de “la experiencia tú a tú”, ¿Qué
sucedería si no aparece el cuerpo del artista en la obra? ¿Qué
En el 2012 comencé una investigación/obra llamada NOSO- podría sustituir la “experiencia tú a tú”? ¿Qué podría aparecer
TROS ESTAMOS AQUÍ (NEA), una tetralogía sobre el cuerpo, en su lugar? ¿Qué sucede si quitamos el cuerpo ficcional en esa
el arte y lo político. Desde un inicio lo pensé como una práctica “experiencia tú a tú”? ¿Qué cuerpo aparecería? ¿Cómo sería ese
de investigación con producción coreográfica en diálogo con la cuerpo? ¿Cómo sería el encuentro? ¿Ese cuerpo instauraría otro
situación política, social y económica mexicana entre los periodos tipo de “experiencia tu a tu”?
2012-2018. Esta investigación surgió como respuesta al regreso
del partido mexicano PRI a la presidencia en el 2012 (uno de los Mi hipótesis es que el cuerpo que aparece en una obra debe
mayores genocidas de nuestro país), y de indagar cómo reacciona ser otro muy diferente al que conocemos. Necesita ser un cuerpo
el inconsciente colectivo a ésta situación. NEA es una producción que instaure otro tipo de encuentro con el espectador y entonces
coreográfica de 4 obras entre éste periodo del 2012 al 2018 donde nos ayudaría mucho pensar en formatos, estructuras o narrativas.
cada dos años se realiza una entrega teniendo por títulos “2012”,
“2014”, “2016” y “2018” respectivamente bajo la pregunta: ¿Qué Pero también pienso que quizá este cuerpo debería no apare-
estéticas, éticas y narrativas surgen al colocar en la discusión del cer, rebelarse ante la obra, darle la espalda al sistema de represen-
arte lo político de un cuerpo? tación, hackear la producción de narrativas, irrumpir la escena,
detener el espectáculo. Y pienso en la frase del filósofo catalán

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Petit ¿y si dejáramos de ser ciudadanos?2 démicos. Es una figura/práctica que he investigado desde el 2012:
el “artista-gestor”.
¿Y si dejamos de representar la representación dominante?
¿Y si dejamos de ser obedientes a la representación? En México y en Latinoamérica existen muy pocas iniciativas
que problematicen ésta figura/práctica. Mi intención al nombrarla
Definitivamente necesitamos poner el cuerpo de otra ma- y problematizarla es poder colocarla en nuestro imaginario para
nera, bajo otra cosmovisión y otra práctica. Quizá así logremos comprender qué gestión está empoderando, qué es lo que está pro-
hacer justicia a todos estos miles de cuerpos desaparecidos. vocando en el ámbito de la creación, la producción y la gestión
local, nacional e internacional y porqué resulta ser un modelo de
(Texto escrito entre agosto 2016 a noviembre 2019 entre México, estudio y trabajo para países como España y Alemania.
Alemania, Rumania y Argentina)
El campo investigador es el ámbito de la danza contemporá-
nea y las artes vivas en los países de México, Uruguay, Argentina,
L A GESTIÓN INTERNACIONAL DESDE L A FIGUR A DEL “ARTIS- Colombia y España a través de las siguientes plataformas:
TA-GESTOR” O DEL “ARTISTA-ETCÉTER A”, CONCEPTO CREADO
(NOMBR ADO) POR EL TEÓRICO BR ASILEÑO RICARDO BASBAUM. • México (República Mexicana) / Red Nacional de Danza
Olga Gutiérrez de la Coordinación Nacional de Danza del Instituto Na-
cional de Bellas Artes.
Este es un fragmento de la ponencia presentada dentro del • Uruguay (Montevideo) / Festival Internacional de Danza
marco del 1er. Coloquio Latinoamericano de Investigación y Contemporánea de Uruguay FIDCU.
prácticas de la danza dentro del marco del Encuentro Nacional • Colombia (Bogotá) / Plataforma de Artes Vivas: Pliegues
de Danza, México 20163. y Despliegues.
• Argentina (Buenos Aires) / Festival Internacional de
Desde hace cinco años circulo por festivales de Europa Occi- Danza Emergente Buenos Aires FIDEBA.
dental y América Latina lo cual me ha permitido observar diferen- • España (Barcelona) / Plataforma de internacionalización
tes fenómenos del mundo de la gestión internacional. Pero hay uno de Danza Catalana FID.
en específico que me ha parecido por demás fascinante, se trata de
una figura y una práctica que es socializada entre las charlas de El primer aspecto que me parece importante destacar de ésta
café y pasillos pero que no ha llegado aún a nuestros espacios aca- investigación es el tipo de campo en el cuál estoy investigando: es-
tos festivales y plataformas son lo que llamo “espacios vivos”, es
decir, no son “festivales vitrina” dedicados únicamente a la exhi-
bición de obra, sino que más bien son espacios para el encuentro
2 Petit, Santiago López ¿Y si dejáramos de ser ciudadanos? Manifiesto por la desocupa-
de agentes, contextos y prácticas. Son festivales dirigidos, curados
ción del orden.
y gestionados por “artistas-gestores” los cuales modifican su es-
3 El texto original está publicado en https://issuu.com/interdanza/docs/interdan-
tructura de programación en cada edición, a favor de adaptarla
za_n___35.

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al campo curatorial de cada edición, provocando espacios oxige- si ellos se autonombran “artista-gestor”, pero según mi investiga-
nados, porosos y vivos que dialogan con sus contextos. Salvo el ción, ellos encajan en ésta figura/práctica.
caso de Barcelona donde el FID es una iniciativa de la institución
española Mercat de les Flors, pero es coordinado, curado y orga- A continuación la procedencia y el nombre de las plataformas
nizado por un grupo de artistas catalanes seleccionados a partir o espacios que gestionan actualmente estos “artistas-gestores”:
de una convocatoria.
• ZONA SUR / Veracruz, Jalapa / Alonso Alarcón / agru-
Estos “espacios vivos” son plataformas que provocan el cru- pación Angulo Alterno – Festival Internacional Danza
ce de pensamiento y contexto entre creadores, gestores y produc- Extrema - Encuentro de Performatividad y Género en
tores que nos encontramos en el campo activo de la creación, la la Coreografía Contemporánea en México.
investigación, la producción y la gestión de artes vivas. • ZONA CENTRO OCCIDENTE / Morelia, Michoacán
/ Abdiel Villaseñor y Laura Martínez / Proyecto Ser-
Definiré el concepto “artes vivas”, pues aparecerá bastante piente AC - Festival Internacional de Danza Red Ser-
en mi texto. Tomaré una reflexión de Rolf Abderhalde: “(este con- piente - Foro escénico “El jardín”. 
cepto) ha sido necesario para la construcción de nuevos procesos • ZONA NORTE / Tijuana, Baja California / Miroslava
de pensamiento-creación en el arte, desde el cuerpo y con él, indi- Wilson / En colaboración con Carlos A. Gonzalez rea-
sociablemente. Una construcción de enunciados por fuera de su liza los proyectos: Agrupación Artística Péndulo Cero
tradicional escisión, pensamiento y/o creación, práctica pensante con las plataformas: Salas de Urgencia (sede Tijuana)
y/o práctica artística.” Es decir, son aquellas prácticas y produc- – Modelo alternativo de producción (colaboración con
ciones hibridas que podrían encajar lo mismo en el arte visual, el Cía. de Teatro Seres Comunes) - Plataformas de copro-
sonoro, en el teatro o la danza. Este concepto fue desarrollado en ducción Nacional e Internacional – Residencias Oscila
el contexto de la agrupación Mapa Teatro y la Maestría Interdis- – Enlace Binacional de Danza.
ciplinaria de Teatro y Artes Vivas (en convenio con la Universidad • REPUBLICA MEXICANA / Melissa Cisneros / Plata-
Nacional de Colombia) en Bogotá y ha llegado a nuestro lenguaje forma nómada de artes vivas La Mecedora (en conjun-
vía Colombia o vía España a través del investigador José Antonio to con Martha Sponzilli).
Sánchez, quien se apropió de este concepto en sus escritos.
Estos cinco “artistas-gestores” tienen varias similitudes:
-------
1. Actualmente son creadores, es decir, no han dejado la
Para problematizar el campo de la gestión internacional de- práctica e investigación artística ni la producción de
cido hacerlo desde la figura del “artista-gestor”. Para ello, entre- obra por comenzar labores de gestión y producción en
visté a cinco “artista-gestores” mexicanos a quienes conozco de sus plataformas.
hace 5 a 10 años y quienes se encuentran laborando en distintas 2. Son directores y gestores en sus propias plataformas.
zonas de la República Mexicana. Con ellos he hablado del tema, 3. La mayoría han tenido experiencia de formación y pro-
algunos coinciden con mi postura y otros disienten; desconozco fesionalización fuera de México.

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4. Todos realizan trabajo de gestión internacional para sus tome el liderazgo de generar un espacio que el gobierno no estaba
proyectos y para su trabajo artístico. cubriendo para los profesionales de la danza.”
5. Pertenecen al campo de la danza contemporánea pero
desde una perspectiva de “artes vivas”. MIROSLAVA WILSON: “La gestión es una actividad inhe-
6. La mayoría son nacidos en el año 1980. rente a dirigir una organización artística. Como organismo, una en-
tidad agrupada, se nutre, se alimenta, se educa y se estimula; en este
Esto me parece importante señalarlo pues considero que sentido la gestión es sana y necesaria, para desarrollarse. Mi impul-
ésta dinámica de compaginar labores es un claro ejemplo de cómo so nace de la necesidad de abrir espacios de intercambio, de nutrir
el “artista-gestor” ésta instituyendo otro imaginario en la econo- lo que hacemos como agrupación, de compartir y expandir el nú-
mía del arte: el hecho de que permanezca en la creación, inves- cleo, de permear hacia dentro y hacia afuera de nuestro que hacer.”
tigación, producción y gestión provoca una contaminación entre
los ámbitos, apareciendo por consecuencia, otras soluciones a las ABDIEL VILLASEÑOR y LAURA MARTÍNEZ: “Nuestro
problemáticas, otras relaciones laborales así como otra conceptua- impulso viene a partir de la necesidad de crear plataformas para
lización de nuestro quehacer. la presentación de obra artística de danza desde una mirada in-
dependiente con serio interés en  mostrar trabajo dancístico na-
La primera pregunta que les hago a estos cinco “artistas-ges- cional y extranjero que contribuya en la formación de públicos
tores” es ¿Qué los motivo a realizar gestión en sus comunidades para la danza en Michoacán. Antes del Festival Red Serpiente, la
para la creación de su espacio/plataforma? danza local estaba sujeta únicamente a la oferta de programación
oficial (institucional).”
MELISSA CISNEROS: “Lo que nos impulsó a generar esta
plataforma nómada (La Mecedora) fue por un lado, el darnos La segunda pregunta que responden: Desde tu práctica de
cuenta de la necesidad de crear, además de la obra artística, el gestión, ¿qué consideras que genera un “artista-gestor?
contexto donde se inserta esta pues percibíamos que el hacer la
pieza significaba también generar otros mecanismos de lectura, MELISSA CISNEROS: “Me parece que la gestión realizada
de contacto con el público, formas para desmitificar el hecho es- desde los creadores cumple una doble función, por un lado genera
cénico y descontracturar un poco la escena de la danza en ese mo- obra artística y por el otro crea el contexto sobre el cual se ma-
mento. Procurando una comunicación más directa en un espacio nifiesta, es decir, podemos decidir y crear los escenarios sobre los
más transdisciplinar.” cuales deseamos manifestar el trabajo y no solamente responder
a circunstancias predeterminadas. decidimos nuestro contenido y
ALONSO ALARCÓN: “El impulso para generar Dan- creamos su infraestructura. Es más trabajo pero es también más
zaExtrema fue crear diversas plataformas para la danza contem- gratificante pues aquí se pueden pensar y plasmar otras econo-
poránea profesional en Xalapa, Veracruz una ciudad donde en mías del hacer creativo.”
2004 los únicos espacios existentes eran proyectos universitarios
y escolares y donde no existía un espacio para la creación y ex- ALONSO ALARCÓN: “La gestión realizada por creado-
hibición de danza contemporánea a nivel profesional. Por lo que res genera mucho más que buenas intenciones políticas o planes

