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“Visões das direitas no Brasil (1961-1965)”

Tese submetida como


pré-requisito para obtenção de
grau de Doutor em História
Moderna e Contemporânea

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia


Programa de Pós-Graduação em História
Universidade Federal Fluminense

Ricardo Antonio Souza Mendes


Orientador: Prof. Doutor Jorge Ferreira
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Índice
Introdução 3

1 - Sociedade civil: os empresários


Sociedade civil na década de 1960 e a historiografia 14
Os Institutos 20
Anticomunismo empresarial 28
O desenvolvimentismo do IPÊS/IBAD 36
Sociedade civil e organização política 54
A organização social segundo os institutos 69
Política externa 87
Conclusão parcial 98

2 – Arena estatal: os militares


Os militares e o debate historiográfico 101
Os “Partidos Militares” 108
Caracterizando as fontes 119
Facetas do anticomunismo militar 123
Perspectivas de desenvolvimentismo 134
A vida política para os homens da caserna 147
A questão social e a propriedade privada 165
Política Externa para as direitas nas Forças Armadas 173
Conclusão parcial 183

3 – Sociedade Política: a UDN


A sociedade política, a UDN e o debate historiográfico 186
Caracterizando as fontes 197
O anticomunismo udenista 201
O desenvolvimentismo da UDN de extrema-direita 210
O povo e a política para os udenistas 223
Os udenistas e a questão social 233
Política externa dos udenistas de extrema-direita 243
Conclusão parcial 251

4 – Março de 1964: esquecendo as diferenças 254

5 – Conclusão 280

6 – Referências bibliográficas 283

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INTRODUÇÃO

A primeira metade da década de 1960 apresenta-se demarcada por um conjunto de


acontecimentos de importância fundamental para a história brasileira. Fatos como a
renúncia de Jânio Quadros, os debates em torno da implementação do parlamentarismo, a
crescente crise militar provocada pela revolta dos sargentos (1963) e dos marinheiros
(1964) acabaram por atingir um momento de clímax com o movimento de 1964, instalando
um regime que perdurou por quase vinte anos. Por trás destes acontecimentos observa-se
um processo de crescente radicalização política, marcada por uma profunda crise de
distribuição que acabou por mobilizar parcelas significativas da sociedade. Observa-se,
então, um processo de polarização demarcado, de um lado, por uma acentuação da
mobilização popular tanto no meio rural quanto nos centros urbanos e, de outro, por
crescentes articulações das elites.
Analisando este período a historiografia brasileira tende a compreender o “31 de
março de 1964” como um movimento golpista que retirou do poder o presidente João
Goulart. Diferentemente desta perspectiva, os participantes do movimento o encaram, de
forma majoritária, como um processo revolucionário que deu origem a uma nova etapa da
história brasileira. Dentro desta discussão – golpe ou revolução –, pode ser assinalada uma
questão de importância fundamental: o respaldo popular ao movimento de 1964. A idéia de
revolução, assinalada principalmente pelos participantes do movimento, busca apresentá-la
dentro de um grau de legitimidade significativo ao apropriar-se de uma bandeira (a da
revolução) que era, até então, levantada principalmente pelos grupos políticos de esquerda
com um grau de penetração maior nos movimentos populares. Aqueles participantes
indicam que março de 1964 foi o momento de um “novo começo” que liberou o país dos
vínculos com o passado colonial. A perspectiva que concebia a sociedade brasileira imersa
numa situação caracterizada pela dualidade – campo/atraso contra cidade/modernização –
não era, portanto, privilégio somente de intelectuais de esquerda.
No entanto, por trás desta perspectiva, pode-se observar ainda uma tentativa de
assinalar que o movimento não teve apenas um caráter conspirativo. Respaldando esta
perspectiva estaria a mobilização de parcela significativa da sociedade em torno do novo

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regime que então se estabelecia, dentre as quais se destaca a “Marcha da família” ocorrida
em São Paulo às vésperas do golpe.
Uma observação mais atenta do material documental que aborda este aspecto
indicou-me que não somente os depoimentos efetivados a posteriori sobre o golpe, mas
também vários testemunhos da época, referiam-se a uma série de articulações que tinham
por objetivo a retirada de Jango da presidência da República. O caráter de uma articulação
múltipla e descentralizada, com o aparecimento de diversas lideranças que concorriam entre
si, é recorrente em boa parte destes documentos e está presente, inclusive, dentre aqueles
que buscavam acentuar a idéia de sua unidade. No entanto, as análises historiográficas que
se debruçam sobre março de 1964 tendem a compreendê-lo de forma quase unívoca como
um movimento golpista, sobretudo de caráter conspirativo, extremamente unificado. Estas
perspectivas entram em confronto quando o aspecto em questão é o da identificação do
grupo articulador do processo conspirativo. Militares, políticos articulados em torno de
parcela do Partido Social Democrático e, principalmente, da União Democrática Nacional,
bem como instituições empresariais tais como o IBAD e do IPÊS (que aglutinou os
participantes do primeiro instituto após sua dissolução) são os grupos que se apresentam
priorizados, em diferentes abordagens, como os principais articuladores do golpe. Surge,
então, uma “pergunta que não quer calar”: coube efetivamente a um grupo específico o
encaminhamento do processo conspirativo?
Recentes balanços historiográficos acerca das análises referentes à proclamação da
República e ao movimento de 1930 assinalam que durante um bom tempo estes foram
considerados como resultado de articulações monolíticas. Sobre a proclamação dava-se
ênfase na idéia de um clima de “paz e consenso nacionais”, que acabou por encobrir “as
dimensões e as fraturas partidárias”.1 Já quanto ao movimento de 1930, se até a década de
70 predominou a perspectiva monolítica, não deixaram de existir abordagens que acabaram
por dar ênfase no aspecto fragmentário de suas articulações, assinalando-as, contudo, como
“uma sucessão desordenada de conflitos pessoais fragmentários e erráticos”.2
Gradativamente, buscou-se recuperar a “pluralidade de conceitos, imagens e

1
JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. “O diálogo convergente: políticos e Historiadores no início da
República”. In: FREITAS, Marcos Cezar de. Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo, Contexto,
2000.
2
BORGES, Vavy Pacheco. “Anos Trinta e Política: História e Historiografia”. In: FREITAS, Marcos Cezar
de. Historiografia Brasileira em Perspectiva, op. cit., p. 178.

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5

interpretações” dos grupos que assumiram o poder, onde as questões do conflito e


divergências foram consideradas em primeiro plano.
As análises aqui elaboradas identificam que existiam diferentes propostas
enunciadas a partir dos grupos envolvidos no “31 de março de 1964”. Estes projetos, em
várias questões, entravam em conflito entre si como resultado de posições relativas
diferenciadas quanto ao centro de poder. Interesses muitas vezes divergentes quanto aos
caminhos a serem percorridos pela sociedade brasileira para alcançar seus objetivos – de
estabilidade política e desenvolvimento econômico – e interesses de classe que muitas
vezes eram estritamente específicos também contribuíram para isso. Dentro desta
perspectiva, apesar de considerar 1964 como uma articulação golpista operada em
múltiplos centros, observo que isto não retira do movimento o respaldo concedido por
parcela significativa da sociedade. Este, por sua vez, não era resultado apenas de uma
mobilização elaborada a partir das elites. Parcelas significativas das camadas médias e, até
mesmo dos grupos menos privilegiados da sociedade, tais como o operariado, concederam
o seu apoio ao golpe. O testemunho de Luís Inácio “Lula” da Silva, torneiro-mecânico nos
idos de 1964, é representativo neste sentido.3 O fracasso da greve geral encaminhada pela
CGT e a ausência de resistência ao “31 de março” não pode ser debitado única e
exclusivamente à incapacidade dos grupos de esquerda e de centro em articular um bloco
de resistência, mas sim devido a legitimidade construída junto à sociedade para o
encaminhamento de um golpe, que viesse a restituir o país ao caminho “democrático” de
“respeito” à Constituição.
Apesar da obtenção de um crescente grau de legitimidade obtido junto à população,
as articulações em torno do movimento não alcançaram, entre 1961 e fins de 1963, um
espaço social mais amplo, restringindo-se às elites. O acirramento da luta de classes
provocado pela estrutura distributiva presente na sociedade brasileira contribuiu para uma
articulação cada vez maior das elites em torno da defesa do status quo, assustadas que
estavam com o crescente radicalismo dos movimentos populares de esquerda. Não se pode
esquecer o efeito devastador que a Revolução Cubana, com suas medidas de nacionalização
da economia, reforma agrária e encaminhamento crescente em direção à órbita de
influência soviética, exerceu nas elites latino-americanas.

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O momento fundamental em que se observa a passagem das articulações elaboradas


a partir de pequenos espaços sociais – em múltiplos centros – para o alcance da
legitimidade obtida junto à opinião pública foram os meses iniciais do ano de 1964, mais
especificamente em março deste ano. Foi quando o movimento ganhou gradativamente as
ruas, obtendo o respaldo e a legitimidade necessários para que se efetivasse. Neste sentido,
o impasse estabelecido nos meses de agosto e setembro de 1961 serviu como lição que foi
muito bem assimilada pelos grupos das direitas. O ensaio de 1961, realizado pelos
ministros militares do governo Jânio, não logrou êxito justamente por falta de legitimidade
suficiente.
Longe de querer mapear todas as propostas que estavam presentes nos diferentes
grupos a articular a resistência contra as “ameaças” que pairavam no horizonte, quanto à
propriedade e à existência de direitos políticos diferenciados, este trabalho tem por objetivo
analisar efetivamente os grupos que se apresentaram como os principais articuladores do
movimento de 1964. Digo “principais” porque foram eles que, de fato, se aglutinaram em
torno das instâncias de poder que definiram os rumos do país por quase 20 anos. Excluíram
do legislativo boa parte da oposição aos seus projetos, regularam o judiciário de acordo
com seus interesses e ratearam o executivo dentro da nova composição de forças que se
estabeleceu.
No que se refere ao processo de polarização pré-64, este afetou o sistema político
brasileiro em seus diferentes âmbitos: a sociedade política, a sociedade civil e a arena
estatal. Acentuou-se na medida em que a renovação do congresso nas eleições de 1962
acabou por marcar um significativo declínio dos partidos conservadores e reacionários e o
relativo aumento da bancada progressista.4 O fracasso de uma possível mediação entre as
forças de esquerda e direita através da forma de governo parlamentarista, bem como a
incapacidade do governo gerir um plano de reformas conciliador, foram decisivos.5 Outro
elemento que se observa neste quadro é a constante oscilação, por parte do governo João

3
Depoimento. COUTO, Ronaldo Costa. Memória viva do regime militar – Brasil:1964-1985. Rio de Janeiro:
Record, 1999, p. 250.
4
Apesar desta mudança relativa, o congresso continua com o predomínio de forças conservadoras. Sobre o
assunto, ver FIGUEIREDO, Argelina. Democracia ou reformas– alternativas democráticas à crise política.
São Paulo, Paz e Terra, 1993, p. 88; e ainda De Souza, Maria do Carmo C. Estados e Partidos políticos no
Brasil. São Paulo, Alfa-Ômega, 1990, pp. 143 e seguintes.
5
FIGUEIREDO, op. cit., pp. 30 e seguintes.

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Goulart, entre os grupos de direita e esquerda, gerando uma desconfiança quanto aos reais
propósitos do presidente.
Na sociedade política, blocos interpatidários organizados ainda em fins do governo
Juscelino Kubitschek – a Frente Parlamentar Nacionalista e a Ação Democrática Nacional,
onde predominavam respectivamente uma linha esquerdizante e a ala mais conservadora do
Congresso –,6 tiveram um importante papel na consolidação de posições antagônicas que se
processou no período. O aumento do número de alianças e coligações assinala, segundo
Campello de Souza, a existência de uma “disputa eleitoral mais acirrada e incerta”.7 Este
também é o momento de incremento das ações das organizações da sociedade civil, tanto
de um lado quanto de outro. Entre as direitas, em relação às associações mais importantes e
representativas do empresariado vinculado ao capital externo, tem-se, a título de exemplo, o
crescimento da mobilização e das atividades, ainda conspiratórias, do Instituto de Pesquisas
e Estudos Sociais (IPÊS) e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). Observa-
se também que, influenciados pelo medo de proletarização, alguns sindicatos
representativos de grupos das camadas médias acabaram por cerrar fileiras tanto contra o
governo quanto contra aqueles grupos progressistas.8
No que se refere à arena estatal, particularmente aos militares – membros da
máquina administrativa –, nota-se a acentuação da radicalização de direita dentro do
principal fórum de debates nas das Forças Armadas: o Clube Militar. Dentro deste, grupos
influenciados pela Doutrina de Segurança Nacional articularam-se em torno da Cruzada
Democrática e, a partir de uma perspectiva anticomunista, buscaram organizar seus pares
para refrear a mobilização dos movimentos populares. Por outro lado, como último aspecto
desta mobilização crescente, observa-se a tentativa de consolidação por parte do próprio
governo de efetivar-se como o principal centro de decisões a partir do retorno do
presidencialismo, eliminando assim a asfixia a que era submetido pelo regime
parlamentarista.

6
Idem, ibidem, p. 107.
7
SOUZA, op. cit., p. 141.
8
Décio Saes aponta em seu trabalho que, por parte dos profissionais liberais, o que se apresentou como
fundamental para este alinhamento foi a tentativa de resguardar plenamente a sua “independência decisória e
a sua capacidade de controle das suas próprias condições de trabalho, contra toda e qualquer intervenção do
Estado no ‘mercado de serviços’. Quanto à baixa classe média, o medo presente era o “temor da
proletarização”", op. cit., pp. 465 e 500.

7
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Considerando que o processo de polarização atingiu todo o sistema político e que as


mobilizações em torno da defesa do status quo operaram dentro de todos os componentes
deste sistema, tento assinalar a existência não de um único centro articulador desta
movimentação, mas sim de diferentes centros que buscavam efetivar a convergência das
elites e capitalizar apoio junto aos movimentos populares e às classes médias. Denomino-os
por centros catalisadores, que disputavam a liderança política não somente com o outro
extremo da díade – as esquerdas –, mas também lutavam por fazer predominar um projeto
de sociedade específico perante seus concorrentes do mesmo pólo do sistema político.
Portanto, trabalhavam de forma concorrente e simultânea. A existência de inúmeros
depoimentos a apresentarem a inexistência de um projeto específico de governo entre os
vencedores é um forte indício não de ausência deste, mas sim da presença de uma
multiplicidade de propostas que disputavam, entre si, a supremacia do processo.
Em comum estes grupos possuíam uma matiz ideológica de direita. Na sociedade
civil, tal como na arena estatal e na sociedade política, os grupos de direita apresentavam-se
caracterizados por um profundo anticomunismo associado ao temor dos possíveis avanços a
serem obtidos pelas classes trabalhadoras. Ao mesmo tempo elemento de convergência e
delimitador de uma tendência política de direita, o anticomunismo foi – acima de todos os
outros – o elemento integrador. Segundo Luciano Bonet, a oposição ao comunismo deve
ser entendida “à luz do momento histórico, das condições de cada um dos países e das
diversas origens ideais e políticas em que se inspira”. Em suas variantes, pode ser de
origem fascista, democrática clerical e americana, sendo essa vertente a mais recente,
segundo o autor. Assinala ele ainda que, no plano interno, “o Anticomunismo extremo é,
como é obvio, o de tipo fascista e reacionário, em geral, que se traduz na sistemática
repressão da oposição comunista, e tem por norma tachar de comunismo qualquer oposição
de base popular”.9 Apesar da presença de um anticomunismo de caráter democrático e
fascista, predominaram nestes grupos os aspectos de coloração conservadora (manutenção
da estrutura social) e liberal (defesa da propriedade). O anticomunismo apresentou-se, neste
sentido, como a palavra de ordem que catalisou o apoio, junto à opinião pública e
principalmente entre as elites, em torno de um objetivo comum.

9
BONET, Luciano. “Anticomunismo”. In: Noberto Bobbio e outros (org.). Dicionário de Política. UNB, 12ª
ed., 1999, pp. 35-36.

8
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Assumindo diferentes feições, o anticomunismo poderia ser associado à defesa da


ordem estabelecida e à busca pelo retorno de uma estabilidade calcada na manutenção do
status quo, com a desmobilização dos movimentos populares em torno de suas demandas.
Neste sentido, todo aspecto associado à tradição varguista de mobilização dos movimentos
populares, principalmente no período de 1942 a 1954, também era a ele vinculado. Não se
pode esquecer também da freqüente associação entre comunismo e sua versão anticlerical,
diante da capacidade que tal associação tinha de mobilizar parcelas significativas da
sociedade.
Observa-se, desde a fundação da díade direita e esquerda – ao longo do processo
revolucionário francês inaugurado em 1789 –, a existência de diferentes estratégias a serem
estabelecidas em torno de uma ênfase maior na liberdade – com o seu correlato de que as
desigualdades são benéficas para a existência do equilíbrio e progresso de uma sociedade –
ou na igualdade – com seu correlato de que as liberdades devem a ela estarem subjugados.
No contexto específico da década de 60, no Brasil, as liberdades valorizadas pelos grupos
de direita diziam respeito principalmente àquelas relativas ao direito de propriedade. No
entanto, não é somente no que diz respeito às liberdades que se deve caracterizar os grupos
de direita. A delimitação ideológica destes grupos deve ser observada também quanto ao
tipo de desigualdade que concebiam como fundamental para o restabelecimento da ordem e
a retomada do crescimento econômico. Neste sentido, a restrição de direitos políticos para
uma parcela “ilustrada” da sociedade e a existência de desigualdades sociais baseada no
poder econômico apresentavam-se como condicionantes elementares para o seu
desencadeamento.
Dentro ainda deste contexto, questões como o problema da
nacionalização/internacionalização da economia e o posicionamento do país quanto ao
contexto internacional da Guerra Fria ganharam dimensões significativas. Representavam
elementos fundamentais de uma estratégia que poderia levar ora a consolidação das
desigualdades ora como parte de sua eliminação. Esta crença estava arraigada dentro de
todo o espectro político, não somente brasileiro como latino-americano, e era reforçado por
interesses econômicos internacionais. O cenário internacional da Guerra Fria contribuiu
sobremaneira para a consolidação destas convicções. Apesar de se referirem a diferentes
estratégias a serem encaminhadas dentro do cenário de polarização crescente, estas

9
10

questões somente podem ser compreendidas se levado em consideração que o pano de


fundo central era a manutenção/exclusão das diferenças sociais, políticas e econômicas.
Denominei por idéias polarizadoras os principais temas em questão naquele
momento. Idéias que ganharam “vida própria” na medida em que se apresentam como alvo
de disputas cada vez mais acirradas. As diferentes concepções em torno destas idéias-força
representavam não somente o meio pelo qual se manifestava o desejo pelo poder, senão
também eram o próprio objeto do desejo.10 Apresentavam-se importantes como agentes de
mobilização da opinião pública e por se referirem a aspectos considerados fundamentais,
centrais da vida do país naquele momento. Além disto, observa-se que tinham uma
importante função por serem estruturantes de códigos de comportamento, distribuição de
papéis e de posições sociais. Enfim, como elementos organizadores de um dado projeto de
sociedade. Por isso tornaram-se alvos privilegiados por parte dos grupos em embate.11
Identificar as representações que guiaram e modelaram os comportamentos e
buscaram legitimar determinadas atitudes torna-se fundamental num momento de conflitos
que caracterizava, então, a sociedade brasileira. As épocas de crise de poder são momentos
em que “se intensifica a produção de imaginários sociais concorrentes e antagonistas, e em
que as representações de uma nova legitimidade e de um futuro diferente proliferam e
ganham difusão e agressividade”.12 Ao resgatá-las, procura-se restabelecer os níveis de
conflito, que caracterizavam o período, entre os diferentes grupos de direita na sua luta pelo
estabelecimento de um discurso hegemônico.
Algumas destas idéias, tais como as relativas a ampliação/restrição da participação
política e a ampliação/restrição do direito de propriedade, se implementadas, poderiam
levar a uma transformação significativa da sociedade. Quanto à primeira destas idéias
polarizadoras, as tentativas de efetivação da reforma urbana e, principalmente, da reforma
agrária, bem como a ampliação ou eliminação da legislação trabalhista, estão a ela
associadas. Apesar de um pretenso consenso sobre o assunto, as propostas de reforma
agrária apresentavam diferenças que modificavam, em grande medida, os resultados
esperados. As ligas camponesas, que aparecem já desde fins de 1950, assumem uma

10
FOUCAULT, Michel. El Orden del Discurso. Barcelona, Tusquets Editor, 1970.
11
Sobre estes aspectos ver: BACZKO, Bronislaw. “Imaginação social”. In: Enciclopédia Einaudi-Anthropos-
Homem, vol. 5. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985, p. 309.
12
Idem, Idem, p. 310.

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11

dimensão cada vez maior em torno da reivindicação por terra. Se, por um lado, a reforma
do sistema fundiário era esperada por uma parcela da elite, assumindo uma dimensão que a
colocava em um sentido completamente oposto ao proposto pelos movimentos populares,
de outro lado, parcelas significativas da elite nacional fundiária via no movimento uma real
contestação ao status quo.
Outra idéia de relevância encontra-se nas perspectivas de ampliação/restrição da
participação política e da cidadania ao conjunto da população. A historiografia sobre 1964
aponta uma série de transformações no nível da mobilização política, tanto no meio rural
quanto nos centros urbanos. No mundo urbano, o crescimento industrial, o esvaziamento do
campo e o desenvolvimento das cidades contribuíram para a modificação no peso político
da população aí localizada, levando ao aumento da pressão das demandas populares bem
como da participação política destes grupos. Observa-se, neste momento, uma reação das
direitas no sentido de limitar os avanços desta contínua ampliação da luta por participação
política. No entanto, não foi somente no meio urbano que a mobilização acentuou-se. As
ligas camponesas, que se apresentaram numa fase de ascensão em fins de 1950, agitaram as
massas de trabalhadores rurais e estimularam sua mobilização, não somente por terra, mas
também em torno dos direitos políticos. A politização no seio das Forças Armadas, iniciada
através do debate existente dentro do Clube Militar e que tendia a se ampliar com a
extensão do direito de voto dos praças, veio a provocar um receio do afrouxamento das
relações de hierarquia.
Outras idéias centrais ganharam destaque por questões conjunturais, pois não
representavam necessariamente uma alteração da estrutura política e socioeconômica do
país. Referiam-se à nacionalização/internacionalização da economia e
alinhamento/neutralidade quanto ao quadro da Guerra Fria. A primeira delas colocava em
destaque o tipo de processo desenvolvimentista que se pretendia para a sociedade. A crença
no caráter revolucionário da burguesia nacional, aliada a uma convicção da dualidade da
estrutura brasileira contribuíram para a convicção de que a forma de encaminhamento do
processo desenvolvimentista era etapa crucial para os rumos do país. O papel do Estado na
economia encontrava-se atrelado a esta discussão. A economia brasileira entra nos anos 60
com um dilema crucial de como superar o modelo getuliano de desenvolvimento, e o
nacionalismo econômico ganha impulso ainda mesmo durante o governo Juscelino. Apesar

11
12

de um consenso sobre a necessidade de superação do atraso econômico, existiam


divergências que eram mais fortes sobre a forma pela qual transpor as barreiras que se
colocavam para atingir tal meta.
A quarta e última idéia refere-se ao posicionamento do Brasil no quadro
internacional. A “Política Externa Independente”, adotada desde os tempos do governo
Jânio Quadros, foi aprofundada durante o período João Goulart. A guinada da Revolução
Cubana para a órbita de influência soviética teve um efeito assustador não somente para
parcelas significativas das elites nacionais, mas também para toda a América Latina.13
Além disto, a situação econômica do país o colocava, para parcelas significativas destes
grupos, numa situação em que o alinhamento incondicional no plano internacional era de
fundamental importância.
Estas idéias polarizadoras eram articuladas, segundo entendo, de formas
diferenciadas pelos diversos grupos que buscavam liderar o processo de convergência das
elites como reação às ameaças com que se deparavam no horizonte. Este é o aspecto central
da análise aqui encaminhada. A estrutura deste trabalho busca, neste sentido, ao longo dos
três primeiros capítulos, apresentar uma fotografia destes diferentes projetos de sociedade.
Trata-se de um aspecto importante porque caracteriza a ausência de unidade absoluta entre
as diferentes facções das direitas que buscavam cerrar fileiras contra um inimigo comum:
os movimentos populares. Para tanto, utilizo o posicionamento dos diferentes centros
catalisadores quanto às idéias polarizadoras no período compreendido entre 1961 e 1965.
Sem perder de vista que a análise ora empreendida avança pelo primeiro ano do regime
implementado em 1964, entendo que este período caracteriza a fase em que três dos
principais grupos de direita estabeleceram, entre si, uma prática de concorrência pacífica de
projetos e priorizaram o embate em relação ao outro extremo do espectro político: as
esquerdas. Marca, portanto, um momento de crescente unidade que culminou com a
efetivação do golpe mas que somente se desfez em fins de 1965. A análise é empreendida
com base no posicionamento dos diferentes grupos frente às idéias polarizadoras. Apesar de
compreender que o embate não se dava apenas em torno destas idéias, considero que estas
podem nos servir de referencial quanto às diferenças presentes nos diferentes grupos das
direitas no Brasil na década de 60.

13
DONGHI, Túlio Halperin. História da América Latina. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986.

12
13

A partir desta fotografia, aspecto principal do trabalho, assinalo no quarto capítulo a


busca por parte destes grupos da construção da legitimidade em torno da qual observo um
salto qualitativo nos meses iniciais de 1964. Se no momento anterior o que se observa é a
tentativa de cada um dos grupos de se fazer hegemônico perante seus pares-concorrentes,
apesar do privilégio dado ao combate à outra extremidade do pólo, nesta fase a busca pela
liderança foi abandonada, dando lugar a uma aliança onde o que importava mais era a
eliminação dos inimigos-concorrentes. Neste momento, a “legalidade” passou para os
grupos golpistas.

13
14

1 - Sociedade civil: os empresários

Sociedade civil na década de 1960 e a historiografia


Parcela da historiografia privilegia a sociedade civil como principal arena das
articulações golpistas que desencadearam “64”, colocando como centro das articulações
que catalisou as forças denominadas de “direita” o complexo empresarial IPÊS/IBAD.
Aponto René Dreiffus,14 Heloísa Starling,15 João Quartin de Moraes16 e Décio Saes17 como
autores representativos deste grupo.
Nesta perspectiva, instituições da Sociedade Civil apresentaram-se como o principal
centro de elaboração desta convergência, uma vez que o acesso a arena política lhes era
vedado pelo quadro de composição partidária do momento. Devido à incapacidade de o
Estado, ou ainda, o governo, neste momento apresentar-se como instância que
corresponderia às necessidades ou aos desejos almejados pelo grupo genericamente
denominado por direita, a alternativa encontrada foi assumir a sua diretiva, mesmo sem a
concordância de uma maioria eleitoral necessária num processo democrático. Apesar de
assinalar que “nem o IPÊS, nem o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (...) foram
criados na perspectiva imediata de preparar um golpe de Estado”,18 Moraes acaba por
reconhecer que a ameaça ao seu status quo acabou por levá-los ao comando das
articulações golpistas. Os membros do complexo IPÊS-IBAD teriam chegado à conclusão
de que não “lograria dirigir o país através dos partidos políticos burgueses”, lançando uma
“ofensiva ideológica” e coordenando um ataque contra o “comuno-peleguismo” que se
materializaria no golpe de 31 de março.19
Starling, privilegiando sua análise nas Minas Gerais, apresenta que a preocupação
central de seu trabalho “reside na discussão de como uma classe dominante, em um
determinado momento histórico, se organizou estratégica e taticamente para desenvolver
sua ação política”,20 acabando por colocá-los num papel de liderança . Esta ação, por sua

14
DREIFUSS, René. 1964: A conquista do Estado. Petrópolis, Vozes, 1981.
15
STARLING, Heloísa. Os Senhores das Gerais. Petrópolis, Vozes, 1986
16
MORAES, João Q. “O colpaso da resistência militar ao Golpe de 1964”. In: TOLEDO, Caio Navarro de
(org.). 1964: Visões Críticas do Golpe. Campinas, Unicamp, 1997.
17
Saes, Décio A.M. “Classe Média e Política no Brasil”. In: O Brasil Republicano: Sociedade e Política
(1930-64). Boris Fausto (Org.). São Paulo,Difel, 1986.
18
MORAES, op. cit., p. 129.
19
Idem, p. 130.
20
Starling, Heloísa , op. cit., p. 16.

14
15

vez, operou-se a partir da articulação dos “diferentes núcleos da classe dominante de caráter
antipopulista e antipopular, até então desconectados, em uma poderosa coalizão burguesa
que (...) fosse capaz de constituir um centro estratégico de ação política responsável”. O
objetivo último seria “planejar, organizar e liderar um golpe militar-estratégico dirigido ao
centro de equilíbrio do regime nacional-populista”.21
Para a autora, no entanto, o IBAD nada mais era, a partir de meados de 1962, do que
um “braço tático, englobado por uma estrutura muito mais ampla e sofisticada: o Instituto
de Pesquisas e Estudos Sociais”.22 Ainda segundo Starling, apesar do estreito contato
estabelecido com grupos militares, em especial a ESG, e de entregar ao General Guedes a
coordenação da face militar da operação conspirativa, os membros do IPÊS desejavam,
única e exclusivamente, que os militares desencadeassem um operação militar sob sua
liderança. Neste momento, segundo Starling, foi colocada em ação a “gigantesca estrutura
operacional de ação política, enraizada na sociedade civil, composta por uma cadeia de
unidades operacionais aparentemente isoladas e desconectadas entre si”23 mas que
respondiam às “necessidades táticas e estratégicas” definidas pelo IPÊS-MG. Neste sentido,
tanto a participação de militares vinculados à ESG, quanto de militares articulados em
outras instâncias golpistas, e a dos diferentes grupos existentes na sociedade política
estariam a reboque do projeto político estabelecido para a sociedade por este complexo
empresarial IPÊS-IBAD.
No mesmo sentido encaminha-se a principal obra desta perspectiva, da qual Starling
é tributária. René Armand Dreifuss, em 1964 – A conquista do Estado, assinala a ação desta
elite, denominada de multinacional-associada, capitaneada por um grupo de intelectuais
orgânicos situados como vanguarda no complexo IPÊS/IBAD. Segundo o autor, de forma
consciente e predeterminada, “eventos considerados aparentemente desconexos (...) tinham,
de fato, coordenação da elite orgânica”.24 Através de um exemplar trabalho de
levantamento documental, Dreifuss apresenta o importante papel desempenhado por estes
grupos nas articulações golpistas, descaracterizando, assim, o golpe de 1964 como
empreendimento eminentemente militar. Para ele as Forças Armadas aparecem a reboque,

21
Idem, p. 44.
22
Idem, p. 46.
23
Idem, p. 75.
24
DREIFUSS, op. cit., p. 281.

15
16

cumprindo uma estratégia “predeterminada e cuidadosamente amadurecida”25 e cujo o


papel de destaque obtido após 1964 foi, na verdade, resultado de uma ação consciente de
dissimulação. Através de uma agressiva campanha de mobilização de recursos e de
doutrinação ideológica, o complexo multinacional-associado baseado no IPÊS/IBAD
conseguiu submeter tanto militares quanto a elite política ao partilhamento de suas metas.
Com o golpe, os técnoempresários do complexo assumem a diretiva do Estado. Pelo menos
no período do governo Castelo Branco.
O papel de mobilização das classes médias – compreendidas como a “classe dos
trabalhadores improdutivos, isto é, de todos aqueles cujo trabalho não contribuísse de modo
direto para a produção de mercadorias” –,26 assinalado em relevância no trabalho de Décio
Saes, apresenta-se como de fundamental importância para a ação do complexo empresarial
IPÊS/IBAD. É deste grupo social que a “classe dominante irá encontrar a sua ‘massa’
contra-revolucionária no seio da classe média”,27 obtendo a legitimidade necessária para a
conquista do poder. Nesta análise, o aumento das pressões populares acabam por diminuir o
grau de autonomia do Estado junto às elites, provocando uma reação. Parcelas
significativas da classe média tomam um posicionamento à direita, com receio de sua
proletarização e da perda de independência das suas condições de trabalho devido ao
aumento da interferência do Estado.28 Já em relação à baixa classe média é a incapacidade
de o Estado promover de cima para baixo o bem-estar do povo que os mobiliza, bem como
seu anticomunismo ferrenho em defesa da família, da religião e da propriedade. Ambos os
grupos partilhavam do desejo de ascensão social. Starling e Dreifuss também reafirmam
que as principais mobilizações encaminhadas pela classe dominante sob a liderança do
IPÊS/IBAD contou com o apoio destes segmentos e que o radicalismo dos movimentos
populares também estava presente nestes grupos.
Ao centrar suas análises no papel de determinadas instituições da sociedade civil nas
articulações golpistas, os autores acima acabam tanto por superdimensionar o papel deste
segmento dentro do sistema político quanto por desconsiderar os seus demais componentes.
Starling, por exemplo, parte da constatação da existência de um setor “tradicional” com

25
Idem, p. 230.
26
SAES, op. cit., p. 451. Adotei a perspectiva de que todos os autores aqui considerados tem o mesmo tipo de
concepção de camadas médias.
27
Idem, p. 499.
28
Idem, p. 500.

16
17

peso significativo dentro da sociedade mineira, o que não ocorreria em relação ao estados
do Rio e de São Paulo. Diante do risco de incluir estes grupos “tradicionais” no IPÊS-MG e
perder a identidade de seu projeto de classe, os intelectuais orgânicos do IPÊS optaram pela
criação de “corpos intermediários” que teriam por função englobar “as classes
conservadoras sem possibilitar a perda de identidade do projeto de classe” do instituto.29 O
IPÊS-MG continuaria sendo, assim, a “estrutura formal de decisão”.30 Com este recurso a
autora espera solucionar o problema que se apresenta diante do importante papel
desempenhado pelo principal destes corpos intermediários, o “Comando Revolucionário” –
denominado por ela como “Novos Inconfidentes” – dentro do contexto de articulação
golpista. Apesar de assinalar que esse organismo não era uma mera “fachada” do IPÊS,
indica que existia uma divisão de tarefas que colocava o instituto numa situação de
comando. Starling acaba por reconhecer a existência de um papel significativo de outros
grupos, e busca submetê-los a um papel de instrumento de ação do IPÊS que considero
superdimensionado. As disputas que por um acaso ocorreram entre estas duas “instâncias”
de mobilização conspiratória tomam, no sentido dado pela autora, uma função de
dissimulação do papel predominante do IPÊS.
Dreifuss e Starling, por sua vez, acabam por apresentar questões que sinalizam,
segundo entendo, para a existência de um embate entre os diferentes centros articuladores
na busca pela liderança do processo de mobilização das elites. No entanto consideram-nas
como “pequenas rixas”31 que foram solucionadas em fins de 1962, ou ainda, fruto da
expressão de “sua insatisfação em um espaço social muito reduzido”32 ao qual caberia ao
IPÊS articular. Acabam, no entanto, por apresentar alguns problemas que não poderiam ser
solucionados dentro de uma lógica de liderança pretensamente inequívoca por parte destes
institutos. Como, por exemplo, uma articulação tão bem montada possibilitou a ascensão de
troupieurs e extremistas de direita que eram rivais da ESG33 – em estreita vinculação com o
complexo IPÊS/IBAD – em “posições importantes dentro da hierarquia das Forças
Armadas”?34 Por que motivos, após a “sua” suposta vitória e “tomada do poder do

29
STARLING, op. cit., p. 82
30
Idem, p. 52.
31
DREIFUSS, op. cit., p. 281.
32
STARLING, op. cit., p. 80.
33
Escola Superior de Guerra.
34
DREIFUSS, op. cit., p. 418.

17
18

Estado”,35 o IPÊS/IBAD passou a sofrer uma série de derrotas que acabaram por fazer com
que o país enveredasse “por uma ditadura declarada” e contribuísse para a perda da
hegemonia do complexo ainda ao longo do governo Costa e Silva? O que contribuiu para
que os Estados Unidos tenham estabelecido contatos com outros centros articuladores do
golpe (segundo indicado por Starling) que disputavam com o IPÊS a liderança da coalizão
antijanguista, e não apenas canalizassem suas atenções para o IPÊS.36 Como explicar a ação
intempestiva de Mourão e Magalhães Pinto diante de um controle quase absoluto sobre as
articulações do golpe que, supostamente, o IPÊS possuiria?37 Estas, dentre outras, são
questões que a perspectiva na qual a idéia de liderança incontestável do complexo
multinacional-associado e de submissão por parte da sociedade política e das Forças
Armadas não dão conta, segundo entendo.
Pode-se afirmar que o complexo efetivamente realizou um papel importante como
um dos principais centros catalisadores das articulações golpistas em 1964. Como muito
bem apresentam tanto Starling quanto, principalmente, Dreifuss, o IPÊS/IBAD foi o
principal irrigador de verbas e financiamentos para tal intento. Neste sentido foi também
um canal privilegiado de contatos entre interesses norte-americanos e as elites aqui
consideradas (a civil, a militar e a empresarial). No entanto, não foi o único.
Se é certo que contribuíram de forma significativa para o desencadeamento dos
fatos, tem-se de relativizar a questão do papel de liderança e, mais ainda, questionar se, em
algum momento, ocorreu uma efetiva partilha de metas em torno de um consenso positivo,
qual seja, a proposta de sociedade presente entre os seus participantes. Independentemente

35
Idem, p. 419. Segundo o autor, após o golpe o complexo empresarial IPÊS/IBAD logrou êxito em ocupar
os principais postos: o núcleo do Ministério do Planejamento; a chefia da Casa Civil; a Casa Militar, que era
fortemente apoiada pelo grupo IPÊS/ESG; dentro dos “assuntos econômicos”, a SUMOC, o Banco Central, o
BNDE, o Banco do Brasil, o Conselho Nacional de Economia, e o Conselho Monetário Nacional, além do
controle de diversos Bancos Estaduais; no IBRA, substituto da SUPRA, e no INDA, dentre outros órgãos.
Deve-se assinalar que o mesmo tipo de metodologia adotado pelo autor deve ser empreendido para o
mapeamento dos diferentes centros polarizadores para a identificação de outros grupos que também tenham se
enquistado no poder e, a partir daí, estabelecer se efetivamente houve hegemonia efetiva de algum destes
grupos. Depõe contrariamente a esta tese de hegemonia do complexo empresarial militar o duro golpe sofrido
por este grupo, ainda em 1965, na encampação da Companhia Telefônica Brasileira e, posteriormente, na
encampação da AMFORP, e na implementação da EMBRATEL. Ver DREIFUSS, ps. 448 e seguintes.
36
STARLING, op. cit., p. 128.
37
Um aspecto que contribuiu para a perspectiva do desenvolvimento de conflitos ao longo de toda a
articulação golpista é o fato de que, logo após março de 1964, o próprio autor assinala que o grupo do
IPÊS/IBAD que mantinha contatos efetivos com a ESG buscou o fortalecimento da Casa Militar para “servir
de contrapartida do Ministério da Guerra, onde Costa e Silva mantinha o controle. DREIFUSS, op. cit., ps,
419 a 454.

18
19

da capacidade do complexo em procurar articular-se como centro catalisador, não se pode


deixar de considerar o conflito existente entre suas propostas e as presentes naquilo que
considero como outros centros catalisadores. Se existiu efetivamente uma partilha, esta foi
em torno de um consenso negativo e contextual: derrubar João Goulart. Sobre este aspecto,
deve-se observar um telegrama encaminhado pelo Embaixador Lincoln Gordon ao
Departamento de Estado americano que, neste momento e conforme amplo conhecimento,
buscava interferir nos assuntos brasileiros:
“Conspiração atual é tipicamente brasileira, não sendo unificada e tendo a presença
de um excesso de possíveis líderes. Entretanto, todos os grupos de que sabemos
reconhecem a necessidade de qualquer movimento abranger o todo do país.”38

A extrema complexidade da sociedade moderna problematiza a noção de hegemonia


de classe e sugere muito mais a noção de bloco de poder. Considerar a idéia de sistema
político como campo de embates, espaço em que o confronto (mas não a ruptura) é
recorrente, e não a exceção, sugere que o resultado das políticas “política” [sic], econômica,
e social encaminhadas pós-64 foi resultado de um conflito de interesses existente entre as
diferentes facções golpistas que assumem o poder naquele momento e não de uma classe
específica. Neste sentido, o IPÊS seria mais um dentre outros.

38
Lincoln Gordon era o Embaixador dos Estados Unidos no Brasil às vésperas do golpe. Nota de página
citada em DREIFUSS, op. cit., p. 282.

19
20

Os Institutos
O IPÊS foi fundado em 1o de janeiro 1962. Segundo apresentação feita pela própria
instituição, ela reunia “empresários e democratas” do eixo Rio-São Paulo que teriam por
função “defender a democracia e impedir a propagação do comunismo e o estabelecimento
de regimes totalitários”. Além disso tinha por missão, segundo uma reportagem da época,
“dar ênfase ao desenvolvimento econômico e social e aproximar o nível de vida brasileiro
aos níveis alcançados pelos povos dos países mais desenvolvidos”.39 Neste sentido, seria
um organismo eminentemente de propaganda e mobilização contra o perigo próximo de
comunização e de ameaça à democracia que estariam afetando o país.
Para aqueles que o haviam fundado, a democracia estava profundamente ameaçada
não somente em decorrência do perigo vermelho, mas também em função do excesso de
passividade e da falta de mobilização daqueles que deveriam ser “democratas” por
essência. O discurso veiculado pelo Instituto assinalava que, num momento em que a
democracia estava sendo gravemente afetada, aqueles que eram diretamente responsáveis
por sua defesa estavam por tomar uma posição de omissão e negligência. O perigo de tal
“passividade” seria a repetição de contextos históricos que viabilizaram a ascensão do
nazifascismo bem como do comunismo.40
Tornava-se, portanto, de fundamental importância mobilizar esses grupos,
arregimentando-os em torno da defesa da democracia. Para os ipesianos isto significava a
defesa da sua própria forma de sobrevivência. A liberdade democrática, tal como a
concebiam, estava intrisecamente ligada à liberdade de iniciativa e mesmo ao sistema
capitalista, faces de um tetraedro “que é a imagem do homem livre” e que “parecia
destinado ao mergulho na noite da história vivida, dos sistemas superados”.41
É justamente sobre este aspecto que se observa uma maior ênfase dos artigos do
IPÊS. O anticomunismo apresentado em seus veículos de informação caracterizava-se
muito mais por estabelecer e valorizar as premissas de sua concepção de democracia do que
na crítica ao comunismo em si. Com este objetivo, seus organizadores estabeleceram

39
Arquivo Nacional, Seção de Documentos Privados, Caixa 47, pacote 02.
40
O Brasil precisa de você. Filme realizado sobre a direção do IPÊS. Arquivo Nacional, Seção de
Documentos Sonoros e de imagens em Movimento.
41
LOPES, Lucas. “Panorama industrial”. In: Boletim mensal, n° 11, ano II, p. 9, junho 1963. Segundo
Starling, Lopes era um dos principais articuladores da rede de tecno-empresários com os interesses multi-
nacional-associados, sendo ainda, ativo conferencista da Escola Superior de Guerra. Sobre o importante papel

20
21

basicamente duas estratégias de ação. A primeira delas seria a estruturação de cursos,


palestras, seminários e o apoio à publicação de determinados livros que propagassem sua
perspectiva de sociedade.42 Um exemplo disso foi a organização do Curso de Atualidades
Brasileiras, que, “além de proporcionar a seus participantes um intercâmbio cultural, lhes
dá oportunidade de reverem conceitos básicos, nos campos da economia, sociologia e
política”.43 Também fazia parte dessa estratégia a elaboração de boletins informativos,
produzidos mensalmente, e que objetivavam a sistematização de determinados princípios.
O público-alvo seriam os homens que possuíam “responsabilidade de comando” no
país – intelectuais e membros da classe empresarial. A intenção era estimular o
aparecimento de um espírito de grupo, de identidade de interesses, que provocasse a
unidade ideológica necessária para a defesa do seu status quo. Ou seja, buscava-se criar o
que seria uma consciência de classe a partir do acirramento da luta pela qual passava o país
naquele momento. É interessante observar que esta dinâmica foi pretendida justamente por
aqueles que queriam negar a luta de classes e a divergência de interesses existentes dentro
da sociedade brasileira: a elite empresarial. A busca dessa uniformidade ideológica não era
desprovida de consciência. Muito pelo contrário. O IPÊS buscou uma forma de estruturação
que tinha uma preocupação fundamental nessa coesão. Apesar da divisão entre IPÊS
Guanabara e IPÊS São Paulo, a “existência de homens de São Paulo e Rio em ambos os
Conselhos assegura(va) a unidade doutrinária e filosófica das duas entidades autonômas”.44
Tratava-se de obter uma consciência de grupo a partir da própria dinâmica da luta de
classes na medida em que se desenvolvia a necessidade de defesa dos interesses de grupo.
Sobre este aspecto, Thompson assinala que a estruturação de uma classe social com a
organização da consciência que lhe corresponde não decorre unicamente do fato de
pertencer a um estrato da sociedade. É na dinâmica da luta que essa consciência surge e se
solidifica.45 Observando-se os meios de propaganda destes Institutos, percebe-se a presença
da intenção de consolidação de uma consciência de grupo em torno de seus objetivos.

desempenhado por ele nas articulações golpistas ver: STARLING, Heloísa. Os Senhores das Gerais.
Petrópolis, Vozes, 1986, p. 55.
42
A relação de livros que tiveram sua publicação sob apoio do IPÊS encontra-se em DREIFUSS, op. cit., p.
653.
43
Editorial. In: Boletim Mensal, n° 32, ano IV, março-abril/1965, p. 7.
44
Idem, ibidem, p. 7.
45
THOMPSON. E. P.. A formação da classe operária inglesa – Tomo I: A Árvore da Liberdade. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1987.

21
22

Uma outra estratégia, seguida em segundo plano, tinha como público alvo diferentes
segmentos sociais. A população em geral, aquela que utilizava o cinema como forma de
lazer também deveria ser destinatária de uma perspectiva de sociedade defendida pelos
empresários e profissionais liberais. Afinal de contas, uma parcela significativa desta estava
sendo alvo da difusão do ideário comunista pelo país afora. Tratava-se, portanto, de
elaborar uma contrapropaganda que viesse a apresentar as “reais” perspectivas a que
poderia ser levado o país diante do comunismo. Para tal, elaboraram uma série de curtas e
documentários. Eram apresentados em cinemas espalhados pelos “quatro cantos do país,
tanto em seções regulares quanto especiais”. Segundo Dreifuss, para aqueles que não
poderiam nem mesmo pagar uma entrada de cinema, o IPÊS montou um esquema de
projeções públicas em caminhões abertos, “mostrando os filmes não só em favelas e
bairros urbanos mais pobres das maiores cidades do Brasil mas também por todo o interior
dos Estados”, ou ainda em fábricas de grandes centros urbanos juntamente com um filme
que era normalmente um faroeste americano.46
Deste material utilizei cerca de 14 películas que foram produzidas com apoio de
empresas cinematográficas tais como o Canal 100 e a Atlântida Filmes. Em função de
terem sido elaborados para um público diferenciado em relação aos primeiros – de
empresários e profissionais liberais – possuía uma mensagem travestida de roupagem mais
direta, atrativa e sedutora do projeto de sociedade pretendido pelo Instituto. Utilizaram-se,
para tanto, de imagens com significativo apelo naquele momento. A Encíclica Mater et
Magistra, elaborada por João XXIII, aparecia recorrentemente no início e fim de vários
desses documentários como que objetivando lembrar a “vocação cristã” da sociedade
brasileira. Outro artifício utilizado era a utilização de trabalhadores como “personagens”
principais, tal como se observa nos documentários “História de um maquinista” e “Criando
homens livres”. Ou ainda na busca pela associação entre o comunismo e os regimes
nazifascistas, onde se observa a presença de cenas de judeus assassinados, discursos de
Hitler e a destruição causada pela Segunda Guerra passados na seqüência de cenas da
invasão da Hungria e de discursos de Fidel, por exemplo.
Quanto ao IBAD, criado em fins da década de 1950, observa-se outra forma de
articulação de sua propaganda. Era responsável pela publicação de um periódico mensal, a

46
DREIFUSS, op. cit., p. 250 e 251.

22
23

Ação Democrática, de distribuição nacional que era distribuído de gratuitamente. Possuía


aproximadamente 120 mil assinaturas em todo o país no ano de 1961, chegando a algo em
torno de 180 mil assinantes já no ano de 1962.47 Observa-se, portanto, que sua mensagem
estava destinada não especificamente para a classe empresarial. Isto apesar de sua origem
ter sido fruto da articulação de grandes empresários e profissionais liberais, tal como o
IPÊS, mas com área de atuação no Nordeste. Apesar de não possuir um levantamento
referente ao tipo de leitor da revista Ação Democrática, a perspectiva adotada é a de que o
público almejado por este Instituto eram prioritariamente as camadas médias.
A revista procurava estabelecer um diálogo constante com seu público leitor através
de uma seção intitulada “Tem a palavra o leitor”. Nesta, por sua vez, cartas de leitores são
apresentadas com algumas posições de crítica contundente à postura da revista. Segundo
seus editores, a presença de posicionamentos contrários ao que era defendido por eles
confirmaria o seu caráter democrático. Um aspecto constantemente abordado pelos leitores
é a valorização da moralidade que o periódico realizava. Daí a tendência em adotar esta
perspectiva do tipo de leitor a que se destinava o periódico. Diversos editoriais presentes –
como por exemplo o dos números 20, 21, 22 e 23 de 1961 – também buscam sinalizar uma
preocupação fundamental da defesa da livre iniciativa. No entanto, a grande maioria das
cartas veiculadas na seção demonstra entusiasmo pela pretensa defesa que o periódico
encaminha em relação aos “princípios democráticos” e no estabelecimento da luta contra o
comunismo. Aliás, estes dois parecem ser os principais lemas do boletim. Observei que o
anticomunismo é muito mais acintoso e presente aqui do que nos informativos do IPÊS.
Nesse sentido, apesar destes dois Institutos apresentarem diversos elementos comuns em
seus artigos, possuíam uma diferença quanto à forma de veiculação de suas mensagens. O
IBAD apresentou-se, em todo o período analisado, numa postura de oposição sistemática ao
governo Jango, aspecto que se encontra mais diluído nos diversos artigos e filmes do IPÊS.
Através de sua revista, o IBAD buscou marcar posição de apoio desde a Ação
Democrática Parlamentar – frente política organizada no Congresso que contava com o
apoio de diferentes partidos de direita e que era composta por aproximadamente 140
deputados –, até a organizações como a denominada MAC (supostamente Movimento
AntiComunista), que pixava muros com palavras de ordem anticomunistas. A partir de

47
Utilizo aqui números apresentados pela própria revista. Dreifuss, no entanto, assinala a circulação

23
24

1962, tal como os órgãos de informação do IPÊS, iniciaram uma campanha que assinalava
a ausência de uma defesa clara e efetiva da democracia por parte de boa parte dos
democratas existentes no país, o que parece ser uma ação preparatória (e contraditória) de
defesa da mesma através de um posicionamento mais agressivo e, se necessário, de
rompimento da ordem constitucional.

As fontes
Para uma abordabem dos Institutos em questão, utilizo como fontes documentais os
Boletins Mensais do IPÊS e sua produção cinematográfica. O importante papel desses dois
canais de comunicação criados pelo Instituto para divulgação de seu ideário junto à opinião
pública interna e externa, bem como a freqüência com que a produção dos boletins ocorria,
possibilitam uma melhor visão da perspectiva de sociedade que os ipesianos possuíam. A
produção do Boletim Mensal estava sob responsabilidade do GOP – Grupo de Opinião
Pública, cuja meta era a formação de uma opinião pública favorável ao projeto do
complexo IPÊS/IBAD. Segundo Dreifuss, esta tarefa se apresentava dentro de uma
perspectiva de
“desenvolver a penetração ideológica, neutralizar a oposição, protelar a organização
política das classes trabalhadoras industriais e impedir a consolidação da posição
nacional-reformista dentro das Forças Armadas, assim como a formação de
favoráveis clivagens políticas e apoio ativo dentre o amplo público das classes
médias...”48.

A grande maioria dos Boletins Mensais analisados foram produzidos no Rio de


Janeiro, uma vez que, como assinala o assistente do General Golbery, Coronel Perdigão,
quase “todas as idéias e programas eram produto da iniciativa do Rio”.49
Também utilizo o periódico Ação Democrática, do IBAD, que se caracteriza pelos
mesmos aspectos apontados anteriormente sobre a produção impressa do IPÊS. Em ambos
os periódicos boa parte das reportagens não é assinada, o que lhes confere o status de
posição oficial dos órgãos que representam. Neste sentido, diferem significativamente dos
periódicos que são analisados mais adiante referentes às Forças Armadas que apresentavam
o posicionamento de diferentes facções de direita, como se vê no capítulo seguinte. Isto

aproximada de 250 mil exemplares. DREIFUSS, op. cit., p. 234.


48
DREIFUSS, op. cit., p. 193.
49
Citado em DREIFUSS, op. cit., p. 179.

24
25

porque tanto o IPÊS quanto o IBAD apresentavam-se como instituições que possuíam, já
em sua origem, o objetivo da defesa de uma posição específica quanto à determinados
temas em debate na sociedade brasileira, o que lhes dava uma maior homogeneidade
interna.
A importância de ambas as fontes utilizadas encontra-se no destaque que as duas
instituições que os produziam possuíram nas articulações golpistas encaminhadas na década
de 1960.50 O IBAD foi uma das primeiras instituições encaminhadoras do processo de
deposição de Jango da Presidência da República. Fechada em 1963 devido ao repasse de
verbas obtido junto a órgãos estrangeiros para a eleição da Câmara dos Deputados ocorrida
em 1962, uma parcela de seus participantes também fazia parte dos quadros do IPÊS. Esta
instituição, a partir de 1963, passou a aglutinar boa parte dos participantes do extinto
IBAD. Dentro desta perspectiva, os dois periódicos apresentaram-se como instrumentos
importantes de aglutinação de forças para a defesa de seu status quo.
Deve-se observar também que a documentação aqui analisada guarda numa
diferença fundamental em relação aos periódicos utilizados para a identificação dos
projetos de sociedade presentes entre os militares que são abordados no capítulo 2. Além de
uma diversidade de opinião presente nas revistas A Defesa Nacional e Clube Militar – que
não são identificadas nos periódicos da sociedade civil analisados –, observa-se nas fontes
aqui trabalhadas uma diferença quanto aos objetivos de sua organização e veiculação. Estas
teriam por finalidade a divulgação de um determinado ideário ou projeto de sociedade e não
de se apresentar como um espaço para o debate em torno de propostas.
Quanto aos objetivos destes meios propagandísticos, determinados aspectos
abordados por Baczko, em trabalho no qual analisa as questões relativas ao imaginário
social, podem ser elucidativos. Analisando a incorporação de tecnologias à propaganda
assinala que
“A invenção de novas técnicas, bem como o seu refinamento e diferenciação,
implicavam a passagem de um simples manejo dos imaginários sociais à sua
manipulação cada vez mais sofisticada e especializada. A partir desse momento, a
história do savoir-faire no domínio dos imaginários sociais confunde-se em grande
parte com a história da propaganda, isto é, a evolução das suas técnicas e

50
DREIFUSS, op. cit.

25
26

instituições, a formação do seu pessoal, etc., campo este que continua ainda mal
estudado”.51

A articulação desses mecanismos formadores de opinião foram utilizados com


grande competência por parte de institutos como IPÊS/IBAD. Não foi sem sentido que
estes periódicos, bem como a filmografia produzida pelo IPÊS para a divulgação de seus
projetos de sociedade, apareceram justamente em fins da década de 1950 e princípios da de
1960. Baczko assinala ainda que são nos momentos caracterizados por “conflitos sociais
graves” em que as imagens de si mesmo e de seus inimigos são elaboradas de forma mais
intensa. Da mesma maneira, estas fases são configuradas pela estruturação de percursos a
serem atingidos a partir destas ações. Isto porque, ao mesmo tempo em que se busca
racionalizar e dar sentido aos embates que então se realizam, almeja-se legitimar
determinados posicionamentos dentro do confronto em questão, com objetivos de
construção/consolidação de uma hegemonia calcada num “fundo de crenças comuns que
expressa o sentimento de existência de coletividade”.52 Trata-se de um momento no qual
também os bens simbólicos, como instrumentos que duplicam e “reforçam a dominação
efetiva pela apropriação dos símbolos”, são avidamente disputados para garantir a
“obediência”.53
Relaciona-se a estruturação dos veículos de propagação de seus projetos de
sociedade – pertinente aos institutos ora analisados – com o objetivo de solidificar as
“imagens exaltantes e magnificentes” de seus objetivos perante um público mais vasto, fora
de seus quadros já articulados. Dentre estes objetivos pode-se apontar, neste sentido, a
intenção de propagação de uma determinada perspectiva de sociedade a ser consolidada:
“É assim que, através de seus imaginários sociais, uma coletividade designa a sua
identidade; elabora uma certa representação de si; estabelece a distribuição dos
papéis e das posições sociais; exprime e impõe crenças comuns; constrói uma
espécie de código de ‘bom comportamento’(...) Porém, designar a identidade
coletiva corresponde, do mesmo passo, a delimitar o seu ‘território’ e suas relações
com o meio ambiente e, designadamente, com os ‘outros’; e corresponde ainda a
formar as imagens dos inimigos e dos amigos, rivais e aliados, etc. O imaginário
social elaborado e consolidado por uma coletividade é uma das respostas que esta dá
aos seus conflitos, divisões e violências reais ou potenciais. Todas as coletividades

51
BACZKO, Bronislaw. “Imaginação social”. In: Enciclopédia Einaudi-Anthropos-Homem, vol. 5°, Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985, p. 300.
52
Idem, p. 306.
53
Idem, p. 299.

26
27

têm os seus modos de funcionamento específicos a este tipo de representações.


Nomeadamente, elaboram os meios de sua difusão e formam os seus guardiães e
gestores, em suma, o seu ‘pessoal’”.54

O objetivo último com a organização desses veículos de informação – Boletim


Mensal do IPÊS, Ação Democrática, bem como da produção cinematográfica citada –
seria, portanto, a construção da legitimidade para o seu projeto de sociedade com vistas a
desqualificar aqueles apresentados por seus adversários e, mais do que isso, capacitá-los à
disputa pelo poder.

54
Idem, p. 309.

27
28

Anticomunismo empresarial
Apesar deste estar presente de forma enfática principalmente no IBAD, também se
pode observá-lo na produção oriunda do IPÊS, ainda mais se analisadas as produções
cinematográficas produzidas por este Instituto em associação com outras empresas, tais
como o Canal 100 e a Atlântida Filmes. Num primeiro momento, procuraro abordar de que
forma se manifestava o anticomunismo veiculado por estes institutos, e quais os motivos
que tornavam a divulgação da doutrina marxista no Brasil tão perigosa para a sociedade,
segundo suas concepções. Outro elemento de minha preocupação é a identificação dos
aspectos que eram entendidos pelos seus componentes como sinais de manifestação do
“perigo vermelho”.
Um primeiro fator que deve ser abordado neste anticomunismo é a contínua
associação entre comunismo e totalitarismo. Para os ipesianos não existiam diferenças
significativas entre nazismo, fascismo e comunismo. Todos estas manifestações de
totalitarismo caracterizam-se pela existência do “Etat providence que encontrou no
fascismo de Mussolini e no nazismo de Hitler, por um lado, e no comunismo de Nikita (e
subordinados) ou de Mao, por outro, sua mais perfeita realização histórica”.55 Para eles,
todos se caracterizavam também por serem governos mantidos pela força das armas e
submetendo a sociedade a uma ditadura, “destruindo a democracia ante a passividade da
maioria dos democratas”.56
Em documentário produzido pelo IPÊS, intitulado “O que é o IPÊS?”,57
nazifascismo e o comunismo são apresentados em íntima associação. Esta se manifesta
através de uma seqüência de imagens com força significativa que não pôde ser reproduzida
nas páginas deste texto. Aparecem imagens iniciais de Fidel Castro, concentrações
populares, paradas militares soviéticas, Kruchev e, por fim, novamente Fidel. Estas
imagens, por sua vez, são complementadas e intercaladas por discursos de Adolf Hitler,
cenas do holocausto e da suástica nazista. Buscavam, dessa forma, estabelecer um vínculo
entre as experiências passadas e as perspectivas futuras que se apresentariam para o país.
Ao associar comunismo e nazifascismo, ambos os institutos procuravam indicar que o

55
Idem, ibidem.
56
O Brasil precisa de você. Filme dirigido sob direção do IPÊS. Arquivo Nacional, Seção de Documentos
Sonoros e de imagens em Movimento.
57
O que é o IPÊS? Filme produzido sob direção do IPÊS. Arquivo Nacional, Seção de Documentos
Sonoros e de imagens em Movimento.

28
29

futuro que se imporia para os brasileiros, ao optarem pelo sistema comunista, seria o
mesmo vivenciado pela Alemanha nazista e pela Itália de Mussolini: holocausto,
perseguições, privação de liberdade dentre outros mais. Para eles o “totalitarismo (...) é uma
situação política, social definida pela progressiva encampação pelo Estado de todas as
atividades próprias da sociedade”.58
A situação agravava-se ainda mais pela possibilidade de sua implementação de
forma gradativa, “numa sociedade ornada de câmaras e demais aparelhos do formalismo
democrático”.59 A oposição fundamental era, portanto, entre totalitarismo e democracia. No
primeiro, a liberdade seria inexistente em função da supressão da liberdade de expressão,
de livre manifestação, de ir e vir e, principalmente, de livre iniciativa. No sistema político
defendido por eles, democracia seria “o contrário da loucura ideológica e política que levou
Hitler e Mussolini à loucura ideológica mais destruidora de toda a história. O nazifascismo
era o inimigo da democracia”.60 O regime democrático, por sua vez, sofria
“uma nova ameaça (...): o comunismo. Pois não se pode votar, não se pode escolher
os dirigentes, onde se restringe o direito de ir e vir, onde a imprensa é estrita
propriedade do governo, onde a liberdade é restringida, onde inexiste a igualdade de
direitos entre homens e mulheres (...)”.61

O comunismo apresentava-se ameaçador muito menos como um sistema ideológio


do que como um sistema político eliminador das liberdades, principalmente a econômica. A
ausência de liberdade era um fator característico dos regimes totalitários. Nenhum outro
regime garantiria a presença da liberdade como o regime democrático, posto que esta seria
a sua essência. Buscavam, neste sentido, alertar a sociedade da descrença geral quanto à
capacidade de gerar soluções para os problemas que enfrentava através de “seus próprios
recursos imanentes”. O “medo da liberdade”, esta “enfermidade que se espalhava pelo país
segundo ipesianos e ibadianos, acabaria por transformar em “realidade histórica” a idéia de
que só o “Estado, a extroversão máxima e compulsória” seria a solução. Afirmava-se assim,
concluíam, a fé no “Estado Total, onipotente e onipresente”.62 Além disso:

58
CORÇÃO, Gustavo. “Totalitarismo aniquilador do Comunismo” In: Revista Ação Democrática, n° 23,
abril de 1961, p. 4.
59
Idem, ibidem.
60
Que é a democracia?. Filme produzido por Jean Manzon e Atlântida Filmes sob direção do IPÊS. Arquivo
Nacional, Seção de Documentos Sonoros e Imagens em Movimento.
61
Idem, ibidem.
62
CORÇÃO, “Totalitarismo aniquilador do Comunismo”, op. cit., p. 4.

29
30

“Liberdade é a grande diferença entre o homem e os animais. Esta diferença deixa


de existir dentro do socialismo. O comunismo põe fim à liberdade humana e em vez
de acabar com o domínio da máquina de aço, cria outra, de carne e osso”.63

O totalitarismo comunista, além de “animalizar” a sociedade, apresentava-se


também como agente eliminador da liberdade religiosa, segundo afirmavam. Na medida em
que, para a sobrevivência do Estado comunista, necessitava-se de uma convicção de que ele
se tornaria provedor de felicidade absoluta e, na medida em que o pensamento marxista
apresentava a religião como ópio do povo, ele tornava-se uma crença de caráter religioso
posto que o “Estado Total ganha atributos de divindade e a política se torna uma mística”.64
Isto, acreditavam eles, tornava necessário a supressão de toda e qualquer religião que viesse
a estabelecer uma concorrência com relação à crença da mística do Estado. A religião cristã
apresentava-se como um dos “impedimentos psicológicos” para a propagação comunista e,
por isso, deveria ser eliminada. Ambos eram mutuamente excludentes segundo ipesianos e
ibadianos. Não se pode esquecer que a própria Igreja contribuía para esta oposição
comunismo × religião, ao afirmar que o “socialismo é condenado pela Igreja como ateu e
materialista.”65 Neste contexto, todos os católicos estavam convocados para uma nova
“cruzada”, onde o objetivo era “construir a casa do progresso do nosso país com os planos
de Deus” e não “segundo os planos do comunismo, destruidor da liberdade e da dignidade
do homem”.66
O Estado totalitário também seria o responsável pela manutenção das desigualdades
entre os homens. A pretensa difusão de que o regime comunista estabeleceria a igualdade
seria de caráter propagandístico, sem efeito prático. Desta forma, quem
“deseja combater o comunismo precisa conhecê-lo bem e, inclusive, reconhecer as
suas qualidades. Muitas dessas são fictícias. Por exemplo, o comunismo promete a
igualdade, e na prática, nos países comunistas, há alguns poucos chefes, que agem
como tiranos sobre as massas. O comunismo promete uma distribuição de riquezas
entre todos, e o que vemos nos países comunistas é a miséria generalizada, menos

63
Editorial. “Católico-comunista, a grande heresia de nossos dias”. In: Ação Democrática, n° 41, outubro
1962, pp. 3 e 4. Contém partes de texto sem referencia específica de Dom Basílio, ex-prior do Monsteiro de S.
Bento.
64
CORÇÃO, “Totalitarismo aniquilador do Comunismo”, op. cit., p. 4.
65
Editorial. “Católico-comunista, a grande heresia de nossos dias”, op. cit., Palavras de D. Vicente Scherer
citadas no artigo.
66
Idem, ibidem.

30
31

para os novos aristocratas, os chefes do partido, os militares e alguns outros


privilegiados”.67

Ao estabelecer um regime excessivamente centralizado, o comunismo possibilitava


a concentração das riquezas numa casta de privilegiados ainda menor que o capitalismo,
que seria formada pelo novo corpo de burocratas do Estado. Relegava, assim, o conjunto da
sociedade a uma igualdade na miséria e na submissão.
Esse regime destruiria a individualidade e os direitos do homem para o
estabelecimento de uma “tirania ditatorial”, tornando-o apenas em uma “peça do Estado” e
eliminando a sua dignidade. A afirmação da individualidade – condição básica para que a
democracia existisse segundo membros do IPÊS/IBAD – manifestava-se na sua plenitude
através da livre iniciativa, uma das “forças imanentes da sociedade”. Já o regime
democrático caracterizava-se pela possibilidade de desenvolvimento livre de atividades
espontâneas da sociedade que viabilizavam a plena manifestação do homem como
indivíduo e não como mais “uma peça do Estado” ou apenas “parte de um todo”. Ao
submeter toda a sociedade ao Estado, o destino de toda uma nação estaria subjugada às
perspectivas de um pequeno grupo, uma “casta privilegiada” segundo afirmavam. A
associação entre democracia e livre iniciativa é colocada a todo o momento nos diversos
artigos produzidos pela propaganda dos dois Institutos. A extinção da primeira significava a
eliminação da segunda.
Por que, no entanto, o “perigo vermelho” tornava-se cada vez mais ameaçador?
Quais os indícios que se apresentavam na sociedade brasileira e que provocavam a
necessidade de uma ampla mobilização, articulada pelos “homens de liderança”, para deter
o avanço do comunismo no Brasil? Neste momento, percebe-se uma certa influência entre
ipesianos e ibadianos da Doutrina de Segurança Nacional. A idéia de que, no Brasil, se
observava o estabelecimento de uma etapa da consolidação do comunismo apresenta-se em
diferentes momentos. Apesar de não abordar o assunto diretamente pela idéia de guerra
revolucionária (ou insurreicional), consideravam que um dos principais aspectos para a
disseminação do comunismo era a situação de profunda miséria que abrangia boa parte da
sociedade brasileira. Na verdade, entendiam que a existência de profundas contradições
sociais contribuíam para a propagação do perigo vermelho, mas a causa fundamental estaria

67
Editorial. “O prazer de ser escravo”, op. cit., p. 3.

31
32

na forma pela qual os comunistas instrumentalizavam essas contradições a favor da causa


do totalitarismo.
“Em torno da fome e da miséria do Nordeste trava-se uma verdadeira batalha.
Enquanto persistirem essas condições, aquela parte do Brasil será o terreno mais
promissor para o comunismo, porque a ele os homens são freqüentemente levados
pelo desespero. A propaganda completamente falsa dos vermelhos aponta sempre
para o paraíso terrestre que um regime marxista pode proporcionar. Quem está
faminto tende a agarrar-se a essa quimera. Quem é analfabeto não pode julgar com
precisão das verdadeiras condições que imperam nos países dominados pelo
comunismo”.68

Não era a miséria em si que era um problema, mas a miséria “nas mãos” dos
comunistas. Para ipesianos e ibadianos, o comunismo tentava se aproveitar da situação
estimulando o aprofundamento dessas contradições uma vez que sua política era, segundo
afirmavam, a do quanto pior, melhor. Os comunistas, neste sentido, precisavam “manter
viva a chama da revolta contra a injustiça social e impedir que a luz da instrução dissipe as
nuvens da sua propaganda. Precisam, inclusive, manter a injustiça social que desperta a
revolta.”69
Se os conceitos de guerra revolucionária e insurrecional não eram abordados
diretamente, o de subversão estava bastante presente. Personagens como o “sr. Julião” eram
constantemente associados à figura de Fidel Castro, bem como suas reivindicações àquelas
presentes na Revolução Russa. Buscava-se, dessa maneira, estabelecer uma ótica de análise
segundo a qual toda e qualquer manifestação de contestação à estrutura social vigente seria
desdobramento da influência subversiva dos agentes de Moscou:
“(...) Na longa confissão feita à ‘Tribuna’ (...) ficam os brasileiros habilitados a
saber o que pretende o homem que mistura Cristo com Lenine, Mao Tse Tung e
Fidel Castro. (...) Mas o que interessa não é o auto-retrato do sr. Julião, nem sua
biografia. É saber o que pretende ele com suas Ligas. (...) A resposta vem na própria
entrevista: ‘O acesso à terra, liberdade para cultivá-la e justiça social’. Se não nos
enganamos, esse tríptico já fora aqui outrora enunciado por que das variantes do
comunismo sob a legenda: ‘Pão, terra e liberdade’. (...) Sua preocupação [é] de
estender a todo o nosso país as agitações que está promovendo no Nordeste. Com
que fim? O sr. Julião não o oculta: ‘liquidar a sociedade capitalista’”70.

