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Pacific: imagens que provêm da intimidade transformam-se em espetáculo

Pacific (2009) é um documentário de 72 minutos que


acontece em alto mar. O diretor Marcelo Pedroso integrou-se
em um cruzeiro a Fernando de Noronha, do tipo a que nos
habituamos chamar de “turismo CVC”, por atingir brasileiros
de classe média que alcançam o sonho de viajar em suaves e
infindáveis prestações. Marcelo montou as imagens captadas
por um grupo deles. Desde que lançado nos festivais, Pacific
Crítica epistolar vem repercutindo na crítica jornalística e na acadêmica. Só
na academia, basta lembrar que foi tema de pelo menos três
pacífica trabalhos apresentados no último Encontro da Sociedade
Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine), realizado
no Recife, e fez parte da programação da Bienal de São Paulo
Este é um texto diferente dos que Teorema costuma publicar. de 2010. Por que? Jean-Claude Bernardet e Marcelo Pedroso
Aliás, diferente do que qualquer revista impressa costuma ajudam a responder.
publicar, pois se trata da reprodução de mensagens no blog O texto a seguir, uma espécie de “crítica epistolar” a fazer
do crítico Jean-Claude Bernardet (com a devida autorização). companhia ao melhor da literatura epistolar – incluindo o livro
Mensagens que ele trocou entre 2010 e 2011 com o diretor Os Histéricos, parceria entre Bernardet e Teixeira Coelho1 –,
do documentário Pacific, Marcelo Pedroso. Na origem, as está publicado em ordem cronológica, ou seja, na ordem invertida
mensagens foram enviadas por e-mail, ou seja, era uma conversa da que aparece no blog.
privada, que o próprio Bernardet postou mais tarde no blog Jean-Claude Bernardet dá início à troca de mensagens
antevendo a importância do debate travado por ele e Marcelo e afirmando que a questão ética que emerge do filme não está no
que não deveria ficar só entre eles dois. Uma rica troca de ideias autor ou no personagem, mas na recepção. É o público que parte
em torno dos temas que mais problematizam o documentário de um olhar superior e o ridículo e o brega das imagens estaria
contemporâneo: a redefinição de autoria, de encenação e as mais nos olhos de quem vê.
implicações éticas por trás de tudo. Marcelo defende ter desenvolvido um olhar que se sobrepõe
E como, também, a questão do dispositivo é crucial, aos outros, que é o dele. No entanto, lembra que ele mesmo de
alterando a gênese do texto, este debate no papel, com a certo modo pertence àquele universo do filme. Bem, mas o que
perenidade que gostamos de acreditar que o papel tem, pode isto quer dizer fica por conta do leitor, a ponta deste intrincado
ganhar novos leitores e render outras reflexões. emaranhado de olhares. (Ivonete Pinto)

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Jean-Claude Bernardet* e Marcelo Pedroso* tal desrespeito. Talvez esteja no próprio dispositivo
que consiste em montar documentos que provêm
12/01/2011 da intimidade, de organizar um espetáculo com isso,
Pacific – 1 de expor as pessoas à espetacularidade enquanto os
filminhos teriam sido feitos para se divertir na família e
Marcelo Pedroso e eu trocamos várias mensagens entre amigos – mas os filminhos foram cedidos.
sobre o filme dele: PACIFIC. Mas podemos levantar outra hipótese: o que torna
brega e desrespeitoso o filme seria o próprio olhar das
De JCB a Marcelo Pedroso (09.11.2010) pessoas que o acusam de faltar à ética. São todas elas
pessoas cultas, de bom gosto e com boa imagem de si
Marcelo mesmas. Se elas vissem o material bruto, o achariam
Te escrevo para te colocar uma dúvida em relação ao provavelmente brega e ridículo. Mas como o vêem
Pacific. através do filme, atribuem o olhar superior e julgador ao
Não sei se você já ouviu este comentário, eu ouvi filme e não a si mesmas.
de pessoas diferentes mas todas pertencentes mais
ou menos ao mesmo meio (professores, cineastas): o
filme olharia com superioridade as pessoas que fizeram
os filminhos e que aparecem neles. Haveria um olhar
que deixaria essas pessoas um pouco ridículas, o filme
proporia que se olhe o brega com ironia, proporia que
nós nos divirtamos às custas dessas pessoas. Se colocaria
então um problema ético por falta de respeito a essas
pessoas.
Devo reconhecer que de vez em quando me senti um
tanto invasivo em relação à vida dos outros, desses outros.
Mas eu não consigo concordar com essa falta
de ética. Ela não provém de palavras já que não há
comentário over. Então estaria na seleção e montagem.
Revejo agora trechos do filme e não consigo captar
em que momento, em que procedimento estaria

Olhar o brega com ironia e em


baixa resolução...