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de cultura de trienio que al cambio de gobierno se pierden. Ge- Entonces ¿qué es un “artista-gestor”? y ¿qué tipo de trabajo
neramos continuidad, generamos permanencia, generamos pen- realiza?
samiento; trascender a través de plataformas responde a nues-
tro pulso creativo como artistas y no al revés. Generalmente las • Es un gestor que trabaja a partir de la pulsión de crear
instituciones y sus burócratas piensan primero las plataformas otros escenarios artísticos y laborales que impliquen la
y los festivales y después a ver si encaja en la necesidad de la profesionalización de una comunidad.
comunidad. En DanzaExtrema partimos de la comunidad y sus • Tiene una doble función: por un lado genera obra artís-
necesidades y a partir de ello cada año el festival rediseña sus pla- tica y por el otro crea el contexto sobre el cual se mani-
taformas, así es la naturaleza del festival no es estático siempre fiesta ésta, es decir, diseña, produce y gestiona escena-
está en movimiento.” rios que no responda a circunstancias predeterminadas
ni partidismos.
MIROSLAVA WILSON: “Otra práctica importantísima • Diseña otras economías del trabajo artístico.
que observo es la de los “multiplicadores”, al reconocer al otro • Diseña planes culturales que no dependen de cambios
que trabaja tanto desde lo artístico y también desde la gestión de gobierno y que al contrario, generan continuidad y
es fácil tejer, construir, o invitar al otro a colaborar. Ese artista/ permanencia.
gestor comprende lo que “implica” llevar a cabo las ideas y dar- • Diseña planes culturales que responden al pulso de una
les vida, alcance en el tiempo espacio. Una fuerte diferencia a un comunidad, siempre en constante movimiento y que se
gestor cultural, es la vinculación al seno artístico o creativo del articulan con programas del sistema de gobierno ope-
proyecto, el gestor cultural lo seguirá viendo como un bien cultu- rante en turno.
ral, un hecho artístico, lo cual me parece excelente, sin embargo • Diseña planes culturales que promueven políticas públi-
el artista/gestor, comprende el límite de variabilidad de tal hecho. cas relacionadas con la profesionalización de la comuni-
Veo una fuerte y necesaria mancuerna entre el gestor cultural y dad de danza contemporánea y artes vivas y la articula-
el gestor-artista, creo que son alianzas que deben ser sumadas, el ción de lo local con lo nacional e internacional.
gestor cultural definitivamente podrá siempre visualizar “afuera • Establece relaciones horizontales artista-institución en
de la caja”, otorgar perspectiva, colocar un proyecto, donde no te prácticas de movilidad, producción y gestión.
lo esperarías y eso siempre puede aportar.” • Su perfil sensible no se reduce al campo de la creación
sino también a la procuración de fondos y a las necesi-
ABDIEL VILLASEÑOR y LAURA MARTÍNEZ: “Más que dades primordiales del otro.
generar, creemos que la gestión desde los creadores permite estable- • Practican la gestión como una extensión de práctica ar-
cer prácticas de movilidad, producción y divulgación en relaciones tística en comunidad.
horizontales con otros artistas. El perfil sensible de los creadores • Realizan trabajo etnográfico: estudiando el contexto, las
no se reduce a nuestros procesos creativos sino que nos acompaña políticas culturales de la ciudad, las relaciones institu-
en procesos de procuración de fondos para terceros. Como creado- cionales y las pulsiones de comunidad.
res-gestores también somos sensibles a las necesidades primordia- • Producen un lugar de diálogo nacional e internacional
les de los beneficiarios de plataformas que gestionamos.” donde nutrir el imaginario de su comunidad.

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• Se piensan en RED: son “multiplicadores” que tejen En el marco de ésta reunión en Montevideo, Eloísa Jarami-
prácticas artísticas, diferentes contextos y fondos pú- llo -directora de la plataforma RED ARTES VIVAS de Bogotá-,
blicos locales, nacionales e internacionales generando escribió un texto que aporta nuevas reflexiones de esta problemá-
una gestión integral. tica en el ámbito iberoamericano, enunciando con ello la figura
del “artista etcétera”, término del teórico brasileño Ricardo Bas-
Mi primera conclusión es que la práctica del “artista-ges- baum. A continuación su texto:
tor” está empoderando en los últimos 15 años en México, un
imaginario de gestión internacional basado en el desarrollo de
contexto local creando otro tipo de relaciones afectivas, produc- ENCUENTRO SOBRE CUR ADURIA EN EL FIDCU 2014
tivas y económicas. Esta práctica tiene un carácter micropolítico El Artista-etcétera, las plataformas
que fisura el sistema macropolítico económico del arte de las micropolíticas y las redes afectivas
grandes empresas culturales y la falta de políticas públicas. Esta Texto de Eloísa Jaramillo
práctica a su vez, provoca curiosidad en países de Europa Occi-
dental y se erige como módelo para la discusión de gestión local En la versión del 2014 del Festival internacional de Danza
e internacional en países como España y Alemania. contemporánea del Uruguay (FIDCU), se hizo una reunión de
curadores de las Artes Escénicas de América Latina. Allí, varios
------- directores de plataformas diversas de México, Chile, Argentina,
Uruguay, Venezuela, Brasil, Colombia, España, Portugal y Sui-
Ahora llevaré ésta problemática al ámbito internacional. za nos reunimos durante cinco días para reflexionar sobre nues-
tras prácticas. Tuvimos una conversación en la que se tocaron
SITUACIÓN 1 muchos temas relacionados con el ejercicio curatorial alrededor
En mayo del 2014 participé en la IV edición del Festival de las Artes Escénicas en América Latina y donde se hicieron
Internacional de Danza Contemporánea de Uruguay FIDCU visibles muchas dinámicas, que muchos considerábamos aisla-
presentando una obra de mi autoría y al mismo tiempo partici- das, locales o que sólo sucedían en nuestros países. Al poner-
pando en el Encuentro Internacional de Curadores de Danza las en común en este encuentro, se hizo evidente que pese a las
donde asistimos directores de festivales y plataformas de países particularidades de cada contexto, existen muchas dinámicas
como México, Chile, Argentina, Uruguay, Venezuela, Brasil, y respuestas similares y que quizás ellas caracterizan nuestras
Colombia, España, Portugal y Suiza. Este Encuentro fue crucial prácticas curatoriales como región. Voy a referirme aquí a tres
para el inicio de mi investigación, pues me permitió observar de ellas, que considero las más innovadoras y reveladoras de
cómo en otros contextos como Colombia, Chile, Uruguay, Bra- nuestras realidades. La primera de ellas es la aparición de un
sil y Argentina la figura del “artista-gestor” es una figura activa nuevo perfil profesional dentro de las Artes escénicas latinoa-
de la misma manera que está siendo en México y que tienen las mericanas, lo que aquí voy a llamar el artista-etcétera; la se-
mismas características que señalé del “artista-gestor” mexica- gunda, la dimensión micropolítica de nuestras plataformas, y la
no. tercera, la constatación de que nuestras redes profesionales son
fundamentalmente, afectivas.

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Uno de los hallazgos más valiosos de este encuentro fue la a mil, los Festivales de Danza y Teatro de Buenos Aires, el Festival
identificación de un perfil profesional, bastante frecuente en Amé- Iberoamericano de Teatro de Bogotá, por mencionar sólo algu-
rica Latina, que consiste en artistas que actúan sobre su contexto nos, los artistas-etcétera han ido reaccionando de manera simul-
propiciando festivales, clubes, temporadas, espacios de reflexión, tánea e incomunicada, con la creación de espacios alternativos,
laboratorios de creación y pensamiento, entre otras muchas plata- que responden a otras lógicas de mercado e interacción. Estos
formas de carácter micropolítico. Este perfil profesional combina grandes eventos son vitrinas de grandes compañías pertenecien-
la práctica artística con la docencia, la investigación, la produc- tes a un circuito internacional de las Artes Escénicas que llegan
ción, la gestión y la curaduría, y pasa por una y otra sin encontrar a nuestras ciudades, hacen sus presentaciones a costos elevados
incompatibilidades ni buscar el camino hacia la especialización. y se van sin dejar rastro en la dinámica local ni haber tenido im-
Como diría el teórico brasileño Ricardo Basbaum, un artista-et- pacto alguno sobre la comunidad artística. Esto sin mencionar
cétera. No es nueva la idea de que en América Latina los artistas que estos macroeventos utilizan un porcentaje altísimo de los es-
hacemos muchas cosas de forma simultánea. Lo que sí me resultó casos recursos que las administraciones públicas destinan para
sumamente innovador fue la postura clara de que esta posibilidad las Artes Escénicas en nuestros países. Este es el modelo habitual
es una característica y no una deficiencia o una situación por de internacionalización en nuestros contextos, que replican las
mejorar. La idea de profesionales de las Artes Escénicas multifa- instituciones sin hacerle ningún cuestionamiento. De manera pa-
céticos es, sin duda, un paradigma alternativo al de la especiali- ralela a esta operación, abundan en América Latina plataformas
zación, tan común en Europa y Estados Unidos, donde el modelo independientes, en forma de clubes, redes, festivales caseros, resi-
consiste en diferenciar roles y que cada cual se ocupe de lo suyo dencias, espacios de experimentación, estancias y demás, que los
para que la maquinaria del arte gire sin grietas ni quiebres. El artistas-etcétera, por el compromiso con sus contextos, han ido
perfil del artista-etcétera, hace muchos años operante en América procurándose para sí mismos y para sus comunidades inmediatas.
Latina, ahora comienza a nombrarse como una opción válida y Esta constatación que pude hacer en el Encuentro sobre curadu-
a posicionarse como generadora de dinámicas particulares que ría del FIDCU, me hace pensar que la dimensión micropolítica
ocurren desde nuestras latitudes. Festivales curados por artistas, nos caracteriza como región. Que es un despropósito obviarla y
plataformas que atienden las necesidades de grupos de artistas, no tener en cuenta que nuestras dinámicas dependen de esta con-
espacios de reflexión desde las prácticas o los territorios locales, dición de pequeña escala, inmediata, si se quiere íntima; que esta
son tan sólo algunos ejemplos de lo que genera este nuevo perfil, es la manera en que se ha ido generando una movida cultural en
sobre el que mucho nos falta por reflexionar. toda América Latina y que estamos en mora de comunicarnos,
La segunda dinámica que capturó mi atención en este En- de trabajar en red, en conjunto o en las colectividades que inven-
cuentro, fue lo que llamo la dimensión micropolítica de nuestras temos.
plataformas y que también responde a un paradigma propio de La tercera y última dinámica que quiero mencionar se re-
América Latina, en el que frente a la desconfianza y descreimien- fiere a nuestras redes afectivas, que se han ido tejiendo a fuerza
to de nuestras instituciones macropolíticas, la verdadera trans- de conocernos lentamente, de ir encontrando nuestras afinidades
formación social tiene lugar en el ámbito de lo comunitario, de lo y de ir aprendiendo a vivir con nuestras diferencias, como autén-
doméstico, de lo íntimo. Ante los macroeventos que tienen lugar ticos otros. Esta condición hace que nuestra comunidad profe-
en varias ciudades de América Latina, como el Festival Santiago sional de artistas-etcétera y de plataformas independientes, como

374 375
región, responda tan bien a las dinámicas del encuentro personal do realizaba la presentación y hablaba de mi labor, me presentaba
y tan mal a las dinámicas informativas o de negocios, como las como “artista/gestor” y esto resultaba ser muy controversial para
plataformas en la web que buscan mapeamientos o las ruedas de la mayoría de los asistentes, pues veían con cierta desconfianza el
negocios que buscan el intercambio de productos circulables. Estas ser creadora y compaginar ésta labor con la gestión. En España la
redes afectivas caracterizan nuestras plataformas, muchas de ellas práctica de la gestión desde el artista es sinónimo de precariedad la-
no formalizadas jurídicamente, pero sí continuadas a través del boral; más que verlo como una fortaleza, lo ven como una debilidad
tiempo en la construcción de relaciones personales y también de para el artista, para la comunidad y la Institución.
vínculos afectivos con proyectos de otros que hacemos propios.
Todas estas son algunas de las reflexiones que me queda- Ante la crisis económica que España vive desde el 2012,
ron luego del nutricio encuentro sobre curaduría del FIDCU 2014. varias instituciones españolas como Mercats de les Flors intenta
Muchos deseos de continuar con esta reflexión colectiva, de inter- colocar otros modelos de desarrollo económico en su comunidad
conectarnos y de ir consolidando un pensamiento latinoamericano y escogió la figura/práctica del “artista-gestor” como un modelo
fruto de las mutuas contaminaciones y antropofagias que cada vez que puede activar otras economías locales, nacionales e interna-
haga mas fuerte nuestro lugar de enunciación en el mundo. cionales en España.

SITUACIÓN 2 SITUACIÓN 3
En junio del 2013 y bajo el Marco del Tercer Encuentro La- En Marzo del 2015 el Goethe-Institut Mexiko a cargo de un
tinoamericano de Gestores de Danza realizado en las ciudades de proyecto impulsado por su Coordinadora Cultural Ilona Goyene-
Morelia y DF donde asistieron alrededor de 120 gestores de países che convocó a un grupo de 25 “artistas-gestores” de diversos Es-
como España, Suiza, Uruguay, Colombia, Chile, Argentina, Perú, tados de la República Mexicana como Oaxaca, Mérida, Veracruz,
San Salvador y México, estuvo presente Cristina Alonso, directo- San Luis Potosí, DF, Tijuana, Jalisco, Michoacán y Hermosillo,
ra del Centro de Creación El Graner del Mercats de les Flors, de en un encuentro titulado THINK TANK donde se intentaba crear
Barcelona (España). A partir de ese momento, ella estuvo viajando un primer acercamiento con un grupo de directores alemanes de
a nuestro país en diferentes momentos de ese año y del 2014. Ella las instituciones Centro Internacional de Danza y Arte del Mo-
realizó un mapeo de agentes de la escena de artes vivas mexicanas vimiento Fabrik (Potsdam), Kampnagel Internationales Zentrum
e invitó a España a un grupo de “artistas/gestores” a participar en für Schönere Künste (Hamburgo) y Centro de danza Tanzhaus
diferentes plataformas de pensamiento y festivales en los cuales se (Dusserldorf).
nos invitaba a hablar constantemente sobre nuestra actividad como
“artista-gestor” en nuestra labor de gestión local, nacional e inter- Fueron tres días donde por primera vez problematizamos el
nacional. Constantemente en cada festival, plataforma o espacio de concepto del “artista-gestor”, al mismo tiempo que realizamos un
pensamiento en el que fui invitada entre el 2013 y 2015, la Insti- mapeo de nuestra práctica en territorio mexicano lo que nos per-
tución Mercats de les Flors me pedía que me presentara y hablara mitió entender quiénes somos, qué estamos produciendo y cómo
de los espacios/plataformas/festivales que desde mi organización operamos. Lo hicimos frente a una mirada extranjera: los tres di-
diseño y gestiono, así como de la RED a la cual pertenezco. Cuan- rectores de Alemania.