68
Editorial. “Estará em boas mãos a SUDENE?”. In: Revista Ação Democrática, n° 23, abril 1961, p. 9.
69
Idem

32
33

Como se pode observar, não é questionado o que o “Sr. Julião” pretende, mas tão
somente busca-se associar suas reivindicações com outro enunciado de origem comunista.
Falava-se até mesmo na existência de um modelo de subversão exportado pela União
Soviética e pelos seus países satélites para o continente latino-americano, principalmente
através de Cuba.
“Qualquer um, por menos observador que seja, tem aí indícios suficientes para
concluir que o sr. Julião se propõe ser a réplica brasileira do barbudo comandante
dos guevaras, o qual, fraudando os ideiais da revolução que abateu Batista, e
defraudando as esperanças de paz e democracia de seus compatriotas, plantou ali
uma ativa sucursal do comunismo soviético.
Diante do fenômeno Fidel Castro ninguém de boa-fé conseguirá separar esta
ou aquela realização da orientação marxista por ele adotada e imposta aos seus
compatriotas pela violência, que é sua força de convicção”.71

No entanto, se na DSN o perigo provinha principalmente das instrumentalização das


contradições internas pelo movimento comunista internacional com objetivo de propagação
de regimes totalitários, entendiam ipesianos e ibadianos que a ameaça à democracia
provinha principalmente da ampliação dos tentáculos do Estado sobre a economia. Segundo
esses grupos, não eram medidas mais amplas tais como as reformas de base, e dentre estas a
reforma agrária, o aspecto mais preocupante. Para eles, a crença cada vez maior de que o
Estado deveria tornar-se o grande provedor da felicidade geral, do bem-estar, contribuía
para que, passo a passo, a livre iniciativa fosse cerceada.
Neste sentido, o Estado teria um papel fundamental na preparação de um caminho
que acabaria por estabelecer, inevitavelmente, o totalitarismo comunista e a subversão
presente em outros níveis da sociedade. Estes aspectos apresentar-se-iam como
desdobramentos de um problema iniciado no âmbito do Estado, melhor dizendo, do
governo. A presença do Estado, fora do que seria suas funções básicas de assessoramento à
liberdade de iniciativa, representava um “defeito de organização” que se manifestava cada
vez mais na medida em que este extrapolava os limites de sua competência e não permitia
“por em marcha as forças realmente criadoras de nossa economia”.72

70
Editorial. “O nordeste e as ligas camponesas”. In: Revista Ação Democrática, n° 28, setembro 1961, p.
13.Transcrição de Editorial do Instituto Brasileiro de Ação Democrática transcrito do Jornal O Globo, de 18
de julho de 1961.
71
Idem, ibidem.
72
LOPES, Lucas. “Panorama industrial”. In: Boletim mensal do IPÊS, n° 11, ano II, junho 1963, p. 9.

33
34

Uma das facetas desse papel estatal exacerbado seria o nacionalismo “complexado”
defendido pelos grupos de esquerda. De certa forma o nacionalismo é confundido com o
estatismo crescente em função da política desenvolvimentista que tentava ser implementada
pelo governo Goulart, pretendida através da industrialização com capital nacional e, na
ausência deste, com o estatal. Ao mesmo tempo, buscava-se associar nacionalismo e
estatismo como uma forma de apresentá-los de forma negativa à opinião pública, como
uma etapa do processo de comunização do país. Gustavo Corção, consultor de redação da
Revista Ação Democrática e um dos principais elaboradores de seus artigos, assinalava que
“Ainda recentemente no Planalto (...) as câmaras criaram a Eletrobrás. Amanhã ou
depois surgirá a Telefonebrás. Depois será a vez da nacionalização e encampação da
indústria vinícula, e teremos a Vinhobrás. E já temos um maluco, que se
corresponde regularmente e unilateralmente comigo e que no ano passado, se não
me engano, fundou a ‘Egobrás’, que é a brasificação protocolada e estampilhada de
cada um de nossos egos”.73

Buscava, dessa forma, invalidar as propostas nacionalistas não somente de grupos


de esquerda, mas também aquelas encaminhadas por facções que se afirmavam
anticomunistas em essência, tal como os existentes nas Forças Armadas e, até mesmo, entre
parcelas minoritárias da UDN. Na medida em que o nacionalismo estatizante podava a
liberdade da iniciativa privada, entendiam eles que se colocava em risco um dos principais
alicerces da democracia. A desconfiança quanto aos objetivos das “forças imanentes” da
sociedade (leia-se iniciativa privada) criava um clima que “prepara, estimula, condiciona e,
finalmente, exige a implantação dos regimes negadores da liberdade e destruidores da
democracia”.74
Dois artigos apresentam de forma exemplar o esquema pelo qual esses grupos
compreendiam que se disseminava o comunismo no Brasil: “A Grande Conspiração” e o
“Roteiro de Kozak posto em prática no Brasil”. A estratégia assim denominada – devido ao
nome do Secretário Geral do Partido Comunista da Tchekoslováquia que teria tornado
público a estratégia de conquista do poder seguida pelos comunistas brasileiros – foi
amplamente divulgada pelos grupos de direita como a concretização de seus temores.
Segundo este, haveria um plano padronizado de tomada do poder pelos comunistas
já implementado em países como Rússia, Polônia, Romênia e Cuba. Este roteiro estaria

73
CORÇÃO, “Totalitarismo aniquilador do Comunismo”, op. cit.

34
35

sendo repetido no Brasil, onde a “tomada do poder exige a presença simultânea de dois
focos de ação: um deles da cúpula do governo do país cujo poder se pretende tomar; outro
na base social, integrada pelos sindicatos e associação estudantis”.75 . Em seu bojo, uma das
fases “mais importantes seria a da nacionalização das indústrias e dos bancos, pois, já tendo
assumido o controle político, começa a ofensiva pelo controle econômico”.76
Qual seria o motivo desse avanço sobre o Brasil por parte da ofensiva comunista?
“Reconhece, agora, a estratégia soviética que o Brasil é a porta de entrada na
América Latina e a comunização do Brasil representará a comunização de toda a
América Latina, porque o país encerra em si mesmo a possibilidade de ação que
Cuba não dispõe para exercê-la. Concluindo a comunização da América Latina,
ficam os Estados Unidos completamente fechados [por países comunistas]. Como se
vê, o Partido Comunista Brasileiro está desempenhando um papel extraordinário na
estratégia russa, sendo perfeitamente justificáveis os esforços da Rússia no sentido
de auxiliar os brasileiros no movimento comunista de Porto Alegre, Estado do Rio,
Recife e Brasília, para execução da grande manobra indispensável ao
estrangulamento da liberdade pessoal no mundo”.77

Ora, os empresários, ao assinalarem estes dois focos de ação dos comunistas em


questão, apresentavam justamente os aspectos que ameaçavam o desenvolvimento da livre
iniciativa naquele momento: a agitação social com sua contestação da propriedade privada
e a ampliação do papel estatal na economia com o estabelecimento de um competidor em
potencial da iniciativa privada.

74
Editorial., “Cruzada inadiavel”. In: Revista Ação Democrática, n° 24, maio 1961, p. 1.
75
PAIVA, Glicon de. “A grande conspiração”. In: Revista Ação Democrática, n° 39, agosto 1962, pp. 4 e 5.
76
Editorial. “Roteiro de Kozac posto em prática no Brasil”. In: Revista Ação Democrática, n° 38, julho
/1962, p. 22.
77
PAIVA, “A Grande Conspiração”, op. cit.

35
36

O desenvolvimentismo do IPÊS/IBAD
“(...) Se o propósito é estrangular o desenvolvimento
econômico do país, o método mais rápido e eficaz seria o Governo tomar
conta de tudo (...). É facílimo reprimir as práticas abusivas em casos
como o do Brasil. Basta que se reduza a proteção alfandegária de que
gozam quase todas as nossas indústrias, para que baixem os preços a
níveis razoáveis.”

Editorial da Revista Ação Democrática

As propostas desenvolvimentistas que foram elaboradas por estes grupos da direita


na sociedade civil desdobraram-se da compreensão que tinham do quadro político,
econômico e social que caracterizava a sociedade brasileira. A partir da identificação de
determinadas “imagens compartilhadas” pelos participantes do IPÊS/IBAD, pode ser
reconstruído, em boa parte, o caminho que levava a elaboração dos projetos econômicos
desses grupos. No entanto, há de se estabelecer uma clara divisão. De um lado existe a
caracterização de como aquela realidade apresentava-se para eles e quais os problemas
fundamentais a serem enfrentados. De outro, bem diferente, mas que se elabora a partir da
primeira, foi o projeto desenvolvimentista construído a partir dessas análises.
Explanando, inicialmente, o quadro de problemas econômicos que atingiam a
sociedade brasileira segundo a ótica de ipesianos e ibadianos, torna-se de fundamental
importância apontar que estes grupos entendiam que o país caminhava perigosamente para
o totalitarismo. Como assinalado anteriormente, a existência de um Estado que tudo
buscava controlar apresentava-se como uma ameaça constante. O estatismo crescente para
o qual o país dirigia-se estaria por proporcionar uma crítica injustificada e cada vez mais
enfática contra a propriedade privada. Na ânsia de defender os interesses da máquina
governamental, procurava-se criar, segundo ipesianos e ibadianos, uma atmosfera na qual a
propriedade privada fosse incriminada pelas diversas dificuldades que o país atravessava. O
objetivo dessa crítica estaria, em última instância, localizado na intenção de minar a vida
democrática através da eliminação de um de seus principais esteios: a livre iniciativa.
Também o movimento nacionalista estaria, dentro da concepção desses institutos,
fazendo parte do processo de implementação do totalitarismo. Consideravam que nem
todos os nacionalistas eram comunistas, referência que poderia estar associada às frações
das direitas que adotavam tal posicionamento. Mas entendiam que de alguma forma eles
contribuíam para a ampliação da infiltração comunista Segundo essa perspectiva, as

36
37

“fórmulas nacionalistas são todas feitas de exasperações de egoísmos nacionais motivadas,


sem dúvida, pelo jogo internacional de outros egoismos nacionais preexistentes”.78 Dentro
deste ambiente, onde os “revolucionários comunistas exploram os sentimentos nacionalistas
dos povos subjugados”, o “lobo vermelho” estaria numa posição cômoda para estabelecer o
ambiente propício com vistas a minar as bases da sociedade brasileira. Seria, conforme
apontavam, uma maneira de estender o controle dos comunistas, que já estariam detendo o
poder político dentro do Governo Jango, ao setor econômico:
“A máscara nacionalista pretende negar a estrangeiros a exploração de nossas
riquezas naturais e dos serviços públicos. (...) Não somente se pretende impedir que
capitais estrangeiros explorem novos serviços, mas ainda pretende-se comprar deles
os serviços que são atualmente por eles explorados. (...) Precisamos do capital
estrangeiro e parece um crime impedi-lo de ajudar-nos. Não quero dizer que todos
os nacionalistas sejam comunistas, porque isto não seria verdade. Mas é verdade
que os comunistas pregam o nacionalismo para prolongar a nossa pobreza, aumentar
o nosso desespero e facilitar a revolução comunista”.79

No entanto, o que os levava a acreditar que esta rota estava sendo empreendida no
Brasil? Um dos elementos de suma importância era que, para eles, o Estado estendia seus
tentáculos sobre as diferentes formas de livre manifestação da sociedade. Almejavam os
nacionalistas impedir a iniciativa privada de empreender a exploração de “nossos recursos
naturais pois desejavam que “estes serviços (fossem) explorados pelo Governo”. Existiria
uma relação íntima entre nacionalismo e estatismo que se explicaria como desdobramento
da ausência de capital nacional privado, de poupanças internas. Neste sentido, o movimento
nacionalista não possuía outra perspectiva além da defesa do aumento do poder do Estado
como agente empreendedor no campo econômico. Era sobre os grupos que defendiam esta
via de desenvolvimentismo que as baterias dos dois institutos deveriam disparar.
As “forças imanentes” da sociedade acabariam por ser podadas para favorecer a um
Estado que a tudo englobava e que se tornava cada vez maior. O caminho totalitário que se
esboçava estava sendo trilhado posto que se eliminava o curso natural da sociedade para dar
vazão a um Estado que tudo domina. O perigo tornava-se grande, ainda, porque o
movimento não ocorria apenas na forma de pressão do Estado junto à sociedade. Não era

78
CORÇÃO, Gustavo. “Bom governo: paz e harmonia”. In: Revista Ação Democrática, n° 21,
fevereiro/1961, pp. 10 e 11.
79
Editorial. “Mais de 100 bilhões em prejuízos em 1952”. In: Revista Ação Democrática, n° 44, janeiro/1963,
pp. 6 e 7. O artigo reproduz parte do trabalho de GAMA, André. “Nossos males e seus remédios”.

37
38

apenas de cima para baixo que ele se colocava. O mais grave era que diversos e diferentes
grupos da sociedade colocavam-se favoravelmente a esse encaminhamento e acabariam
dando respaldo para o crescente poder estatal.
Para ipesianos e ibadianos, esses grupos possuíam uma visão limitada da sociedade
e não enxergavam que o perigo que se colocava era o de extrema atomização da vida social.
Ainda em 1961, quando a ameaça parecia afastada temporariamente em função da ascensão
de Jânio Quadros à presidência da República, eles alertavam:
“Onde iremos parar? Quem poderá imaginar o que será de nós se o totalitarismo
crescente chegar ao grau de perfeição, ‘sui generis’, que atingiu na União Soviética?
A próxima ditadura que ainda não se delineia, porque para esse tipo de ameaça os
tempos não são mais favoráveis e existe alguma vigilância, será muito mais nefasta
de que a de Vargas, por encontrar a sociedade pasteurizada para o perfeito Estado
Total manobrado por uma minoria ativa. (...) Tudo são apelos singelos, inocentes,
feitos ao Estado Onipotente. Não há idéia de um apelo ao Estado Maternal e
Providencial”.80

A criação de uma série de empresas estatais, o protecionismo alfandegário, a busca


pelo controle da remessa de lucros para o exterior, a ênfase exagerada num
desenvolvimentismo “equivocado” em seu ritmo e a existência de um planejamento mal
elaborado eram algumas das formas que assumiam a ameaça estatal. O Estado, através
destas diferentes práticas, buscaria subjugar todas as forças da sociedade a um interesse
único desvinculado das “reais” necessidades do corpo social.
Uma das manifestações contrárias à ampliação do papel estatal encontrava sua
justificativa no fato de que ela estaria ocorrendo num momento em que a ação das forças
espontâneas da sociedade seria fundamental para o desenvolvimento do país. O Estado, ao
entrar de forma excessiva e desordenada no domínio da iniciativa privada, não se revestia
de características “pioneiras e supletivas”, “legítimas” em um país subdesenvolvido,
segundo entendiam. Para eles, os empresários que defendiam o nacionalismo estatizante
estariam por buscar os benefícios do Estado para o enriquecimento próprio às expensas do
conjunto da população. Utilizavam-se do protecionismo e da subvenção estatais para
esconder uma suposta incapacidade empresarial.
No Brasil, assinalavam, o Estado tal como se configurava, acabaria por contribuir
para o abuso do poder econômico na medida em que propiciava o zoneamento de

80
Idem, ibidem.

38
39

mercados, “com seu setor inviolável como cerca de fazenda, na qual poderão à vontade
escorchar o consumidor”.81 O protecionismo afastava a concorrência uma vez que as
barreiras alfandegárias contribuiriam para eliminar os únicos que poderiam fornecer
capitais para viabilizar a capacidade de concorrência por parte da iniciativa privada em
relação às empresas estatais, em vista da escassez de capitais existentes no país. O
protecionismo afastava o capital estrangeiro e a monopolização do mercado contribuiria
para o perigoso aumento do poder estatal, como um círculo vicioso. Era uma inconsistência
que empresários defendessem um nacionalismo que, em função da carência de capitais do
país, acabaria por prover ao Estado um poder que os arrebataria posteriormente do
mercado. No entanto, para ipesianos e ibadianos, a explicação desta postura estava no fato
de que a implementação do totalitarismo seria benéfica para esses “maus” industriais, na
medida em que eles acabariam por compor a “casta de privilegiados” que comandaria a
máquina governamental do futuro regime.
A situação contribuiria, também, para a utilização da máquina do Estado com
objetivos clientelísticos e empreguistas de forma a satisfazer interesses privados. Em
função da ausência de uma lógica da produtividade, lógica que seria própria da iniciativa
particular, uma parcela significativa de funcionários públicos se caracterizariam pela falta
de competência, sendo beneficiados com o processo que estaria em curso. A existência de
um corpo burocrático inchado e dispendioso que viesse a impossibilitar a ação do Estado
em diferentes áreas provocaria a repartição dos custos desta prática com a parcela mais
pobre da população. Também observavam eles que a máquina estatal estava infensa a
interferências de ordem política que não possibilitavam a continuidade necessária para o
desenvolvimento da atividade empresarial, nada fazendo para “coibir a sarabanda infernal
da política vigente, a odiosa distribuição de favores e privilégios, a indisciplina
generalizada, a demagogia desenfreada e o avanço de uma corrupção sem limites”.82 Estes
aspectos acabariam por provocar o emperramento da máquina estatal. A grande presença do
Estado na economia acabaria causando uma pesada carga fiscal para bancar os custos

81
PAIVA, Glycon. In: Revista Ação Democrática, n° 31, janeiro 1962, pp. 23 e 24. Reprodução de entrevista
do economista à revista “O Cruzeiro”.
82
“Manifesto à Nação”. In: Boletim mensal do IPÊS, n° 11, fevereiro/1963, ano II, p. 24. Manifesto dos
engenheiros reproduzido neste número.

39
40

significativos da carregada máquina burocrática, o que mais uma vez onerava o conjunto da
sociedade.
Dentro ainda desta lógica, o peso crescente da máquina do Estado se fazia refletir na
inflação, que provocava o desvio de recursos para a especulação em detrimento da área
produtiva. Mesmo aqueles “empresários ciosos de sua função” viam-se prejudicados pois
incapacitados de aplicarem todos seus esforços na direção do pleno desenvolvimento da
empresa e, por conseqüência, do país. Diante de tal conjuntura, a inflação tornou-se
“um elemento pertubador para a economia inteira. (...) Aos poucos, os mais
ousados empreendedores sentem necessidade de reduzir o vulto de seus
investimentos, já que não mais tem certeza de contar com os recursos financeiros
necessários no momento próprio”.83

Este sim seria um dos principais causadores da situação de subdesenvolvimento em


que o país se encontrava. Ao dirigir a culpa pelo processo inflacionário à iniciativa privada,
o governo e os nacionalistas estatizantes estariam objetivando desviar a atenção do
verdadeiro foco, segundo afirmavam os ipesianos e ibadianos. Boa parte dos motivos da
inflação encontrava-se na corrida desenvolvimentista empreendida pelos governos
anteriores. Na ânsia de uma busca desenfreada pela industrialização, financiavam o
processo com recursos oriundos da agricultura, o que provocava a falência desta. Ora, para
os grupos aqui analisados, a continuidade do desenvolvimento industrial observado nos
anos 50 dependeria em grande parte do desenvolvimento concomitante da estrutura agrária,
de forma a gerar o equilíbrio entre os diversos setores da economia. Para eles, era certo que,
no caso particular do Brasil, “é inelutável o nosso destino de país industrial”, mas tornava-
se necessário dar a devida atenção ao setor agrícola, pois se “se mantém baixa a
produtividade na atividade rural, ou se promove uma industrialização artificial com baixa
produtividade, o mais certo é que se empobreça o país, ainda que toda sua população se
dedique à indústria”.84 O desajuste provocado pela ênfase que estava sendo dada ao
processo de industrialização e ao abandono da agricultura também teriam efeitos nefastos
no processo inflacionário em função da acentuação da disputa pelos fatores de produção.
Isto desorganizaria ainda mais economia e provocaria o aumento dos custos para a
iniciativa particular.

83
LOPES, “Panorama Industria”, op. cit., p. 21.
84
Editorial. “Agricultura versus indústria”. In: Revista Ação Democrática, n° 23, abril 1961, p. 15.

40
41

Para ipesianos e ibadianos, portanto, existiam dois falsos problemas que eram
colocados pelos desenvolvimentistas “a caneladas”. Primeiro, consideravam que era falso o
dilema apresentado entre agricultura e indústria. Como assinalado acima, este problema
relegava ao abandono a agricultura. Segundo, que era equivocada a ótica que defendia que
o processo de desenvolvimento fosse vinculado a existência da inflação. Em função disso o
governo acabava por gastar mais do que arrecadava e contribuía para o descontrole
econômico. Essa crença advinha de outra, de “ter-se generalizado nos países
subdesenvolvidos uma aspiração de progresso a curto prazo (...) com pequena ou nenhuma
contribuição do capital particular” e que acabou por provocar um surto inflacionário, o que
“veio agravar dramaticamente as condição de vida das classes menos favorecidas”.85 Estes
eram os aspectos que estariam levando o país à instabilidade inflacionária.
A baixa produtividade da economia brasileira e, em especial, em grande parte das
atividades industriais controladas pelo Estado representariam outra questão que deveria ser
colocada. Em virtude dos benefícios que adviriam da existência de recursos ilimitados
provindos do Estado e de toda a legislação protecionista por ele estabelecida, não existiria
uma preocupação por parte das empresas estatais em produzir cada vez mais com custos
menores. Somavam-se a estes problemas o afastamento do capital estrangeiro do país. Na
medida em que isto ocorria, ficava mais difícil o encaminhamento do pleno
desenvolvimento das forças produtivas – leia-se livre iniciativa – pois o único meio de
proporcionar à empresa privada um significativo grau de competitividade com a empresa
estatal seria o recurso aos capitais internacionais. A carência de capitais que o país
enfrentava colocava-o diante
“(...) de uma opção entre métodos possíveis de acumulação de capital: ou socializar
o País para drasticamente obter do capital nacional as sobras necessárias para
reinvestimento, ou acolher o capital estrangeiro que nos possam amparar nesta fase
angustiosa da vida nacional”.86

É obvio que, dentro da perspectiva existente para ipesianos e ibadianos, a única


opção viável seria a segunda. Para seu infortúnio, no entanto, o Estado estaria
desencadeando uma forte ofensiva contra esses recursos externos. Parte dessa ofensiva

85
Editorial. “Vale a pena comercializar com a Rússia?”. In: Revista Ação Democrática, n° 37, junho/1962, p.
20.

41
42

poderia ser observada na Lei de Remessa de Lucros, que havia sido aprovada pelo
Congresso, e em toda a legislação protecionista. Entendiam que a Lei apresentava-se como
mais uma amarra que, somada a muitas outras, “não só afugenta, mas escorraça de vez o
capital estrangeiro de qualquer espécie”.87
A limitação da remessa de lucros para o exterior seria uma das demonstrações de
que a iniciativa privada teria que se sujeitar às regras impostas pelo Estado para a obtenção
de fontes de financiamento ou de recursos para a sua expansão. O protecionismo
demonstrado nesta legislação fazia parte de um processo mais amplo que se caracterizava
pela triste opção, segundo entendiam, de rejeitar o capital estrangeiro no país. O governo
contribuía, dessa forma, para o estabelecimento de uma reserva de mercado perigosa
porque destinada a um grupo que espoliava o povo graças à existência de um monopólio.
De outro lado impedia a continuidade do processo de modernização – que se apresentava
como fundamental para que o país alcançasse uma situação de pleno desenvolvimento –
uma vez que a importação de tecnologia ficaria cada vez mais difícil. Na situação em que o
país então se encontrava, existia uma necessidade premente de obtenção de novas
tecnologias e recursos econômicos. Uma vez que boa parte dos recursos econômicos
existentes no país destinava-se para as próprias empresas estatais, estabelecendo assim uma
concorrência desleal por produtos já escassos, e uma vez que a tecnologia que o país
precisava somente estaria disponível em outros países, já desenvolvidos, a legislação
vigente colocaria a empresa privada num beco sem saída.
A opção pelo capitalismo internacional significaria ainda a busca pela consolidação
do regime democrático, considerado um dos pilares fundamentais para a existência da livre
iniciativa. Era a iniciativa privada que se apresentava cerceada cada vez mais por um
Estado que procurava atacar as fatias mais promissoras do mercado, provocando
“(...) a permanente intranqüilidade dos homens de empresa, sujeitos, a qualquer
momento, à intromissão do poder do Estado, que lhes desarticule os planos de
produção, anarquize os mercados, ou se faça concorrência privilegiada na luta
econômica. (...) Isso só pode levar ao desestímulo da iniciativa particular”.88

86
Editorial. “Alerta contra o caos econômico”. In: Boletim Mensal do IPÊS, n° 8, ano II, março/1963. Artigo
comentando discurso de posse do Dr Paulo Reis de Magalhães (tesoureiro do Comitê Executivo do IPÊS)
como presidente do Banco do Estado de São Paulo.
87
GUDIN, Eugênio. “A lei suicida”. In: Revista Ação Democrática, n° 31, janeiro 1962, p. 25.
88
CORRÊA, Oscar Dias. “Sobre intervenção”. In: Ação Democrática, n° 49-50, junho-julho 1963, p. 10.

42
43

Assinale-se, também, que ipesianos e ibadianos contestavam o ataque que a


iniciativa privada, fosse ela de capital internacional ou nacional, estava recebendo em nome
do estatismo e nacionalismo crescentes. Afirmavam que o Brasil
“(...) não é o primeiro nem o único país onde o capital estrangeiro tem exercido
relevante papel na aceleração do processo de desenvolvimento econômico. (...)
Além dos aspectos meramente quantitativos de aumento da taxa de investimentos,
(sem necessidade de recorrer à compressão do consumo), o capital estrangeiro traz
consigo dois benefícios inestimáveis para os países que se encontram no estágio do
progresso que atravessamos presentemente. De um lado, é uma alavanca poderosa
de avanço tecnológico do qual depende preponderantemente o ritmo de
desenvolvimento econômico; e de outro é praticamente o único processo eficaz de
romper a atmosfera monopolística que normalmente se estabelece em países que
começam a industrializar-se. Concorrendo com as indústrias existentes, força-as a
modernizarem-se em benefício do nível geral de produtividade e do padrão de vida
da população”.89

Como pode ser observado, entendiam que, atrás do benefício da presença


financiadora do capital internacional, estariam por vir não somente tecnologia mas também
o aumento da competitividade e da produtividade, bem como do bem-estar provocado pela
suposta não compressão do consumo.
Não se pode esquecer da crítica dirigida contra a forma de planejamento
encaminhada pelo governo JG. Era centralizado, elaborado por burocratas que pouco ou
nada entenderiam das leis de mercado, o que levava a um empirismo e formalismo
crescentes. Tal planejamento não punha em consideração apenas os fatores econômicos, ou
seja, o aumento da taxa de rendimento, mas era influenciado por fatores políticos,
pontuando somente as necessidades do poder público. Desta forma acabavam por
representar interesses unilaterais sem buscar o entendimento comum de todos os que
atuavam no campo econômico, o que seria próprio de um planejamento que efetivamente
tentasse alcançar a melhoria das condições de vida. Essa forma de planejamento excluía
aqueles que teriam melhor competência na elaboração de metas – a livre empresa – posto
que esta é que viria a cumpri-las. Ao excluir a iniciativa privada da tarefa de organizar os
investimentos, o governo apresentar-se-ia como incompetente na solução dos principais
problemas do país e tenderia a efetivar o controle integral da vida econômica.

89
“IPÊS aponta caminhos para o capital estrangeiro e combate aos Trustes”. Reportagem publicada Jornal
pelo IPÊS, sem data, provavelmente 1962, sem indicação do periódico.

43
44

De que forma então, melhor dizendo, sob que formas ipesianos e ibadianos
esperavam alcançar o desenvolvimento com base no regime de livre iniciativa? Que tipo de
papel deveria ter o Estado dentro de tal estrutura de organização? Que aspectos deveriam
propiciar a livre manifestação das forças econômicas? Dentro dessa concepção, a função do
Estado sofreria modificações significativas em relação à empreendida até então. Sua função
empresarial não seria eliminada mas sofreria restrições importantes. Às empresas estatais
seria vedada a sua ação em áreas onde já existissem a livre iniciativa. Desta forma, evitar-
se-ia a concorrência desleal entre aquele que estabelecia as regras de concorrência e que,
simultâneamente, se apresentava também como concorrente. Eliminar-se-ia ainda a
possível mudança das regras do jogo por um de seus participantes. Em determinadas áreas
da economia em que a iniciativa privada possuísse interesse mas as dificuldades a serem
transpostas fossem muitas, caberia o papel estatal de busca da coordenação de esforços.
Coordenação e não-empreendimento eram as palavras de ordem. Neste sentido, sua função
seria a de auxilio e estimulação dos empreendimentos existentes, criando as condições
propícias para a livre iniciativa, que seriam viabilizadas na medida em que o
“(...) Estado lhe assegure meios para preservar o sistema de livre concorrência no
mercado interno, para enfrentar e vencer a concorrência no mercado externo e,
conseqüentemente, para elevar nossos índices de produtividade, sustentáculo da
emancipação econômica e social do povo brasileiro”.90

Para solucionar o problema de carência de capitais e das dificuldades de


empreendimento em determinadas áreas, tornar-se-ia necessária a manutenção do Estado
empreendedor. Somente em casos específicos, nas áreas onde o capital privado estivesse
completamente ausente, é que o poder do Estado deveria tomar a dianteira dos
empreendimentos, revestindo-se, assim, de características “pioneiras e supletivas, legítimas
em um país subdesenvolvido”.91 Esta presença seria possível e bem-vinda em setores da
economia nos quais se tornava necessário “remediar graves lacunas da estrutura industrial”
que “não puderam ser superadas pelo método lógico de estímulos e atrativos à iniciativa
privada”.92 Nestes “terrenos”, a intervenção deveria ser considerada como “natural” posto
que os recursos a serem investidos e os riscos a serem enfrentados inviabilizariam a

90
Editorial. In: Notícias do IPÊS, São Paulo, n° 6, ano I, outubro-novembro 1964, p. 5.
91
TORRES, José Garrido. “Iniciativa privada e subdesenvolvimento”. In: Revista Ação Democrática, n° 37,
junho 1962, p. 24. Publicado na imprensa carioca e apresentado na revista com algumas observações.
92
LOPES, “Panorama industrial”, op. cit., p.11.

44
45

participação da iniciativa particular. Nas áreas onde a visão “telescópica mais dilatada
levaria a certos tipos de investimentos geradores de economias externas e a atividades de
caráter pioneiro”. Desta forma, o “Estado deve agir como agente catalisador, quer dizer,
criar condição para que as reações construtivas da iniciativa privada se realizem com
eficácia”.93
A aceitação deste papel estatal no campo econômico apresentar-se-ia como
decorrência dos reclames generalizados da sociedade, provocados pelo crescimento
demográfico e pelos problemas que deste advinham. A partir do momento em que o setor
econômico desbravado pelo Estado gerasse interesse por parte da iniciativa privada, esta
atividade deveria ser transferida para o mundo privado. No artigo “Reforma da Empresa”,
Candido Torres, um dos vários a escrever para o Boletim Mensal do IPÊS, assinala:
“Embora não morra de amores pela gerência do Estado, pois não a considero a mais
proveitosa, tenho a impressão de que razões práticas ou pragmáticas aconselham a
que o Estado continue e acentue a sua tarefa nesse setor, já que a empresa privada
demandaria um prazo que devemos abreviar grandemente. O que não deve ocorrer é
que o Estado se perpetue na posse das empresas que inicie. Ao mesmo tempo em
que elimina os referidos ‘pontos de estrangulamento’ deve o Estado formular uma
política que novamente anime, incentive e estimule a iniciativa privada, tanto
nacional como estrangeira”.94

O Estado assumiria, portanto, a função de complementaridade em relação à


iniciativa privada. Somente neste caso, a coexistência entre o público e o privado seria
possível: em áreas de atividade diferentes e nunca concorrentes. Esta atuação deveria ser
constantemente regulada e condicionada para manter “o equilíbrio que ela pressupõe, isto é,
se o Estado autolimitar sua ação”.95
Outra situação na qual se considerava aceitável a presença estatal seria no
desempenho de um papel disciplinador da economia de mercado. Evitar a monopolização e
garantir a livre concorrência, impedir a sonegação e o abuso do poder econômico estariam
entre os atributos cabíveis dentro desta função. Adotando medidas “institucionais que

93
Editorial. “Estado deve funcionar com a eficiência da livre empresa”. In: Notícias do IPÊS, São Paulo, n°
6, ano I, outubro-novembro/1964, p. 4. Comentários de trechos de conferência realizada por Roberto Campos
no Congresso Internacional do IPÊS.
94
TORRES, Candido. “Reforma da empresa”. In: Boletim Mensal do IPÊS, n° 26/27, ano IV, setembro-
outubro/64, pp. 14 a 22.
95
FERREIRA, Ésio Alves; CARNEIRO, Joaquim; FARIA, Orlando. “O problema da coexistência das
empresas privada e estatal na economia brasileira”. In: Boletim Mensal do IPÊS, n° 19/20, ano III, fevereiro-
março/1964, pp. 46 e seguintes.

45
46

disciplinem “e fortaleçam gradualmente os negócios nesse mercado”, o Estado estaria


desempenhando uma tarefa de “grande relevância para que o desenvolvimento econômico
se processe em claros termos democráticos” com a “finalidade de conservar e assegurar” o
direito a propriedade.96 Significaria, portanto, libertar as amarras que até então
inviabilizavam o pleno desenvolvimento das forças criadoras da sociedade brasileira,
segundo apontavam ipesianos e ibadianos. A tarefa que se colocava era a de proporcionar
um ambiente de plena liberdade para que os objetivos de desenvolvimento se dessem da
forma o mais rápido possível. Somente numa situação de ampla liberdade garantida pelo
Estado isso poderia ser alcançado. Apenas neste sentido as tarefas que caberiam com
exclusividade ao poder público – de manutenção da ordem jurídica e social e do bem-estar
geral –- poderiam ser eficazmente cumpridas com vistas a evitar a perspectiva de sucumbir
diante da “ameaça vermelha”. O cumprimento de tal tarefa não poderia ser denominada de
intervencionismo pois “a intervenção, que tem como finalidade conservar e assegurar a
propriedade privada, não é intervenção como não o é a apropriação dos serviços
públicos”.97
Na medida em que o Estado seria em boa parte excluído de sua função
“empresarial”, que grupo ficaria encarregado a tarefa de superar as dificuldades que se
apresentavam ao país? Tal desígnio estaria nas mãos da iniciativa privada. Somente ela,
segundo os grupos analisados, teria condições de sucesso na tarefa de encaminhar o país
em direção ao “desenvolvimento” uma vez que a livre empresa – e não o Estado com sua
“politicagem”, corrupção e morosidade – apresentava-se como o perfeito instrumento
utilizado “pela sociedade para a captação e recondução do excedente ao processo
produtivo, permitindo o atendimento simultâneo da elevação da taxa de desenvolvimento
econômico e da manutenção da liberdade humana”. Dentro desta concepção, o que deveria
ser almejado “é o desenvolvimento dentro de uma de organização política que garanta a
cada cidadão as suas liberdades fundamentais”, objetivo que poderia ser “mais facilmente

96
TORRES, José Garrido. “O investimento público brasileiro”. In: Boletim Mensal do IPÊS, n° 38/39, ano
IV, novembro-dezembro/1965, pp. 10 e seguintes. Conferência do Presidente do BNDE, José Garrido Torres,
no simpósio sobre “Relações entre o governo e a iniciativa privada”, promovido pelo IPÊS, em São Paulo,
em 06/12/1965.
97
CORRÊA, “Sobre intervenção”, op. cit.

46
47

atingido por um sistema apoiado na iniciativa privada e na propriedade privada dos bens de
produção”.98
O direito de propriedade, sustentáculo da “família e a base do regime de livre
empresa”, deveria ser garantido para tal consecução. As empresas privadas encaminhariam
o país para o processo de industrialização desde que fossem estabelecidas as condições
fundamentais para que as regras de mercado funcionassem. A mola mestra deste processo
seria a busca pelo lucro e a capacidade de reinvesti-lo na economia:
“Mas, para que se realize o desenvolvimento, é imperativo que esse lucro, ou
excedente, seja reconduzido ao processo produtivo, o que os empresários de fato
levam a efeito, por uma espécie de radar próprio, dirigindo os excedentes para os
setores que ofereçam maior lucro. Pressupõem-se, portanto, que aplicando o
excedente onde ofereça a economia maior produtividade, maior será a taxa de
crescimento”.99

Seria dentro da “estrutura leve da economia de mercado” que estariam as condições


ótimas para, sob a análise de um “risco calculado” e de um “comportamento precariamente
previsível”, levar-se o país à perfeita conjugação de seus fatores de produção necessários ao
processo de produção de riquezas. Dentro desta lógica, a função de planejamento deveria
também ser retirada das mãos do Estado ou pelo menos compartilhada por este com a
iniciativa privada. Consideravam eles que o planejamento apresentava-se como um avanço
tecnológico, como uma moderna ferramenta para alcançar o desenvolvimento que não
poderia ser descartada. Afastars-se-iam, assim consideravam, daqueles grupos que
radicalizavam em relação à existência do planejamento, daqueles que afirmavam que era
este um instrumento que invariavelmente levaria até ao totalitarismo, fosse de caráter
nazifascista, fosse de caráter comunista. Diferentemente, consideravam-no como uma
“técnica neutra” que poderia “servir tanto aos regimes coletivistas quanto aos regimes
democráticos”.100
O que, então, caracterizaria o tipo de planejamento que seria considerado como
adequado pelos Institutos em questão? A técnica de elaboração de planos deveria contar,

98
Editorial. In: Notícias do IPÊS, São Paulo, dezembro/1964, n° 7, ano I, p 5.
99
NETTO, Delfim. “O progresso econômico e o progresso social”. In: Boletim Mensal do IPÊS, n° 19/20,
ano III, fevereiro-março/1964, pp. 2 a 12. Reprodução de Conferência proferida no Curso de Atualidades
Brasileiras.
100
Editorial. “Ainda a propósito do Plano Trienal”. In: Boletim Mensal do IPÊS, n° 8, ano II, março/1963,
pp. 5 e 6.

47
48

em primeiro lugar, com uma filosofia que fosse condizente com o regime democrático.
Apesar de ser considerado como um conjunto de técnicas, afirmavam que todo
planejamento possuía uma filosofia por trás de si, que determinaria o “propósito que
estivesse em mira”. Este, por sua vez, poderia variar de acordo com o grupo que ficasse
responsável pela sua articulação. A grande questão não estava na prática de planejar mas
sim nos objetivos que se colocavam presentes no momento de sua elaboração. Em artigo
elaborado por José de Assis Ribeiro, o autor assinala o seguinte sobre o planejamento
econômico e sua filosofia:
“A Técnica do Planejamento (...) tem a capacidade e força para determinar o
desenvolvimento material de uma nação. Mas é a Filosofia do Planejamento que
plasma e modela esse desenvolvimento. A Técnica do Planejamento engloba todos
os procedimentos racionais, materiais ou espirituais. No entanto, é a Filosofia do
Planejamento que seleciona, informa e fundamenta os objetivos técnicos; e,
conseqüentemente, é ela que fixa ou os objetos que são indispensáveis para uma
vida humana digna desse nome ou aqueles que fazem com que as nações
mergulhem na barbárie, anti-humana e anticristã”.101

Estaria, portanto, nesta filosofia, a essência da ideologia a ser seguida pelo plano
econômico. Se para ipesianos e ibadianos o plano deveria ter por valor básico a manutenção
do sistema democrático, para alcançar tal objetivo ele deveria, já na sua organização, contar
com algumas premissas fundamentais. A primeira delas seria a ampla participação e
“anuência do corpo político, com ênfase para a empresa privada” no momento de sua
elaboração. Conseqüuência direta do primado que a livre iniciativa deveria ter na ordem
econômica, sua presença nos estudos prévios e na co-autoria do plano evitariam que as
decisões macroeconômicas fossem “unilaterais, quer do governo, quer da iniciativa privada,
mas do entendimento comum de todos que atuam no campo econômico”.102 O papel do
Estado seria, dentro deste contexto, o de dirimir interesses conflitantes que pudessem advir
dos diferentes representantes deste corpo político, buscando o desenvolvimento integrado e
uma “coordenação de esforços humanos e de recursos materiais capaz de corrigir e
dinamizar as estruturas nacionais”.103

101
RIBEIRO, José de Assis. “Planos de desenvolvimento”. In: Boletim Mensal do IPÊS, n° 18, ano III,
janeiro/1964, p. 31.
102
Editorial. In: Notícias do IPÊS, n° 7, ano I, dezembro/1964, São Paulo
103
RIBEIRO, “Planos de desenvolvimento”, op. cit., pp. 27 e seguintes.

48
49

Se desta maneira tornar-se-ia possível impedir o efeito nefasto da ampliação dos


tentáculos estatais sobre a economia e evitar o contágio totalitário que o planejamento
poderia estabelecer na sociedade, somente através da entrega da execução do plano
econômico à livre empresa é que este acabaria por adequar-se à economia de mercado,
permitindo uma concorrência praticável. No artigo de Carlos José de Assis Ribeiro,
apresenta-se elaborado um quadro das condições pelas quais um planejamento deveria se
configurar. Ao Estado caberia a missão de deixar que a “força do mercado” agisse por si
mesma, preocupando-se somente com as “grandes linhas da atividade econômica”:
PLANEJAMENTO DEMOCRÁTICO PLANEJAMENTO TOTALITÁRIO
o estado está presente o estado está presente
1 – Adotando a melhor e mais completa 1 – Adotando técnicas e processos nos setores
utilização dos fatores de produção, distribuição da produção, da distribuição e do consumo, que
e consumo, sem suprimir a livre iniciativa; anulam a iniciativa privada;
2 – Respeitando as liberdades individuais no 2 – Demonstrando que tem prevalência sobre as
procurar a justiça social e o bem comum; liberdades individuais e que o homem deve
servir a economia estatal;
3 – Fazendo prevalecer a empresa privada como 3 – Substituindo a empresa privada como
unidade econômica que assegura a ligação entre unidade econômica, pelas empresas estatais;
os diversos mercados;
4 – Intervindo na economia indiretamente 4 – Intervindo na economia diretamente,
através de uma determinada política através de uma política de estatização, de
socioeconômica e financeira de ordem flexível; ordem rígida;

5 – Não penetrando nos detalhes do mecanismo 5 – Penetrando nos detalhes do mecanismo


econômico, agindo apenas sobre as ‘grandes econômico e social, de modo a que as ações
linhas’ da atividade econômica; econômicas fiquem submetidas a um conjunto
de decisões do Estado;
6 – Não substituindo a força do mercado pela 6 – Substituindo a força do mercado pela força
força das decisões governamentais; do Estado, já que a planificação é dominante e
irreversível;
7 – Corrigindo, de acordo com a conjuntura, 7 – Estabelecendo prescrições imperativas e
regras orientadoras que objetivem uma absorventes de conformidade com a estratégia
concorrência praticável; econômica do Estado;
8 – Corrigindo as estruturas econômicas e 8 – Ajustando as estruturas econômicas e
sociais de conformidade com as instituições sociais ao comportamento da estrutura política,
democráticas; inspirada pelas ideologias totalitárias;
9 – Ajustando os projetos à política de 9 – Fixando projetos de desenvolvimento e de
desenvolvimento e da Política de Segurança segurança nacional, objetivando a expansão de
Nacional, tendo em vista os princípios ideologias totalitárias;
democráticos que as condicionam;
10 – Aceitando o planejamento internacional de 10 – Aceitando o planejamento internacional,
acordo com os estudos da morfologia e da mas apenas dentro de sua área de influência
etnologia dos movimentos econômicos e geoeconômica.
sociais.
104

Se o novo papel do Estado desejado por estes grupos apresenta-se bem configurado
pelo quadro acima, torna-se necessário ainda apresentar os mecanismos complementares

104
Idem, ibidem.

49
50

pelos quais o desenvolvimento seria obtido segundo a ótica destes grupos. Uma vez
garantidos os mecanismos necessários para a efetivação do livre mercado, fazendo
“prevalecer a empresa privada como unidade econômica que assegurasse a ligação dos
diversos mercados”, uma das principais medidas seria o estímulo ao aumento da
produtividade, considerada “sustentáculo da emancipação econômica e social do povo
brasileiro”. Apesar de considerarem que o país possuía uma vocação de “grande país
industrial”, esta preocupação deveria estar direcionada não somente para a indústria mas
também para o setor agrícola.
Enfatizava-se, neste sentido a existência de um padrão de vida satisfatório em países
como Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Argentina, que possuíam uma dependência maior
da agricultura que o Brasil. A razão disto estaria no elevado grau de produtividade por fator
de produção. Elemento que contribuiria para isso era a abundante utilização de mão-de-
obra e a existência de técnicas produtivas ultrapassadas. No campo, portanto, o aumento da
produtividade seria obtido através da modernização das técnicas de plantio e com a
utilização de máquinas que liberariam mão-de-obra necessária para o barateamento dos
custos de produção. Tornava-se indispensável proporcionar à agricultura um surto idêntico
ao que se verificou nos últimos anos no setor industrial. Pensava-se, desta forma, evitar a
concorrência dos fatores de produção entre indústria e agricultura, como pode observar-se a
seguir:
“(...) importa aumentar a produtividade dos empreendimentos rurais existentes, isto
é, produzir mais, muito mais pela melhor utilização dos fatores de produção.
Produzir mais com menos terras, menos homens e menos árvores ou animais. (...)
Então liberaremos braços e cérebros para as indústrias, sem que faltem alimentos e
matérias-primas (...)”.105

De outro lado, o aumento da produtividade industrial dar-se-ía através da


incorporação de novas tecnologias que viessem a modernizar o parque produtivo nacional,
possibilitando-o concorrer em pé de igualdade com as indústrias estrangeiras. Para tanto,
deveriam ser colocadas em prática medidas de incentivo a importação de máquinas e
equipamentos tais como o financiamento, nacional ou estrangeiro, a cooperação técnica
e/ou econômica com países mais adiantados e a garantia da livre entrada e saída de

105
BALEEIRO, Aliomar. “Reforma Agrária”. In: Revista Ação Democrática, n° 48, maio/1963, p. 17. Entrevista
especial para a revista.

50
51

mercadorias e capitais no país. Reivindicavam, assim, o estabelecimento do livre-cambismo


que viabilizasse a modernização industrial brasileira.
Não era somente de tecnologia que o país precisava, mas também de recursos
econômicos. O país possuía, segundo ipesianos e ibadianos, um baixo nível de poupança
interna, o que tornava o investimento estrangeiro como “um ingrediente fundamental no
desenvolvimento econômico”,106 segundo Garrido Torres, um dos principais expoentes do
IPÊS. Viria a substituir o capital estatal, que seria retirado, em boa parte, da economia em
função da reivindicada diminuição do campo de ação do Estado empreendedor. A
produtividade das empresas estatais seria estimulada ainda pela presença destes recursos
externos na medida em que contribuiria para o estabelecimento da concorrência. A
participação do capital internacional no processo de desenvolvimento brasileiro faria parte
ainda da consolidação de uma estrutura econômica genuinamente democrática e de livre
concorrência. Valorizava-se, dessa forma, o norteamento das estruturas econômicas única e
exclusivamente pelas regras de mercado. Para suprir ainda a carência de poupança interna e
reafirmar a democratização do mercado, pretendiam, também, ampliar a “participação de
empregados nas empresas” através da fragmentação do capital pelo estabelecimento do
mercado acionário.
Com relação à eliminação de barreiras econômicas que caracterizavam o
protecionismo, ela acabaria por proporcionar também o estímulo às exportações. Esta, por
sua vez, garantiria o aumento da produtividade na medida em que possibilitariam a
expansão de mercados, já que o preço das mercadorias nacionais estariam mais
competitivas no plano internacional e viabilizariam bancar o aumento inicial do custo
produtivo provocado pelo incremento tecnológico.
No que se refere ao Estado, tornava-se necessário o enxugamento do corpo
burocrático localizado em suas empresas de forma que impedisse a repartição dos custos da
produção com o conjunto da sociedade, levando-o a funcionar com o grau de “eficiência de
uma empresa privada”. O objetivo último seria a obtenção do lucro e o desbravamento de
determinadas áreas do mercado para que estas se tornassem atrativas e propícias para o
investimento particular.

106
Reprodução de entrevista concedida por Garrido Torres, “um dos líderes econômicos da revolução”, ao
New York Times. In: Boletim Mensal do IPÊS, n° 34/35, ano IV, maio-junho/1965, p. 7.

51
52

Todos estes aspectos contribuiriam para a arrancada desenvolvimentista do país. Em


trabalho coletivo veiculado pelo Boletim Mensal do IPÊS, encontra-se a definição que estes
grupos possuíam do desenvolvimento econômico e os caminhos a serem seguidos para a
consecução de tal objetivo. Caracterizavam-no como sendo o “aumento na taxa de
formação de capital, com adoção simultânea de métodos tecnológicos mais produtivos e
resultante incremento na renda per capita”.107 Antonio Delfim Netto, em conferência
proferida no Curso de Atualidades Brasileiras, realizado pelo IPÊS e reproduzida em seu
boletim mensal, assinala o seguinte sobre o mesmo assunto:
“Entendemos haver desenvolvimento econômico, quando na produção de bens e
serviços por uma coletividade, em determinada unidade de tempo, se verifica um
persistente aumento, maior que o de seu crescimento demográfico. (...) Percebe-se,
assim, que o desenvolvimento é uma relação entre o volume de produção anual e a
população”.108

Objetivava-se o aumento na capacidade de acúmulo de capitais através de


mecanismos que passavam pela maior penetração do capital estrangeiro, de uma
flexibilização das regras de funcionamento do mercado, da maior produtividade econômica
e, principalmente, pelo controle do processo inflacionário. Entendiam que a necessidade
que o país possuía de estabelecer determinadas reformas que o conjunto da sociedade
colocava em questão, as reformas de base, sem atacar antes a inflação, apresentava-se
como um caminho equivocado. Não se deveria queimar etapas no encaminhamento do
desenvolvimento do país e, a etapa que se colocava para o Brasil naquele momento, era a
de aplicar somente medidas que visassem conter o processo de descontrole da economia. A
análise que faziam era a de comparar o país a um corpo doente cuja moléstia principal era a
inflação. Desta forma,
“Precipitar reformas de estrutura numa fase tão avançada de febre inflacionária é um
ato de inconsistência, de delírio febril, de inconcebível loucura coletiva. Somente
medicamentos que curem o estado patológico do organismo nacional, sob o domínio
da inflação devem ser ministrados. Quando forem eliminados os vírus dessa
infecção aguda, será possível tentar-se restabelecer o equilíbrio do corpo social e
corrigir deficiências funcionais. Fora dessa alternativa só permanece a catástrofe

107
FILHO, Alberto Venancio; SÁ, Fernando da Silva; CARVALHO, Aurélio de; VIEGAS, Mauro Ribeiro;
LUZ, Sebastião B. Ribeiro da. “A empresa privada como comunidade de trabalho: seu papel no
desenvolvimento econômico e na distribuição da renda”. In: Boletim Mensal do IPÊS, n° 19/20, ano III,
fevereiro-março/1964, p. 25. Trabalho de grupo apresentado no IPÊS e reproduzido na revista.
108
NETTO, Delfim. “O progresso econômico e o progresso social”, op. cit., p. 2.

52
53

purificadora que o comunismo planeja para implantar a ditadura do partido


russo”.109 (grifos no original)

Por isso, a busca pelo estabelecimento de um patamar de desenvolvimento almejado


pela sociedade brasileira não deveria ocorrer de forma desenfreada. O risco que advinha
desse desejo incontrolável seria a instabilidade monetária que limitava as possibilidades de
acumulação de capitais. A estabilidade financeira, neste sentido, colocava-se na ordem do
dia. Através do fim do processo inflacionário, ou pelo menos de seu controle efetivo,
eliminar-se-ia a especulação e estimular-se-ia o retorno dos investimentos ao processo
produtivo tão almejado pelos Institutos em questão. Além disto, a estabilidade financeira
melhoraria a capacidade de planejamento sob os moldes reivindicados por ipesianos e
ibadianos, com a distribuição dos recursos produtivos de forma mais racional. O ideal seria
a obtenção de um desenvolvimento que levasse em consideração as disponibilidades
existentes dos diferentes fatores de produção. Não tão acelerado, a “caneladas”, que viesse
a provocar o aparecimento da inflação, mas também não tão lento, de forma que
viabilizasse o atendimento dos reclames da sociedade. Desta forma, consolidar-se-ia a
estrutura de livre mercado na medida em que esta funcionasse em torno de movimentos
espontâneos da economia e não de estruturas forjadas principalmente por um planejamento
que impusesse que as “ações econômicas ficassem submetidas a um conjunto de decisões
do Estado”.
Em suma, a estrutura econômica almejada caracterizar-se-ia por um Estado que teria
por função básica a criação de condições propícias para o desenvolvimento da livre
iniciativa, Estado este enxuto, com responsabilidades básicas na regulamentação de leis que
viabilizassem a estabilização financeira e impedissem a criação de monopólios de mercado.
Seu papel seria o de coordenador de esforços e eliminador de conflitos entre os diversos
segmentos privados responsáveis pela produção econômica, que seriam ainda
colaboradores no estabelecimento das metas a serem alcançadas pela economia nacional.
Deveria ainda o Estado proporcionar a livre entrada e saída de capitais e eliminar as
barreiras alfandegárias, bem como estimular o aparecimento de empresas estrangeiras que
desencadeassem o aumento da competitividade das empresas nacionais e do próprio Estado
empreendedor. Outra função de relevância estaria em proporcionar condições de aumento

109
LOPES, “Panorama industrial”, op. cit., 22.

53
54

da produtividade, tanto agrícola quanto industrial, buscando o equilíbrio entre campo e


cidade para evitar a disputa dos fatores de produção. A empresa privada seria a grande
responsável por alcançar o desenvolvimento através do aumento da taxa de acumulação de
capitais, possibilitando a concretização da vocação de grande nação industrial que o país
possuía.

54
55

Sociedade civil e organização política


“O que devemos desejar é muito mais do que o simples
desenvolvimento econômico. É o desenvolvimento dentro de uma
forma de organização política que garanta a cada cidadão as suas
liberdades fundamentais. (...) Existem motivos para acreditarmos que
esses objetivos são mais facilmente atingidos por um sistema apoiado
na iniciativa privada e na propriedade privada dos bens de produção.
Dentro deste contexto deve ser analisado o papel do empresário
privado no processo de desenvolvimento. A empresa privada é uma
forma instrumental utilizada pela sociedade para a captação e
recondução do excedente ao processo produtivo, permitindo o
atendimento simultâneo da elevação da taxa de desenvolvimento
econômico e da manutenção da liberdade humana”.

Antonio Delfin Netto.


Os Institutos em questão apresentavam como elemento prioritário de sua existência
a defesa da “democracia”. Os períodicos analisados – Ação Democrática e o Boletim
Mensal do IPÊS , dois dos principais canais de comunicação do complexo empresarial
IPÊS/IBAD – afirmavam reinteradamente ser esse o seu propósito fundamental. A eles
caberia a responsabilidade e o dever de apresentar que existiam soluções democráticas para
os problemas brasileiros, caminho pelos quais deveria trilhar o país para evitar as opções
extremistas que o ameaçavam. Consideravam essa forma de organização mais adequada
para uma sociedade que almejava a felicidade de seu povo, aquela que viabilizaria a livre
manifestação das “forças imanentes” da sociedade.
Recorrentemente, utilizavam-se da lembrança dos anos do primeiro governo Vargas,
onde as liberdades foram eliminadas por um regime que, no campo dos negócios, colocou o
país “num processo ilógico, descompassado com a realidade dos fatos, resultado de
interpretações falaciosas de fenômenos normais”, que tornava-se possível graças ao regime
político então vigente.110 Fora uma ditadura que “nos impedia de escrever nos jornais
nossas opiniões contrárias às do governo”. Objetivavam, desta forma, alertar a sociedade
para o trajeto de retrocesso que ela estaria empreendendo desde fins da década de 1950.
Mesmo que a eleição de Jânio Quadros para a Presidência da República significasse um
distanciamento da ameaça em 1961 – momento em que a “próxima ditadura ainda não se
delineia” uma vez que “para esse tipo de ameaça os tempos não são mais favoráveis e
existe alguma vigilância”111 –, entendiam que a organização das forças antidemocráticas já

110
LOPES, “Panorama Industrial”, op. cit., p. 10.
111
CORÇÃO, “Totalitarismo aniquilador do comunismo”, op. cit., p. 4.

55
56

se esboçava. A renúncia do presidente parecia concretizar o avanço dos grupos


antidemocráticos – leia-se aqui somente os de esquerda – a partir de 1962.
A superação da ditadura Vargas havia sido possível graças a “um movimento de
repúdio contra essa ofensa mais direta e mais elementar aos brios do cidadão livre”.112 Esta
mobilização, que viabilizou a eliminação de tal regime no passado, não se apresentava
presente no contexto da década de 60 segundo analistas do IPÊS e do IBAD. O momento
era outro, e bem mais perigoso. Existia uma passividade excessiva em meio aos
“democratas” que assustava as principais lideranças desses Institutos e que somente havia
sido vista de forma tão alarmante, segundo afirmavam, nos momentos que precederam a
Segunda Guerra Mundial. Assinalavam o perigo de repetir-se no Brasil a passividade diante
do avanço das forças antidemocráticas do qual o exemplo mais notório havia sido o Tratado
de Munique, que acabou por possibilitar o fortalecimento do Nazifascismo em nível
mundial. Tornava-se premente arregimentar forças, mobilizar a sociedade para a luta que
tomava ares de “cruzada”, de forma a impedir a propagação do perigo iminente.
E é neste sentido, assinalavam, que o IPÊS colocava-se com um papel fundamental:
alertar, mobilizar e estruturar a resistência:
“E é justamente para coordenar o pensamento e a ação de todos aqueles que não
querem ficar de braços cruzados diante da catástrofe que nos ameaça que é
necessário criar um organismo novo com uma mensagem nova para a nova
realidade do Brasil de hoje. Temos uma finalidade básica: evitar que a difícil
situação que o país atravessa venha a comprometer nossas instituições democráticas
e tradições cristãs. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais tem essas finalidades
básicas. (...) Fortalecimento das instituições democráticas, superação do
subdesenvolvimento, estabilização da moeda, moralização e eficiência da estrutura
governamental. (...) É preciso agir, ao mesmo tempo em que se estuda a solução dos
problemas básicos brasileiros. (...) Dar um conceito novo à democracia (...) ao
desenvolvimento (...). Levar esse conceito aos estudantes (....) aos operários, (...)
aos homens do campo”.113

Também o IBAD, através de seu periódico, arrogava-se esta responsabilidade:


“(...) Cuidar, pois, de formar, aprimorar e racionalizar o espírito democrático, para
preservar e melhorar a democracia! Assim temos entendido em Ação Democrática,
e assim temos trabalhado, doutrinando e comentando, certos, portanto, de servir à

112
Idem, ibidem.
113
O que é o IPÊS, op. cit.

56
57

Democracia que é a causa do Brasil, a causa do mundo, a causa do homem livre,


imagem e semelhança de Deus” .114

Se no passado próximo o perigo havia sido representado em nível mundial pelo


movimento nazifascista e em nível nacional pelo varguismo, naquele momento “a
democracia sofre uma nova ameaça (...): o comunismo”.115 Retirar as forças democráticas
da pasmaceira em que estavam seria aspecto fundamental para impedir a implementação de
um regime que cercearia as liberdades de manifestação e de iniciativa.
As oposições eram bem claras para eles. Não seria possível a existência de um
regime político que se colocava como o antagonismo da liberdade de expressão e aos
direitos da pessoa humana. Aderir ao marxismo-leninismo representava, para esses grupos,
repudiar dois dos preceitos básicos da democracia, do regime que melhor adequava-se à
sociedade brasileira. O país, afirmavam, era conhecido por ser uma nação democrática e
opor-se a isto era romper com a tradição e cultura brasileiras que vinculavam o país ao
mundo ocidental. O comunismo representava uma “cerca que não se pode transpor, uma
cerca farpada que separa o homem da liberdade, a separar o homem da possibilidade de
viver uma vida livre, digna e feliz”.116 Apresentava-se como o regime da “escravidão, de
minoridade, de disciplina exterior e violentada, regime de massa e não de povo, regime de
unificação mecânica, regime de docildade estupidificada”.117
Apesar da vigência oficial de um regime democrático, não existia, de fato, um
“estado de espírito resultante de uma funda convicção, vivida e sentida dos princípios
democráticos”.118 Era uma democracia formal, aparente e, por isso, fragilizada. Propensa a
ataques por parte daqueles que a negavam como a melhor forma de organização política. O
aperfeiçoamento do sistema estava prejudicado diante da atmosfera agressiva que se
colocava por parte de determinados segmentos da sociedade que estabeleciam o caos no
país:
“O Brasil vive dias difíceis. As manifestações populares tornam-se cada dia mais
agressivas. A inquietação atinge os meios rurais. Os demagogos agitam a opinião

114
Editorial. “Estado de Espírito Democrático”. In: Revista Ação Democrática, n° 23, abril/1961, p. 1.
115
Que é a democracia? Produção Jean Manzon e Atlântida sob direção do IPÊS. Arquivo Nacional, Seção
de Documentos Sonoros e de imagens em Movimento.
116
Idem, ibidem.
117
Editorial. “A escola e os direitos da consciência”. In: Revista Ação Democrática, n° 20, janeiro/1961, p.
20.
118
Editorial. “Estado de Espírito Democrático”, op. cit., p. 1.

57
58

pública enquanto a inflação desenfreada anula os esforços dos brasileiros. Sobre a


crise econômica e social desenvolve-se uma crise política. O governo está
indeciso”.119

A imperfeição do sistema, em vez de gerar a tentativa de sua superação, deveria ser


a motivação principal para a sua correção, aspecto perfeitamente natural uma vez que o
regime democrático exige um grau de “aperfeiçoamento contínuo”. Parte desse
aperfeiçoamento passava pelas questões do analfabetismo e da crescente centralização
econômica efetivada pelo Estado. No que se refere ao analfabetismo, ele contribuiria para
uma visão equivocada, para uma crença cada vez maior no discurso elaborado pelos
comunistas que tinham por objetivo a política do “quanto pior melhor”.
O falseamento da realidade seria uma prática recorrente dos comunistas e teria um
efeito devastador em regiões afetadas por profundas diferenças sociais – como o Nordeste –,
onde a fome, a miséria e a ausência da cultura levariam o povo a não poder “julgar com
precisão as verdadeiras condições que imperam nos países dominados pelo comunismo”.120
Contribuiria, desta forma, para a contestação do regime democrático. Se nem mesmo os
“campeões da democracia” na luta contra a ditadura Vargas “mostravam o mesmo
discernimento quanto ao fenômeno do totalitarismo”,121 segundo Gustavo Corção, o que se
poderia dizer quanto aos analfabetos? Buscava-se, desta forma, legitimar a existência de
uma democracia restritiva calcada, quanto ao seu mecanismo de seletivade, no acesso “às
letras”.
De outro lado, a concentração do poder econômico encaminhada pelo Estado nas
economias centralizadas levaria ao desencadeamento de um processo dialético “que conduz
à centralização do poder político”. Historicamente isto seria comprovável uma vez que não
se conhece nenhum caso de sociedade economicamente centralizada que seja politicamente
descentralizada”.122
A centralização econômica, dentro desta perspectiva, levaria o país
irremediavelmente para a centralização política. Cuidar da descentralização da economia
“importa na garantia das liberdades individuais”, posto que nas “sociedades de economia

119
O que é o IPÊS. Filme dirigido sob direção do IPÊS. Arquivo Nacional, Seção de Documentos Sonoros e
de imagens em Movimento.
120
Editorial. “Estará em boas mãos a SUDENE?”, op. cit., p. 9.
121
CORÇÃO, “Totalitarismo...”, op. cit.
122
NETTO, Delfim. “O progresso científico e o progresso social”, op. cit., p. 2.

58
59

aberta a descentralização política é a essência, o que largamente abre possibilidades a


todos, independentemente de posições sociais e interferência de outros”.123 Exemplo claro
disto seria a ditadura de Vargas caracterizada por um regime que, ao mesmo tempo em que
empreendeu o cerceamento da liberdade de expressão limitou o pleno desenvolvimento do
capitalismo no país, tal como assinalava Lucas Lopes:
“Antes de ter tido a oportunidade de provar, no Brasil, o seu imenso poder criador
de riqueza e libertador de povos e de espíritos, o capitalismo moderno, a livre
empresa, expurgados dos exageros individualistas da primeira Revolução industrial,
foram manietados e vão sendo gradativamente sufocados por um intervencionismo
estatal frusto e, por isto mesmo, insaciável, intolerante, místico e mistificador”.124

A democracia defendida por ipesianos e ibadianos era de fundamental importância


para a obtenção deste desenvolvimento. Ao falar em regime democrático, os grupos
relacionados aos Institutos em questão referiam-se à garantia das liberdades. Era num
regime político de liberdade que este desenvolvimento se daria apoiado na “iniciativa
privada e na propriedade privada dos bens de produção”.125 Representava a garantia efetiva
do “bom governo e da liberdade”.126 Era um regime de “liberdade, de variedade, e respeito,
de disciplina interior e convencida”.127 A organização política em bases democráticas
“promete tudo que as gerações podem fazer livre e espontaneamente. Promete livre
escolha de ensino e religião para seus filhos. Garantia dos direitos adquiridos de
greve (...) emprego e propriedade. Só a democracia impede que o povo fique à
mercê da vontade de um só homem ou de um só partido. A democracia promete o
desenvolvimento livre e poderoso de nossos tempos industriais e comerciais”.128

Além disto, o regime democrático apresentava-se importante para as empresas


privadas porque a intervenção estatal não se transformará na estatização e o pensamento
democrático, não se transfigurará numa planificação totalitária dentro da qual são proscritas
todas as liberdades humanas”.129 Evitar o comando centralizado, viabilizar a diversificação,

123
Idem, ibidem.
124
LOPES, “Panorama Industrial”, op. cit., p. 10.
125
NETTO, Delfim. “O governo e a empresa privada no processo de desenvolvimento”. In: Notícias do IPÊS,
n° 7, dezembro/1964, São Paulo.
126
TORRES, João Camilo de Oliveira. “A democracia e os regimes totalitários”. In: Boletim mensal do IPÊS,
n° 22, ano III, maio/1964, pp. 10 e seguintes. Conferência pronunciada no Curso de Atualidades Brasileiras
do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais.
127
Editorial. “A escola e os direitos da consiência”, op. cit., p. 20.
128
Que é a democracia?, op. cit.
129
RIBEIRO, Carlos José de Assis. “Planos de desenvolvimento”, In: Boletim mensal do IPÊS, n° 18, ano III,
janeiro/1964, pp. 27 a 50.

59
60

a potencialização das diferenças e das capacidades era o problema central. Era necessário
garantir a “liberdade da marcha do progresso coletivo”130 do país, aspecto que só o sistema
democrático poderia atender.
A questão era simples para eles e, aqueles que negavam esta lógica, cairiam numa
contradição óbvia:
“Economistas (...) assumem o que se me afigura uma posição contraditória:
economicamente fazem concessões ao socialismo, mas politicamente, se confessam
democratas. Sinceramente, não vejo como tal posição possa ser congruente.
Considero-a, antes, uma contradição em termos, porque sem propriedade privada,
ainda que esta precise ser limitada em sua magnitude, simplesmente não pode haver
democracia”.131

Da mesma forma, se a democracia era importante para o sistema de livre iniciativa,


o mesmo deveria dar-se de forma inversa. Este desenvolvimento econômico deveria ser
mantenedor de “uma forma de organização política que garanta a cada cidadão as
liberdades fundamentais”.132 A propriedade privada e a livre iniciativa eram símbolos
máximos das denominadas liberdades fundamentais. Era através da propriedade privada
que a liberdade se concretizava em sua plenitude, possibilitando ao homem a maximização
de suas capacidades individuais. Ela deveria consolidar-se a “ponto de constituir o esteio, a
pilastra central do regime político”.133
Como assinalado anteriormente, era condição sine qua non para esses grupos que a
base do progresso do país, a arrancada industrializante tão esperada pela sociedade, fosse
obtida através da livre iniciativa, da propriedade privada dos bens de produção.
Democracia e livre empresa formariam os dois lados da mesma moeda, a potencialização
das riquezas do país, onde o “sistema de livre empresa como organização econômica e a
democracia, como organização política, possibilitam, quando associados, uma conciliação
desejável entre a satisfação do fim econômico e a preservação da liberdade humana”.134
Sem um, o outro estaria fadado ao fracasso. Capitalismo, livre empresa e democracia eram

130
Depende de mim, op. cit.
131
TORRES, Candido. “Reforma da Empresa”. In: Boletim mensal do IPÊS, nº 26/7, ano IV, setembro-
outubro/1964, pp.14 a 22.
132
NETTO, Delfim “O papel do empresário”, op. cit.
133
TORRES, Candido, op. cit.
134
CAMPOS, Roberto. Congresso Internacional do IPÊS. In: “O Estado deve funcionar com a eficiência da
livre empresa”, op. cit.

60
61

complementares e faziam parte de um conjunto indissociável. Eram as “três faces de um


tetraedo [sic] que é a imagem do homem livre”.135
O sistema democrático por eles defendido, estava muito mais identificado com as
liberdades do que com a igualdade. Enquanto o primeiro apresentava-se plenamente
exeqüível, posto que dependente única e exclusivamente do indivíduo, a igualdade absoluta
apresentava-se como uma utopia. Ou como apontava um editorial de Ação Democrática, ao
citar Rui Barbosa, assinalando que nesta “desigualdade social, proporcionada à
desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade”.136 O resto seriam
“desvarios da inveja, do orgulho ou da loucura”.137 A possibilidade da existência da
igualdade era única e exclusivamente de forma subordinada à liberdade:
“A filosofia democrática baseia-se na pessoa humana como um absoluto. A
dignidade da pessoa humana como um absoluto. A dignidade da pessoa é intangível,
e tudo tem de ser feito para propiciar a ela sua plena realização. Como pessoa, isto
é, ser dotado de conhecimento e de vontade livre, todo homem é igual a todo
homem e tem direitos fundamentais, imprescindíveis e inalienáveis. Para ser
efetivamente respeitada, a igualdade exige a liberdade. Por outro lado, a igualdade,
reconhecida e atuante num clima de liberdade, gera a fraternidade, a solidariedade
efetiva”.138

Somente existirá igualdade na presença da liberdade em cada um. Para eles todos,
ao serem dotados de vontade livre e conhecimento, tornavam-se iguais entre si. Estes
atributos estavam presentes em qualidade e quantidades diferenciadas nos homens.
Propiciar a “plena realização da dignidade humana” significaria, portanto, estimular o
desenvolvimento das diferentes capacidades de cada um, aspecto que somente o regime
democrático seria capaz de impor. Neste sentido, observa-se o caráter ideológico de direita
que atravessa este projeto político na medida em que eles caracterizam-se por um
“(...) juízo segundo o qual essa ou aquela forma de desigualdade é favorável ou
mesmo necessária ao melhor ordenamento social ou ao progresso da civilização e,
portanto, a ordem social deve respeitar e não abolir as desigualdades entre os
homens, ou pelo menos aquelas desigualdades que são consideradas social e
politicamente úteis ao progresso social”.139

135
LOPES, “Panorama Industrial”, op. cit., p. 9.
136
Editorial. “A escola e os direitos da consciência”, op. cit., p. 20.
137
Idem, ibidem.
138
Editorial. “Estado de espírito democrático”. In: Revista Ação Democrática, n° 23, abril/1961, p. 1.
139
BOBBIO, Noberto. Igualdade e Liberdade. Rio de Janeiro, Ediouro, 1997, p. 40.

