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TEOREMA 29
Jean-Claude Bernardet* e Marcelo Pedroso* tal desrespeito. Talvez esteja no próprio dispositivo
que consiste em montar documentos que provêm
12/01/2011 da intimidade, de organizar um espetáculo com isso,
Pacific – 1 de expor as pessoas à espetacularidade enquanto os
filminhos teriam sido feitos para se divertir na família e
Marcelo Pedroso e eu trocamos várias mensagens entre amigos – mas os filminhos foram cedidos.
sobre o filme dele: PACIFIC. Mas podemos levantar outra hipótese: o que torna
brega e desrespeitoso o filme seria o próprio olhar das
De JCB a Marcelo Pedroso (09.11.2010) pessoas que o acusam de faltar à ética. São todas elas
pessoas cultas, de bom gosto e com boa imagem de si
Marcelo mesmas. Se elas vissem o material bruto, o achariam
Te escrevo para te colocar uma dúvida em relação ao provavelmente brega e ridículo. Mas como o vêem
Pacific. através do filme, atribuem o olhar superior e julgador ao
Não sei se você já ouviu este comentário, eu ouvi filme e não a si mesmas.
de pessoas diferentes mas todas pertencentes mais
ou menos ao mesmo meio (professores, cineastas): o
filme olharia com superioridade as pessoas que fizeram
os filminhos e que aparecem neles. Haveria um olhar
que deixaria essas pessoas um pouco ridículas, o filme
proporia que se olhe o brega com ironia, proporia que
nós nos divirtamos às custas dessas pessoas. Se colocaria
então um problema ético por falta de respeito a essas
pessoas.
Devo reconhecer que de vez em quando me senti um
tanto invasivo em relação à vida dos outros, desses outros.
Mas eu não consigo concordar com essa falta
de ética. Ela não provém de palavras já que não há
comentário over. Então estaria na seleção e montagem.
Revejo agora trechos do filme e não consigo captar
em que momento, em que procedimento estaria
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Quando essas mesmas pessoas vêem filminhos de alguma forma, as imagens me enterneceram e eu
família dos anos 20... 50-60, que não são menos brega passei a reconhecer ali, naquele imaginário extasiado,
nem menos ridículos, elas não os acham brega porque o elementos que dizem respeito à nossa própria
tempo deixou uma pátina que elas respeitam, portanto constituição enquanto pessoas, a aspectos os mais
os filmes já viraram documentos dignos de respeito e de frágeis de nossa formação.
estudo. Acho que a partir daí a montagem do filme ganhou uma
As pessoas sempre atribuem todas as características à certa ambiguidade que julgo muito salutar e que talvez
obra e nunca questionam seu próprio olhar e sua relação corresponda a meu ponto de vista sobre o objeto do
com a obra. Como se ainda estivéssemos no século XIX. documentário (ressalvando aqui o quanto é difícil para
Acho que quem acusa o filme de ter um olhar mim falar de “objeto” no Pacific, por entender que não
superior simplesmente não consegue perceber que se trata de algo facilmente centralizável).
as pessoas que fazem o cruzeiro estão se divertindo, A grande questão que se colocaria para mim então:
curtindo e curtindo inclusive os equipamentos que a seria possível ao filme referendar a expressão subjetiva
moderna indústria de consumo coloca a seu alcance. dos personagens, endossar e compartilhar de sua
Você já teve a oportunidade de discutir esse assunto? experiência de vida, dividir com eles a alegria genuína
O que você acha? dos momentos vividos, mas ao mesmo tempo se
Um abraço, manter crítico a alguns valores ali expressos, à fórmula
Jean-Claude de felicidade irrefletida e compulsória oferecida pelo
navio, à espetacularização das relações sociais e outras
Escrito por Jean-Claude Bernardet às 15h18 questões mais?