376 37 7
articulaciones con pares donde el interlocutor este más in-
Como segundo momento, en junio de ese mismo año, un teresado en encontrar dispositivos y prácticas de encuentro
grupo de 5 “artistas-gestores” de este primer grupo fuimos invi- que en llenar una agenda de actividades.
tados a un viaje de 10 días en las ciudades de Hamburgo, Berlín, 5. Esta lógica de gestión internacional responde al desgaste de
Dusseldorf, Essen, Colonia, Wuppertale y Frankfurt a conocer lo local por parte de los macroeventos de iniciativas interna-
otros centros de danza, artes vivas, teatros y artistas. Ese mismo cionales que usan el contexto local en vez de articularse con
año se nos invitó a realizar articulación internacional México-Ale- él. Ante los macroeventos de las grandes compañías de cir-
mania para la creación de una agenda de cooperación internacio- cuitos internacionales que usan recursos de administraciones
nal entre México y Alemania a inaugurarse dentro del Marco del públicas y que no dejan beneficio alguno a la comunidad de
Año Dual Alemania/México 2016-2017. artistas, los “artistas-gestores” reaccionan con la creación
de espacios alternativos, plataformas independientes; por el
compromiso con sus contextos, han ido procurando estos
¿QUÉ NOS DICEN ESTAS SITUACIONES? espacios para sí mismos y para sus comunidades inmediatas.

1. Instituciones de otros países consideran al “artista-gestor” Mi segunda y última conclusión es que estamos viviendo
como importante articulador de contextos no por el tipo un cambio crucial de paradigma económico dónde no sólo nos
de economía con el que cuentan, ni por la plataforma que preguntamos qué hacemos con lo poco que tenemos y cómo nos
representan, sino más bien por la forma en cómo articulan relacionamos con las instituciones que constantemente adelgazan
las actividades en comunidad, en red, son “multiplicadores” sus responsabilidades. La figura del “artista-gestor” responde a
que tejen prácticas artísticas, contextos diversos y fondos éste tiempo gestionando otros espacios productivos, económicos
públicos y privados locales, nacionales e internacionales ge- y afectivos de largo aliento que no implican en el saqueo de lo
nerando una gestión integral. local para fines internacionales sino en el fortalecimiento de lo lo-
2. Instituciones de otros países consideran que la figura del “ar- cal con articulación internacional. El “artista-gestor” coloca pues
tista-gestor” es una importante potencia de articulación local; otra práctica de relaciones con lo internacional.
es una figura de confianza que puede establecer un diálogo que
empodera no sólo una práctica artística o económica de coo-
peración internacional, sino que dialoga con una comunidad.
3. El tipo de relación que busca establecer este tipo de gestión
internacional es una gestión a largo plazo que implique el
conocimiento de los contextos a articularse; no se trata de
resolver una agenda de actividades sino, entender cómo es-
tos contextos podrían tejerse e incentivar relaciones produc-
tivas y económicas en diferentes momentos.
4. El interés internacional de algunas instituciones de Europa
Occidental, Canadá y América Latina está en empoderar

378 379
OLGA GUTIÉRREZ é criadora, investigadora, per- ISTO NÃO É UM TEXTO, É UM CORPO 1
former e artista-gestor. A partir da pesquisa Olga Gutiérrez
e trabalho com o corpo, conecta linguagens
como dança, teatro, arte-ação, arte sonora e
práticas em torno do espaço público. Tem no
intercâmbio e na colaboração um esquema
contemporâneo de prática artística e social,
que gera novas reflexões na vida e na arte. Es-
E u respondo a pergunta ‘Como colocar um corpo?’ a partir
de uma longa reflexão que faço de 2016 até hoje.

tudou dança, teatro, performance e arte ur-


bana no México, Canadá, França e Polônia. 1.
Apresentou suas obras em festivais no México, Se há muito tempo vivemos uma vida desumanizada onde
França, Praga, Uruguai, Colômbia, Argentina, coisificamos; como a presença do artista, ator ou dançarino afeta
Espanha e Brasil. Diretora artística da organi- o corpo a corpo com o espectador? Como é afetado o ato convivial
zação cênica Laboratório puntoD, com a qual das artes do espetáculo? Que reflexões nós, artistxs, pesquisado-
realiza a produção da obra, projetos de cola- res, pedagogos, produtores ou gestores produzimos para pensar
boração internacional, bem como o Encontro em uma arte do corpo crítico à coisificação?
Internacional de Arte Cênica Contemporânea
da EINCE (https://laboratoriopuntod.com/ein- Esse corpo coisificado é um corpo social, isto é, é um corpo
ce/) e a plataforma MURA em Fresno (https:// que é aprendido.
muraenelfresno.wordpress.com/). Atualmente, A palavra “aprender” vem do latim apprehendere, composto
faz parte do Sistema Nacional de Criadores de pelo prefixo ad- (sentido), o prefixo prae- (antes) e o verbo hendere
Arte do Fundo Nacional da Cultura e das Ar- (pegar, agarrar).
tes do Fundo Nacional da Cultura e das Artes. Em direção – Antes – Captura.
Este ano realiza seu segundo trabalho Monu- Aprendizagem e aprendiz. A primeira palavra conduz à
mento da trilogia Como colocar o corpo? no ação; a segunda é a pessoa que realiza o ato de aprender.
México e a Obra Esgotar Se no Equador com O aprendiz pega,segura, obtém, agarra, como a garra do gato
coprodução de IBERESCENA. Criadora con- que pega furtivamente um rato ou o focinho do leão um cervo.
vidada para realizar sua obra (RE) POSICI-
ÓN para a plataforma CHANGING PLACES “Tudo o que fazemos é para aprender” – disse-me meu pro-
2020 MÉXICO, coproduzida pela Fundação fessor de educação física no ensino médio: “somos a cultura que
Siemens, Goethe Institute Mexiko e Ministério nos viu nascer”. Essa frase fez com que conseguisse atingir o obje-
da Cultura de Jalisco. tivo de correr 20 km.

1 Nota das organizadoras: Este texto foi traduzido para o português por Diana Gilardenghi.

380 381
por isso, não paramos de sentir que precisamos de justiça.
Este corpo nasce nesta cultura que reproduz a coisificação. Por isso, não podemos dormir em paz.
Este corpo é feito nessa cultura coisificada. Por isso nossos corpxs levantam-se ao primeiro clamor para
Então, a arte do corpo não deveria ser uma prática ativista manifestar-se.
diante desta situação? São estertores de um corpo que se recusa a ser coisificado
Vamos falar sobre isso e talvez muito em breve nossos netos
Para construir um ativismo genuíno, devemos primeiro res- possam viver num mundo mais conectado.
ponder à pergunta: como a arte reproduz esse corpo coisificado? Feliz dia da dança!
De que maneira? Como nos encarregamos da sua difusão? Como
a reproduzimos? Quais instituições a premiam? Como criamos (Texto escrito entre fevereiro de 2019 e março de 2020 no México)
tantas técnicas, tecnologias, ferramentas e metodologias para sus-
tentar essa coisificação?
2.
Acho que seríamos mais ativistas se, em vez de repetir várias Sou bailarina. Tenho 36 anos. Há dez anos, parei de trei-
e várias vezes que, “a arte serve para criar consciência”, reconhe- nar técnicas tradicionais de dança clássica e contemporânea, que
cêssemos e escrevêssemos sobre como coisificamos nosso próprio apenas promovem habilidades físicas em ambientes muito limita-
corpo na vida cotidiana e como reproduzimos isso no palco. Isso dos. Fiz isso como um ato de protesto contra o sistema alienante
ajudaria a desmantelar alguns escritos e teorias que circulam por da dança contemporânea ocidentalizada. Não quero engordar as
aí falando sobre a emancipação, empoderamento e expansão que listas de dançarinos hiper-treinados e disciplinados do regime de
o corpo supostamente está produzindo na arte. uma dança que reproduz cânones de obediência, submissão , ce-
nas de violência feminina, ideologias de criadores misóginos ou
Façamos um ato de auto-observação de como somos atra- homofóbicos que abusam do poder em um grupo de pessoas e
vessados por essa coisificação em que nascemos. instituições de arte que promovem violência ao corpo.

Acreditamos que, por “sermos artistas”, não somos isentos Suspeito das técnicas ocidentalizadas de treinamento corpo-
da violência que produzimos coisificando e usando nossos corpos, ral, porque elas acabam controlando o instinto e a percepção em
os corpos de nossos companheiros, os corpos dos espectadores, os prol de um corpo adestrado.
corpos dos outrxs.
Eu me pergunto qual é a semelhança entre um soldado trei-
Vamos falar sobre como os artistas lavamo-nos as mãos por nado para conseguir um movimento frio e um dançarino hiper
“ser artistas” e ficamos aliviados ao acreditar que cumprimos nos- treinado para fazer um movimento preciso solicitado pelo core-
sa parcela ética. ógrafo? Que seus corpos estão a serviço de uma batalha à qual
Por isso as contas não dão certo. muitas vezes se rendem ingenuamente, que colocam seus corpos
Por isso sentimos que estamos em dívida. a serviço de um sistema de violência que eles não conhecem e que
por isso sentimos que não conseguimos. lutam em uma batalha que não lhes pertence. Claro, a grande dife-

382 383
rença é que em uma delas existem centenas ou milhares de vítimas 3.
mortas e na outra não, certo? Nós, mexicanos nascidos nos anos 80, tivemos que passar
por uma transição muito importante na violência corporal.
Acredito no movimento que meu corpo produz como um
ato de me nomear e nomear o mundo com minha própria voz. A partir de 1994, lembro-me de ouvir sobre o caso chamado
Como forma de assumir a responsabilidade da minha existência, “as desaparecidas de Juarez”, mulheres de Ciudad Juárez com cer-
do tempo em que vivo e da história que me cabe escrever. Como tos traços comuns, que foram desaparecidas e mais tarde encon-
forma de incitar outros cenários mais compreensíveis, afetivos e tradas mortas em áreas abandonadas. Lembro-me de ler um livro
porosos para a humanidade, mais inclusivos e respeitosos em rela- que falava sobre como o acordo do TLC (Acordo de Livre Comér-
ção às diferenças. Como uma estratégia do político, mover minha cio da América Latina e Caribe) permitiu a entrada de indústrias
raiva, minha indignação e insatisfação sobre os disciplinamentos estrangeiras nas cidades limítrofes dos Estados Unidos, causando
sociais. Acredito no movimento que produz conhecimento para uma escalada de violência contra mulheres e crianças: violações,
mim e para todas as comunidades que compõem essa grande co- sequestros, tráfico de órgãos, desaparecimentos e valas comuns.
munidade. Acredito no corpo desde o instinto, a percepção e não
desde esse tipo de adestramento. Acredito no corpo animal que Desde 2006, os desaparecidos, os assassinados, os excluí-
somos mais do que no corpo cultural que aprendemos. dos, os torturados e as valas comuns aumentam todos os dias.
Luz Emilia Zinser diz que “a organização civil mexicana Evalúa
Esse meu corpo animal sabe se mover, conhece seu espaço denunciou que nosso país teve uma intensidade de violência com-
de movimento, sabe o que está se movendo e para onde está se parável a áreas que estiveram em conflito armado, por exemplo, os
movendo. Esse corpo animal que rasteja, anda, fala, come, corre, Bálcãs nos anos 90 registraram uma estimativa de 100 mil mortes
caga, abraça, beija, pega, dá à luz. violentas, a guerra do Iraque teve 114 mil; o México em 2012
atingiu 101 mil mortos.”2
Esse meu corpo animal se move e produz um território, este
território é uma prática política. Esse meu corpo animal é uma Nossas autoridades não estão fazendo nada para combater
micropolítica que faz explodir este adestramento ocidentalizado esse estado de violência, dizem estar preocupadas e ocupadas com
do corpo, este campo de batalha, este batalhão e esta luta. esse assunto, mas os números continuam a aumentar. Parece que
estamos enfrentando a pior crise de violência e, o pior, agimos
(Texto iniciado em maio de 2016 no Brasil e terminado em abril como se nada estivesse acontecendo.
de 2017 em Berlim)
Toda essa situação me faz pensar que no meu país existem
corpos que não valem nada, corpos que não são necessitados, cor-
pos que incomodam, corpos que tiram nossa comida; parece que