61
62

Além de assegurar a existência da livre iniciativa, a consolidação do regime


democrático representava a preservação da cultura brasileira em sua plenitude,
principalmente no que se refere a sua religiosidade. Os membros destes institutos
arrogavam-se a tarefa de preservação não somente das instituições democráticas mas
também das tradições cristãs. Até mesmo porque era o homem livre, e não o homem igual,
que se apresentava como “imagem e semelhança de Deus”.140 A idéia de “eterna vigilância”
para a defesa da democracia tomava ares de cruzada religiosa para resguardar o regime
político que melhor permitiria a liberdade espiritual, em contraposição a uma forma de
governo que limitava, podava e perseguia aqueles que possuíam uma outra forma de crença
além da fé no Estado.
Boa parte da produção filmográfica do IPÊS procurou dar ênfase na relação entre a
religiosidade cristã e a existência da livre iniciativa e da democracia. A maioria dos
documentários assinalava, em seu início, a imagem da Encíclica Mater et Magistra em um
trecho no qual justificava a existência da propriedade privada. De outro lado, inúmeros
eram os artigos que citavam posições da Santa Sé contrárias ao regime comunista.
Buscavam, desta forma, estimular a associação entre religião e democracia.
Mesmo considerando o regime democrático como o mais perfeito em relação ao
comunismo, entendiam que o sistema, no Brasil, precisava de aperfeiçoamento. Esta,
inclusive, era a tônica de alguns dos artigos: a presença de uma necessidade contínua de
aprimoramento do sistema político.
Dentre as medidas fundamentais para que o país saísse da “pré-história da
democracia”, estava a consolidação da classe média como grupo social de respaldo ao
sistema. Mais uma vez, buscavam numa determinada perspectiva histórica a justificativa de
suas afirmações. Citam que a fragmentação e destruição do Império Romano se deu em
função do enfraquecimento das camadas médias. Segundo entendiam, Hitler e Mussolini
não teriam chegado ao poder se, ao longo da crise que abateu Alemanha e Itália no entre
guerras tivesse sido dada a ênfese na organização desta mesma classe. O mesmo
caracterizaria a consolidação do comunismo. No Brasil o risco não estava em perder um
império, e sim a sua liberdade, uma vez que o enfraquecimento da classe média significaria
um passo a mais para a afirmação do comunismo. Utilizavam-se das palavras de Lenin,

140
Editorial, “O Estado de ...”, op. cit.

62
63

para quem o “maior inimigo do comunismo é uma classe média vigorosa”.141 Este grupo
social era tido como elemento de estabilidade política, pois estaria fora do confronto
histórico apresentado por Marx entre burguesia e proletariado, e não se sujeitando a uma
solução radicalizante, segundo pensavam.
O aperfeiçoamento das instituições políticas passava pela questão econômica em
função da instabilidade político-social que este aspecto poderia provocar. Neste sentido
duas das questões fundamentais a resolver eram o problema da inflação e da reforma
agrária. A inflação tinha um efeito perverso principalmente nas camadas médias pois,
“Como a classe média é em geral a que menos pode ser organizada, em virtude da
excessiva diversificação de suas atividades, passa a ser a maior vítima da inflação.
Dá-se então o conhecido fenômeno do ‘estrangulamento da classe média’, à medida
que se reduzem seus componentes”.142

Mais do que preservar o peso deste grupo na sociedade, era premente torná-lo mais
significativo através da reforma das estruturas no campo. A ênfase dada ao “assédio” às
camadas médias realizado por estes institutos e à eficácia de seus resultados foi
amplamente abordado por pesquisadores como Dreifuss, Starling e Saes, tal como
apresentado anteriormente. No entanto, não é identificada por estes autores a importância
dada por ipesianos e ibadianos na formação e ampliação de uma classe média rural. Este
grupo, que “por toda parte representa um centro dinâmico de desenvolvimento econômico e
formação do espírito gerencial”, contribuiria para o aperfeiçoamento de nossas “precárias
instituições políticas” .143
A busca pelo crescimento desta camada social, tanto no meio urbano quanto no
rural, estava na crença também de que seria ela que serviria como agente de homologação
do regime econômico e político pretendido por ipesianos e ibadianos, uma vez que,
tendencialmente, possuíam as mesmas expectativas sociais de ascensão e de status. Outro
aspecto lembrado por eles, sobre este apoio, devia-se à “virtude de a industrialização
proporcionar empregos e oportunidades de acesso ao comando das empresas ou à sua

141
Editorial. “Inflação, um cancro social”. In: Revista Ação Democrática, n° 30, novembro/1961, p. 20.
142
Idem, ibidem.
143
Editorial. “Crítica ao projeto de Reforma Agrária”. In: Boletim Mensal do IPÊS, n° 12, ano II, julho/1963,
p. 5.

63
64

orientação técnica”,144 contribuindo para que eles compartilhassem dos mesmos símbolos
da classe empresarial. Por fim, uma classe média rural vigorosa significava garantir a
continuidade do desenvolvimento econômico. Desta forma, o
“objetivo fundamenal a ser atingido pela reforma agrária, no caso brasileiro, é a
criação de uma classe média rural. O processo de desenvolvimento econômico está
a exigir a comunidade rural organizada e bem estruturada, formada não só de
pequenos proprietários e de trabalhadores adaptados e ajustados às tarefas diretas da
agricultura, como de artesãos e profissionais cujas atividades são indispensáveis a
esse desenvolvimento. (...) Essa exigência é também, um imperativo para o real
funcionamento de nosso regime democrático, que visa estabelecer e manter o
equilíbrio e a harmonia das estruturas política, social e econômica nas áreas urbanas
e rurais”.145

Desta forma, “democracia política é inseparável de democracia econômica (...) e


social”.146 Quanto à democracia econômica, esperava-se alcançá-la através do
estabelecimento e proliferação das sociedades anônimas. A fragmentação do capital, além
de democratizar os recursos econômicos, viabilizaria “impulso considerável à política de
investimentos e de desenvolvimento do país”.147 No que se refere à democracia social, ela
adviria do aperfeiçoamento das instituições do regime, bem como através de uma adequada
representatividade política.
Entendiam que o país passava por uma situação na qual a fraude, a corrupção, o
clientelismo haviam chegado a ponto de colocar em cheque o formalismo e precariedade do
regime e o voto exercia um papel fundamental dentro deste contexto. Os problemas
políticos enfrentados pelo país deviam-se a desajustamentos morais. O documentário
Criando Homens Livres, elaborado pelo IPÊS, retrata que, na população mais pobre, estes
desajustamentos seriam mais graves, uma vez que na favela – “focos de vícios e brigas” – o
fumo, a fome, o jogo e a bebida teriam um local privilegiado para a sua proliferação.
Apesar do problema maior estar localizado entre as populações mais carentes, pergunta-se
o narrador se “entre as famílias mais ricas não existem por acaso graves desajustamentos

144
FILHO, Alberto Venancio; Sá, Fernando da Silva; CARVALHO, Aurélio de; VIEGAS, Mauro Ribeiro;
LUZ, Sebastião B. Ribeiro da. “A empresa privada como comunidade de trabalho: seu papel no
desenvolvimento econômico e na distribuição da renda”, op. cit., p. 27.
145
Reportagem intitulada “Sugestões para a Reforma Agrária”, Arquivo Nacional, Seção de Documentos
Privados, data provável: 1962, sem jornal de origem, sem autoria.
146
O que é o IPÊS, op. cit.
147
BALEEIRO, Aliomar. “Reforma Agrária”, op. cit., p. 8.

64
65

morais”. Aparecem, neste momento, cenas de jovens dançando rock’d’roll, mascando


chicletes e um adolescente olhando revistas de mulheres com trajes “sumários”. Outras
perguntas surgem neste momento:
“Este menino saberá votar amanhã? Saberá escolher os dirigentes da pátria? (...) A
punição na forma da lei é uma solução para o problema social? As cadeias
espalhadas por todo o Brasil impedem que eles (ladrões) continuem surgindo?”148

A resposta é dada com objetividade pelo narrador num trecho em que valoriza a
educação como instrumento fundamental para exercer o direito de voto. Algumas cenas são
interessantes e, na medida do possível são retratadas aqui:
“Só a educação em todos os seus graus pode fazer uma juventude livre capaz de
assumir todas as responsabilidades (a cena de fundo é o horário de saída de uma
Igreja). Só a educação fará de cada jovem um eleitor esclarecido. Sim, porque o
problema fundamental da democracia é educar para votar bem. A escola é o próprio
alicerce da liberdade (cena em que uma criança, ao tentar escrever com a mão
esquerda tem o seu lápis retirado pela professora que o coloca na mão direita). (...)
Somente multiplicando escolas, multiplicando as oportunidades de julgar bem, o
eleitor de amanhã saberá escolher acertadamente os dirigentes do Brasil. A
felicidade de uma nação começa na infância. (...) Nas escolas teóricas ou de
aprendizado profissional é que se edifica o futuro livre de um Brasil desenvolvido
(cena em que uma criança trabalha no ambiente escolar). Menos de 20% dos
brasileiros chegam a obter um grau de instrução que lhes permita dicernir
objetivamente a respeito de nossos problemas políticos e sociais. Equivale a dizer: o
poder constituído no Brasil não representa nem 20 % da opinião do povo. É pela
instrução que o brasileiro saberá escolher corretamente quais são os governantes que
devem dirigir os destinos do país. A última etapa da educação é um gesto cívico à
boca da urna. Um sim para a liberdade e democracia e um não para a desordem e a
demagogia” (a última cena a aparecer é uma imagem da Encíclica Mater et
Magistra)”.149

Ao estabelecer a educação como forma de fazer um homem livre e feliz,


conscientizando-o para o exercício do voto, respaldavam a exclusão do direito de escolha
política aos analfabetos e postergavam para um futuro distante a solução do problema. Isto,
somado ao que é observado mais adiante, ou seja, à existência de uma convicção de que
somente após o crescimento econômico (leia-se aumento da produção) é que os benefícios
sociais seriam ampliados para o conjunto da sociedade, acaba por assinalar que o desejo de
participação política do conjunto da sociedade seria concretizado a longo prazo. Somente

148
Criando Homens livres. Filme produzido por Jean Mazon sob direção do IPÊS. Arquivo Nacional, Seção
de Documentos Sonoros e Imagens.

65
66

ao possibilitar o acesso à educação de boa parte da população brasileira é que esta estaria
legitimada a exercer o direito de voto. Apenas quando eles chegassem a “obter um grau de
instrução que lhes permita discernir objetivamente a respeito de nossos problemas políticos
e sociais” é que o seu direito poderia ser exercido. Também os jovens estavam nesta lista
que deveria ter acesso a uma educação mais aperfeiçoada, de forma a impedi-los a
“escrever com a esquerda”. Parte deste processo educacional seria exercido também pela
Igreja, de forma a consolidar plenamente o “ideal democrático” dentro da perspectiva do
IPÊS/IBAD.
Enquanto isto, a quem caberia o direito de voto? Quem deveria exercer o papel de
condução da sociedade ao longo do processo de disseminação desta perspectiva
educacional? Segundo sinalizavam, um dos “meios mais eficazes de promover a justiça
social é precisamente a purificação e autenticidade da representação política” .150 Neste
sentido, o “povo real, consciente, maior, honesto, sensato, deve escolher com proximidade
e conhecimento”.151 Este povo, que eles diferenciavam da massa, do corpo disforme,
deveria estar pleno de “espírito democrático”.
Não bastava, desta forma, a existência de uma boa educação para uma perfeita
formação democrática ou, “se preferirem, a educação vitalmente democrática: mister se faz
ainda a formação racional para a democracia. Para que uma quantidade cada vez maior de
povo se tornasse “real” necessário era uma fase onde este tivesse acesso à “doutrinação
democrática, [à] tomada-de-consciência, que traduz em princípios demonstráveis e
concatenados aquilo que era possuído instintitvamente”.152
A “tomada-de-consciência” não era privilégio de muitos, segundo ipesianos e
ibadianos. No entanto, o consentimento dos cidadãos era fundamento e condição de
exercício de poder. Devido essa necessidade de legitimidade, de reconhecimento do regime
democrático por eles almejado, buscava-se solucionar a questão através da existência de
diferentes níveis de consentimento: o ativo e o passivo. O reconhecimento passivo seria
dado pela massa disforme, aqueles desprovidos de educação ou de espírito democrático.
Esses grupos estavam relegados a esta situação devido a sua incapacidade de “organizar

149
Criando Homens livres, op. cit.
150
Editorial. “Urge a reforma eleitoral”. In: Revista Ação Democrática, n° 43, dezembro/1962, p. 17.
151
Idem, ibidem.
152
Editorial. “Estado de espírito democrático”. In: Revista Ação Democrática, n° 23, abril/1961, p. 1.

66
67

racionalmente sua ação política e colocar seus interesses de classe à luz do debate
político.”153 O ativo seria dado pelos cidadãos, “as pessoas dotadas de direitos políticos
definidos por força das várias circunstâncias, que consentem ou discordam”.154 Existia uma
preocupação de ipesianos e ibadianos em encontrar o respaldo necessário para o esquema
político que propunham, pois no regime “democrático o que se procura sempre é estruturar
esta forma de participação com o objetivo de dar-lhe legitimidade, eficiência, e autoridade
para funcionar”.155
Um dos aspectos desta participação referia-se à ampliação quantitativa e qualitativa
da classe média. Era neste segmento social que esperavam encontrar o respaldo necessário
para o sistema político que pretendiam impor. No entanto, o sistema partidário precisava
melhorar, ser aperfeiçoado dentro de uma concepção de participação política que apenas
cristalizou-se por completo nos idos de 1965. Importava inicialmente afastar cada vez mais
a participação do indivíduo que “tem pouca capacidade de interferir” uma vez que o
momento histórico vivido não era mais aquele do “Estado Clássico, onde as relações
supostamente eram entre o Estado e ele”. Urgia a criação de “novos corpos de intervenção e
participação na vida política”, do qual o IPÊS seria o melhor exemplo porque “o organismo
é autônomo, independente do Estado mas funcionando com vistas à sociedade, vistas a
participar e influir na sociedade política”.156
Desta forma, buscavam a ampliação do processo de participação política mediante a
elaboração de “novos contratos políticos”157 que se distanciavam em muito das perspectivas
apontadas pelos grupos de esquerda no período em questão. A criação dos chamados
“corpos intermediários” que viessem a ter representatividade política, aliado à ampliação
das camadas médias devidamente doutrinadas pelos “princípios democráticos” eram os
aspectos que se colocavam dentro do novo esquema pretendido por estes grupos. Apesar do
artigo datar de 1965, ou seja, posterior ao golpe, a proposta de rearticulação do sistema, de
“dar um novo conceito de democracia”, já se encontrava entre suas propostas em princípios
da década.

153
STARLING, op. cit., p. 104.
154
TORRES, João Camilo de Oliveira. “A democracia e os regimes totalitários”, op. cit., p. 12.
155
BAHIA, Luiz Alberto. “Contextos políticos e modelos econômicos”. In: Boletim Mensal do IPÊS, nº 38 e
39, ano IV, setembro-outubro/1965, p. 32. Reprodução de palestra proferida pelo jornalista durante o IV
Curso de Atualidades Brasileiras.
156
Idem, ibidem

67
68

Ao propor a ampliação do processo de participação através da criação de corpos


intermediários, encontrar-se-ia o respaldo necessário para o projeto político e econômico
almejado por estes grupos, bem como seriam atendidos os anseios de limitação do poder
reivindicatório dos movimentos populares. Tudo isto dentro do aclamado “Império da Lei”,
que era uma “condição elementar de funcionamento de qualquer tipo de governo
civilizado”.158 Observa-se, neste sentido, que eram dois os elementos políticos
fundamentais a serem almejados por estes grupos. O artigo assinala, primeiro, a
necessidade de estabelecimento de uma legitimidade ao regime. Quanto a isto, a solução
seria dada, como citado anteriormente, pela ampliação das camadas médias, resultado tanto
do crescimento econômico a ser obtido quanto da maior instrução e doutrinação a serem
concedidas gradativamente, no futuro. Neste sentido, a busca pela legitimidade deveria ser
posterior à obtenção da coesão. Deve-se observar que o objetivo último era “assegurar a
continuidade do ciclo de autoridade democrática” que, se anteriormente a 1964 foi
incansavelmente perseguida, após a “revolução” tornava-se um objetivo a consolidar.
Em uma definição elaborada em artigo publicado no Boletim Mensal do IPÊS, João
Torres afirma que a democracia seria o “Estado em que todos os poderes estão sujeitos à
lei, e que tem como fundamento e condições de exercício o consentimento dos cidadãos,
como finalidade o bem comum do povo e como limite os direitos fundamentais do
homem”.159 Buscava-se, portanto, um sistema que potencializasse a livre iniciativa em seu
desenvolvimento no campo econômico, ao mesmo tempo em que viabilizasse sua
interferência no campo político.

157
Idem, ibidem
158
TORRES, João Camilo de Oliveira. “A democracia e os regimes totalitários”, op. cit., p. 10.
159
Idem

68
69

A organização social segundo os Institutos


“Hoje vamos estabelecer algumas das grandes linhas de uma
reforma agrária democrata e cristã. Em primeiro lugar, temos uma
divergência importantíssima quanto aos fins e objetivos. Para os
totalitários, o fim primeiro da reforma agrária é aumentar a produção e
conseqüuentemente o poderio do Estado-Produtor; para os democratas
autênticos, o fim primeiro da reforma agrária é melhorar a condição do
homem do campo, liberá-lo, dar-lhe um status superior. É claro que,
liberado, proprietário ou possuidor, assistido, reconhecido como homem
e não como pária, o agricultor produzirá mais e melhor, do que
necessariamente decorre o enriquecimento da Nação”.

Editorial da Revista Ação Democrática

Como um dos principais temas discutidos ao longo das décadas de 50 e 60, a


questão social no Brasil apresenta-se recorrente nas edições de Ação Democrática e do
Boletim Mensal do IPÊS ao longo do período analisado. O assunto também encontrou
destaque principalmente na produção cinematográfica produzida pelo IPÊS. As películas
produzidas para o cinema, freqüentado por um público variado, atingiriam desde parcelas
afetadas pela má distribuição de renda e pela concentração da propriedade privada nas
mãos de poucos até integrantes das camadas médias. Décio Saes, em trabalho no qual
analisa as tendências políticas desta classe média no período em questão, assinala, quanto
aos diferentes casos de ação propagandística do capital comercial, que
“(...) a conjuntura de 1963-64 introduz uma transformação qualitativa dos temas de
propaganda, com relação àqueles anteriormente explorados: se em 1945 essa fração
combate a ‘ditadura’ em nome da ‘democracia’, e se em 1954 critica a ‘corrupção’
governamental em nome da ‘moralidade’, em 1964 opõe a ‘democracia’ ao
‘comunismo’. Essa ampliação temática revela a presença do temor da proletarização
no seio da classe média. Esse temor não se apodera tão somente da classe média
liberal, mas se estende inclusive a certos setores da baixa classe média; daí o
relativo alargamento do auditório da propaganda anticomunista dirigida por aquela
fração”.160

A abordagem desta produção filmográfica encaminha-se no mesmo sentido. Dos


onze curtas selecionados de um universo de treze, pelo menos nove deles citam a questão
social como um dos aspectos fundamentais a serem resolvidos pelo país.161 Em todos estes

160
SAES, Décio. “Classe média e política no Brasil: 1930-1964.” In: FAUTO, Boris. História Geral da
Civilização Brasileira - O Brasil Republicano. Tomo II. São Paulo, Difel, 1986, p. 500.
161
São os seguintes os documentários que abordam ora diretamente a questão social, centrando-a como tema
fundamental, ora indiretamente, de forma tangencial: O Brasil precisa de você; Nordeste - problema número um;
Vida marítima; Depende de mim; A boa empresa; O IPÊS é o seguinte; Portos paraliticos; O que é o IPÊS; Criando
homens livres; Que é a democracia?; e Conceito de empresa. Arquivo Nacional, Seção de Documentos Sonoros e
Imagens.

69
70

documentos, o problema das péssimas condições sociais é referido, apontando-se como


urgente a sua solução. O país apresentava graves índices de desigualdade social que
acabavam por influir, decisivamente, na possibilidade de alcançar os índices de
desenvolvimento desejados.
Na busca em encontrar o respaldo político para alcançar o controle do país, os
canais de comunicação destes Institutos tentavam apresentar que as suas preocupações não
se davam exclusivamente em torno de aspectos econômicos nem de interesses de classe. Ao
estabelecer a centralidade da questão social, almejavam construir um diálogo com os
grupos assinalados acima, com ênfase no anticomunismo, diálogo este que acabasse por
lhes oferecer um consenso em torno de sua liderança, de suas ações, fossem elas através da
alternativa constitucional, fossem pela alternativa golpista.
Para a reformulação, aperfeiçoamento e consolidação do sistema democrático no
Brasil, apresentava-se premente o equacionamento dos problemas sociais. A persistência do
problema colocaria em sério risco aqueles que confiavam em soluções que privilegiassem a
manutenção das “liberdades básicas” no Brasil, pois possibilitaria a propagação do ideário
comunista. O desespero provocado pela fome, miséria, desemprego e falta de perspectivas
de ascensão social colocaria-se, então, como um importante instrumento de manipulação
sobre as camadas populares que, por “demais frustadas, (...) não encontrarão outro meio de
expressão a não ser a agitação subversiva”.162 A desigualdade profunda era geradora de
conflitos e, neste contexto, os maiores beneficiados seriam os agentes do comunismo
internacional aqui “infiltrados”, uma vez que sua “propaganda completamente falsa”
apontava, sempre, para o “paraíso terrestre que um regime marxista pode proporcionar”.163
Portanto, não poderia existir democracia sem o estabelecimento de uma “justiça social”.
Migração e favelização eram desdobramentos do aprofundamento da miséria de
grande parte da população do país, contribuindo para a degradação moral do povo. Nas
favelas, “focos de vícios e brigas”164, o fumo, a bebida e o jogo teriam um local
privilegiado para sua proliferação. A última saída para este povo seria a mendicância. O
modelo político-econômico adotado não se apresentava como solução para o problema.

162
Editorial. “Critica ao anteprojeto de Lei de Reforma Agrária”. In: Boletim Mensal do IPÊS, nº 12, ano II,
julho/1963, p. 12.
163
Editorial. “Estará em boas mãos a SUDENE?”, op. cit., p. 9.
164
Criando Homens Livres, op. cit.

70
71

Agravava-o, colocando o estabelecimento da justiça social muito longe de ser satisfeito,


posto que se tinha “ainda multidão de brasileiros sem acesso aos direitos humanos
fundamentais”.165
Além disso, existia uma minoria de empresários que, agarrados a práticas oriundas
de um período em que o capitalismo industrial dava seus primeiros passos, “abriam brechas
perigosas nas relações empregado-empregador, contribuindo para o estabelecimento de
injustiças. Note-se que a preocupação destes institutos centrava-se em mobilizar
determinados “medos” extremamente arraigados nas camadas médias. Ao mesmo tempo
em que se propunha lutar contra a proletarização deste grupo social, dispunha-se, também,
a combater os grupos que, para a manutenção de seus privilégios obtidos recentemente – “a
nova classe gerada e alimentada no delírio industrializador” – ou de longa data – “minoria
de ricaços inconsistente e de playboys desprezíveis” –, ameaçavam estabelecer “brechas
perigosas na relação empregado-empregador”.166
Se no meio urbano, espaço da modernidade, as contradições eram profundas, o
problema apresentava-se mais grave no meio rural, segundo ipesianos e ibadianos. O
Nordeste, em especial, era uma região “onde se encontram os brasileiros mais
sacrificados”167 e enquanto “persistirem essas condições, aquela parte do Brasil será o
terreno mais promissor para o comunismo, porque a ele os homens são freqüentemente
levados pelo desespero”.168
Local onde a gravidade da situação contribuía, inclusive, para a proliferação das
“famigeradas” e temidas Ligas Camponesas. Estas apresentavam-se como instrumento de
“agitação comunista” sob liderança de Francisco Julião, um líder que, segundo reportagem
do Jornal O Globo, divulgado em Ação Democrática, apresentava-se como uma mistura de
“Cristo com Lenin, Mao Tse Tung e Fidel Castro”.169 O perigo não estaria nesta confusão
de personalidades tão díspares, segundo O Globo, até por que ela apresentava-se como uma
“ingênua trapalhada”, mas sim porque a sua “preocupação [é] de estender a todo o nosso

165
Editorial. “Urge a reforma eleitoral”, op. cit., p. 17.
166
A boa empresa. Filme produzido pelo Canal 100 sob orientação do IPÊS, direção de Moises Kendler e
Oswaldo Corrêa. Arquivo Nacional, Seção de Documentos Sonoros e Imagens em Movimento.
167
Editorial. “Estará em boas mãos a SUDENE?”, op. cit., p.9.
168
Idem, ibidem.
169
Editorial. “O nordeste e as ligas camponesas”. In: Revista Ação Democrática, n° 28, setembro/1961, p. 13.
Transcrito do Jornal O Globo, de 18 de julho de 1961.

71
72

país as agitações que esta promovendo no Nordeste”. O objetivo final o “senhor Julião não
o oculta: ‘liquidar a sociedade capitalista’”.170
Apesar das considerações acerca da necessidade em diminuir as diferenças sociais e,
contraditoriamente em relação ao discurso apresentado em sua filmografia, estes grupos
possuíam uma série de ressalvas sobre os mecanismos, então existentes, de proteção ao
trabalhador. A legislação trabalhista, dirigida ao assalariado urbano, e a possibilidade de
sua extensão para o meio rural através da Superintendência da Reforma Agrária (SUPRA)
seriam instrumentos anacrônicos de concessão de bem-estar à sociedade e que acabavam
por imitar determinados países em que esta prática já estava em refluxo. Além disto, eram
ferramentas que se mostravam inúteis na contenção tanto no que diz respeito à proliferação
da pobreza quanto à exploração sobre o trabalhador, uma vez que eram mal aplicadas,
sendo desviadas do seu verdadeiro objetivo. Exemplo efetivo desta prática estaria nos
grupos de Previdência Social, a longo tempo controlada pelos partidos de esquerda e por
trabalhadores que, segundo ipesianos e ibadianos, se caracterizavam pelo “peleguismo”.
Apesar de ser “difícil encontrar no mundo inteiro um país que possua leis
trabalhistas mais justas e mais adiantadas que as brasileiras”,171 esta legislação não evitava
a injustiça sobre o trabalhador. Ao invalidar a legitimidade e capacidade dos grupos de
esquerda e do Estado em gerir e administrar os institutos de assistência social, ipesianos e
ibadianos buscavam chamar para si a responsabilidade de fazê-lo. Além disso, a legislação
social existente no Brasil representava a interferência do Estado nas relações entre capital e
trabalho, o que consideravam um equívoco. Por este motivo reivindicavam a alteração da
legislação trabalhista, “tão velha quanto o Ministério” do Trabalho, objetivando a aplicação
de uma legislação que executasse a justiça social “segundo inspirações da Doutrina
Cristã”.172
Exemplos da interferência estatal equivocada na solução dos problemas sociais
também seriam observados na criação da SUPRA que:
“(...) afasta a classe rural da administração e execução não apenas dos serviços
sociais mas ainda de atividade relacionada com o campo. Oficializa-se assim, o banimento
da iniciativa privada e se institucionaliza o estatismo para a agricultura, cujo ministério – e

170
Idem, ibidem.
171
Editorial. “A nova trapaça: Reformas de Base”. In: Revista Ação Democrática, n° 30, novembro/1961, p.
4.
172
Editorial. “Um ministro nas nuvens”. In: Revista Ação Democrática, n° 33, fevereiro/1962, p. 10.

72
73

é o próprio Governo que o confessa nas diversas mensagens e pronunciamentos a respeito


– não funciona (...)”.173

Além de representar o avanço do Estado não somente sobre o livre desenvolvimento


da atividade agrícola, pois significava a exclusão da iniciativa privada da política agrária
nacional, o decreto de criação da SUPRA concretizava o aumento da capacidade do Estado
na prestação de serviços de “assistência social aos trabalhadores rurais, diretamente ou
através de convênios com entidades públicas ou privadas”. A criação da Superintendência
acabaria por desobrigar a iniciativa privada de sua responsabilidade na questão social.
Representava, também, a possibilidade de manipulação eleitoral, correspondendo, na
prática, segundo supunham, à ampliação de políticas já existentes na Previdência Social e,
portanto, à ampliação dos vícios “clientelísticos através do financiamento de “quaisquer
associação de trabalhadores (...) indo desde as eleitoreiras até as subversivas”.174
Por último, uma outra crítica referente a toda a legislação trabalhista e que apontava
para a necessidade de sua reformulação, diz respeito à elevação dos custos de nossos
produtos, tanto no mercado nacional quanto no internacional. Em boa parte, assinalam
ipesianos e ibadianos, a ausência de competitividade dos produtos brasileiros era um
desdobramento não só da política protecionista mas também da excessiva complicação do
“nosso sistema de controles estatais e de privilégios trabalhistas que fazem da orla marítima
uma verdadeira muralha da China erguida contra nossas transações no exterior”.175 Este
aspecto acabou por contribuir, inclusive, para a elaboração, sob direção do IPÊS e da Cine
Service, de um documentário que traçava uma veemente crítica àqueles grupos vinculados
ao trabalho do transporte marítimo e à carga e descarga de mercadorias.176
Se os grupos empresariais vinculados ao complexo IPÊS/IBAD questionavam a
presença do Estado na tentativa de solucionar os problemas ocasionados pela questão
social, não é porque acreditassem que a máquina governamental estivesse desobrigada de
fazê-lo. Tinham a convicção de que, mais do que em qualquer outra área, “é atribuição do
governo promover o bem-estar social”. Mas para tanto “as autoridades dependem das

173
Editorial. “Supra: a marcha do PTB para o campo”. In: Revista Ação Democrática, n° 44, janeiro/1963, pp.
4 e 5.
174
Idem, ibidem.
175
Editorial. “Entrevistando Harold Poland”. In: Boletim Mensal do IPÊS, n° 24, ano III, julho/1964, pp. 2 e
3.

73
74

atividades e do sucesso da classe empresarial”, estimulando a livre iniciativa para “que o


Estado [possa] encontrar recursos para promover o bem-estar da sociedade”.177
Ou seja, também nesta área, consideravam que o intervencionismo deveria encontrar
limites muito claros. O Estado deveria ter um papel subsidiário, tornando viável à iniciativa
privada os instrumentos necessários para a solução da questão social no país. Em aspectos
como a resolução da carência da falta de habitações, da reforma agrária e muitos outros,
consideravam que “não adianta assumir a posição passiva e indiferente de declarar que a
solução cabe a governo”, pois as “condições de vida subumanas de um número de famílias
cada dia crescente influirão irremediavelmente nos costumes, na moralidade, na saúde e no
próprio sistema de vida da sociedade futura”.178 A iniciativa privada deveria ter um papel
mais ativo. Mais uma vez, o problema que se colocava como pano de fundo era o avanço de
um poder estatal crescente que viabilizaria o estabelecimento do “demônio do
totalitarismo” que “está em volta de nós e ameaça devorar-nos”.179
Como substitutivo à uma legislação que viabilizava manipulação eleitoral, limites à
produção e outros desdobramentos negativos para a sociedade, propunham um “novo
papel” para o capital privado na solução das questões sociais. Este se daria através do
aumento da produtividade, transferindo aos “fatores de produção parte de seus ganhos em
produtividade, desse modo, distribuindo renda”, evitando motivar o “Estado a proceder
esta distribuição”.180 Além disto, o crescimento da produção seria responsável pela geração
de empregos e distribuição de bem-estar:
“Se a continuação do processo de desenvolvimento é condição vital para o aumento
da expansão da empresa privada, dele dependem também as demais classes sociais e
os setores dinâmicos da vida brasileira. Nesse sentido, na presente conjuntura
brasileira, são coincidentes os interesses do proletariado, da burguesia industrial, do
campesinato e da classe média. Ao proletariado, o processo de desenvolvimento
econômico e na industrialização cria condições melhores de salários e níveis mais
altos de remuneração. A classe média se vincula também a esse esforço, em virtude

176
Vida Marítima. Filme produzido pela Cine Service sob a direção do IPÊS. Arquivo Nacional, Seção de
Documentos Sonoros e Imagens em Movimento.
177
SOUZA, Roberto Pinto de. Comentários sobre o Congresso “O governo e a empresa privada no processo
de desenvolvimento”. In: Notícias do IPÊS, n° 6, ano I, outubro-novembro/1964, São Paulo, p. 4.
178
POLAND, Harold. “Ainda o problema da casa popular”. In: Boletim Mensal do IPÊS, n° 8, ano II,
março/1963, pp. 7 a 15.
179
Editorial. “O que é a reforma agrária”. In: Revista Ação Democrática, n° 25, junho/1961, pp. 6 e 7.
Comentários e resumo da exposição de Gustavo Corção, José Carlos Barbosa Moreira e de Lynn Smith,
contendo alguns trechos das mesmas no simpósio citado.
180
TORRES, Candido. “Reforma da empresa”, op. cit., pp. 14 a 22.

74
75

da industrialização proporcionar empregos e oportunidades de acesso ao comando


das empresas ou à sua orientação técnica. E os trabalhadores rurais, pelo fato de que
somente o processo de desenvolvimento postulou a urgência de modificação das
condições de vida no campo, com a conversão numa agricultura tecnificada e
adoção de processos produtivos mais eficientes, o que se converterá em melhores
condições de vida”.181

Buscava-se criar a comunhão de interesses entre os diferentes segmentos da


sociedade em torno de um papel mais amplo que deveria caber à iniciativa privada. Os
benefícios eram inúmeros, conforme ipesianos e ibadianos, e não se limitavam apenas aos
aspectos citados anteriormente. O aumento da produção espalhava benefícios e contribuía
para a redistribuição da renda através do fornecimento “de bens e serviços em condições
mais eficientes e a preços menores”,182 permitindo “à população em geral, alcançar
melhores padrões de vida, e a obtenção de maior quantidade de bens e serviços. Além disto,
o sistema tributário, para o qual o empresariado contribuía fortemente, atuava como um
“poderoso instrumento de desconcentração de renda, cabendo porém, evitar que essa
atuação do sistema tributário não reverta num distributismo à outrance que significa apenas
a repartição da miséria”.183
Efetivamente “nova” era a proposta de reformulação do sistema financeiro com
vistas a consolidar a democracia social, aspecto fundamental da democracia política que
estes grupos pretendiam implementar. Através da mudança da “estrutura mental” dos
chefes de empresas fechadas e da criação de um mercado de papeis mobiliários, os
trabalhadores se transformariam em acionistas, “proprietários ou condôminos de uma
parcela da riqueza coletiva”.184 A participação dos empregados nas empresas apresentava-
se duplamente vantajosa. Primeiro, porque contribuiria para o crescimento da
disponibilidade de capitais do qual o país carecia. Segundo, era
“(...) uma solução muito mais interessante, eficiente e empolgante, do que aquela
com que o socialismo nos acena, porque a grande alternativa da socialização dos
meios de produção é a democratização da propriedade – justamente o que se

181
FILHO, Alberto Venancio; Sá, Fernando da Silva; CARVALHO, Aurélio de; VIEGAS, Mauro Ribeiro;
LUZ, Sebastião B. Ribeiro da. “A empresa privada como comunidade de trabalho: seu papel no
desenvolvimento econômico e na distribuição da renda”, op. cit., p. 27.
182
Idem, ibidem.
183
Idem, p. 28.
184
LOPES, “Panorama Industria”, op. cit., p. 18.

75
76

conseguiu alcançar nas modernas democracias por via do instituto revolucionário


que é a sociedade por ações”185.

A proposta socialista, segundo ipesianos e ibadianos, acabaria apenas por efetivar a


“repartição da miséria”. Estas medidas, contudo, não solucionariam o problema de boa
parte da sociedade brasileira que ainda era, neste momento, predominantemente rural. Os
procedimentos acima apontados como a solução para o problema social colocava-se muito
mais para a população urbana do que para a rural. Tornava-se necessário apontar
alternativas que atendessem a esta parcela da sociedade brasileira, o que também estava
sendo considerado. A solução, para estes grupos, estaria no estabelecimento de uma
reforma agrária.
Segundo eles, a reforma agrária sofria a oposição de grupos que não desejavam a
transformação do país dentro de uma perspectiva democrática. Apresentava-se como um
joguete político nas mãos daqueles que buscavam ou a consolidação do caos com vistas a
uma transformação revolucionária e de caráter comunista, ou de grupos que tentavam
garantir seus privilégios através da estagnação da estrutura vigente no meio rural.186 Dentro
de uma perspectiva dualista da sociedade brasileira – que não estava presente somente na
produção intelectual da esquerda –,187 reivindicavam a “revisão de nossa obsoleta estrutura
agrária”.188 Consideravam-na “urgente e de grande necessidade”, pois era a responsável
pela existência de um dos principais pontos de estrangulamento da economia. O obstáculo a
ser superado apresentava-se como o grande responsável pela manutenção da atrasada
estrutura “oligárquica”, “tradicional” e “patricarcal” em meio rural. A população desta
parcela do país vivia ainda “escravizadas pela fome e pela miséria e tal escravidão, não se
distingue muito daquela que as tiranias políticas criam”.189 Neste quadro era impossível que

185
TORRES, Candido. “Reforma da empresa”, op. cit., p. 17.
186
MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Na encruzilhada”, op. cit., p. 14.
187
Segundo Teixeira da Silva, as interpretações da realidade brasileira baseadas na noção de dualismo
estrutural estavam presentes tanto em liberais quanto entre comunistas do PCB e entre reformistas do ISEB.
“A Modernização Autoritária: Do Golpe Militar à Redemocratização (1964/1984)”. In: LINHARES, Maria
Yeda (org.). História Geral do Brasil. Rio de Janeiro, Campus, 1990, p. 275.
188
Idem, ibidem.
189
HASSLOCHER, Ivan. “Simpósio do IBAD sobre reforma agrária”. In: Revista Ação Democrática, n° 25,
junho/1961, pp. 4 e 5.

76
77

se tolerasse “que alguém leve no campo uma existência que na cidade não admitimos nem
para os animais”.190
Avaliada como elemento de vital importância para a existência de um regime
democrático, uma vez que não podia haver “verdadeira democracia sem a justiça social e
econômica”,191 a reforma agrária possibilitaria o desbloqueio do desenvolvimento, bem
como o aumento dos rendimentos da população e da produção. As estatísticas de
produtividade agrícola confirmariam o atraso do meio rural e assinalariam que o país
permanecia à “margem do progresso tecnológico”.
Também o governo concordava com a necessidade de reformulação da estrutura
agrária no país, considerada como “um sério obstáculo ao desenvolvimento acelerado da
economia da nação”.192 No entanto, apesar da existência de um relativo consenso referente
à modificação da estrutura vigente no campo, os projetos de encaminhamento da reforma
diferiam em vários aspectos193 e o complexo empresarial IPÊS/IBAD traçou uma série de
críticas aos projetos concorrenciais existentes. Elas referiam-se principalmente aos dois
principais grupos responsáveis pelo impasse criado na efetivação da dita reforma. A
questão permanecia um “ovo, graças aos esforços confluentes dos latifundiários”, de um
lado, e “dos comumistas e dos teóricos do ISEB”,194 de outro.
Apesar de latifundiários e comunistas estarem pretensamente em campos opostos,
os membros destes institutos consideravam que eles possuíam alguns aspectos em comum
quanto aos seus objetivos, sendo o elemento fundamental desta identificação a pretensão da
concentração fundiária nas mãos de poucos. Como pode ser observado aqui, contrariamente
do que é assinalado por Dreifuss, nem sempre os institutos em questão desenvolveram uma
campanha conciliatória com as classes rurais dominantes.195
Os comunistas desejavam a reformulação do sistema de propriedade de terras com
vistas a estabelecer as grandes fazendas coletivas, que ficariam sob controle do Estado. O

190
Editorial. “Reforma Agrária democrática: única solução para o Brasil”. In: Revista Ação Democrática, n°
31, dezembro/1961,p. 3.
191
HASSLOCHER, Ivan. “Simpósio do IBAD sobre reforma agrária”, op. cit., pp. 4 e 5.
192
Presidência da República, 1962, p.112. Citado em FIGUEIREDO, Argelina C., op. cit., p. 113.
193
SILVA, Francisco C. Teixeira. “A Modernização Autoritária.: Do Golpe Militar à Redemocratização
(1964/1984)”, op. cit. Ver também CAMARGO, Aspásia de A. “A Questão Agrária: Crise do Poder e
Reformas de Base (1930-64).” In: Fausto, Boris (org.). O Brasil Republicano. Tomo III - Sociedade e
Política (1930-1964). São Paulo,Difel, 1986.
194
MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Na encruzilhada”, op. cit., p. 14.
195
DREIFUSS, op. cit., p. 181.

77
78

governo teria sido influenciado por estes grupos e acabou por apresentar um anteprojeto de
lei que viabilizava tal estrutura de distribuição da terra. Visava apenas aumentar a produção
a fim de fortalecer o Estado na medida em que acabaria por torná-lo em um grande
proprietário, segundo assinalavam, o único.
A proposta que ora era apresentada pelo governo, se assim encaminhada, acabaria
por desviar a reforma agrária do que identificavam como sendo um de seus reais objetivos
que era o da elevação do poder aquisitivo e do padrão de vida do homem rural pela difusão
da propriedade familiar. Ipesianos e ibadianos concebiam que, apesar de partirem de
objetivos que seriam, a princípio, diametralmente opostos, o destino final das reformas
propostas seria o mesmo: a “forma conservadora de organização da propriedade”. Com a
propriedade das terras estatizadas, o trabalhador rural tornar-se-ia um proletário do campo,
sujeito às vulnerabilidades das crises sociais e sem “nenhuma radicação à terra”.196 Outro
aspecto que deve ser observado refere-se à forma de desapropriação das terras, “chave de
cúpula de todo o projeto da reforma agrária”.197 O governo pretendia desapropriar a terra
através do pagamento de indenizações sem correção, o que se apresentava como uma
“subversão da ordem jurídica, como aconteceu nos países totalitários onde a aplicação
prática experimentada não elevou o padrão de vida dos homens, mas, pelo contrário,
roubou-lhes tudo com o sacrifício da própria liberdade”.198
De outro lado estavam os grandes latifundiários, aqueles responsáveis pela
“retenção de glebas para a especulação imobiliária”, pela permanência de processos
“rotineiros de utilização da terra”, de métodos de “destruição ainda tão largamente
utilizados em nosso interior”.199 Pretendiam impedir a qualquer custo o estabelecimento da
reforma agrária com vistas à manutenção de seus privilégios, e possuíam uma visão
completamente deturpada da realidade, posto que fingiam “não perceber a desgraça em que
vive uma parcela imensa da população do Brasil”.200 A ameaça destes dois grupos,
“comunistas” e “reacionários”, vinha de sua organização, do grau de mobilização que era
almejado ser obtido tanto pelo IPÊS quanto pelo IBAD.

196
D’ÁVILA, Padre Fernando Bastos. “Aspectos políticos e sociais da reforma agrária”, op. cit., p. 18.
197
Editorial. “Critica ao anteprojeto de Lei de Reforma Agrária”, op. cit., p. 9.
198
Editorial. “As classes produtoras e a Reforma Agrária”. In: Ação Democrática, n° 48, maio/1963, p. 9.
199
Editorial. “Reformas agrárias II”. In: Revista Ação Democrática, n° 20, janeiro/1961, p. 16.
200
HASSLOCHER, Ivan. “Simpósio do IBAD sobre reforma agrária”, op. cit., pp. 4 e 5.

78
79

E qual era a proposta destes grupos para o encaminhamento da reforma agrária? A


perspectiva indicava para a necessidade premente da reformulação da estrutura fundiária
no país. Existiam duas formulações básicas para o seu desenvolvimento e, neste sentido,
observa-se uma certa divisão de opiniões acerca do assunto entre ipesianos e ibadianos, o
que não se presenciou quanto à questão do desenvolvimentismo e da forma de organização
política. Ambas são apresentadas, em sua maior parte, através de editoriais dos dois
periódicos, o que inviabiliza a delimitação de grupos específicos a defender uma ou outra
proposta. Esta variação pode sinalizar para o encaminhamento de diferentes estratégias de
luta que teriam variado ao longo do contexto político vivido e aqui analisado.
A primeira referia-se à distribuição de terras, mas num sentido diferente do
concebido pelas esquerdas e pelo próprio governo. Para eles, o acesso à terra deveria se dar
sem violência e com o estabelecimento de mecanismos que propiciassem, da melhor
maneira possível, a defesa da propriedade privada. A preocupação central, quanto a este
aspecto, estava na forma de indenização a que os proprietários fariam jus, bem como
quanto a impedir o puro e simples confisco das propriedades rurais, fossem elas
improdutivas ou não. Os participantes destes institutos consideravam que a proposta
estabelecida no anteprojeto do governo João Goulart acarretava numa significativa perda do
valor indenizatório pago aos proprietários já que, ao se buscar compensar “o desapropriado
em títulos e pelo valor nominal numa economia inflacionária, na qual o prórprio dinheiro se
desvaloriza dia a dia”, não se ofereceria nenhuma garantia a ele.201 Para evitar tal situação,
alguns afirmavam que existiria a necessidade de uma prévia estabilização da moeda de
forma a viabilizar o pagamento das indenizações através de títulos públicos. Tratava-se de
estabelecer um cronograma que acabaria por adiar, pelo menos temporariamente, a
efetivação da reforma mas que possibilitaria a diminuição da resistência ao tipo de
indenização proposto por eles ao governo. O planejamento era importante, inclusive, para
evitar a radicalização do processo e, conseqüentemente, a disseminação da violência
provocada pela resistência dos grandes proprietários.
“Com uma moeda estável a reforma agrária pode ser conduzida pela compra de
terra, voluntariamente oferecidas, contra o pagamento em títulos do Governo. (...)
Se em seguida tentassem elaborar um cronograma, um desprentensioso calendário
dessas reformas, perceberiam que tal seja a seqüência dessas medidas delas resultará

201
Editorial. “Critica ao anteprojeto de Lei de Reforma Agrária”, op. cit.

79
80

fatalmente uma subversão, um processo revolucionário. Há calendários de reformas


que levarão o país diretamente para o comunismo e existem outros calendários, de
reformas idênticas, que permitem atingir-se a todos os mais altos objetivos de
justiça social no quadro da democracia e da liberdade”.202

Mesmo considerando a possibilidade de redistribuição de terras a partir de


propriedades não produtivas, existiam alguns impedimentos, e mesmo algumas etapas, que
deveriam ser cumpridos e que poderiam até contribuir para um certo voluntarismo por parte
dos latifundiários. Na ordem de prioridades, a racionalização da produção no campo teria,
segundo meu entendimento, um caráter complementar, posto que, como afirmavam,
“A reforma agrária não deve entretanto limitar-se a essas diretivas legais. É preciso
que a lei agrária seja completada por uma série de medidas que digam respeito (...) à
difusão do crédito agrícola, à colonização de migração, à assistência técnica e
educacional e à política fiscal. O crédito agrícola vai irrigar os novos núcleos
implantados”.203

Para alguns, no entanto, a utilização de terras devolutas – que “deveria preceder o


parcelamento da propriedade individual”204 e a expansão da fronteira agrícola rumo ao
Oeste e ao Norte –, eram medidas prioritárias que poderiam até mesmo tornar desnecessário
o “ataque” contra esta uma vez que “nosso problema não assenta absolutamente em falta de
terras aráveis (...) mas na penetração cada vez mais profunda no patrimônio estadual ainda
não explorado, seguindo o exemplo de energia das gerações anteriores que lutaram contra
índios (...)”.205
A produtividade colocava-se também como aspecto central para esta perspectiva de
reforma agrária. Entendendo a possibilidade da redistribuição de terras apenas como
possibilidade remota, ou até mesmo nula, a prioridade absoluta estaria nos mecanismos de
aumento da produção e não nas soluções “altissonantes”.
“Esse é o caso das pesquisas agronômicas, com o propósito de elevar a
produtividade da labuta do homem rural. Produtos há no Nordeste cujo rendimento
por área plantada é dos mais baixos do mundo, onerando demasiadamente seus
custos e impedindo que os lavradores possam deles tirar o necessário para
sobreviverem com suas famílias. (...) Esse rendimento extremamente baixo – índice
de miséria e de falência na cultura do algodão – explica o êxodo que continua

202
LOPES, “Panorama Industria”, op. cit., p. 22.
203
RIOS, José Artur. “Como se prepara e executa a reforma agrária”. In: Revista Ação Democrática, n° 25,
junho/1961, pp. 9 e 10.
204
D’Ávila, Padre Fernando Bastos. “Aspectos políticos e sociais da reforma agrária”, op. cit., p. 19.
205
BALEEIRO, Aliomar. “Reforma Agrária”, op. cit., p. 17.

80
81

ameaçando a região nordestina, a qual possui grandes áreas dotadas de condição


físicas melhores que as de São Paulo para a produção de algodão. Infelizmente, a
região não dispõe de organização e de assistência técnica suficiente”.206

Inverte-se, desta forma, a ordem dos fatores em privilégio quanto às medidas que
viabilizariam a reforma agrária, colocando em primeiro plano aquilo que se apresenta como
medidas complementares para os que vislubravam a possibilidade de repartição da terra.
Dentre os elementos que contribuiriam para o aumento da produtividade de acordo
com essas duas concepções de reforma agrária, pode-se citar a destinação de maiores
investimentos públicos na área agrícola, que viabilizassem ao homem do campo a
modernização da estrutura agrária. A incorporação de máquinas, inclusive, era elemento
fundamental para que se liberassem “fatores produtivos” para a industrialização brasileira.
A adoção de novas técnicas de plantio deveria evitar a “permanência de processos
rotineiros de utilização da terra” e a “destruição ainda tão largamente praticad[a]s em nosso
interior”.207
Um elemento que merecia consideração dentro da proposta de aumento da
produtividade era a educação do homem do campo. Ivan Hasslocher, importante dirigente
do IBAD, assinala em artigo veiculado em Ação Democrática que aqueles que entendiam
que o “lavrador brasileiro” era “ineducável”, que estabeleciam que “nem se pode pensar em
reforma agrária antes de educar as populações rurais”, na verdade tinham um propósito
“puramente egoísta” de “não querer ver reduzidas as suas fontes de riqueza”. As críticas
eram dirigidas, no entanto, a “alguns milionários e supermilionários, com propriedades
imensas pelo interior do Brasil” que “odeiam a idéia de reforma agrária”.208
A necessidade urgente de educá-lo era inquestionável, como colocava Gustavo
Corção, outro importante dirigente do IBAD, uma vez que um dos principais problemas da
estrutura agrária brasileira era a “forte proporção de analfabetos e, conseqüente incultura
geral”.209 Padre Ávila, um dos convidados a participar de um simpósio sobre a reforma
agrária elaborado pelo IBAD, também se encaminhava no mesmo sentido, posto que
considerava a existência de “uma situação de dificuldade técnica devido à ausência de

206
Editorial. “Produtividade – um problema do Nordeste”. In: Revista Ação Democrática, n° 28,
setembro/1961, p. 15.
207
Editorial. “Reformas agrárias II”, op. cit., p. 16.
208
HASSLOCHER, Ivan. “Simpósio do IBAD sobre reforma agrária”, op. cit., pp. 4 e 5.
209
Editorial. “O que é a reforma agrária”, op. cit., pp. 6 e 7.

81
82

educação e preparação técnica por parte dos trabalhadores rurais” que deveria ser superada.
Neste sentido, o
“(...) agricultor precisa ‘aprender’ a ser agricultor, aprender a amar a terra, a
conhecê-la (...). Enfim, há toda uma complexa e minuciosa técnica ruralista que lhe
tem de ser infundida. Por isso mesmo, cumpre multiplicar eficientes e bem
equipados institutos agronômicos, destinados a dar permanente e estimulante
assistência, não apenas técnica mas instrumental, digamos assim, emprestando ou
alugando maquinaria necessária ou útil a diminuição de esforço e aumento de
rendimento”.210

Através da educação, esperava-se alcançar o aumento da produtividade já que esta


instrumentalizaria o trabalhador para a adoção de novas técnicas produtivas e de
maquinário moderno, transformando-se “em fator essencial de justiça social, se tem a
função de aperfeiçoar a força humana de trabalho, de modo a que possa render mais,
aumentando o produto e facilitando, assim melhor redistribuição de renda (...)”.211 O
resultado final desta reforma deveria ser, para ambos os grupos aqui apontados, a
multiplicação de pequenas unidades familiares, que viabilizassem o crescimento da classe
média no campo e nunca a pauperização através da “proletarização” do trabalhador do
campo.
Uma vez estabelecidos os diferentes critérios de elaboração da reforma agrária,
segundo a concepção de ipesianos e ibadianos, deve-se observar a que grupo caberia a
organização para que tal reforma fosse implementada e quais os objetivos a serem atingidos
pela mesma. Embora considerassem que o Estado devesse ter um papel primordial na
elaboração de políticas sociais, caberia a iniciativa privada uma importante função na
execução da política agrária nacional. Isto porque o problema não era apenas social, mas
estava diretamente vinculado com a questão da defesa da propriedade privada, tão cara para
ipesianos e ibadianos, que evitasse a “espoliação do proprietário, a estatização da gleba, a
escravização do agricultor e o aumento da riqueza posta à disposição dos detentores do
poder.”212 Para eles, a “aceleração do processo de desenvolvimento econômico nos anos
futuros irá exigir novos esforços das classes empresariais, correspondendo, como

210
Editorial. “Reformas agrárias II”, op. cit., p. 16.
211
MOREIRA, J. Roberto. “Delineamento geral de um plano de educação para a democracia no Brasil”. In:
Boletim Mensal do IPÊS, edição especial, ano IV, novembro/1964.
212
Editorial. “Reformas agrárias II”, op. cit., p. 16.

82
83

imperativo, urgente, a conjugação ótima dos fatores de produção”.213 A reforma agrária


intentada por estes grupos, como poderá ser observado adiante, tinha por um de seus
objetivos justamente a liberação dos fatores produtivos para a indústria e, desta forma, era
tarefa do empresário empreendê-la. Aliás, a consecução do bem-estar geral – através de
geração de empregos e de maior produção – também se apresentaria como tarefa do
empresariado, posto que, a “continuar assim, estará motivando o Estado a proceder esta
distribuição de renda.214
Quanto aos objetivos a serem almejados por estas concepções de reforma,
identifiquei três que seriam os principais. A adequação do meio rural à estrutura agrária
necessária para o processo de industrialização almejada seria um deles. Segundo
reportagem veiculada pelo IPÊS, a reforma agrária contribuiria para “harmonizar o
desenvolvimento rural com o processo de industrialização, inclusive pelo incentivo ao
artesanato e a formação de pequenas e médias indústrias com o aproveitamento de mão-de-
obra e utilização de matéria-prima locais”.215 A reformulação da estrutura fundiária
contribuiria para a disponibilização de fatores produtivos para outras atividades, “liberando
força humana de trabalho para a indústria, os transportes, as comunicações e outros
serviços necessários à circulação e à distribuição a produção nacional”216 e evitando a
disputa pelos fatores produtivos com seu conseqüente encarecimento. Eliminar-se-ia no
país, assim, “um dos pontos de estrangulamento de sua economia”217. Da mesma forma, o
aumento da produtividade no campo viabilizaria a disponibilização das “cambiais com que
compramos petróleo, máquinas, trigo, produtos químicos”218 tão necessárias para a
modernização industrial brasileira.
Outro objetivo relevante seria o de contribuir para a consolidação de uma “classe
média rural alicerçada na propriedade familiar”219 formada não só de pequenos

213
FILHO, Alberto Venancio; Sá, Fernando da Silva; CARVALHO, Aurélio de; VIEGAS, Mauro Ribeiro;
LUZ, Sebastião B. Ribeiro da. “A empresa privada como comunidade de trabalho: seu papel no
desenvolvimento econômico e na distribuição da renda”, op. cit., p. 26.
214
TORRES, Candido. “Reforma da empresa”, op. cit., p. 15.
215
“Sugestões para a reforma agrária”. Data provável: 1962, s./jornal de origem, s./autoria, mas elaborada
pelo IPÊS.
216
MOREIRA, J. Roberto. “Delineamento geral de um plano de educação para a democracia no Brasil”, op.
cit.
217
Editorial. “Critica ao anteprojeto de Lei de Reforma Agrária”, op. cit.
218
BALEEIRO, Aliomar. “Reforma Agrária”. In: Revista Ação Democrática, nº 48, maio/1963, p. 17.
Entrevista especial para a revista.
219
Editorial. “Critica ao anteprojeto de Lei de Reforma Agrária”, op. cit., p. 12.

83
84

proprietários e de trabalhadores adaptados e ajustados às tarefas diretas da agricultura.


Como pode ser observado na parte referente aos projetos políticos dos participantes destes
institutos, as camadas médias apresentavam-se como um importante componente na
estrutura política almejada para o país. Julgavam eles que “o futuro da democracia no
Brasil, o aperfeiçoamento das nossas precárias instituições políticas, depende mais que de
outro qualquer fator, da formação de uma classe média rural”.220 Este grupo seria o
responsável pelo equilíbrio político já que
“(...) quando faltam as camadas intermediárias da sociedade ou quando elas se
enfraquecem, os conflitos sociais tendem a extremar-se e os cidadãos correm o risco
de apelar para a pseudo-solução totalitária. Mas se a reforma agrária estabelece
uma sólida classe média rural, a democracia se consolida e os extremos sociais
acabam por reabsorver-se no comum destino humano”.221

A disponibilização de técnicas e máquinas, ou ainda a redistribuição das terras em


unidades familiares seriam os instrumentos utilizados para alcançar-se a expansão deste
grupo social.
Além da criação de mecanismos que viabilizassem uma harmonia política no país,
deve-se notar que outra meta objetivada era o estabelecimento da ordem social no campo
através do “combate ao subdesenvolvimento rural do Nordeste e de todo o Brasil”.222 A
reforma contribuiria para a diminuição da pobreza nas áreas mais atrasadas do país, mas
não a eliminaria completamente. Nem era este o objetivo destes grupos. Na concepção que
tinham da organização social, ipesianos e ibadianos consideravam que a “supressão total
das desigualdades é, sabidamente uma utopia”,223 uma vez que não “há como se iludir com
a possibilidade de resolver-se a pobreza das massas acabando com as ostentações de uma
insignificante minoria de ricaços inconscientes e de playboys desprezíveis”.224 Desta forma
era
“(...) estéril toda a interminável arenga das esquerdas sobre a alienação humana.
Enquanto não houver riqueza bastante para elevar todos os homens ao nível a que
devem pertencer, haverá sempre uma sub-humanidade, o Lumpenproletariat dos
alemães. O jargão detestável das esquerdas, católicas ou comunistas, que se

220
Editorial. “Critica ao anteprojeto de Lei de Reforma Agrária”, op. cit., p. 12.
221
Editorial. “O que é a reforma agrária”, op. cit., pp. 6 e 7.
222
Editorial. “Reforma Agrária democrática: única solução para o Brasil”. In: Revista Ação Democrática, n°
31, dezembro/1961,p. 3.
223
GUDIN, Eugênio. “Porque ninguém confia”. In: Revista Ação Democrática, n° 40, setembro/1961, p. 5.
224
Idem, ibidem.

84
85

debruçam sobre as sociedades para a análise tão minuciosa, quanto arbitrária e inútil
das nuances de uma burguesia ‘progressista’ ou não ou de um proletariado
‘concientizado’ ou vítima da alienação tradicionalista, não altera a realidade que é
uma só – é preciso enriquecer, efetivamente toda a humanidade, a fim de que todos
os homens possam integrar-se em alguma coisa definível como ‘genero humano’. A
diferença, em verdade, que medeia entre o homem miserável das selvas, dos campos
ou das favelas e cortiços humanos, e o homem abastado das sociedades modernas,
não permite sua integração em um mesmo gênero. Não há ainda o ‘ser genérico’ do
homem na expressão de Marx”.225

As diferenças ainda eram muito marcantes e inviabilizariam a disposição de todos


os seres humanos num mesmo “gênero”, numa situação de igualdade. Tratava-se antes de
evitar uma pauperização generalizada da sociedade e de buscar o enriquecimento primeiro
para, somente então, buscar diminuir, mas não eliminar, a pobreza, já que isto seria
inevitável para eles. No encaminhamento do problema, a “questão há de ser equacionada
em termos de ‘graus de desigualdade’, isto é, de maior ou menor desigualdade, como em
termos de saber o que há a repartir, isto é, qual o tamanho do bolo total a dividir”.226 Para
tornar possível diminuir as diferenças somente “através da criação deliberada e racional de
riquezas”.227 Ao enfatizar a idéia de que a maior igualdade somente seria possível pela
liberdade de ação, caracterizar-se-ia a impossibilidade de igualdade absoluta. Mais uma vez
cabe apresentar aqui a argumentação que foi citada por artigo veiculado pelo IBAD:
“De saída lembremos aquela sentença lapidar de Rui Barbosa na sua Oração aos
Moços: ‘A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos
desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social,
proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade.
Os mais são desvarios da inveja, do orgulho ou da loucura’”.228

Haveria uma fase de sacrifícios que deveria ser enfrentada para esta acumulação
“deliberada e racional de riquezas”, uma fase em que “custo social que deve ser pago pelos
povos para poderem atingir o limiar da liberdade, o preço em sangue, suor e lágrimas que
os povos líderes do mundo moderno pagaram efetivamente para atingi-lo (...)”.229 A teoria
do bolo consolidada em sua plenitude no auge do regime autoritário, ou seja, no governo do

225
Editorial. “Façamos nossa opção”. In: Notícias do IPÊS, n° 12, ano II, junho, 1965, p. 1.
226
GUDIN, Eugênio. “Porque ninguém confia”, op. cit., p. 5 (grifos no original).
227
Nordeste: problema número 1. Filme produzido por Jean Mazon e da Atlântida Filmes sob a direção do
IPÊS, Arquivo Nacional, Seção de Documentos Sonoros e Imagens em Movimento.
228
Editorial. “A escola e os direitos da consciência”, op. cit., p. 20.
229
Editorial. “Façamos nossa opção”, op. cit., p. 1.

85
86

General Médici, por Delfim Netto, já apresentava aqui o seu esboço ao definir mecanismos
de redistribuição de renda baseados no aumento do número de empregos, da pulverização
do patrimônio de empresas, do fornecimento de produtos mais baratos e melhores e,
principalmente através de uma reforma agrária que concedesse ao mais aptos a
possibilidade de aumentar a sua produção. O resto “(...) são desvarios da inveja”.

86
87

Política externa
“Fala-se novamente no reatamento de nossas relações
diplomáticas com a Rússia. Somos inteiramente contrários a essa
medida que implica em tratarmos normalmente com uma nação que
declaradamente deseja subjugar-nos à sua ideologia e ao seu regime.”

Editorial de Ação Democrática

Os membros do IPÊS/IBAD consideravam, em sua quase totalidade, a inviabilidade


de estabelecer uma política externa independente ou, como afirmavam alguns,
“neutralistas”. Para justificar tal posição, adotavam os mais variados argumentos. Um
primeiro aspecto que deveria ser considerado era a insignificância da representatividade dos
grupos que reivindicavam tal encaminhamento para nossa política exterior. Aqueles que
estabeleciam a necessidade do reatamento de relações diplomáticas com os países do Leste
Europeu e com a URSS eram, conseqüentemente, numericamente desprezíveis se
considerada a sua proporção com o conjunto da sociedade brasileira. A força destes grupos
estaria antes depositada no grau de sua articulação e organização, exercendo “grande
influência sobre o nosso governo e sobre a opinião pública brasileira”.230 Era daí que
adviria o perigo que eles representavam.
Os argumentos destes grupos, para ipesianos e ibadianos, eram inconsistentes e
possibilitavam o respaldo a governos que não estavam nem um pouco comprometidos com
a questão democrática. Representavam um péssimo exemplo para um país como o Brasil,
que buscava trilhar o caminho do aperfeiçoamento do regime democrático, já que o
“reconhecimento formal de governos tirânicos, impostos e mantidos pela força das armas,
implica, pelo contrário, numa espécie de repúdio aos povos triturados de trás da Cortina de
Ferro”.231
A consolidação de relações de comércio com os países neutralistas também não se
apresentariam vantajosas. O Brasil possuía uma necessidade premente de ajuda econômica
em função da etapa de desenvolvimento pela qual passava e isso deveria ser considerado no
estabelecimento de suas relações externas. Apesar da ajuda econômica prestada por
organismos internacionais do Ocidente – tais como o Fundo Monetário Internacional, a
Corporação Financeira Internacional e o Eximbank – não ser suficiente em relação às
necessidades da região, afirmavam que o Brasil era contemplado com uma soma

230
Editorial. “Política externa do Brasil II”. In: Revista Ação Democrática, n° 27, agosto/1961, pp. 3 a 9.

87
88

significativa de recursos que não poderia ser desprezada. O país situava-se em uma posição
na qual apenas duas nações estavam em “condições mais vantajosas no que respeita a
empréstimos para desenvolvimento: Índia e Autrália”.232
Optar pelo neutralismo poderia colocar em risco a obtenção desta soma de recursos
até então disponíveis na medida em que nos afastaria de um dos principais financiadores do
desenvolvimento do país, segundo afirmavam. A conseqüência imediata do
encaminhamento de tal política no governo João Goulart já se fazia sentir tanto através do
congelamento de linhas de crédito pelos países ocidentais quanto pela suspeita sobre os
rumos que o Brasil estava tomando em termos de política interna. Da mesma forma, a
adesão ao bloco neutralista só poderia “enfraquecer o mundo livre” na medida em que
retiraria o apoio aos países ocidentais no combate ao comunismo.
Para os membros destes institutos, os países neutros seriam econômica e
culturalmente “retrógados e subdesenvolvidos”. Todos eles atravessavam a mesma situação
financeira de dificuldades tal qual o Brasil, e “não estão em condições de oferecer auxílio a
ninguém e nem de recebê-lo”.233 Este, talvez, fosse o único elemento de identificação entre
os países do bloco em questão.
O elemento chave a ser considerado no momento de definição quanto ao tipo de
desenvolvimento de relações internacionais encaminhada pelo país seria o de atender às
necessidades econômicas do “corpo social” e, dentro deste, da parcela mais dinâmica e
responsável pela produção de riquezas. Na concepção de ipesianos e ibadianos, a política
externa “terá que estar voltada, realisticamente, para as nações que constituem o
complemento econômico de um tal país, em necessidades que lhe são vitais”.234
Esses grupos entendiam, ainda, que a noção de neutralidade era algo permeado de
inconsistência já que a idéia carecia de lógica. Dentro de sua perspectiva “não se pode ser
neutro entre o criminoso que nos ataca e o policial que nos defende”.235 Num mundo
afetado pela Guerra Fria, as opções que se poriam eram bem delimitadas e polares, não

231
Editorial. “Política externa do Brasil II”, op. cit., p. 7.
232
Editorial. “O Brasil e as instituições financeiras internacionais”. In: Revista Ação Democrática, n° 21,
fevereiro/1961, p. 7.
233
Editorial. “Política externa do Brasil III”, op. cit., p. 3.

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89

havendo espaço para o caminho intermediário. A inconsistência identificar-se-ia, ainda, ao


perceber-se a contradição entre a política interna e a política externa. Consideravam
contraditório reivindicar o desejo de autodeterminação dos povos e, ao mesmo tempo,
impor ao indivíduo, ao cidadão brasileiro, uma situação de sujeição. Desta forma, a
prioridade deveria ser invertida:
“Não adianta muito nos comovermos com as manobras do imperialismo belga
contra o Congo, se ficarmos indiferentes às maquinações da oligarquia nacional
para consolidar um dispositivo de iníquos privilégios. Se as nações querem elevar-
se, o que em primeiro lugar merece elevação é a pessoa humana.”236

Em nenhum aspecto o bloco neutralista encontrava identidade de interesses que lhes


desse um peso significativo no cenário internacional, a não ser quanto à condição de
subdesenvolvidos. Não tinham “nada em comum no terreno ideológico” e mantinham-se
“neutras por uma variedade de motivos diferentes de ordem prática”.237 As garantias de
proteção diante de um conflito internacional tampouco eram vantajosas para os países que
aderissem à Terceira Via, o que os levaria a ficar expostos ao jogo de poder das
superpotências mundias sem usurfruir de beneficios. No final das contas, estes países não
foram “conquistados pela Rússia ou pela China, porque estas se intimidam ante uma
potencial reação dos Estados Unidos”. Acabavam, assim, por repudiar “ostensivamente a
amizade dos americanos” mas por viver “para efeitos práticos”, de sua proteção.238
Para ipesianos e ibadianos a política interna e política externa estavam estreitamente
associadas e influenciavam-se mutuamente. Neste sentido, não era somente a política
interna que poderia ter reflexos nas relações internacionais de um país, mas também a
opção por uma determinada política exterior teria reflexos internos consideráveis, já que a
“política exterior de um país tem por finalidade a manutenção de relações internacionais
que propiciem a colimação dos grandes objetivos de seu povo”.239 Em palestra proferida no

234
Reportagem intitulada “IPÊS propõe debate sobre reformas administrativa e da política externa – Política
externa: não intervenção condicionada à segurança coletiva”, temos a reprodução do documento intitulado
“Reforma da Política Externa”, de autoria do IPÊS. Arquivo Nacional, Seção de Documentos Privados, sem
data e sem identificação de Jornal de origem.
235
Editorial. “Política externa do Brasil III”, op. cit., p. 3.
236
MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Na encruzilhada”, op. cit., p. 14.
237
Editorial. “Política externa do Brasil III”, op. cit., p. 3.
238
Idem, ibidem.
239
Reportagem intitulada “IPÊS propõe debate sobre reformas administrativa e da política externa – Política
externa: não intervenção condicionada à segurança coletiva”, temos a reprodução do documento intitulado

89
90

Curso de Atualidades Brasileiras – uma das principais atividades do IPÊS que tinha por
objetivo difundir a perspectiva de sociedade projetada pelo Instituto – o Ministro Roberto
Campos, do já estabelecido regime autoritário, apontava as dificuldades em adotar-se a
política externa independente no Brasil. Considerava que somente nações que não possuíam
significativo peso internacional – tais como o Haiti, Paraguai e outros – é que podiam “fazer
toda a sorte de estripolias internas sem avaliar as repercussões internacionais”. O Brasil,
por outro lado,
“(...) já é demasiado importante para ter uma política externa independente e está
caminhando para uma posição de potência média, futuramente grande potência e as
grandes potências têm que aceitar o fato: é um pouco melancólico que no mundo,
hoje cristalizado em blocos e com tanta consciência internacional, quanto maior a
nação mais interdependente é a sua política externa. Isso acentua muito a interação
que deve existir entre política interna e externa”.240

Consideravam que o alinhamento com os Estados Unidos contribuía, em grande


parte, para a consolidação de uma cultura afinada com a tradição ocidental-cristã. Desta
forma, não poderiam ser deixados de lado os riscos que uma tal posição neutralista
poderiam desencadear num país como o Brasil, desprovido de “solidez religioso-filosófica
que nos proteja contra os extremismos”, que era o caso da Índia e dos países árabes. A
situação apresentava-se dramática já que o
“(...) Brasil se tem celebrizado ultimamente com pronunciamentos e decisões de
política interna, que imagina só tenham repercussão interna, quando na realidade
têm repercussão internacional, afetando o comportamento dos outros países latino-
americanos e afetando o comportamento do mundo ocidental como um todo”.241

Um dos comportamentos políticos que bem caracterizava esse grau de influência,


“voltado para fenômenos internos com ignorância de repercussões externas”242 era a
questão nacionalista. Os grupos que o defendiam, ao reivindicar uma ação mais ampla do
Estado como empreendedor e ao pretender estabelecer uma política protecionista mais
agressiva, poderiam prejudicar o país. Gustavo Corção, consultor de redação de Ação
Democrática em 1961, afirmava que as “fórmulas nacionalistas são todas feitas de

“Reforma da Política Externa”, de autoria do IPÊS. Arquivo Nacional, Seção de Documentos Privados, sem
data e sem identificação de Jornal de origem.
240
CAMPOS, Roberto. “Política Externa e desenvolvimento econômico do país”. In: Boletim Mensal do
IPÊS, n° 23, ano III, junho/1964, p. 8. Palestra proferida no Curso de Atualidades do IPÊS.
241
Idem, p. 7.
242
CAMPOS, “Política Externa e desenvolvimento econômico do país”, op. cit., p. 8.