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Quando essas mesmas pessoas vêem filminhos de alguma forma, as imagens me enterneceram e eu
família dos anos 20... 50-60, que não são menos brega passei a reconhecer ali, naquele imaginário extasiado,
nem menos ridículos, elas não os acham brega porque o elementos que dizem respeito à nossa própria
tempo deixou uma pátina que elas respeitam, portanto constituição enquanto pessoas, a aspectos os mais
os filmes já viraram documentos dignos de respeito e de frágeis de nossa formação.
estudo. Acho que a partir daí a montagem do filme ganhou uma
As pessoas sempre atribuem todas as características à certa ambiguidade que julgo muito salutar e que talvez
obra e nunca questionam seu próprio olhar e sua relação corresponda a meu ponto de vista sobre o objeto do
com a obra. Como se ainda estivéssemos no século XIX. documentário (ressalvando aqui o quanto é difícil para
Acho que quem acusa o filme de ter um olhar mim falar de “objeto” no Pacific, por entender que não
superior simplesmente não consegue perceber que se trata de algo facilmente centralizável).
as pessoas que fazem o cruzeiro estão se divertindo, A grande questão que se colocaria para mim então:
curtindo e curtindo inclusive os equipamentos que a seria possível ao filme referendar a expressão subjetiva
moderna indústria de consumo coloca a seu alcance. dos personagens, endossar e compartilhar de sua
Você já teve a oportunidade de discutir esse assunto? experiência de vida, dividir com eles a alegria genuína
O que você acha? dos momentos vividos, mas ao mesmo tempo se
Um abraço, manter crítico a alguns valores ali expressos, à fórmula
Jean-Claude de felicidade irrefletida e compulsória oferecida pelo
navio, à espetacularização das relações sociais e outras
Escrito por Jean-Claude Bernardet às 15h18 questões mais?
Esse pra mim foi o cerne do delicado trabalho de
13/01/2011 montagem do filme. Cheguei a ter um primeiro corte
Pacific – 2 em que, ao rever, senti uma mão muito pesada, senti
que os personagens ficavam muito expostos. Refiz
De Marcelo Pedroso a JCB (18.11.2010) completamente a estrutura do filme para chegar ao que
seria para mim um estado de equilíbrio.
Bom dia, Jean-Claude. Tudo bem? Então, existe um olhar que se sobrepõe aos outros?
Peço desculpas pela demora em responder, mas estava Sim, o meu. Mas não concordo que seja um olhar
realmente com acesso à internet muito restrito enquanto meramente detrator, que queira expor os personagens
viajava. ao ridículo. De forma alguma, para mim é um olhar
Mas vamos lá... que cultiva o afeto e ao mesmo tempo pretende
A questão ética tem regido sim alguns debates problematizar algumas questões. Eu me reconheço
em torno do filme e, embora eu considere um tema no Pacific, de alguma maneira, eu estou ali tomando
importantíssimo, fico um pouco chateado quando ele caipirinhas na festa tropical ou tirando fotos das
se sobrepõe a outras questões que julgo igualmente tartaruguinhas em Noronha. Isso faz parte de minhas
pertinentes. Mas de uma forma geral, poderia te dizer referências de mundo, eu cresci nesse meio, em bailes
o seguinte: o filme se propõe, sim, a lançar um olhar de debutantes e festas de formaturas orquestradas pelas
sobre o olhar dos personagens, sobre sua vivência mesmas músicas que estão no filme, as mesmas pessoas,
de mundo que se manifesta através das imagens que meus vizinhos, meus parentes, eu mesmo...
realizam. E, neste sentido, enquanto diretor do filme, E esse pertencimento me coloca numa situação
estou necessariamente ocupando um espaço de poder, delicada para olhar para aquela realidade. O que procurei
já que fui eu quem organizei toda a narrativa e discurso fazer da maneira mais coerente possível.
do documentário. E eu fiz isso, deliberadamente, à Sobre suas hipóteses com relação ao que provocaria
revelia dos personagens, não se trata de um filme de a acusação de falta de ética no filme, devo dizer
colaboração ou participação, mas da forma como eu, que concordo com todas: a “evasão de privacidade”
pessoalmente, enxergo aquele mundo a partir das proporcionada por imagens que talvez não tenham
imagens que me chegaram. sido feitas para serem vistas daquela forma causam
Mas posso te dizer que isso não foi fácil e que sim um certo constrangimento. Mas eu propus o
executei essa tarefa como num exercício de arriscado jogo e os personagens toparam. Mandei o filme para
funambulismo. Isso porque, se em sua gênese, o todos eles depois que ficou pronto, a maioria nunca
projeto tinha uma inclinação muito forte à crítica, a respondeu, mas alguns se mostraram grandes entusiastas,
questionar os valores da classe média e seus excessos, defendendo o documentário inclusive em redes sociais
isso foi se transformando ao longo do processo. De da internet.