2 Dieguez, Ileana. Corpos em duelo. Prólogo de Luz Emilia Aguilar Zinser.

38 4 385
a economia não é suficiente para certos corpos. É muito difícil cidas de nosso país) e de indagar como o inconsciente coletivo
sabê-lo, mas é uma realidade: no meu país, a vida não vale nada reage a essa situação. NEA é uma produção coreográfica de 4
ou vale muito pouco, especialmente para os nascidos em áreas de obras entre este período de 2012 a 2018, onde a cada dois anos
alta marginalização. é realizada uma entrega com os títulos “2012”, “2014”, “2016”
e “2018”, respectivamente, sob a pergunta: que estéticas, éticas
Essa realidade que vai além de qualquer coisa que possa- e narrativas surgem ao colocar o político de um corpo na discus-
mos imaginar me faz pensar que, no México, as artes vivas ou são da arte?
as artes do corpo não podem mais ser as mesmas que as conhe-
cíamos até agora. Diante dessa realidade de extrema violência de Como está o nosso corpo social? É a questão da tetralogia
corpos no México, os discursos, as estéticas, as narrativas e os à qual cada obra responde por analogia entre o corpo cênico/per-
dispositivos precisam ser radicalmente transformados. formático e o corpo social. A criadora pensa cada parcela da tetra-
logia a partir de uma situação particular: 2012 é uma imagem de
Um corpo em cena não pode mais dizer o mesmo que trin- transição social e política devido ao retorno do PRI à presidência;
ta ou cinquenta anos atrás, não pode mais ser apenas um corpo 2014 é uma imagem de invasão ao sistema; 2016 é um dispositivo
ficcional, não pode fazer-nos ter uma boa noite ou oferecer-nos a modo da pergunta: que outra governabilidade poderia nos orga-
uma bela imagem ou uma imagem comovente; Já não basta fazer nizar? e 2018 é uma meta-representação.
uma dança graciosa ou uma apresentação bem-feita.
A NEA é uma apresentação corporal que faço sobre aquilo
Desculpe, mas a arte do corpo não pode mais ser a mesma, que nos desperta - consciente e inconsciente - vivendo em um dos
simplesmente porque no México eles estão nos matando. sexênios mais violentos - depois dos 68 -, produto do regime PRI,
da política neoliberal e do narcotráfico.
As artes vivas ou as artes do corpo no México devem ser
completamente reinventadas. Devemos estourar os palcos com É em 2014 que surge a pergunta: como por o corpo?
centenas ou milhares de corpos exigindo o aparecimento dos Se uma obra é um corpo a corpo artista-espectador, por esse
corpos que nos fazem falta; ou devemos esvaziar todas as salas motivo sua condição de “artes vivas”, para que a capacidade de se
e teatros do país como um ato de desaparecimento. Somente por colocar nesta fragilidade e subjetividade da “experiência de você
indignação, por tristeza ou por amor à vida. para você”, o que aconteceria se o corpo do artista não aparece na
obra? O que poderia substituir a experiência “você a você”? O que
Em 2012, iniciei uma investigação/obra chamada NÓS poderia aparecer em seu lugar? O que acontece se tiramos o corpo
ESTAMOS AQUI (NEA), uma tetralogia sobre corpo, arte e ficcional dessa “experiência você a você”? Que corpo apareceria?
política. Desde o início, eu pensava nisso como uma prática de Como seria esse corpo? Como seria o encontro? Esse corpo esta-
pesquisa com produção coreográfica em diálogo com a situação beleceria outro tipo de “experiência de você para você”?
política, social e econômica do México entre os períodos 2012-
2018. Essa investigação surgiu em resposta ao retorno do partido Minha hipótese é que o corpo que aparece em uma obra
do PRI mexicano à presidência em 2012 (um dos maiores geno- deve ser outro muito diferente daquele que conhecemos. Precisa

386 387
ser um corpo que instaure outro tipo de encontro com o especta- A GESTÃO INTERNACIONAL A PARTIR DA FIGUR A DO “ARTISTA-
dor e, assim, nos ajudaria muito a pensar em formatos, estruturas -GESTOR” OU “ARTISTA-ETCETER A”, CONCEITO CRIADO
ou narrativas. (NOMEADO) PELO TEÓRICO BR ASILEIRO RICARDO BASBAUM.
Olga Gutiérrez
Mas também acho que talvez esse corpo não deva aparecer,
se rebelar perante a obra, dar as costas ao sistema de representa- Este é um fragmento da palestra apresentada no âmbito do
ção, hackear a produção de narrativas, irromper a cena, deter o 1º. Colóquio Latino-Americano de Pesquisa e Práticas de Dança
espetáculo. E penso na frase do filósofo catalão Petit, e se parásse- no âmbito do Encontro Nacional de Dança, México 20164 .
mos de ser cidadãos?3 Há cinco anos, transito por festivais na Europa Ocidental e
na América Latina, o que me permitiu observar diferentes fenôme-
E se pararmos de representar a representação dominante? nos no mundo da gestão internacional. Mas há um em particular
E se pararmos de ser obedientes à representação? que eu acho bastante fascinante: é uma figura e uma prática socia-
lizada entre os corredores e as conversas de café, mas que ainda
Definitivamente, precisamos colocar o corpo de uma outra não alcançaram nossos espaços acadêmicos. É uma figura/prática
maneira, sob outra cosmovisão e outra prática. Talvez assim pos- que tenho investigado desde 2012: o “artista-gestor”.
samos fazer justiça a todos esses milhares de corpos desaparecidos.
No México e na América Latina, existem muito poucas ini-
(Texto escrito entre agosto 2016 a novembro 2019 entre México, ciativas que problematizam essa figura/prática. Minha intenção
Alemanha, Romênia e Argentina) em nomeá-la e problematizá-la é ser capaz de colocá-la em nosso
imaginário para compreender que gestão está empoderando, o que
está causando no campo da criação, da produção e da gestão lo-
cal, nacional e internacional e por que ela se torna um modelo de
estudo e trabalho para países como Espanha e Alemanha.

O campo de pesquisa é o campo da dança contemporânea e


das artes vivas nos países do México, Uruguai, Argentina, Colôm-
bia e Espanha através das seguintes plataformas:

• México (República Mexicana) / Rede Nacional de Dan-


ça da Coordenação Nacional de Dança do Instituto Na-
cional de Belas Artes.

3 Petit, Santiago López. E se parássemos de ser cidadãos? Manifesto pela desocupação da 4 O texto original está publicado em https://issuu.com/interdanza/docs/interdan-
ordem. za_n___35.

388 389
• Uruguai (Montevidéu) / Festival Internacional de Dança híbridas que podem se encaixar na arte visual, no sonoro, no te-
Contemporânea do Uruguai FIDCU. atro ou na dança. Esse conceito foi desenvolvido no contexto do
• Colômbia (Bogotá) / Plataforma de Artes Vivas: dobras grupo Mapa Teatro e do Mestrado Interdisciplinar de Teatro e Ar-
e desdobramentos. tes vivas (em parceria com a Universidade Nacional da Colômbia)
• Argentina (Buenos Aires) / Festival Internacional de em Bogotá e chegou a nossa linguagem via Colômbia ou Espanha
Dança Emergente de Buenos Aires FIDEBA. através do pesquisador José Antonio Sánchez, quem se apropriou
• Espanha (Barcelona) / Plataforma de Internacionaliza- do conceito em seus escritos.
ção da Dança Catalã do FID.
-------
O primeiro aspecto que acho importante destacar dessa pes-
quisa é o tipo de campo em que estou pesquisando: esses festivais Para problematizar o campo da gestão internacional, decido
e plataformas são o que chamo de “espaços vivos”, ou seja, não fazê-lo a partir da figura do “artista-gestor”. Para isso, entrevistei
são “festivais de vitrine” dedicados exclusivamente à exibição de cinco “artistas-gestores” mexicanos que conheço há 5 a 10 anos e
obras, mas são espaços para o encontro de agentes, contextos e que trabalham em diferentes zonas da República Mexicana. Com
práticas. São festivais dirigidos, programados e geridos por “artis- eles, falei sobre o assunto, alguns concordam com minha posição
tas-gestores” que modificam sua estrutura de programação a cada e outros discordam; desconheço se eles se auto-nomeiam “artis-
edição, a fim de adaptá-la ao campo curatorial de cada edição, ta-gestor”, mas, de acordo com minha pesquisa, eles se encaixam
gerando espaços oxigenados, porosos e vivos que dialogam com nessa figura / prática.
seus contextos. Exceto no caso de Barcelona, onde o FID é uma
iniciativa da instituição espanhola Mercat de les Flors, com coor- A seguir, a origem e o nome das plataformas ou espaços que
denação, curadoria e organização de um grupo de artistas catalães esses “artistas-gestores” gerem atualmente:
selecionados a partir de uma convocatória.
• ZONA SUL/Veracruz, Jalapa/Alonso Alarcón/grupo An-
Esses “espaços vivos” são plataformas que provocam o gulo Alterno - Festival Internacional de Dança Extreme -
cruzamento de pensamento e contexto entre criadores, gestores e Encontro de Performatividade e Gênero em Coreografia
produtores que nos encontramos no campo ativo da criação, da Contemporânea no México.
pesquisa, da produção e da gestão de artes vivas. • ÁREA CENTRO OCCIDENTE/Morelia, Michoacán/
Abdiel Villaseñor e Laura Martínez/Projeto AC Serpent -
Definirei o conceito “artes vivas”, pois ele aparecerá muito Festival Internacional de Dança da Serpente Vermelha - Fó-
no meu texto. Tomarei uma reflexão de Rolf Abderhalde: “(esse rum Cênico “O Jardim”.
conceito) foi necessário para a construção de novos processos de • ZONA NORTE/Tijuana, Baja California/Miroslava Wil-
pensamento-criação na arte, a partir do corpo e com ele, indis- son/Em colaboração com Carlos A. Gonzalez, realiza os
sociavelmente. Uma construção de enunciados fora de sua cisão projetos: Agrupamento artístico do pêndulo com as plata-
tradicional, pensamento e/ou criação, prática de pensamento e/ formas: Salas de emergência (sede de Tijuana) - Modelo de
ou prática artística.” Ou seja, são aquelas práticas e produções produção alternativo (colaboração com a Companhia de

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Teatro Seres Comuns) - Plataformas nacionais e internacio- que está inserida, pois percebemos que o encenar a peça também
nais de coprodução - Residências Oscila - Link Binacional significava gerar outros mecanismos de leitura, de contato com o
de Dança. público, formas de desmistificar o evento cênico e diminuir um
• REPÚBLICA MEXICANA/Melissa Cisneros/Plataforma pouco a cena da dança naquele momento. Buscando comunicação
nômade La Mecedora para artes vivas (junto com Martha mais direta em um espaço mais transdisciplinar.”
Sponzilli).
ALONSO ALARCÓN: “O impulso de gerar o DanzaEx-
Esses cinco “artistas-gestores” têm várias semelhanças: trema foi criar várias plataformas para a dança contemporânea
1. Atualmente, são criadores, ou seja, não deixaram a práti- profissional em Xalapa, Veracruz, cidade onde em 2004 os únicos
ca e a pesquisa artística nem a produção de obra para iniciar espaços existentes eram projetos de universidades e escolas e onde
tarefas de gestão e produção em suas plataformas. não havia espaço para a criação e exibição de dança contemporâ-
2. São diretores e gestores em suas próprias plataformas. nea em nível profissional. Então, assumi a liderança para a criação
3. A maioria possui experiência de formação e profissionali- de um espaço que o governo não estava cobrindo para profissio-
zação fora do México. nais de dança.”
4. Todos realizam trabalhos de gestão internacional para
seus projetos e para seu trabalho artístico. MIROSLAVA WILSON: “A gestão é uma atividade inerente
5. Pertencem ao campo da dança contemporânea, mas da à direção de uma organização artística. Como organismo, uma
perspectiva das “artes vivas”. entidade agrupada é nutrida, alimentada, educada e estimulada;
6. A maioria nasceu em 1980. Nesse sentido, a gestão é saudável e necessária para se desenvolver.
Meu impulso decorre da necessidade de abrir espaços de troca, de
É importante para mim salientar isso, porque considero que nutrir o que fazemos como grupo, de compartilhar e expandir o
essa dinâmica de conciliar tarefas é um exemplo claro de como o núcleo, de permear dentro e fora do nosso fazer.”
“artista-gestor” está instituindo outro imaginário na economia da
arte: o fato de permanecer na criação, pesquisa, produção e gestão ABDIEL VILLASEÑOR e LAURA MARTÍNEZ: “Nosso
provoca uma contaminação entre as áreas, aparecendo como con- impulso vem da necessidade de criar plataformas para a apresenta-
seqüência, outras soluções para as problemáticas, outras relações ção de obra artística de dança desde uma perspectiva independen-
laborais, assim como outra conceituação do nosso fazer. te, com sério interesse em mostrar trabalhos de dança nacionais
e estrangeiros que contribuam para a formação de públicos para
A primeira pergunta que faço a esses cinco “artistas-geren- a dança em Michoacán. Antes do Festival da Serpente Vermelha
tes” é: “O que os motivou a gerenciar em suas comunidades para Red Serpiente, a dança local estava sujeita apenas à oferta oficial
criar seu espaço/plataforma?” (institucional) de programação.”

MELISSA CISNEROS: “O que nos impulsionou a gerar A segunda pergunta que eles respondem: “Da sua prática de
essa plataforma nômade (La Mecedora) foi, por um lado, perce- gestão, o que você considera que gera um ‘artista-gestor’?”
ber a necessidade de criar, além da obra artística, o contexto em

392 393
MELISSA CISNEROS: “Parece-me que a gestão realizada ABDIEL VILLASEÑOR e LAURA MARTÍNEZ: “Mais
pelos criadores cumpre uma dupla função, por um lado gera obra do que gerar, acreditamos que a gestão que advém dos criadores
artística e, por outro, cria o contexto em que se manifesta, ou seja, permite estabelecer práticas de mobilidade, produção e divulgação
podemos decidir e criar os cenários em que desejamos manifestar nas relações horizontais com outros artistas. O perfil sensível dos
o trabalho, e não apenas responder a circunstâncias predetermi- criadores não se limita aos nossos processos criativos, mas nos
nadas. Decidimos nosso conteúdo e criamos sua infraestrutura. É acompanha nos processos de captação de recursos para terceiros.
mais trabalho, mas também é mais gratificante, porque aqui você Como criadores-gestores, também somos sensíveis às principais
pode pensar e plasmar outras economias do fazer criativo.” necessidades dos beneficiários das plataformas que gerenciamos”.