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91

exasperações, de egoísmos nacionais motivados, sem dúvida, pelo jogo internacional de


outros egoísmos nacionais preexistentes”.243 Mais uma vez, colocavam a premência da
interatividade internacional que o país deveria estabelecer sobre determinadas questões
internas em função do status que almejava na comunidade internacional.
A mesma revista, em outro editorial datado de 1961, assinalava que não devíamos
“prejudicar os nossos interesses só para contrariar os Estados Unidos”,244 o que de certa
forma era advogado pelos nacionalistas, segundo afirmavam. Existiriam aspectos que
pontuavam interesses comuns às duas nações e que por isso deveriam ser considerados.
Primeiro para não prejudicar o país internamente. Segundo para não distanciá-lo de uma
nação que, no jogo de forças internacionais, era um parceiro fundamental.
Exemplo de um nacionalismo que poderia ter tais desdobramentos poderia ser
identificado na questão da lei de remessa de lucros para o exterior. Ao limitar a
possibilidade do envio de capitais, o país afastaria o capital necessário para o seu
desenvolvimento e acabaria também nos indispondo com o EUA. Este nacionalismo era
“antiocidental” e expunha o país a uma fragilidade que o colocava na área de ação dos
comunistas. Por isso, citando a política externa que estava sendo encaminhada no governo
Jango, afirmavam:
“A reformulação da política econômica deverá ser secundada por uma linha
internacional que reaproxime o Brasil dos seus naturais aliados e clientes
tradicionais, com a eliminação dessa falsa política externa que, depois de todos
esses meses de independência, do envio de custosas e espalhafatosas delegações ao
mundo antidemocrático, trouxe como resutado o congelamento das linhas de crédito
obtidas no mercado europeu e a posição de suspeita em que fomos colocados em
relação aos demais países democráticos do continente”.245

A efetivação do restabelecimento de relações diplomáticas e econômicas com a


União Soviética e os países da Cortina de Ferro a partir da adoção do neutralismo era parte
de uma política “suicida” que implicaria em “ruína total” para o país. A argumentação que
procuravam estabelecer era a de que, mesmo sendo as relações de comércio restabelecidas,
existiria a possibilidade de manutenção destas sem o comprometimento de efetivos laços
diplomáticos com a URSS e associados. Se bem que as vantagens reais que pudessem ser

243
CORÇÃO, Gustavo. “Bom governo: paz e harmonia”, op. cit., pp. 11.
244
Editorial. “Política externa do Brasil II”, op. cit., p. 6.
245
Editorial. “As classes produtoras diante do comunismo”. In: Revista Ação Democrática, n° 44,
janeiro/1963, p. 11.

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92

obtidas a partir de tal relação fossem, para uns, duvidosas e, para outros, até mesmo
inexistente. Na verdade, este aspecto dividia a opinião de alguns dos participantes destes
institutos. Não no que se refere à capacidade de auxílio por parte da União Soviética,
considerado unanimemente como dispensável posto que sofria de grandes limitações,
conseqüência do “engajamento já pesado desse bloco em outras áreas”.246
Parcelas destes grupos estabeleciam dúvidas quanto aos benefícios advindos de um
incremento no comércio entre as duas partes já que “nenhuma nação do mundo livre até
hoje se beneficiou de qualquer forma com suas relações comerciais com a União
Soviética”.247 Alertavam para uma perspectiva de crescente dependência do Brasil em
relação ao comércio que poderia surgir com estes países. Para eles, os países
subdesenvolvidos, entre os quais estava o Brasil, possuíam uma carência significativa de
capitais que os colocava diante do dilema de “ou vender o máximo de sua produção em
curto prazo, ou não obter as divisas que permitissem o prosseguimento de seus programas
de desenvolvimento industrial e aliviassem o seu povo das dificuldades da crise
inflacionária”.248 Os principais inconvenientes em tal comércio estavam no fato de que os
produtos soviéticos eram vendidos majorados para outros países. Além disso, mesmo
comprando também os produtos majorados de seus parceiros comerciais, a URSS utilizava-
se deles para revendê-los no mercado internacional. A estratégia soviética, pensavam os
membros destes institutos, seria a de buscar estabelecer uma dependência crescente:
“Um dos grandes atrativos que os mercados soviéticos vêm oferecendo aos países
subdesenvolvidos é o de aceitarem produtos que não encontram colocação nos
mercados normais. (...) Quando um produto sem aceitação, e por isso pouco
explorado, passa a encontrar escoamento fácil, a tendência é que ele atraia grandes
capitais, desenvolva-se velozmente, engajando um número cada vez maior de
pessoas em sua elaboração. Se, por qualquer motivo, o mercado que o absorve
mostra-se esquivo ou cessa suas importação, pode ocasionar no país de origem uma
crise de aspectos econômico-sociais com reflexos em sua política interna, desde que
fique ele na dependência parcial do governo importador, que terá em suas mãos um
instrumento de pressão política”.249

246
CAMPOS, Roberto. “Política Externa e desenvolvimento econômico do país”, op. cit., p. 18
247
Editorial. “Nossas relações com a URSS”. In: Revista Ação Democrática, n° 22, março/1961, p. 13.
248
Editorial. “Vale a pena comercializar com a Rússia?”. In: Revista Ação Democrática, n° 37, junho/1962,
p. 20.
249
Idem, ibidem.

92
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Entretanto, não se deveria descartar completamente a possibilidade de comércio


com esses países desde que as bases em que ela estava organizada fossem reformuladas.
Urgia “assentar uma forma de convivência comercial mais interessante para o Brasil”,250 tal
como assinala, dentre outros, Harold Poland, importante dirigente do IPÊS. Para ele, devia-
se “cogitar de todos os mercados que pudermos conquistar com reais vantagens para o
país”.251
Retomando-se esse comércio, algumas medidas preventivas deveriam ser tomadas
não apenas no plano econômico, como citado acima, mas também no aspecto ideológico. O
restabelecimento de relações diplomáticas a partir da adoção do neutralismo poderia
acarretar numa situação de risco à segurança interna do país. Uma questão de grande
importância era a de “tomarmos contra a propagação da ideologia comunista em nosso país
as mesmas precauções que os países comunistas tomam contra a difusão de idéias
democráticas, para nada termos a recear”.252 Desta forma, o problema se referiria muito
mais a quem dirigia o processo e não no estabelecimento, em si, destes laços comerciais.
Além disto, o reatamento destas relações deveria ser acompanhado de um alinhamento mais
firme do Brasil aos seus “aliados” norte-americanos.
Comentando a ocorrência de uma exposição industrial soviética no Brasil, em 1962,
após o reatamento de relações com a URSS, a Revista Ação Democrática reproduziu o
editorial do jornal O Globo que tecia duras críticas às medidas ditas preventivas tomadas
por San Tiago Dantas. O Chanceler brasileiro, passados cinco meses de seu
pronunciamento no Congresso Brasileiro onde divulgou o reatamento dessas relações,
havia sido incapaz de resguardar a segurança interna do país uma vez que a exposição
estava
“(...) servindo como excelente cobertura para as manobras dos enviados de Moscou,
que agem tranqüilamente, sem que o Itamarati se lembre de reclamar o
cumprimento do acordo que negociou para o reatamento das relações. (...) Em breve
virão outras exposições, outras realizações técnicas ou artísticas, cada uma delas
pajeada por dezenas de assessores, especialistas e jornalistas, que se revezarão num
trabalho continuo de doutrinação, estímulo (inclusive material) aos comunistas
locais, observação e contato”.253

250
TORRES, Candido. “Reforma da empresa”, op. cit., pp. 14 a 22.
251
Editorial. “Entrevistando Harold Poland”, op. cit., p. 3.
252
Editorial. “Entrevistando Harold Poland”, op. cit., p. 3.
253
“Omiti-se o governo, agem os soviéticos”. In: Revista Ação Democrática, n° 37, junho/1962, p. 6.
Reprodução de editorial do Jornal O Globo.

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Se, por um lado, a adoção de algumas medidas preventivas até capacitassem o país
para o estabelecimento de relações comerciais com os países comunistas, dependendo de
quem as dirigissem, o mesmo não era afirmado quanto ao restabelecimento das relações
diplomáticas. O Brasil e estes países eram inimigos irretratáveis. Não porque adotassem
formas de organização consideradas por eles “antagônicas”, mas sim devido ao interesse
soviético de “subjugar-nos à sua ideologia e ao seu regime”.254 Para ipesianos e ibadianos,
logo após o raiar do “regime revolucionário de 1964”, os comunistas brasileiros,
“orientados por agentes de Moscou”, desejavam que fôssemos “cada vez mais sacrificados,
até chegarmos em um ponto de revolta em que aceitemos a ideologia comunista”.255 A
sabotagem, que já estava sendo encaminhada desde o governo anterior, seria uma primeira
etapa para viabilizar o desenvolvimento de uma “infiltração ideológica ou atividades
clandestinas e subversivas”256 no país a ser encaminhado por funcionários das agências
diplomáticas russas e de outros países da Cortina de Ferro,257 sendo isto “público” e
“notório”.
Já que não existia um sistema de contra-espionagem tão sofisticado quanto o
americano –mesmo este sujeito ao roubo de informações estratégicas –, deveria ser
almejada a prevenção primeira para que isso não ocorresse. A conseqüência deste processo,
caso tivesse sido consolidada uma posição neutralista e dado a continuidade ao
restabelecimento das relações diplomáticas com os países comunistas, seria a submissão do
Brasil à forma de “imperialismo mais abominável que, em todos os tempos, já surgiu sobre
a face da terra, ao qual nada nos une e do qual tudo nos separa”:258 o imperialismo
soviético.
Neste sentido, deveria ser evitado o estabelecimento de relações diplomáticas com
os países comunistas que possuíam interesses que se chocavam com os daquela parcela da
população brasileira que pretendia “harmonizar os fatores positivos para o encaminhamento

254
Editorial. “Nossas relações com a URSS”. In: Revista Ação Democrática, n° 22, março/1961 , pg 13.
255
Idem
256
“Omiti-se o governo, agem os soviéticos”, op. cit., p. 6.
257
Editorial. “Um acordo como todos os outros”. In: Revista Ação Democrática, n° 39, agosto/1962, p. 18.
258
“Manifesto à Nação”. In: Boletim Mensal do IPÊS, n° 7, ano II, fevereiro/1963, p. 25. Manifesto dos
engenheiros paulistas, em número de 400, apresentado à nação, reproduzido amplamente pela imprensa de
São Paulo e reproduzido neste boletim.

94
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da grande tarefa comum de um mundo melhor”259 através do “livre desenvolvimento das


forças imanentes da sociedade” e a consolidação do “regime democrático” no país.
Para estes grupos, a adoção do neutralismo significava, na verdade, uma operação
de aproximação gradativa com o bloco socialista, “nos colocando na dependência da União
Soviética”260 e dissimulando o que seria um comprometimento “com uma das partes na
Guerra Fria”.261 Na perspectiva de ipesianos e ibadianos, a parte menos aconselhável, posto
que os soviéticos praticavam um imperialismo expansionista que acabaria por submeter o
Brasil, diferentemente do que ocorria nos países ocidentais que estavam envolvidos no
processo de descolonização da África e Ásia.
A soberania, em termos de política externa, não deveria ser marcada por um
nacionalismo xenófobo. Nem mesmo por uma busca da obtenção de vantagens particulares
para o país a todo custo, em detrimento da comunidade de nações a que pertencia. Isto
significaria a concretização de um individualismo sem limites, uma filosofia da inimizade
característica de uma era que deveria ser superada. Contraditoriamente, apesar de
advogarem o individualismo no seio de uma comunidade de indivíduos, o mesmo não se
aplicava quanto à comunidade de nações. Esta convivência harmoniosa em nível
internacional, meta a ser alcançada, somente seria possível diante de uma ênfase no
comunitário e da desvalorização das partes. A superação da condição de
subdesenvolvimento, a obtenção do devido espaço do Brasil na comunidade internacional
somente seria viável de forma integrada com as nações ocidentais.
Dentro desta concepção, que premissas deveriam ser estabelecidas para a política
exterior a ser seguida pelo país? As transformações necessárias ao país não deveriam ter
como precondição o distanciamento do Brasil em relação aos Estados Unidos, já que “não
é necessário abjurar os compromissos soberanamente assumidos pelo país perante a
Comunidade Interamericana, nem interligar-se na órbita de Moscou contra as democracias
do Ocidente”.262 Para eles, o vínculo
“(...) cultural e comercial se realiza predominantemente com a Europa Ocidental e
com os Estados Unidos, e da cooperação destas áreas depende ele para estimular seu

259
CORÇÃO, Gustavo. “Bom governo: paz e harmonia”, op. cit., pp. 10.
260
Editorial. “Povo, cuidado com o povo!”. In: Revista Ação Democrática, n° 40, setembro/1962, p. 4.
261
Editorial. “Política de independência: análise dos verdadeiros rumos de nossa política externa”. In: Revista
Ação Democrática, n° 43, p. 7.
262
Editorial. “O nordeste e as ligas camponesas”, op. cit., p. 13.

95
96

desenvolvimento. Delas herdou as instituições de sua organização política e social.


Na formação étnica de sua população tem prevalecido a influência de considerável
imigração de origem européia. Seu destino não pode ser dissociado do das demais
repúblicas da América Latina, com as quais deve compor-se para efeito de uma
necessária integração econômica. Sua tradição é avessa à guerra como instrumento
de política nacional. Apesar disso, participou de dois conflitos mundiais em defesa
dos ideais da liberdade e da civilização ocidental. Sua vocação sempre foi
continentalista e está ele vinculado ao hemisfério por diversos e importantes
tratados dentro do sistema interamericano de segurança coletiva”.263

Desta forma, dentro da comunidade internacional, os EUA deveriam ter


proeminência como o parceiro do Brasil, fundamental para a obtenção do país de seu
devido lugar em âmbito internacional:
“Essa política externa terá de estar voltada, realisticamente, para as nações
que constituem o complemento econômico de um tal país, em necessidades que lhe
são vitais. Obviamente, essa dependência não deve significar submissão às referidas
nações, mas pode e deve dar lugar à composição de interesses mutuamente
vantajosa, mesmo porque há, hoje, clara consciência no Ocidente, de que a
prosperidade é indivisível, de que a harmonia universal é incompatível com a
existência de ilhas de abundância em oceanos de miséria”.264

Posto isto, advogavam uma aproximação maior do Brasil em relação aos Estados
Unidos. Primeiro porque era esta nação importante para que o país se defendesse do ataque
comunista encaminhado contra o continente americano desdobramento da “exportação do
modelo revolucionário cubano para o conjunto da América Latina”.265 Neste sentido
tratava-se de reafirmar os acordos de segurança hemisférica e continental capitaneados
pelos EUA.
Segundo, porque os Estados Unidos representavam um símbolo, o da sociedade
capitalista, “onde há liberdade para se construir uma sociedade melhor, inclusive a
liberdade de denunciar as tentativas de fraudação do direito em benefício de ilegítimos
interesses econômicos”.266 Da mesma forma a sociedade capitalista americana encontrava-
se identificada com a brasileira em termos culturais. Ambas eram cristãs,

263
Reportagem intitulada “IPÊS propõe debate sobre reformas administrativa e da política externa – Política
externa: não intervenção condicionada à segurança coletiva”, op. cit.
264
Reportagem intitulada “IPÊS propõe debate sobre reformas administrativa e da política externa – Política
externa: não intervenção condicionada à segurança coletiva”, op. cit.
265
Editorial. “Política Externa do Brasil I”. In: Revista Ação Democrática, n° 26, julho/1961, p. 3
266
Editorial. “Os cristãos e o comunismo”. In: Revista Ação Democrática, n° 27, agosto/1961, p. 1.

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97

fundamentalmente baseadas em princípios ocidentais e possuíam semelhanças


significativas quanto “as instituições de sua organização política e social”.267
Por último, dentre as principais potências industriais do ocidente, eram os norte-
americanos os responsáveis pelo “espírito universal” da amplitude de seu assistencialismo
econômico. Isto sem o objetivo de se imiscuir na política interna dos países para os quais
prestava esta ajuda até onde era possível...
“Atualmente as potências industriais do ocidente, em particular os Estados Unidos,
estão empenhadas em dar conteúdo essencialmente democrático a sua assistência
econômica, condicionando-a, até onde o permite o princípio de não-intervenção nos
assuntos internos de outros países, a medidas e reformas sócioeconômicas,
principalmente agrárias que façam chegar aos povos dos países beneficiários, de
modo que, facilitando seu progresso, preserve, ao mesmo tempo, as liberdades civis
e individuais que conformam a personalidade do homem moderno”.268

De certo que esta perspectiva de ipesianos e ibadianos dirigia-se muito mais ao


público. Até mesmo naquela década estava bem claro, para determinados grupos, que a
posição norte-americana distanciava-se muito da idéia de não-intervenção nos assuntos não
somente brasileiros, mas também latino-americanos como um todo. Não é por acaso que
nos bares do Rio de Janeiro era costumeiro repetir um slogan muito difundido naquele
momento: “Chega de intermediários: Lincoln Gordon para presidente”.269

267
Reportagem intitulada “IPÊS propõe debate sobre reformas administrativa e da política externa – Política
externa: não intervenção condicionada à segurança coletiva”, op. cit.
268
ANDRADE, Roberto de. “Colonialismo, neutralismo e ajuda econômica”. In: Revista Ação Democrática,
n° 42, novembro/1962, pp. 12 e 13.
269
A citação é assinalada em entrevista concedida por Marcos de Sá Correia ao documentário Golpe de 1964
– a procissão está nas ruas. Filme elaborado sob a direção da Guilherme Fontes Filmes e Globosat, Série 500
anos da História do Brasil.

97
98

Conclusão parcial
Segundo os grupos articuladores do golpe no âmbito da sociedade civil –
IPÊS/IBAD – o papel da iniciativa privada assumia relevância no projeto de sociedade por
eles apresentado. Com um projeto de sociedade de direita que privilegiava a existência de
diferenças sociais, políticas e econômicas para a potencialização do desenvolvimento do
país, este complexo empresarial tinha como perspectiva limitar o papel que o Estado vinha
desempenhando até então. Economicamente, o Estado apresentar-se-ia como coordenador
de metas, com um papel supletivo que visava preencher os espaços deixados pela iniciativa
privada até que estes espaços se tornassem efetivamente atrativos para o capital particular.
Neste sentido, ele teria uma função supletiva, cujo objetivo era o de garantir o direito
fundamental de propriedade que eles consideravam estar sendo ameaçado. Teria ainda o
papel de eliminador de conflitos existentes entre os variados interesses manifestados pelas
diferentes áreas econômicas. O primado do privado sobre o público estaria presente
também no momento da elaboração do planejamento das políticas públicas no que se refere
às atividades econômicas. Ainda na área econômica, entendiam que existia a necessidade
do estabelecimento de garantias ao livre cambismo para possibilitar a entrada de tecnologia
e capitais com vistas à modernização industrial.
No que se refere ao sistema político, valorizavam a democracia como o regime que
melhor se adequaria às livres manifestações das “forças imanentes” da sociedade. Também
apresentava-se como o sistema que mais se adequava às tradições cristãs e aos vínculos que
existiam entre o Brasil e a cultura ocidental. Propriedade privada e livre iniciativa
significavam, dentro deste contexto, os símbolos máximos das liberdades individuais. No
sistema político almejado pelo IPÊS/IBAD, o direito de voto deveria pertencer aos
“ilustrados”, àqueles que possuíam um grau de alfabetização necessário para, de uma forma
racional, poder identificar os verdadeiros interesses da nação. A legitimação do sistema dar-
se-ia pela ampliação de uma vigorosa classe média que restabelecesse o equilíbrio político.
No entanto, entre o corpo político ativo e seus representantes, pensavam na existência de
corpos intermediários que viabilizassem a participação mais intensa dos principais grupos
econômicos do país.
O projeto de sociedade destes grupos reconhecia a existência de graves problemas
sociais no Brasil e a necessidade de sua solução. No entanto, parecem conceber que muito

98
99

da radicalização encaminhada por determinados grupos era resultado de uma ação externa,
comunista, que deveria ser extirpada. Este reconhecimento não significava necessariamente
a implementação de soluções imediatas, uma vez que as desigualdades eram parte de um
processo natural de construção de uma grande nação. Caberia às camadas populares
reconhecer as necessidades de sacrifício que este caminho exigia. Também na questão
social o Estado apresentar-se-ia com um papel subsidiário. Sua função seria a de eliminador
de conflitos na relação entre capital e trabalho. O papel mais ativo seria o destinado à
iniciativa privada através da geração de empregos, melhores serviços e padrão de vida, bem
como através da democratização do capital propiciada pelo estabelecimento de um mercado
acionário no país e não por uma legislação trabalhista que consideravam retrógrada. Neste
sentido, buscavam legitimidade ao papel que almejavam para a iniciativa privada no campo
político através de uma ação mais ativa do capital nas questões sociais, mas sempre dentro
de uma lógica que privilegiasse a livre iniciativa.
No que se refere à questão rural, visavam estabelecer uma reforma agrária que,
através da formação de unidades familiares de produção, possibilitassem o aparecimento de
uma classe média rural, aquela da qual esperavam que compusesse a base política do
regime por eles pretendido. No entanto, consideravam que todas as garantias deveriam ser
resguardadas à propriedade privada na medida em que o papel de articulador destas
reformas também ficaria nas mãos da livre iniciativa. Isto porque o problema agrário não
era de natureza apenas social, mas também possuíam um forte vínculo com a questão da
defesa da propriedade privada e da liberação de fatores produtivos para a indústria.
A reforma agrária por eles almejada buscava não uma forma de acesso à terra por
parte de uma parcela significativa da população rural que dela estava desprovida, mas sim
uma maneira de estabelecer a modernização do meio rural. Buscava-se, por conseqüência,
uma adequação das estruturas do campo àquelas já supostamente existentes no meio
urbano. Dentro deste projeto estava embutida a perspectiva de crescer primeiro para, numa
etapa posterior, distribuir benefícios (não riquezas) para o conjunto da sociedade. Entre
uma etapa e outra existiria uma fase caracterizada por sacrifícios e marcada por um custo
social por parte da “sociedade” que seria natural para que uma nação pudesse atingir o
“limiar da liberdade”.

99
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No que que relacionava à política externa, estes grupos entendiam que ela estava
estreitamente vinculada a questões internas fundamentais para o país, tais como o
fornecimento de tecnologia e capitais para a industrialização nacional. Além disto,
consideravam inviável a manutenção de uma política externa independente dentro do
quadro internacional vigente, uma vez que esta política enfraqueceria a posição do “mundo
livre” frente a sua luta contra o comunismo internacional. Da mesma forma, internamente
este neutralismo debilitaria o país tanto no combate à propagação comunista provocada por
agentes infiltrados quanto nas garantias de proteção internacional diante de um conflito
mundial.
Se para ipesianos e ibadianos as relações diplomáticas com os países comunistas,
aspecto que de certa forma fundamentava a política neutralista, não deveriam ser
restabelecidas, as relações comerciais poderiam ser retomadas, desde que, à frente do
governo, estivesse um grupo capaz de provê-la de uma série de mecanismos de proteção
contra a propagação ideológica comunista.
O projeto de sociedade apresentado por ipesianos e ibadianos colocava a livre
iniciativa, mais especificamente o setor empresarial, como o principal agente dinamizador
em torno do qual deveriam funcionar todas as estruturas do país. Ao mesmo tempo
intentava estabelecer um novo consenso em torno da importância da livre iniciativa que
esvaziasse o poder de reivindicação dos movimentos populares. No entanto, este projeto
apresentava-se também como uma alternativa a projetos de sociedade que propunham
modelos que, embora também privilegiassem parcelas das elites, não colocaria a classe
empresarial no papel por eles pretendido.

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2 – Arena estatal: os militares


Os militares e o debate historiográfico
Dentro de minha perspectiva de abordar o sistema político brasileiro na década de
1960, mais especificamente as “visões das direitas” e seus projetos de sociedade, a análise
dos militares no cenário político nacional daquele período torna-se de fundamental
importância. O seu papel de relevância ao longo do contexto que se desenrolou no período
não pode ser desconsiderado por mais que se queira apresentar o golpe de 1964 como um
movimento exclusivamente de civis, como alguns apresentam, na qual teria ocorrido a
utilização instrumentalizadora dos militares por determinados grupos sociais.
No entanto, também deve-se guardar certa reserva quanto a este papel para não o
superdimensionar, adotando uma perspectiva que acaba por analisar o passado pelos seus
resultados posteriores. Neste sentido, cabe um certo cuidado em verificar em que momento,
posterior à efetivação do golpe, estes ou aqueles “atores político” acabaram por apresentar
um papel hegemônico dentro da coalizão que estabeleceu o regime autoritário
compreendido entre 1964 e 1985, colocando-os “no seu devido lugar” quanto ao jogo de
forças que então se desencadeava na disputa pelas instâncias máximas de poder no Brasil.
Inúmeros são os trabalhos que tratam sobre a relação existente entre as Forças
Armadas e o sistema político brasileiro ao longo do período republicano. Boa parte destes
centra suas análises na fase posterior a 1930, momento em que as Forças Armadas, mais
especificamente o Exército, aparecem como “atores” de significativa importância dentro de
um sistema político com “um forte componente militar”.270 Interessa-me aqui apenas traçar
um breve panorama da historiografia que aborda algumas questões referentes ao processo
de polarização política desencadeada a partir de 60. Desta forma, desconsidero alguns
trabalhos, de importância inegável, mas que não guardam um vínculo mais direto com meu
objeto de pesquisa.
Alguns dos trabalhos que analisam a década de 60 colocam ênfase no papel
desempenhado pelas Forças Armadas no desencadeamento do golpe. Neste sentido, 1964
seria eminentemente um golpe militar no que se refere à sua articulação e à hegemonia
deste grupo frente aos demais participantes de uma coalizão que colocou fim ao governo

270
Sobre estes aspectos ver CARVALHO, José Murilo de. “Vargas e os Militares”. In: PANDOLFI, Dulce.
(org.) Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro, FGV, 1999, pp. 342 e seguintes; e, ROUQUIÉ, Allain. Os
Partidos Militares no Brasil. São Paulo, Record, 1980, p. 11.

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João Goulart. Dentro desta perspectiva, os autores mais representativos são Skidmore,271
Rouquié,272 Peixoto,273 Stepan,274 e Araújo.275 Ora abordando especificamente o momento
do golpe ora enfocando a fase posterior, estes autores têm em comum, grosso modo, a
perspectiva de proeminência dos militares diante de uma coalizão plural que incluía grupos
das camadas médias, empresários, segmentos políticos e que contava com o apoio ostensivo
da alta hierarquia da Igreja Católica. Skidmore sobre esta questão, assinala:
“João Goulart foi deposto por uma revolta militar. Sua fuga não tinha sido o
resultado de ação da elite política civil. Ao contrário, os oponentes de Goulart no
Congresso sequer haviam tentando procedimentos de impeachment, pois sabiam não
contar com os votos necessários para vencer um tal teste, exatamente como os
antigetulistas não tinham votos suficientes em 1954”.276

Analisando não o sistema político brasileiro mas especificamente as instituições


militares, Antonio Carlos Peixoto e Alain Rouquié apresentam a mesma perspectiva de
Skidmore. Afirmando que, entre “1945 e 1964, o Brasil conheceu um período de intensa
participação militar na vida política que levou, em abril de 1964, à tomada de controle
global da máquina do Estado pelas Forças Armadas”,277 a tônica desta perspectiva é a de
compreender 1964 como um “golpe” em que o “poder foi exercido em nome dos
militares”.278 Ou ainda um momento em que os militares apresentavam-se como o “setor
hegemônico no âmbito da coligação” antipopulista, “fortalecido que fora internamente
pelos expurgos”.279
Outro grupo de autores assinala a presença dos militares, desta feita como
instrumentos de ação de determinados grupos sociais. Dentro desta perspectiva observa-se
como representativos os trabalhos de Maria Alves280 e Comblin.281 Estes apresentam as

271
SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Getúlio à Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
272
ROUQUIÉ, Allain. Os Partidos Militares no Brasil. São Paulo, Record, 1980
273
PEIXOTO, Antonio Carlos. “Exército e política no Brasil: uma crítica dos modelos de interpretação”. In:
ROUQUIÉ, Alain (Coord). Os Partidos Militares no Brasil. ROUQUIÉRio de Janeiro, Record, 1980; e
também, PEIXOTO, Antonio Carlos. “O clube militar e os confrontos no seio das FA”. In: ROUQUIÉ, Alain
(Coord). Os Partidos Militares no Brasil. ROUQUIÉRio de Janeiro: Ed. Record, 1980.
274
STEPAN, Alfred. Brasil: los militares y la política. Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1971.
275
D’ARAÚJO, Maria Celina e CASTRO, Celso. Visões do Golpe – a memória militar sobre 1964. Rio de
Janeiro, Relumé-Dumara, 1994.
276
SKIDMORE, op. cit., p. 370.
277
PEIXOTO, “O clube militar e os confrontos no seio das FA”, op. cit., p. 71
278
D’ARAUJO, op. cit., p. 9.
279
CARVALHO, “Vargas e os Militares”, op. cit., p 344.
280
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1987

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Forças Armadas ora como mais um dos diversos grupos articuladores do golpe, ora como
instituição à qual as direitas recorreram em função da necessidade de utilização de sua
função de instituição detentora do monopólio do uso da força no país. Os civis, neste
sentido, tinham por objetivo que essa intervenção fosse apenas dentro daquelas
características, nas quais as Forças Armadas exerciam a função de “poder moderador” e
intermediador de conflitos, sempre de forma favorável às elites.
Comblim, em sua abordagem sobre a Ideologia de Segurança Nacional, afirma que
apesar de ter ocorrido com o auxílio de inúmeros civis, “a linha de segurança nacional se
achou no dever de desmantelar o sistema que dera o golpe de Estado.”282 No entanto, a
hegemonia desta linha fez-se apenas a partir de 1967, segundo afirma. Gradativamente, de
forma mais específica em fins da década de 60, o Estado Autoritário transforma-se em
Estado Militar. Apresenta da seguinte forma o raciocínio desenvolvido pelos militares:
“O primeiro passo é o elitismo radical do sistema. Um personagem some
inteiramente de cena: o povo. (...) Somente as elites são aptas a assumir as tarefas da
segurança nacional e do desenvolvimento. (...) Somente as elites são capazes de
formular os objetivos da nação e de inculcá-los às massas. (...) Onde encontrar
semelhantes elites na América Latina? Não há escolha: só os militares podem
assumir esse papel”.283

Ainda assim, mesmo com o predomínio dos militares no controle da máquina


estatal, afirma que são a “burguesia ligada aos grupos transnacionais e a burguesia ligada
às empresas estatais” que constituíam “os pólos dominantes na sociedade em que o Estado
é um regime de Segurança Nacional”.
A idéia de que a Doutrina de Segurança Nacional apresentava-se como uma
ferramenta para instrumentalizar os militares a favor de um projeto de classe também está
presente nas análises de Maria Alves, para quem
“(...) esta ênfase na constante ameaça à nação por parte de ‘inimigos internos’
ocultos e desconhecidos produz, no seio da população, um clima de suspeita, medo
e divisão que permitem ao regime levar a cabo campanhas repressivas que de outro
modo não seriam toleradas. Dessa maneira, a dissensão e os antagonismos de classe
podem ser controlados pelo terror. Trata-se por isso mesmo de uma ideologia de

281
COMBLIN, Pe. Joseph. Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na América Latina. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 1978
282
Idem, p. 161.
283
Idem, p. 75.

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dominação de classe, que tem servido para justificar as mais violentes formas de
opressão classista”.284
O papel dos militares apresentar-se-ia a reboque de uma elite civil-empresarial e a
ideologia de segurança nacional seria um instrumento de ofuscamento da realidade na qual
o verdadeiro elemento de caracterização era a implementação de uma modernização
conservadora.
Dentro deste enfoque de instrumentalização das Forças Armadas, embora não tenha
como objeto central de suas análises o meio militar mas dando-lhe destaque significativo,
apresenta-se o trabalho de Dreifuss como o mais representativo. Para o autor, o golpe foi
resultado de uma articulação civil, política e militar. Dedica todo um capítulo de sua obra à
descrição do “envolvimento de civis e de oficiais das Forças Armadas pertencentes ao
complexo IPÊS/IBAD ou ligados aos vários grupos da elite orgânica na estratégia militar”
contra Jango e as “forças populares”. No entanto, assinala que o papel de liderança era do
complexo empresarial IPÊES/IBAD, sendo esses institutos os grandes “responsáveis pela
articulação”.285
Se essas perspectivas historiográficas apresentam contribuições que não podem ser
desconsideradas para o mapeamento do sistema político brasileiro na década de 60, ao
mesmo tempo apresentam algumas lacunas. A primeira delas refere-se à multipolaridade do
processo de articulação, ou das articulações, do golpe. Dentro da perspectiva daqueles que
entendem a intervenção sob uma ótica institucional, ou seja, de que a totalidade da
instituição estava de acordo com o golpe, existia apenas um aspecto de ruptura no
consenso, que se referia ao grau de intervenção na vida política do país. Assim mesmo, esta
ruptura apenas torna-se clara, segundo estes autores, após a efetivação do golpe. O
resultado desta ruptura seria a formação, no pós-64, de dois grupos denominados de
moderados e linha dura.
Diferentemente do que apresenta boa parcela desta historiografia, considero que,
apesar da intervenção apresentar um caráter institucional – porque se calcou na liderança de
boa parte da hierarquia militar e porque contava com boa dose de apoio da maior parte dos
partidos militares de direita, que eram majoritários institucionalmente –, existiam
diferenças entre os vários partidos que não podem ser desconsideradas. Estas, por sua vez,

284
ALVES, op. cit., p 27.
285
Dreifuss, op.cit., p. 361.

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estavam baseadas em projetos diferenciados de sociedade. Apesar de 1964 marcar um


momento de intervenção “vitoriosa” na vida política brasileira, assinalando um “consenso
militar” caracterizado pela convergência entre “aparelho hierárquico” e “partidos
militares”, deve-se observar que este consenso existia muito mais no seu aspecto negativo –
“não queriam o comunismo” – do que pelo seu aspecto positivo – identidade de projetos de
sociedade. Outro dado que deve ser considerado é que estas divergências foram as grandes
responsáveis pela fragmentação das articulações golpistas dentro das Forças Armadas, ou
seja, os diferentes projetos de sociedade provocaram uma luta pela liderança de um projeto
de transformação da sociedade que se iniciou ainda mesmo antes da efetivação do golpe, e
não após a sua realização tal como concebem boa parte destes autores.
. Existe ainda uma parcela da historiografia de 1964 que considera a existência de
uma dinâmica própria dentro das Forças Armadas. Nesta instituição, estaria presente uma
especificidade que seria responsável pelo tipo de vinculação a grupos ou facções civis.
Utilizando-se da noção de “partido militar”, esses autores rompem com a noção de que a
corporação era um mero instrumento na mão de civis. O aspecto responsável por estas
cisões dentro das forças armadas e as respectivas alianças com o mundo civil, presentes
ainda no período anterior ao golpe, seria o posicionamento destes partidos quanto ao
nacionalismo e ao antinacionalismo. Este confronto com o estabelecimento do regime
autoritário seria relegado a segundo plano, uma vez que a corrente nacionalista, vinculada
aos grupos populistas, teria sido praticamente expurgada da “caserna”. Coloca-se, então,
um novo confronto que estaria determinado pelo tempo e grau de intervenção na vida
política do país.
Não existe uma abordagem que assinale a presença de novas cisões dentro de cada
um dos extremos políticos além daquelas que caracterizariam uma diferença entre a direita
e a esquerda militar no período anterior ao golpe. Neste sentido, passa desapercebida a
presença de outros elementos que contribuíram para a existência de divisões dentro das
Forças Armadas mesmo no período anterior ao golpe. Um exemplo que bem caracteriza a
ausência desta perspectiva é a questão do nacionalismo. Peixoto, Domingos Netto, Stepan e
Rouquié concebem que a lógica presente dentro das forças armadas que vem a estabelecer
uma divisão entre os “partidos militares” é a questão do nacionalismo/antinacionalismo. À
estas idéias atrelavam-se os demais temas da vida política do país. Poucos são os autores

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que assinalam para a existência de uma direita nacionalista dentro das Forças Armadas,
aspecto fundamental para a identificação de novos elementos diferenciadores entre os
vários partidos militares.286
Tanto a liderança quanto a pretensa homogeneidade no meio militar de direita são
extremamente questionáveis quando se observa depoimentos e fontes diversas que
demarquem os acontecimentos referidos ao golpe, assinalando a inexistência de uma
unidade antes mesmo da sua efetivação. Para Adyr Fiuza de Castro, “todos os grupos eram
unânimes em saber o que não queriam: não queriam uma república popular instalada no
Brasil”. No entanto, quanto ao que queriam, mesmo no “interior de cada grupo havia
grandes divergências”.287.
Mesmo ao tentar apresentar uma justificativa para a ausência de “coordenação
planejada” ou de um “comando único”, Geisel acaba por afirmar a presença destas
divergências, que podem ser percebidas pelo conjunto de alianças que cada grupo articulou.
Para ele, a crença era em “um levante geral que dispensaria um planejamento sobre as
operações”. No entanto, aponta para a existência de uma “revolução com vários chefes” e
indica a presença de alguns grupos específicos dentro da caserna: um formado por
militares; outro composto por militares com maior trânsito entre o empresariado, mais
relacionado com o IPÊS, concentrado na região Sudeste; e o General Mourão, de modo
independente, articulado com civis e, inclusive, armando-os, do que discordava Geisel.288
O General Antonio Carlos Muricy, outro importante participante das articulações
golpistas, em entrevista concedida ao canal 2, na qual buscava apresentar os motivos da
revolução brasileira, assinalava que, ao final do ano de 63,
“(...) as áreas militares de todo o Brasil começaram a entrar em ebulição e começou
forte o trabalho tendente a unir os diferentes grupos. (...) Essa montagem não foi
fácil e posso dar um testemunho de que nunca pensei que fosse tão difícil
harmonizar tantas posições, embora houvesse um objetivo comum, mas procurado
por caminhos um pouco diferentes. Essa situação se prolongou e se desenvolveu.
Aos poucos, os comandos foram acertando seus relógios (...) e no final de março, já

286
Os poucos autores que abordam, mesmo que superficialmente, a direita nacionalista dentro das Forças
Armadas são Murilo de Carvalho, Padrós, Marçal e ainda Comblim, assinalando este último a presença deste
nacionalismo de forma tardia em fins da década de 1960.
287
CASTRO, Depoimento, In: Visões do Golpe..., op. cit., p 155. Em 1964 era Tenente-Coronel e servia no
Estado Maior do Exército, na subseção de História da 5ª Seção. Posteriormente foi um dos criadores do
Centro de Informações do Exército (CIE), em 1969. Apoiou Costa e Silva na sucessão do Presidente Castello
Branco.
288
GEISEL, op. cit., pp. 149 e seguintes.

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as articulações principais estavam feitas e os elementos articuladores centrais, os


Generais Castelo e Costa e Silva, como elementos dirigentes, já tinham ouvido dos
diferentes chefes militares opiniões que asseguravam uma unidade senão total, pelo
menos de mais de 70% do Exército”.289

Neste depoimento, prestado logo após o golpe, apesar de tentar assinalar uma
suposta unidade de articulações, fundamental para a legitimação do movimento, Muricy
apresenta que esta não passava de “70%”. Mais revelador ainda porque indica que esta
ausência de unidade era reflexo das diferentes “posições”, desdobramento de uma tentativa
de buscar um “objetivo comum” através de “caminhos um pouco diferentes”. Seriam estes
caminhos apenas “um pouco diferentes”?

289
FGV, acervo pessoal de Antônio Carlos Muricy: Série Atuação Político Militar (1936-1979).

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Os “Partidos Militares”
Como pôde ser observado acima, parto do pressuposto de que a homogeneidade do
projeto político existente dentro das Forças Armadas não passa de um equívoco na
compreensão de uma dinâmica própria da instituição. Neste sentido, utilizo a denominação
“Partidos Militares” adotada por Rouquié, Peixoto e outros, que caracterizam dois aspectos
fundamentais relativos à especificidade das Forças Armadas: o primeiro deles refere-se à
idéia de que estas são consideradas como forças políticas que “desempenham, por outros
meios, as mesmas funções elementares que os partidos”.290 Num segundo sentido, a noção
de partidos militares leva também a caracterizar estas forças como marcadas pela existência
de diferentes grupos e subgrupos, bem como diferentes projetos políticos que se
encontravam em conflito no período ora abordado.
A complexidade do mapeamento de correntes políticas dentro das Forças Armadas
já foi devidamente analisada por dois autores: Peixoto e Rouquié. Dificuldades porque, em
primeiro lugar, as Forças Armadas são
“também um espelho das tensões da sociedades, mas um espelho deformador. (...)
As linhas de cisão interna procedem de mecanismos complexos que de modo algum
podem se reduzir ao simples jogo de cooptação ou de aliança com setores
econômicos ou políticos civis. Os militares naturalmente se dividem em função dos
grandes problemas nacionais, mas segundo procedimentos próprios e com
conseqüências singulares ligadas às diversas pressões a que são submetidos e aos
múltiplos papéis que desempenham. Tanto os valores quanto os interesses próprios
da corporação acarretam uma reformulação em termos militares de questões centrais
da vida nacional que não fica devendo muito à coerência intelectual das ideologias
civis”.291

Desta forma, pode-se entender que nas instituições militares existiram aspectos que
se colocaram com significativo predomínio e que não obedeciam, necessariamente, à
mesma lógica do processo de polarização da sociedade civil e da sociedade política, mas
que estavam diretamente a eles relacionados. Buscando explicar como se construiu essa
lógica de especificidade, Peixoto assinala:
“Logo, é possível imaginar que a inserção das Forças Armadas no processo político
e seu comportamento se inscrevam em uma configuração triangular onde coexistem,
em um quadro de relações constantes, três conjuntos de agentes: os civis (partidos,
grupos de pressão, etc.), as correntes militares e as estruturas de comando supremo

290
ROUQUIÉ, op. cit., p. 12.
291
Idem, p. 20.

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(os mais elevados escalões da hierarquia militar). As exigências e as pressões dos


setores civis são, desde o início, condicionadas pela relação de forças existente no
interior das Forças Armadas e pelas alianças passadas ou pelas convergências
estabelecidas com frações das elites militares”.292

O autor desconsidera a questão da simples cooptação, uma vez que as pressões


existentes a partir da sociedade civil e da sociedade política são, de certa forma,
“canalizadas” e “adaptadas” pelos diferentes “partidos militares” existentes dentro da
corporação, sendo “refratadas pelo prisma das características institucionais”. Embora não
esteja aqui o objetivo de analisar os processos que se desenvolvem na “máquina militar”
quando da gestação destes projetos de sociedade, torna-se importante assinalar suas
especificidades, uma vez que “as repercussões nas Forças Armadas de problemas da vida
política nacional e a ótica criada pelos militares para a análise desses mesmos
problemas”293 acabou por acarretar na formação de projetos políticos específicos que
fugiam da lógica elaborada pelos projetos oriundos da sociedade política e da sociedade
civil.
Alguns trabalhos que abordam os militares neste período chegaram a elaborar
diferentes mapeamentos sobre os “partidos militares”. Cito entre estes os que considero
referenciais para a historiografia que aborda o contexto da década de 60: Thomas
Skidmore, René Dreifuss, Peixoto e Murilo de Carvalho.
Partindo de uma análise de toda a corporação e não somente dos grupos de oficiais
de direita, Skidmore considera a existência de três grupos. O primeiro era a linha dura, “um
pequeno grupo de militares (...) ansiosos em intervir no processo político”294 e
caracterizados por um conservadorismo excessivo. Profundamente antipolíticos, achavam
que a intervenção deveria ser duradoura para poder ter efeito.295 O segundo grupo era
composto por militares caracterizados como moderados, “um grande número de oficiais
mais antigos” que se propunham a realizar uma “conspiração que eles consideravam
‘defensiva’” e que, contraditoriamente, estavam decididos a “deter e resistir a possíveis
atentados contra a Constituição” .296 Viam a necessidade de reformas mas apresentavam-se
temerários de uma “mudança rápida demais do status quo”. O Exército teria um papel de

292
PEIXOTO, “Exército e política ...”, op. cit., p. 35.
293
PEIXOTO, “O Clube Militar...”, op. cit., p. 73.
294
SKIDMORE, op. cit., p . 320.
295
Idem, p. 368.

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“guardião do equilíbrio político”. Contudo, não “podiam suportar a visão de um Brasil


governado indefinidamente por homens de farda”.297 Por último, os oficiais de esquerda,
defensores de uma posição nacionalista298 e da legalidade constitucional. Segundo
Skidmore, as esquerdas não haviam conseguido “qualquer expressão institucional nas duas
décadas que se seguiram a 1945”, uma vez que os militares mais próximos a essa posição
foram progressivamente afastados do Exército. A divisão entre linha dura e moderados,
para caracterizar as facções militares que aderiram o golpe, acabou por tornar-se
amplamente empregada pela historiografia que aborda o regime autoritário que veio a se
estabelecer a partir de então. Em grande parte, este mapeamento considera a correlação
entre facções militares e as existentes na sociedade política e na sociedade civil.
Centrando sua análise nos grupos especificamente de direita que compunham as
Forças Armadas, Dreifuss as caracteriza como divididas basicamente em três facções. A
primeira, hegemônica, seria o grupo IPÊS/ESG, notando que seus “membros principais
eram ao mesmo tempo líderes e ativistas do IPÊS”.299 Para o autor, esses militares
partilhavam de “um alto grau de congruência de valores com os tecnoempresários” que
dividiam entre si a ideia de modernização conservadora e de caráter associado.300 O
segundo grupo foi por ele denominado extremistas de direita. Também eram favoráveis à
modernização industrial conservadora, “um ponto que tinham em comum com a corrente
central do movimento civil e militar anti-Goulart”.301 No entanto, o seu extremismo era
caracterizado pelo profundo anticomunismo, antipopulismo e pela anticorrupção. Por
último cita, os tradicionalistas, que não eram adeptos do reformismo e nem mesmo haviam
recebido treinamento na ESG, mas lutavam contra “o comunismo em sentido amplo e
queriam sustar a política de mobilização” popular que então se propagava. Dreifuss,
portanto, considera uma identidade de projetos econômicos entre o grupo IPÊS/ESG e os
extremistas de direita pautado na modernização conservadora de caráter associado.
Analisando as Forças Armadas em seu conjunto, Antonio Carlos Peixoto,
diferentemente dos autores anteriores, não privilegia o mapeamento a partir da relação entre

296
Idem, p . 321.
297
Idem, pp. 357 e seguintes.
298
Idem, p 322
299
Idem, p. 369.
300
Idem, p. 77.
301
Idem, pp. 370-371.

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os militares e a vida política, nem mesmo quanto à proximidade ou ao distanciamento com


relação às elites políticas do país. O referencial do autor foi a dicotomia
nacionalismo/internacionalismo presente nas Forças Armadas. Caracteriza, desta maneira,
que a lógica que ordenou a formação de partidos militares foi intra-institucional. Tendo sua
origem remontando ao período Vargas, esta oposição consolidou-se ainda mais ao longo do
período compreendido entre 1945 e 1964. Estes grupos procuraram, posteriormente,
estabelecer alianças – a partir de lógicas internas – no sistema político brasileiro durante
este período. Sobre os nacionalistas, Peixoto assinala que
“(...) tinha suas raízes mergulhadas na política econômica adotada por Vargas
durante o Estado Novo, e o dirigismo do Estado era, para tal corrente, inevitável, já
que a livre iniciativa não dispunha dos meios para atender às exigências do
desenvolvimento econômico. A participação das massas populares no processo
político, participação controlada e enquadrada, naturalmente, era indispensável para
formar uma coligação de forças sociais e políticas capaz de enfrentar os interesses
externos congregados em torno do bloco agroexportador. Era portanto normal que a
corrente nacionalista fosse procurar suas alianças nos grupos civis que integravam a
coligação populista(...)”.302

A oposição ao liberalismo apresentava-se ainda como desdobramento de uma


memória negativa em relação ao passado recente da Primeira República, segundo o autor,
na qual o desenvolvimento industrial durante o período de controle político exercido pelas
oligarquias brasileiras havia sido obstaculizado.303
De outro lado, apresentava-se a facção que entendia que somente através de um
auxílio externo seria viável esse processo de modernização. Originada no grupo que se
autodenominava “jovens turcos”, entendia que o desenvolvimento industrial colocava a
necessidade de uma “modernização permanente, continua e que “os obstáculos a essa
transformação deveriam ser removidos”.304 O liberalismo teria sido, portanto, o aspecto de
identificação entre a facção internacionalista das Forças Armadas e os grupos liberais,
fossem agroexportadores ou vinculados ao capital internacional industrial. Embora
congruentes quanto ao liberalismo, o autor assinala que existia uma divergência como pano
de fundo que estaria relacionada à questão da oposição industrialização (militares) ×

302
PEIXOTO, “Exército e política no Brasil ...”, op. cit., p. 83.
303
Idem, pp. 78 e seguintes.
304
DOMINGOS NETO, Manoel. “Influência estrangeira e luta interna no Exército (1889-1930)”. In:
ROUQUIÉ, Alain (Coord). Os Partidos Militares no Brasil. ROUQUIÉRio de Janeiro: Record, 1980, p. 61.

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vocação agrícola (civis). Além disto, se por um lado esta aliança encontrava no
internacionalismo econômico um aspecto de identificação, outro fator que contribuiu para
sua efetivação foi a perspectiva deste grupo quanto à exclusão das camadas populares da
vida política do país.
Nos dois primeiros tipos de mapeamento apresentados, observa-se o privilégio da
relação entre os militares e a vida política, bem como na proximidade ou distanciamento
em relação às elites político-econômicas do país. Os projetos desses grupos quanto à forma
de organização econômica são citados apenas por Peixoto que, no entanto, restringe sua
delimitação de partidos nas Forças Armadas quanto à questão do
nacionalismo/internacionalismo. Apesar de não vincular este nacionalismo a um
posicionamento de esquerda, é justamente neste grupo que os nacionalistas acabaram por
buscar a sustentação política para seu projeto.
Para José Murilo de Carvalho, por último mas não menos importante, existiam dois
temas que estabeleciam as possibilidades de “partidos” dentro das Forças Armadas: o
nacionalismo e o anticomunismo. Eram eixos que delimitavam quatro possibilidades de
composição: uma corrente nacionalista de direita e, portanto, anticomunista; a nacionalista
de esquerda; os cosmopolitas de direita; e, por último, os cosmopolitas liberais, facção “que
não se concretizou”. O autor não se alonga muito na explicitação das características de
cada grupo. A compreensão das diferenças entre os nacionalistas de direita e esquerda ficae
bem clara e não necessita de maiores detalhes, mas o mesmo não ocorre com os aspectos
que caracterizem os cosmopolitas de direita e os cosmopolitas liberais. No entanto, o autor
é um dos poucos a assinalar a existência, como já referido, de um nacionalismo de direita
dentro da caserna,305 dissociando a relação entre nacionalismo e as esquerdas dentro das
Forças Armadas, e acrescentando que a diferença básica entre o nacionalismo de esquerda e
o de direita era “sua face populista”.
Mesmo assinalando a presença deste nacionalismo, Carvalho observa que em 1964
os interventores assumiram um posicionamento de defesa ou de proximidade ao
liberalismo, dando uma uniformidade quanto ao projeto de sociedade das Forças Armadas a
partir de então. Para todos eles, o golpe foi encaminhado por um grupo de oficiais que tinha

305
CARVALHO, “Vargas e os Militares”, op. cit., p 344.

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por objetivo uma modernização conservadora que contaria com a parceria do capital
internacional e, portanto, de caráter liberal.
Deixando de lado a abordagem das facções militares que se colocaram num
posicionamento favorável aos grupos trabalhistas, entendo que, das idéias polarizadoras
colocadas em debate de forma acirrada ao longo da década de 60, algumas apresentavam-se
com um relativo consenso entre as direitas no meio militar, mas outras estabeleceram
profundas divergências entre estes grupos. Como aspectos desse relativo consenso pode-se
assinalar a noção de restrição do direito de participação política às elites, o projeto de
modernização (da sociedade e das Forças Armadas), a importância dada ao planejamento e
à existência de um profundo caráter anticomunista dentro destes grupos.
No entanto, embora consensual e garantidora de um elo comum aos diferentes
“partidos militares” componentes da coalizão vitoriosa, a variação no grau de exclusão de
participação política e do anticomunismo acabou por aprofundar, ao longo do
estabelecimento do regime autoritário, determinadas divergências oriundas no período
anterior. Questões como um prolongamento ou não da permanência dos militares de forma
mais direta na vida política e o grau de repressão aos que seriam “comunistas” afloraram
com mais vigor. Da mesma forma, outros elementos diferenciadores dos dois principais
“partidos militares” que possuíam um projeto político de direita eram as questões referentes
ao nacionalismo/internacionalismo, ao grau de intervenção/não-intervenção do Estado na
economia e à política externa dependente/associada. Neste sentido, entendo que também
aqui que, entre as direitas, a questão do nacionalismo apresentava-se como “divisor de
águas” entre estes dois grupos, fazendo com que as duas outras questões ficassem a
“reboque” desta, mas nem por isso fossem menos importantes.
Dentro desta perspectiva e, buscando eliminar uma possível visão excessivamente
fragmentária do meio militar, minha análise recai sobre os principais subgrupos que
caracterizariam projetos políticos de direita: a corrente nacionalista-ditatorial e a corrente
internacionalista-autoritária. Com esta caracterização entendo que, ao mesmo tempo que se
estabelece uma diferença significativa quanto ao tipo de nacionalismo aqui assinalado –
ligado necessariamente a um projeto político de direita e que difere de outro nacionalismo
em suas vinculações e projetos relativos ao sistema político –, apresenta-se também os

113
114

diferentes graus de centralização e elitismo destes grupos bem como o seu elemento de
identificação quanto à uma restrição do direito de participação política.
Optei pela utilização do estabelecimento de uma diferença entre ditadura e
autoritarismo a partir dois referenciais. O primeiro deles é Mário Stopino, que apresenta
que o termo autoritarismo pode ser empregado em três “contextos específicos: a estrutura
dos sistemas políticos, as disposições psicológicas a respeito do poder e as ideologias
políticas”.306 Utilizo somente o primeiro contexto, mais pertinente aos aspectos aqui
abordados. Dentro deste, considero que uma primeira diferença entre ditadura e
autoritarismo caracteriza-se pelo grau de autonomia/liberdade dos sistemas políticos.
Noberto Bobbio, segunda referência aqui adotada, assinala que uma “ditadura não é uma
verdadeira ditadura, mas apenas um regime mais ou menos autoritário, se deixa sobreviver
algumas liberdades civis e não destrói totalmente (mas se limita a enfraquecer) o sistema
representativo”.307 Desdobramento desta limitação do sistema representativo, considero que
outro aspecto a diferenciar ditadura de autoritarismo está no grau de concentração de poder
nas mãos da(s) autoridade (s) máximas de uma nação. Enquanto uma ditadura apresenta-se
como um regime político no qual o poder é exercido por um pequeno grupo ou um único
líder (monocracia) em nome da nação com a eliminação do sistema político representativo,
o regime autoritário procura estabelecer um relativo grau de representatividade que advém
da não-eliminação completa do sistema político.308
Considero, ainda, a existência de uma corrente nacionalista de direita dentro das
Forças Armadas. Carvalho, Vizentini, Stepan e Comblim estão entre os poucos analistas
que – apesar da predominância de uma historiografia que enfatiza a vinculação do
nacionalismo ao pensamento de esquerda ou ainda aos grupos “apolíticos” das Forças

306
SPOTINO, Mario. “Autoritarismo”. In: Dicionário de Política. BOBBIO, Noberto; MATTEUCI, Nicola;
PASQUINO, Gianfranco. (orgs.) Brasília, UNB, 1999, p. 94.
307
BOBBIO, Noberto. Igualdade e Liberdade. Rio de Janeiro, Ediouro, 1997, p. 67.
308
Utilizo como parâmetro histórico de comparação entre os dois regimes a ditadura estabelecida ao longo do
primeiro governo Vargas, mais especificamente à Ditadura Estadonovista, e o regime autoritário estabelecido
pós-64. Pode ser assinalado que, ao longo do regime autoritário, o período que mais se aproxima da ditadura é
o posterior a dois momentos de suma importância: o estabelecimento do Ato Institucional n° 5 e a formação
da Junta Militar que se afirmou no poder após a interdição de Costa e Silva por motivos de doença. Neste
momento, considerado por muitos como “o golpe dentro do golpe”, o poder passou a ser exercido por um
pequeno grupo de Generais que, inclusive sob significativa resistência de oficiais das Forças Armadas,
escolheram tanto o sucessor de Costa e Silva quanto, cinco anos depois, o sucessor de Médici. Deve-se notar
ainda que a diferenciação existente entre os dois termos é, como assinalam diversos historiadores e cientistas
políticos, relativamente complexa.

114
115

Armadas – já indicaram esta característica. Por sua vez, Comblim, abordando este aspecto
apresenta que é
“(...) preciso não dar excessiva atenção à ideologia liberal professada pelos novos
governos militares e seus conselheiros econômicos. Pode ser que as intenções de
alguns deles sejam liberais, porém os fatos não o são. A ideologia liberal parece ter
por única finalidade convencer a opinião pública nacional da necessidade de manter
preços altos e salários baixos”.309

No entanto, o autor assinala o aparecimento de um nacionalismo tardio em alguns


“alunos rebeldes” somente a partir de 1968, quando “certos militares tornam-se
nacionalistas (de uma hora para outra?) apesar dos ensinamentos recebidos”. Ou seja, este
nacionalismo não estaria presente nas divergências existentes ao longo de boa parte da
década de 1960, aspecto do qual discordo. Por outro lado, apesar de utilizar-se ainda de
uma caracterização do embate entre as facções de direita existentes dentro das Forças
Armadas com base na diferenciação entre moderados e linha dura, Vizentini consegue
perceber a dinâmica da luta pelo poder dentro da coalizão. Assinalando que o PAEG,
implementado ao longo do governo Castelo Branco, foi resultado da ascensão do grupo de
linha “liberal e internacionalista”, observa também que
“a chamada ‘linha dura’, se era favorável a métodos políticos mais violentos e uma
intervenção mais profunda na sociedade por outro lado apoiava o nacionalismo
desenvolvimentista, como seus colegas e rivais de esquerda, que haviam sido
expulsos das Forças Armadas. Assim, a indicação de Costa e Silva representou uma
resposta da ‘burguesia nacional’ e da linha dura nacionalista, contrariando o grupo
‘castelista’”.310

A não-observância de outras diferenças entre esses grupos, que não sejam referentes
ao controle do poder no período pós-64, chega a provocar uma certa confusão na
identificação do projeto de sociedade instaurado pela coligação que empreende o golpe de
1964. Maria Helena Alves, por exemplo, assinala que a DSN, na sua variante brasileira,
caracterizava-se pela defesa de um desenvolvimento econômico associado-dependente,
afastando-se do modelo utilizado no Chile e na Argentina. A autora não percebe que o
resultado da política econômica adotada ao longo do período é fruto do embate entre os

309
COMBLIM, op.cit., p. 100.
310
VIZENTINI, op. cit., p. 20.

115
116

diferentes grupos dentro da arena estatal e entre estes grupos e o restantes da coalizão que
comanda o país.
Inúmeros são os depoimentos e artigos identificados que assinalam um
posicionamento de defesa do nacionalismo por parte de militares de direita. Alguns até
mesmo defendiam um certo distanciamento em relação aos Estados Unidos em função de
constatarem a existência de interesses muitas vezes conflitantes entre o Brasil e essa nação,
apesar do reconhecimento do seu papel de liderança. Desta forma o nacionalismo não era
uma bandeira empenhada apenas pelas esquerdas. Nas Forças Armadas teve um apelo
significativo para uma parcela de oficiais que se posicionavam com reservas apenas em
relação a quem deveria encampar sua defesa, num contexto em que essa bandeira havia
sido incorporada pelo movimento popular de esquerda. Também poderá ser observado,
através de documentos que apresento a seguir, que alguns militares defendiam uma posição
de de proteção à economia nacional como condição fundamental para a obtenção do tão
propalado desenvolvimento do país. Para eles colocava-se até mesmo a necessidade de
defesa deste nacionalismo como forma de possibilitar uma redistribuição das riquezas,
embora essa distribuição nem sempre fosse colocada em primeiro plano. Ainda sobre a
questão do nacionalismo, os tenentes-coronéis Gustavo M. Rego Reis e Ivan de Souza
Mendes assinalam a sua presença e importância como elemento aglutinador.311
Importa apontar ainda que, também quanto à questão social e à política externa, os
dois grupos assinalados acima divergiam. Nacionalistas-ditatoriais guardavam uma posição
de realização de algumas reformas sociais para diminuir a pressão popular e abrandar a
influência comunista. Da mesma forma entendiam que o caminho para o desenvolvimento
do país guardava uma posição de proximidade relativa quanto ao papel hegemônico dos
Estados Unidos. De outro lado, os internacionalistas-autoritários entendiam que somente
após alcançado o desenvolvimento econômico é que os benefícios poderiam ser estendidos
ao conjunto da sociedade e que o papel hegemônico dos Estados Unidos era inquestionável,
mesmo fundamental, na oferta de tecnologia e recursos para o alcance deste
desenvolvimento. Portanto deve-se assinalar que estes dois grupos possuíam projetos de
sociedade com profundas diferenças entre si. Estas sserão acentuadas, no período posterior

311
REIS, Gustavo de Moraes Rego. Depoimentos. In: Visões do Golpe..., op. cit., p. 62; ver também
MENDES, Ivan de Souza. Depoimento. In: Visões do Golpe..., op. cit., p. 149.

116
117

a 1964, pelos variados instrumentos utilizados pelos dois grupos para alcançar seus
objetivos.
Para alguns autores, entretanto, as divergências estariam limitadas a este segundo
momento, apresentando-se cristalizadas através da denominação destes dois grupos entre
moderados e linha dura. Percebe-se que esta divisão fica diretamente relacionada ao tempo
de intervenção dos militares na vida política, aos vínculos com a sociedade política e ao
grau de repressão estabelecido no período posterior ao golpe. Ao restringir-se o debate
existente entre os partidos militares a estes aspectos, deve ser colocada uma questão que
considero fundamental: se o confronto relacionava-se ao tempo de permanência no poder e
ao grau de repressão, por que existiram diferentes grupos e níveis de articulação que
colocaram-se em confronto antes mesmo de 1964? Responder a esta pergunta através de
uma explicação que dá ênfase somente na disputa pura e simples pelo poder – na “mosca
azul” – é, em meu entendimento, uma opção por demais simplista.
Pretendo apresentar que as divisões entre estes grupos passavam por outras questões
responsáveis pela definição de diferentes projetos de sociedade e já existentes mesmo no
momento anterior ao golpe. Busco ampliar a dimensão dos termos duros e moderados,
incorporando as diferentes propostas que estes partidos possuíam quanto à forma de
organização da sociedade como um todo, e não apenas quanto aos seus aspectos de
organização e distribuição do poder.
Deve-se observar ainda quanto à análise dos partidos militares de direita que, como
desdobramento da função que ocupam – apesar do contexto existente marcado por uma
contestação da hierarquia não somente nos escalões inferiores mas também na média e alta
oficialidade – e mesmo possuindo determinados canais de manifestação de seu
descontentamento, o posicionamento exato de cada um destes oficiais sobre as diferentes
idéias polarizadoras fica prejudicado. Desta forma optou-se por apresentá-los vinculados a
este ou àquele partido militar pela tendência que determinadas posições apresentavam
quanto à sua filiação. Nacionalistas e partidários da ditadura tinham uma tendência a afiliar-
se ao mesmo grupo enquanto os favoráveis à internacionalização e os autoritários, em
outro. Também utilizo para este mapeamento a produção historiográfica referente ao
assunto bem como alguns depoimentos, nos quais determinadas vinculações já apresentam-
se estabelecidas. Por último, assinalo que a abordagem aqui apresentada não tem por

117
118

objetivo esgotar as análises sobre as diferentes facções das direitas presentes nas Forças
Armadas, mas tão somente apresentar os projetos políticos dos grupos que conseguiram
certo destaque na vida política a partir do golpe.

118
119

Caracterizando as fontes
Nas Forças Armadas não existia um consenso absoluto quanto à elaboração de
projetos se comparado ao existente no complexo empresarial IPÊS/IBAD. Nem mesmo um
consenso relativo como o exigido nas organizações partidárias como a UDN.
Diferentemente destes outros dois focos de minha análise, a filiação à instituição Forças
Armadas ocorre por aspectos que lhe dão um caráter de significativa pluralidade
ideológica.312
No entanto, os canais existentes para a manifestação destes projetos encontram-se
relativamente restritos por características estabelecidas ao longo de todo o período
republicano. Aspectos como fidelidade e o pretenso caráter apolítico da instituição
influíram decisivamente para que os canais de manifestação das divergências ou
convergências dos partidos militares predominantes na instituição acabassem por ocorrer
através das instituições representativo-coporativas, que se tornaram “o local de confronto
de tendências, a partir do momento em que suas diretorias começaram a ser eleitas e não
designadas pela hierarquia”.313
Utilizo como fontes dois desses canais de manifestação das correntes militares os
periódicos Revista do Clube Militar e A Defesa Nacional. O primeiro assinala mais
claramente a utilização de seu espaço como “lugar privilegiado de confronto entre as
correntes militares”, assumindo importância fundamental nas “funções de articulação ou de
organização do debate político e de representação formal ou informal de correntes
majoritárias nas Forças Armadas” e agindo como “um elemento privilegiado de ligação
entre a sociedade política e a instituição militar”.314 No entanto, esta importância política do
Clube persiste além da década de 1950, principalmente quando se observa que este passou
a ser uma plataforma para a divulgação do ideário das direitas no seio das Forças Armadas.
Principalmente a partir de julho de 1961, quando a Cruzada Democrática recupera o
controle sobre a diretoria do Clube, os nacionalistas aliados das forças trabalhistas foram
alijados não somente da hierarquia do Clube mas também da própria hierarquia militar. A
Cruzada Democrática assinala seu surgimento em torno dos debates ocorridos no governo

312
Não considero aqui os momentos específicos da História brasileira na qual a filiação ideológica passou a
ser considerada para a aceitação de um indivíduo – como um “passe” de entrada – à Instituição e restringindo
significativamente esta pluralidade, tais como o período da Ditadura Vargas e do Regime Autoritário pós-64.
313
ROUQUIÉ, op. cit., p. 14.
314
PEIXOTO, “O clube militar...”, op. cit., p. 61.

119
120

Vargas. Segundo Peixoto “apresenta-se como um agregado de todos os grupos e setores


opostos aos nacionalistas: seu núcleo central é formado pelo grupo de veteranos da FEB e
pelos setores superiores da alta hierarquia que se opunham a Vargas”315, sendo denominado
por alguns por “UDN militar”.316
Sinal desta transformação foi a própria modificação na tônica dos artigos da Revista
do Clube. A partir deste momento seus artigos colocaram-se com um anticomunismo
ferrenho que condenavam a “tendência esquerdizante” da vida política do país. O ano de
1961, momento em que se inicia esta abordagem, marca o aparecimento de artigos como o
do Coronel Campos de Aragão e do Tenente-Coronel Octávio Costa, conferencista da ESG,
que apresentam este anticomunismo. Outros artigos como “Defender-se? Contra quem?
Por quê? E como?”, do General de Divisão Irapoan de Albuquerque Potyguara assinalam a
presença de um enfoque especial na idéia de Guerra Revolucionária. Mesmo que o
predomínio tenha sido dos “antinacionalistas” na diretoria do Clube e da Revista –
primeiramente com o General Paulo Torres (1961) e depois com o General Augusto
Magessi317 –, o espaço dado aos nacionalistas-ditatoriais foi significativo, a ponto de poder-
se identificar sua presença através de artigos de oficiais como Walter dos Santos Meyer,
Campos do Aragão (que inclusive fazia parte da diretoria da Revista) e outros.
A Defesa Nacional, por sua vez, foi fundada em 1913 pelos “jovens turcos”, que
desejavam a modernização do Exército Brasileiro a partir da influência germânica e
originariamente tinha por objetivo difundir “suas idéias e fazer a propaganda dos militares
alemães”. Segundo Domingos Neto, a revista “logo ultrapassaria em importância o Boletim
do Estado-Maior do Exército” em função do “espírito militante de seus redatores”. Após a
derrota alemã na I Grande Guerra, germanófilos e francófilos uniram-se em torno da missão
militar francesa, passando a Revista a contar com participação também deste segundo
grupo. Ao longo da década de 30, a coesão do Exército foi construída em torno de Getúlio,
criando uma “homogeneidade política interna”. As novas exigências da sociedade moderna
colocavam a necessidade de um aprimoramento tecnológico constante das Forças Armadas,
o que só poderia ser obtido, segundo concepção da época, através da superação do próprio
estágio de desenvolvimento do país. Tornava-se imperioso, para a “realização de objetivos

315
Idem, ibidem, p. 97.
316
Rouquié, op. cit., p. 18.
317
PEIXOTO, “O Clube Militar...”, op. cit., p. 108.

120
121

corporativos”, a interferência no processo de desenvolvimento socioeconômico


nacional”.318
O autor assinala a existência de uma homogeneidade dentro da revista no que tange
ao projeto modernizador e que essa “modernização persistiria baseada na cooperação
externa”.319 Entendo que, após um exame dos artigos da revista no período compreendido
entre 61 e 65, os elementos que mais caracterizam a homogeneidade seriam não somente
oainda o caráter modernizador mas também a tendência autoritária dos militares nela
envolvidos. No entanto, a política de desenvolvimento associado como forma de
modernização, embora predominante, não se apresentava sozinha. Isto pode se observado
pela gradativa ascensão de um grupo de características nacionalista e ditatoriais, que apesar
de não se manifestar com a mesma freqüência da corrente favorável ao desenvolvimento
associado, se apresenta claramente presente em artigos da revista.
Utilizo ainda alguns exemplares das Publicações do Departamento de Estudos da
Escola Superior de Guerra, contendo trabalhos realizados por alunos dos cursos
desenvolvidos na instituição envolvendo a análise da conjuntura nacional numa das
instituições militares que mais forneceram participantes para o regime que se estabeleceu
após o golpe de 1964. Segundo Peixoto, a instituição foi “foco de criação e de propagação,
para todos os que participaram de seus cursos, de uma certa visão do processo
desenvolvimentista brasileiro”. Com este aspecto concorda Dreifuss em suas observações,
assinalando inclusive os vínculos estreitos entre a ESG e o complexo empresarial
IPÊS/IBAD. No entanto, observa-se que, também na ESG, tem-se o aparecimento de
correntes nacionalistas de direita que, diferentemente do propagado liberalismo elitista,
pregavam um regime baseado no continuísmo de uma direção militar e do nacionalismo
industrial. De acordo com Peixoto, ainda, a “estratégia de desenvolvimento nacional criada
pela ESG dava destaque à mobilização das elites, a partir de esquemas teóricos que
integravam a Doutrina de Segurança Nacional”,320 o que possibilitava, segundo entendo, a
identidade entre os dois grupos. Observa-se portanto que, apesar de ser o local utilizado
para a doutrinação no seio das Forças Armadas, existia um espaço para um determinado

318
DOMINGOS NETO, op. cit., pp.58 e seguines. Sobre a questão da coesão do Exército realizada em torno
de Getúlio ver também Carvalho, Murillo, op. cit.
319
Idem, p. 69.
320
PEIXOTO, “O debate militar...”, op. cit., pp. 85 e 86.