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Pequeno turista aproveitando a terceira fase do capitalismo

Também concordo que a extrema atualidade das auto-irônica, não é uma simples reprodução do clichê.
imagens, que foram feitas no ano passado e não nos Está mais para uma apropriação dele, com vistas a uma
nostálgicos anos 70 registrados pelo super-8, causa uma diversão espontânea. E neste sentido, também concordo
certa dificuldade. Imagens antigas, sobre as quais o com você quando você diz que o ridículo pode estar nos
tempo já agiu com um certo verniz embalsamador e que olhos de quem vê, da maneira como olha. Não quero
agregam o artifício da memória, se tornam mais fáceis com isso isentar o filme. Pelo contrário, assumo minha
até pelo distanciamento contido nesse processo. posição de observador daquilo tudo, mas acho que
Mas o que tenho achado muito legal nesses debates precisamos ficar atentos para como olhamos para os
sobre o Pacific, sempre que essa questão da ética e fatos.
do ridículo vêm à tona, é a possibilidade de realizar Enfim... acho que teria muita coisa a falar ainda, mas
um exercício singular de olhar para o outro e para si não quero prolongar tanto o email, até porque gostaria
próprio. Precisamos entender os personagens do filme de te enviar também um texto sobre o filme. Trata-se
dentro da excepcionalidade do momento que eles estão de um artigo de André Brasil que problematiza essas
vivendo. São férias de gente que passou o ano inteiro questões e algumas outras com bastante sobriedade. Eu
pagando prestações para estar no navio. Estão realizando pedi a ele permissão para enviar o artigo (que ainda não
um sonho e querem levar o aproveitamento disso ao foi publicado) e ele topou, mas pediu encarecidamente
paroxismo. Isso é um momento de exceção na vida que não o divulguemos para mais ninguém. Está em
deles, não seria presunçoso julgá-los? E o quanto de nós anexo.
mesmo há ali dentro? Um forte abraço e muito obrigado por suas generosas
O valor de ridículo é algo socialmente construído. considerações sobre o filme. Repito o quanto teus
O que é ridículo para nós certamente não o é para os escritos foram importantes para minha formação e para a
personagens do filme. Ou talvez também o seja, mas própria gênese do Pacific.
neste caso eles me parecem bem conscientes e auto-
paródicos dos momentos que estão vivendo. Como uma Marcelo Pedroso
encenação de Titanic no convés do navio. É claramente

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Escrito por Jean-Claude Bernardet às 14h13

14/01/2011

Pacific – 3

De JCB para Marcelo Pedroso (20.12.2010)