ALONSO ALARCÓN: “A gestão realizada pelos criado- Então, o que é um “artista-gestor”? E que tipo de trabalho
res gera muito mais do que boas intenções políticas ou planos de realiza?
cultura do triênio perdidos pela mudança de governo. Geramos • Ele é um gestor que trabalha a partir da pulsão para criar
continuidade, geramos permanência, geramos pensamento. Trans- outros cenários artísticos e laborais que impliquem a profis-
cender através de plataformas responde ao nosso pulso criativo sionalização de uma comunidade.
como artistas e não o contrário. Geralmente, as instituições e seus • Tem uma dupla função: por um lado, gera obra artística
burocratas pensam primeiro em plataformas e festivais e depois e, por outro, cria o contexto em que se manifesta, ou seja,
veem se isso se encaixa na necessidade da comunidade. No Dan- projeta, produz e gera cenários que não respondem a cir-
zaExtrema, partimos da comunidade e suas necessidades, assim, a cunstâncias ou partidarismos predeterminados.
cada ano o festival redesenha suas plataformas, essa é a natureza • Projeta outras economias do trabalho artístico.
do festival, não estática, sempre está em movimento.” • Elabora planos culturais que não dependam de mudanças
de governo e que, pelo contrário, geram continuidade e per-
MIROSLAVA WILSON: “Outra prática muito importante manência.
que observo é a dos ‘multiplicadores’, ao reconhecer o outro que • Cria planos culturais que respondam ao tempo de uma co-
trabalha tanto no artístico quanto na gestão, é fácil tecer, cons- munidade, sempre em movimento constante e que são arti-
truir ou convidar o outro a colaborar. Esse artista/gestor entende culados com programas do sistema operacional do governo
o que “implica” realizar idéias e dar-lhes vida, alcance no espaço- atual.
-tempo. Uma forte diferença para um gestor cultural é o vínculo • Elabora planos culturais que promovam políticas públicas
com o seio artístico ou criativo do projeto, o gestor cultural conti- relacionadas à profissionalização da comunidade da dança
nuará a vê-lo como um bem cultural, um fato artístico, o que me contemporânea e artes vivas e à articulação do local com o
parece excelente, porém o artista/gestor entende o limite da va- nacional e o internacional.
riabilidade de tal fato. Eu vejo uma união forte e necessária entre • Estabelece relações horizontais artista-instituição nas prá-
o gestor-cultural e o gestor-artista, acredito que são alianças que ticas de mobilidade, produção e gestão.
devem ser somadas, o gestor cultural definitivamente sempre será • Seu perfil sensível não se limita ao campo da criação, mas
capaz de visualizar “fora da caixa”, dar perspectiva, colocar um também à captação de recursos e às principais necessidades
projeto onde você não imaginaria, e isso sempre pode contribuir.” do outro.

394 395
• Praticam a gestão como uma extensão da prática artística de minha pesquisa, pois me permitiu observar como em outros
em comunidade. contextos como Colômbia, Chile, Uruguai, Brasil e Argentina a
• Realizam trabalhos etnográficos: estudando o contexto, as figura do “artista-gestor” é uma figura ativa da mesma forma que
políticas culturais da cidade, as relações institucionais e as está sendo no México e que eles têm as mesmas características que
pulsões da comunidade. apontei para o “artista-gerente” mexicano.
• Produzem um lugar de diálogo nacional e internacional
para nutrir o imaginário de sua comunidade. No âmbito dessa reunião em Montevidéu, Eloísa Jaramillo,
• Eles se pensam em
​​ RED: são “multiplicadores” que tecem diretora da plataforma RED ARTES VIVAS em Bogotá, escreveu
práticas artísticas, diferentes contextos e fundos públicos um texto que traz novas reflexões dessa problemática na esfera
locais, nacionais e internacionais, gerando uma gestão in- ibero-americana, enunciando assim a figura do “artista etc.” ter-
tegral. mo do teórico brasileiro Ricardo Basbaum. Aqui está o texto:

Minha primeira conclusão é que a prática do “artista-ges-


tor” tem empoderado nos últimos 15 anos no México, um ima- ENCONTRO SOBRE CUR ADORIA NO FIDCU 2014
ginário da gestão internacional baseado no desenvolvimento do O Artista-etcetera, as plataformas
contexto local, criando outro tipo de relações afetivas, produtivas micropolíticas e as redes afetivas
e econômicas. Essa prática tem um caráter micropolítico que ra- Texto de Eloísa Jaramillo
cha o sistema macropolítico econômico da arte das grandes em-
presas culturais e a falta de políticas públicas. Essa prática, por Na versão de 2014 do Festival Internacional de Dança
sua vez, provoca curiosidade nos países da Europa Ocidental e se Contemporânea do Uruguai (FIDCU), foi realizada uma reunião
alça como modelo para a discussão da gestão local e internacional de curadores das Artes Cênicas da América Latina. Lá, vários
em países como Espanha e Alemanha. diretores de diversas plataformas do México, Chile, Argentina,
Uruguai, Venezuela, Brasil, Colômbia, Espanha, Portugal e Suí-
------- ça se reuniram por cinco dias para refletir sobre nossas práticas.
Tivemos uma conversa na qual muitos tópicos relacionados ao
Agora vou levar esse problema para o nível internacional. exercício curatorial foram discutidos em torno das artes cênicas
na América Latina e onde muitas dinâmicas - que muitos consi-
SITUAÇÃO 1 derávamos isoladas, locais ou que só aconteciam em nossos paí-
Em maio de 2014, participei da IV edição do Festival In- ses - se tornaram visíveis. Nesse encontro, ficou claro que, apesar
ternacional de Dança Contemporânea de Uruguai FIDCU, apre- das particularidades de cada contexto, existem muitas dinâmicas
sentando uma obra de minha autoria e ao mesmo tempo partici- e respostas semelhantes e que talvez elas caracterizem nossas prá-
pando do Encontro Internacional de Curadores de Dança, onde ticas curatoriais como região. Vou me referir aqui a três delas,
participamos diretores de festivais e plataformas de países como que considero as mais inovadoras e reveladoras de nossas realida-
México, Chile , Argentina, Uruguai, Venezuela, Brasil, Colômbia, des. A primeira é o surgimento de um novo perfil profissional nas
Espanha, Portugal e Suíça. Esse encontro foi crucial para o início artes cênicas latino-americanas, o que aqui chamarei de artista-e-

396 397
tcetera; a segunda, a dimensão micropolítica de nossas platafor- nossas instituições macropolíticas, a verdadeira transformação
mas; e a terceira, a constatação de que nossas redes profissionais social ocorre no âmbito comunitário, no doméstico, no íntimo.
são fundamentalmente afetivas. Diante os macroeventos que ocorrem em várias cidades da Amé-
rica Latina, como o Festival de Santiago, os Festivais de Dança
Uma das descobertas mais valiosas desse encontro foi a e Teatro de Buenos Aires, o Festival Ibero-Americano de Teatro
identificação de um perfil profissional, bastante frequente na de Bogotá, para citar apenas alguns, os artistas-etcetera foram
América Latina, composto por artistas que atuam em seu con- reagindo de forma simultânea e incomunicável, com a criação de
texto, promovendo festivais, clubes, temporadas, espaços de re- espaços alternativos, que respondem a outras lógicas de mercado
flexão, laboratórios de criação e pensamento, entre muitas ou- e interação. Esses grandes eventos são vitrines de grandes empre-
tras plataformas de caráter micropolítico. Esse perfil profissional sas pertencentes a um circuito internacional das artes cênicas que
combina prática artística com ensino, pesquisa, produção, gestão chegam às nossas cidades, fazem suas apresentações com altos
e curadoria e passa por uma e outra sem encontrar incompatibi- custos e saem sem deixar vestígios na dinâmica local sem causar
lidades ou buscar o caminho da especialização. Como o teórico impacto algum na comunidade artística. Sem mencionar que es-
brasileiro Ricardo Basbaum diria, um artista-etcetera. A ideia de ses macroeventos usam uma porcentagem muito alta dos escassos
que os artistas da América Latina fazem muitas coisas simulta- recursos que as administrações públicas destinam para as Artes
neamente não é nova. O que achei extremamente inovador foi Cênicas em nossos países. Esse é o modelo usual de internacio-
a clara posição de que essa possibilidade é uma característica e nalização em nossos contextos, que as instituições replicam sem
não uma deficiência ou uma situação a ser melhorada. A ideia questionar. Paralelamente a essa operação, abundam plataformas
de profissionais multifacetados das artes cênicas é, sem dúvida, independentes na América Latina, em forma de clubes, redes, fes-
um paradigma alternativo ao da especialização, tão comum na tivais, residências, espaços de experimentação, salas e outros, que
Europa e nos Estados Unidos, onde o modelo consiste em pa- os artistas-etcetera, devido ao compromisso com o seu contexto,
péis diferenciados e onde cada um se ocupa do próprio, para que têm buscado para si e para as comunidades imediatas. Esta cons-
a maquinaria da arte gire sem rachaduras ou quebras. O perfil tatação que pude fazer no Encontro sobre curadoria da FIDCU
do artista-etcetera, operante há muitos anos na América Latina, me faz pensar que a dimensão micropolítica nos caracteriza como
passa a se denominar como uma opção válida e a se posicionar região. Que é um despropósito ignorá-la e não levar em conta
como gerador de dinâmicas particulares que ocorrem em nossas que nossas dinâmicas dependem desta condição de pequena es-
latitudes. Festivais curados por artistas, plataformas que aten- cala, imediata, pode-se dizer íntima; que é dessa maneira que um
dem às necessidades de grupos de artistas, espaços de reflexão movimento cultural foi gerado em toda a América Latina e que
das práticas e dos territórios locais, são apenas alguns exemplos estamos demorando ​​para nos comunicarmos, trabalhar em rede,
do que é gerado por esse novo perfil, sobre o quanto ainda preci- em conjunto ou nas coletividades que inventamos.
samos refletir. A terceira e última dinâmica que quero mencionar refere-
A segunda dinâmica que capturou minha atenção nesse -se às nossas redes afetivas, tecidas pela força de nos conhecer-
Encontro foi o que chamo de dimensão micropolítica de nossas mos lentamente, de encontrar nossas afinidades e de aprender
plataformas e que também responde a um paradigma próprio da a conviver com nossas diferenças, como autênticos outros. Essa
América Latina, no qual, diante da desconfiança e descrença em condição faz com que nossa comunidade profissional de artis-

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tas-etcetera e das plataformas independentes, como região, res- que organizo, projeto e gestiono, assim como a REDE à qual
ponda tão bem às dinâmicas do encontro pessoal e tão mal às pertenço. Quando fiz a apresentação e falei sobre o meu traba-
dinâmicas informativas ou dos negócios, como as plataformas lho, apresentei-me como “artista/gestor” e isso se mostrou muito
da web que buscam mapear ou rodadas de negócios que buscam controverso para a maioria dos participantes, pois eles viam com
a troca de produtos circuláveis. Essas redes afetivas caracterizam certa desconfiança o ser criadora e conciliar esse trabalho com
nossas plataformas, muitas delas não formalizadas legalmente, a gestão. Na Espanha, a prática de gestão do artista é sinônimo
mas continuaram ao longo do tempo na construção de relações de precariedade laboral; ao invés de vê-lo como fortaleza, eles
pessoais e também de vínculos afetivos com projetos de outros vêem isso como uma fraqueza para o artista, para a comunidade
que fazemos próprios. e para a instituição.
Todas essas são algumas das reflexões que ficaram em mim
após o consistente encontro sobre curadoria do FIDCU 2014. Diante da crise econômica que a Espanha vive desde 2012,
Muitos desejos de continuar com esta reflexão coletiva, de inter- várias instituições espanholas, como Mercats de les Flors, tentam
conectarmos e consolidarmos um pensamento latino-americano colocar outros modelos de desenvolvimento econômico em sua co-
fruto das mútuas contaminações e antropofagias que faça cada munidade e escolheram a figura/prática do “artista-gestor” como
vez mais forte nosso lugar de enunciação no mundo. um modelo que pode ativar outras economias locais, nacionais e
internacionais na Espanha.