121
122

grau de divergências diante da necessidade de uma certa coesão institucional almejada


pelas direitas nas Forças Armadas.
A título de complementação, são utilizados ainda dois outros conjuntos de fontes. O
acervo pessoal de Antonio Carlos Muricy, importante participante do golpe, bem como os
inúmeros depoimentos de militares de média patente sobre o contexto existente na década
de 60. O depoimento destes oficiais torna-se fundamental porque possibilita avaliar quais
os aspectos que permeavam estes militares, quanto ao seu projeto de sociedade, que os
levou a aderir ao movimento de 1964. Neste sentido eles não são importantes apenas para
descrever o período em que efetivamente passaram a ocupar cargos importantes. Nem
mesmo apenas para se compreender o porquê da demanda de “fechamento das instituições
e de radicalização do regime”321 no pós-64, mas também para identificar que esta demanda
se deu porque o governo Castelo de certa forma não atendeu aos anseios de parcelas
daquele grupo que havia sido a base de sustentação do golpe no meio militar e sem o qual
ele não teria ocorrido, segundo entendo.

321
D’ARAÚJO, Maria Celina e CASTRO, Celso. Visões do Golpe..., op. cit., p. 10.

122
123

Facetas do anticomunismo militar


Bourdieu, em um de seus trabalhos,322 chama a atenção para o fato de que, além
daqueles grupos, partidos ou homens políticos que se situavam nas extremidades dos pólos
direita/esquerda, existem ainda uma série de multiplicidades de combinações que são dadas
pelas possibilidades de “divergências para o extremo ou [de] convergência para o centro”, e
que somente se explicam através do jogo de relações estabelecidas entre os diversos
participantes do campo. Levando em consideração a presença dessa multiplicidade de
combinações possíveis dentro da área militar, compondo o espectro intermediário existente
entre direita e esquerda, centro minhas análises apenas naqueles que se situavam numa
proximidade maior em relação à direita.
Ao me referir à direita, ou àqueles grupos de centro-direita que convergiram para o
pólo, busco assinalar que o elemento caracterizador desta forma de entender e projetar as
suas utopias sociais caracteriza-se pela ênfase à liberdade em contraposição à idéia de
igualdade. Essa preocupação fundamental com a liberdade não representava a adesão ao
liberalismo político ou econômico. A própria idéia de liberdade encontrara diferentes
significações entre esses grupos.323 Na década de 1960, diante dos dilemas e confrontos
existentes no período, o destaque a liberdade caracterizava-se pela exclusão – fosse ela
social, política ou de qualquer outra origem – das camadas menos favorecidas e
“esclarecidas”. É claro que a ênfase dada pelos diferentes grupos variava para cada um dos
aspectos da organização social. Tal como nos outros centros catalisadores que são
abordados, entre os militares existiam diversas formas de encarar o econômico, o social, o
político e o intelectual, as quais não estavam necessariamente, todos elas, caracterizadas
pela exclusão. No entanto, a idéia de igualdade aparecerá sempre subordinada à idéia de
liberdade. A “teoria do bolo”, tão propalada naquele período é sintomática nesse sentido. A
idéia de liberdade política, para os padrões apresentados pelas direitas, subordinará as
pretensas igualdades social e econômica, assim como a liberdade econômica fará o mesmo
com relação às pretensas igualdades social e política, e assim por diante dentro dos diversos
quadros de combinações possíveis que formam o emaranhado existente entre os dois pólos,
ou, como nesse estudo de caso específico, entre centro-direita e direita.

322
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro, Difel, 1989, p. 179.
323
Sobre estes aspectos ver: BOBBIO, Noberto. Igualdade e Fraternidade. Rio de Janeiro, Ediouro, 1997, 3ª
ed.

123
124

O fato de caracterizar-se por uma fase de convergência para os pólos não invalida a
permanência da divergência existente em cada um dos extremos. No entanto, na busca de
entender “1964” e seu contexto, considero ser necessário a identificação tanto das
diferenças quanto das semelhanças. Interessa, nessa fase inicial, apontar especificamente os
elementos que contribuíram para o processo gradativo de convergência de interesses em
torno do pólo situado à direita da configuração política daquele momento e que
possibilitaram aquilo que Muricy denomina por uma unidade que não era total. A grande
maioria dos militares que participaram do golpe possuíam um posicionamento de franca
oposição ao comunismo extremamente vinculado com a proposta de defesa do status quo.
Em boa parte, a idéia disseminou-se gradativamente na forma da Doutrina de Segurança
Nacional e através da Escola Superior de Guerra, bem como de outras escolas militares tais
como a ECEME324 e a ECEMAR325. Tiveram importância significativa nesse processo os
periódicos militares tais como A Defesa Nacional e a Revista do Clube Militar. A partir da
década de 1960 essa idéia passou a ser um aspecto presente não somente entre a extrema-
direita, composta pelos “eternos” golpistas da década de 1950 envolvidos em episódios tais
como Aragaças, Jacareanga e outros de menor importância. Outros grupos de militares de
direita, que se caracterizavam pela defesa de um modelo seletivo de democracia, da
hierarquia militar e ordem social, ou que se colocavam a justificativa da subordinação à
Constituição como pressuposto básico de suas funções, também passaram a acreditar na
necessidade de combate às idéias comunistas. A luta contra o comunismo também deixou
de ser vinculada essencialmente ao seu aspecto externo de alinhamento aos Estados Unidos
dentro do jogo internacional da Guerra Fria, elemento fundamental das abordagens
anticomunistas apresentadas na ESG até fins da década de 1950.
A partir de então, cada vez mais a luta contra o “totalitarismo de esquerda” passa a
ser associada a uma realidade presente à sociedade brasileira. Segundo o Tenente-Coronel
Octávio Costa, a origem do anticomunismo das Forças Armadas deita raízes na Intentona
Comunista de 1935, aspecto com que concordam inúmeros outros militares. No entanto,
existiam elementos que o estimulavam. As análises conjunturais elaboradas por militares de
direita e centro-direita assinalavam então que a Guerra Fria havia chegado ao Brasil na
forma de uma Guerra Revolucionária ou Guerra Insurrecional. A propagação dessa nova

324
Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.

124
125

“filosofia militar”, efetivada não somente pelas escolas militares americanas (como
afirmado pela historiografia que se atém ao assunto), mas também pela influência francesa
ainda marcante no exército, tornam-se cada vez mais freqüentes. O enfrentamento que seus
oficiais realizavam na Argélia e na Indochina davam ao Exército francês um grande
respaldo no tratamento do tema.326 Artigos traduzidos com base em publicações francesas
ou produzidos por militares brasileiros confirmam essa influência.327 Em uma conferência
elaborada por alunos da Escola Superior de Guerra, onde é assinalada também a presença
do pensamento francês no ideário militar brasileiro, observa-se o que seria a definição da
chamada Guerra Revolucionária ou Insurrecional. O termo Guerra Revolucionária,
originário, segundo o autor, na União Soviética e vulgarizado por franceses em seus
conflitos coloniais apresentavam a conotação de que era
“(...) a Guerra interna, de concepção marxista-leninista e de possível adoção por
movimentos revolucionários diversos que – apoiados em uma ideologia,
estimulados e, até mesmo, auxiliados do exterior – visam à conquista do poder
através do controle progressivo, físico e espiritual, da população sobre que é
desencadeada”.328

Em outro artigo o oficial Carlos de Meira Mattos, nomeado interventor de Goiás de


novembro de 1964 a fevereiro de 1965, afirma que esse tipo de tática de guerra já estava
sendo analisado não somente na ESG, mas em outras escolas militares, e que ele guardava
íntima relação com o avanço do comunismo. Parece existir uma correlação na difusão de
temas relativos à propagação interna do comunismo com o número de trabalhos referentes
ao poder nacional ou aos objetivos nacionais, onde é reafirmada a necessidade de

325
Escola de Comando e Estado-Maior da Marinha.
326
Segundo Octávio Costa, comete-se “grande injustiça debitando aos americanos a inspiração do movimento
de 1964. Acho que o pensamento francês influenciou mais. A guerra que se estudava nas escolas francesas era
a guerra insurrecional, a guerra revolucionária. Como nunca deixamos de mandar estudantes à Escola
Superior de Guerra de Paris, nossos oficiais voltaram com esse material na mão, toda a racionalização
francesa sobre o assunto. Isso entrou pelo canal da nossa ESG, e foi ela que lançou as idéias sobre as guerras
insurrecional e revolucionária e passou a nelas identificar o quadro de nossa própria possível guerra. Para nós
ainda não havia a guerra nuclear, a guerra convencional já estava ultrapassada. Mas havia uma guerra que nos
parecia estar aqui dentro”. COSTA, Octávio. Depoimento. Visões do Golpe, op. cit., pp. 77 e 78.
327
Sobre este aspecto ver os seguintes artigos: POTYGUARA, M. “Aspecto da Penetração soviética nos
países subdesenvolvidos”. In: A Defesa Nacional, nº 566 e 567 de 9 e 10 de setembro de1961;
ALBUQUERQUE, Irapoan. “Defender-se? Contra quem? Por quê? E como?” In: Revista do Clube Militar, nº
159, de05 a 10/1961; OLIVEIRA, Kleber Frederico de. “Aspectos Doutrinários da Guerra Revolucionária”.
In: A Defesa Nacional, nº 554, pp. 117 e 118; e ainda MATTOS, Carlos de Meira. “A Guerra Inssurreicional
ou Revolucionária”. In: A Defesa Nacional, nº 554 de setembro/1960, p. 117.

125
126

manutenção da ordem social para a obtenção do desejado “desenvolvimento” econômico.


Segundo um seminário apresentado pelos oficiais Coronel Sylvio Couto Coelho da Frota, o
Capitão de Mar e Guerra Yves Murillo Cajaty Gonçalves e o Tenente-Coronel Ferdinando
de Carvalho – todos adjuntos na Divisão de assuntos militares –, os
“(...) fenômenos da Guerra Fria e da Guerra Revolucionária, em um ambiente de
febril competição entre potências ideologicamente antagônicas, desenvolvem-se,
não somente no Campo Militar como poderia sugerir o termo Guerra em sua
acepção clássica, mas também nos demais CAMPOS do Poder nacional, nos quais
se processam ações de suma importância (...)” .329

Os demais campos do poder nacional, apontados reiteradas vezes em seminários e


palestras na ESG, eram o político, econômico e o psicossocial, além do militar. Existia um
papel integrado entre estes diversos campos na responsabilidade de assegurar a cobertura
necessária à consecução ou manutenção dos “objetivos nacionais”. Na medida em que
existissem antagonismos internos, dentro de um desses campos de uma nação, que
inviabilizassem a efetivação dos “objetivos nacionais”, colocava-se “em risco as
instituições, a lei e a ordem”. A presença cada vez mais efetiva da Guerra Insurrecional, em
sua etapa inicial, segundo uma série de escritos militares, tornava eminente a fragilidade do
Poder nacional. Abria-se a justificativa ideológica para um papel mais ativo dos militares
não somente em assuntos que lhes eram pertinentes por profissão, mas também na área
política, econômica e “psicossocial”. Somente o combate ao comunismo nos diferentes
campos do poder nacional possibilitariam o alcance das metas estabelecidas pelos
“objetivos nacionais”.
Uma série de acontecimentos efetivados ao longo da primeira metade da década de
1960 tornavam “reais” para os militares as premissas apontadas acima. Segundo o oficial
Octávio Costa, um dos aspectos que estimulavam a propagação do anticomunismo dentro
das Forças Armadas era o “convencimento” reforçado pela “realidade” das Ligas
Camponesas e pelo problema sindical, que convencia uma parcela cada vez maior de

328
LÉBRE, Geraldo; SILVA, Ernani Ayrosa da; CARDOSO, Alberto de Assumpção; & MORENO, Jayme.
A Guerra Revolucionária. Conferência proferida na Escola Superior de Guerra. Curso Superior de Guerra , p.
9.
329
FROTA, Sylvio Couto Coelho; GONÇALVES, Yves Murillo Cajaty; CARVALHO, Ferdinando de.
Aspectos militares da Segurança Nacional. Conferência proferida na Escola Superior de Guerra. Curso
Superior de Guerra, pp. 1 e seguintes.

126
127

oficiais de que o processo de instauração da Guerra Insurreicional ou Guerra


Revolucionária no Brasil estava em andamento.330
Para eles o Nordeste era uma região que, dentro do quadro de Guerra Fria,
apresentava-se com contradições facilmente exploradas pelos comunistas e as Ligas
Camponesas representavam a concretização da exploração dessas contradições.331 A
renúncia de Jânio e a aproximação do governo Jango com as esquerdas denunciavam a
formação de uma república sindicalista, com graves casos de perda da hierarquia militar.
Castelo Branco, por sua vez, ao falar sobre a relação entre comunismo e democracia,
entendia que o capitalismo e o comunismo eram duas ideologias que estavam num conflito
mundial e que a mesma já estava instaurada no país.332
Muitas vezes o anticomunismo confundia-se com o receio de instauração de uma
república sindicalista no país. Compondo ainda este quadro de concretização do medo de
que uma Guerra Revolucionária estaria se desenvolvendo no Brasil tem-se, a partir de
1961, o pânico provocado pela Revolução Cubana. Donghi faz uma ressalva sobre este
importante dado, assinalando que se a conseqüência mais óbvia foi o surgimento de
diversos movimentos que tentaram seguir os passos de Fidel e Chê, “uma outra
conseqüência, menos direta, foi o fortalecimento em nível continental de uma frente
contra-revolucionária controlada pelos setores mais hostis a qualquer mudança –
revolucionária ou não – da ordem vigente”.333 A aproximação de Fidel Castro com o bloco
comunista significava um novo avanço do esforço comunista em torno da América Latina.
Para boa parte dos militares, a Guerra Insurrecional adentrou na América Latina através de
Cuba e o “fenômeno da Guerra Revolucionária brasileira não poderia ser bem
compreendido se não atentássemos para sua vinculação nítida à violenta ofensiva que o
comunismo internacional desencadeou no continente Latino-americano desde que se
conseguiu firmar na Ilha de Cuba”.334 Apontam ainda que o comunismo avançou a partir
de então, pois eles passaram a utilizar a ilha “como verdadeiro porta-aviões, ancorado em

330
COSTA, Octávio, op. cit., pp. 80 e seguintes.
331
ARAGÃO, Campos. “Antes tarde do que nunca”. In: Revista do Clube Militar, n° 160, novembro e
dezembro de 1961, pp. 6 a 9.
332
Reprodução de trecho de palestra conferida pelo General Humberto de Alencar Castelo Branco em
15/12/1961 na ECEME, intitulada “O dever militar em face da luta ideológica”. In: A Defesa Nacional, n°
585, p. 71.
333
DONGHI, Túlio Halperin. História da América Latina. Rio de Janeiro,Paz e Terra, 1986.

127
128

terras do continente americano”, utilizando “o campo propício” para “semeadura” de idéias


de esquerda tais como o analfabetismo, as precárias condições de vida do homem do campo
e a “campanha de fomento à luta entre classes sociais”.335
Esta idéia era reforçada ainda pela disseminação do pânico comunista por parte de
agentes da ideologia anticomunista norte-americana, tais como o General Wernon Walters.
O General Antonio Carlos Muricy afirma que Walters lhe colocou, em diálogo ocorrido
em 1964, que “estávamos profundamente preocupados com a comunização do Brasil, pois a
comunização do Brasil não criaria uma nova Cuba, criaria uma nova China”. Ampliava-se,
dessa forma, a dimensão dos desdobramentos da “sovietização” do país. Alertava ainda que
Cuba, dentre outros países, fornecia agentes que se infiltravam nos movimentos populares
no Brasil”.336 Enrique Padrós e Fábio Marçal abordam este anticomunismo como resultado
de uma contribuição norte-americana:
“Refletindo a lógica bipolar da Guerra Fria e as novas estratégias de dominação dos
EUA sobre a América Latina, a Doutrina de Segurança Nacional disseminou-se
através das Academias e Escolas de Guerra formando quadros especializados e
vinculando-se, organicamente, a uma série de conceitos geopolíticos básicos: a
lógica da bipolaridade e da delimitação das zonas de influência das superpotências;
a satanização do inimigo; a identificação do Estado e da nação como organismos
vivos passíveis de contaminação pelo vírus comunista (justificando como resposta,
um virulento anticomunismo)”.337

Contudo, deve-se observar que existia uma lógica própria a sociedade brasileira que
fez com que parcelas da elite associassem os eventos aqui ocorridos com uma suposta
expansão comunista no continente. O anticomunismo, no entanto, não se apresentava a
partir de uma única concepção. No contexto da década de 1960, no meio militar, não
somente no Brasil mas em toda a América Latina, o termo passou a servir como elemento
catalisador dos grupos de centro-direita em relação ao pólo mais próximo. A idéia passou a
ser associada a alguns elementos que contribuíram para essa aproximação: anticomunismo
como manutenção a ordem social, anticomunismo como manutenção de princípios
democráticos e anticomunismo como manutenção da hierarquia. As três idéias estavam

334
CARVALHO, Ferdinando de . “Guerra Revolucionária comunista no Mundo Atual”. In: A Defesa
Nacional, n° 597, p. 42 e 43.
335
VEIGA, Arnaldo J. M. da. In: A Defesa Nacional, n° 602, pp. 53 e seguintes.
336
Palestra de Antonio Carlos Muricy sobre os motivos da revolução brasileira, op. cit.
337
PADRÓS, Enrique; MARÇAL, Fábio. “Terror e Estado e Doutrina de Segurança Nacional: os anos de
chumbo no Brasil e na América Latina”, op.cit., p. 67.

128
129

intimamente entrelaçadas e a sua divisão trata-se apenas de um recurso metodológico com


o objetivo de facilitar sua compreensão.
Inicio pela associação entre comunismo e ameaça aos princípios democráticos. A
liberdade, que era apresentada como bem supremo proporcionado pela democracia,
encontrava-se ameaçada pela difusão do movimento. Para esses grupos, somente a
democracia é que poderia propiciar o atendimento de todas as necessidades da sociedade
brasileira. O comunismo apresentava-se como uma proposta de implementação de ditadura,
como ameaça à religião e aos princípios ocidentais da civilização brasileira. Afirmava-se
que a doutrina comunista era, ao mesmo tempo, uma estratégia e “uma religião cuja
máxima ambição é a de se opor às religiões clássicas, especialmente a cristã, tendo em vista
destrui-la e em seguida substitui-la”.338 A série de artigos do Coronel Ayrton Salgueiro de
Freitas, diretor-secretário de A Defesa Nacional, apresenta esta oposição. O Coronel
afirmava que
“(...) é certo que existem muitos brasileiros que nunca acreditaram na Democracia,
ou ao menos que começam a perder a confiança nela, mas nós militares somos a
salvaguarda de nossas instituições e disso jamais devemos esquecer. (...) No interior
de cada um, já se esboça a descrença quando este cada um começa a tornar-se
indiferente pela liberdade do espírito e a menosprezar a desigualdade humana. (...) É
preciso então que se lhes diga – e aqui estamos nós, os militares, para fazê-lo – que
só com a democracia bem realizada, poderemos estabelecer um regime justo,
humano e atendedor de todas as necessidades e não apenas as do estômago, sob o
preço de bater palmas ao ditador do momento” .339

As Forças Armadas apareceriam como protetoras da liberdade democrática. Diga-


se, de passagem, da democracia restritiva existente. O editorial da revista A Defesa
Nacional é exemplar em indicar essa oposição comunismo × democracia. Segundo aponta,
o “que coloca em campos opostos a Democracia e o Comunismo (...) é concepção
radicalmente divergente dos direitos e deveres dos homens (...) [pois] não pode tolerar a
liberdade, o respeito do indivíduo e a independência do poder judiciário, alicerces da
civilização ocidental” .340
A ameaça comunista apresenta-se relacionada não apenas com o perigo de solapar a
democracia nacional mas de todo o hemisfério, propagando, assim, a idéia defendida de que

338
POTYGUARA, Irapoan, op. cit., p. 53.
339
Idem, n° 552, p. 176.
340
Idem, n° 557, p. 5.

129
130

o país representaria a existência de uma nova China tal como assinalado pelo General
Walters, para quem articulado “em Cuba e possibilitando a montagem de uma base
comunista dentro de um país de proporções continentais, como o nosso, é difícil não se
aceitar que bem precário seria o destino da democracia ocidental”.341 Para eles os dois
sistemas eram “correntes ideológicas de contextura radicalmente diversas que se chocam
no seio da humanidade: democracia e comunismo”.342 Mesmo aqueles que se apresentavam
como defensores da legalidade constitucional assinalavam a ameaça comunizante. Anos
antes de se tornar um dos líderes do movimento de 1964, o General Castelo Branco buscava
valorizar a democracia fazendo uma veemente crítica ao autoritarismo de caráter
comunista. Para ele existia uma superioridade da ideologia democrática sobre a comunista,
e que ela não devia “perder-se nos interesses do capitalismo quando desligados dos
interesses da comunidade nacional e do bem-estar do povo”.343
A oposição comunismo × democracia não havia sido elaborada por eles, segundo
entendiam, mas sim feita por aqueles que acreditavam que o primeiro procurava moldar “na
opinião pública, o preconceito de que a ordem democrática era incapaz de proporcionar as
soluções desejadas”.344 No entanto, ao valorizar a democracia, a ênfase não recaia na
questão da participação política igualitária contra a possibilidade de implementação da
ditadura nos moldes da existente na União Soviética. Boa parte dos militares defendiam o
tipo de regime representativo existente, caracterizado pela limitação dos direitos políticos
para boa parcela da população brasileira, uma vez que o direito de voto era restrito aos
analfabetos, sem questioná-lo em sua essência e, portanto, numa valorização da liberdade
em contraposição às igualdades.
O comunismo apresenta-se também associado à ameaça da ordem social e política
do país. O movimento, segundo entendiam os militares analisados, pretendia insuflar a
população à contestação ao regime vigente e à ordem democrática. O Tenente-Coronel
Ferdinando de Carvalho, que escreveu vários artigos para ambos os periódicos analisados e
acabou por ocupar cargos importantes ao longo do período pós-64, assinalava que se

341
ARAGÃO, Campos. “A Revolução em Marcha”, op. cit., p. 16.
342
ARAGÃO, Campos. “Nordeste: uma interrogação no destino do Brasil”. In: Revista do Clube Militar, n°
159, outubro/1961, pp. 6 a 9.
343
Idem, ibidem.
344
CARVALHO, Ferdinando de. “A Guerra Revolucionária comunista no Brasil”. In: A Defesa Nacional, n°
597, p 51.

130
131

tornava urgente o “desencadeamento de uma técnica repressiva indispensável à preservação


da ordem social vigorante”.345 Isto porque a guerra revolucionária, segundo os “estudiosos”
do assunto, previa uma sucessão de procedimentos e atos para alcançar o poder. Uma de
suas etapas fundamentais seria a “preparação” e “criação de um ambiente pré-
revolucionário” com objetivos de estabelecer a “subversão da ordem”.346 Esta etapa seria
sucedida pela luta pela tomada do poder.
O próprio nome que designava a arregimentação de adeptos encaminhada pelos
comunistas não somente no Brasil mas também em outras partes do mundo, e que era fruto
de uma influência soviética por todo o planeta, demonstrava essa conotação de “desordem”:
guerra “revolucionária” ou “insurrecional”. A ênfase na tática dos comunistas seria de
estimular a insubordinação para criar uma clima favorável para a “dissolução da sociedade
que ela ataca” com vistas a estabelecer uma nova organização de suas cinzas. O Exército,
por sua vez, ressentia-se pela “indisciplina reinante na pátria”. Para o Tenente-Coronel Ivan
de Souza Mendes, nomeado posteriormente como interventor de Brasília logo após o golpe,
a “própria hierarquia republicana estava em jogo”. Essa preocupação centrava-se na
possibilidade de rompimento da estrutura social pois a “paz social” encontrava-se
seriamente ameaçada ante a iminência “da ação subversiva comunista”.
No entanto, gradativamente a preocupação dos militares deixou de centrar-se na
sociedade e passou a focalizar-se no rompimento da hierarquia que os comunistas estavam
encaminhando no meio militar. Para os militares, a guerra revolucionária avançava em seus
estágios e buscava então o enfraquecimento das Forças Armadas, com quebra da disciplina
e da cadeia de comando. O Tenente-Coronel Antonio Bandeiras, participante do IBAD e
antigovernista ferrenho em 1963, indicava que a agitação social já vinha desde o governo
Juscelino, acentuando-se nos governos Jânio (devido à renúncia) e Jango, com graves casos
de perda da hierarquia militar.347 Foi este aspecto que acabou por desencadear a passagem
à ofensiva dos militares, segundo boa parte dos depoimentos. Já em 1961, nos telegramas e
mensagens enviados à Muricy por ocasião das ofensas que recebeu de Brizola, que
denominou-o de “gorila”, afirmavam que se solidarizar ao General era defender a honra, a

345
CARVALHO, Ferdinando de. “Casos históricos de Guerra Revolucionária”. In: A Defesa Nacional, n°
578, setembro/outubro de 1962, p. 28.
346
FGV - Acervo pessoal de Antonio Carlos Muricy: Série Atuação Político Militar.
347
BANDEIRAS, Antonio. Depoimento. Visões do Golpe, op. cit., pp. 214, 217 e seguintes.

131
132

hierarquia, a democracia e a liberdade contra tentativas de “enfraquecer o Exército [a fim


de] possibilitar [a] entrega [do] país [ao] comunismo”,348 ou ainda contra a tentativa de
“tática comunista [de] divisão [das] forças armadas”.349
Se o anticomunismo era um elemento aglutinador, vários eram os aspectos que
dividiam as opiniões e posicionamentos dos militares em relação ao tipo de sociedade que
almejavam. Como apontado anteriormente, utilizo como linha de identificação desses
posicionamentos as idéias e ou segmentos de projetos que polarizavam a sociedade por
aquela ocasião. Assim sendo, as idéias polarizadoras é que nortearam, segundo entendo, a
formação de grupos de opinião que disputavam entre si a liderança do projeto golpista de
1964. Reitero, mais uma vez, quais seriam essas idéias. O tipo de desenvolvimentismo a ser
encaminhado na economia, ampliação ou restrição do acesso à propriedade, ampliação ou
restrição do direito de participação política e quanto ao encaminhamento da política externa
do país eram os principais temas que dividiam a sociedade brasileira, não somente entre
direita e esquerda, mas também dentro de cada um desses grupos.
Inicio pelo tipo de modelo de desenvolvimentismo econômico a ser encaminhado
proposto pelos militares de direita. A discussão sobre o projeto desenvolvimentista estava
presente em todos os níveis da sociedade, e referia-se à idéia de transformação da sociedade
brasileira para a superação da pobreza e do subdesenvolvimento através da industrialização,
planejamento e coordenação de investimentos. Segundo Bielschowsky, essa era uma idéia-
chave que impulsionava os embates sobre a “ideologia de transformação da sociedade
brasileira”,350 e, portanto, mesmo quando um dos segmentos da direita desconsiderasse a
idéia de desenvolvimentismo, era a ela que se referia.351 Relacionado com essa idéia-chave,
há outros aspectos definidores dos projetos em discussão que estão a ele vinculados, tais
como o grau de intervenção do Estado na economia, o papel do capital – fosse ele privado
ou público, nacional ou internacional – e o grau de industrialização. Esses aspectos

348
FGV - Acervo pessoal de Antônio Carlos Muricy: Série Atuação Político Militar (1936-1979).
349
FGV - Acervo pessoal de Antonio Carlos Muricy: Série Atuação Político Militar. Telegrama de
solidariedade enviado ao General Muricy por ocasião da ofensa a ele dirigida por Leonel Brizola, chamando-
o de Gorila.
350
BIELSCHOSWSKY, Ricardo. Pensamento Econômico Brasileiro – o ciclo ideológico do
desenvolvimentismo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1995, 2ª edição, p. 7
351
Embora discordando sobre a caracterização do desenvolvimentismo como aspecto ideológico, considero a
idéia de desenvolvimento como um dos elementos centrais das sociedades latino-americanas que, através de
um processo de circularidade das idéias, perpassava por toda a sociedade e era introjetada por seus diversos
grupos de acordo com o interesse específico de cada um deles.

132
133

encontraram diferentes formas de combinação dentro dos partidos militares.

133
134

Perspectivas de desenvolvimentismo

“O crescimento vegetativo da população, a ampliação


das nossas possibilidades industriais., os nossos problemas de
transporte provocam alterações na estrutura do país, com
repercussão no campo militar. A luta pelo bem-estar, as
reivindicações sociais das classes mais baixas, o nacionalismo e a
campanha contra o subdesenvolvimento em que ainda nos
encontramos são elementos que trazem à tona as contradições
existentes em nosso país”.

Walter M. de Sirqueira – oficial de Estado


Maior do Exército.

“(...) prejulgar-se economicamente subjugado por um


capital estrangeiro que não temos sabido disciplinar, capital
estrangeiro que só benefício poderá trazer a quem dele está ávido,
é prejulgar-se inferior”.

Major Aluízio Uzeda.

A grande maioria dos militares colocava-se numa posição de defesa do


desenvolvimentismo quanto ao seu aspecto industrializante. Pode-se dizer que isso era um
reflexo direto da sua atividade profissional atendendo a uma lógica que era específica ao
meio militar. Peixoto, sobre este aspecto, assinala que, segundo a “compreensão militar, o
crescimento industrial significava aumento do poder nacional”.352
Uma das grandes preocupações do período era a necessidade de acompanhar os
avanços tecnológicos que se colocavam prementes para as Forças Armadas. A perspectiva
de uma guerra nuclear e as condições existentes do material bélico brasileiro era algo que
preocupava muito os militares. Comentando o quadro geral imposto pela existência da
Guerra Fria, o General Armando Villa Nova353 afirma que nesse “ambiente de tensões
permanentes, ninguém se sente em segurança, pelo encurtamento das distâncias e pelo raio
de ação das novas armas, que a todos ameaça envolver num futuro conflito de dimensões
globais (...) a força torna-se cada vez mais atuante, como argumento decisivo de
intimidação, para dirimir divergências”.354

352
PEIXOTO, “O clube Militar...”, op. cit., pp. 78 e 79
353
Em 1961 era General de Divisão.
354
VASCONCELOS, Armando Villa Nova Pereira de. Segurança Nacional – conceitos fundamentais e sua
caracterização. Conferência proferida na Escola Superior de Guerra, C-02-61, p. 3.

134
135

Chegava-se a assinalar a necessidade de reformulação da doutrina militar brasileira


com vistas ao estabelecimento de metas que viabilizassem a adequação das Forças Armadas
à realidade de então. O vínculo dos militares com a industrialização encontrava-se na
possibilidade de desenvolvimento da indústria bélica que ela proporcionaria. Esta, por sua
vez, dependia diretamente de alguns elementos do poder nacional. O primeiro deles seria
que um “Estado que não dispõe de recursos naturais para a guerra enfrenta uma difícil
tarefa para manter-se como potência de primeira classe”. Segundo, que o desenvolvimento
econômico é o “elemento essencial para a condição do poder militar em qualquer Estado”.
E, por último, que as “instalações de produção determinam o tipo de armamento, a
mecanização, a motorização e a logística”.355. Dentro desta lógica, desenvolvimento,
industrialização e poder militar estavam intimamente vinculados entre si. O
desenvolvimento industrial era de importância estratégica para o corpo militar, uma vez que
a “indústria militar e a economia militar não existem, apresentam-se como desdobramento
da economia e indústria de um país”.356 Em editorial da revista A Defesa Nacional,
afirmava-se ainda que
“(...) todas as indústrias, em maior ou menor grau, interessam as Forças Armadas,
desde as infra-estruturais, como seja, a produção de alimentos básicos, por exemplo,
até as de transformação. (...) Entretanto, tendo em vista sobretudo a fabricação de
material bélico, especial ênfase deve ser dada às indústrias de base que
proporcionam os meios indispensáveis de transformação e sobre as quais estes
repousam”.357

Para muitos, as forças militares brasileiras não estavam condizentes nem mesmo
com os avanços tecnológicos proporcionados pela II Grande Guerra Mundial. Existia uma
“frustração profissional” provocada pela “desatualização em que se encontra nosso
Exército”, que era resultado da “falta de poderosa infra-estrutura econômica e técnico-
científica de nosso país”. 358 Além disso, havia uma aplicação irracional da já insuficiente
infra-estrutura disponível. Temas como a situação da siderurgia, da indústria energética, da

355
CASTRO. Sebastião. “Sistema Militar”. In: A Defesa Nacional, n° 586, junho/1963, p. 10.
356
MEYER, Walter dos Santos. “Influência da Siderurgia na Economia e na Indústria Militar”. In: Revista do
Clube Militar, nº 160 de novembro e dezembro/1961, p. 40.
357
“Aspectos da indústria brasileira de maior interesse para as Forças Armadas”. In: A Defesa Nacional, no°
588 e 589, de agosto e setembro/1963, pp. 57 e seguintes.
358
GONÇALVES, Leonidas Pires. “Urge um programa atualizado para o Exército Brasileiro”. In: A Defesa
Nacional, n°. 574 e 575 , de maio e junho/1962, p. 19.

135
136

mineração, em suma, da situação industrial e dos insumos necessários para tal produção
como um todo, eram freqüentes em periódicos militares e em palestras da ESG.
No entanto, a vinculação entre desenvolvimentismo – quanto ao seu aspecto
industrializante – e seu papel dentro da segurança militar não era o único existente. A
relação entre desenvolvimento e bem-estar também era freqüentemente presente no
pensamento militar de direita. Em 1965, o Coronel Eduardo Domingues de Oliveira, Chefe
de Assuntos Doutrinários e de Coordenação da ESG, apontava em uma conferência que a
política nacional e a política de desenvolvimento estavam intimamente relacionadas com a
Segurança Nacional. A primeira, no que se referia à “finalidade precípua de realizar os
Objetivos Nacionais através do desenvolvimento e da Segurança, pela aplicação do poder
nacional”. A segunda porque se apresentava como elemento “importante da promoção do
Bem-Estar”. Afirmava ele que
“num mundo em que cada vez mais se apequena e mais estreitamente se entrelaça,
os conflitos de interesse se multiplicam e enredam cada vez maior número de
Nações. Por outro lado, no âmbito interno, se acentuam as questões sociais,
estimulando desentendimentos que se tornam cada vez mais graves e mais perigosos
à Segurança Nacional”.359

Seguindo o conceito de Segurança Nacional adotado pela ESG, Domingues de


Oliveira indica que este era “o grau relativo de garantia que, através de ações políticas,
econômicas, psicossociais e militares, o Estado proporciona, em determinada época à
nação que jurisdiciona, para a consecução ou manutenção dos objetivos nacionais, em face
dos antagonismos existentes”. Os antagonismos internos de uma nação poderiam impedi-la
de alcançar seus “objetivos nacionais”, colocando em perigo as “Instituições, a Lei e a
Ordem”. Por isso a necessidade de uma preocupação dos Estados em proporcionarem o
bem-estar a seu povo.
Relacionando o desenvolvimentismo com a Política de Segurança Nacional, Muricy
assinala que esta tem “por objetivo o bem-estar e o progresso através do desenvolvimento
crescente dentro da lei e da ordem”. Quando ocorresse de uma nação sofrer de escassez de
meios para superar sua situação de atraso, então,

359
OLIVEIRA, Domingues. Segurança Nacional – Conceitos fundamentais , conferência proferida na Escola
Superior de Guerra em 1965, p. 2. O autor era, em 1965, Chefe de assuntos Doutrinários e de Coordenação
da ESG, pp. 3-9.

136
137

“assume importância, por uma questão de sobrevivência, a Política de Segurança


Nacional, e passa ela própria a preocupar-se com objetivos e ações de política de
desenvolvimento, porque passam a ser imprescindíveis à segurança, ainda que não
havendo nenhuma pressão estranha. (...) É o que sucede com os países
subdesenvolvidos ou em desenvolvimento no mundo atual”.360

Outra unanimidade que se fazia presente no pensamento militar de direita era a


referente ao planejamento econômico. Os motivos são muito bem apresentados por
Leonidas Pires Gonçalves. Segundo ele, assessor de Castelo Branco quando este fazia parte
do Estado-Maior do Exército em 1964, todos “temos visto ressaltado, nitidamente, em
nossa vida profissional, quer pelo estudo, quer por episódios ouvidos, o valor incontestável
da previsão, do planejamento. Prever, planejar, é o que ouvimos desde os primeiros
momentos da carreira militar”.361 Fazia parte da lógica das Forças Armadas a estipulação de
fases ou etapas com vistas a serem superados os obstáculos que se colocavam para alcançar
determinado objetivo. Segundo Campos Aragão desde fins da década de 1950 a ESG vinha
bradando em altos tons que havia a necessidade de se implantar, no conceito governamental
do país o princípio básico do planejamento.362 Existia uma associação entre a organização
das estratégias militares e a organização das estratégias econômicas. Os problemas
econômicos passaram a ser encarados como uma guerra a ser vencida através de
procedimentos estratégicos rigidamente estipulados. A consolidação da guerra total ao
longo do século XX, onde todos os recursos econômicos passam a ser mobilizados visando
um determinado fim, é que veio a consolidar esse aspecto no meio militar. Existia uma
convicção de que o país possuía de tudo, desde “fontes próprias de energia suficientes para
o seu progresso econômico” até técnicos preparados. No entanto, algo acontecia de errado.
Basicamente faltava planejamento e organização pois, com “um planejamento aceitável
mas dinâmico não haverá órgãos em demasia e nem duplicidade de órgãos para o mesmo
objetivo, não haverá lacunas que não sejam logo sanadas”.363
O planejamento adquiria sua importância não apenas no que se referia à
industrialização do país, mas também quanto à consolidação dos objetivos nacionais mais
amplos e da política de segurança do país, como se observa no trecho à seguir:

360
Palestra efetuada no curso promovido pela ADESG em 1965, com o título: “Política e estratégia”(187). –
FGV - Acervo pessoal de Antonio Carlos Muricy: Série Atuação Político Militar (1936-1979).
361
GONÇALVES, Leonidas Pires, Oop. cit., p. 17.
362
Editorial, Revista do Clube Militar, n° 160, novembro e dezembro/1961, p 3.

137
138

“O conjunto de ações estratégicas destinadas a conter ou vencer os antagonismos


que se opõem ou possam se opor à consecução dos objetivos nacionais é o que se
denomina de Política de Segurança Nacional que é a arte de prever e enfrentar os
antagonismos (...) e aplicar coordenadamente os recursos de uma Nação com
finalidade de promover efetivamente (...) a consecução dos objetivos vitais (...)
contra quaisquer antagonismos reais potenciais ou simplesmente presumíveis”.364

Importante não somente para levar desenvolvimento ao país, mas também como
aspecto que ajudaria na consecução do bem-estar ao conjunto da sociedade de forma não
traumática, o planejamento estatal era considerado como parte integrante na elaboração de
estratégias para se “vencer os antagonismos” e “aplicar coordenadamente os recursos de
uma Nação” para se alcançar os “objetivos vitais” para o país.
Contudo, as diferenças se faziam presentes quando o assunto era discutir de que
maneira se implementaria o desenvolvimento e o planejamento estatais. Industrializar era
preciso. Planejar era preciso. Mas de que forma? A título de simplificação, aponto a
presença básica de dois projetos diferenciados quanto à forma de encaminhamento do
planejamento e da industrialização do país. No primeiro projeto incluo aqueles que
defendiam simplesmente o planejamento efetivo do Estado, aqueles que além disso
defendiam a inversão de capitais estatais – como empreendedor ou empresário –, e os que
propunham uma intervenção parcial do Estado somente naquelas áreas nas quais a
iniciativa privada, especificamente de caráter nacional, fosse ausente ou pouco presente.
Apesar da diferença quanto à ênfase no papel do Estado, esse projeto defendia uma
alternativa genuinamente nacional para desenvolver o país. Uma das melhores definições
sobre o significado do planejamento para esses militares apresenta-se em artigo do General
Arthur Levy. Segundo Dreifuss, era um dos importantes articuladores entre as Forças
Armadas e os complexos empresariais do IPÊS/IBAD. No entanto, este defendia a
exploração mais sistemática dos recursos naturais de forma a evitar o consumo de nossas
divisas com a importação de fontes de energia:
“Entendemos o órgão de planejamento (...) munido de autoridade e com sua
definição caracterizada pelo legislativo (...) que defina o grau de intervenção do

363
LEVY, Arthur. “Energia não se importa”. In: Revista do Clube Militar, n° 162, 1962, p. 24.
364
Palestra efetuada por Antonio Carlos Muricy em curso promovido pela ADESG em 1965, op. cit.

138
139

Estado, a repartição de tarefas entre o Estado e a iniciativa privada, que preveja as


fontes de recursos para as tarefas do Estado”.365

Mesmo aqueles que defendiam um papel mais ativo do Estado na economia o


entendiam como um instrumento criador de pontos de germinação, ou seja, núcleos de
industrialização que, em função da sua posição estratégica na economia, viabilizariam o
surgimento de outras indústrias. A indústria siderúrgica cumpriria esse papel pois, assim,
“o aumento sensível de uma produção siderúrgica proporciona esse salto industrial,
possibilitando ao país suprir-se em grande parte de suas necessidades e, com isso,
abolindo numerosas e tradicionais importações. (...) A liberação de um setor
industrial da dependência externa significa, no quadro da economia nacional, um
fator de germinação de novos setores interdependentes”.366

Militares como o General Arthur Levy; o Coronel Paulo Dias Veloso, os Tenentes-
Coronel Waldemar de Dantas Borges, Walter dos Santos Meyer, Wilson Moreira Bandeira
de Mello, Antonio Francisco da Hora e Paulo Emílio Souto; o Major Ayrton de Carvalho
Mattos; o Capitão-de-Mar-e-Guerra Herick Marques Caminha; os coronéis Alfredo Correia
Lima e Eduardo Domingues de Oliveira; o Coronel-Aviador Ismael da Motta Paes, dentre
outros, defendiam, assim como Noll, um posicionamento mais efetivo do Estado como
planejador e sua repartição de tarefas com a iniciativa privada nacional. Em sua maior parte
pertenciam ao grupo nacionalista-ditatorial. No entanto, existiam ainda outros que, apesar
de não possuírem maiores vínculos com este grupo, defendiam, como eles, uma saída
genuinamente nacional para o processo de industrialização brasileira. Dentre estes assinalo
como figuras mais representativas o Marechal Juarez Távora e o General Geisel.
Consideravam de fundamental importância não somente o financiamento ou a
possibilidade de facilidades para a iniciativa privada. Entendiam que o Estado deveria
comportar-se de forma mais agressiva para o desencadeamento da industrialização do país.
Para Walter Meyer, o papel do Estado seria o de suprir a carência de áreas que não
despertassem o interesse privado, preencher os espaços vazios. A importância da produção
industrial siderúrgica estatal para o setor bélico, é assinalada a seguir:
“Se considerarmos que a indústria é máquina e que máquina é essencialmente
decorrente da indústria siderúrgica , vemos quão grande foi – e continua sendo – o
365
LEVY, Arthur. “Energia não se importa”. op. cit., p. 26.
366
NOLL, Darcy Alvares. “Aspectos da siderurgia no Brasil e na América do Sul”. In: A Defesa Nacional, n°
586, p. 58.

139
140

auxílio e a influência da siderurgia na economia e indústria nacional. (...) O aumento


sensível de nossa produção siderúrgica é o responsável direto por este salto
industrial brasileiro, levando-nos, hoje, a suprir quase totalmente nossas
necessidades, abolindo muitas e tradicionais importações (...) e abrindo mercado
para novos setores industriais [através de] pontos de germinação”.367

O General Geisel, por sua vez, afirma que, desde o final da década de 1950, um dos
principais elementos que os distanciava do posicionamento de outros elementos de seu
grupo articulador do golpe, era a defesa de uma participação ativa do Estado na vida
econômica do país, através da nacionalização de alguns pontos estratégicos.368 O aumento
da participação militar em determinadas áreas, tais como no sistema de transportes e na
produção de explosivos, era considerado de vital importância e reivindicado como resultado
da intervenção do Estado em áreas de interesse estratégico.369
Existiam também aqueles, como Ayrton de Mattos, que discordavam do papel do
Estado como agente empreendedor da industrialização. Analisando a situação da
Companhia Vale do Rio Doce, assinala que a empresa poderia estar melhor preparada para
a concorrência e para o aumento de sua produção. Os problemas eram vários já que sua
condição de estatal, executora da política governamental provocava a
“instabilidade dos dirigentes, ao sabor dos interesses políticos; a nomeação de
elementos nem sempre bem indicados, visando também satisfazer a estes interesses;
a menor flexibilidade nas diretrizes da comercialização; e a distração dos fatores de
produção, (...) para o desenvolvimento do vale do rio que lhe empresta o nome,
concorrendo esse custo social como uma limitação nos resultados econômicos
específicos da empresa, embora trazendo apreciável lucro social para a região”.370

No entanto, observa que a participação do capital estrangeiro na economia era


negativa. Os interesses eram contraditórios, segundo ele, uma vez que a “competição dos
países industrializados” fazia com que eles buscassem a diminuição dos preços dos
produtos primários principalmente através das “mais baixas condições de trabalho”. Era sua
incompetência como agente empreendedor que inviabilizava a participação estatal no

367
MEYER, Walter dos Santos. “Influência da Siderurgia na Economia e na Indústria Militar”, op. cit., p. 45.
368
GEISEL, Ernesto, op. cit., pp. 128 e 129.
369
LIMA, Alfredo Correia. “As Forças Armadas no sistema de transporte”. In: A Defesa Nacional, n° 593, de
janeiro e fevereiro /1964, p. 15. Ver também BORGES, Waldemar Dantas. “A indústria de explosivos no
Brasil”. In: A Defesa Nacional, n° 590 e 591, de outubro e dezembro/1963, p. 25.
370
MATTOS, Ayrton de Carvalho. “O problema da Exportação de Minério de Ferro”. In: A Defesa Nacional,
n° 561, de abril/1960, pp. 28 e 29.

140
141

mercado de forma eficiente. O que não impedia o Estado de propiciar as condições


necessárias para que o país se visse livre da dependência estrangeira. Exemplo de uma
situação em que isto se aplicava foi dado por Waldemar Dantas em artigo no qual analisa a
condição do enxofre como matéria-prima estratégica devido sua importância para a
produção de ácido-sulfúrico. Para que o país pudesse se ver livre da importação de
fertilizantes, cuja indústria era uma das principais consumidoras do produto, o autor sugere
que era necessária uma íntima colaboração dos órgãos estatais através da localização de
fontes e estímulo à produção do enxofre, de financiamentos e facilidades tarifárias para a
iniciativa privada.371
Um conjunto de procedimentos que apresentam a necessidade de um planejamento
efetivo, uma intervenção parcial na economia mas a exclusão do Estado empreendedor de
iniciativas observa-se num trabalho coletivo apresentado por membros da Divisão de
Assuntos Econômicos da ESG. Com o objetivo de fortalecimento do Poder nacional eles
apontam que as ações econômicas necessárias seriam as de “fortalecer a estrutura
econômica do país”, “utilizar plenamente seus fatores de produção”, “expandir seu mercado
interno” e “reduzir sua dependência de mercados e injunções exteriores”. Os instrumentos
necessários para essas ações seriam:
• “incentivo à industrialização, por meio de tarifas protecionistas, facilidades
cambiais e favores fiscais e aduaneiros;
• subsídio à produção;
• expansão do crédito, por meio de uma organização bancária (...) e da aplicação
seletiva dos recursos;
• fomento à produção agropastoril e mineira, por meio de facilidades creditícias e
assistência social e técnica;
• estímulo à substituição de importações;
• estímulo às regiões atrasadas, visando à redução dos desequilíbrios regionais;
• distribuição, visando a obter recursos para financiar empreendimentos pioneiros,
para os quais a iniciativa privada não se sente atraída;
• manipulação monetária, tendo por fim equilibrar a economia pelo combate, em
particular, à inflação;
• controle de preços, pela intervenção do Estado na formulação dos mesmos”.372

371
Op. cit., p. 43.
372
CAMINHA, Herick Marques; PAES, Ismael da Motta; & SOUTO, Paulo Emílio. A Estratégia Nacional.
Conferência proferida na Escola Superior de Guerra. Curso Superior de Guerra, novembro/1965, pp. 14 e
seguintes. Todos eles pertenciam à Comissão de Assuntos Doutrinários da ESG.

141
142

O Estado apresentava-se, então, com uma função que garantiria à economia


nacional a possibilidade para o seu desenvolvimento através de práticas como o
protecionismo, a concessão de apoio creditício e a delimitação das áreas que mereceriam
maiores investimentos. Apesar de algumas variações, tanto aqueles que defendiam uma
intervenção mais sistemática como aqueles que, além disso, apoiavam um papel incisivo do
Estado como empresário – ainda que em áreas onde o capital privado não estivesse presente
ou como forma de proliferação de pontos de germinação – viam o seu papel de forma
destacada na vida econômica brasileira.
Parece existir uma relação direta entre a Doutrina de Segurança Nacional e este
projeto na medida em que a justificativa para tal ação encontrava-se na consolidação do
poder nacional. Nesse sentido, a mesma matriz acabou por influenciar perspectivas
diferentes de solução, o que não se apresenta como novidade para o historiador que analisa
suas fontes dentro de uma perspectiva da História Cultural. O Coronel Eduardo Domingues
de Oliveira, chefe de assuntos doutrinários e de coordenação da ESG, abordando sobre o
conceito de Segurança Nacional adotado pela instituição, indica que “é o grau relativo de
garantia que, através de ações políticas, econômicas, psicossociais e militares, o Estado
proporciona, em determinada época à nação que jurisdiciona, para a consecução ou
manutenção dos objetivos nacionais, em face dos antagonismos existentes”.373 Um desses
antagonismos era o existente entre nacionalismo × capitalismo internacional. Apresentava-
se, assim, a justificativa para um maior papel estatal no desenvolvimento econômico para
se conseguir alcançar um dos principais objetivos nacionais que era a independência
econômica partindo da idéia de que a estratégia econômica deveria estar subordinada à
questão da segurança.
Como uma das contradições mais discutidas naquele contexto, os militares tinham a
convicção de que o nacionalismo estava sendo apropriado pelo movimento comunista como
uma de suas principais bandeiras, vinculando-o a luta antiimperialista. Eles reivindicavam a
necessidade de afirmação do país como potência, reconheciam que isso somente poderia
ocorrer caso o desenvolvimento nacional fosse alcançado, mas essa conquista deveria
ocorrer “sem deslocamento para a extrema esquerda”. De certa forma, defendiam um
nacionalismo controlado, que não sofresse o risco de cair na órbita de influência soviética

373
Op. cit., p. 9.

142
143

tal qual o ocorrido, segundo apontavam, com determinados países que defendiam a Terceira
Via.
De outro lado observa-se uma parcela de militares que defendiam um papel
relativamente reduzido do Estado. Não como apregoavam os liberais da época, mas
também de forma diferenciada ao projeto acima apresentado. Incluo no grupo mesmo
alguns oficiais que defendiam uma perspectiva de defesa do papel planejador estatal, mas
que tinham em comum a aceitação da participação do capital internacional no processo de
industrialização do país. Oficiais como o Major Aluízio de Uzeda; os Tenentes-Coronéis
Octávio Ferreira da Costa e Carlos de Meira Mattos; o Marechal Castelo Branco; e os
Generais Oswaldo Cordeiro de Farias e Armando Villa Nova Pereira de Vasconcelos,
dentre outros, estão aqui incluídos. Todos vinculados ao internacionalismo autoritário.
Três tipos básicos de argumentos eram utilizados por este grupo. O primeiro, em
oposição ao grupo que defendia um projeto genuinamente nacional, buscava associar o
nacionalismo com o movimento comunista, aspecto que também estava presente entre
alguns dos participantes do grupo anterior. No entanto, se no grupo anterior havia esta
associação, consideravam e urgente eliminar o “perigo” comunista para a implementação
de seu projeto. Diferentemente, os internacionalistas autoritários assinalavam que de
qualquer maneira o nacionalismo brasileiro teria aspectos negativos que inviabilizavam sua
defesa porque marcado por um “jacobinismo xenófobo”.
Para, por exemplo, o Major Aluízio de Uzeda, oficial que fez parte do Conselho de
Administração da Revista A Defesa Nacional, existiam dois tipos de nacionalismo: o dos
países desenvolvidos e o dos subdesenvolvidos. O primeiro, bom, o segundo, negativo e
pessimista. Afirmava ele não ter “dúvidas e os fatos estão aí para provar que a maior parte
do decantado nacionalismo de hoje em nosso país, está inteiramente impregnada de
influência comunista”.374 O nacionalismo dos países subdesenvolvidos levava ao “mais alto
grau, dois novos antagonismos de notável valor estratégico: o antagonismo colonizado ×
colonizador e o antagonismo Nacionalismo × capitalismo internacional, ambos
subordinados à oposição entre espoliados e espoliadores”375. Com isso, o movimento

374
UZEDA, Aluízio. “Nacionalismo”. In: A Defesa Nacional, n° 579, novembro de 1962, p 85.
375
COSTA, Octávio Ferreira da. “Compreensão da Revolução Brasileira”, op. cit., p 66

143
144

acabaria buscando a valorização da nação em confronto com o “o único capaz de liderar o


bloco a que pertencemos e do qual não devemos querer sair”.
Castelo Branco, em discurso pronunciado no 1º de Maio de 1964, assinala que
existia uma necessidade muito grande de acentuação da produção, pois “[precisamos]
produzir muito, mas numa vida devotada ao trabalho. Para tanto, precisamos de capitais,
nacionais ou internacionais, mas nunca do capitalismo com distorções que, devermos
repetir, por já superadas”.376
O acesso à modernidade apresentava-se em primeiro plano, como condição
fundamental a ser obtida e que colocaria em um patamar inferior a necessidade de
independência. Armando Villa Nova afirmava que,
“De par com a multiplicidade e complexidade crescente dos recursos ao alcance do
homem, verdadeiras conquistas da ciência e da tecnologia modernas, são incontestes
as dificuldades de acesso às tais fontes e de sua incorporação às sociedades
tradicionais em estágio atrasado ou de subdesenvolvido, dada a diversidade de suas
condições existenciais e o desnível socioeconômico de cada Nação para empreender
o seu ‘processo de modernização’ (...)”.377

Segundo ele, boa parte do mundo lutava contra a miséria, querendo “acelerar o
processo de desenvolvimento sem atentar para o fato de que ele é irregular”, o que poderia
acarretar em “extremos de violência e desespero, em graus variáveis, dificultando a solução
dos problemas, diante da incompreensão e da limitada capacidade autodeterminadora das
Nações, na fase de transição”. Partindo desse aspecto, e considerando a existência da
Guerra Fria afirma ser necessário
“(...) assegurar a coesão, estreitar os vínculos de solidariedade e confiança nos
ideais democráticos, criando instituições de índole cultural, técnico-científico e
profissionais, econômicas e financeiras, de caráter assistencial e de cooperação entre
os Estados e consentido em uma liderança ativa e vigilante, por associação das
partes; processos estes que permitirão ao mundo livre erguer-se em forte unidade
perante o mundo comunista e determinar o curso dos acontecimentos, reformulando
as bases de suas negociações com os soviéticos.”.378

A idéia central era a de associação com o capital internacional, possibilitando assim,


ao mesmo tempo, garantias para a modernização e segurança hemisférica ao “mundo livre”.

376
BRANCO, Humberto de Alencar. In: Os cinco anos que abalaram o Brasil, op. cit., p. 505.
377
VASCONCELOS, Armando Villa Nova. A Segurança Nacional – conceitos fundamentais e sua
caracterização. Conferência proferida na Escola Superior de Guerra. Curso Superior de Guerra, 1961, p. 2.

144
145

Colocava-se em relevo os conflitos existentes em nível mundial (Guerra Fria), deixando-se


em segundo plano as contradições internas. O Major Uzeda assinalava que se prejulgar
“economicamente subjugado por um capital estrangeiro que não temos sabido disciplinar,
capital estrangeiro que só benefício poderá trazer a quem dele está ávido, é prejulgar-se
inferior”.379 A necessidade de conhecimento, técnica, equipamentos e capital tornava
fundamental a adoção de um desenvolvimentismo de caráter associado, no qual a tarefa
estatal seria a de disciplinar o capital internacional. No artigo em que o Tenente-Coronel
Ferreira da Costa analisa a situação posterior ao golpe, uma das principais funções do
governo Castelo Branco seria a de combater a inflação e a “crescente estatização
incentivando o empreendimento particular bem controlado e a serviço da comunidade”,380
assinalando que o Estado deveria ter funções restritas na nova fase que se iniciava.
Outro aspecto que não pode ser esquecido e que caracterizava esse projeto era que o
papel diminuto do Estado e a possibilidade de entrada de capitais estrangeiros tinham em
comum o respaldo na garantia da livre iniciativa e das liberdades individuais para que cada
um pudesse desenvolver suas potencialidades. O General Cordeiro de Farias avaliava esse
aspecto como elemento componente do Estado de Segurança Nacional, consolidada,
“(...) no caso de países como o Brasil, no fato, entre outros, de poder ser assegurada
aos cidadãos integrantes da sociedade a liberdade para realizar ao máximo suas
vidas e oportunidades, em se ter uma economia livre, sem sofrer limitações senão
naquilo que colida com o interesse público, no respeito e no exercício dos direitos e
garantias individuais dentro de nossas tradições, que a todos assegura independência
e meios necessários de vida, na execução, por todos, de suas obrigações e deveres
(...)”.381

Em sentido semelhante raciocinava o General Villa Nova relacionando, no entanto,


liberdade não à segurança, mas à possibilidade de obtenção de bem-estar pelo acesso à
modernização. O bem-estar é por ele entendido como
“(...) um padrão de vida condigno: uma permanente liberdade dentro de um clima de
igualdade de direitos e de correspondente responsabilidade nos deveres, em
decorrência das normas legais da comunidade; uma valorização constante e
adequada do homem para que possa participar consciente e efetivamente do

378
Idem, ibidem, p. 3.
379
UZEDA, Aluízio. “Nacionalismo”, op. cit., p. 86.
380
Op. cit., p. 71.
381
FARIAS, Oswaldo Cordeiro de. A Segurança Nacional no Panorama Mundial da Atualidade. Conferência
proferida na Escola Superior de Guerra. Curso Superior de Guerra, 1961, p. 18.

145
146

processo de modernização; uma ampla e racional utilização dos recursos naturais e


humanos existentes (...)”.382

Dentro dessa noção de liberdade o Estado apareceria como o garantidor do acesso à


tecnologia e ao capital que viabilizassem a modernidade, sem distinção entre capital
privado nacional ou estrangeiro, enfim, pela associação ao capital internacional. Livre
iniciativa e modernização apresentam-se associados ainda em um discurso pronunciado no
ato comemorativo dos 20 anos de efetivação do golpe, pronunciado pelo então General
Carlos de Meira Mattos e intitulado “O ideário da Revolução de 31 de Março”. Mattos cita
um documento amplamente divulgado na ECEME e na EsAO383, na década de 60, o
“Decálogo do Militar Brasileiro”, que considera de importância fundamental. Fazendo suas
as palavras de Octávio Costa, ele aponta quais os principais aspectos defendidos pela
“revolução”, segundo seu entendimento. Dentre outros, cito dois que estão vinculados aos
aspectos acima analisados: “lutar pela organização da ordem econômica conciliando a
liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho”; e “lutar por Forças Armadas
realmente institucionais e democráticas, regidas pelo legítimo império das leis e dos
regulamentos, atentas ao imperativo da modernização de seus equipamentos e
constantemente empenhadas em seu aperfeiçoamento moral e profissional”.384
O acesso à modernização e às inovações tecnológicas seria obtido de forma
associada, uma vez que os interesses do principal líder do bloco ocidental seria o de deter o
comunismo. Isto somente seria possível através da disseminação de instrumentos
necessários para tal: tecnologia e, como desdobramento, bem-estar.

382
Op. Cit., p 10
383
Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais.
384
MATTOS, Carlos de Meira. “O ideário da Revolução de 31 de Março”. Discurso pronunciado no Clube
Militar a 29/03/84, na comemoração organizada pelos três clubes militares por motivo da passagem do
vigésimo aniversário da Revolução. FGV – Acervo pessoal de Antonio Carlos Muricy: Série Atuação Político
Militar (1936-1979).

146
147

A vida política para os homens da caserna

“Numa democracia incipiente como a nossa, onde são


chamados a pronunciar-se para escolher a sua representação mais
de 50% de semi-analfabetos, o parlamento assim eleito não pode
representar o ideal que desejávamos, aquele em que depositamos
nossas esperanças. Cabe às Forças Armadas, ainda durante alguns
anos, por constituírem uma elite, pela sua relação, constantemente
doutrinada no seu espírito patriótico, liderar e orientar as medidas
que, adotadas, garantirão a coesão indispensável à nossa
sobrevivência (...)”

General Irapoan de Albuquerque Potyguara

“(...) não exagerem seus méritos na vitória da revolução


– que foi a vitória da vitória coletiva – e continuem cumprindo
anonimamente o seu dever. Que não se arrogem em árbitros
infalíveis de todas as questões, que contribuam com todas as suas
energias para o mais rápido fortalecimento do poder civil”.

Tenente-Coronel Octávio Ferreira da Costa

Alguns aspectos atravessavam os diferentes grupos de militares quanto às suas


perspectivas do quadro conjuntural político do país. Corrupção, fraude eleitoral,
demagogia, desonestidade, incompetência e inépcia caracterizavam, para a direita militar, a
moral política daquele momento. Para eles a corrupção apresentava-se endêmica na medida
em que ela inviabilizava a continuidade do processo de desenvolvimento, uma vez que ela
“desorganiza, avilta, empobrece o país”.385 Segundo Octávio da Costa, a “investida
audaciosa do comunismo fizera o milagre de reunir e unir no mesmo esforço todos os
patriotas de correntes antes desavindas que não estavam comprometidos com a corrupção e
a subversão”.386
Apontando sobre as perspectivas políticas que se apresentavam com o golpe,
afirmavam que o novo regime “fará com que a representação popular seja mais fiel,
infensa ao poder econômico, à fraude e à demagogia”, uma vez que as principais
preocupações do governo que se estabelecia era, no campo político, “a reformulação do
Código Eleitoral de forma a deixar os pleitos democráticos infensos à fraude e a

385
Idem, ibidem.
386
COSTA, Octávio Ferreira da. “Compreensão da Revolução Brasileira.”, op. cit., p. 68.

147
148

demagogia”.387 Estes eram aspectos considerados como os grandes responsáveis pela


“prévia destruição da classe média, que é em geral o elemento estabilizador nestas
circunstâncias”.388 O progresso, neste sentido, deveria ser alcançado em bases realmente
democráticas e cristãs e obtido sem “demagogia e sem corrupção”. A incompetência
administrativa existente no país acabava por ser resultado daqueles que, sem um sentido
claro de nacionalidade e sem a preocupação com o bem comum, visavam “antes a
conveniência político-partidária ou a interesses pessoais”.389
Tornava-se necessário o resgate da moralidade, em função de que sua ausência
perturbava a ordem, impedia o progresso e facilitava a ascensão do comunismo. As
instituições democráticas achavam-se “enfraquecidas” e “desmoralizadas” também como
desdobramento da utilização do poder em benefício próprio. Esse dado era citado,
inclusive, no “Decálogo do Militar Brasileiro”, elaborado por Octávio Costa. Documento
amplamente divulgado pela ECEME e pela EsAO , apresentava os principais objetivos
pelos quais os militares deveriam lutar, sendo um deles o de lutar “para que imperem na
vida brasileira os princípios de irrepreensível moralidade administrativa e pela ativa
respeitabilidade funcional dos homens públicos”.390
Comunismo e subversão eram aspectos que andavam lado a lado. A ausência de
moralidade possibilitava a ascensão do comunismo porque impedia o governo de tomar as
iniciativas necessárias para atender aos anseios e interesses populares, elementos com os
quais o poder deveria estar em sintonia. Para eles, apesar da preocupação aparente com as
reformas sociais, os comunistas estavam diretamente vinculados com a desorganização
administrativa provocada pela falta de moralidade pública. Ela também provocava o
emperramento do processo de desenvolvimento do país, uma vez que fazia com que a
classe política ficasse restrita à discussões de interesses particulares em detrimento dos
interesses nacionais.

387
ARAGÃO, “A Revolução em marcha”, op. cit., p. 25.
388
VIANNA, João Baptista. “Fundamentos e Fatores Políticos do Poder Nacional”. Conferência realizada na
Escola Superior de Guerra – Curso Superior de Guerra, 1961, p. 18.
389
TÁVORA, Juarez. “A Política de transporte – aspectos gerais dos transportes”. Conferência proferida na
Escola Superior de Guerra – Curso Superior de Guerra, 1964, p. 13.
390
Citado em Discurso pronunciado no Clube Militar a 29/03/84, na comemoração organizada pelos três
clubes militares por motivo da passagem do vigésimo aniversário da Revolução, pelo General Carlos de
Meira Mattos, em discurso intitulado “O ideário da Revolução de 31 de Março”, op. cit.

148
149

A ligação do meio militar com os dois principais propagadores do retorno à


moralidade na vida política do país, portanto, não era fortuita. Primeiramente com Jânio
Quadros que, com um discurso baseado na luta contra a corrupção, prometia limpar o país
com uma vassoura, símbolo de sua campanha. Este vínculo, no entanto, esgarçou-se na
medida em que o então Presidente, em 1961, acabou por “decepcionar” o meio militar com
sua renúncia. Segundo, com Carlos Lacerda, cujo enlace foi mais duradouro, até o
momento em que ele rompeu com o grupo que estava no poder e articulou, juntamente com
Juscelino e João Goulart, a Frente Ampla. Lacerda possuía um grande trânsito não somente
com aqueles militares nacionalistas-ditadoriais mas também com a ala internacionalista-
autoritária.391 Afinal de contas, as Forças Armadas “sempre foram muito moralistas” e
Lacerda era um dos “espadachins do moralismo”.392 Outro aspecto que contribuía para isso
era o jornal Diário de Notícias, de tendência udenista, que publicava na época todos os atos
do Exército, fazendo com que a força o lesse. Reforçava também essa aproximação o fato
de que Lacerda apresentou-se como o principal opositor de Getúlio na década de 1950, e do
getulismo na década posterior. Na medida em que a imagem de Getúlio desgastava-se
perante as Forças Armadas, fruto de sua aproximação e de seus “herdeiros” políticos com
os movimentos populares, crescia a influência de Lacerda.
O direito de voto era outra preocupação que se achava presente no pensamento
militar de direita e guardava íntima relação com o aspecto anterior. A possibilidade de
ampliação do direito de voto também para os analfabetos colocava em pauta a discussão
sobre o perigo da maior participação política do que chamo de “não-esclarecidos”.
Estreitamente vinculado com o quadro de crise política apresentado pelos militares, o voto
dos semi-alfabetizados contribuía para o agravamento da conjuntura da época pois
viabilizava a ascensão de políticos descomprometidos com os destinos da nação. Mais de
25 anos depois do golpe, o ex-Presidente João Figueiredo reclamava que o país encontrava-

391
Caracterizando a corrente “castelista” existente no Exército, Octávio Costa afirma que ela tinha como um
de seus principais aspectos a influência do udenismo. Geisel, por sua vez, observa que Castelo era um
profundo admirador de Carlos Lacerda. O grupo nacionalista-ditatorial também nutria por ele uma admiração
significativa. Alberto Fortunato, um dos integrantes do grupo secreto que “aterrorizou a vida política do
país” através de uma série de atentados à bomba nos idos da redemocratização, assinala o empenho de boa
parte dos futuros componentes do grupo secreto em proteger a sede do governo estadual no momento do
golpe. Sobre estes aspectos ver: COSTA, Octávio. Depoimentos. In: Visões do Golpe, op. cit., pp. 81 e 82;
GEISEL, Ernesto, op. cit., p. 167; FORTUNATO, Alberto. Depoimento. A Direita Explosiva no Brasil. Rio
de Janeiro: Mauad, 1996, p. 173; e BENEVIDES, Maria V. M. A UDN e o udenismo. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1981, pp. 130 e seguintes.

149
150

se numa situação idêntica ao pré-golpe. Os escândalos continuavam, a decadência do


Congresso era visível e o “voto dos analfabetos foi um descalabro, porque a gente vê na
Câmara que não podia estar nem como chefe de uma quitanda”.393
O mesmo caminho é percorrido por Carlos de Meira Mattos, criticando o quadro
político brasileiro pré-64, onde parcelas dos “não-esclarecidos” tinham direito de voto. A
proposta “descabida” de ampliação do direito de voto para esse grupo – respaldada por
Jango – foi inclusive, segundo o General Campos do Aragão, um dos motivos para o
encaminhamento da “Revolução” pois deixava os pleitos democráticos mais “infensos à
fraude e à demagogia”, em função da fácil manipulação a que estes grupos poderiam ser
submetidos. Para os militares, numa democracia “incipiente como a nossa, onde são
chamados a pronunciar-se para escolher a sua representação, mais de 50% de semi-
analfabetos, o parlamento assim eleito não pode representar o ideal que desejávamos,
aquele em que depositamos nossas esperanças”.394
Isto acabava por desencadear a grande instabilidade política característica do
período. A ausência de instrumentos que possibilitassem a existência de um conteúdo
racional na formação destes grupos fazia com que eles estivessem repletos de conteúdo
emocional, o que tornava nebuloso o seu senso de escolha. Contribuía para que os
“inocentes úteis” fomentassem a revolução social pois, o embate de “paixões demagógicas
num povo que ainda não tem uma infra-estrutura política e intelectual sólida é o melhor
caldo de cultura para a guerra civil”.395 Faltava-lhes o grau de amadurecimento necessário
para que exercessem seus direitos políticos, encontrando-se ainda num estagio de
adolescência política pois o analfabeto “não sabe distinguir o possível do impossível”.396
Alguns pensavam que o “que conta como valor de efetiva participação do povo na
organização e no exercício do Poder é o estágio de sua evolução social, econômica e
política. O povo é apenas figura simbólica, servindo para dar cunho de legitimidade a
privilégios de reduzida minoria, ou é a fonte efetiva de todo o Poder, conforme seu grau de

392
COSTA, Octávio. Depoimento. Visões do Golpe, op. cit., pp. 81 e 82.
393
FIGUEIREDO, João Baptista de Oliveira. Depoimento. Memória Viva do Regime Militar. Rio de Janeiro:
Record, 1999, p. 189.
394
POTYGUARA, Irapoan A., op. cit.
395
FREITAS, “A situação brasileira”, op. cit., p. 72.
396
FIGUEIREDO, Sylvio de Magalhães; PAIVA, Alfredo de Almeida; & BRAGA, Antonio Saturnino. O
Poder nacional – Fundamentos e Fatores Políticos. Curso de Estado Maior e comando das Forças Armadas
proferido na Escola Superior de Guerra, p. 8.