Esse pra mim foi o cerne do delicado trabalho de
13/01/2011 montagem do filme. Cheguei a ter um primeiro corte
Pacific – 2 em que, ao rever, senti uma mão muito pesada, senti
que os personagens ficavam muito expostos. Refiz
De Marcelo Pedroso a JCB (18.11.2010) completamente a estrutura do filme para chegar ao que
seria para mim um estado de equilíbrio.
Bom dia, Jean-Claude. Tudo bem? Então, existe um olhar que se sobrepõe aos outros?
Peço desculpas pela demora em responder, mas estava Sim, o meu. Mas não concordo que seja um olhar
realmente com acesso à internet muito restrito enquanto meramente detrator, que queira expor os personagens
viajava. ao ridículo. De forma alguma, para mim é um olhar
Mas vamos lá... que cultiva o afeto e ao mesmo tempo pretende
A questão ética tem regido sim alguns debates problematizar algumas questões. Eu me reconheço
em torno do filme e, embora eu considere um tema no Pacific, de alguma maneira, eu estou ali tomando
importantíssimo, fico um pouco chateado quando ele caipirinhas na festa tropical ou tirando fotos das
se sobrepõe a outras questões que julgo igualmente tartaruguinhas em Noronha. Isso faz parte de minhas
pertinentes. Mas de uma forma geral, poderia te dizer referências de mundo, eu cresci nesse meio, em bailes
o seguinte: o filme se propõe, sim, a lançar um olhar de debutantes e festas de formaturas orquestradas pelas
sobre o olhar dos personagens, sobre sua vivência mesmas músicas que estão no filme, as mesmas pessoas,
de mundo que se manifesta através das imagens que meus vizinhos, meus parentes, eu mesmo...
realizam. E, neste sentido, enquanto diretor do filme, E esse pertencimento me coloca numa situação
estou necessariamente ocupando um espaço de poder, delicada para olhar para aquela realidade. O que procurei
já que fui eu quem organizei toda a narrativa e discurso fazer da maneira mais coerente possível.
do documentário. E eu fiz isso, deliberadamente, à Sobre suas hipóteses com relação ao que provocaria
revelia dos personagens, não se trata de um filme de a acusação de falta de ética no filme, devo dizer
colaboração ou participação, mas da forma como eu, que concordo com todas: a “evasão de privacidade”
pessoalmente, enxergo aquele mundo a partir das proporcionada por imagens que talvez não tenham
imagens que me chegaram. sido feitas para serem vistas daquela forma causam
Mas posso te dizer que isso não foi fácil e que sim um certo constrangimento. Mas eu propus o
executei essa tarefa como num exercício de arriscado jogo e os personagens toparam. Mandei o filme para
funambulismo. Isso porque, se em sua gênese, o todos eles depois que ficou pronto, a maioria nunca
projeto tinha uma inclinação muito forte à crítica, a respondeu, mas alguns se mostraram grandes entusiastas,
questionar os valores da classe média e seus excessos, defendendo o documentário inclusive em redes sociais
isso foi se transformando ao longo do processo. De da internet.
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Pequeno turista aproveitando a terceira fase do capitalismo
Também concordo que a extrema atualidade das auto-irônica, não é uma simples reprodução do clichê.
imagens, que foram feitas no ano passado e não nos Está mais para uma apropriação dele, com vistas a uma
nostálgicos anos 70 registrados pelo super-8, causa uma diversão espontânea. E neste sentido, também concordo
certa dificuldade. Imagens antigas, sobre as quais o com você quando você diz que o ridículo pode estar nos
tempo já agiu com um certo verniz embalsamador e que olhos de quem vê, da maneira como olha. Não quero
agregam o artifício da memória, se tornam mais fáceis com isso isentar o filme. Pelo contrário, assumo minha
até pelo distanciamento contido nesse processo. posição de observador daquilo tudo, mas acho que
Mas o que tenho achado muito legal nesses debates precisamos ficar atentos para como olhamos para os
sobre o Pacific, sempre que essa questão da ética e fatos.