Marcelo,

Gostei muito do texto do André Brasil, ele dá


boa orientação para pensar; por ex.: “colonização da
vida cotidiana”, que tangencialmente faz com que o
privado deixe de existir. O lazer como uma substituição
obrigatória do trabalho. Regular ou suplantar a esfera do Momento Titanic by CVC
pessoal (pego essas palavras na Pintura da Vida Moderna
de Clark). Acredito, meio baseado no Guy Debord, Um abraço,
que a empresa (no caso de turismo) tem que gerar em Jean-Claude
você o desejo de viajar. Tentando satisfazer o seu desejo
você faz funcionar a empresa. Se a empresa gera o seu Ainda no mesmo dia:
desejo, significa que sua própria subjetividade é pelo Marcelo
menos em parte um produto da empresa. Seria essa uma
das características do que alguns chamam a 3ª fase do e outra: tanto o pedido de cessão de material
capitalismo. Acredito que Pacific permite refletir sobre que você fez aos turistas, como sua aceitação, como
isto. o filme têm que ser pensado, não na tradição do
E refletir também sobre um tema apresentado pelo velho humanismo, mas na época do reality show e do
artigo: a empresa (no caso fabricante de equipamento Facebook, com as consequências éticas que isso implica
audiovisual) tem que gerar em você o desejo de Re-abr
“aparecer”, de se encenar, de fazer com que o aparecer jcb
seja o ser. Isto permite repensar um aspecto da produção Escrito por Jean-Claude Bernardet às 13h42
de Pacific. Eu no fundo considerava que você tinha
tornado público uma produção da esfera privada (com as 17/01/2011
devidas autorizações). Mas talvez tenha acontecido algo
um tanto diferente: os turistas que aceitaram ceder o Pacific – 4
material para a feitura de um filme público, poderão ter
visto na tua proposta uma possibilidade de ampliar o que De Marcelo Pedroso a JCB (22.12.2010)
já estava no material que produziam: ampliar o aparecer,
a encenação, o espetáculo para uma escala maior, como Caro Jean Claude,
que reforçando e dando maior visibilidade ao projeto
original. De forma que talvez não se possa dizer que a Fico feliz em ver essa interlocução fluindo e deveras
operação consistiu simplesmente em passar do privado grato por seus comentários ao Pacific e ao tempo
ao público, com as devidas autorizações, porque o que dispensou a sua análise. Suas observações têm
privado, tanto do lado do turismo como do audiovisual, me oportunizado a possibilidade de enxergar novos
já não era mais o privado. É certo que Pacific toca pontos elementos do filme e do extra-filme, permitindo acessar
sensíveis da contemporaneidade. outras camadas de sua significação.
Em tempo: Comentei o filme com Vânia Debs. Ela É curioso notar que as imagens tenham sido
me disse que deveria colocar isso no blog. Você aceitaria produzidas justamente para serem compartilhadas
que a primeira carta que lhe enviei, a sua resposta e esta em espaços como as redes sociais da internet, que
atual sejam postadas? superam a simples fruição no âmbito familiar ou de
Em tempo 2 – no dia 17.12.2010, mais ou menos amigos próximos. De fato, eu não saberia dizer se as
às 20h, o Jornal da Band divulgou uma matéria sobre imagens produzidas pelos personagens do navio foram
cruzeiros marítimos da nova classe média. O teu filme feitas com essa intenção ou se estariam contaminadas
acertou no alvo. por esse espírito de encenação que busca a visibilidade

TEOREMA 33
Desejo de reconhecimento e visibilidade

das imagens da contemporaneidade. Acredito que, no Mas bem, mudando um pouco de assunto, quanto
Pacific, as imagens vêm carregadas desse espírito, mas à possibilidade de postar no blog as três primeiras
que, no fim das contas, acabariam mesmo adormecidas mensagens, acho muito bom. Sou leitor regular de teus
numa gaveta, não chegariam a ser editadas. Quando textos e eles sempre me proporcionam boas reflexões.
muito, seriam retomadas daqui a dez ou vinte anos, Se as questões em torno do Pacific puderem servir a isso,
num momento de redescoberta ou lembrança para os acho ótimo! :)
personagens. [...]
Porém, mesmo que ontologicamente não fossem Bem, vou indo lá e te deixo com meus votos de boas
destinadas ao Facebook, elas carregam esse estatuto, festas de fim de ano!
que se tornou uma espécie de traço da nossa
contemporaneidade. Ou seja, acredito que as imagens Um abração,
traduzem o desejo de reconhecimento e visibilidade dos Marcelo Pedroso
personagens, mesmo que eles não fossem, de fato, postá- Escrito por Jean-Claude Bernardet às 13h37 T
las nas redes sociais. Mas de alguma forma, a simples
existência das redes sociais já condicionam a existência * Crítico de cinema, autor de Cineastas e Imagens
das imagens, já as incita. do Povo e O Autor no Cinemae integrante da
Outra questão que acho cabível está ligada ao exercício diretoria da ABRACCINE – Associação Brasileira
lúdico de fazer imagens. Se antes havia limitações de Críticos de Cinema
financeiras para se produzir imagens (negativos, revelação,
equipamentos mais caros etc), hoje não há restrições ** Cineasta, diretor de Pacific
dessa natureza. Então, pode-se filmar o tempo inteiro
e a câmera se torna quase que uma interlocutora com
o mundo real, através da qual seus portadores podem 1
BERNARDET, Jean-Claude; COELHO, Teixeira. Os Histéricos –
criar personagens (à frente ou atrás das objetivas) e Uma Novela. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
exercer diferentes identidades sem muita seriedade ou
compromisso com o que quer que seja, senão a livre
fabulação. E neste jogo, a câmera se torna uma espécie
de ativadora de realidades, pois passa a agenciar um
repertório cultural que talvez não estivesse evidente ali.

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