SITUAÇÃO 2
Em junho de 2013, e no âmbito do Terceiro Encontro La- SITUAÇÃO 3
tino-Americano de Gestores de Dança, realizado nas cidades de Em março de 2015, o Goethe-Institut Mexiko, encarrega-
Morelia e DF, onde compareceram cerca de 120 gestores de paí- do de um projeto promovido por sua coordenadora cultural Ilo-
ses como Espanha, Suíça, Uruguai, Colômbia, Chile, Argentina, na Goyeneche, convocou um grupo de 25 “artistas-gestores” de
Peru, San Salvador e México, esteve presente Cristina Alonso, vários Estados da República Mexicana, como Oaxaca, Mérida,
diretora do Centro de Criação El Graner do Mercats de les Flors, Veracruz, San Luis Potosí, DF, Tijuana, Jalisco, Michoacán e Her-
de Barcelona (Espanha). A partir desse momento, ela viajou para mosillo, em um encontro intitulado THINK TANK, onde foi feita
o nosso país em diferentes momentos daquele ano e de 2014. Fez uma tentativa de criar uma primeira abordagem com um grupo de
um mapeamento de agentes da cena mexicana de artes vivas e diretores alemães das instituições Centro Internacional de Dança
convidou um grupo de “artistas/gestores” para a Espanha para e Arte do Movimento Fabrik (Potsdam), Kampnagel Internationa-
participar em diferentes plataformas de pensamento e festivais les Zentrum für Schönere Künste (Hamburgo) e Tanzhaus Dance
em que fomos convidados a conversar constantemente sobre nos- Center (Düsseldorf).
sa atividade como “artista-gestor” em nossa função de gestão lo-
cal, nacional e internacional. Constantemente, em cada festival, Foram três dias em que, pela primeira vez, problematizamos
plataforma ou espaço de pensamento para o qual fui convidada o conceito de “artista-gestor”, ao mesmo tempo que realizamos
entre 2013 e 2015, a Instituição Mercats de les Flors pediu para um mapeamento de nossa prática no território mexicano, o que
me apresentar e conversar sobre os espaços/plataformas/festivais nos permitiu entender quem somos, o que estamos produzindo e

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como operamos. Fizemos isso diante de um olhar estrangeiro: os 4. O interesse internacional de algumas instituições na Euro-
três diretores da Alemanha. pa Ocidental, Canadá e América Latina está no empoderar
articulações com colegas em que o interlocutor esteja mais
Em um segundo momento, em junho do mesmo ano, um interessado em encontrar dispositivos e práticas de encontro
grupo de 5 “artistas-gestores” deste primeiro grupo foi convidado do que em preencher uma agenda de atividades.
para uma viagem de 10 dias nas cidades de Hamburgo, Berlim, 5. Esta lógica de gestão internacional responde ao desgaste do
Düsseldorf, Essen, Colônia, Wuppertal e Frankfurt para conhe- local pelos macroeventos de iniciativas internacionais que
cer outros centros de dança, artes vivas, teatros e artistas. Nesse usam o contexto local em vez de se articularem com ele.
mesmo ano, fomos convidados a realizar uma articulação interna- Diante dos macroeventos das grandes companhias de circui-
cional México-Alemanha para criar uma agenda de cooperação tos internacionais que utilizam recursos de administrações
internacional entre o México e a Alemanha a ser inaugurada no públicas e que não deixam benefício algum à comunidade
âmbito do Ano Dual Alemanha/México 2016-2017. artística, os “artistas-gestores” reagem com a criação de
espaços alternativos, plataformas independentes; devido ao
O que essas situações nos dizem? compromisso com seus contextos, eles têm procurado esses
espaços para si e para suas comunidades imediatas.
1. Instituições de outros países consideram o “artista-gestor”
como um importante articulador de contextos, não pelo Minha segunda e última conclusão é que estamos passando
tipo de economia que possuem, nem pela plataforma que por uma mudança crucial no paradigma econômico, onde não
representam, mas pela maneira como articulam as ativida- estamos apenas nos perguntando o que fazemos com o pouco que
des em comunidade, em rede, são “multiplicadores” que te- temos e como nos relacionamos com as instituições que constan-
cem práticas artísticas, contextos diversos e fundos públicos temente minimizam suas responsabilidades. A figura do “artista-
e privados locais, nacionais e internacionais, gerando uma -gestor” responde a esse tempo gerenciando outros espaços pro-
gestão integral. dutivos, econômicos e afetivos de longo prazo que não implicam
2. Instituições de outros países consideram que a figura do no saqueio do local para finalidades internacionais, mas no forta-
“artista-gestor” é uma importante potência de articulação lecimento do local com articulação internacional. O “artista-ges-
local; ele é uma figura confiável que pode estabelecer um tor” coloca assim outra prática de relações com o internacional.
diálogo que empodera não apenas uma prática artística ou
econômica de cooperação internacional, mas também de di-
álogo com uma comunidade.
3. O tipo de relação que esse tipo de gestão internacional busca
estabelecer é uma gestão de longo prazo, que envolve o co-
nhecimento dos contextos a serem articulados; Não se trata
de resolver uma agenda de atividades, mas entender como
esses contextos podem ser tecidos e incentivar relações pro-
dutivas e econômicas em momentos diferentes.

402 403
MARTA CESAR é diretora e curadora das dez CARTA DE AMOR A FLORIANÓPOLIS
edições realizadas do Festival Múltipla Dança Marta Cesar
(2006-2017). Graduada em Direito pela Facul-
dade de Direito da USP (Largo São Francisco)
em 1985, seguiu a carreira artística que já de-

E
senvolvia como bailarina no Balé da Cidade nvio esta carta neste momento em que a pandemia de
de São Paulo. Especialista em Dança Cênica Covid-19 nos lança na reflexão de nossos legados e desejos
(Udesc), atuou em diversas funções na área cul- futuros para a humanidade. Faço aqui uma sincera declara-
tural, especialmente na área da dança e da mú- ção de amor a um período pleno de beleza e gratidão, um ciclo de
sica na esfera nacional e internacional. Durante quase duas décadas a partir de minha chegada em Florianópolis
20 anos no estado de Santa Catarina, desenvol- no início do século XXI. Naquele período, não tinha qualquer
veu funções na área da produção cultural, ati- ideia de um plano de nova carreira profissional, tal qual esse mo-
vidades pedagógicas, acadêmicas e artísticas, mento que vivemos atualmente ao tentar planejar o que será pós-
atuando, inclusive, na área política. Mudou-se -pandemia.
para São Paulo, sua terra natal, no ano de 2017 Primeira menção a ser feita é o fato de ter ido a Florianópolis
e, desde então, atua como autônoma na forma- em 1999, a convite de Neiva Ortega, homenageada nesta publi-
tação e produção de projetos na área cultural e cação, e então responsável pelo Programa Bandas da Fundação
social e como parecerista em projetos culturais Nacional de Artes (Funarte) no Estado de Santa Catarina (SC).
municipais, estaduais e nacionais. Nos conhecemos quando eu ocupava o cargo de Coordenadora
da Escola de Música da Fundação Cultural de Rio do Sul, quando
me coube a alegria de montar a Banda da Fundação em parceria
com a Polícia Militar através do referido Programa. A partir do
evento de entrega dos instrumentos em Florianópolis, estreitamos
nosso relacionamento, pois Neiva Ortega acompanhava de perto o
desenvolvimento das Bandas contempladas cumprindo exemplar-
mente sua função. Aceitando seu convite de visitar Florianópolis,
ela me colocou em contato com aqueles que faziam a dança na
capital e me levou ao Centro de Artes (Ceart) da Universidade
do Estado de Santa Catarina (Udesc), onde ocorria uma reunião
da Aprodança – Associação dos Profissionais de Dança de Santa
Catarina. Hoje vejo que nesse momento se deu a virada do que
seria uma nova década para mim: desde o ingresso no Curso de
Pós-Graduação em Dança Cênica no Ceart/Udesc, assim como
o retorno a uma sala de ensaios para a tentativa de criar uma
pesquisa solo naquele mesmo ano, e corajosamente inscrevê-la no

404 405
Programa Rumos do Instituto Itaú Cultural. Apenas um aparte: 2009. Nesse período, o então governador de Santa Catarina, Luiz
eu já dava como encerrada minha trajetória na Dança há alguns Henrique da Silveira (1940-2015), implementava uma proposta
anos, e no máximo acompanhava como pianista as aulas de balé declaradamente inspirada no ócio criativo do filósofo italiano Do-
e exames da Royal Academy of Dancing em Rio do Sul, tendo, menico de Masi, criando a Secretaria de Organização do Lazer
inclusive, me inscrito na seleção de pianistas para a nova Escola (SOL). Tal proposição desagradava o setor cultural, já descontente
do Teatro Bolshoi no Brasil que abria em Joinville. com o funcionamento e processo de seleção de projetos submeti-
A escolha de ir morar em Rio do Sul (SC) no meu retorno ao dos à Lei de Incentivo à Cultura Estadual e o baixo orçamento
Brasil em 1997, após 3 anos de moradia na Alemanha, atendia ao destinado à Cultura. Em nível municipal, havia o Fórum de Ar-
meu projeto de adotar filhos. Ana Luiza Ciscato, amiga de longa tistas e Produtores Culturais de Florianópolis que reunia agentes
data, havia se mudado para lá contratada como professora de balé e simpatizantes da Cultura em Florianópolis em discussões e de-
pela Fundação Cultural e me apresentou a simpática cidade encra- senvolvimento de propostas ao setor. No anseio de contribuir para
vada no belíssimo Alto Vale do Itajaí, que parecia acolher meu pla- construção de um sistema para a Cultura que permitisse a sobre-
nos. Naquele momento, o município vivia um importante momento vivência àqueles que trabalhavam na área, tornei-me engajada nas
para a Cultura, pois o então Prefeito Nodgi Pellizzetti (1940-2002) discussões propositivas. Outros movimentos similares eclodiram
era um entusiasta das atividades artísticas e tinha inúmeros projetos como o Conversas Culturais e, nesse contexto, Neiva Ortega foi
na área cultural: um dos mais importantes, a inauguração do Cen- uma companhia assídua, além de personalidade atuante nestes
tro Cultural em 1998, que atualmente leva seu nome. Alegro-me movimentos coletivos de combate.
ao recordar do orgulho que ele tinha da jovem Banda formada e da Ainda neste período de funcionamento das oficinas, fui con-
confiança que depositava em mim. Recebi muito apoio dos colegas templada com um grupo de alunos realmente notáveis e tive a hon-
da Fundação, onde fiz boas amizades. Contudo, na condição de ra de conhecer muitos colegas. Para citar aquelas das oficinas de
mulher solteira, ainda me sentia solitária. dança: Ana Alonso, Diana Gilardenghi, Elke Siedler e Zilá Muniz.
Nesta época contamos com o apoio e a generosidade da então res-
ponsável pelas Oficinas de Arte, Mary Garcia, que nos permitiu
CHEGANDO EM FLORIANÓPOLIS colocar em prática uma série de ideias e pequenos projetos inter-
nos como o Ciclo de Audiovisual, palestras de História da Dança,
Mudei para Florianópolis no ano de 2001, iniciando um jam sessions mensais aos sábados, aulas com artistas convidados,
novo ciclo. Já especialista em Dança Cênica pela Udesc, come- entre outros. Também usufruindo deste espaço, fundei a Ateliê
cei a ministrar oficinas de dança no Centro Integrado de Cultura Cia. de Dança e criei o espetáculo Marina por meio do Prêmio II
(CIC), o que seria a abertura da porta de um enorme tesouro que Palco Habitasul de montagem cênica A Ateliê Cia. de Dança, para
estaria por receber tanto no desenvolvimento profissional como mim uma joia bastante inusitada, ainda gerou uma segunda obra,
pessoal, pleno de relacionamentos. O campo de possibilidades que Ora Bolas, voltada ao público infantil, em 2006. Para a gestão
se encontrava ali entre os que trabalhavam com arte, o espaço de desta nova página no campo artístico, criei ao lado de Neiva Orte-
fruição da população de uma vida cultural, ou mesmo o espaço de ga e outros colegas com afinidades na produção cultural, a ONG
reclamar a insuficiência do circuito cultural e ausência de políticas Arte Movimenta, em 2005.
públicas foi ceifado com o fechamento do CIC para reforma em

406 407
POLÍTICA CULTUR AL E MISSÃO DE VIDA dizer que este período e a subsequente representação da Dança
junto ao Conselho Nacional de Políticas Culturais (CNPC) com
Dentro da Dança, continuávamos nos movendo para ali- Rui Moreira, Marila Velloso e Bia Mattar, retrata um avanço his-
mentar estas discussões. Em 2003, concebido e organizado por tórico na articulação e levantamento de um panorama da Dança
Vera Torres, Sandra Meyer e eu, foram realizados Seminários dentro de um país tão diverso e com dimensões continentais, a
para discutir a situação da arte. No segundo seminário, realizado despeito de ter permanecido no papel.
em sala do Ceart/Udesc, foi realizada a eleição da Aprodança No referido texto é explicitado o reconhecimento da Apro-
além das discussões com as palestrantes Bia Mattar e Jussara Xa- dança e a necessidade de seu fortalecimento na representatividade
vier. A Associação, de âmbito estadual, tinha cadeira no Con- territorial, considerando os diversos municípios e a dimensão de
selho Estadual de Cultura e respondia pelo setor. No entanto, Santa Catarina. Tal foi o objetivo da gestão em que estive na vice-
como a diretoria era quase toda de Florianópolis, acabava por -presidência da Aprodança, em parceria com Lisa Jaworski (2009-
não conseguir articular os municípios, principalmente os mais 2011), que foi a primeira presidente residente fora da capital, neste
distantes. Naquele momento, o Ministério da Cultura, através da caso, em Jaraguá do Sul. Ao manter a diretoria em outro municí-
Funarte, buscava os dados de cada estado brasileiro para o tra- pio além de Florianópolis, a associação ampliou o alcance de sua
balho das recém-criadas Câmaras Setoriais, da qual me tornei re- atuação. Pessoalmente acredito termos gerado resultados positi-
presentante da Dança de Santa Catarina. No primeiro momento, vos, posto que a organização seguiu forte com Agna Muller em
tinha que viajar a São Paulo para participar de videoconferência, Garopaba e, hoje, a associação mantém-se bastante atuante com
o que combinava com as visitas a minha família. Por meio da a representação de Maxwell Sandeer Flor, em Criciúma, junto ao
Aprodança, com a Vice-Presidente Andreza Martins, formamos vice Marco Aurélio da Cruz, em Blumenau.
Grupos de Trabalho voluntários para o levantamento dos dados
necessários.
Durante o Festival de Dança de Joinville de 2005, foi pro- PRODUÇÃO CULTUR AL, ALIANÇA FR ANCESA
gramado um encontro do Fórum Estadual de Dança de Santa Ca- E O MÚLTIPL A DANÇA
tarina, onde trouxemos o representante da Funarte, Marcos Mo-
raes, para explanação do funcionamento das Câmaras Setoriais, Não há como deixar de citar um importantíssimo trabalho
além da apresentação dos pré-projetos elaborados para lançamen- na produção cultural que exerci de 2001 a 2009 com o precioso
to de editais para a Dança. O encontro não teve um número de grupo musical Cravo-da-Terra, que com sua singeleza e especialís-
participantes suficiente para gerar um documento que oficializasse sima sonoridade alimentou e incentivou um caminho de investiga-
o estado de Santa Catarina dentro da política cultural nacional do ção na busca de estratégias de sobrevivência. Consolidado como
momento. No entanto, um texto sobre o contexto da dança em referência musical na cidade de Florianópolis, participei desta
Santa Catarina foi apresentado nas Câmaras Setoriais por mim no trajetória na produção das turnês pelo estado de Santa Catarina
dia 05 de julho de 2005. Tal texto consta no relatório completo e pelo Brasil, gravação e lançamento de dois CDs, além de me
acerca da construção do Plano Nacional de Dança, impresso em ocupar da identidade visual e do site, registro da marca e gestão
2010. Aliás, sublinho que tenho orgulho de ter participado desse de CNPJ. Apesar de não se firmar como rendimento financeiro
grupo, enquanto Câmara e Colegiado Setorial de Dança. Arrisco imediato, sempre brincava dizendo ser o meu melhor investimento