do ridículo vêm à tona, é a possibilidade de realizar Enfim... acho que teria muita coisa a falar ainda, mas
um exercício singular de olhar para o outro e para si não quero prolongar tanto o email, até porque gostaria
próprio. Precisamos entender os personagens do filme de te enviar também um texto sobre o filme. Trata-se
dentro da excepcionalidade do momento que eles estão de um artigo de André Brasil que problematiza essas
vivendo. São férias de gente que passou o ano inteiro questões e algumas outras com bastante sobriedade. Eu
pagando prestações para estar no navio. Estão realizando pedi a ele permissão para enviar o artigo (que ainda não
um sonho e querem levar o aproveitamento disso ao foi publicado) e ele topou, mas pediu encarecidamente
paroxismo. Isso é um momento de exceção na vida que não o divulguemos para mais ninguém. Está em
deles, não seria presunçoso julgá-los? E o quanto de nós anexo.
mesmo há ali dentro? Um forte abraço e muito obrigado por suas generosas
O valor de ridículo é algo socialmente construído. considerações sobre o filme. Repito o quanto teus
O que é ridículo para nós certamente não o é para os escritos foram importantes para minha formação e para a
personagens do filme. Ou talvez também o seja, mas própria gênese do Pacific.
neste caso eles me parecem bem conscientes e auto-
paródicos dos momentos que estão vivendo. Como uma Marcelo Pedroso
encenação de Titanic no convés do navio. É claramente
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Escrito por Jean-Claude Bernardet às 14h13
14/01/2011
Pacific – 3
Marcelo,
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Desejo de reconhecimento e visibilidade
das imagens da contemporaneidade. Acredito que, no Mas bem, mudando um pouco de assunto, quanto
Pacific, as imagens vêm carregadas desse espírito, mas à possibilidade de postar no blog as três primeiras
que, no fim das contas, acabariam mesmo adormecidas mensagens, acho muito bom. Sou leitor regular de teus
numa gaveta, não chegariam a ser editadas. Quando textos e eles sempre me proporcionam boas reflexões.
muito, seriam retomadas daqui a dez ou vinte anos, Se as questões em torno do Pacific puderem servir a isso,
num momento de redescoberta ou lembrança para os acho ótimo! :)
personagens. [...]
Porém, mesmo que ontologicamente não fossem Bem, vou indo lá e te deixo com meus votos de boas
destinadas ao Facebook, elas carregam esse estatuto, festas de fim de ano!
que se tornou uma espécie de traço da nossa
contemporaneidade. Ou seja, acredito que as imagens Um abração,
traduzem o desejo de reconhecimento e visibilidade dos Marcelo Pedroso
personagens, mesmo que eles não fossem, de fato, postá- Escrito por Jean-Claude Bernardet às 13h37 T
las nas redes sociais. Mas de alguma forma, a simples
existência das redes sociais já condicionam a existência * Crítico de cinema, autor de Cineastas e Imagens
das imagens, já as incita. do Povo e O Autor no Cinemae integrante da
Outra questão que acho cabível está ligada ao exercício diretoria da ABRACCINE – Associação Brasileira
lúdico de fazer imagens. Se antes havia limitações de Críticos de Cinema
financeiras para se produzir imagens (negativos, revelação,
equipamentos mais caros etc), hoje não há restrições ** Cineasta, diretor de Pacific
dessa natureza. Então, pode-se filmar o tempo inteiro
e a câmera se torna quase que uma interlocutora com
o mundo real, através da qual seus portadores podem 1
BERNARDET, Jean-Claude; COELHO, Teixeira. Os Histéricos –
criar personagens (à frente ou atrás das objetivas) e Uma Novela. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
exercer diferentes identidades sem muita seriedade ou
compromisso com o que quer que seja, senão a livre
fabulação. E neste jogo, a câmera se torna uma espécie
de ativadora de realidades, pois passa a agenciar um
repertório cultural que talvez não estivesse evidente ali.
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