150
151

cultura política”. Para eles o país atravessava a primeira fase. A imaturidade política
existente em parte era provocada pelo subdesenvolvimento uma vez que a “massa”,
elemento disforme, não tinha acesso aos meios científicos, tecnológicos e culturais
necessários para efetivar sua escolha política de forma a não ser explorada para atender
somente aos interesses de pequenos grupos.
“À medida que o progresso científico propaga os meios da difusão, encurta as
distâncias, intensifica os meios de comunicação e transportes e proporciona
instrução mais ampla, novos conhecimentos e educação, a massa inconsciente se vai
fazendo povo autêntico. Parcelas cada vez mais amplas da população adquirem
consciência de seus interesses, aprendem a reconhecer seus direitos, promovem
reivindicações e passam, progressivamente, a influir na organização e no exercício
do Poder. Ocorre, então, o processo de renovação dos grupos dirigentes; o povo
passa a merecer efetiva atenção, tanto dos que aspiram atingir o Poder como dos que
se obstinam em permanecer no comando. É a fase da adolescência do povo, que
quer progredir, mas ainda não sabe distinguir o possível do impossível, que sabe o
que quer, mas ainda não sabe escolher. Campeiam as promessas, cresce a
propaganda demagógica. Mas a evolução se faz sempre; mais rápida aqui e mais
lenta alhures, conforme as circunstâncias, as etnias, o meio fisiográfico, os
exemplos externos e os recursos disponíveis”.397

Nessas áreas “subdesenvolvidas”, de industrialização acelerada, a característica


política do povo era a “espontaneidade” e o “autodidatismo”, provocando o aparecimento
do pronunciamento “político-sócio-econômico, efetuado (...) por pessoas e agremiações”
que não possuíam “autoridade, responsabilidade funcional ou conhecimento técnico de
causa para o trato de matérias sobre as quais emitem julgamentos extravagantes”. Como
resultado, a tônica da opinião expressa é o radicalismo que decorre do amadorismo ou do
dirigismo da propaganda”.398 Tornava-se urgente viabilizar o alcance dos “objetivos
nacionais”, “regenerarando”, dentre outros aspectos, os costumes políticos da Nação para
permiti-la “desfrutar da tranqüilidade necessária para que em todos os setores o trabalho
seja fecundo e nos permita atingir bem depressa aos níveis de prosperidade e bem-estar

397
BRAGA, Antonio Saturnino; VIANNA, Fernando Gonçalves Reis; SÁ, Virgílio Pires de Sá; & PAIVA,
Alfredo de Almeida. “Elementos Políticos do Poder nacional”. Conferência proferida na Escola Superior de
Guerra. Curso Superior de Guerra, 1965, p. 9. Dos autores acima, somente Fernando Gonçalves Reis Vianna
era militar, sendo Capitão-de-Mar-e-Guerra. Os outros desempenhavam atividades na área do Direito. No
entanto, eram responsáveis pela Divisão de Assuntos Políticos da ESG. Antonio Saturnino Braga (Procurador
e chefe da Divisão de Assuntos Políticos - ESG); Capitão-deMar-e-Guerra Fernando Gonçalves Reis Vianna
(Adjunto da mesma divisão); Virgílio Pires de Sá (Bacharel e Adjunto da Divisão de Assuntos Políticos); e
Alfredo de Almeida Paiva ( Advogado e Adjunto da Divisão de Assuntos Políticos).

151
152

social que todos almejamos”.399 Elemento característico do pensamento militar de direita


era uma visão limitadora e paternalista acerca da participação popular na vida política do
país. A questão da ampliação da participação política assume um segundo plano, uma vez
que eles admitiam a existência de uma democracia a partir do momento em que as
condições necessárias para sua implementação, livre da desordem e da ação subversiva,
tivessem sido alcançadas. Arrogava-se, portanto, o estabelecimento de um governo
composto por técnicos, ilustrados e que por “profissão, categoria ou natureza associativa”
teriam “autoridade, responsabilidade funcional ou conhecimento técnico de causa”400 para o
trato de matérias do Estado.
Definitivamente a escolha dos representantes máximos do país não caberia aos
“não-ilustrados”. Tratava-se de importância fundamental privar de emoção e prover de
racionalidade o sistema político. Se não cabia a eles o direito de participação política, a
quem cabeiria?
“Não resta dúvida de que a escolha tem que ser da elite. A elite é que, em todos os
países, orienta as massas. (...) Agora, tem que haver uma elite legítima. Mas é elite.
Porque a elite é que tem o esclarecimento. Como é que o senhor quer, por exemplo,
que uma pessoa simples, muito mal-alfabetizada, do interior do Brasil, saiba qual é
o melhor nome para presidente da República? Não sabe. O senhor que lê jornal todo
dia, que acompanha, pode saber. Então o que acontece? Acontece que os candidatos
são candidatos de emoção. Determinados líderes conseguem sensibilizar a emoção
nacional”.401

Somente as elites possuiriam os instrumentos necessários, racionais, para o direito


de participação, uma “infra-estrutura política e intelectual sólida”, a fim de restaurar a
“autoridade” e a “confiança” necessárias para se governar o país e de alcançar a
“moralidade político-administrativa” que viabilizasse a consecução dos objetivos nacionais.
Porém que elites eram estas? A quem caberia o dever e o direito de orientação da
nação brasileira de forma a conduzi-la na obtenção da estabilidade política e da
democracia? Que critérios seriam utilizados para caracterizar o grau de legitimidade desta
elite de forma a estabelecer o seu papel de liderança? Esses eram os aspectos que

398
FIGUEIREDO, Sylvio de Magalhães; PAIVA, Alfredo de Almeida; & BRAGA, Antonio Saturnino. O
Poder nacional..., op. cit., p. 19.
399
Editorial da Revista A Defesa Nacional, n° 576 e 577, de julho e agosto de 1962.
400
FIGUEIREDO, Sylvio de Magalhães; PAIVA, Alfredo de Almeida; & BRAGA, Antonio Saturnino. O
Poder nacional – Fundamentos e Fatores Políticos, op. cit., p. 19.
401
MATTOS, Carlos de M.. Depoimento. Visões do Golpe, op. cit., pp. 121 e 122.

152
153

distanciavam os militares de direita entre si no que se refere ao tipo de organização política


almejado. Assinala Maria Helena Alves, quanto este distanciamento, que
“(...) os setores da coalizão de poder encarregados da manutenção da segurança
interna cada vez mais consideravam seus objetivos em contradição com os daqueles
setores mais preocupados com a necessidade de institucionalizar o Estado em bases
mais permanentes de aprovação popular. (...) O setor da ESG/IPÊS tinha
consciência de que a força, empregada exclusivamente, é contraproducente como
base de um Estado estável. Isto, entretanto, entrava em antagonismo com as
políticas necessárias a aplicação da Doutrina de Segurança Nacional. Foi esta a
mola propulsora do conflito permanente entre os dois grupos dentro do Estado”.402

Tal como Maria Alves, boa parcela da historiografia assinala que a divergência
entre os nacionalistas-ditadoriais (considerados por eles como duros) e os
internacionalistas-autoritários (moderados) restringiu-se à fase posterior ao golpe no que se
refere a dois aspectos: quanto às bases de legitimação do novo regime e quanto aos
mecanismos e graus de repressão. Longe de discordar destes aspectos, considero que as
diferenças já se apresentavam delimitadas no período anterior ao movimento de 1964 e não
se restringiam unicamente quanto ao campo político, tal como assinalado anteriormente.
Mais do que isso, considerar que somente estas diferenças pautavam os debates
estabelecidos a partir de então significa não levar em conta o grau de participação efetiva
de parcelas da sociedade civil e política no período compreendido entre 1964 e 1984.
Como um dos componentes do sistema político, mais especificamente da arena
estatal, os militares apresentaram-se durante a deposição de João Goulart e, posteriormente,
durante boa parte do regime autoritário estabelecido por mais de 20 anos, tão somente na
liderança de um projeto político que atendia aos interesses de uma parcela significativa das
direitas. Coube a eles esse papel devido à necessidade de imposição de um projeto de
sociedade que tinha como elemento fundamental a exclusão da participação política,
econômica e social de boa parcela da população, o que não poderia concretizar-se sem o
recurso daquele grupo que exercia o monopólio do uso da força – as Forças Armadas – e,
em particular e desempenhando um papel fundamental, o Exército. Entendo que o regime
tornou-se efetivamente militar num curto período compreendido entre 1969 e 1974,
quando, em função do estado de saúde do Presidente Costa e Silva e amparados pelo grande
poder conferido aos militares através do Ato Institucional 5, eles impediram a posse do

153
154

Vice Pedro Aleixo e, em discussões efetivamente realizadas dentro do círculo militar,


escolheram o novo mandatário do país.403 Permaneceu assim, grosso modo, até a posse do
General Ernesto Geisel, quando a participação civil no regime autoritário retornou ao
padrão de uma democracia limitada característico do período 1964-1969.
O papel de liderança, e não de hegemonia, exercido durante o período não
descaracteriza a existência de inúmeras divergências que pretendo apontar. Quanto a isto o
depoimento do General-Presidente Ernesto Geisel é um importante indicativo. Discorrendo
sobre o contexto da posse de Castelo Branco como presidente, e perguntado sobre a
articulação de políticos e empresários em torno da eleição, ele respondeu:
“A ação dos políticos verificou-se mais tarde. Juarez pugnava pelo Castelo, e depois
os políticos, vendo que o escolhido não seria um deles, aderiram. Castelo era um
admirador do Lacerda, era um lacerdista. Magalhães Pinto ia ao gabinete do
Castelo, no Estado-Maior do Exército, para conversar. O fato é que havia rivalidade
entre os governadores, todos com suas ambições, e no fim todos eles acabaram
concordando com a escolha do Castelo. Quem influiu muito para que se escolhesse
o nome do Castelo, como já relatei, foi o general Muniz de Aragão (...). Escolhido o
Castelo, era necessário assegurar sua eleição pelo Congresso, pelo tempo restante do
período governamental, fórmula prevista inclusive para dar-lhe o cunho da
legalidade. E aí, para assegurar a maioria, foi necessário o entendimento com o
PSD. Líderes deste partido estiveram com o Castelo e o levaram para uma conversa
com o Juscelino. (...) O que de efetivo resultou dessas conversações foi a escolha do
Alkimim para a vice-presidência. Em meio a isso, Costa e Silva e os que o
acompanhavam acabaram por apoiar o Castelo porque viram que não havia outra
solução pacífica”.404

Da citação pode-se tirar algumas conclusões. Primeiro, que a escolha de Castelo


Branco tratou-se de uma opção para a manutenção da unidade do bloco golpista, pelo
menos da maior parte. Não por ser um nome de consenso, mas por ser aquele que menor
resistência encontrava entre os diversos grupos. Era uma das poucas opções para não
dividir o movimento e não dar oportunidade para o grupo mais militarista que participou do
golpe. Segundo, a posse de Castelo como presidente necessitou de um respaldo legal pelo
Congresso Nacional que, em sua maioria, havia concordado com a decretação de vacância
da presidência da República mesmo com a comprovada presença de João Goulart no

402
ALVES, op. cit., p. 95.
403
Sobre as discussões referentes a esse aspecto uma série de documentos existentes na Fundação Getúlio
Vargas, acervo de Antonio Carlos Muricy, são elucidadores: Série Atuação Político Militar (1936-1979).
404
GEISEL, Ernesto, op. cit., pp. 167 e 168.

154
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território nacional. Portanto, um Congresso também golpista, o que reforça a idéia de que
1964 não foi apenas um golpe militar mas também parlamentar. Terceiro, para vice-
presidente escolheu-se um civil, que desse representatividade aos outros grupos
participantes do golpe. Liderança, e não domínio absoluto do processo, é o que marca
aquela fase. Outro indicativo da participação política na escolha de Castelo foi o fato de que
algumas lideranças políticas levaram-no a um contato com Juscelino. Quarto, alguns
entendiam que a liderança militar acabaria com o simples afastamento de Jango, não se
incluindo assim nem entre “moderados” nem entre “duros”. Dentre eles, apresentavam-se
principalmente representantes da classe política, segundo a citação. Existia uma
discordância mesmo entre os internacionalistas-autoritários das Forças Armadas e boa
parcela dos grupos que apoiaram o golpe, mas em nome de uma necessidade conjuntural, a
liderança reservou-se aos militares. Esta divergência acabou por manter-se no governo de
Costa e Silva em função de uma pressão crescente dos militares na vida política do país.
Octávio Costa assinala:
“O movimento militar de 1964 foi empolgado por duas vertentes: uma castelista,
intelectual, profissional, udenista (ou seja, de admiração pelo Lacerda). Acho que
essa vertente via aquela intervenção sob a forma pretoriana, o que quer dizer:
normalizada a situação, os militares passariam o governo aos civis. Tanto assim que
o Castelo queria que seu mandato fosse apenas a terminação do de Goulart. Talvez
por isso os políticos tenham sido estimulados a se candidatar (...) porque todos
sabiam que na ótica do Castelo a presença dos militares seria passageira. A outra
vertente, a que estava em volta do Costa e Silva, era mais revolucionária, mais
radical. Eram aqueles que apareciam na televisão ao lado do ministro atrás de umas
bandeiras e dos dizeres ‘Comando Supremo da Revolução’. Foi essa vertente que
conduziu o movimento militar de 1964 ao militarismo (...)”.405

Considero, portanto, que as divergências entre nacionalistas-ditadoriais e


internacionalistas-autoritários não contempla a totalidade das divergências entre os
diferentes segmentos da coalizão golpista e ainda que o debate entre ambos não se
limitavam aos aspectos políticos. No entanto, elas tomaram realce significativo no período
pós-64 graças à posição de destaque a que foram alçados os militares de direita. Mesmo
entre estes existiam ainda uma multiplicidade de facções mas que não são abordadas aqui
em função de opções metodológicas que visam enfocar os grupos que alcançaram mais
destaque naquele momento.

155
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A maior parte dos nacionalistas-ditadoriais tinha como característica fundamental a


defesa de um prolongamento da vida política do país sob comando dos militares. Existiam
aqueles que tinham por característica fundamental “o radicalismo, a arbitrariedade, a
intransigência, e pela adoção de meios e processo violentos de intimidação e coação”,406
cuja violência na busca pelo reordenamento do país e a convicção de que o momento era
propício para transformações profundas os levava para a idéia de que o tempo de
intervenção na vida política do país deveria ser prolongado. O grupo levou a extremos a
idéia difundida pela ESG de que o país estava em plena guerra revolucionária, motivo pelo
qual era “profundamente anticomunista e intolerante contra toda e qualquer tendência que
lhe parecesse socializante”.407 Defendiam a proposta, antes de 1964, de “instalar um regime
forte, ditatorial, que limpasse a sociedade e impedisse de uma vez por todas que o país
voltasse aquele estado”408 e, posteriormente, onde “a revolução de 1964 não seria uma
revolução como todas as outras anteriores, porque agora haveria mudanças profundas”.409
Entendo que se deve incluir nesse grupo também aqueles que se apresentavam
defensores de uma intervenção prolongada da vida política com o objetivo do retorno à vida
democrática de forma segura. Não que fossem partidários da ditadura militar por si só, mas
porque entendiam que o retorno à normalidade política somente poderia dar-se a longo
prazo. Valorizavam a democracia (parcial), mas não naquele momento. Pensavam assim
mais porque nutriam um profundo desprezo pela classe política, e entendiam que sua
renovação não seria algo imediato. O quadro político encontrava-se nebuloso na
perspectiva desses militares. Além da fraude e da corrupção, da existência de um embate
político radicalizado, existiam pressões por ampliação da participação popular que
conturbavam ainda mais o cenário. Tornava-se necessário uma intervenção cirúrgica e uma
recuperação prolongada do “paciente”. Os políticos, para eles , perdiam-se na discussão de
interesses particulares.
Esse desprezo pelos grupos dirigentes do país era um aspecto comum entre aqueles
defensores da intervenção prolongada. Existia uma “presença política medíocre, devido a
incapacidade das classes políticas dirigentes”, segundo Carlos de Meira Mattos, que

405
COSTA, Octávio. Depoimento. Visões do Golpe, op. cit., pp. 89 e 90.
406
REIS, Gustavo, op. cit., p. 54.
407
COSTA, Octávio, op. cit., p. 95.
408
GONÇALVES, Leonidas Pires. Depoimento. Visões do Golpe, op. cit., p. 225.
409
COSTA, Octávio, op. cit., p. 95.

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inviabilizava um regime democrático. Por vezes a desvalorização da vida política chegava


ao extremo, existindo a proposta de implementação de uma ditadura baseada num
messianismo militar mais intenso. Por outras, o que se colocava era a contextualização de
um quadro de extrema dificuldade política, no qual se fazia-se necessária a intervenção.
Militares como os Generais Ayrton Salgueiro de Freitas, José Campos do Aragão e Irapoan
de Albuquerque; os Tenentes-Coroneis Ernani Ayrosa da Silva, Jayme Moreno e Adyr
Fiuza de Castro; o Capitão-de-Mar-e-Guerra Sylvio de Magalhães Figueiredo e João
Baptista Vianna; e o Coronel-Aviador Geraldo Lébre fazem parte desse grupo. Vinculados,
portanto, ao nacionalismo-ditatorial.
Argumentavam que o debate político apresentava-se estéril e dificultava a arrancada
do Brasil para o desenvolvimento bem como a manutenção da ordem interna. Faltava
“infra-estrutura política e intelectual”, destruindo a autoridade e provocando uma “crise de
confiança que abatia o país”. A solução que se colocava era a imposição de um governo
imune às pressões políticas, contínuo e com objetivos bem delimitados que eliminassem
“desonestidade” e “incompetência” do sistema político e debelasse a crise de confiança
que levava à inércia as “nossas atividades e iniciativas”. Tratava-se, desta forma, de
construir uma nova concepção de governo onde este seria visto não como o “governo de
determinadas pessoas, que começa dia tal e termina ano tal”, mas sim como “instituição
permanente” e com “rumos em matéria econômica que independam de situações
políticas”.410
O desencontro entre poder político e econômico era um aspecto que agravava a
situação. De um lado, uma elite “econômica e industrial” que havia evoluído
“relativamente aos conhecimentos básicos da ciência e das técnicas-funcionais”. Já a elite
política, “com exceções relevantes, conservou-se defasada em relação à Ciência Política”.
Existia a necessidade de ampliação dessa elite política evoluída, tal qual a existente no
meio econômico, de forma a possibilitar ao país a sua adequação à realidade do momento,
pois a
“(...) proporção quantitativa com que essa elite ‘política’ qualificada se apresenta
nos quadros partidários e nos legislo-executivos governamentais não é ponderável,
não proporcionando, outrossim, ao povo, uma escola de democracia para a
politização e evolução de uma cultura política democrática patrioticamente
410
FREITAS, Ayrton Salgueiro de. “A situação brasileira”. In: A Defesa Nacional, n° 582, fevereiro/1963, p.
72.

157
158

sadia”.411

O desacerto entre poder econômico e poder político desdobrava-se numa situação


subversiva, pois estas
“(...) tornam-se praticamente inevitáveis, quando existe um certo número de
condições ou ingredientes apropriados, que também são tantos fatores, para que
elas se desencadeiem. (...) Situações tais como: discrepância entre a distribuição de
poder político e a distribuição de poder econômico e social, recusa de uma velha
elite em aceitar uma nova elite que surge em conseqüência de uma evolução
acentuada, recusa pela elite estável em aceitar reformas desejadas por uma nova
elite (...)”.412

Entendem que a vida política pertence a uma minoria esclarecida à quem caberia a
interpretação da vontade popular e atender aos seus anseios para que a “massa” não
buscasse suas próprias aspirações, mas sim àquelas que atendessem ao conjunto da
sociedade. Da mesma forma deveria proceder a classe política enquanto elite, buscando
responder aos interesses coletivos e não aos particulares. Enquanto o sistema político não
estivesse espelhando fielmente a realidade social e econômica era porque não funcionava a
contento e impossibilitava a verdadeira representatividade popular, fazendo com que o
povo buscasse também o interesse próprio.
“Quando assumem aspecto negativo os fundamentos e fatores que traduzem os
poderes político, econômico ou psicossocial, isto faz avultar o campo militar e seus
fatores, ou o poder militar. Nestes momentos ele passa a ser empregado
praticamente como força, para manter a realidade nacional, mas em verdade esta
força é apenas uma síntese transitória do próprio Poder nacional, pois é ele que deve
estar presente desta forma para impor a vontade nacional. Por outro lado, quando se
encontram desenvolvidos em alto grau e fortes os fatores dos campos político,
econômico e psicossocial, observa-se retração do poder militar, limitado apenas
pelas circunstâncias da política internacional, que ditam então as reais exigências de
tal ou qual valor para o poder militar disponível ou realizável. (...) No que concerne
ao Campo Político, seus fundamentos e fatores devem proporcionar uma estrutura e
ações tais que assegurem, na evolução da dinâmica em qualquer momento, a
liberdade individual com a ordem social assegurada e esta configurada na
autoridade do governo, com base na legitimidade decorrente da representação
outorgada pelo povo”.413

411
FIGUEIREDO, Sylvio de Magalhães; PAIVA, Alfredo de Almeida; & BRAGA, Antonio Saturnino. “O
Poder nacional – Fundamentos e Fatores Políticos”, op. cit., p. 20.
412
Idem, pp. 18 e seguintes.
413
Idem, ibidem.

158
159

Se o sistema não funcionava, tornava-se fundamental o “poder militar” como agente


moderador, eliminador dos desencontros e desacertos da sociedade. Nesse sentido,
“(...) cabe às Forças Armadas, ainda durante alguns anos, por constituírem uma
elite, pela sua relação constantemente doutrinada no seu espírito patriótico, liderar e
orientar as medidas que, adotadas, garantirão a coesão indispensável à nossa
sobrevivência, a conservação da nossa soberania, dos nossos ideais democráticos, de
liberdade e de crença que são o apanágio das nossas aspirações”.414

A política caberia às elites. No entanto, em função do grau de ausência de


representatividade, e com o objetivo de eliminar a possibilidade de um rompimento do
tecido social, tornava-se urgente que eles, os militares, “enquanto elite”, interviessem. Por
serem estritamente “moralistas” e infensos à fraude e corrupção, e por possuírem o
desprendimento do interesse próprio, a eles caberia a tarefa de evitar a ruptura e reconduzir
o país em direção ao papel que deveria desempenhar no cenário internacional. Admitem a
existência de uma democracia, porém somente após a eliminação da desordem e da ação
subversiva. A censura teria aí um papel fundamental, reguladora e limitadora, assegurando
ao governo a consolidação de um regime que equilibrasse a ação dos grupos de pressão que
colocassem em risco a ordem institucional. O campo político teria restringido o seu grau de
atuação, cabendo a este, “principalmente, aparelhar o Estado com meios legais à altura da
magnitude da questão”.415 A violência como forma de preservação da democracia
apresentava-se, assim, justificada.
Essa “democracia” deveria ser implementada num futuro ainda não muito próximo
em função do quadro difícil que o país apresentava. Por isso, o processo “revolucionário”
deveria ser ato contínuo, “em marcha”, pois somente “no dia em que suas metas
fundamentais forem atingidas é que realmente a Revolução poderá ser catalogada como um
fato do passado”.416 Para realizar tal tarefa os militares não podiam prescindir de nenhum
grupo que pudesse efetivamente contribuir para a consolidação de uma “verdadeira
democracia”. As elites teriam um papel de assessoria, secundando “o Governo os

414
POTYGUARA, Irapoan de Albuquerque. “Defender-se? Contra quem? Por quê? E como?”, op. cit., pp. 53
e 54.
415
LÉBRE, Geraldo; SILVA, Ernani Ayrosa da; CARDOSO, Alberto de Assumpção; & MORENO, Jayme
“A Guerra Revolucionária”, op. cit., p. 32 e 33.
416
ARAGÃO, José Campos de. A revolução em marcha. Conferência feita na Faculdade de Filosofia da
Universidade Santa Maria como encerramento das comemorações do 1° aniversário da Revolução. In: A
Defesa Nacional, n° 601, maio e junho de 1965, p. 12.

159
160

representantes das classes mais favorecidas, dando oportunidades reais a todos que
cooperam, neste ou naquele setor, para a riqueza coletiva”,417 ou seja, as classes produtoras.
A perspectiva de democracia dos nacionalistas-ditadoriais possuía uma ênfase significativa
quanto ao seu aspecto social, ou seja, que viabilizasse a redistribuição das vantagens
proporcionadas pelo processo de industrialização do país. Para que o bem-estar se
concretizasse, a ordem era algo de fundamental importância.
Quanto à classe política, por sua vez, observa-se a necessidade ora de sua
regeneração – o que apenas se daria a longo prazo –, ora de seu afastamento definitivo. Por
tal motivo, este “partido militar” apresentava-se sem grandes articulações ou contatos
políticos. Alguns chegam a apontar, diante da convicção da impossibilidade de regeneração
do sistema político, que o correto seria “acabar com os políticos, com a Câmara, com o
Senado, acabar com tudo”.418 Pode-se afirmar que o grupo que reivindicava o expurgo da
classe política na direção do país era composto por aqueles radicais que, a partir de 1968 e
por mais de dez anos, encaminharam uma série de atentados terroristas tendo como alvo a
oposição articulada contra o governo sob a justificativa de que não existiam meios
disponíveis que o tornassem forte o suficiente para a eliminação da ameaça comunista e no
ataque à corrupção. Eram, portanto,
“(...) mais radicais na operação limpeza. Era um pessoal mais puro, ainda não
deteriorado, que não se compadecia de maneira nenhuma com manobras políticas.
Os políticos fazem manobras, transigem. E creio que tem que ser assim. Mas falar
em transigência para um capitão ou para um major é coisa muito difícil”.419

Outro grupo de militares de direita caracterizava-se por um tipo de análise


contextual diferenciada. Para eles o quadro político-partidário apresentava-se também
corrompido. No entanto, muito mais devido aos desvios que o voto dos semi-alfabetizados
provocava do que em função de um quadro político-partidário degenerativo. René Armand
Dreifuss aponta a existência desse grupo responsável por boa parte desse vínculo e que, por
“coincidência”, foi o articulador e criador da ESG, grupo em que se destacam Ernesto
Geisel, Aurélio de Lyra Tavares, Jurandir Bizarria Mamede, Heitor Almeida Herrera,
Edson de Figueiredo, Geraldo de Menezes Cortes, Idálio Sardenberg, Belfort Betlhem, João

417
LÉBRE, Geraldo; SILVA, Ernani Ayrosa da; CARDOSO, Alberto de Assumpção; & MORENO, Jayme
“A Guerra Revolucionária”, op. cit., p. 35.
418
CASTRO, Adyr Fiuza. Depoimento. Visões do Golpe, op. cit., p. 164.

160
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Bina Machado, Liberato da Cunha Friedrich, Ademar de Queiroz e os Generais Cordeiro de


Farias e Juarez Távora.420 Outros militares como os Tenentes-Coronéis Octávio Costa, João
Perboyre de Vasconcelos e Leonidas Pires Gonçalves; o Major José Luis Pinheiro Netto; e
o General Antonio Carlos Muricy, dentre outros, embora não possuíssem ligações com o
sistema político-partidário ou mesmo orgânicas com a classe empresarial, também estão
incluídos na corrente internacionalista-autoritária.
Os que eram contrário até mesmo à eliminação temporária da vida política eram ao
mesmo tempo contrário ao estabelecimento de uma ditadura militar. Entendiam que o
tempo de intervenção deveria ser pequeno para possibilitar a continuidade do processo
democrático. Segundo afirmam alguns, tornava-se necessário não apenas encaminhar
algumas reformas políticas e econômicas, mas também as sociais, dada a necessidade de
contenção da propagação do comunismo no país. Confiavam que num sistema infenso às
fraudes poderia estar a solução para a democracia brasileira. Era necessário apenas a sua
depuração para eliminar os corruptos. João Perboyre, Oficial de Estado-Maior, assinalava,
já em 1963, que caso a intervenção ocorresse, deveria se limitar à uma solução terapêutica,
pois o “emprego da força, quando obrigado pelas circunstâncias, vai significar apenas uma
contemporização para que se dê tempo ao processamento das medidas de base
preconizadas”.421
Entendiam que a corrupção era que proporcionava o avanço do comunismo,
desorganizava o país e possibilitava o radicalismo. Muricy, em entrevista concedida a um
canal de televisão, afirmava que o movimento não foi feito contra as esquerdas, mas contra
a extrema esquerda, o comunismo, “foi feita contra a corrupção que, sem ser da esquerda,
desorganiza, avilta, empobrece o país e permite a implantação do comunismo”. Quanto às
esquerdas, assinalava que “os chefes sabem perfeitamente que contra eles se levantaram
elementos de várias naturezas.” O primeiro é o comunismo que deve ser destruído. O
segundo é o peleguismo, “é o elemento básico da desagregação, o elemento corrupto, é o
elemento que procura dominar as massas para fins escusos”. O terceiro é o grupo dos
acomodados.

419
Idem, p. 165.
420
DREIFUSS, René A.. 1964: A conquista... op. cit., p. 78.
421
VASCONCELOS, João Perboyre de. “A Guerra Revolucionária”. In: A Defesa Nacional, n° 582,
fevereiro/1963, p. 29.

161
162

“E finalmente o último grupo. São os homens da chamada esquerda, são os homens


que sentindo os problemas sociais do Brasil, como o problema agrário, procuraram
sincera e lealmente lutar por esses pontos, mudar a estrutura em benefício desses
sofredores, mesmo se ligando a comunistas e pelegos ou, pelo menos tolerando-os.
Esses homens são homens que podem ter nos combatidos, embora sem idéias
subversivas, mas são homens que nós devemos respeitar e quando verificarmos que
se afastaram de seus aliados devemos utilizá-los, como disse o General Castelo. São
homens da esquerda não de fancaria, não são falsos nacionalistas, são homens que
realmente desejam o bem-estar dos que necessitam apoio”.422

Portanto, um grupo muito mais flexível no relacionamento com os grupos de


esquerda ou com os legalistas. Considerava, inclusive, que o sistema político vigente era a
forma de encaminhar as reformas necessárias. Octávio Costa critica a pregação civilista
afirmando que o militarismo não era a proposta das Forças Armadas brasileiras. Ao mesmo
tempo faz uma advertência para aqueles que se apresentavam como partidários do
militarismo exagerado, assinalando que era necessário não exagerar nos “seus méritos na
vitória da revolução – que foi uma vitória coletiva – e (para que) continuem cumprindo
anonimamente o seu dever”. Não deveriam se arrogar “em árbitros infalíveis de todas as
questões” mas contribuir “para o mais rápido fortalecimento do poder civil.”423
Castelo Branco era um dos expoentes desta corrente e buscava “limitar, ao mínimo
indispensável, a participação de militares na vida pública”, posição considerada correta por
Leonidas Pires Gonçalves. Assinalava a vocação democrática do povo brasileiro ou
defendia, como assinalava Meira Mattos, uma “sociedade democrática”, “padrões
democráticos de vida” para o povo que não se chocassem com a existência da autoridade. O
sistema eleitoral seria indireto para impedir a influência de determinados líderes que
“conseguem sensibilizar a emoção nacional”. A grande questão, segundo Coelho Netto, era
“pôr um homem decente na presidência, e ele, com gente escolhida, faria um plano para
tocar o país”.424 Em comum esses dois grupos possuíam um projeto restritivo quanto à
participação política que, em maior ou menor grau, impossibilitaria a continuidade do
sistema político anterior e, principalmente, os avanços que ele sinalizava almejar com a
ampliação da participação política .

422
MURICY, Antonio C. Palestra do General sobre os motivos da revolução brasileira, pronunciada no canal
2 em maio de 1964. FGV - Acervo pessoal de Antônio Carlos Muricy: Série Atuação Político Militar.
423
COSTA, Octávio F. da. “Compreensão da Revolução Brasileira”, op. cit., p. 74.
424
NETTO, José L. C. Depoimento. In: Visões do Golpe..., op. cit., p. 191.

162
163

A questão social e a propriedade privada


“(...) a demagogia eleitoral transformou o sentido de
justiça social, como meio de obtenção de vantagens e posições
políticas”.
General Adalardo Fialho

“A tão discutida Reforma Agrária, se bem discutida e


melhor executada, não deveria prestar-se como bandeira a
reivindicações de classes e exploração política.”

General Jayme Graça

Os problemas sociais que afetavam o país preocupavam profundamente a classe


militar, fosse pela constatação efetiva da necessidade de implementação de reformas, fosse
pela preocupação com a manutenção do poder. Relacionados com a ampliação dos direitos
sociais e vinculados à discussão sobre o acesso à propriedade privada, a questão social
manifestava-se pelo amplo debate em torno da legislação trabalhista e da reforma agrária.
Esses aspectos guardavam grande importância no período em questão pelo grau de
mobilização a que se estavam encaminhando parcelas significativas da população e por
mexerem de forma direta em interesses fundamentais da elite. O papel ativo dos sindicatos
de trabalhadores urbanos e o caráter articulador das ligas camponesas na defesa do interesse
desses grupos apresentavam-se, para os militares, sob a forma de um radicalismo crescente.
De outro lado a perspectiva de efetivação da reforma agrária colocava-se cada vez
mais na pauta do dia. Segundo Teixera da Silva,
“Desde 1961, dá-se a agudização da crise de abastecimento, com uma inflação
crescente, o que ocasiona motins populares no Rio de Janeiro, com saques a
empórios e armazéns; ao mesmo tempo, ao longo de 1962, o governo é pressionado
a dar uma resposta eficaz à questão agrária, que ademais pressiona para o alto os
salários, comprometendo o projeto de industrialização”.425

A preocupação dos militares com esses aspectos era respaldada pela Doutrina
Militar então propagada no seio das Forças Armadas. O extremismo de determinados
movimentos sociais, dispostos a implementarem, por exemplo, a reforma agrária na “lei ou
na marra”, colocavam em pauta a idéia de que os laços sociais começavam a sofrer
corrosão. A Doutrina de Segurança Nacional ganhava força na medida em que colocava
como elemento fundamental a manutenção da ordem para que o país pudesse continuar no

425
SILVA, Francisco C. T., op. cit., p. 284.

163
164

curso da obtenção de seu espaço como grande nação. A idéia era de que os campos político,
econômico, militar e psicossocial, como partes integrantes do “Poder nacional”,
partilhavam das responsabilidades “de assegurar a cobertura necessária à consecução ou
manutenção dos Objetivos nacionais”, que tinham, como um de seus principais aspectos, a
intenção de desenvolver o país como potência. Contudo, esses aspectos ganhavam nova
dimensão dentro do quadro de Guerra Fria e pelo que consideravam como propagação
soviética da guerra revolucionária. O embate internacional refletia-se internamente não
somente no campo militar mas também nos demais campos do Poder Nacional. Isto tornava
ainda “mais nebuloso e complexo o problema da Segurança Nacional, exigindo maior
flexibilidade para o seu devido equacionamento”.426 Neste sentido, a segurança nacional se
“estabelece em todos os campos do Poder e exige a participação integrada dos
mesmos. Não é uma exclusividade do Poder Militar. As ações de caráter político,
econômico e psicossocial assumem tal importância que, muitas vezes, invalidam
completamente as possibilidades militares. (...). O desenvolvimento da Política de
Segurança Nacional (...) exige obviamente a montagem de um elaborado
planejamento, cuja finalidade é estabelecer e coordenar as ações estratégicas
específicas e de apoio, a desenvolver pelos diversos campos, dentro das linhas
mestras fixadas pela aquela Política”.427

A questão social ganhava, portanto, nova dimensão através do quadro geral de


Guerra Fria. O campo “psicossocial”, onde as influências ideológicas sobre os movimentos
sociais se manifestava, passava a ter um importante papel na consecução dos “objetivos
nacionais” na medida em que poderia afetar diretamente a manutenção da ordem. Como
um dos campos que incidiam sobre o Poder Militar, estava intimamente relacionada com o
problema da segurança nacional. A submissão da questão social à manutenção da ordem era
um aspecto que perpassava toda a direita militar. Tratava-se de criar mecanismos de coesão
que evitassem o rompimento do tecido social. O que deveria ser feito era “visar à
instalação de um sistema de proteção cujo objetivo principal é assegurar a capacidade de
luta, pelo fortalecimento da estrutura social e pela integração dos grupos que a

426
FROTA, Sylvio Couto Coelho; GONÇALVES, Yves Murillo Cajaty; CARVALHO, Ferdinando de.
“Aspectos militares da Segurança Nacional”, op. cit., p. 5.
427
Idem, p. 6.

164
165

compõem”.428 A integração social era de fundamental importância e a questão que se


colocava era “desenvolvimento ou anarquia”.
Existiam duas formas de encarar a questão social entre os militares. Numa delas, o
movimento comunista aparecia aproveitando-se de uma situação de debilidade da sociedade
para insuflar uma situação de insurgência revolucionária. Embora esta perspectiva fosse
adotada, em boa parte, pelos nacionalistas-ditatoriais – tais como Ferdinando de Carvalho,
Herick Caminha, Walter Sirqueira, Primo Nunes e Campos do Aragão – ela não era
exclusividade destes. Moderados como Muricy e Octávio Costa também partilhavam desta
forma de perceber a realidade na qual existia um reconhecimento das profundas
desigualdades e da catalisação deste descontentamento, gerado pela situação em questão,
pelo movimento comunista.
“Essa crise tradicionalmente da América Latina, historicamente exacerbada pela
exploração colonialista, pela insensibilidade das classes dominantes e pela
irresponsabilidade e corrupção dos governos, apóia-se hoje principalmente no
agravamento crescente do desequilíbrio entre o explosivo crescimento populacional
e a precariedade do sistema econômico-social. A facilidade com que se
propagou a chama revolucionária no Continente explica-se, não apenas pela
eficiência dos processos adotados por agentes de comunização mas, em grande
parte, pelo anseio dominante nos povos de libertar-se dessa opressiva contingência e
de emergir em uma esfera de compreensão e felicidade”.429

A incompreensão e incapacidade das elites em perceber a situação de extrema


desigualdade social é que possibilitavam a expansão do comunismo desencadeando o
desejo pela libertação social por parte de uma parcela significativa da população. A
contradição existia e era profunda, sendo instrumentalizada pelos comunistas para alcançar
seus objetivos de disseminação da guerra insurrecional, conforme apontado acima por
Ferdinando de Carvalho. Os problemas apresentavam-se facilmente explorados
politicamente pelos “agentes da subversão”, principalmente em regiões nas quais eram mais
profundos. Campos do Aragão assinala que isso ocorria no caso do nordeste, onde as ligas
camponesas eram o sinal mais claro da manipulação, provocando a possibilidade de
repetição do fenômeno cubano numa região onde existia uma “verdadeira revolução em
marcha”. Tornava-se necessário a criação de condições para a consolidação da democracia

428
CAMINHA, Herick Marques; PAES, Ismael da Motta; & SOUTO, Paulo Emílio. “A Estratégia Nacional”,
op. cit., p. 22.
429
CARVLAHO, Ferdinando de. “A Guerra Revolucionária comunista no Brasil”, op. cit., p. 40.

165
166

no país pois, “a verdadeira Democracia, exige, como apoio incondicional, justiça social
para que haja iguais oportunidades para todos”,430 com a criação de uma estrutura
verdadeiramente em condições de atender a grande parcela que hoje é desassistida.
Espaço privilegiado para a atuação dos comunistas, segundo entendiam os militares
de direita, o movimentos sociais urbano e rural adquiriam importância uma vez que
poderiam afetar diretamente na manutenção da ordem. Para Herick Caminha, por exemplo:
“Os desequilíbrios socioeconômicos dão origem a um permanente estado de tensão
social, agravado pela penetração ideológica de origem externa, ameaçando a
unidade nacional, o regime e a paz social, podendo culminar em comoções
intestinais graves”.431

Esses militares de direita reconhecem a existência de diferenças e de problemas


sociais. Defensores da obtenção de uma justiça social nem por isso desconsideravam a
“influência” que o movimento comunista exercia junto a grupos da sociedade civil que a
reivindicavam. Afirmavam que o comunismo aproveitava-se das desigualdades sociais para
difundir-se no país. Segundo o Tenente-Coronel Walter M. de Sirqueira, a correção das
injustiças cometidas pelo liberalismo, onde funcionava a lei do mais forte, era de
fundamental importância para a contenção do comunismo. No artigo “Havia Perigo” afirma
que, quando Marx e Engels iniciaram a pregação do comunismo, o mundo vivia a época do
liberalismo absoluto. Era a vigência da lei do mais forte. No entanto, naquele momento
“nós sabemos que isto foi corrigido” uma vez que o Estado interferia “nas relações
econômicas entre Capital e trabalho”. Mesmo assim, ainda existiam razões para a utilização
desse argumento pelos comunistas “no campo das relações entre patrões e empregados, na
questão do direito de propriedade e particularmente no que concerne às relações entre
nações desenvolvidas e subdesenvolvidas”. Assinalava que muitas conquistas ainda
deveriam ser obtidas e que elas poderiam ocorrer “sem deslocamento para a extrema
esquerda”. Reconhecimento da questão social, necessidade de seu enfrentamento evitando a
presença do radicalismo eram questões fundamentais uma vez que “a Nação espera um
esforço supremo que nos conduza à posição de País desenvolvido”, o que somente ocorreria

430
ARAGÃO, “Nordeste: uma interrogação...”, op. cit., p. 9.
431
CAMINHA, Herick Marques; PAES, Ismael da Motta; & SOUTO, Paulo Emílio. “A Estratégia Nacional”,
op. cit., p. 22.

166
167

se “nos livrarmos do comunismo”.432 A “integração econômica deverá prosseguir a


integração social” que, segundo Primo Nunes de Andrade, já havia sido “iniciada pela
legislação trabalhista”, devendo-se espalhar pelo meio rural, “concomitantemente às
medidas atinentes à Reforma Agrária”. Estas medidas seriam completadas pelo
“atendimento das necessidades de alimentação, de assistência médica e de educação (...). O
problema da educação sobreleva-se pela sua importância no planejamento a longo prazo do
desenvolvimento nacional”.433
Já Campos do Aragão nos artigos “Nordeste: uma interrogação no destino do
Brasil”434 e “Antes Tarde do que Nunca” assinalava que democracia e liberdade devem ser
valorizadas dentro de um sistema onde também esteja presente a idéia de justiça social para
que houvesse oportunidades para todos. A desigualdade estaria ainda mais presente no
meio rural, onde o latifúndio agravava a situação de miséria extrema, principalmente no
nordeste, analisado por ele.
“Não se pode deixar de reconhecer o acerto do Congresso Nacional nesta hora em
que a guinada definitiva de Cuba para o mundo comunista vem de se verificar,
dando assim um péssimo exemplo para a América Latina. (...) Somos dos que crêem
que a Democracia é ainda o melhor dos regimes para os ideais do Homem
positivamente amante da liberdade. Mas a verdadeira Democracia exige, como
apoio incondicional, justiça social para que haja iguais oportunidades para
todos”.435

Uma íntima relação entre a necessidade de reformas e sua utilização política pelas
esquerdas é estabelecida por Jayme Graça, para quem elas apresentavam-se necessárias mas
sem desordens ou agitações, de forma a possibilitar a existência de um denominador à toda
a sociedade brasileira que seria a do progresso comum.
“Precisamos de reforma do ensino, de Reforma Agrária, de assistência médica e de
muitos outros empreendimentos. Reformas para melhorar e não para salvar.
Reformas para construir, jamais para fins políticos (...). A tão discutida Reforma
Agrária, se bem discutida e melhor executada, não deveria prestar-se como bandeira
a reivindicações de classes e exploração política. (...) O problema, portanto, não é
apregoar reformas com fins subversivos. É estabelecer bases sólidas e harmoniosas
para todos os ângulos da atividade nacional. A maneira de realizar reformas é
imensa e não deve dar margens para desordens e agitações (...). É preciso, como

432
SIRQUEIRA, “Havia Perigo”, op. cit., p. 21.
433
ANDRADE, Primo. “A atual conjuntura e o processo...”, op. cit., pp. 92 a 95.
434
ARAGÃO, Campos. Revista do Clube Militar, n° 159, p. 6.
435
Idem, ibidem, n° 160, pp. 5 e seguintes

167
168

primeiro passo, firmar um denominador comum que una todas as classes e todos os
interesses do povo brasileiro. Em uma palavra: é preciso estabelecer uma base para
as reformas de base”.436

Desenvolvimento e bem-estar deveriam ser obtidos através da ordem. Este era o


esquema que predominava também para esses militares. Segundo Antonio Carlos Muricy
existia o reconhecimento do desajustamento da sociedade brasileira marcado pela presença
de estruturas sociais antiquadas e que não se adaptavam às necessidades do país, “estruturas
antiquadas [que] impediam, como ainda de certo modo impedem, o desenvolvimento
econômico e social do povo brasileiro”.437 Para ele a estrutura agrária não mais
correspondia “à fase de semi-industrialização que se apresentava[m] com maior avanço no
sul, menor no nordeste”. Esta área caracterizava-se pela presença de um regime feudal de
“exploração do homem pelo homem, ausência de legislação trabalhista; falta de amparo e
apoio por parte dos governos municipal, estadual e federal”. No entanto, “é preciso
modificá-las sem choques desnecessários”.
Muricy, ao criticar as injustiças sociais pontuava, que as reformas deveriam ser
encaminhadas dentro de um quadro de ordem e disciplina social, indicando que caberia ao
Estado a posição de liderança no encaminhamento das reformas, uma vez que a questão
social era um aspecto de Segurança Nacional. Da mesma forma entendia Octávio Ferreira
da Costa, para quem, já nos idos de 1964, o novo governo buscava o enfrentamento do
problema agrário e da valorização do homem do campo com a concessão de créditos,
técnicas, mecanização, assistência social e o mínimo de desapropriações. A proposta era a
“luta pelas reformas de nossas estruturas socioeconômicas, dentro da democracia e de
acordo com a índole de nossa gente”. Para ele o tempo do governo Castelo Branco seria
suficiente para
“(...) consubstanciar as reformas essenciais: (...) enfrentará o problema agrário e
promoverá a valorização do trabalhador do campo e o aumento da produção, dando
terra aos sem terra, sem o recurso do assalto à propriedade privada, [mas]
sobretudo, ajudando aos que produzem – com crédito, com a técnica, com a
mecanização, com a assistência social – e com o mínimo de desapropriações a preço
justo. Combaterá a inflação e a crescente estatização incentivando o

436
GRAÇA, Jayme. “Base para as Reformas de Base”.In: Revista do Clube Militar, n° 162, de 1962, pp. 17 e
seguintes.
437
MURICY, Antonio Carlos. “O Brasil e seu Exército”. Série Atuação Político Militar (1936-1979). Escrito
para a revista alemã Wehr Kunde, publicada em março de 1972.

168
169

empreendimento particular bem controlado e a serviço da comunidade (...)


“Enfrentará (...) os problemas habitacional e alimentar”.438

Ferdinando de Carvalho, por sua vez, reconhece que a estrutura social encontra-se
em em estado de precariedade e opressão e que, aproveitando-se disso, o movimento
comunista incorporou a bandeira do reformismo com o argumento de que as reformas não
seriam obtidas pela via democrática. Indica que as mesmas podem ser obtidas
principalmente consolidando-se a inviolabilidade da propriedade privada e pela restauração
de um clima de segurança. Aliás, esse é um aspecto que determina o limite do tipo de
proposta de reforma agrária pensada por esses militares. A saída encontrada, “sem o
recurso do assalto à propriedade privada mas, sobretudo, ajudando aos que produzem”, era
a de expandir a fronteira agrícola do país. A tarefa que se colocava era “ocupar e
colonizar”, uma vez que apenas 15% do espaço político total do Brasil apresentava-se
ocupado. Se boa parte das terras pertencia ao Estado brasileiro e se o governo buscava
ocupá-las com a imigração estrangeira, “ porque não trazer a autocolonização dentro de
sadio plano de Reforma Agrária?”.439
A defesa que participantes desse grupo faziam da implementação gradativa de
algumas reformas, da legislação trabalhista e de preparação para o estabelecimento do bem-
estar mesmo antes de alcançar o desenvolvimento econômico apontam para a presença de
uma idéia geral de defesa da ação do Estado na questão social. Ao referendar a existência
de diferenças sociais profundas, entendiam que se tornava necessário eliminá-las
minimamente para a chegada do desenvolvimento que, enfim, lhes traria a paz social.
Tornava-se necessário intervir nas relações de mercado para corrigir suas imperfeições,
possibilitando assim o afastamento do perigo radicalizante que era a presença comunista
nos movimentos sociais.
Existia ainda uma perspectiva diversa sobre a questão social. Também aqui deve-se
observar que embora a maioria dos que adotam esta perspectiva pertença aos
inernacionalistas-autoritários – tais como Geisel, o Major Uzeda, General Adalardo, o
Capitão Sotero Vaz, dentre outros – tem-se também a presença de nacionalistas-ditadoriais
como o General Dennis, o Brigadeiro Moss e o Almirante Silvio Heck. Para estes outros

438
MURICY, Antonio Carlos. “Compreensão da Revolução Brasileira”, op. cit., pp. 68 e seguintes.
439
GRAÇA, Jayme. “Base para as Reformas de Base”, op. cit., p. 17.

169
170

militares, eram os comunistas que exacerbavam na configuração de desigualdade existente


na sociedade brasileira, estimulando ainda o aprofundamento desta na medida em que,
através de sua interferência no período João Goulart, contribuíam para a inépcia do governo
e para a disseminação da corrupção com objetivos de propagação do caos social.
Encaravam ainda a profunda desigualdade brasileira como uma fase natural, decorrente do
processo de conquista do desenvolvimento do país. O aumento da capacidade aquisitiva de
cada um tinha, como desdobramento, o processo inflacionário que perversamente atacava a
população menos favorecida. A desigualdade apresentava-se, ao mesmo tempo, como parte
do caminho a ser seguido em direção à recuperação econômica, que acabaria por sua vez
por eliminá-la. Para eles, o Brasil,
“(...) País em busca de uma rápida recuperação econômica que está exigindo
enormes sacrifícios, principalmente das classes mais pobres e humildes, em marcha
penosa e árdua para estágio superior de desenvolvimento econômico social; com
tantos e tão urgentes problemas, para reparação, até de seculares e crescentes
injustiças sociais nas cidades e nos campos, não poderá nunca o Brasil enfrentar a
dura quadra que estamos atravessando, se apoio, proteção e estímulo vierem a ser
dados aos agentes da desordem, da desunião e da anarquia”.440.

A população encontrava-se em fase de adolescência política mas não havia chegado


ainda ao amadurecimento necessário e, por isso, tornava-se possível a influência de
radicais.
“Em decorrência inevitável dessa politização popular, surge o pronunciamento
político-socioeconômico, efetuado individual ou coletivamente por pessoas e
agremiações, cuja profissão, categoria ou natureza associativa não lhes confere
autoridade, responsabilidade funcional ou conhecimento técnico de causa para o
trato de matérias sobre as quais emitem julgamentos extravagantes:
autodeterminação, reformas estruturais, estatização e privatização de empresas e
serviços, entre outras, são uma amostra dos temas, cuja tônica da opinião expressa é
o radicalismo que decorre do amadorismo ou do dirigismo de propaganda”.441

Boa parte desses militares que enxergavam a questão social como resultado da
instabilidade criada pelos comunistas apresentavam críticas ao trabalhismo, à legislação de
defesa do trabalhador então vigente e à reforma agrária. Geisel assinala, quanto as ressalvas

440
Manifesto à nação lançado pelo Marechal Odílio Denis, o Almirante Sílvio Heck e o Brigadeiro Grun
Moss, por ocasião da tentativa de impedimento da posse de João Goulart. In: Os cinco anos que abalaram o
Brasil, op. cit., p. 348.
441
BRAGA, Antonio Saturnino; VIANNA, Fernando Gonçalves Reis; SÁ, Virgílio Pires de Sá; & PAIVA,
Alfredo de Almeida. “Elementos Políticos do Poder nacional”, op. cit., p. 19.

170
171

feitas à legislação de defesa do trabalhador, que uma das principais restrições ao governo
Jango referia-se a sua política trabalhista, de excessiva ênfase à defesa dos direitos dos
trabalhadores em detrimento ao desenvolvimento do país. Além disso os vínculos que esta
posição gerava com o movimento comunista e com as esquerdas apresentavam-se por
demais perigosos. Para ele, no entanto, existia a necessidade de implementação da Reforma
Agrária, mas não nos padrões apresentados em pelo governo deposto em 1964.
A legislação trabalhista possibilitava a politicagem das reformas de base em função
do tema ser utilizado com conotações eleitoreiras e, neste sentido, para se alcançar a
“justiça social” seria necessário “que se cerque o trabalho do homem de condições e
garantias que façam dele não uma vítima da sociedade mas um elemento propulsor dela”.
As bases para se alcançar esta justiça seriam as encíclicas papais, onde não “encontramos
nada que ab-roguem deveres ou supersaturem o trabalhador de direitos”.442
A ênfase na “justiça social” defendida por eles era no reconhecimento da
humanidade do trabalhador e na sua valorização individual. A legislação era por demais
paternalista e “a demagogia eleitoral transformou o sentido de justiça social, como meio de
obtenção de vantagens e posições políticas”. O empreguismo gerado por ela onerava os
custos de produção, prejudicando o país no comércio internacional, baseado
“essencialmente na lei da oferta e da procura”. Defendendo o enxugamento das leis sociais
tomando como exemplo os Estados Unidos e o sistema de livre iniciativa, entendia que a
sociedade confundia “justiça social com desenvolvimento econômico (melhor seria dizer
com interesses eleitorais) e, por isso, estamos marcando passo”. Desta forma, o papel do
Estado seria o de criar condições para que o trabalho individual gerasse o “progresso
econômico e, com este, e como subproduto dele, o progresso social, ou melhor, a decantada
justiça social”.443
Afirmam ser necessário primeiro o desenvolvimento e sedimentação da indústria e
do comércio para em seguida obter-se melhores condições de vida “proporcionadas pelas
facilidades produzidas pelo progresso”.
“Até que consigam realizar tudo o que planejam, muitos anos se terão passado, e
também no decorrer desses anos o Brasil terá progredido muito mais, em todos os
aspectos (...). A inflação já terá diminuído em vista da estabilidade política do
desenvolvimento e sedimentação da indústria e comércio e do melhoramento das
442
FIALHO, Adalardo. “Problemas do Brasil.” In: A Defesa Nacional, n° 595, p. 1964.
443
Idem, ibidem.

171
172

condições de vida existentes, que fatalmente serão proporcionadas pelas facilidades


produzidas pelo progresso”.444

Ambos os grupos, embora com estratégias diferenciadas, indicavam que a justiça


social seria obtida. Em alguns, principalmente após o desenvolvimento econômico do país.
Prenunciava-se a famosa “teoria do bolo”, onde se tornava premente primeiro o aumento da
produção de riquezas do país para, em seguida, dividir-se pelo conjunto da sociedade. Era
o “progresso do Brasil” que iria proporcionar “uma estrutura verdadeiramente em
condições de atender a grande parcela que hoje é desassistida”, era “assegurar o bem-estar à
base do desenvolvimento harmônico da nação”.445 Apesar da presença de nacionalistas-
ditadoriais e internacionalistas-autoritários em ambas as perspectivas, pode-se assinalar
que a idéia de que as reformas deveriam ser iniciadas de imediato era predominante entre
os primeiros. Segundo eles, apesar de consolidada apenas num futuro próximo, deveriam
ser preparadas algumas reformas para atender parcialmente os anseios manifestados. Já a
teoria do bolo, na qual a questão social colocava-se para ser equacionada numa segunda
etapa, era predominante no partido internacionalista-autoritário.

444
VAZ, Thaumaturgo Sotero. “Guerrilha”. In: A Defesa Nacional, n° 593, p. 39.
445
FGV - Acervo pessoal de Antonio Carlos Murici: Série Atuação Político Militar.

172
173

Política Externa para as direitas nas Forças Armadas


“(...) a maioria dos ‘neutralistas’ parece tender para o
Bloco Comunista, já que a neutralidade real é posição que os
fracos jamais poderão manter na disputa dos fortes.”

Tenente-Coronel Hernani D’Aguiar.

“Os Estados integrantes (da coalizão militar com os


Estados Unidos), embora possuindo vários interesses comuns,
alimentam outros interesses colidentes, difíceis de conciliar sem
restrições à soberania dos participantes.”

Seminário apresentado pela equipe da Divisão de Assuntos


Econômicos da ESG – 1965.

Entre os militares de direita apontam-se duas posições referentes à política externa a


ser encaminhada pelo país. Em primeiro lugar, vinculados quase todos aos moderados, há
aqueles integrantes do grupo que apontava para a necessidade de um maior alinhamento
junto aos Estados Unidos. O Marechal Juarez Távora; os Generais Armando Villa Nova de
Vasconcelos e Antonio Carlos Muricy; os Tenentes-Coronéis José Sá Martins, M.
Potyguara e Alberto de A. Cardoso; os Coronéis Heleno Soares Castellar e Antonio de
Andrade, dentre outros, apresentam-se sob essa perspectiva.
Colocando em relevo a questão do contexto mundial então existente, caracterizado
pela Guerra Fria, assinalavam que o país tinha como um dos seus objetivos nacionais a
obtenção da autonomia política perante outras nações. Apesar de considerarem a política
externa como aspecto fundamental de soberania, a autonomia deveria ser colocada em
segundo plano. O objetivo era a obtenção de um equilíbrio de forças entre as duas
superpotências e, dessa forma, buscar a “paz mundial”. Uma vez que a União Soviética
conseguisse romper o equilíbrio de forças internacionais, através de uma ofensiva que
visava isolar os Estados Unidos no mundo, e os deixasse na condição “desesperadora” de
“sem aliados e sem amigos”, eles partiriam para a ofensiva direta e o desencadeamento do
conflito nuclear seria inevitável. O Brasil, maior país da América Latina, possuindo uma
posição estratégica fundamental no continente e como principal aliado dos norte-
americanos, cumpria um importante papel no equilíbrio de forças. O conflito mais geral
(Guerra Fria) toma uma posição privilegiada diante da necessidade de alinhamento junto
aos EUA e isso, para esses militares, não poderia ser de outra forma. A perspectiva de um
conflito mundial era grande para eles e, caso o Brasil não tomasse essa posição, acabaria

173
174

sendo alvo, como estava sendo, da disputa das duas nações que dividiam o mundo em
zonas de influência.
A conjuntura internacional impunha, portanto, a construção de compromissos
militares imprescindíveis à segurança coletiva entre povos, e um dos argumentos para
justificar esse posicionamento de maior proximidade aos Estados Unidos era porque ambos
os países irmanavam os “mesmos ideais e interesses” de contenção da expansão do
comunismo. A tensão mundial exigia um maior alinhamento dos países capitalistas sob
liderança daquela nação que se apresentava como a mais capaz para fazer frente a essa
difusão. Além disso, a debilidade econômica e os problemas de segurança internos
limitavam a capacidade ofensiva do país no cenário internacional. Não somente o Brasil
mas também todos os países subdesenvolvidos estavam “compelidos a uma atitude
defensiva até que seu desenvolvimento lhes proporcionasse liberdade de optar”.446 As
características da expansão comunista através de uma “ofensiva mundial” e da tentativa de
implementação da guerra revolucionária tornava inviável fazer frente a essa dupla
expansão. Os sistemas de alianças é que acabava por delimitar o tipo de sociedade existente
em cada nação.
Para garantir internamente a continuidade da tradição ocidental, democrática e
cristã, apresentava-se como condição fundamental encaminhar uma política externa
“inteiramente solidária com o Mundo Ocidental livre, aos qual pertence (o Brasil) por
tradição, formação espiritual e intelectual e, mesmo interesse de ordem econômica”.447 Os
Estados Unidos tinham um padrão ético a oferecer, enquanto o bloco soviético apenas
ofereceria uma ideologia revolucionária. Contraditoriamente eles colocavam que a
organização democrática era o que os colocava ao lado desses países, ao mesmo tempo que
era a sua preservação que se procurava conseguir. Já os países que haviam se colocado sob
a órbita de influência comunista acabaram, todos eles, por adotarem um padrão de
organização social “idêntico” ao existente na União Soviética, o que não poderia ser
tolerado em relação ao Brasil.

446
ARAÚJO, Antonio de Andrade. “Estratégia Econômica”. Curso de Estado Maior e Comando das Forças
Armadas - Departamento de Estudos, dezembro/1964, p. 6.
447
MURICY, Antonio Carlos. “A Escola Superior de Guerra”. Palestra proferida na 7ª Região Militar,
proferida provavelmente na década de 60, época em que o mesmo era Comandante desta região.

174
175

Outro aspecto importante que respaldava esse posicionamento de incondicional


alinhamento junto aos Estados Unidos e ao bloco democrático ocidental era a perspectiva
de uma guerra nuclear. Em face dos avanços tecnológicos militares, num conflito de
dimensões mundiais não existia a possibilidade de meio termo. O desenvolvimento de
armas de longo alcance acabaria por envolver todas as nações independentemente de seu
desejo de participar do conflito. A busca pela expansão agressiva por parte da União
Soviética através da disseminação da guerra revolucionária, aliada a sua capacidade bélico-
nuclear tornavam, segundo Armando Villa Nova, “limitada a capacidade
autodeterminadora das Nações, na fase de transição”. A Força tornava-se cada vez mais um
recurso a ser utilizado como argumento decisivo de intimidação para eliminação de
divergências. Armando Villa Nova alertava para o fato de que nesse “ambiente de tensões
permanentes, ninguém se sente em segurança, pelo encurtamento das distâncias e pelo raio
de ação das novas armas, que a todos ameaça envolver num futuro conflito de dimensões
globais”.448
Traçando uma definição sobre o que seria a Guerra Fria, Heleno Castellar estabelece
a relação entre essa agressiva ofensiva comunista e a necessidade de definição clara do
Brasil quanto à sua política externa. O oficial entendia que
“(...) podemos conceituar a ‘Guerra Fria’ como uma manobra estratégica de
envergadura mundial, orientada por uma grande potência e dirigida pelos órgãos de
sua propaganda, visando conquistar para a esfera de sua influência político-militar,
sem guerra declarada e aberta, as nações e povos que habitem as áreas geográficas
ainda não incorporadas à órbita política de outra potência”.449

Neste s entido, tornava-se clara a necessidade de uma definição por parte de uma
nação que não quisesse ser alvo das ações desestabilizadoras que acompanhavam o que eles
consideravam como uma agressiva política expansionista soviética em busca de aliados.
Uma vez que o Brasil caísse nas mãos do comunismo levaria toda a América Latina junto.
O país situava-se numa região estratégica para os dois blocos em confronto, o que tornava
mais urgente a tomada de posição.

448
NOVA, Armando Villa. A Segurança Nacional – conceitos fundamentais e sua caracterização.
Conferência proferida na Escola Superior de Guerra, Curso Superior de Guerra, fevereiro/1961, p. 3.
449
CASTELLAR, Heleno Soares. Instrução Teórica de Oficiais sobre Guerra Insurreicional. In: FGV -
Acervo pessoal de Antônio Carlos Muricy: Série Atuação Político Militar (1936-1979).

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176

“A América do Sul desfrui (...) uma posição estratégia de excepcional importância,


pois que domina todas as rotas que ligam o Atlântico ao Pacífico e pode exercer o
controle do Atlântico Sul, bem como o das rotas que ligam o Atlântico ao Pacífico.
(...) Essa privilegiada posição e as atuais condições de subdesenvolvimento e atraso
social constituem dois poderosos estímulos à ação do Comunismo Internacional.
As condições de subdesenvolvimento constituem terreno fértil à propaganda
subversiva. A conquista da América do Sul permitiria ao Mundo Comunista o
isolamento da potência líder do Mundo Ocidental, e, conseqüentemente, o domínio
do Mundo estaria à vista. (...) Se a pequena Cuba, facilmente neutralizável pelos
Estados Unidos, com uma população correspondente à décima parte da população
do Brasil e com uma extensão cerca de 8 milhões e 400 mil km quadrados inferior à
do nosso país, constitui, presentemente, séria ameaça à segurança dos Estados
Unidos, podemos admitir, perfeitamente, que o Brasil representa para o Comunismo
Internacional o objetivo capital na sua luta decisiva pela dominação do mundo”.450

Para ele, quem dominasse a América do Sul teria condições de impor ao oponente
uma situação de isolamento que, num confronto, acabaria por provocar sua derrota. A
crença na importância estratégica do continente e do Brasil não era nova. Desde a Segunda
Guerra Mundial, quando os países Aliados e os pertencentes ao Eixo disputaram o apoio
dos diversos países da região, esse aspecto passou a ser considerado pelos militares
brasileiros.451 Diante disso, a adoção de uma política externa independente tornava-se
inviável. No entanto, não era somente em função de uma agressão externa que o
neutralismo tornava-se inviável. A Guerra Insurrecional ou Revolucionária apresentava-se
como uma guerra total segundo Castellar, onde não “há meio termo, porque (...) é próprio
da revolução totalitária ser intransigente e explorar, em proveito próprio, as tentativas de
conciliação”.452 A neutralidade oferecia chances “ao inimigo”. Portanto, segundo o Coronel
Alberto Cardoso, era necessário manter “uma constante vigilância contra a atividade do
oponente em nosso território”.453
Outro aspecto importante a ser considerado por eles para inviabilizar o neutralismo
era o argumento de que URSS e China utilizavam-se do salvo-conduto das relações
comerciais ou de assistência técnica para influenciar ideologicamente uma nação. Essa

450
SILVA, Octávio Costa da. Aspectos Geopolíticos do Brasil . Conferência proferida na Escola Superior de
Guerra, Curso Superior de Guerra, abril e maio/1964, p. 26.
451
A situação e indefinição do Brasil quanto aos rumos de sua participação na Segunda Guerra até 1942
acabou por provocar a elaboração de um plano de invasão norte-americana na costa do nordeste. Devido ao
alinhamento brasileiro às forças aliadas o plano acabou por ser abortado.
452
Idem, ibidem.
453
CARDOSO, Alberto de Antonio. “Segurança e Defesa”. In: A Defesa Nacional, n° 574 e 575, maio e
junho de 1962, p. 33.

176
177

influência se daria de forma mais intensa caso houvesse uma indefinição quanto à política
externa. Para o Tenente-Coronel Hernani D’Aguiar o posicionamento dos “Neutralistas”
possibilitava a difusão do comunismo que já ocorria em todo o continente e que acabou por
adentrar em Cuba. Ameaçava, por sua vez, o Brasil através da “ação fidelista, observada
“na propaganda de certa parte de nossa imprensa falada e escrita; sentimo-la nos manifestos
dos órgãos estudantis; sentimo-la na orientação seguida pela maioria de nossos órgãos
sindicais”.454
Em decorrência existia uma inviabilidade de adoção de certa política externa
independente diante da acentuação da ameaça soviética. Para ele, “a maioria dos
‘neutralistas’ parece tender para o Bloco Comunista, já que a neutralidade real é posição
que os fracos jamais poderão manter na disputa dos fortes.”
Além disso, a política externa independente, tendo por justificativa a busca por
novos mercados, acabava, para alguns, por criar novos laços de dependência ainda maiores,
além de colocar o país numa situação “ambígua em relação ao Mundo Livre, cujas
desconfianças se avolumavam, em detrimento de nossos reais interesses”.455
Por último, mas não de menor importância, esses militares reconheciam a existência
de uma desigualdade natural entre as nações do mundo. Esta, por sua vez, acabava por
provocar alguns inconvenientes tais como a tentativa de interferência das nações mais
fortes sobre as mais fracas. Reconhecendo a desigualdade entre as nações, Juarez Távora
assinalava que
“(...) Exercemos a plenitude dos direitos de soberania nas áreas submetidas à nossa
jurisdição política, sem interferências descabidas de outras nações soberanas. Temos
concordado, entretanto, em limitá-la, em benefício da paz universal, no campo das
atividades comuns internacionais (...). Embora todos os povos civilizados a aceitem
[a igualdade jurídica entre os povos] em princípio, na prática, entretanto, ainda
prevalecem privilégios de decisão beneficiando as nações mais fortes. O direito de
veto, sobre determinadas decisões da ONU, é caso típico da quebra dessa igualdade
jurídica. (...) Podemos, contudo, concluir que o princípio da igualdade jurídica, face
às demais nações, constitui aspiração do povo brasileiro, pelo menos teoricamente,
realizada.”.456

454
D’AGUIAR, Hernani. “Guerra Revolucionária comunista no Mundo Atual”. In: A Defesa Nacional, n°
597, de setembro e outubro/1964 de 1964, p. 43.
455
CARVALHO, “A Guerra Revolucionária comunista no Brasil”, op. cit., p. 52.

177
178

Para ele as interferências internas não eram “descabidas” mas existiam. No entanto,
deveriam ser toleradas momentaneamente tanto quanto a existência da desigualdade entre
as nações. O objetivo de eliminar ambos os aspectos estavam presentes nos “objetivos
nacionais” da nação brasileira mas existia uma necessidade premente de colocá-los em
segundo plano.
Existia outra perspectiva quanto à política externa brasileira presente entre militares
como o General Edmundo Macedo Silva; os Tenentes-Coronéis Carlos de Meira Mattos,
Walter dos Santos Meyer, Paulo Emílio Souto; o Coronel-Aviador Ismael da Motta Paes; o
Major Niaza Gandra; e o Capitão-de-Mar-e-Guerra Oswaldo Newton Pacheco. Com a
exceção mais significativa de Meira Mattos, moderado, quase todos eram pertencentes à
linha dura. Não que defendessem o distanciamento em relação aos Estados Unidos, nem
que considerassem a idéia de neutralidade em termos de política externa. Pelo contrário,
achavam fundamental a liderança desse país dentro do quadro mais geral de confronto entre
comunismo e capitalismo. Também para eles a liderança norte-americana apresentava-se de
forma a reforçar o caráter democrático do Brasil e sua proximidade às tradições cristãs e
ocidentais. Esses oficiais achavam ainda, em sua grande maioria, que existia a necessidade
de o país integrar-se a um bloco militar; a finalidade de tal integração seria a “instalação de
um sistema de proteção cujo objetivo principal é assegurar a capacidade de luta, pelo
fortalecimento da estrutura social e pela integração dos grupos que a compõem”.
Justificando uma estratégia de coalizões, afirmam que as
“(...) limitações impostas à capacidade de promoverem com seus próprios meios
uma Segurança Nacional adequada aconselham quaisquer países, e por assim dizer
obrigam os países subdesenvolvidos, a se unirem politicamente a outros Estados, em
coalizões ou alianças, visando geralmente o aumento relativo do Poder nacional (...)
tendo como objetivos políticos comuns (...) a defesa da democracia (...) e [conter] a
expansão mundial do Comunismo”.457

Neste sentido, esses militares colocavam-se num posicionamento de alinhamento


junto aos EUA. No entanto, a defesa da proximidade à nação que exercia o papel de
liderança do mundo “democrático”, “livre” e “cristão” possuía algumas reservas. Meira

456
TÁVORA, Juarez do Nascimento Fernandes. Interpretação das aspirações e interesses nacionais do povo
brasileiro – análise política. Conferência proferida na Escola Superior de Guerra. DEPARTAMENTO DE
ESTUDOS, 1961, pp. 10 e seguintes.
457
CAMINHA, Herick Marques; PAES, Ismael da Motta; & SOUTO, Paulo Emílio. A Estratégia Nacional,
op. cit., p. 22.