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para a aposentadoria, enquanto o grupo ia confirmando sua exce- para o sucesso do trabalho. Agora contratada e participante da
lência. O grupo participou do Projeto Prata da Casa do Sesc Pom- equipe da Aliança Francesa, propus a realização da ação Semi-
peia (SP), do Programa da TV Cultura Senhor Brasil apresentado nários de Dança Contemporânea e com seu incentivo, passamos
por Rolando Boldrin e do mapeamento do Programa Rumos do a trabalhar o financiamento para o projeto através da Lei Rou-
Itaú Cultural, constando da coletânea da edição 2007-2009. In- anet, captando o recurso junto à Tractebel e fechando parceria
felizmente, apesar da linda estrada, não escapou do destino fatal com o Sesc-SC.
de tantos outros: a dissolução. Considero Florianópolis um gran- Foi a partir daí que convidei Jussara Xavier para dividir a
de celeiro musical, com muitos grupos locais de excelência. Mas curadoria deste Seminário comigo, que aceitou e batizou o Múl-
a exemplo do que ocorre na dança, lembrando o Grupo Cena 11, tipla Dança – Seminário Internacional de Dança Contemporâ-
tais núcleos profissionais seguem subjugados a uma eterna carên- nea. Incluímos na programação convidados brasileiros e interna-
cia de política cultural estadual e municipal como apoio. Ainda cionais, abrangendo companhias de dança subvencionadas pelo
que o mercado da música florianopolitano esteja em crescimento, governo francês, como a Cie KassenK , de Osman Kassen Khelili
está muito aquém ao presumido para uma capital e ao mercado em 2006, e a Cie. À Fleur de Peau, de Denise Namura e Michael
existente nos grandes centros culturais do país. Bugdan em 2007. Também neste segundo ano recebemos Floren-
Por conta do grupo Cravo-da-Terra iniciei uma relação com cia Olivieri da Argentina.
a Aliança Francesa. O grupo havia sido aprovado para um Festival Após duas edições exitosas e fixando uma periodicidade
Universitário na França e necessitava de passagens aéreas interna- anual, fui aprovada pelo governo francês para participar do Séjour
cionais e, como produtora, recorri à diretora Annie Dubernet da Culture Danse, oferecido pelo Programme Courants Du Monde
Aliança Francesa de Florianópolis. Nossa simpatia mútua e admi- em 2007. Esta oportunidade idílica foi um divisor de águas na tra-
ração foi praticamente instantânea, e ela me propôs uma permu- jetória do Múltipla Dança, ao revelar a importância que ocupáva-
ta de trabalho para formatação dos projetos da Aliança Francesa mos no universo da dança internacional, e que eu sequer suspeita-
dentro da Lei de Incentivo à Cultura Federal em troca de uma va. Dentro deste novo entendimento, adequamos a denominação a
bolsa de estudos na própria instituição. Na época, eu trabalha- Múltipla Dança – Festival Internacional de Dança Cotemporânea.
va numa agência produtora de projetos culturais, formatava os Durante 3 semanas, acompanhada de uma experiente produtora
projetos do Cravo-da-Terra e as Oficinas de Verão da ONG Arte canadense e uma artista eslovaca, conheci os mais importantes
Movimenta ao lado de Neiva Ortega. Aceitei a proposta. centros de dança da França. A agenda já marcada previamente nos
Via de regra, o representante da França dentro da Asso- dava acesso aos responsáveis pelos teatros, centros coreográficos,
ciação de Cultura Franco-Brasileira (essa é a natureza jurídica centros de formação em dança e demais representantes institu-
das Alianças Francesas) é trocado a cada dois anos (com uma cionais das relações internacionais francesas, com muita genero-
possível prorrogação). Com a chegada do novo Diretor Frédéric sidade no fornecimento de dados, que me parecia inimaginável
Besnard, considero que ganhei outro grande prêmio no período. ao lançarmos o Múltipla Dança. Neste momento estava em curso
Seu perfil inovador e sua capacidade de gestão foram marcan- a organização do Ano da França no Brasil, fixada para 2009, e
tes para meu entendimento acerca de um trabalho em equipe então havia também uma agenda paralela ao lado de colegas par-
de forma horizontal, da importância em conhecer o papel a ser ticipantes brasileiros de outras instituições e áreas culturais, onde
desempenhado e seu limite e, ainda, da generosidade como chave fervilhavam contatos e articulações.

410 411
Como a parte financeira no co-financiamento destes eventos Tomei a tarefa com carinho, busquei cursar disciplinas
internacionais depende sempre do país homenageado, na prática, como aluna especial nas universidades: Política Cultural com Al-
não houve aumento de recursos neste ano comemorativo de 2009, fredo Manevy na graduação de Cinema da Universidade Federal
mas contamos com os participantes franceses Christophe Martin e de Santa Catarina (UFSC); Cidades: narrativas, fluxos e sentidos
Nathalie Pubelier. Já em 2008, tínhamos sofrido a perda da parceria no contemporâneo, ministrada pelo Prof. Dr. Emerson César de
financeira do Sesc-SC, o que mantinha sempre o eixo curatorial em Campos no Mestrado em História (Udesc). A comissão de reda-
constante alerta para a necessidade de flexibilização por conta de ção do Plano Municipal de Cultura foi incansável neste processo
orçamentos frustrados. No entanto, o rico compartilhamento que de elaboração. Também aconteceram reuniões expandidas para
reverberava a cada edição foi sempre muito estimulante, resultando, a definição dos primeiros editais do Fundo Municipal de Cultu-
inclusive, no Prêmio Cultura 2008, concedido ao Múltipla Dança ra lançado em 29 de março de 2011. Por esse trabalho, recebi o
pela Fundação de Cultura de Florianópolis Franklin Cascaes. Prêmio Franklin Cascaes em 2012, e é um troféu pelo qual tenho
Em 2011, por ocasião de mais uma troca de gestão da Aliança especial apreço.
Francesa, ocorreu minha saída da instituição e o Festival foi can- No papel de Presidente do CMPC, também compunha a or-
celado, mesmo com o patrocínio da CAIXA aprovado, por não se ganização da III Conferência Municipal de Cultura, que se reali-
alinhar às diretrizes da nova direção. Um ciclo parecia estar se fe- zou nos dias 19 e 20 de março de 2012, quando se deu a eleição do
chando. No entanto, a vitalidade do Múltipla Dança se apresentou novo grupo de Conselheiros. Exatamente na data de finalização
com uma potência extraordinária, a demanda pela sua continuida- do mandato, fui brindada pelo telefonema da Vara da Infância
de pulsava e em 2013, com a ONG Arte Movimenta, na pessoa de e Juventude da Comarca de Florianópolis, consultando-me sobre
Neiva Ortega na gestão administrativa, o projeto foi retomado com a conveniência de acolher as crianças que eu aguardava na lista
muita alegria. de adoção naquele momento. Respondi prontamente que era um
ótimo momento. Na realidade, eu estava recebendo seguro desem-
prego, mas a certeza da adoção era imperativa. Naquela semana
CONSELHO MUNICIPAL DE POLÍTICA CULTURAL eu também estava envolvida na Maratona Cultural de Florianó-
E CHEGADA DOS FILHOS polis como curadora de dança, mas a ansiedade de conhecer meus
filhos era tamanha que adoeci no segundo dia do evento, temerosa
Neste período de transição, eu ocupava o honroso posto de de não dar conta de aguardar três longos dias. Após duas visitas
primeira Presidente do Conselho Municipal de Política Cultural e um final de semana, eu me tornava mãe de Alexandre e Roger
de Florianópolis (CMPC). O Conselho foi criado em 2010 e tinha no dia 3 de abril. Confirmando o dito popular de que os “filhos
como representantes da Dança Sandra Meyer e eu. A este grupo já chegam com o pão debaixo do braço”, fui abençoada também
foi atribuída uma tarefa pioneira: elaborar a minuta do Plano Mu- com abundância de propostas de trabalho: Oficineira do Plano
nicipal de Cultura a ser enviado pela Gestão Municipal à Câmara Municipal de Cultura em São Bento do Sul; Produção da segunda
de Vereadores. Aproveitando este processo de abertura e, acompa- edição do evento da RBS Fronteiras do Pensamento; Palestrante
nhada de alguns conselheiros, partimos em Caravana por todos os no PIQUEARTE – Encontro de Arte para crianças do SEC-ES;
distritos de Florianópolis apresentando o recém-formado CMPC e Curadoria do Festival Internacional de Dança do Recife; Direção
o Sistema Nacional de Cultura. artística do espetáculo Aratemiolé de Luis Canoa e contratada

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temporária pela Projeta Planejamento e Marketing. Contei com de gestão que incluíam quebras de acordos pactuados e reformu-
muito apoio de amigos e vizinhos e passados oito anos de mater- lação de projetos de continuidade. O impacto era forte e o estilo
nidade, compreendo a lógica perfeita do fechamento dos ciclos de Moukarzel propunha a desconstrução do estabelecido para a
anteriores para dar conta do processo de adaptação, que em todos solução de antigas questões. Seu programa gestor era auspicioso
os casos é sempre desafiador. e apresentou resultados concretos, como a criação da Secretaria
O ano encerrou com o surpreendente convite para integrar Municipal de Cultura e a Escola Livre de Música. Rendo aqui
a equipe da nova gestão da Fundação Cultural de Florianópolis meu reconhecimento, não só por estes feitos, mas principalmente
Franklin Cascaes, na função de Diretora de Artes. Havia traba- pelo enorme aprendizado sobre gestão pública que Moukarzel me
lhado com Luiz Ekke Moukarzel na Aliança Francesa de Florianó- proporcionou ao lado da advogada Dra. Eliane E. Machado Pa-
polis, ele na produção do Múltipla Dança e eu como produtora do checo, que além de capaz, foi uma das pessoas mais generosas que
Festival de Música Contemporânea, que ele dirigia. No momento já conheci.
em que ele foi convidado pelo Prefeito eleito Cesar Souza Júnior O fato é que cada novo projeto acumulava um número in-
para ocupar o cargo de Superintendente da Fundação Cultural de findável de tarefas administrativas acrescidas às funções da nova
Florianópolis Franklin Cascaes, apresentou como condicionante Secretaria de Cultura, sem novos funcionários. Juntava-se, por
para aceitar o convite, poder levar consigo uma equipe técnica e, exemplo, a constituição da nova plataforma ID Cult aos entra-
por esse motivo, apontou meu nome. ves cotidianos de funcionamento do paquidérmico poder público,
com outras funções como a capacitação e o trabalho na comissão
de prestação de contas, a participação na Comissão Gestora do
PASSAGEM PEL A GESTÃO PÚBLICA Fundo Municipal de Cultura, a presidência nas comissões organi-
zadoras das Conferências de Cultura (2013, 2014 e 2015).
A partir de 1o de janeiro de 2013, iniciei este novo desafio, que O principal conhecimento que restou da experiência foi o
eu recebia com muita gratidão por me tornar capaz de cumprir com desvendar do universo paralelo que constitui a esfera política den-
meu papel de mãe de dois meninos. Parecia-me coerente pelo histó- tro da administração pública, que suspeitamos ao ver os notici-
rico recente de experiências dentro das políticas culturais, além da ários, especialmente na esfera federal. Somente na prática pude
simpatia pelos funcionários da Fundação, que sempre me haviam conhecer a predominância deste sistema de negociação de cargos,
recebido muito bem. Minhas funções abarcavam a coordenação de pois me descobri como única comissionada não apadrinhada por
equipamentos culturais – Teatro da UBRO, Centro Cultural Bento um vereador. Aliás, me sentia realmente avis rara dentro do con-
Silvério (composto pela Casa das Máquinas e Casarão das Rendei- texto, pois além de não atender este aspecto dos demais funcio-
ras) e Galeria Pedro Paulo Vecchietti, e das linguagens de Artes Vi- nários ocupantes de cargos de confiança, também frustrava as
suais, Teatro, Dança, Música e Literatura. Nesse contexto, eu con- servidoras nas demandas administrativas pessoais. Sentia que não
tava somente com técnicas de Artes Visuais e Teatro no quadro de atingia toda a eficiência que me era exigida pelo Secretário que por
servidoras. A carga de trabalho estava fora de qualquer perspectiva sua vez, tinha uma outra infindável lista de demandas dentro do
humana de realização e seguiria se multiplicando para sempre. colegiado da Prefeitura como um todo.
Havia uma grande expectativa por mudanças e elas rapida- Não quero com este relato dar um tom dramático à experi-
mente iniciaram pela mudança de prédio, seguida pelos choques ência dentro da gestão pública, mas não posso esconder a constan-

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te angústia de estar ocupando um posto que supostamente deveria conta das poucas oportunidades de trabalho. Usufruía com muita
atender a população em geral, assessorar artistas e grupos cultu- alegria, no entanto, da deliciosa casa que habitei em companhia
rais, apoiar as equipes de trabalho e tramitar administrativamente dos filhos e do estilo de vida que tanto amava como moradora
as melhorias dos equipamentos junto aos gerentes, e na realidade do Campeche, junto à praia. Retornei à minha primeira profissão
sentir-se impotente para cumprir cada um desses atos, devido ao como professora de piano (prática iniciada aos 13 anos), dando
crescente engessamento legal e os sucessivos cortes orçamentários. aulas particulares e, ainda, tentei sobreviver prestando serviços
Com tudo isso, tenho orgulho de ter, ao lado de Felipe Moritz, na formatação de projetos. No início do ano seguinte, com o re-
implantado a Escola Livre de Música, que funcionou por 3 anos torno do meu ex-aluno de dança, que foi também protagonista do
trazendo muita alegria. A realização dos projetos permanentes ge- espetáculo Marina, o qual era o proprietário da bela casa em que
renciados por Sandra Nunes e Sulanger Bavaresko, como o Festi- morava, foi chegando o momento de deixar o quebrar das ondas e
val Isnard de Azevedo, as melhorias da Galeria Pedro Paulo Vec- retornar à força da cidade que “ergue e destrói coisas belas”.
chietti também foram conquistas incontestáveis. Ainda, as pautas Foi nesse momento que aconteceu a edição do Múltipla Dan-
da Casa das Máquinas e do Teatro da UBRO e a viabilização de ça em 2017, quando restou somente o patrocínio da CAIXA, com
projetos dos próprios servidores no Casarão Bento Silvério foram um montante reduzido e, sendo assim, recorremos à prática da
bem sucedidos. Ou seja, houve momentos de muita plenitude. Na economia solidária para sua realização. Se por um lado vivemos
área da Dança, consegui dar continuidade à Bienal de Dança em a frustração de perda de potência enquanto atores na economia
2014, encampando por conta, o que trazia um certo risco naquele da cultura, que é um dos objetivos dos festivais por definição, por
momento controverso politicamente. Outro grande parceiro que outro, vivenciamos o acolhimento tão especial de todos que abra-
tive foi o Secretário Adjunto, Pedro Almeida, que apesar de jovem, çaram as limitações desta edição, o que foi para mim comovente.
demonstrou ser muito ético. Neste sentido, é realmente consola- Acredito que a permanência e longevidade do Múltipla Dança se
dor comprovar que indivíduos indicados politicamente para car- deve em grande parte a esta rede de afetos, que foi tecida em sua
gos públicos podem ser comprometidos e trabalhar coerentemente trajetória. Lidar neste momento com todo o acervo das 10 edições
com os propósitos para os quais foram designados. realizadas, ao organizar muitas fotos, filmagens e documentos,
Com tudo isto, a minha atuação no Múltipla Dança preci- compartilhar tantas vivências, só reforça o meu profundo senti-
sava de ajustes para atender integralmente às suas necessidades mento de gratidão. Leio anotações do registros da última reunião
de realização. Com muita alegria foi se formando uma equipe de avaliação com a equipe, onde previmos a edição de 03 a 07 de
articuladora do Festival com Neiva Ortega, Néri Pedroso, Paula julho de 2018, mesmo se minha partida de Florianópolis já tivesse
Albuquerque e Jussara Xavier. Como um time, nos reuníamos pe- data marcada.
riodicamente para pensar e planejar o encontro. Meu sentimento Finalizo essa carta com o coração cheio de saudades man-
íntimo era de que o Festival ganhara vida própria e muitas vezes dando lembranças, preciosas lembranças, recheadas de afetos co-
encontrava suas próprias saídas, principalmente por meio deste lecionados em todas edições, que só pedem mesmo celebração. E
fenômeno de apoio coletivo, chegando mesmo a surpreender. estou certa de que Neiva Ortega, de onde está, brinda conosco!
Em 2016, com minha exoneração da Fundação Franklin
Cascaes, teve início a corriqueira impermanência que reina na
vida dos trabalhadores das artes e cultura em Florianópolis, por

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NEIVA ORTEGA (SP, 11 ago. 1951 – SC, 23 out. 2018) exerceu os papéis de EPÍLOGO
Coordenadora administrativa e produtora executiva no Múltipla Dança Uma homenagem a Neiva Ortega
– Festival Internacional de Dança Contemporânea desde 2013. Manezi-
nha de coração, filha de pais espanhóis, 10 irmãos, dois filhos. Morou
durante 26 anos em Santa Catarina (SC), sendo 19 em Florianópolis.
Atuou como atriz, cantora, produtora e gestora organizacional cultural.
Formada como Psicóloga Organizacional, com Pós-Graduação em Tu-
rismo e Hotelaria. Foi Facilitadora Cultural Nacional pela FGV/MinC/
SEFIC e Coordenadora da Rede das Culturas Populares – Território SC.
Articulou, pela REDE Nacional Cultura Popular, a criação e instalação
do Fórum da Setorial Permanente das Culturas Populares e Tradicionais
de Florianópolis (SC). Como suplente no Conselho de Políticas Culturais,
organizou o conteúdo da Proposta de Lei relacionada aos Mestres dos
Saberes de Florianópolis. Trabalhou em empresas privadas como Rede
Globo e Beto Carrero World, e instituições públicas, como Fundação
Catarinense de Cultura (FCC). Na Gerência de Música da FCC, atuou
na Gestão do Programa Nacional de Bandas da Funarte/Ministério da
Cultura. Exerceu um papel fundamental para o desenvolvimento de po-
líticas culturais públicas no Estado. Participou na l, ll e lll Conferência
Nacional de Cultura (CNC), como delegada por SC, cooperando com
subsídios importantes na estruturação das políticas públicas municipais,
estaduais e nacional. Integrou a Equipe técnica da Comissão Executiva
Nacional da II CNC-MinC, em Brasília/DF. No Terceiro Setor, foi só-
cia-fundadora e gestora da ONG Arte Movimenta, desenvolvendo inú-
meras ações, com destaque às atividades ligadas às Culturas Populares
e Tradicionais; em grupos,como a companhia de dança Lápis de Seda; e
em eventos, como o Múltipla Dança.

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[2] [4]

(1) Neiva Ortega, 2017


Foto: Cristiano Prim

(2) Fabio Dudas, Paula


Albuquerque, Marta Cesar,
Ida Mara Freire, Neiva Ortega,
Néri Pedroso e Jussara Xavier.
Teatro Pedro Ivo, Edição 2017.
Foto: Cristiano Prim

(3) Neiva Ortega com equipe


e visitantes da exposição
O Fotógrafo Também Dança,
de Cristiano Prim. Floripa
Shopping, Edição 2017. Foto:
Gisele Martins Prim

(4) Walter Fabiano Janson,


Marta Cesar, Neiva Ortega,
Jussara Xavier, Paula
Albuquerque e Ida Mara Freire
Teatro Pedro Ivo, Edição 2017.
[3] Foto: Cristiano Prim

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NÉRI PEDROSO – Jornalista. Desde 2013, faz parte LÍRIO DA PAZ, O GESTO DA DELICADEZA
da equipe técnica do Múltipla Dança – Festival Néri Pedroso
Internacional de Dança Contemporânea como  
assessora de imprensa. Autora dos livros Hassis
(Tempo Editorial) e Coletiva de Artistas de Join-
ville: construção mínima de memória (FCJ) e de Não lembro como conheci a Neiva. Não importa muito,
Superlativa Marina (Instituto Juarez Machado). porque o mais relevante foi todo o resto, sobretudo o convívio e o
Assina artigo nos livros Tubo de Ensaio – Com- trabalho conjunto. No entanto, a memória mais remota que tenho
posição [Interseções + Intervenções], Percurso do dela é quando estava envolvida na gestão pública, na gerência de
Círculo – Schwanke Séries, Múltiplos e Reflexões música na Fundação Catarinense de Cultura (FCC) e no extinto
(Contraponto), e é uma das organizadoras do li- Ministério da Cultura (MinC) no Programa Nacional de Bandas
vro Interlocuções Possíveis: Kosuth e Schwanke da Funarte, no qual desenvolveu oficinas e cursos de gestão da
(Instituto Schwanke). Integra a Associação Brasi- corporação musical em Santa Catarina que resultou como modelo
leira de Críticos de Arte (ABCA). para criar o Painel Funarte de Bandas de Música.
Mulher de personalidade forte, muito aprendi com ela que
formulou, em 2016, o convite para integrar a equipe da Compa-
nhia de Dança Lápis de Seda, o que sempre considerei um presente
PAULA ALBUQUERQUE – Designer gráfica e jor- por ter resultado numa experiência transformadora. Na época já
nalista com foco em projetos culturais. Assina a estávamos envolvidas pelo Festival Múltipla Dança, onde comecei
identidade visual e os materiais gráficos do Múl- em 2013.
tipla Dança – Festival Internacional de Dança Difícil definir alguém tão exuberante, sinto que não seria ca-
Contemporânea (2007-2021), FITA – Festival In- paz, razão pela qual opto aqui por um depoimento distanciado da
ternacional de Teatro de Animação (2019), Fidé rica experiência profissional. Deixo a memória ao sabor de fatos
Brasil – Festival Internacional do Documentário engraçados, de muita gargalhada, de discussões difíceis às vezes,
Estudantil (2012-2021), projeto (A)Gentes do de uma mulher que sabia articular e aproximar as pessoas num
Riso (2016-2021), Festival de Música Contempo- amplo espectro de atuações, múltipla que era não só no universo
rânea Aliança Francesa (2008-2010), Orquestra cultural. Suas crenças e espiritualidade abarcam um volume sem
Filarmonia Santa Catarina (2010-2014), além de fim de interlocutores e admiradores.
projetos de livros de arte, fotografia e literatura, Não nos despedimos no último encontro, às vésperas da ci-
revistas, catálogos de exposições, CDs, peças rurgia que a levou para outro plano. Estávamos certas de breve
gráficas para espetáculos teatrais, shows, even- reencontro. Lamentei sua morte, muito, mas não há em mim o
tos, entre outros. Membro do Comitê Cultural da doloroso atravessamento do luto, aquela tristeza sem fim. Sinto
Aliança Francesa de Florianópolis (2005-2008) e sua significativa presença ainda latente nos gestos de afeto, tão
do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Barca dos marcantes em Neiva. Certa vez, num encontro de trabalho, trou-
Livros (NEP), em Florianópolis-SC (2018-2020). xe para presentear uma pequena planta, um lírio da paz branco.

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Hoje, a plantinha bem maior, dá flores na minha sala, onde as PRESENTE
espécies ganham nome de gente: Neiva, Mísia, Dona Maria. Na Paula Albuquerque
minha emoção, Neiva está ali, linda e muito viva em nossa comu-
nicação quase diária.

A presença da Neiva sempre foi muito marcante, com aquela


sua risada superlativa maravilhosa, seus cabelos flamejantes e seu
olhar azul intenso. Me corrijo: a presença da Neiva é, no presente,
porque ela segue por perto, nas memórias e conquistas das tantas
batalhas que encampou pela cultura em Santa Catarina, nas inú-
meras realizações como produtora e gestora de cultura. 

A Neiva me foi apresentada por um amigo em comum, e


pouco tempo depois trabalhamos juntas em uma atividade do
Projeto Bandas SC, realizado pela Funarte e Ministério da Cul-
tura, que tinha como objetivo capacitar e ampliar a circulação
das bandas de música civil, militar e escolar (fanfarras) do esta-
do. Aquela pequenina se desdobrava em mil, sempre muita atenta
aos detalhes administrativos dos projetos em que estava envolvida,
mas também aos detalhes afetivos. Nos anos em que trabalha-
mos juntas no Múltipla Dança – Festival Internacional de Dança
Contemporânea, sempre me cativou sua atenção para as pequenas
delicadezas, como um chocolatinho para a equipe, uma flor ou
um presente para a/o artista homenageada/o na edição do festival. 

Na cerimônia em ocasião à sua partida, realizada no Centro


Integrado de Cultura, foi lindo ver grupos tão diversos reunidos
para celebrá-la: estavam lá os companheiros da umbanda, familia-
res, amigos e colegas da dança, da música, das artes visuais. Nun-
ca me esquecerei das lágrimas e do abraço coletivo dos bailarinos
da Companhia de Dança Lápis de Seda, para quem a Neiva era
uma gestora e amiga muito especial. Todos ali vibrávamos aquela
mesma saudade e admiração. Obrigada por tudo, Neiva querida.

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LEGENDAS
(1) Jussara Xavier e Marta Cesar
(2) Cristiano Prim
(3) Rui Moreira
(4) Inês Bogéa
(5) Ana Luiza Ciscato
(6) Cláudia Müller
(7) Isabel Marques
(8) Neiva Ortega e Paula Albuquerque
(9) Marta Cesar
(10) Manoel J. de Souza Neto
(11) Andréa C. Scansani
(12) Vanilton Lakka
(13) Lilian Vilela
(14) Marila Velloso
(15) Ana Maria Alonso Krischke
(16) Olga Gutiérrez
(17) Néri Pedroso
(18) Sandra Meyer
(19) Thembi Rosa
(20) Ida Mara Freire
(21) Fabio Dudas, Paula Albuquerque, Jussara Xavier,
Neiva Ortega, Marta Cesar, Néri Pedroso e Ida Mara Freire

Todas as fotos: Cristiano Prim | Acervo Múltipla Dança,


exceto (2): Gisele Martins Prim; (8): Fabio Dudas;
(10): Digão Duarte; (14): Filipe Britto; (17): Franzoi

1a edição, 2020
Esta obra foi composta em Sabon LT Std, Ropa Sans e
PT Sans na primavera de 2020 e lançada no verão de 2021.
Projeto realizado pelo Governo do Estado de Santa Catarina, por meio da Fundação Catarinense de
Cultura (FCC), com recursos do Prêmio Elisabete Anderle de Apoio à Cultura ∕ Artes – Edição 2019.

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