178
179

Mattos, em artigo intitulado “Formas de expansionismo – idéias fundamentais”, analisava


as diversas maneiras de expansão presente nos dois países que dividiam a liderança
mundial a que se apresentavam em confronto. Para ele, enquanto URSS apresentava um
expansionismo “polimorfo” – com tendências ideológicas, políticas e econômicas –, o
norte-americano apresentava aspectos que restringiam sua pressão sobre o Brasil quanto à
dimensão econômica. Portanto ele não perde de perspectiva o fato de que a pressão, de
forma variada, vem dos dois lados. Diferentemente do grupo anterior não achava que a
interferência norte-americana era, em todos os casos, tolerável. Entendia ainda que o
objetivo norte-americano não se caracterizava apenas pela manutenção da democracia mas
também pela expansão econômica. Ressaltava que essa pressão deveria possuir limites,
dado que a vitória sobre o comunismo estaria no equilíbrio “entre o êxito da civilização
ocidental a cujo grande corpo pertencemos e o sucesso político de cada um de seus
membros (Estados), entre os quais nos encontramos”. Mattos entendia que a “compreensão
dessa correlação esclarece porque as nações se grupam para defender a filosofia, os padrões
éticos e a dinâmica política as civilizações a que pertencem”.458
A afinidade existente entre as nações ocidentais que aceitavam a posição de
liderança norte-americana colocava-se, ainda, na expectativa de poderem atingir o “sucesso
político” através de seu auxílio. Utilizando-se do mesmo tipo de articulação dos defensores
do maior alinhamento junto aos Estados Unidos, entendia que o objetivo fundamental não
era apenas afastar a ameaça comunista pela força desse país mas também garantir uma
organização que viabilizasse uma melhor estrutura por parte dos países que se colocassem
sob sua liderança. Era necessária a articulação de mecanismos que viabilizassem o sucesso
individual desses países com o crescimento da influência da “nação potência”:
“A conciliação entre essa tendência expansionista natural e conseqüente
alargamento de área de influência da nação potência, vêm sendo procurados, na
esfera do Ocidente, através de fórmula comunitária, isto é, da formação de
Comunidades de nações livres que aceitam espontaneamente a liderança, sob certos
aspectos de convivência, da nação mais poderosa ”.459

458
MATTOS, Carlos de Meira. “Formas de expansionismo – idéias fundamentais”. In: A Defesa Nacional, n°
563/564, junho e julho/1961, p. 12.
459
Idem, ibidem, p. 125.

179
180

Não era negada a supremacia dos Estados Unidos, nem mesmo era considerada uma
posição de neutralidade, de distanciamento simultâneo em relação às duas nações que
bipolarizavam as relações internacionais dentro de um quadro de Guerra Fria.
Atento às questões internacionais, em outro artigo Meira Mattos460 observava com
profunda preocupação a expansão econômica norte-americana não somente sobre o Brasil,
mas também sobre o continente africano, onde surgiam inúmeras nações em função do
processo de descolonização. Esses novos países colocavam-se como os grandes
competidores por mercados das grandes nações consumidoras de “produtos similares aos
nossos” sob estímulo das nações industrializadas. A existência de um mercado competitivo
tornava importante uma certa independência frente ao expansionismo econômico norte-
americano. Diante do alto índice de financiamentos desse país à região africana, afirma que
havia a necessidade de se estar em estado de alerta dado que o “desenvolvimento
econômico da África representará, para nós, a perda paulatina dos mercados europeus e
norte-americanos”. A solução não era evitar o processo mas criar mecanismos de defesa
tais como: elaboração de um mercado comum americano, aceleração do processo de
industrialização do país, proteção da produção atual e estimulação de relações diplomáticas
principalmente com a África. Para Mattos, o país tem uma função de liderança que deveria
exercer devido a condições gerais que possui.
A necessidade de imposição de limites ao papel de liderança dos EUA de forma a
não se sobrepor aos interesses dos diversos participantes também está presente em
conferência conjunta realizada por membros da Divisão de Assuntos Doutrinários da ESG.
Fundamental para deter o avanço comunista, a aliança não deveria estabelecer-se sem
restrições:
“Os Estados integrantes, embora possuindo vários interesses comuns, alimentam
outros interesses colidentes, difíceis de conciliar sem restrições à soberania dos
participantes. As flutuações da política interna de cada Estado, os problemas
específicos de sua Segurança, a diversidade das implicações que os negócios
internacionais proporcionam a cada um, são fatores, além de outros, que dificultam
a harmonização dos pontos de vista, com prejuízos para a completa integração,
requisito essencial de quaisquer estratégia”.461

460
Idem, ibidem.
461
CAMINHA, Herick Marques; PAES, Ismael da Motta; & SOUTO, Paulo Emílio. A Estratégia Nacional,
op. cit.

180
181

Que “interesses colidentes” seriam esses? Mais uma vez a questão é colocada
quanto à disputa por mercados ou, como aponta, à “diversidade das implicações que os
negócios internacionais proporcionam a cada um”.
O General Edmundo Macedo estabelece a relação existente entre o
“desenvolvimento” do país e a necessidade de o Brasil delimitar seu papel de liderança
regional no cenário internacional. Indica que a preocupação fundamental para estabelecer
programas de desenvolvimento é “quebrar os grilhões da prisão em que tem vivido cercada,
como formadora de matéria-prima (...) e consumidora de manufaturas”. Ele considerava
que a América Latina possuía condições geográficas favoráveis, que “as matérias-primas
mais essenciais [para o processo de industrialização] existem [no continente] e que seu
mercado consumidor é um dos que mais crescem”. No entanto, existia uma dificuldade de
intercâmbio que acabava por beneficiar os
“mercados consumidores dos países mais industrializados. O intercâmbio latino-
americano é ainda insuficiente. Seu incremento depende, a nosso ver, da
industrialização e não temos dúvida em afirmar que nosso país (...) terá um grande
papel a desempenhar”.462

Era grande a preocupação por parte desses oficiais em formar um bloco econômico.
Espelhavam-se na formação de blocos em outros continentes buscando a integração
econômica regional para fazer valer o importante papel que o Brasil teria dentro da
América Latina. Ao mesmo tempo buscavam garantir uma proximidade apenas relativa
com a grande nação hegemônica no ocidente. O Major Niaza Gandra também era adepto da
consolidação de blocos econômicos liderados pelo Brasil, tal como a ALALC,463 com
objetivo de incrementar o comércio exterior e “resolver os graves problemas de suas
balanças comerciais, originários de uma persistente deterioração dos preços de seus
produtos primários de exportação, no comércio mundial”.464 Para ele o comércio
internacional caracterizava-se pela deterioração dos termos de troca e o auxílio externo
através de capitais acabava por ser utilizado apenas para “cobrir os deficits dos balanços de
pagamentos provenientes de instabilidade de preços dos seus produtos exportáveis”. A
necessidade dos países “subdesenvolvidos” em organizarem mecanismos de defesa para

462
SILVA, Edmundo Macedo Soares. “A América Latina em face do desenvolvimento mundial”. In: A
Defesa Nacional, n° 552, junho/1960, p. 160.
463
ALALC: Associação Latino Americana de Livre Comercio.

181
182

suas economias de forma coletiva fazia-se com o objetivo de se estabelecerem “em


melhores condições num mercado cada vez mais caracterizado por blocos econômicos”.
Embora não indique explicitamente o distanciamento junto aos EUA, a formação de um
bloco por parte das economias latino-americanas sem a presença desse país caracteriza uma
posição não de neutralidade, mas de proximidade com “limites”, em função dos já citados
“interesses colidentes”. Tratava-se, portanto, de delimitação dos espaços de atuação de cada
individualidade nacional.
A busca por tecnologia com vistas a dar continuidade ao desenvolvimento do país
também é um aspecto do mesmo problema: os “interesses colidentes”. Walter dos Santos
Meyer criticava a extrema dependência do país em relação aos aspectos fundamentais para
o país alcançar um estágio superior de organização econômica, relacionando esse aspecto
ao alinhamento incondicional junto aos Estados Unidos. “No estágio técnico científico a
que já atingimos não é possível esperarmos mais e continuarmos a depender de planos de
defesa mútua, de acordos internacionais, de convênios ou que outros nomes tenham”.465
Vários eram os oficiais que reclamavam para o Brasil uma posição de liderança no
cenário internacional. Não com o objetivo de contestar a posição norte-americana, mas sim
para valorizar um papel para a nação brasileira que levasse em consideração “nossa
expressão mundial”. Meira Mattos assinalava o imperativo de “tomada de uma posição
internacional; justa avaliação de nossa expressão mundial (de potência); nossa vinculação a
uma política verdadeiramente pan-americana, de concepção global e igualitária”.466
A preocupação com um cenário internacional caracterizado por uma comunidade de
nações mais equilibrada também estava presente. A idéia de comunidade internacional que
proporcionasse a presença do igualitarismo entre os países componentes do bloco ocidental
contrapunha-se ao projeto de liderança absoluta norte-americana e caracterizava o
pensamento daqueles oficiais que entendiam que somente através da diminuição das
diferenças entre as diversas nações é que poderia consolidar-se o afastamento da ameaça
comunista.

464
GANDRA, Niaza Almeida. “ALALC”. In: Revista do Clube Militar, n° 164, de março/1964, p. 33.
465
MEYER, Walter dos Santos. “A ciência, a técnica e o Exército”. In: A Defesa Nacional, n° 587, de
julho/1963, p. 25.
466
MATTOS, Carlos de Meira. “Consciência Geopolítica Brasileira”, op. cit., pp. 141 e seguintes.

182
183

Conclusão parcial
Observando os diferentes projetos de sociedade presentes nos dois principais
partidos militares, percebe-se que a Doutrina de Segurança Nacional influenciou
significativamente ambos os grupos. A recorrência de termos tais como “objetivos
nacionais”, “poder nacional”, “segurança nacional” e “estratégia nacional”, os principais
conceitos da doutrina segundo Comblim, é patente tanto em artigos de duros quanto de
moderados. Acertadamente coloca o autor que tal instrumental passou a ser utilizado por
estes militares para a interpretação “de tudo que poderia acontecer no mundo”.467 Neste
sentido, pode ser assinalado que ambos consideravam a idéia de política como continuação
da guerra, numa inversão do conceito de Clausewitz, onde todos os recursos deveriam ser
utilizados para a consecução dos objetivos nacionais.
Da mesma forma observa-se presente a idéia de que a vontade única da sociedade
deveria ser expressada através do Estado. Caberia ao Estado interpretar a vontade suprema
de seu povo e esta, por sua vez, encaminhava-se no sentido de obtenção do
desenvolvimento econômico. Afinal de contas, conforme assinalava o então Tenente-
Coronel Walter de Sirqueira, de “todos nós (...) a Nação espera um esforço supremo que
nos conduza a posição de País desenvolvido”.468 As divergências seriam consideradas como
tentativas de retardamento dessa situação de plenificar a potencialidade que o país possuía.
Trabalho coletivo realizado na ESG assinala que as “graves divergências entre os que
mandam e os que obedecem, os abusos de uns e as decepções de outros, as crises e as lutas
políticas violentas debilitam a nação”.469 Definindo o que seria o poder nacional
apresentam que este seria a “expressão integrada dos meios de toda a ordem de que dispõe,
efetivamente, a Nação (...) para a promoção, pelo Estado, no âmbito interno e na esfera
internacional, da conquista e manutenção dos objetivos nacionais, a despeito dos
antagonismos existentes”.470
Entendo, portanto, que a Doutrina de Segurança Nacional foi o elo fundamentador
de boa parte do pensamento político de direita dentro das Forças Armadas. No entanto,

467
COMBLIM, op. cit., p. 40.
468
SIRQUEIRA, Walter M.. “Havia Perigo?” In: A Defesa Nacional, n° 602, julho e agosto/1965, p. 28.
469
BRAGA, Saturnino B.; PAIVA, Alfredo de Almeida; & FIGUEIREDO, Sylvio de Magalhães. “O Poder
Nacional – Fundamentos e Fatores Políticos”. In: Revista do Curso de Estado Maior e comando das Forças
Armadas - Curso superior de GuerraI, 1961, p. 9.
470
Idem, ibidem, p. 2.

183
184

pode-se observar também que esta doutrina será incorporada de diferentes formas. Para isto
influenciou decisivamente não apenas a própria realidade brasileira mas também a posição
que estes grupos desfrutavam dentro do jogo político e, ainda, as perspectivas que eles
estabeleciam para o futuro do país. Assinalavam estas divergências a disposição de levar ou
não ao extremo a máxima de “política como continuação da guerra”; as considerações
quanto ao grau de divergências possíveis para a viabilização dos objetivos nacionais; e,
ainda, quanto ao tipo de modelo de desenvolvimento econômico a ser adotado. Os dois
primeiros aspectos são relativos ao tipo de organização política (autoritária ou ditatorial) e à
questão social. O último diz respeito à oposição nacionalismo/internacionalismo, ao tipo de
política externa a ser encaminhada e ao grau de intervenção do Estado na economia.
Questões como o nacionalismo, com a presença mais intensa de ação do Estado, e o tipo de
organização política apresentam-se mais nitidamente diferenciadas nos dois partidos
militares. No entanto, quando observo internacionalistas e nacionalistas quanto às questões
relativas à política externa e ao problema social, percebe-se que alguns dos participantes de
ambos os partidos circulavam pela ceara alheia. Isto não impede, no entanto, de manter-se
uma distinção quanto ao posicionamento de cada um dos partidos militares.
Alguns autores assinalam que a Doutrina de Segurança Nacional está diretamente
vinculada ao liberalismo econômico. Essa posição apresenta-se na quase totalidade
daqueles que centram suas análises no meio militar ou que tratam desses militares em
algum momento, tais como Dreifuss, Vizentini, Padrós, Marçal, Aquino, Rouquié e
Peixoto. Por sua vez, Alves e Comblim, apesar de considerarem a DSN como ideologia de
classe, indicam que a mesma doutrina apresentou-se no Brasil com um caráter de desvio em
relação à sua matriz norte-americana, indicando a existência de uma proposta de economia
mista. Quais seriam os motivos deste desvio?
Observa-se no Brasil que, logo após a instauração do regime em 1964, o liberalismo
econômico foi a política econômica adotada pela dupla Roberto Campos e Bulhões de
Carvalho.471 A primeira fase do regime, caracterizada pelo governo Castelo Branco,
também foi a fase em que o grau de representatividade era maior entre as elites, ou seja, o
grau de divergências toleradas era maior.

471
Sobre estes aspectos ver: SILVA, Francisco Carlos T., op. cit., p. 298.

184
185

Fugindo um pouco do corte cronológico que baliza este trabalho, ao observar-se os


governos estabelecidos posteriormente – especificamente o governo Costa e Silva e Médici
–, depreende-se que o nacionalismo retorna com certa força. No entanto, no plano político,
tem-se a cristalização de um espaço significativamente menor para as divergências.
Inclusive no plano da coligação vitoriosa em 1964. Desta forma, se a Doutrina de
Segurança Nacional foi o elemento que balizou o papel das Forças Armadas no regime
autoritário, deve-se perceber que esta influência ocorreu, no plano político, principalmente
entre os duros. Já no plano econômico ela fundamentou, de forma clara, aos militares
vinculados com os moderados. Se é claro que os duros apresentavam divergências quanto
ao nacionalismo do período 45/64, principalmente no que se refere ao governo Jango, era
porque o mesmo procurava estabelecer alianças entre os movimentos populares. O
nacionalismo dos duros, portanto, postulava que o encaminhamento de um pleno
desenvolvimento econômico deveria pautar-se pelo estabelecimento de um regime político
que possibilitasse a continuidade necessária, sem politicagem, sem interferências políticas e
infenso ao contágio comunista.

185
186

3 – Sociedade política: a UDN


A sociedade política, a UDN e o debate historiográfico
Alguns autores, citados anteriormente, apresentam a sociedade política apenas a
reboque das aspirações golpistas. Não enfocam como aspecto central de seu trabalho esta
parcela do sistema político brasileiro, priorizando a abordagem ora da sociedade civil, ora
da arena estatal. Consideram estes autores que, embora partilhando com os militares
influenciados pela Doutrina de Segurança Nacional e com os membros do complexo
multinacional-associado do IPÊS/IBAD dos receios quanto aos rumos que o país estava
tomando, a “classe política” apresentava-se incapaz de desviar o descontentamento popular
e promover a estabilidade política. O papel de liderança nas articulações golpistas teria sido
exercido por outros grupos. É o que apresenta, por exemplo, o trabalho de Dreifuss.
Para este autor, o sistema político vigente caracterizava-se pela predominância dos
interesses oligárquico-industriais vinculados ao populismo e impediam os interesses
transnacionais de direcionar o curso da economia de forma satisfatória para que o projeto
modernizante-conservador se estabelecesse. Diante disto, a “sub-representação política dos
interesses multinacionais e associados” contribuiu para “impelir uma ação extrapartidária
do bloco multinacional e associado”472 que desencadeou na estruturação do IPÊS, o grande
organizador da estrutura golpista. A sociedade política, dentro desta perspectiva, teria sido
manipulada com a intenção de atender as necessidades de desestabilização do regime
político vigente.
De outro lado, há uma abordagem que apresenta o seu enfoque principal na arena
estatal: os militares. Skidmore, por exemplo, apresenta a classe política também de maneira
subordinada no encaminhamento das articulações golpistas e na liderança da movimentação
anti-Goulart, e coloca sobre os militares influenciados pela Doutrina de Segurança Nacional
a proeminência sobre as articulações golpistas que se iniciaram somente por volta de 1963,
quando boa parcelada hierarquia militar aderiu ao projeto e nomeou como líder o General
Castelo Branco. A conspiração teria contado com participação de políticos, inclusive de
aspirantes à presidência da República tais como Magalhães Pinto, Carlos Lacerda e Ademar
de Barros, mas que se articularam ao movimento apenas nos idos de março. No entanto,
como eram os militares os grandes responsáveis pelo “equilíbrio de poder durante todos os

472
DREIFUSS, op. cit., p.138.

186
187

graves impasses políticos civis da história da República”, caberia a eles “sair da defensiva e
passar ao ataque”.473 Somente após a conspiração militar atingir o seu “clímax” é que a
opinião política passou a ser mobilizada. Afirma o autor que mesmo sendo os “militares os
que haviam interferido para salvar o Brasil da ‘corrupção’ e do ‘comunismo’, civis havia
que acreditaram ser eles os vencedores”. Para Skidmore, isto não passava de uma ilusão. Os
verdadeiros vencedores haviam sido os “agressivos jovens militares”.
Observa-se, portanto, que além de apresentarem que a movimentação em torno do
golpe não contou com uma efetiva liderança de civis, estes autores (dentre outros)
consideram que a “vitória final” (a deposição de Jango e o fim ao democracia restritiva de
45 a 1964) não coube a estes políticos, independentemente do fato de os partidos a que
estavam vinculados terem participado do golpe. Quanto a isto, há controvérsias.
Aqueles que consideram como centro de suas análises a sociedade política
discordam ora efetivamente, ora em parte. Dentre eles pode-se citar Lúcia Hippolito,
Octávio Dulci e Maria Victória Benevides.474 Embora com perspectivas diferenciadas eles
apresentam como elemento comum a ativa participaçãodo PSD e da UDN no movimento
de março de 1964.
Lúcia Hippolito, por exemplo, assinala que o grande fiador do sistema político
compreendido entre 1945 e 1964 foi o PSD, objeto central de sua análise. Este era um
partido de quadros, formado a partir da elite e composto por “lideranças tradicionais” que
tinham sua base política no interior e, ainda, por lideranças reformistas mais jovens,
“voltadas para as demandas do emergente eleitorado urbano”.475 O equilíbrio entre estes
dois grupos é que concedia a consistência necessária para que o PSD aparecesse como
partido de centro com uma maioria que lhe possibilitava exercer a função de equilíbrio ao
sistema partidário. Na verdade, apesar de composto por uma base social que se aproximava
muito da característica da UDN, o elemento fundamental para a oposição entre os dois
partidos foi o vínculo que o PSD possuía com o getulismo. Ao longo do período os
tradicionais (raposas) acabaram sobrepujando-se sobre as lideranças mais jovens

473
SKIDMORE, op. cit., pp. 355 e 356.
474
Outros autores apresentavam que a crise política desencadeada na década de 1960 desenvolveu-se,
sobretudo, na sociedade política. Dentre eles cito: SOUZA, Maria do Carmo, op. cit.; FIGUEIREDO,
Argelina C., op. cit. ; & DELGADO, Lucília de Almeida Neves. PTB – do getulismo ao reformismo. São
Paulo, Marco Zero, 1989.
475
HIPPOLITO Lúcia. PSD – de raposas e reformistas. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1985, p. 49.

187
188

(reformistas) e levando à fragmentação do partido. O PSD fragmentou-se porque o sistema


partidário polarizou-se. O centro do sistema político deslocou-se para a esquerda e o
partido, devido a oligarquização476 de sua estrutura, não acompanhou o deslocamento do
sistema partidário para ocupar o novo centro. Mas o que teria provocado este
deslocamento? Segundo a autora, foi o crescimento do eleitorado urbano e a sofisticação
“cada vez maior de suas demandas em termos socioeconômicos e políticos”.477 Como o
partido não se adaptou ao novo quadro, eliminando facção da Ala Moça, acabou por
aproximar-se cada vez mais da UDN e contribuiu, em um círculo vicioso, para a
polarização do sistema político que desencadeou 1964. A chave para compreender-se o
golpe estaria, portanto, no funcionamento do sistema político. Melhor dizendo, no colapso
do sistema.
Hippolito afirma que o Partido Social Democrático contou com a presença de
golpistas de primeira hora. No entanto, a tradição de fiador do sistema político – em função
de apresentar-se como agremiação majoritária no Congresso –, a convicção dos seus
componentes de que o apoio que concediam a Jango poderia evitar a “esquerdização” do
governo e os projetos que possuía para as eleições de 1965 (JK para presidente) fizeram
com que o partido se afastasse do governo Jango apenas nos últimos instantes. Neste
sentido, o golpe de 1964 “não teve a chancela do PSD como teve da UDN, do PSP e de
outros partidos menores, mesmo que muitos de seus membros tenham participado – ou
apenas coonestado – da conspiração anti-Goulart”.478 Considera a conspiração como um
movimento civil-militar que contou com uma primazia da UDN uma vez que este partido,
sobre a liderança de Bilac Pinto a partir de abril de 1963, “constituirá a linha de frente da
oposição radical ao governo Goulart”.479 Apresenta, neste sentido, a presença de diferentes
grupos conspiradores que estariam numa situação de equivalência entre si, e não imputa a
supremacia de nenhum dos parceiros no intento. Assinala, inclusive, um momento de
disputa entre os parceiros golpistas – militares e políticos – que rapidamente foi vencida
pelos primeiros.

476
Idem, pp. 133 e136. A idéia de oligarquização de um partido refere-se ao enrijecimento de sua estrutura de
comando. Os grupos de gerações mais novas ou formados por facções divergentes dentro do partido tem o seu
acesso à cúpula limitado ou vedado. Sobre o aspecto ver HIPPOLITO, op. cit., pp. 119 e seguintes.
477
Idem, ibidem, pp. 140, 188, 189, 190,191 e 199.
478
Idem, ibidem, p. 233.
479
Idem, ibidem, p. 228.

188
189

Já Octávio Dulci centra suas atenções na UDN e no seu caráter anti-populista.


Segundo o autor o partido era conservador, um partido das oposições oligárquicas mas que,
gradativamente, apresenta um “aumento do suporte eleitoral urbano”.480 O baixo
envolvimento do partido com o regime estabelecido a partir de 1946 e a ampliação dos
contingentes eleitorais urbanos aprofundou o caráter autoritário do seu projeto político. Esta
opção apresentou-se ao longo da existência da agremiação, conseqüência direta dos
sucessivos fracassos eleitorais que acabaram por mudar a tônica do partido. Se antes neste
defendia-se a “revolução pelo voto”, diante das derrotas passou a estar presente o discurso
de uma mudança das instituições sem o voto.
O autor assinala que a UDN foi o principal “veículo partidário” de oposição ao
regime compreendido entre 45 e 1964 e que, em sua última fase, foi o responsável pela sua
destruição. Catalisou grupos e camadas sociais que caracterizavam uma nova base de
aliança de poder que acabou por assumir o controle do Estado Brasileiro em 1964. Segundo
afirma, este “conjunto de setores, interesses e projetos é aqui denominado anti-populismo,
um rótulo talvez imperfeito, mas que transmite a idéia de contraste que se quer acentuar”.481
Quanto às considerações sobre o movimento de 1964 situa-o como uma conspiração com
articulações simultâneas na área civil e militar. No âmbito militar o movimento estaria
sobre a liderança do General Cordeiro de Farias. Ao mesmo tempo, no meio civil, “a
conspiração se expandiu através de políticos contrários ao governo, a maioria pertencente à
UDN, bem como de empresários, estudantes, intelectuais e membros do clero”.482 A UDN
exerceu papel fundamental na área parlamentar em torno da aglutinação das correntes anti-
reformistas de todos os partidos. A delimitação da liderança do processo se apresenta
confusa, ora o autor apresentando a proeminências das FFAA ora do IPÊS. Contudo o papel
de destaque da UDN fica bem assinalado.
Por último, gostaria de citar o trabalho de Maria Victória Benevides, que assinala as
ambigüidades da UDN. Esta nasceu liberal e defendeu um regime autoritário.
Diferentemente dos dois autores anteriores, Benevides apresenta que a UDN, apesar de
buscar representar as classes médias, acabava por representar efetivamente os interesses dos

480
DULCI, Octávio. A UDN e o antipopulismo no Brasil. Belo Horizonte, Editora da Universidade Federal de
Minas Gerais, 1986, p. 35.
481
Idem, ibidem, p. 15.
482
Idem, ibidem, p. 196.

189
190

grandes proprietários e da indústria vinculada ao capital estrangeiro, sendo um partido que


efetivamente representava a propriedade agrária. O partido exibia um perfil elitista e
conservador. Predominou gradativamente uma direita antidemocrática dentro do partido,
que se dividia em dois grupos: um em função da aspiração a uma ditadura por motivos
políticos e outro por reacionarismo econômico e hostilidade ao progresso social.
No momento de crise o PSD e a UDN uniram-se numa aliança conservadora. No
entanto, o grande responsável pelo desencadeamento do movimento anti-janguista foi a
UDN, que esteve no primeiro plano da ofensiva partidária contra o governo nos meses
iniciais de 1964. O golpe teria sido resultado de uma “aliança de grupos oligárquicos com
as classes médias urbanas e as Forças Armadas, sob a proteção e assistência técnica dos
imperialistas”.483 Neste sentido a UDN apresenta-se como agente fundamental para o seu
desencadeamento na medida em que era um dos principais partidos, ao lado do PSD, a
representar os interesses oligárquicos. Foi o partido que divulgou ostensivamente o ideário
de Guerra Revolucionária, “arcabouço ideológico para a congregação de todas as forças de
centro e de direita (...) contra a ‘ameaça comunista’”,484 apesar de sua elaboração ter origem
na ESG. Neste sentido, coube ao partido uma posição de liderança, “um papel especial na
imagem pública e na aliança político-militar”.485 Para a Benevides, o governo Castelo
Branco representou o momento da hegemonia da UDN no novo regime. Apesar de estar
presente nos principais postos e cargos ao longo do governo Castelo e no comando da
ARENA (partido do governo), e considerando-se mesmo a grande vitoriosa com o
movimento de 1964, a UDN não deu as cartas do novo regime. O partido foi suplantado
pelo crescente militarismo do novo período e as “Forças Armadas, unidas, não apenas
tomaram o poder, como o monopolizam a vários anos (...)”.486
Apesar de constatarem que o controle do poder não se efetivou em torno dos
interesses da UDN, estes três autores – Lúcia Hippolito, Octávio Dulci e Maria Victória
Benevides – entendem que o partido apresentou um importante papel dentro da estrutura
conspirativa. Não somente testemunhos contemporâneos mas também depoimentos feitos
posteriormente asseveram esta participação. Antonio Carlos Magalhães, membro da UDN e

483
BENEVIDES, op. cit., p.129
484
Idem, ibidem, p. 124.
485
Idem, ibidem, p. 126
486
Idem, ibidem, p 136.

190
191

participante da Ação Democrática Parlamentar, assinala que o trabalho foi feito por
militares aos quais se “associaram, com muita habilidade, Magalhães Pinto, e, com mais
presença, Carlos Lacerda”.487 O mesmo fala José Sarney, membro da Bossa Nova que
afirma ter participado do movimento de 1964 apenas como “observador recuado dos
acontecimentos”, mas que havia sido contatado por Magalhães Pinto sobre a “possibilidade
de revolução”. Segundo afirma, após ter tentado “cooptar Jango”, o político “começou a
montar uma rede de contatos”. Ao mesmo tempo o governador Carlos Lacerda “também
fazia contatos no meio militar. Houve, então, duas ações bem nítidas. Uma de natureza
política e outra de natureza militar”.488
O baixo nível de comprometimento do partido com o sistema vigente foi um
elemento fundamental para que, segundo todos esses autores, a UDN optasse pela via
golpista com vistas a adotar o seu projeto de sociedade. No entanto, os militares – como
considera Benevides –, ou o complexo multinacional IPÊS/IBAD – como considera Dulci–
, acabaram por suplantar os interesses do partido nos momentos posteriores ao golpe. Uma
série de medidas que foram aplicadas contrariavam profundamente os interesses do partido
– estatização crescente da economia, bipartidarismo e reforma agrária são apenas alguns
dos exemplos que devem ser citados.489 E não se pode alegar que estas medidas foram
aplicadas porque os udenistas desconheciam os interesses dos grupos com os quais
partilharam ou sobre os quais comandaram o processo golpista. Os “agressivos jovens
militares”, termo com o qual Skidmore denomina os nacionalistas-ditatoriais, defendiam
uma maior participação do Estado na economia e um alinhamento com os Estados Unidos
que não fosse incondicional. O IPÊS defendia um projeto eminentemente industrializador
para o país.

487
MAGALHÃES, Antonio Carlos. Depoimento. In: COUTO, Ronaldo Costa. Memória viva do regime
militar – Brasil: 1964-1985. São Paulo, Record, 1999, p. 279.
488
SARNEY. José. Depoimento. In: COUTO, op. cit., p. 309.
489
Segundo Dreifuss, o Estatuto da Terra na verdade representou a aplicação de uma determinada visão de
reforma agrária. Para ele a estrutura “para a Lei básica da Reforma Agrária, que se tornou conhecida como
Estatuto da Terra”, foi baseada em orientações do IPÊS. A proposta continha um projeto de tributação
progressiva, que induziria à eliminação da grande propriedade improdutiva. Nesta foram enfatizados o
aumento da produtividade com modernização, a eliminação de “formas arcaicas de posse de terra” e a criação
de uma infra-estrutura que desse vazão a produção agrícola. Com esta reforma buscava-se também um
avanço da fronteira agrícola. Op. cit., p. 434 e 435. Também Alfred Stepan considera o conjunto de medidas
tomadas a partir da promulgação do Estatuto da Terra como “La ley de Reforma Agrária que, com “La
supressión de la mayor parte de las ligas agrarias por parte del govierno fortificó la posición de los grandes
terratenientes, eliminando presiones en direción a una reforma radical”. STEPAN, op. cit., p. 276.

191
192

A partir destas considerações pode-se chegar a uma segunda proposição. Mesmo


considerando-se o papel de proeminência da UDN nas articulações golpistas não foram os
membros do partido os únicos a encaminharem a movimentação que se desdobrou no “
Março de 1964”. Apesar de se considerar como a grande vitoriosa com a eliminação do
sistema “populista” de governo, a vitória foi partilhada com outros “jogadores”. E isto pode
ser observado mesmo nas obras destes autores. Seja na consideração de colocar a UDN
numa situação de simples instrumento de manipulação (Dulci e Hippolito), seja dentro de
um contexto que concedia uma vantagem estratégia para os militares diante da necessidade
de expurgos contínuos e de submissão dos udenistas a um projeto autoritário.
A dinâmica do contexto em questão, que mostra a superação da UDN enquanto
partido do governo no pós-64, indica um caminho que deve ser seguido. Mostra que existia
um embate entre os diferentes grupos a encaminharem o golpe. Entendo que este confronto
existia não somente como fruto de uma disputa pelo poder, mas realizava-se também no
âmbito dos projetos de sociedade. Outro aspecto que deve ser levado em consideração a
partir da análise destas obras é o papel do PSD. Lúcia Hippolito assinala que este partido
não foi efetivamente golpista, mas que dele surgiram conspiradores de primeira hora. No
entanto, o papel do PSD, enquanto instituição partidária, foi muito mais como
desarticulador do sistema político do que catalisador de uma oposição sistemática ao
governo Jango, o qual somente abandonou nos seus últimos e derradeiros instantes.
Outra questão deve ser assinalada antes de iniciar a análise sobre o projeto político
dos udenistas. Observa-se, em algumas obras de grande importância para a compreensão do
golpe de 1964 e do período posterior, uma referência ao papel da Ação Democrática
Parlamentar (ADP) na arregimentação de forças que teriam por objetivo a desestabilização
do governo Jango e sua deposição. Formada em 1961 a ADP contava com uma gama
significativa de políticos, aproximadamente 155 parlamentares, entre membros do
Congresso e das câmaras legislativas estaduais.490 Octávio Dulci chega a falar que o bloco
contava com cerca de 200 parlamentares. Era um bloco interpartidário que incluía políticos
de diferentes agremiações: Partido de Representação Popular (PRP), Partido Social
Democrático, União Democrática Nacional, Partido Social Progressista, Partido Libertador,
Partido Republicano, Partido Democrático Cristão, Partido Trabalhista Nacional e um ou

490
DREIFUSS, op. cit., p. 320.

192
193

outro membro de pequenos partidos. No entanto, a grande maioria deste bloco pertencia
basicamente às duas das principais instituições partidárias do período. Em primeiro lugar
era composto basicamente por udenistas, estando o Partido Social Democrático em segundo
plano.491 Formariam uma coalizão de veto a toda e qualquer proposta que pudesse resultar
ou na modificação da Constituição, ou na efetivação das proposições reformistas do
governo Jango em sua etapa final.
Alguns autores tendem a compreender a Ação Democrática Parlamentar como um
mero instrumento nas mãos do complexo IPÊS/IBAD. Starling, Dulci e Dreifuss
encaminham-se neste sentido. Para eles, a ADP nada mais era do que “um canal
parlamentar coordenado e uma fachada política para forças sociais e grupos de ação da
direita mais sofisticados”.492 Era o grupo que desenvolvia no Congresso a ação política do
complexo empresarial IPÊS/IBAD. Liderada pelo deputado udenista João Mendes,
“estabeleceu a presença política do complexo IPÊS/IBAD no Congresso e assim permitia à
elite do bloco multinacional e associado a imiscuir-se na política nacional e a moldar a
opinião pública através de mais um importante canal”.493
O principal aspecto a respaldar a posição de Dreifuss sobre este vínculo é dado pela
presença de alguns dos participantes da ADP no IPÊS/IBAD e pelo financiamento de
campanha que o IBAD realizou para boa parte dos deputados deste bloco. Sobre estes
aspectos, o depoimento de Carlos Lacerda sobre o assunto é relevante. Considerado como
um dos principais oponentes do governo Jango, denominado por alguns como destruidor de
governos e apontado por diversos analistas do período como um dos principais
conspiradores, Lacerda assinala que o financiamento do IBAD atendeu muito mais aos
interesses de estimular a reeleição de políticos que faziam franca oposição ao governo
Jango do que outro aspecto qualquer. Sobre isso, assinala que “pessoas mais respeitáveis da
câmara” haviam “tomado aquilo como contribuição sem compromisso”. Para ele, o
dinheiro do IBAD veio de um grupo de empresas “(...) a quem esse rapaz, Hasslocher,494
convenceu que era necessário reforçar eleitoralmente e perante a opinião pública os
elementos que combatiam o comunismo, quaisquer que fossem os partidos a que

491
LAMARÃO, Sérgio. “Ação Democrática Parlamentar”. In: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro.
Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, pp. 24 e 25.
492
DREIFUSS, op. cit., p. 156.
493
Idem, ibidem, p. 320
494
Líder do IBAD

193
194

pertencessem”.495 Neste sentido, concordo com Argelina Figueiredo, que considera


“exagerado” pensar o movimento de 1964 como um movimento extremamente articulado e
obedecendo um único comando: do IPÊS.496
Teria sido então a ADP um dos centros catalisadores da movimentação golpista?
Alguns elementos poderiam contribuir para que esta pergunta fosse respondida de forma
positiva. A formação de frentes partidárias foi uma característica predominante no período
compreendido entre o governo Juscelino Kubitschek e o governo Jango. Afirma Lucília
Neves que a “prática de se organizarem movimentos frentistas, que já havia sido
introduzida durante o governo Kubitschek, no início dos anos 60, passou a ser reproduzida
em larga escala”.497 A autora assinala que este procedimento generalizado foi resultado de
um enfraquecimento das instituições partidárias, possuindo um nível baixo de
representatividade de grupos e interesses sociais específicos. A coligação pura e simples do
PSD com a UDN, fruto de um processo de polarização do sistema político, não daria conta
da defesa destes interesses em função de uma certa fragmentação interna. De outro lado,
considera Maria do Carmo Campello que, na verdade, a prática de elaboração de alianças e
coligações na luta eleitoral reflete não apenas um processo de enfraquecimento dos
partidos, mas que este processo ocorre paralelamente a um reordenamento do sistema
partidário.498 De qualquer forma, ambos os trabalhos assinalam a existência de uma lógica
que busca otimizar os resultados e racionalizar cada vez mais as estratégias partidárias.
Neste sentido, a ADP poderia ser considerada como “mais coerente” em termos ideológicos
pois era fruto deste processo de racionalização de estratégias.
No entanto, poderia ser adotada também uma perspectiva que entenda que a ADP
apresentava-se muito mais como um mecanismo de resistência aos projetos reformistas do
que como agente efetivo das movimentações golpistas. Da lista de 94 participantes da
frente citada por Dreifuss, somente alguns aparecem como conspiradores de primeiro
momento ou de destaque. Isto apesar da fundação da ADP remontar ao ano de 1961,
momento em que se inicia a fase de crescente polarização político-ideológica. Deve-se
lembrar ainda que como participantes do bloco são citados políticos que apoiaram a posição

495
LACERDA, Carlos. Depoimento; prefácio de Ruy Mesquita, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1987, 3ª ed.
496
FIGUEIREDO, Argelina C. Democracia ou reformas, op. cit., p. 174.
497
DELGADO, PTB, op. cit., p. 236.
498
SOUZA, op. cit., p. 167.

194
195

da Bossa Nova (Antonio Carlos Magalhães e Djalma Marinho) e outros que participaram,
inclusive do gabinete ministerial de 1963 (Abelardo Jurema e Pinheiro Chagas). Isto acaba
por colocar o bloco não numa situação de oposição absoluta, mas sim de oposição relativa
ao governo Jango. Um levantamento superficial feito a partir dos nomes colocados em
destaque como ativos conspiradores na sociedade política por diferentes autores indica,
nesta lista, cerca de 15 nomes, nenhum deles tendo sido citado como vinculado à ADP.
Portanto, se existiu uma articulação conspiradora dentro da ADP, que teria por objetivo
arregimentar políticos no intuito da derrubada de Jango, também pode-se assinalar que o
mesmo tipo de mobilização existiu internamente na UDN e, principalmente, sem vínculos
diretos com a ADP.
A atenção recairia, portanto, no papel organizativo da UDN e diversos aspectos
devem ser para isso considerados. A UDN apresentou-se como a principal agremiação
contrária ao sistema populista,499 sendo o principal partido a participar da Ação
Democrática Parlamentar ao longo de sua existência.500 A vitória da “Revolução” foi, mais
do que em qualquer outro partido, considerada por eles como sendo sua vitória.501 Segundo
Benevides, a UDN logrou ocupar diversos postos dentro do Governo Castelo Branco e “em
1966, 1970 e 1974, metade dos governadores ‘indiretos’ eram de origem udenista”.502
Além disto, pela perspectiva de Dreifuss, tornam-se claros dois aspectos. A UDN não era,
como considera o próprio autor, uma instância confiável para apresentar-se como canal de
representação dos interesses do bloco multinacional-associado por estar vinculada a uma
estrutura de poder de caráter populista. Segundo, existia um grau de divergência de
interesses que teria feito com que o IPÊS/IBAD procurasse uma outra instância de
representação. Logo deduz-se que, se a UDN teve o papel que se apresenta ao longo dos
governos posteriores a 1964, é porque ela colaborou de forma significativa para que o
intento “Revolucionário” se efetivasse. Mais ainda, ela esteve presente a despeito de não se
apresentar como instância de representação da elite orgânica do complexo multinacional-
associado. E isso apesar de divergir em vários aspectos da linha nacionalista-ditatorial que

499
LAMARÃO, op. cit., p. 25.
500
Fundada em 1961, a ADP foi extinta logo após o movimento de 1964. LAMARÃO, op. cit., p. 25.
501
“Como se falasse em nome da Nação, considerava-se a UDN ‘vitoriosa ao reagir contra o sistema de forças
desagregadoras que dominavam e que levariam, em curto prazo, a uma ditadura comunista”. BENEVIDES,
op.cit., p. 126.
502
BENEVIDES, op.cit., p.134.

195
196

irá se estabelecer, mesmo que de forma não hegemônica, no comando do país, nos
governos Costa e Silva e Médici. Não quero dizer com isso que a essência do regime deva
ser atribuída a perspectiva de projetos de sociedade elaborados a partir da UDN, mas tão
somente que a UDN foi a base política de sustentação do regime, assim como os militares
influenciados pela Doutrina de Segurança Nacional foram a base coercitiva de sustentação
e o complexo multinacional-associado a base de poder da nova fase em termos de
sociedade civil. Todos partilhando do poder e disputando entre si a hegemonia sem alcançá-
la a não ser momentaneamente.
A UDN, no entanto, também apresentava divisões significativas. Todos os analistas
que abordam o partido, direta ou indiretamente, têm esta percepção da existência de várias
UDN’s. Os liberais históricos, os realistas, os golpistas, a Banda de Música e a Bossa Nova
são os principais grupamentos dentro do partido. No entanto, como assinala Benevides, a
“identificação da UDN (...) com determinadas campanhas nacionais, é o que assegurava ao
partido heterogêneo a unidade e o reconhecimento, como partido político, exatamente fora
do momento eleitoral”.503 Os aspectos que ora são abordados dentro da linha de projetos de
sociedade pertencentes à UDN fazem parte de um conjunto de temas, as idéias
polarizadoras, que podem e devem ser incluídos como parte destas campanhas nacionais.
Fazem parte dos stakes, citados por Campello de Souza em sua obra, em torno dos quais se
acirrou a disputa eleitoral do período. Não analiso aqui as particularidades de cada uma
destas “UDN’s”, mas sim o aspecto que unia uma parte delas: o golpe. Desta forma, a
ênfase recai na UDN que chamo de golpista, excluindo basicamente a Bossa Nova.

503
Idem, ibidem, p. 173.

196
197

Caracterizando as fontes
Com o objetivo de melhor identificar a posição geral do partido quanto às idéias
polarizadoras – a ampliação/restrição da participação política, a política externa a ser
encaminhada pelo país, a questão social e o projeto desenvolvimentista –, utilizo
fundamentalmente dois periódicos: a Tribuna da Imprensa e O Estado de S. Paulo. Embora
de caráter restrito, pois limitavam sua circulação ao nível estadual, os dois periódicos
buscavam abordar temas de significativa importância nacional. Além disso, eram
publicados em centros que tinham um peso significativo para a conjuntura política do país
uma vez que São Paulo apresentava-se como o principal centro econômico da nação e a
“cidade-estado” do Rio de Janeiro ainda continha parte significativa do corpo burocrático
nacional.
Os dois jornais foram escolhidos em função de apresentarem um posicionamento
francamente anti-reformista e favorável à UDN. O Estado de S. Paulo, dirigido por Júlio
Mesquita Filho era considerado, inclusive, como um jornal udenista. Para Benevides, “além
da tradição antigetulista, expressava aquilo que poderia significar o ‘liberalismo restritivo’
dos bacharéis [da UDN] paulistas”.504 Considera que os editoriais do periódico
apresentavam corriqueiramente algumas posições da retórica udenista dentre as quais a
defesa da propriedade privada e a condenação da hegemonia estatal na economia. Neste
sentido pode-se apresentar o jornal como representativo de uma importante parcela da
UDN: a paulista. Segundo Benevides o jornal é “especialmente relevante para a análise da
herança liberal da UDN”. Citando Fernando Henrique Cardoso, assinala que nenhum
“outro núcleo de opinião expressou melhor, na época, a tendência paulista da UDN” do que
este jornal. Apesar de eleitoralmente fraca, esta seção do partido “era forte em termos de
notáveis”.505 Deve-se levar em consideração também o peso que o jornal exercia junto à
opinião pública não somente paulista, mas do Brasil como um todo.
Já a Tribuna da Imprensa apresentava-se, a princípio, com um grau de
representatividade menor que O Estado de S. Paulo. Espelhava uma fração menor da UDN
pois era o “porta-voz ativo e influente” da linha lacerdista do partido, mesmo após Lacerda

504
Idem, ibidem, p.237.
505
Idem, ibidem, p. 236.

197
198

não ser mais seu proprietário.506 Apesar destas limitações, deve-se assinalar que o
lacerdismo exerceu influência significativa sobre o partido principalmente na década de 60,
período em que centro minhas análises. Segundo Dulci, a corrente “tornou-se hegemônica
dentro do partido, emprestando à UDN sua imagem final direitista, que a História e as
crônicas políticas costumam registrar”.507 Além disso, mesmo priorizando a UDN e não a
Ação Democrática Parlamentar como o efetivo centro catalisador na sociedade política, não
se pode desconsiderá-la em sua função desestabilizadora do regime vigente. A título de
exemplo tem-se que, dos 35 deputados (federais e estaduais) e senadores, citados por
Dreifuss como pertencentes à UDN e vinculados à ADP, nada menos do que um terço
pertencia à UDN da Guanabara e estava ou sob a liderança de Lacerda ou o tinha como
referencial dentro do partido. Na Banda de Música, os cariocas, junto com os mineiros,
eram os principais integrantes.508 Além disso, a UDN da Guanabara era considerada forte
em termos eleitorais e políticos.509 Neste sentido, considero que a utilização da análise dos
editoriais destes dois periódicos é de fundamental importância para a compreensão de um
perfil do partido que se apresentou majoritário ao longo da década de 1960.
Outro periódico utilizado aqui é a Revista Maquis. Este, dirigido por Amaral Neto,
outro udenista, possuía fortes vínculos com o lacerdismo e havia fundado o Clube da
Lanterna na década de 1950. Quanto à revista, também é considerada por Benevides como
um periódico notoriamente udenista,510 o que pode ser observado pela participação de um
importante membro do partido – Eliomar Baleeiro. Lacerda assinala que a mesma

506
Idem, ibidem, p. 29. A autora utiliza como referência uma citação do próprio Lacerda: “Eu queria evitar
muito que a Tribuna da Imprensa fosse um órgão da UDN até porque isso era impossível; a UDN não podia
ter um órgão – a UDN era uma maçaroca de tendências, as mais diversas, impossíveis de exprimir num só
jornal. Sobretudo porque esse jornal exprimia muito mais as minhas tendências do que as tendências da UDN.
Quer dizer, sempre me senti na UDN (...), mas sempre me senti meio como uma excrescência na UDN (...)”.
In: Depoimentos, op. cit., p. 128.
507
DULCI, op. cit., p. 38. Afirma também o autor sobre o lacerdismo que era um setor que “formava uma
nítida maioria” e suas propostas de endurecimento do embate político foram vitoriosas na XIV Convenção
Nacional da UDN. pp. 188 e 189. Benevides por sua vez assinala que Lacerda e seus simpatizantes “tenderão
cada vez mais para uma posição à direita dos demais partidos”, op. cit., p. 116.
508
BENEVIDES, op. cit., p. 231.
509
Idem, ibidem, p. 230
510
Idem, ibidem, p. 229.

198
199

“prestou muito serviço no sentido de que era um órgão de oposição”.511 O principal


enfoque da revista está no anticomunismo muitas vezes dissimulado.512
Sobrepondo-se a este material utilizo a análise dos discursos e pronunciamentos
daqueles que estiveram envolvidos num embate sistemático contra o governo Jango. A
ênfase é dada naqueles que estavam vinculados à Ação Democrática Parlamentar513 e aos
conspiradores de primeira hora do partido.514 Neste sentido, busca-se traçar um panorama
bem amplo das perspectivas e projetos de sociedade dentre aqueles que buscaram um
processo de guinada à direita dentro da UDN. Outra fonte a ser utilizada com tal objetivo
são os pronunciamentos, cartas e outros documentos mais que abordem posições destes
políticos acerca das idéias polarizadoras.
Por último, estes aspectos são confrontados com as referencias que os dois últimos
programas partidários – o de 1957 e o de 1962 –, bem como as declarações de linha política
de 1961 e 1963, e o Manifesto de Brasília, de 1962, fazem em relação à política externa,
desenvolvimentismo, participação política e a questão social. A análise dos programas se
faz de importância visto que “são indicativos de algumas referências básicas” da UDN.

511
LACERDA, Depoimento, op. cit., p. 202.
512
Algumas ressalvas poderiam ser feitas à revista pelo fato de contar com membros que foram identificados
por Dreifuss como participantes do IBAD, tais como Gladstone Chaves de Melo, que em 1962 passou a
redator da revista Ação Democrática, e também de seu irmão, Gabriel Chaves de Melo, membro da ADP. No
entanto, a mesma foi utilizada aqui apenas como fonte complementar.
513
Da lista de membros da UDN que participaram da ADP temos: Adauto Lúcio Cardoso (UDN -
Guanabara), Aguinaldo Costa (UDN - Guanabara), Alde Sampaio (UDN - Pernambuco), Amaral Neto (UDN
- Guanabara), Antônio Carlos Konder Reis (UDN - Santa Catarina), Antônio Carlos Magalhães (UDN-
Bahia), Carneiro Loyola (UDN - Santa Catarina), Celso Franco (UDN - Santa Catarina), Coronel Danilo
Nunes (UDN - Guanabara), Costa Lima (UDN - Ceará), Dias Lima (UDN - Pernambuco), Djalma Marinho
(UDN - Rio Grande do Norte), Elias de Souza Carmo (UDN - Minas Gerais ), Emival Caiado (UDN - Goiás),
Ernâni Sátiro (UDN - Paraíba), Eurípides Cardoso de Menezes (UDN - Guanabara), General Juracy
Magalhães (UDN - Guanabara), General Menezes Cortes (UDN - Guanabara), Geraldo Freire (UDN - Minas
Gerais), Hamilton Nogueira (UDN - Guanabara), Herbert Levy (UDN - São Paulo), Jaime Araújo (UDN -
Amazonas), João Agripino (UDN - Paraíba), João Mendes (UDN - Bahia), José Bonifácio (UDN - Minas
Gerais, integrante da Banda de Música e defensor do AI-5 segundo Benevides), José Humberto (UDN -
Minas Gerais), Laerte Vieira (UDN - Santa Catarina), Leopoldo Maciel (UDN- Minas Gerais ), Lourival
Batista (UDN - Sergipe), Maurício Joppert (UDN - Guanabara), Monteiro de Castro (UDN - Minas Gerais ),
Othon Mader (UDN-Paraná), Pedro Aleixo (UDN - Minas Gerais), Pereira Pinto (UDN - Rio de Janeiro),
Raimundo de Brito (UDN - Guanabara), Raul Brunini (UDN - Guanabara), Raymundo Padilha (UDN - Rio
de Janeiro), Rondon Pacheco (UDN - Minas Gerais ).
514
Bilac Pinto, conspirador desde 1963 e participante da Banda de Música; Daniel Krieger, segundo
Benevides conspirador desde 1963; Paulo Sarasate, conspirador desde 1963; Magalhães Pinto, conspirador
desde 1963 e membro do grupo realista; Aliomar Baleeiro, conspirador desde 1962 e participante da Banda
de Música; Abreu Sodré, conspirador desde 1962; Rafael Noschese, integrante da direção nacional da UDN e
conspirador; Oscar Klabin, integrante da direção nacional da UDN e conspirador; Fábio Yassuda, integrante
da direção nacional da UDN e conspirador; João Arruda; Costa Cavalcanti; Monteiro de Castro; Luis

199
200

Segundo Benevides, os udenistas faziam “nas lutas parlamentares e na imprensa constantes


alusões ao seu programa tanto para justificar políticas próprias, quanto para atacar o
governo e os projetos dos partidos da situação”.515 Isto significa que era um referencial
fundamental para que fossem estabelecidos os aliados e inimigos em potencial. A
observação feita pela autora coloca mais uma vez em pauta a necessidade, presente nos
momentos de confronto acentuado, que os grupos em embate tem em buscar realçar a
imagem que têm de si próprios e de seus inimigos. Estas, por sua vez, são elemento
fundamental para guiar seus comportamentos e respaldar até mesmo o uso da violência
contra seus opositores.
Apesar de Benevides realçar os limites e a distância entre prática e pregação da
UDN e de seu programa, isto não seria resultado do próprio jogo político e das
necessidades eleitorais de um partido? Neste sentido, entendo que estes documentos
apresentam-se como referenciais fundamentais para os percursos traçados por seus
participantes.

Cavalcanti; Poty de Medeiros; Correia da Costa e Cid Sampaio. As informações sobre este grupo de
conspiradores foi obtida em DULCI, op. cit., pp. 196 e 199; e em BENEVIDES, op. cit., pp. 127 e 232.
515
BENEVIDES, op. cit., p. 181.

200
201

O anticomunismo udenista
Alguns historiadores consideram que o antigetulismo foi uma das principais marcas
da União Democrática Nacional ao longo de toda a sua vida. Boa parte deles entende que
esta característica seria um dos principais aspectos a motivar não somente a parcela da
UDN que se articulou em torno do golpe de 1964 mas também os militares influenciados
pela DSN e o complexo multinacional-associado do IPÊS/IBAD. Estou inclinado a
considerar que estas observações estão, apenas em parte, corretas.
Sem sombra de dúvidas os udenistas eram os mais antigetulistas dentre os partidos
do período 45-64. Este aspecto estaria na raiz da sua própria origem. Formado inicialmente
como uma frente que reunia os principais opositores de Getúlio Vargas na instância
política, a UDN contava com participantes que iam da esquerda democrática até a extrema-
direita e, apesar de sua diversidade ideológica, o que os unia era justamente este sentimento
de repulsa a Getúlio Vargas e ao getulismo. Sem sombra de dúvida, também, os udenistas
eram os mais antigetulistas dentre os três principais centros catalisadores do golpe de 1964.
Não observo, por exemplo, praticamente nenhuma citação ou abordagem antigetulista
presente na documentação, por mim analisada, produzida pelos militares influenciados pela
Doutrina de Segurança Nacional os quais se opunham de alguma forma ao governo Jango.
O mesmo pode ser observado quanto à documentação produzida pelo complexo
multinacional-associado IPÊS/IBAD. Conscientes da penetração que o getulismo possuía
em meio as camadas mais pobres da sociedade os intelectuais orgânicos do IPÊS buscaram
mesmo utilizar essa influência em benefício próprio. Em documentário intitulado Depende
de mim, organizado pelo IPÊS e com a colaboração do produtor Jean Mazon e da Atlântida
Filmes, são apresentadas imagens da Hungria e o narrador assinala que lá o povo preferiu a
resistência na luta pelo restabelecimento do regime democrático contra a opressão
totalitária. Buscando assinalar que a liberdade democrática e o exercício do voto estariam
em perigo naquele momento no Brasil, o documentário procura valorizar a importância de
cada indivíduo para o exercício do voto, apelando (pasmem!) para as palavras de Getúlio
Vargas. O documentário apresenta que Vargas havia, certa vez, afirmado que “Amigos
serão todos que me seguirem na defesa do Brasil, e parentes todos que pertencem à grande

201
202

família cristã que o comunismo pretende destruir”.516 Fora este momento, praticamente não
encontrei nenhuma referência negativa direta a Vargas ou ao getulismo.
No entanto, com a UDN a situação era diferente. O antigetulismo era uma marca
indelével do partido e razão de sua própria existência enquanto Getúlio Vargas foi vivo.
Mesmo após a sua morte, os udenistas buscavam enfocar suas críticas principalmente
naqueles que seriam os dois grandes herdeiros do getulismo: Juscelino e Jango. No entanto,
considero que, principalmente, na primeira metade da década de 60 o antigetulismo abriu
espaço para outra idéia-força: o anticomunismo. Não que a negação a tudo aquilo que, de
alguma forma, lembrasse o que a UDN considerava como a herança negativa da tradição
varguista (e ela considerava quase tudo que lembrasse Vargas desta forma) estivesse
ausente do discurso udenista. Só que este acabou por ocupar uma posição senão secundária
pelo menos no mesmo plano frente às preocupações do partido com o comunismo.
A título de exemplo, observe-se os programas partidários de 1945 e 1957, mais
especificamente os tópicos referentes à democracia. O programa de 1945 assinala que a
“União Democrática Nacional preconiza e apóia um processo de democratização do Brasil,
de fim construtivo e social (...)” e interpretando “as correntes que a compõem (...) delineia a
reestruturação destinada a alcançar estes objetivos”. Esperavam os udenistas de 1945
alcançar a democracia pelo “exercício efetivo das liberdades que lhes são inerentes – de
pensamento em todas as suas formas de manifestação”.517 É obvio que, dentro do contexto
interno da sociedade brasileira, a ênfase na defesa da democracia referia-se à negação de
tudo que estivesse vinculado ao sistema político getulista. É obvio também que o próprio
contexto nacional e internacional contribuíam para que o anticomunismo não tivesse
referência neste programa. A mudança da conjuntura internacional (Guerra Fria) e da
composição interna do partido contribuíram para uma mudança gradativa de postura. A
própria posição dos udenistas frente à cassação dos mandatos de parlamentares comunistas
mostra que esta mudança foi gradual. Boa parte, embora não a maioria, votou
contrariamente a este expediente. Ao longo de fins dos anos 40 e por boa parte da década

516
Depende de mim. Arquivo Nacional, Seção de Documentos Sonoros e de imagens em Movimento. O filme
se dirige a diferentes categorias de trabalhadores como pedreiros, tintureiros, sapateiros, carpinteiros,
aeronautas, agricultores e outros, demonstrando que do voto de todos depende a manutenção da democracia,
da liberdade e da defesa das tradições cristãs.
517
Programa Partidário de 1945 da União Democrática Nacional. Arquivo UDN do Instituto Histórico
Geográfico Brasileiro.

202
203

de 50 a preocupação mais imediata era com o peronismo e a chamada “República


Sindicalista”, perigos mais imediatos.
Contudo, o programa de 1957 assinala que os “medos” mudavam de ares. Neste, o
partido assinala que sua atenção ainda era manter a “sua tradição de luta pela Democracia
Representativa, único regime político capaz de assegurar o desenvolvimento econômico”.
Mas a defesa deste regime implicava no “combate tenaz ao comunismo e ao reacionarismo,
os quais, embora perseguindo desígnios opostos, são igualmente “liberticidas” pondo “em
risco as instituições” e abrindo “caminho à anarquia”.518 A referência aí encontra-se bem
clara para solicitar qualquer observação adicional sobre o anticomunismo do partido.
Também em depoimentos e textos contemporâneos percebe-se a mudança de tom
das analises udenistas e o anticomunismo apresenta-se como um tema com muito mais
recorrência do que a ameaça de uma República Sindicalista. Aliás, quando este aspecto é
referido normalmente apresenta-se vinculado ao comunismo. A República sindicalista
passa a ser compreendida apenas como uma etapa para se chegar efetivamente ao
estabelecimento do “regime totalitário” comunista. Ambos os sistemas políticos seriam
incompatíveis com a Democracia concebida pelos udenistas. Para eles boa parte da
estrutura política vigente estava viciada por características do período Vargas e que não
haviam sido eliminadas mesmo com a Constituição de 1946. Isto porque a “demagogia, a
influência do poder econômico sobre as decisões eleitorais, o desenfreado negocismo dos
políticos, os contínuos desrespeitos e violações ao espírito e à letra da Carta de 46” eram
uma constante.519 Uma destas características era a existência de um “regime de horda
imperante na fronteira” sob o “arbítrio do caudilho”, a “única lei válida e suprema”.
Exemplos deste tipo de prática política encontravam-se presentes tanto no “ditador” quanto
no seu “pupilo” (Jango), e no “cunhado deste”520 (Brizola), que possibilitavam, desta forma
a instauração da subversão social. Jango, neste sentido, é tido como tributário de Getúlio e
de sua política, principalmente no que se refere à última fase do governo Vargas. Segundo
Lacerda, foi neste momento em que Vargas,

518
Programa Partidário de 1957 da União Democrática Nacional. Arquivo UDN do Instituto Histórico
Geográfico Brasileiro.
519
Editorial. “Ganhar a guerra contra a revolução”. A Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro dias 09 e 10 de
maio de 1964.
520
Seção Notas e Informações. “ Subversão em marcha”. In: O Estado de S. Paulo, de 02 de março de 1962.

203
204

“(...) já velho – o Getúlio nunca foi comunista –, já desgastado, por ambição de


poder, ambição de poder que era sua grande e permanente constante, iria se
entregar, ou estava se entregando, a uma esquerda informe, ideologicamente
indefinida, mas praticamente muito atuante no sentido da república sindical, no
sentido, digamos, de uma espécie de subperonismo”.521

A República Sindical apresenta-se aqui como o resultado de uma elaboração política


realizada pela esquerda “indefinida” mas aparecem momentos em que se percebe que era
entendida por alguns como fruto de uma direita reacionária. Aliás a ambição citada era uma
característica presente no “caudilhismo” de determinados políticos e apresentava-se
extremamente perigosa, já que os “políticos, movidos talvez pela irresponsabilidade da
ambição, podem ser mais facilmente influenciados pela evangelhização vermelha do que as
próprias massas populares”.522 O peronismo apresentava-se como um “populismo de fundo
ditatorial também baseado numa popularidade autêntica” e, a partir desta popularidade,
destinado à implantação de uma “programação autoritária.523 É certo que nas mãos de
Vargas este regime não seria comunista, já que “Getúlio nunca foi comunista”. No entanto,
o mesmo não poderia ser considerado em relação a seu “pupilo”, muito mais propenso às
influências de uma esquerda cada vez mais atuante. Um quadro como este – caos social e
ambição pelo poder – poderia ser muito bem manipulado pela esquerda “ideologicamente
mais consistente” para a implementação do regime comunista. Na ambição de manutenção
do poder alguns políticos apresentavam-se extremamente complacentes com os comunistas
permitindo, inclusive, a sua presença na sociedade civil, na vida política parlamentar e no
próprio Poder Executivo. As providências tomadas pelo governo para a legalização da
CGT, por exemplo, acarretavam em sérios riscos para a segurança nacional. A central havia
sido “idealizada em moldes peronistas” e apresentava-se como um “instrumento a mais nas
mãos dos pelegos comunistas para fazer pressão sobre o Congresso e as entidades
patronais”.524
Um aspecto que possibilitava, na concepção dos udenistas, uma transição efetiva da
República Sindicalista para o regime comunista era que ambos se caracterizavam por serem
regimes autoritários. Em ambos os regimes existiria uma elite que se concebia com uma

521
LACERDA, Depoimentos, op. cit., p. 122.
522
Seção Notas e Informações. “Infiltração comunista”. In: O Estado de S. Paulo, de 17 de setembro de 1961.
523
LACERDA, op. cit., p. 129.

204
205

vanguarda incumbida de governar o mundo em nome da “grande massa”. Embora


perseguindo “desígnios opostos” ambos eram “liberticidas” manobrando estas massas na
medida em que chamavam-nas para o exercício do voto, quando o faziam, para votar de
forma unânime e, desta maneira, abriam caminho para a anarquia. No programa partidário
de 1957, fala-se em combate tanto ao comunismo quanto ao reacionarismo. A República
Sindical – também denominada por “Peronismo”, de “República do regime da horda
imperante na fronteira”, de “República Sindical e camponesa”, de República “Campônio-
Sindicalista” e outras esdrúxulas designações – era concebida aqui como um regime
reacionário de caráter fascista. Apresentava variações em relação a este, posto que o
fascismo já não encontrava condições para ser implementado com todas suas
características, mas mantinha ainda o caráter ditatorial, a ausência de liberdades políticas, a
excessiva intervenção do Estado na economia e a recorrência às massas. Era, em suma, um
regime extremista e, para os udenistas, não existia distinção entre os extremismos da
esquerda ou da direita:
“Os argumentos que empregam podem ser diferentes, mas iguala-os o mesmo
desprezo pela pessoa humana e pelas liberdades fundamentais e a mesma tendência
para alcançarem pela violência aquilo que sabem não poder atingir pela persuasão e
com a concordância das massas. (...)”.525

O recurso à violência era uma característica da República Sindicalista, onde não


existem limites constitucionais para conter o apego ao poder do líder. A sua vontade é a
única que deve ser seguida e obedecida, posto que não “existe código moral, nem sistema
de usos e costumes capazes de conter os ímpetos incontroláveis dos que formaram a
mentalidade e o caráter nessa terra de ninguém que é a fronteira”.526
Contudo, se por um lado a “extrema-direita ousar lançar mão de métodos
527
tipicamente terroristas, o comuno-nacionalismo não lhe fica atrás”. Afinal de contas os
fundamentos teóricos do regime comunista estavam na idéia de luta de classes, propagada
por Marx e Engels. O primeiro, “profeta europeu” do século XIX pensava em transformar o
mundo num imenso campo de “guerras sociais e de lutas de classe” que seriam “aberta[s] e

524
Seção Notas e Informações. “CGT (peronista) ao arrepio da lei”. In: O Estado de S. Paulo, de 05 de abril
de 1963.
525
Seção Notas e Informações. “Fascismo versus comunismo”. In: O Estado de S. Paulo, de 16 de janeiro de
1962.
526
“ Subversão em marcha”, op. cit.
527
Idem, ibidem.

205
206

violenta[s]” e que teriam “o pretexto da emancipação social”.528 A propaganda comunista


do século XX colocava ênfase especial na idéia de que as transformações sociais que
almejavam poderiam ser obtidas somente através da força. Tratava-se de, primeiro, instalar
o caos e, depois, estabelecer a ordem comunista.
Os exemplos do Laos, da Coréia e de “outros países convertidos pelo imperialismo
soviético em cruentos campos de batalha” eram citados como uma forma de prevenir a
sociedade brasileira dos perigos que esta pregação da violência poderia gerar.
Principalmente numa sociedade acostumada a uma suposta vinculação histórica do
pacifismo e com “tradicionais pendores políticos”.529 Desde 1961 já observa-se a difusão de
um alerta para a sociedade de que o país poderia descambar para a guerra civil. Afirma-se
que eram distribuídas armas para as parcelas mais pobres da sociedade, com um claro
intuito subversivo, em várias partes do país e com o conhecimento das autoridades
estaduais e federal. A formação e propagação das Ligas Camponesas eram um outro
exemplo prático de que, no país, se desenvolvia uma ação que era fruto de “esforços
despendidos pelos agentes de Moscou”530 e que poderiam ser coroados de êxito, “à custa de
sacrifícios inumanos que incluem mesmo o assassínio em massa”.531 Os comunistas,
afirmavam, obedeciam à “certeza de que o sangue, a dor e a miséria constituirão, entre nós
o único caldo de cultura favorável aos seus desígnios”.532 Este alerta geral culmina com a
denuncia por parte de Bilac Pinto, presidente da UDN, a 16 de Janeiro de 1964, de que o
próprio governo era cúmplice do desenvolvimento de uma “guerra revolucionária” no
país.533 Aliás o “’papel ostensivo na divulgação das teses de guerra revolucionária” não
coube apenas a Bilac Pinto, mas a boa parcela da UDN.534
A pregação da violência por parte dos comunistas também chocava-se com outra
característica inerente à sociedade brasileira: a sua essência cristã. Composto em sua
maioria por católicos, o país deveria estar atento às pregações do Papa João XXIII. Afinal
de contas a Igreja Católica tinha um “alto valor como contribuição oferecida pelo

528
Seção Notas e Informações. “A nova encíclica social”. In: O Estado de S. Paulo, de 14 de julho de 1961.
529
“Infiltração comunista”, op. cit.
530
Seção Notas e Informações “A última tentativa”. In: O Estado de S. Paulo, de 15 de maio de 1962.
531
Seção Notas e Informações. “Os dois caminhos”. In: O Estado de S. Paulo, de 28 de outubro de 1961.
532
“Infiltração comunista”, op. cit.
533
DULCI, op. cit., p. 203.
534
BENEVIDES, op. cit., p. 124.

206
207

pensamento católico ao estudo das sociedades ocidentais”.535 Mas isto não estava
ocorrendo. Tanto que alguns “desertores da fé cristã” agiam dentro da própria Igreja,
causando a confusão e abrindo as suas portas “à influência do materialismo histórico”. No
entanto, a alta hierarquia estava aplicada em denunciar a posição destes “desertores” e
apresentava-se como “a última barreira que a Nação pode oferecer à revolução comunista
em marcha”.536
O confronto entre a Igreja e o comunismo não se apresentava como algo novo. O
embate já se travava desde o século XIX, quando o “profeta europeu” do materialismo
histórico iniciava sua pregação. A Igreja Católica buscava, já aí, apresentar que o
desenvolvimento das sociedades deveria se dar de forma pacífica e harmoniosa, com base
no humanitarismo que “em todos os tempos caracteriza a Igreja do Cristo” e que os partidos
comunistas, as “potências das trevas” tanto empenhavam-se em destruir. Neste sentido,
“nenhuma conciliação é possível entre comunismo e religião”.537 Existiam formas
superiores de desenvolvimento que negavam a violência como instrumento fundamental a
obtê-las e o Vaticano empenhava-se na sua propagação com uma série de encíclicas que
teriam culminado com a publicação de Mater et Magistra.538 A evolução social de caráter
harmonioso contou com a contribuição decisiva da “consciência cristã” e é um
“(...) fato indiscutível da história que a intervenção do Papa Leão XIII na evolução
social das sociedades industrializadas da Europa foi um dos fatores que mais
decisivamente impediram a realização das previsões e utopias marxistas e
remediaram as injustiças do incipiente e voraz protocapitalismo dos meados do
século XIX”.539

O Brasil deveria seguir o mesmo caminho. O comunismo, neste sentido,


representava também a negação dos vínculos que o país possuía com o mundo ocidental. O
cristianismo era um dos eixos fundamentais desta civilização do ocidente. Os outros
aspectos que a compunham eram a democracia e a propriedade privada, e também estes
estavam sob ataque direto do comunismo.

535
Seção Notas e Informações. “O pensamento do Sr. Celso Furtado e o comunismo”. In: O Estado de S.
Paulo, de 05 de maio de 1963.
536
Seção Notas e Informações . “ Contra a Igreja e a Constituição”. In: O Estado de S. Paulo, de 18 de
dezembro de 1962.
537
Idem, ibidem.
538
As encíclicas são Rerum Novarum (Leão XIII - 1891) e Quadragésimo Anno (Pio XI - 1931). A encíclica
Mater et Magistra, que culminaria esta série de encíclicas em defesa da propriedade privada, foi publicada em
1961 e foi também amplamente utilizada na propaganda do IPÊS.

207
208

Já foi falado aqui da oposição que a direita política da UDN fazia entre democracia
e comunismo. Quanto à questão da propriedade privada também a Igreja fazia a sua defesa
intransigente desde o século XIX com a encíclica Rerum Novarum de Leão XIII. Também
aqui, como nos outros grupos, assinala-se a relação existente entre liberdade política e
liberdade econômica. A propriedade privada era considerada como um princípio básico
sobre o qual “repousa toda a estrutura social que, desde a Grécia e a Roma republicana até
aos nossos dias, constitui o fundamento da quase totalidade, senão da totalidade, das nações
ocidentais”.540
Concebida, “por todos nós liberais”, como um “fato social espontâneo inerente a
determinado estágio superior da vida civilizada” a propriedade privada “independe da
vontade do homem para existir”. Entender a propriedade privada de outra forma é adotar
um “humanismo em visceral oposição àquele que constitui a essência da formação
intelectual tanto dos liberais-democratas como de todos quantos obedecem aos
ensinamentos da Igreja Católica”.541 Neste sentido, encará-la “como simples instrumento a
serviço da vontade do homem equivale a varrer da história da evolução dos grupos sociais,
que tiveram por epicentro o Mediterrâneo, a sua característica específica”.542 Além disto,
possibilitaria o privilégio do Estado sobre o indivíduo, a capacidade deste em se apropriar
de todos os bens de produção e, assim, chegar-se ao comunismo. Isto evitaria que o Brasil
guardasse as mesmas características do bloco mundial em função das quais chegou a um
estágio de superioridade sobre o mundo oriental, sobre o mundo comunista.
Não era à toa que o ódio dedicado aos comunistas também se dirigia contra os
nacionalistas, “inocentes úteis” nas mãos dos primeiros. Existiam situações em que os
comunistas preferiam ocupar o governo através de uma ação indireta, de forma a não
ficarem expostos à ação da polícia. Os nacionalistas apresentavam-se como perfeitamente
adaptados aos interesses comunistas. Primeiro porque possibilitavam um passo inicial na
direção da construção de um Estado totalitário, na medida em que defendiam a estatização
da economia. Com a nacionalização dos bens de produção “passaria o Estado a faculdade
de distribui-los, o que em bom português significaria, no Brasil como alhures, a

539
“A nova encíclica social”, op. cit.
540
“O pensamento do Sr. Celso Furtado e o comunismo”, op. cit.
541
Idem, ibidem.
542
Idem, ibidem.

208
209

implantação do regime comunista”.543 Outra conseqüência direta desta prática seria


possibilitar o “privilégio do Estado sobre o indivíduo”.
A ameaça havia aumentado ainda mais depois da implantação, em Cuba, de um
regime comunista. Agente direto dos interesses soviéticos no continente americano, a
propaganda castrista procurava disseminar a luta de classes no Brasil. Isto acabaria por
inviabilizar o país de chegar ao grau de desenvolvimento que estava presente nas
sociedades mais avançadas do mundo ocidental, uma vez que a “Rússia, a despeito de todo
o ruído dos seus “satélites astrais, está ainda muito longe de poder competir com a grande
República do Norte no domínio econômico e financeiro”.544 Além disto, o regime
comunista oferecia possibilidades infinitamente inferiores de preservação das
545
“prerrogativas de liberdade política do homem”.

543
Idem, ibidem.
544
Editorial. “Propósito infeliz”. A Tribuna da Imprensa, 12 de março de 1961.
545
“ Os dois caminhos”, op. cit.

209
210

O desenvolvimentismo da UDN de extrema-direita

“Se a agricultura recebesse a décima parte dos benefícios


e da assistência que outras atividades costumam receber o Brasil
estaria em plena fartura e não haveria perigo de fome a rondar
nossas portas. Quando se dizia que esta nação era essencialmente
agrícola, V. Exa. sabe que ninguém negava ao pobre um prato de
comida. A fome não era conhecida na pátria. Somente após esse
processo de industrialização a toque de caixa, contra o qual não
sou porque todos desejamos a multiplicação dos músculos do
homem através da máquina; só depois desse processo de
industrialização sem qualquer organização, sem qualquer
experiência ou qualquer meditação mais profunda, é que a fome
passou a rondar nossos lares, e passou mesmo a marcar grande
número de famílias brasileiras”.

Deputado Federal Geraldo Freire.

Carlos Lacerda, em mensagem enviada à Convenção Nacional da União


Democrática Nacional de 1961, busca acentuar a necessidade do partido definir-se quanto
à sua linha política o mais rápido possível para que não se enfraquecesse pela ausência de
uma posição clara de seus objetivos. O então governador tinha em mente delimitar uma
linha de conduta que tornasse mais visível a diferença deste em relação aos demais partidos
componentes do quadro partidário. A afirmativa torna claro o reconhecimento de Lacerda
em relação à diversidade existente dentro da UDN, mas assinala que a vontade de conciliar
não deveria ser levada longe demais pois a “UDN tem que assumir responsabilidades”.546
Observada posteriormente, esta mensagem pode ser encarada como uma verdadeira
convocação ao partido para que cerrasse fileiras diante das dificuldades que estariam por
vir entre os anos de 1961 e 1965, no embate com as forças políticas de esquerda e centro-
esquerda. Provavelmente, em sua mensagem, o governador referia-se ao grupo da Bossa
Nova, que apresentava teses de posicionamento mais à esquerda dentro do partido e que lhe
desfigurava, de certa forma, dentro do embate citado.547

546
Mensagem de Carlos Lacerda à convenção da UDN em 29.04.1961, p. 2. Arquivo UDN do IHGB
547
A Bossa Nova, no Congresso Nacional, era composta pelos seguintes participantes: Adolfo Oliveira, José
Carlos Guerra, Celso Passos, Tourinho Dantas, Ferro Costa, Edison Garcia, Francelino Pereira, WilsoBarbosa
Martins, Gil Veloso, Costa Lima, Arnaldo Nogueira, Djalma Marinho, Wilson Falcão, José Meira, Pedro
Braga, Flaviano Ribeiro, Pereira Lúcio, José Aparecido, Horácio Bethonico, Oscar Pedroso, Vital do Rego,
José Sarney e Simão da Cunha. Apresentava propostas de caráter reformista e nacionalista. Arquivo UDN,
IHGB.

210
211

A diversidade existente dentro da UDN já foi percebida por alguns analistas do


quadro político-partidário compreendido entre 1945 e 1964. Maria Victória Benevides, por
exemplo, assinala a existência de várias UDN’s, de caráter regional. De certa forma, esta
diversidade não é observada aqui, pelo menos no que se refere ao projeto
desenvolvimentista do grupo analisado. Isto por dois motivos. O primeiro porque, como
citado no comentário das fontes utilizadas em minha análise, busco privilegiar aqueles
grupos que, dentro da UDN, tomaram um posicionamento de oposição sistemática ao
governo Jango e que participaram ativamente das tramas golpistas. E num momento de
disputa acirrada que caracterizava a fase analisada, tornava-se fundamental o
posicionamento claro em relação aos diferentes objetivos perseguidos pelos participantes
do jogo político.
Outro aspecto que também explica a homogeneidade aqui apresentada é assinalada
por Benevides, que afirma que a “identificação da UDN, no entanto, com determinadas
campanhas nacionais, é o que assegurava ao partido heterogêneo, a unidade e
reconhecimento como partido político, exatamente fora do momento eleitoral”.548 Neste
sentido, apesar da presença da “Bossa Nova” dentro do partido, este apresentava uma
coesão significativa, quase que majoritária, quanto à idéia polarizadora aqui analisada.
O projeto desenvolvimentista vigente em quase todo o período compreendido entre
1951 e 1964 era alvo de inúmeras críticas por parte dos udenistas. Segundo afirmavam, este
era o grande responsável pela situação calamitosa em que se encontrava o país naquele
momento. Para eles o equívoco dos diversos projetos desenvolvimentistas que
predominaram no período estava na ênfase no crescimento da produção industrial. O
industrialismo alucinante, “estabelecido a toque de caixa”, a que havia sido submetida a
nação, acarretava num pesado ônus para a atividade agrícola. O governo, ao estabelecer
taxas cambiais privilegiadas para a importação de insumos necessários à industrialização,
acabava por subsidiar esta atividade econômica. Eram “confiscos discriminatórios” que, na
sua maior parte, eram realizados sobre a atividade agrícola, no final das contas a grande
financiadora da industrialização.549 Por sua vez, esta indústria que aqui se estabelecia não

548
BENEVIDES, op. cit., p. 173.
549
Recomendação da UDN de Curitiba de apoio a seus representantes na Câmara dos Deputados e Senado.
14ª Convenção Nacional da UDN. Curitiba, 1963. Arquivo UDN do IHGB. Ver também: Editorial.
Unificação cambial e liberdade econômica. OESP, de 15 de março de 1961.

211
212

apresentava contrapartida ao prejuízo que provocava nos agricultores na medida em que


não proporcionava os artigos industrializados que eram demandados pelo mundo rural.
Neste sentido, o “campo” perdia a disputa por determinados fatores de produção. Primeiro
na concorrência pela obtenção de mão-de-obra. Segundo porque a indústria acabava por
desviar recursos significativos que o Estado poderia aplicar diretamente na atividade
agrícola, relegada ao completo descaso. Isto prejudicava, inclusive, a própria indústria,
uma vez que “se as comunidades agrícolas estão fora do giro econômico”, provocado pela
ausência de recursos, acabavam por não comprar os “produtos de nosso cada vez mais
diversificado parque industrial” e “não concorrem para a [sua] expansão”.550
O privilégio dado à indústria traduzia-se ainda pela propagação de outros males,
segundo concebiam. O Estado, na ânsia de estimular o industrialismo como tábua de
salvação da nação tomava atitudes de crescente intervenção na economia. Esta, por sua vez,
adquiria duas formas específicas. A primeira, através de ações que buscavam eliminar os
mecanismos naturais de funcionamento do mercado e acabavam por diminuir,
gradativamente, o espaço que seria por direito da propriedade privada e da livre iniciativa.
Observa-se isto, por exemplo, através da tentativa de regulamentação da remessa de
lucros para o exterior e da diferenciação de oportunidades entre o capital nacional e o
capital estrangeiro. Ambos estavam diretamente relacionados porque contribuíam para
privar o território nacional de algo que era profundamente necessário para a continuidade
do processo de autonomia da economia nacional: a presença de capitais estrangeiros. O
“desenvolvimento simultâneo da agricultura e da industria e a criação de uma infra-
estrutura industrial” dependiam diretamente deste tipo de capital uma vez que,
internamente, ele era escasso.551 Esta carência de capitais induzia, inclusive, à formação de
monopólios e impedia o aparecimento de inúmeras empresas que estimulassem a livre
competição econômica. Negar este capital significava
“atentar contra o progresso e o desenvolvimento do país, fechando as nossas portas
à técnica e à poupanças externas e ameaçando de pobreza e desemprego um país
como o nosso que, com o seu rítmo demográfico, necessita irradiar cada vez mais os
seus mercados de trabalho”.552

550
Editorial. “Reforma Agrária”. Tribuna da Imprensa, 25 de janeiro de 1962.
551
Seção Notas e Informações. “Os dois caminhos”. In: O Estado de S. Paulo, de 28 de novembro de 1961.
552
Editorial. “Recomeço”. Tribuna da Imprensa, 01 de fevereiro de 1962.

212
213

Além disto, a tentativa de controle da remessa de lucros para o exterior era obra
subversiva uma vez que defendida diretamente pelos mesmos que aprovavam o reatamento
de relações econômicas e diplomáticas com países comunistas.553
De outro lado, o Estado também buscava apresentar-se cada vez mais como um
empreendedor. A prática de crescente estatismo e a difusão desta mentalidade ameaçava
diretamente a sobrevivência de todo o sistema de iniciativa privada. Para Raimundo
Padilha, isto era decorrente de uma filosofia na qual o Estado brasileiro “resolveu ser
comerciante, industrial, empreendedor em suma” e tinha por proposta continuar “intervindo
indefinidamente até chegar aos 30% sobre o produto nacional, que é a contribuição
brasileira à obra, à filosofia da estatização nacional neste instante”.554 Segundo Geraldo
Freire,555 existia “um perigo de estatização geral no país”.556 O passo seguinte seria a
socialização dos bens de produção e o comunismo.
O estatismo era fruto de uma mentalidade antieconômica ocasionada pela ausência
de uma “economia ativa e em plena evolução” em partes do país que possuíam
representação significativa no Congresso Brasileiro.557 O Estado, segundo o deputado
Padilha, pretendia apresentar-se como empreendedor para atender aos anseios de
industrialização acelerada. Esta política industrializante seria resultado direto de uma
prática cada vez mais intervencionista que tinha por objetivo a concretização da filosofia
nacionalista.
O que seria o nacionalismo na ótica deste grupo? Seria uma filosofia propagada
pelos comunistas com o intuito dedisseminar, de forma dissimulada, a confusão na
sociedade a partir do estabelecimento de uma falsa oposição entre os interesses nacionais e
o interesse do principal parceiro brasileiro: os Estados Unidos da América.
Neste sentido, observam-se considerações sobre o nacionalismo que o entendiam
como uma doutrina totalitária pois colocava “a nação acima de tudo” quando, na
perspectiva de Lacerda, ela estava “abaixo da Pátria e até está abaixo do Homem”.558 O

553
Editorial. “Forças Armadas dizem não ao esquerdismo”. In: Revista Maquis, de 06 de janeiro de 1962, pp.
22 a 24.
554
PADILHA, Raimundo. Discurso. ACD. Deputado udenista pelo Rio de Janeiro e ex-secretário-geral do
partido, sendo também membro da ADP.
555
Udenista de Minas Gerais e participante da ADP.
556
FREIRE, Geraldo. Discurso. ACD. Membro da UDN de Minas Gerais e participante da ADP.
557
Seção Notas e informações. “A lição da Inglaterra”. In: O Estado de S. Paulo, de 16 de maio de 1961.
558
Mensagem de Carlos Lacerda à convenção da UDN, op. cit.

213
214

nacionalismo possibilitava a “infiltração comunista” já que “muitos dos verdadeiros


nacionalistas se deixaram envolver pelo canto da sereia vermelha”.559 A similaridade com a
situação cubana, onde a “revolução foi apresentada como nacionalista, depois como
antiimperialista e por fim como marxista”,560 era reiteradamente apontada. Ao defender os
interesses nacionais, os nacionalistas na verdade estimulavam uma ampliação da ação do
Estado que acabaria por tolir a iniciativa privada e facilitar a estatização dos bens de
produção. Isto era um equívoco, inaceitável para eles e assinalado por diversos Papas como
Leão XIII (Rerum Novarum), Pio XI (Quadragégimo Anno) e João XXIII (Mater et
Magistra). O equívoco seria ainda estimulado por comunistas que não entendiam que
“(...) A propriedade privada não é uma coisa, mas sim uma realidade: a própria
maneira como desde os seus primórdios conceberam os povos ocidentais as bases
das sociedades humanas. Encará-la como simples instrumento a serviço da vontade
do homem equivale a varrer da história da evolução dos grupos sociais que tiveram
por epicentro o Mediterrâneo a sua característica específica”.561

Ao final de tudo, todas estas medidas – industrialismo, nacionalismo e estatização –,


em vez de provocar o desenvolvimento econômico do país, acabavam por desencadear e
estimular um processo inflacionário que era o verdadeiro mal que afetava o povo brasileiro.
E era contra a inflação que as baterias udenistas disparavam. Considerada como problema
número um do país, a inflação era a “responsável pela brutal elevação do custo de vida”.562
Combatê-la com “energia e obstinação” era tarefa fundamental concebida pela UDN em
sua Carta de Princípios de 1962. No mesmo ano, através do Manifesto de Brasília, o
partido reafirmava esta consideração, assinalando que o país ingressava no “estágio da
hiperinflação” e caminhava “para o caos”.563 A situação fazia com que Herbert Levy se
perguntasse:
“Até que ponto este povo tem que ser submetido ao suplício da inflação galopante,
ao suplício da desordem organizada nos quadros do governo, para que, então, a

559
NOGUEIRA, Hamilton. Discurso. ACD. Membro da UDN da Guanabara e participante da ADP.
560
Edtorial. “Fidel persegue hoje seu grande aliado de ontem: a Igreja”. In: Revista Maquis, n° 224, de 14 de
outubro de 1961, pp. 22 a 24
561
“O pensamento do Sr. Celso Furtado e o comunismo”, op. cit.
562
Carta de princípios da União democrática Nacional de 20 de fevereiro de 1962. Arquivo UDN do IHGB.
Aprovada pelo Diretório Nacional. Segundo Herbert Levy, presidente do partido neste momento, a Carta de
princípios tinha por objetivo deixar “bem delineada a posição da UDN frente ao próximo pleito e aos grandes
problemas nacionais”. In: Revista Maquis, n° 237, de 13 de janeiro de 1962, p 5.
563
Manifesto de Brasília, op. cit.

214
215

nação, o Congresso se levantem para dar um basta a estes homens que tudo
submetem aos seus caprichos e as suas ambições?”.564

Assinalavam que a agitação social e a progressiva eliminação da classe média


faziam parte dos desdobramentos do processo inflacionário. A carestia impedia o povo de
ter condições mínimas de sobrevivência já que impedia a população de alimentar-se
dignamente. Ao mesmo tempo concorria para a eliminação da classe média pois
“(...) quem fala em proletarização da classe média fala na extinção de todas as
classes, porque há de chegar aquele instante em que existirá um único poderoso,
diante das classes ou da classe única, que é a classe plutocrática, minoria apenas, é o
Estado avassalador ao qual não custa, por uma pena, destrui-la”.565

A inflação direcionava o país para a deterioração das condições econômicas e


provocava a anarquia financeira. Atacando-se a inflação, afirmavam, estariam sendo
atacadas as condições que inviabilizavam a estabilidade geral.
Concebia a maior parte da UDN que a inflação resultava não somente da
incapacidade administrativa do governo, mas era conseqüencia direta de uma política
monetarista equivocada que buscava encaminhar o país para o comunismo. Afinal de
contas, para os comunistas valia a máxima do “quanto pior melhor”. A política de emissão
sistemática de papel moeda para subsidiar a industrialização, para fazer-se presente como
Estado empresário, para bancar o protecionismo econômico é que haviam colocado o país
nesta situação. Para os udenistas “não há correlação entre a emissão de moeda e o
desenvolvimento nacional”.566 Ao afastar os capitais estrangeiros o país estimulava o
encarecimento do dólar e dos produtos industrializados. Não era por menos que Raimundo
Padilha concebia que o governo JK foi “a consagração do inflacionismo mais desapoderado
sob a forma de progressivismo ou desenvolvimentismo econômico”.567 Afinal, foi em seu
governo que a expectativa de industrialização acelerada havia se estabelecido.
A partir desta forma de concepção da realidade nacional, colocavam-se para os
udenistas dois problemas: como resolver a questão da inflação e como obter o

564
LEVY, Herbert. Discurso. ACD. Deputado Federal pela UDN, conspirador de início segundo Dulci, op.
cit., p. 199. Presidente do partido a partir de 1961, segundo Benevides era da linha lacerdista (op. cit., p.
115). Vinculado ao IBAD em São Paulo (segundo a mesma autora, p. 127).
565
PADILHA, Raimundo. Discurso. ACD.
566
SAMPAIO, Alde. Em apartes sobre a política econômica emissionista encaminhada pelo governo. ACD.
Membro da UDN pernambucana e participante da ADP.

215
216

desenvolvimento econômico. Para eles, ambos estavam estreitamente entrelaçados. Isto


porque a inflação resultava de uma distorção do mercado provocada por uma política
intervencionista de caráter comunista. Solucionar o problema significava promover o
retorno do mercado aos seus mecanismos naturais. A ação do Estado e da iniciativa privada
concorreriam para isto.
Se, ao analisar-se todo o período de existência do partido, apresenta-se difícil a
identificação de uma “política econômica udenista”,568 o mesmo não acontece quando se
restringe esta observação ao período aqui abordado. Isto explica-se na medida em que,
diante de um embate mais acirrado dentro do cenário político em questão e da liderança
incontestável da facção de centro-direita dentro do partido – a UDN golpista –, este viu-se
forçado a uma definição mais clara sobre os seus princípios, conforme assinalado
anteriormente.
A ação do Estado preconizada pelos udenistas não era de caráter interventor, mas
sim de coordenação da economia. A Carta de Príncípios de 1962 já previa a criação de um
órgão que visasse “institucionalizar o planejamento governamental, graças ao qual se
poderá conter o surto inflacionário sem sacrifício do desenvolvimento econômico e da
progressão social”.569 Seria uma intervenção indireta, fruto de uma prática que era
inevitável.
“E a razão é óbvia: é porque o Estado Liberal, o mais inerte dos Estados liberais
fabricou mercadoria chamada dinheiro. Desde o momento em que começou a
fabricar dinheiro, começou a controlar a economia, por via transversa, porque ,
através da bomba de sucção (...) evidentemente o Estado passou, seja ele da índole
mais libertária, a promover esta ou aquela influência direta ou indireta na formação
geral de preços”.570

A estabilização da moeda seria o primeiro passo a ser seguido para que qualquer
tipo de reforma fosse implementada. Para alcançá-la fazia-se necessário acabar com a
política emissionista do governo e implementar a austeridade no gerenciamento
governamental. Isto seria obtido, num primeiro passo, através da diminuição de seu papel
como agente interventor. A desestatização da economia era condição sine qua non para a

567
PADILHA, op. cit. Ver também: Editorial. “Ganhar a Guerra com a Revolução”. Tribuna da Imprensa, 09
e 10 de maio de 1964.
568
BENEVIDES, op. cit., p. 204.
569
Carta de Princípios..., op. cit.
570
PADILHA, Raimundo. Discurso. ACD.

216
217

diminuição das emissões de papel moeda nos níveis em que o país se encontrava. Da
mesma forma, os subsídios direitos e indiretos deveriam ser redistribuídos para o conjunto
da economia nacional e não serem destinados apenas para uma pequena parcela do sistema
produtivo.
Acompanhando esta correção de rumos, estaria o estabelecimento de um novo
relacionamento em relação ao capital internacional, dispensando um igual tratamento em
relação ao capital nacional como bem assinala a Carta de Princípios de 1962. Aliás, o
próprio conceito de capital internacional deveria ser revisto. Como poderia ser concebido
como “estrangeiro um capital que se aplica em empresas brasileiras e de acordo com leis
brasileiras”.571 Um tratamento similar devolveria a segurança ao mercado os dólares, que
teriam fugido do país diante da crescente presença de mecanismos de controle que
inviabilizavam o livre-comércio.
Além disto, o capital internacional concorria diretamente para o processo de
industrialização do país. Sua entrada possibilitava o equilíbrio do balanço de pagamentos e
a continuidade do desenvolvimento econômico do país pois viabilizaria a capacidade
brasileira de importar tecnologia. O capital internacional não deveria ser visto com
desconfiança, já que ele não representava nada mais do que a contrapartida norte-americana
ao alinhamento brasileiro na luta contra o comunismo. Era isto que precisava ser
compreendido pela sociedade brasileira e pelos falsos nacionalistas, que buscavam
apresentar a oposição entre defensores e opositores da entrada deste capital como uma luta
entre nacionalistas e entreguistas. Nada mais falso e equivocado, diziam.
Neste sentido, a maior parte da UDN de extrema-direita proclamava claramente a
sua negação a uma “ideologia nacionalista” mas também negavam-se a pecha de
“entreguistas”. O nacionalismo era fator de conflitos, ideologia totalitária, arma
anticapitalista que afastava o país dos seus principais parceiros internacionais.
Consideravam-se “patriotas” pois era o patriotismo que se apresentava como a base pela
qual seria obtido o impulso a “afirmação nacional”. Era o que consideravam figuras
importantes da UDN, tais como Carlos Lacerda, Geraldo Freire, Pedro Aleixo e Hamilton
Nogueira, dentre outros. Para eles, a independência nacional afirmava-se
concomitantemente à uma interdependência das nações.

217
218

“Mas haverá, Senhores, uma política independente no mundo hoje, a não ser num
vago país habitado por Robinson Crusoé? Haverá, porventura, neste mundo de hoje,
senão uma reciprocidade de relações que torna cada país dependente de outro país, e
numa dependência que tanto mais cresce quanto maior é esse país, por conseguinte
na razão direta de sua própria força? Em conseqüência, a política de independência
se transforma em política de interdependência internacional, a provar a verdade de
que os povos se irmanam e marcham para a realização de objetivos comuns de paz
mundial572.”

O igual tratamento entre capital nacional e internacional era uma medida imperiosa
com vistas a reafirmar esta interdependência. Na medida em que o país consolidasse sua
posição de importância no cenário internacional fazia-se necessário a ampliação dos
vínculos com a comunidade internacional, principalmente com aquelas nações que
apresentavam objetivos e metas comuns.
O capital internacional representava uma soma de recursos que contribuiria
positivamente para a economia nacional. Para justificar tal posicionamento apresentavam
uma série de outros argumentos. Era este capital que possibilitaria a livre concorrência e
eliminaria a presença de monopólios, resultantes da carência de capital na economia
nacional. Ao mesmo tempo adequaria a capacidade econômica do Brasil ao crescimento
demográfico que pressionava cada vez mais a economia brasileira para ampliar suas ofertas
ao mercado consumidor interno.
Por último, ao liberar-se a circulação de capital internacional no Brasil, viabilizaria-
se a ampliação da oferta de dólar, que, por sua vez, estimularia uma diminuição da pressão
pela procura desta e contribuiria para uma relação mais justa entre a moeda nacional e a
moeda estrangeira, resultando, assim, em um maior controle da inflação
Não era, portanto, a ação do Estado na economia, regulando a circulação de capital
estrangeiro, que deteria a inflação e reafirmaria as possibilidades de liberdade econômica
que eram fundamentais para a manutenção dos princípios democráticos. Essas medidas
teriam ainda por significado a primazia da propriedade privada sobre a ação estatal na
organização da ordem econômica. Afinal, era a propriedade privada, de origem nacional ou
internacional, que com seu esforço criador proporcionaria o aumento do volume geral de
riquezas do país e o levaria ao desenvolvimento econômico.

571
Seção Notas e Informações. “Capital estrangeiro e economia nacional”. In: O Estado de S. Paulo, de 18 de
agosto de 1961.

218
219

Uma vez superados os obstáculos ao desenvolvimento econômico deveriam ser


buscados mecanismos para a sua efetivação. Os udenistas de extrema-direita criticavam o
industrialismo desenfreado. Afinal de contas o intervencionismo estatal era fruto desta
busca alucinada em torno da industrialização nacional, levando o Estado a intervir no
câmbio, estabelecer mecanismos de protecionismo e agir, até mesmo, como agente
empreendedor. No entanto, pregavam a necessidade de capital internacional para que fosse
dada continuidade ao processo de industrialização.
Como se explicaria esta contradição? Muito poucos eram aqueles que negavam
efetivamente a continuidade deste processo. Entendiam eles que o equívoco localizava-se
numa crença, em grande parte disseminada pela sociedade brasileira, de que somente a
industrialização poderia salvar o país. Consideravam que a verdadeira alternativa rumo ao
desenvolvimento econômico deveria ser buscada na produção agrícola. Como afirmava o
deputado José Humberto, membro da UDN de Minas Gerais e participante da ADP, quando
a população de um território “procura subir os degraus para fugir do estádio de
subdesenvolvimento” a atividade “primária que forma a linha de frente é a agropastoril”.573
Neste sentido, a paridade entre produção industrial e agrícola seria a solução. A agricultura
estava sendo relegada a um segundo plano por sucessivos governos, gerando penúria no
campo, inviabilidade de produção e a incapacidade de exportação, bem como a diminuição
das receitas que poderiam ser obtidas. Os produtos industrializados aqui fabricados não
atendiam à demanda do meio rural. Existia um favoritismo que distorcia a realidade
econômica brasileira. Em suma,
“(...) ninguém se preocupa com a agricultura; naturalmente, nesta atividade pouco
progredimos no todo, pois o aspecto geral não corresponde ao que se observa na
indústria, principalmente de São Paulo e de vários Estados. As referências à
agricultura estão sempre ou quase sempre em plano bem inferior ao da indústria, a
ponto de não se falar mais em o Brasil ser um ‘País’ essencialmente agrícola”.574

Somente com um desenvolvimento baseado na agricultura é que seria viável o


processo de industrialização pleno. Primeiro porque a produção agrícola possibilitaria a
construção de um mercado consumidor para os produtos industrializados. Neste sentido, a
produção industrial teria que ter atenção especial quanto às necessidades do mundo rural.

572
PADILHA, Raimundo. Discurso. ACD
573
HUMBERTO, José. Discurso. ACD. Membro da UDN de Minas Gerais e participante da ADP.
574
Seção Notas e Informações. “Mentalidade agrícola”. In: O Estado de S. Paulo, de 01 de maio de 1962.

219
220

Segundo porque as exportações de artigos agrícolas é que possibilitariam os capitais para a


importação de tecnologia e maquinário necessários para o parque industrial.
É óbvio para eles que, dada a expectativa de consumo e o crescimento demográfico,
somente as exportações não dariam conta da necessidade de capital por parte do setor
industrial. Para tanto, o capital estrangeiro viria a complementar esta necessidade. Mas
sempre com o cuidado de não estabelecer privilégios para o setor industrial. No entanto, a
base do desenvolvimento econômico nacional era a agricultura. Para que este fosse
alcançado, tornava-se necessário o fornecimento de subsídios para que o mundo agrícola
voltasse a produzir. Correa da Costa assinalava que, nesta questão, os Estados Unidos,
através da concessão de subsídios para o mundo rural, apresentavam-se mais uma vez como
um grande exemplo uma vez que:
“(...) O prodigioso aumento da produtividade agrícola nas recentes décadas foi
resultado inteligente da combinação entre o aperfeiçoamento dos métodos da técnica
agrícola e um investimento pesado, substancial de capitais nas fazendas, para
aquisição de máquinas, as mais aperfeiçoadas, para o plantio, para a cultura, para a
colheita, para o enfardamento. (...) As grandes organizações são as que detém os
maiores índices de produção. (...) Assim se passam as coisas na maior nação
democrática do mundo, com a mesma estrutura jurídica e agrária que o nosso País,
e ninguém teve lá a ousadia de proclamar aos quatro ventos o que se diz aqui
(...)”.575

Outros fatores também deveriam ser efetivados com tais objetivos. A educação da
população rural contribuiria para uma maior rentabilidade, uma vez que a tornaria apta a
adotar as novas técnicas de produção. A chave do problema não estaria na reforma agrária
preconizada pelo governo, mas sim numa reforma agrária que concedesse mais
possibilidades para o aumento da produção campesina em sua capacidade de exportação. A
reforma agrária, tal como idealizada pelo governo, com desapropriações, em que as
indenizações fossem pagas com títulos públicos com baixo nível de correção, e em que a
prioridade estivesse localizada fora do objetivo de criação de uma classe média rural forte,
representava, segundo concebiam, única e exclusivamente a estatização do meio rural.
O fundamental para o desenvolvimento industrial seria a criação de condições
mínimas para a retomada da produção agrícola com ajuda governamental, sem
intervencionismo direto, e o aumento das exportações para viabilizar a importação daquilo

575
COSTA, Corrêa. Discurso. ACD.

220
221

que fosse necessário para o processo de industrialização. Mesmo porque era a “produção
agrícola, que sustenta a economia nacional”.576 Complementando este quadro, haveria a
necessidade de uma mudança de mentalidade acerca da natureza do desenvolvimento a ser
alcançado pelo país. As causas do subdesenvolvimento estavam também na corrupção e na
imoralidade do sistema político. Neste sentido, a UDN busca resgatar novamente a questão
da moralidade como bandeira de mobilização. Raimundo Padilha perguntava-se:
“O subdesenvolvimento é apenas de ordem material? (...) Não haverá outros fatores
de apreciação no cálculo, na estimativa do desenvolvimento de um povo, de uma
nação?
Querem ver um elemento de subdesenvolvimento? A amoralidade ou a
imoralidade do político. O político amoral ou imoral (...) que não se aplica ao
interesse supremo do seu país é um ser subdesenvolvido, é um traço do
subdesenvolvimento mais importante do que a falta de qualquer Furnas, de
qualquer Três Marias, neste Brasil, porque esse indivíduo tem uma capacidade
impulsora, uma capacidade influenciadora no sentido negativo, capaz de subverter a
ordem, até as normas do raciocínio elementar, do raciocínio normal. (...) há outros
elementos de superação extra-econômica, extra-quantitativa, que entrando no
chamado circuito, vão operar o desenvolvimento nacional, vão interferir nesse
desenvolvimento . (...)
(...) Esses critérios de aferição não chegaram, até agora, ao conhecimento
(...) dos teóricos do desenvolvimento à outrance. Então temos de marchar para as
intervenções absolutas. Pouco nos quisermos impressionar com os efeitos dessas
intervenções. O custo de vida (...). Os subsídios. O protecionismo estatal da
economia, o estado empresarial”.577

Mas, acima de tudo, dentro desta perspectiva de transformação, estava a ausência de


uma mentalidade que mostrasse a todos “que realmente a solidez da nação está no cultivo
das terras, dando ao agricultor técnicos, assistência, sementes e não somente terras (...)
respeitando (...) o direito de propriedade”.578 Isto porque por “muito tempo ainda o
problema básico da melhoria de nossa situação cambial continuará, portanto, a residir na
amplitude e diversificação das exportações”.579

576
14ª Convenção Nacional da UDN – Curitiba 1963. Recomendação de apoio a seus representantes na
Câmara dos Deputados e Senado.
577
PADILHA, Raimundo. Discurso. ACD.
578
NOGUEIRA, Hamilton. Discurso. ACD.
579
Seção Assuntos Econômicos. “Exportação e economia: paralelo URSS-Brasil”. In: O Estado de S. Paulo,
de 02 de maio de 1961.

221
222

O país já não era mais um país “essencialmente agrícola”.580 Mesmo assim


precisava-se de um processo de industrialização organizado, que fosse gerado a partir dos
recursos do meio rural sem afetar-lhe a produção. Desta forma eles não conseguiam
compreender que “agora então se atente no Brasil justamente contra aquela atividade que
explorada em regime semicolonial, vem a ser o objetivo daqueles que deviam cuidar do
ponto fraco para fortalecer a nossa economia, que é o subsolo”.581
Resta assinalar que o combate à inflação e ao subdesenvolvimento calcado na
produção agrícola deveria estar baseados na propriedade privada. Único meio de manter-se
a identidade nacional e a “vocação democrática” da UDN. Será?

580
FREIRE, Geraldo. Discurso. ACD.
581
HUMBERTO, José. Discurso. ACD.

222
223

O povo e a política para os udenistas

“Disse (...) que esta é uma sessão de esperança e de fé.


De fé no regime democrático, porque não pode haver outro
regime no qual o homem possa viver com dignidade. Não há
outro regime no qual possa existir a liberdade. Mas esse é o ponto
vital. Liberdade não é apenas um nome. Nós falamos em direitos
iguais, nós falamos em liberdade do povo, nós falamos em
liberdade de voto. Mas como é que pode haver voto livre com
barriga vazia e com miséria (...)?”

Deputado Federal Hamilton Nogueira

Os udenistas pretensamente defendiam o sistema político democrático brasileiro.


Nos programas partidários de 1945 e 1957, bem como na Carta de Princípios de 1962, é
reiterada a crença na democracia, “único regime político capaz de assegurar o
desenvolvimento econômico (...) sem sacrifício dos direitos e das garantias individuais” do
país.582 Neste sentido, democracia significava, acima de tudo, liberdade de ação econômica.
Ao mesmo tempo, a democracia representava a consolidação das tradições cristãs à
qual o país estava completamente vinculado. Somente a democracia apresentava-se como
uma forma de governar onde o diálogo e o amor estariam presentes. Como afirma Geraldo
Freire, o “diálogo deve existir entre os homens, mas há de ser o diálogo que encaminhe
todas as almas, todas as idéias, todas as inteligências e todos os corações para a verdade”.583
Parte desta verdade estava na crença, segundo assinalavam, de que a liberdade de ação
econômica e a defesa da propriedade privada eram os elementos fundamentais para a
existência humana, que já fazia mesmo parte do conjunto de crenças e costumes vinculado
ao pensamento grego-romano, do qual o país era tributário.
No entanto, para os udenistas, a democracia enfrentava dificuldades significativas
desde 1945, problemas estes que se agravavam a cada dia. Se, para eles, o sistema até então
vigente não apresentava a melhor configuração para a existência da vida política, a renúncia
de Jânio e a ascensão de Jango, mesmo no período do regime parlamentarista deste último,
mostravam o quão imperfeito a vida política nacional era. Paralelamente à série de derrotas
sofridas pelo partido, aumentava a sua constatação de que o “povo não sabia votar”.584 A

582
Carta de princípios..., op. cit.
583
FREIRE, Geraldo. Discurso. ACD.
584
DULCE, op. cit., pp 41 e 216.

223
224

estratégia da UDN, colocada em prática devido às suas sucessivas derrotas eleitorais, foi a
de tentar “consertar o erro” cometido pelo povo através da anulação dos resultados
eleitorais. Segundo Benevides, esta estratégia apresentou-se presente de longa data, já a
partir da reeleição de Vargas em 1950, quando teve “início o primeiro ato de uma
encenação que se tornaria rotina na prática udenista: a contestação dos resultados eleitorais”
com a justificativa de que Vargas, e o candidato que o sucedeu nas vitórias diante da UDN,
não haviam conseguido maioria absoluta.585
Mas o resultado eleitoral era apenas a ponta do iceberg. Raimundo Padilha, por
exemplo, em pronunciamento na Câmara dos Deputados, assinalava que as questões
políticas e econômicas estavam diretamente entrelaçadas. Como pode ser observado em
citação anterior, Padilha indica que a amoralidade ou imoralidade política era um elemento
chave que mesmo não fazendo parte do circuito econômico se apresentava como um fator
fundamental para o subdesenvolvimento do país, elementos
“que vão atuar no desenvolvimento da pessoa e criando, desse modo, ao lado
daquelas situações econômicas até então insuportáveis e inevitáveis, novas e
renovadoras condições que possibilitem a criação do ambiente, da atmosfera não
apenas material, mas moral, dentro da qual haverá progresso do povo”.586

Padilha assinala uma das principais preocupações do udenismo – e neste sentido


falo do udenismo como um todo, e não apenas da UDN de extrema-direita – era a questão
da moral política. Para a UDN todo o período compreendido entre 1945 e 1964,
excetuando-se o governo Dutra, havia sido marcado por uma vida política deturpada graças
a intocabilidade de boa parte da estrutura montada por Getúlio Vargas. Uma estrutura
“influenciadora no sentido negativo” pois inviabilizava o desenvolvimento moral da nação,
“capaz de subverter a ordem” e impedir que o país saísse de um estágio de
subdesenvolvimento humano muito mais grave do que a carência de um parque industrial
significativo. Este era o aspecto que se apresentava como pano de fundo a desencadear a
distorção do sistema eleitoral, citado também em editorial da Tribuna da Imprensa, que
considerava que o público votante, e até mesmo os políticos, deixavam-se seduzir por
benefícios imediatos tais como “verbas, empréstimos, pensões, ajudas e do

585
BENEVIDES, op. cit., pp. 82, 83 e 96.
586
PADILHA, Raimundo, op. cit.

224
225

empreguismo”.587 Este, enfim, era o sistema pelo qual funcionava o peronismo, o projeto
de República Sindicalista, o caudilhismo, ou qualquer que fosse sua denominação, que
propiciava a hegemonia crescente do PTB.
Estes adjetivos qualificavam o projeto político do Partido Trabalhista Brasileiro,
segundo os udenistas. Para eles, o partido em questão postulava a consolidação de seu
poder na manipulação dos sindicatos, visando o benefícios de poucos com o
estabelecimento de um governo de exceção de direita. Esta era a base da política
caudilhesca encaminhada pelo principal exponente do PTB – Jango –, o presidente que
incitava “os trabalhadores às greves, a paralisarem as suas atividades, criarem o caos
econômico, fomentarem a desordem para assim ter aquele governo um caldo de cultura que
possibilite a transformação do regime em que vivemos numa República Sindicalista”588 e,
por desdobramento, o seu continuismo.
No entanto, cada vez mais o projeto do PTB contribuía para a disseminação das
hordas comunistas no país. A desestabilização da economia e da vida política, cada vez
mais crescentes, favoreciam a disseminação dessa doutrina. Lacerda, por exemplo, observa
em seu Depoimento que reconhecia que Vargas não era comunista. Mas a consecução de
sua linha por políticos que não tinham sua “genialidade” era um risco ainda maior visto que
a fragilidade destes políticos contribuía para a afirmação, no meio do caos, do comunismo.
Os comunistas, por sua vez, colocavam-se ao lado de Jango com o intuito de
realizar a política do “quanto pior, melhor”. Inclusive os udenistas acreditavam cada vez
mais que a sua principal preocupação não seria exclusivamente o perigo de reedição do
peronismo no Brasil, mas sim de que o comunismo viesse a se instalar aqui, aspecto já
assinalado neste trabalho. A mensagem de Carlos Lacerda à convenção da UDN ainda em
1961 pode ser indicada como um dos primeiros momentos onde esta transição apresenta-se
demarcada. Lacerda chama o partido a cerrar fileiras contra as ideologias que pudessem
aprisionar a sociedade: falava diretamente do comunismo. A Proclamação da UDN, de
1964, apresentava-se como uma convocação dos “democratas para a luta contra o
comunismo”, segundo Pedro Aleixo,589 Boa parte das principais lideranças do partido
também ia no mesmo sentido. Na verdade, se observado atentamente, chega-se à conclusão

587
Editorial. “Em perigo a Revolução”. Tribuna da Imprensa,de 18 de maio de 1964.
588
VIEIRA, Laerte. Discurso. ACD. Membro da UDN de Santa Catarina e participante da ADP.
589
ALEIXO, Pedro. Discurso. ACD.

225
226

de que se tratava de uma nova e complicada elaboração, onde existiria uma aliança entre
comunistas e caudilhos (leia-se também, peronistas, getulistas, populistas, etc) com o
intuito de eliminação da vida democrática. Cada um destes grupos perseguia pelo mesmo
meio – eliminação da democracia – objetivos diferentes, “cada um pensando que levará a
melhor”.590 Tratava-se de uma dupla ameaça, segundo Herbert Levy, afirmando que o país
corria o risco de ver-se escravizado ou “por uma ditadura de caudilhos, [ou] por uma de
comunistas, ou ambas”.591 Para outros, no entanto, o caudilhismo contribuía mais com a
desestabilização do que como ameaça direta. Bilac Pinto, por exemplo, considerava
estarmos na terceira etapa da Guerra Revolucionária, qual seja:
“Consolidação da infra-estrutura; organização da rede de resistência; obtenção de
armamento; ampla infiltração no Governo em todos os escalões; promoção de
greves com motivação política ostensiva; terrorismo seletivo e sistemático,
atentados pessoais; ampla infiltração nos Partidos Políticos, ostensiva; controle de
organizações estudantis e trabalhistas; controle político de certas áreas; controle de
certos setores governamentais; infiltração nas Forças Armadas”.592

Ou seja, o comunismo estava em todos os lugares, todos os setores da sociedade


brasileira. A citação assinala o grau de influência que a Doutrina de Segurança Nacional
exercia sobre parcela significativa do partido. Não foi por menos que Lacerda convocou o
partido para uma definição mais clara sobre suas propostas.
Para aqueles citados acima, o sistema político precisava de uma reestruturação
completa, radical. A Tribuna da Imprensa, porta-voz do lacerdismo – corrente
predominante na UDN em príncipios da década de 60, segundo Dulci –,593 pontua a
proposta ainda em 1963 e 1964. Defendia o bipartidarismo uma vez que o grande número
de partidos nada mais representava do que uma “verdadeira bagunça ideológica”.594 O
sistema político apresentava a necessidade de indicar claramente quem era oposição e quem
era situação, nada mais. Com isso, se contribuiria para a formação de partidos políticos de

590
MENDES, João. Discurso. ACD.
591
LEVY, Herbert. Discurso. ACD.
592
PINTO, Bilac. Discurso. ACD. Presidente do partido em 1963. O mesmo aspecto também encontra-se
referenciado na Proclamação da UDN, de 19/03/1964: “Mas quando esse pleno de feição democrática é
abandonado sem maiores explicações para ceder lugar a projetos de inspiração suspeita e incompatíveis com
as bases do regime, então nos opomos porque não contribuiremos para que progridam os movimentos de
guerra revolucionária para que se infiltre a dominação comunista e para que, por fim, se instale no Brasil
qualquer regime totalitário supressivo da liberdade, em cujas franquias desejamos viver e desejamos que
vivam todos os brasileiros”.
593
DULCI, op. cit., p. 190.

226
227

caráter nacional, “com ideologias definidas o que, inclusive, permitirá a fixação dos
votantes em agremiações maciças capazes de cumprir com a exigência de maioria
absoluta”.595
No entanto, como seria o sistema eleitoral? Um editorial datado de 1961 do jornal O
Estado de S. Paulo, que retratava o pensamento da UDN paulista, apresenta uma posição
clara sobre o aspecto que deveria nortear a estrutura eleitoral, segundo grande maioria do
partido no nível nacional. Criticando Jânio por conceber a democracia como um sistema
cristão e igualitário afirmava que uma democracia poderia não ter um caráter cristão, o que
seria exemplificado pela democracia ateniense de Péricles e, posteriormente, a de Roma.
Penso que a referência ao cristianismo foi feita muito mais por esta definição ter vindo
acompanhada do termo igualitário, sobre o qual foram feitas duras críticas. O objetivo do
artigo seria indicar que a democracia não precisava, necessariamente, abarcar o conjunto da
sociedade com o direito de participação política. Cita o jornal que a República brasileira
sempre havia se pautado pela “desiguladade essencial dos homens entre si”, o que
“implicitamente exclui qualquer idéia de democracia igualitária”.596 Ao sistema político
proposto, portanto, estava subjacente a idéia de uma democracia restritiva, como
corroboram os próprios exemplos dados pelo editorial. A participação da totalidade da
sociedade no sistema político apresentava-se como algo inviável, posto que sua
implementação teria por desdobramento a própria consolidação do regime comunista no
Brasil. Tratava-se de parte de um conjunto de “iniciativas deformadoras do sistema
representativo e desfiguradoras das instituições democráticas”.597
As elites teriam um papel fundamental neste regime. Sobretudo porque “de nada
valem as formas de governo, se é má a qualidade dos homens que a encarnam”.598 A
citação, presente no Manifesto de Brasília, de 1962, sinaliza claramente que a importância
fundamental estava nos homens do governo, não no sistema representativo. A capacidade
de interpretar a vontade popular adviria de uma vocação cívica destes homens, aspecto que
mais uma vez assinala a importância da influência da DSN no pensamento da UDN.
Benevides, sobre este aspecto, assinala que o “liberalismo restritirvo (antipovo)” remete

594
Editorial. “Em perigo a Revolução”, op. cit.
595
Idem, ibidem.
596
Editorial. “Um despautério”. In: O Estado de S. Paulo, de 21 de junho de 1961.
597
ALEIXO, Pedro. Discurso. ACD. Membro da UDN mineira e participante da ADP.
598
Manifesto de Brasilia, op. cit.

227
228

diretamente ao elitismo do partido, caracterizado em torno de dois pontos principais: a


defesa da tese sobre a “presciência das elites (...) e o sentido de excelência dos
udenistas”.599
A “classe militar”, para os udenistas, estaria dentro do conceito que os udenistas
apresentam de elites. Desta forma, torna-se importante identificar qual o papel que este
grupo concebia para eles. Parece que, na medida em que a situação de polarização política
avança, os udenistas golpistas inclinavam-se para um papel de maior destaque para os
militares. Uma das poucas vozes que destoa deste conjunto é a de Adauto Lúcio Cardoso,
que, em novembro de 1962, assinala que para a sobrevivência do poder civil se tornava
necessário que “cessem as querelas publicitárias dos generais que promovem almoços,
jantares, que falam em batizados, a beira de túmulos recém-abertos”.600 Esta posição,
contudo, modificou-se à medida que se aproxima de 1964. O comum é observar a
solicitação dos militares para uma intervenção curta e saneadora, característica daquelas
que a UDN sempre esperou que ocorressem quando da sua contestação ao resultado de
eleições desfavoráveis ao partido no âmbito nacional. Urgia um posicionamento daqueles
aliados da “classe militar” já que, cada vez mais, os pronunciamentos dos setores
progressistas do Exército eram recorrentes, e com apoio explícito, segundo entendiam, do
chefe do governo. Tratava-se, portanto, de fazer com que as “classes armadas” cumprissem
seu dever de combate a subversão, impedindo tais setores progressitas de avançarem em
sua mobilização. No entanto, como muito bem assinalado pelo Deputado João Mendes,
“longe de mim pretender uma ditadura militar”. Pretendia-se uma militarização pontual na
vida política, mas não da militarização da vida política. Acreditavam estes udenistas que
“os nossos chefes militares nunca cobiçaram o poder e que em todos os movimentos, em
todos os pronunciamentos que infelicitaram a América do Sul e a América Central uma
coisa se pode discernir de irrecusável para nossa honra: entre nós os militares não
ambicionam o poder”601 graças a sua vocação cívica. Ledo engano. Benevides chega a falar
de uma UDN realista, que teria adotado uma perspectiva militarizada da vida política. No
entanto, não observo isto antes de 1965.

599
BENEVIDES, op. cit., pp. 248, 253 e 255.
600
CARDOSO, Adauto. Discurso. ACD. Membro da UDN da Guanabara e participante da ADP.
601
Idem,ibidem.

228
229

E como ficaria o “povo”? Quem era este povo que se faria representar no sistema
político pretendido pela UDN? Existiam aqueles que defendiam a ampliação do direito de
participação política para os analfabetos. Já em 1961 alguns poucos Deputados como
Guilherme Machado, que havia sido secretário do partido em 1957, pronunciavam-se
favoravelmente quanto a isto. Em 1963, o Diretório udenista do Paraná apresentou uma
proposta à XIV Convenção Nacional da UDN, realizada em março deste ano, para que o
direito de voto ao analfabeto fosse incorporado à Constituição.
No entanto, esta era uma corrente minoritária que, talvez sofresse influência da
Bossa Nova e que buscava ampliar a inserção da UDN entre as camadas populares com
objetivos eleitorais. O grupo aqui analisado era majoritariamente contrário a esta
perspectiva. Para eles, o analfabeto não possuía as mínimas condições de manifestar-se
politicamente. Diziam-se sensíveis aos “sofrimentos das massas e das classes menos
favorecidas” mas não concordavam com o “reformismo demagógico”, com as “inversões
políticas” de caráter eleitoreiro.602 Diziam-se defensores da liberdade de voto mas as
condições sociais reinantes no país inviabilizavam a participação popular direta do conjunto
da sociedade. Se a pobreza possuía algo de “dignidade cristã”, existiam amplos
contingentes populacionais que se colocavam abaixo até mesmo do nível de pobreza,
encontravam-se na miséria, “que coloca o homem abaixo da condição humana” e servia
apenas “para os exploradores do sentimento humano”.603 Quanto a isto, perguntava-se
Hamilton Nogueira,:
“(...) fala-se de liberdade de voto, mas como pode um homem votar livremente se
tem fome? Qual o homem que resiste à tentação ou a concitação de um voto,
quando vê seus filhos esfarrapados, vestidos de roto (...) nessas inúmeras cidades do
Brasil que atingiram a decadência sem nunca ter atingido a grandeza?”.604

A miséria social proporcionaria a manipulação da vida política. Mesmo entre


parcelas significativas da sociedade esta manipulação eleitoral já existia. Afirmavam que
eram numerosos aqueles que, semi-analfabetos e aprisionados aos mecanismos de controle
do voto, pois trocavam esse voto por migalhas. Segundo Lacerda, Getúlio havia montado
uma poderosa máquina eleitoral que ainda sobrevivia mesmo após a sua morte. Existia uma

602
ALEIXO, op. cit.
603
NOGUEIRA, Hamilton. Discurso. ACD.
604
ALEIXO, op. cit.

229
230

“tal máquina antidemocrática” que colocava em ação a emoção e não a razão, aspecto do
qual o povo encontrava-se completamente desprovido.605
A inviabilidade de manifestação política destes grupos, tanto dos miseráveis quanto
daqueles que estavam no nível de pobreza, apresentava-se clara, segundo entendiam, a
partir do direito de greve. Cada vez mais este direito estava sendo conduzido de forma a
afastar-se das reivindicações de caráter puramente econômico ou trabalhista, estes sim
considerados pertinentes. Cada vez mais as greves eram utilizadas para “acobertar
interesses políticos (...) trazendo em seu bojo caracterizações ideológicas contrárias às
nossas origens” e não possuíam “realidades reivindicatórias”. Representavam apenas a
concretização do poder de manipulação a que estes grupos estavam submetidos por uma
longa tradição que visava atender interesses particulares de um grupo que pouco se
interessava pelos destinos da nação e que estava chegando às raias de colocar o país dentro
da órbita comunista. Este aspecto, a diferença entre as greves de caráter econômico e
trabalhista e aquelas de caráter político, apresenta-se como mais um dos vários capítulos
confusos e nebulosos em relação à UDN. Isto porque o limite entre aquilo que
consideravam como legítimo e ilegítimo variava de acordo com a perspectiva particular do
partido. Neste sentido, a greve apresentava-se como ilegítima a partir do momento em que
colocava-se alinhada aos interesses ou propostas dos grupos aos quais a UDN fazia
oposição.
Portanto, estender o direito de voto ao analfabeto seria concretizar completamente o
nivelamento por baixo da vida democrática brasileira. Significava dar um salto para trás,
em direção a um período da história no qual se aboliu a escravidão sem serem dadas as
condições necessárias para que estes superassem o “estado de primitivismo que haviam
trazido das selvas africanas”, o que acabou por viabilizar o estabelecimento do regime
oligárquico e, por desdobramento, da ditadura Vargas.606
O perigo de subversão da ordem, portanto, era então a principal preocupação.
Segundo estimativas apresentadas pelo O Estado de S. Paulo existiam cerca de 40 milhões
de analfabetos no país. Daí a popularidade que o getulismo e o comunismo possuíam
naquele momento. Ambos aproveitavam-se da miséria e da ignorância popular para
angariar prestígio e poder político. O governo, ao propor a ampliação do direito de voto, na

605
LACERDA, Depoimentos, pp. 117, 178 e 191.

230
231

verdade pregava a subversão da ordem social já que possibilitava até mesmo a uma criança
o direito de exercê-lo e não estabelecia nenhum limite para o alistamento eleitoral. É óbvio
que os udenistas entendiam que não era esta a pretensão do governo federal, mas o recurso
da figura de uma criança relaciona-se à própria concepção que existia em relação ao votante
analfabeto. Propiciar o direito de voto para esta população – que estava bem longe do
estágio evolutivo que possibilitasse a democracia e que seria recrutada “sobretudo nos
mocambos nordestisnos, nas favelas cariocas e no interior do Espírito Santo, de Minas e
Goiás” – transformaria “o pouco que nos resta de regime democrático em policialismo
soviético”.607 O certo é que esta concepção estendia-se aos semi-alfabetizados que
concediam o respaldo político aos partidos que perpetuavam a tradição getulista na vida
política do país. Eram grupos que precisavam sair da infância política – fase da ingenuidade
–, precisavam amadurecer, para depois exercer plenamente o seus direitos políticos.
No entanto, a UDN apresentava-se como defensora do aprimoramento das
instituições políticas, conforme assinalado na Carta de Princípios de 1962. O Partido
visava a superação do subdesenvolvimento moral presente no discurso de Raimundo
Padilha. O homem comum não era capaz de compreender determinadas sutilezas existentes
na vida política. Para torná-lo apto para tal, era importante, em primeiro lugar, a
disseminação da educação no seio do povo brasileiro. Se o povo ignorante não sabia votar o
governo deveria primeiro instruí-lo, capacitá-lo para o exercício do voto de forma a
inviabilizar o estabelecimento da “ignorantocracia”. Era importante que o direito do voto
fosse exercido apenas por aqueles que sabiam perfeitamente diferenciar o “simulador de
cultura, o demagogo e o homem realmente de elite”.608 O governo, segundo Herbert Levy,
saberia disso e por isso adiava o plano de educação generalizada do povo.609
Ao mesmo tempo deveria ser providenciada uma estratégia que buscasse erradicar
aquilo que possibilitava o grande apelo que o comunismo ou o getulismo possuíam junto à
grande maioria da população. A erradicação da miséria, através de medidas calcadas na
“fraternidade cristã”, era condição básica para a eliminação da manipulação política, não
somente dos analfabetos mas dos semi-alfabetizados que já exerciam seus direitos políticos.

606
Seção Notas e Informações. “Um salto para trás”. In: O Estado de S. Paulo, de 05 de fevereiro de 1964.
607
Idem, ibidem.
608
Idem, ibidem.
609
LEVY, Herbert. Discurso. ACD.

231
232

Estas duas medidas, destinadas a proporcionar a “subida do povo” com o seu


“enraizamento na Nação”, eram fundamentais para que a democracia se implementasse
efetivamente no país.610
Observa-se, portanto, que o projeto de implementação da democracia apresentava-se
viável apenas a médio e longo prazo. Enquanto ele não fosse estabelecido, a direção do país
ainda caberia às elites. Se por um lado a maior parte da população era incapacitada para o
exercício do voto, existiria ainda um grupo em nome do qual a democracia restritiva seria
exercida: as classes médias. Ilustrados o suficiente para exercer seu direito de voto, este
grupo social seria gradativamente ampliado por aqueles que, posteriormente ao seu acesso à
educação e a uma condição de vida que lhe isentasse da influência manipuladora do
getulismo e do comunismo, viessem a estar aptos a votar. O papel das camadas médias era
de fundamental importância para evitar-se o radicalismo político. Não é à toa que
Raimundo Padilha assinala que quem fala na “destruição da classe média fala em
destruição da democracia”. Sua função de equilíbrio estaria na sua própria localização na
topologia social. Situada a meio caminho tanto do proletariado quanto da burguesia, este
grupo, desde que considerável em número e qualidade, evitaria a polarização política entre
os dois extremos. Esta função estabilizadora estaria ainda no “papel agregador da família e
da Igreja”, mais presentes nas camadas médias segundo Benevides,611 Portanto,
“quem fala em proletarização da classe média fala na extinção de todas as classes,
porque há de chegar aquele instante em que um existiria único poderoso, diante das
classes ou da classe única, que é a classe plutocrática, minoria apenas, é o Estado
avassalador ao qual não custa, por uma pena, destrui-la”.612

Democracia restritiva, com direito de participação política das camadas médias,


protegida por militares com profundo sentimento cívico e liderada por elites moralizadas e
conscientes de seu dever. Este era o projeto político dos udenistas aqui apresentados.

610
NOGUEIRA, Hamilton. Discurso. ACD.
611
BENEVIDES, op.cit., p. 185
612
ALEIXO, Pedro. Discurso. ACD.

232
233

Os udenistas e a questão social

“Creio que o nosso partido não pretende afirmar a utopia


e parte do sólido princípio de que a miséria e a injustiça sempre
existirão no mundo; e assim sendo, o dever de um partido político
não é o de desprezar a civilização cristã porque comporta a
injustiça e a miséria, mas sim o de sustentá-la porque, sem ela, a
injustiça e a miséria serão sempre maiores e não darão aos pobres
e aos injustiçados nem consolo nem esperança nem
oportunidades”.

Mensagem de Carlos Lacerda à UDN.

A reforma agrária, dentro da questão social, ganhava relevância para os udenistas.


Alguns autores citam que mesmo a UDN apoiava a reforma agrária, em torno da qual
existiria algum consenso. No entanto, o que mais prejudicava a sua efetiva execução eram
as diferentes perspectivas sobre a forma de sua implementação.613 Para os udenistas de
extrema-direita a reforma agrária que tentava ser encaminhada pelo governo, com
desapropriação de terras e indenização através de títulos públicos, era extremamente
prejudicial para o país como assinalava Elias Carmo.614
A idéia de efetivação de tal empreendimento via alteração constitucional soava mal
para este grupo. Goulart, segundo afirmavam, cada vez mais articulava uma pressão
popular ao Congresso para obter o que desejava. A tentativa de emenda constitucional
obtida através desta mobilização popular apresentava-se como “pressões ilegítimas”,615
tentativa de “desmoralização deste Congresso”.616 Era uma forma mesmo de atingir
diretamente a existência da democracia brasileira. No fundo, segundo alguns, Goulart
tentava, através de alterações constitucionais que seriam realizadas pela reforma agrária,
obter a supressão da sua inelegibilidade e, desta forma, conseguir mais um mandato através
de medidas demagógicas.
Esta forma de encaminhamento da reforma agrária significava ainda um atentado
direto contra o instituto da propriedade privada. Significava o desrespeito, o aniquilamento
do direito de propriedade. Conseqüentemente, segundo entendiam, soava como um
desrespeito às liberdades que acabaria por destruir a democracia “através da providência

613
SILVA, Francisco Carlos T., op. cit., p.
614
Membro da UDN de Minas Gerais e participante da ADP.
615
Declaração de linha política da UDN de abril de 1963. Arquivo UDN.
616
MENDES, João. Discurso. ACD . Membro da UDN baiana e líder da ADP no Congresso.

233
234

inicial da extinção do direito de propriedade”.617 Considerava ainda a proposição do


diretório do Paraná à XIV Convenção do Partido, em 1963, que, bem ou mal, a propriedade
particular respondia pela produção agropecuária nacional.618 A sua divisão significaria a
multiplicação da miséria, em vez de sua superação. Se a questão era a divisão de riquezas,
considerava Pedro Aleixo, por que “não fazer uma reforma agrária à custa dos ricos de
todas as classes, em vez de reduzir à miséria, à indigência, a classe dos agricultores?”619
De inspiração comuno-peleguista, para eles a reforma agrária visava “a espoliação
da propriedade rural, estatização da gleba ou escravização do agricultor”.620 Representava
uma solução de força, já que imposta de cima para baixo, e instrumento direto de agitação
social. Provocava o caos e buscava o estabelecimento de uma guerra civil.
“Tudo (...) deixou transparecer claramente a intenção (...) de agravar a situação
econômica do Brasil (...) de maneira a criar condições de êxito para o levante
subversivo em preparo. (...) Os sinais que, de toda parte, nos chegam, estão a dizer-
nos que tudo pode acontecer e que não há motivo para surpresa se os esforços
despendidos pelos agentes de Moscou acabarem sendo coroados de êxito. A
organização das Ligas Camponesas está em marcha”.621

Pedro Aleixo assinalava que a opção por uma reforma agrária com determinadas
características consolidava o abandono, pelo governo, do Plano Trienal, “pleno de feição
democrática”. Representava ainda a opção por um projeto que contribuiria para que
“progridam os movimentos de guerra revolucionária, para que se infiltre a dominação
comunista e para que, por fim, se instale no Brasil qualquer regime totalitário supressivo
da liberdade”.622
O problema das indenizações tornava a situação ainda mais complexa por não dizer
respeito apenas às pressões que estavam sendo submetidos os congressistas. Relacionava-se
também, segundo entendiam, com o correto entendimento do que seria o preço justo da
indenização. Ao propor a indenização em títulos públicos ou com base no valor declarado
pelo pagamento do imposto territorial o governo estabelecia um verdadeiro confisco

617
Proposta da representação da Paraíba à XIV Convenção Nacional da UDN em março 1963. Arquivo UDN.
618
Idem, ibidem.
619
ALEIXO, Pedro. Discurso. ACD,
620
Proposta da representação da Paraíba à XIV Convenção, op. cit.
621
Editorial. “A última tentativa”. In: O Estado de S. Paulo, de 15 de maio de 1962.
622
ALEIXO, Pedro. Discurso. ACD.

234
235

indireto. Tratava-se de medida ilegítima que acabaria por colocar em risco a “confiança na
lei e nos legisladores”623 e lesava diretamente o proprietário.624
A própria questão relativa a que terras deveriam ser destinadas para à reforma
agrária estava relacionada à idéia de legalidade e justiça. Quanto a isto existiam
divergências que não eram assim tão profundas, marcando, inclusive, uma divisão que
entendo como regional da forma pela qual se encarava o assunto. Para alguns dos udenistas
o problema não era a existência ou não da terra como fator produtivo. João Mendes,
relatando a posição da Ação Democrática Parlamentar, e desta forma de inúmeros
udenistas, indica que falar em divisão de terras era questão de “primarismo” baseada na
demagogia, com o que concordava o Deputado Geraldo Freire. O País era inexplorado, com
terras entregues muitas vezes aos “silvícolas, de modo que não nos pode preocupar o
problema do acesso à terra”.625 Nesta posição, tendo a afirmar que, para boa parte dos
udenistas golpistas da região nordeste,626 onde a existência de terras públicas do Estado era
nenhuma, a solução do problema estaria no avanço interno da fronteira agrícola.
De outro lado encontravam-se aqueles que entendiam que o problema era também
ocasionado pelo latifúndio improdutivo. Corrêa da Costa, deputado por Mato Grosso,
afirmava que a “simples distribuição de terras não resolveria o problema no caso
brasileiro”.627 Aliás, o problema da distribuição estaria em grande parte vinculado a que
região se estava referindo. O problema tornava-se, portanto, regional. Em editorial do O
Estado de São Paulo, esta posição apresentava-se corroborada. O assunto deveria ser
tratado de forma a inviabilizar uma reforma “total que preconize medidas iguais para todas
as regiões do Brasil”.628 Referindo-se a trabalho realizado pelo IPÊS indica que “só numa
pequena área do território devemos realizar uma reforma da estrutura agrária (com
urgência, aliás)”.629 Os convencionais do Paraná, para a reunião da UDN de 1963, também
eram adeptos de tais posições.630 Desta forma o assunto deveria ser gerido pelos diversos

623
FREIRE, Geraldo. Discurso. ACD.
624
ALEIXO, op. cit.
625
MENDES, João. Discurso. ACD.
626
Entre esses, destacam-se, entre outros, Alde Sampaio e João Mendes.
627
COSTA, Corrêa da. Discurso. ACD. Membro da UDN de Mato Grosso e participante da ADP.
628
Editorial. “Reforma agrária: primeiro ato”. In: O Estado de S. Paulo, de 09 de abril de 1964.
629
Idem, ibidem. Ver também Tese apresentada à XIV Convenção Nacional pela delegação de São Paulo
sobre a reforma agrária em 26 de março de 1963, op. cit.
630
Proposta da representação da Paraíba à XIV Convenção..., op. cit.

235
236

governadores que possuíam uma perspectiva melhor de cada região. O mesmo Corrêa da
Costa, também participante da ADP, cita ainda:
“Entretanto, o problema do Nordeste, ao que me parece, oferece outros aspectos. Ali
não existem mais terras de propriedade do Estado, que possam ser colonizadas. As
terras mais férteis estão no litoral e pertencem à propriedade particular. E o que
resta, constitui caatinga (...). Face ao aumento substancial da população nordestina,
o problema se agrava de ano para ano, determinando a imigração para os Estados do
Sul ou gerando as invasões de propriedades de que temos notícia”.631

Desta forma, para a região nordeste, concebiam a existência de uma reforma agrária
baseada na redistribuição de terras. Era uma posição que, na minha perspectiva, se
encontrava arraigada principalmente por deputados das regiões Sul, Sudeste e Centro-oeste.
A posição tinha ainda o conveniente de retirar das mãos do Poder Federal a possibilidade
de empurrar, goela abaixo, uma reforma arbitrária, segundo eles.
A conclusão a que chegavam a maioria dos deputados golpistas udenistas era a de
que o governo seguia exemplos de uma política econômica equivocada e ignorava até
mesmo “os recentes casos de completo fracasso da propriedade coletivizada em países
socialistas, como sucedeu na Iugoslávia e na própria China continental”.632 Em última
instância, para estes udenistas, o objetivo final não seria a divisão da terra mas a sua
concentração nas mãos do Estado.
A pequena e média propriedades não possuíam capacidades para realizar a
produtividade necessária para o país. O real exemplo a ser seguido, afirmava Corrêa da
Costa, era o exemplo norte-americano. Sobre este aspecto o deputado assinala que, nos
Estados Unidos, a tendência da organização econômica no meio rural era baseada nos
seguintes pontos: a existência de grandes propriedades de terra, aperfeiçoamento de
técnicas e incorporação de tecnologia na produção agrícola, bem como um papel de
assessoramento por parte do Estado, fornecendo grandes somas de capitais e subsídios.
Segundo ele as “grandes organizações são as que detêm os maiores índices de produção”
naquele país. Ora, se havia dado certo nos Estados Unidos, conclui, deveria dar também no
Brasil.

631
COSTA, Corrêa da. Discurso. ACD..
632
BATISTA, Lourival. Discurso. ACD. Membro da UDN de Sergipe, subsecretário do partido em 1965 e
participante da ADP .

236
237

Baseado no exemplo do “grande irmão do norte”, como deveria a tão propalada


reforma agrária ser realizada segundo os moldes da UDN? O primeiro aspecto a ser
pontuado, neste sentido, refere-se ao tipo de propriedade que deveria ser utilizado com
vistas a realização desta reforma. Conforme assinalado anteriormente, a divisão de terras
gerava algumas controvérsias. Para uns a propriedade improdutiva ainda existia em
determinadas regiões e deveria ser eliminada. Era a posição de boa parte dos udenistas das
regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Para outros, no entanto, a questão primordial não era a
existência da propriedade improdutiva, posto que bem ou mal era a atividade agropecuária
que sustentava a economia nacional.
Apesar de estar presente na Declaração de Linha Política, de abril de 1963, que a
reforma agrária deveria ser encaminhada a fim de que se elimine o “latifúndio improdutivo
e valorize o homem do campo”,633 a intenção primeira dos udenistas era de estabelecer uma
distribuição de terras a partir daquelas pertencentes ao Estado brasileiro, o que parece ser
uma solução de compromisso entre as vertentes que entendiam de forma diferenciada o
problema. Existiam largas faixas de terras povoadas ainda por silvícolas e que estariam à
disposição do governo para a reforma. Importava avançar com a fronteira agrícola através
de um programa de colonização que ao mesmo tempo viabilizasse a diminuição das tensões
sociais bem como a ampliação da produção.
Quando realizada em terras particulares, a forma de indenização deveria ser em
dinheiro, de maneira a diminuir ao máximo os efeitos do ataque desferido contra a
propriedade privada. Também com este objetivo pensavam os udenistas que a dita reforma
“será realizada, sempre que possível, com o concurso da iniciativa particular”.634 Os
udenistas buscavam adiar ao máximo a realização de tais reformas com estas medidas. Isto
porque ao Estado brasileiro faltavam recursos suficientes para desferir tal golpe nos grandes
proprietários rurais. O próprio governo assinalava, ao propor a alteração da constituição
para que viabilizasse o pagamento da indenização em títulos públicos, que o “pagamento
prévio em dinheiro exigiria recursos tão grandes que tornaria praticamente impossível
qualquer reforma agrária significativa”.635 Da mesma forma, ao colocar a primazia sobre as

633
Declaração de linha política de abril de 1963. Arquivo UDN.
634
Tese apresentada à XIV Convenção Nacional pela delegação de São Paulo sobre a Reforma Agrária em
26.03.1963. Arquivo UDN.
635
FIGUEIREDO, op. cit., p. 114.

237
238

terras devolutas, os udenistas ganhavam um tempo significativo, posto que eram


consideráveis as terras existentes nas mãos do Estado. O governo deveria dar o exemplo.
No entanto a reforma agrária não deveria ser apenas a simples distribuição de terras.
Os udenistas, segundo Benevides os principais defensores dos grandes proprietários de
terras, pensavam ainda em obter um redirecionamento da distribuição de verbas pelo
governo federal, que estava privilegiando a tempos o processo de industrialização do país
sem dar a devida atenção à produção rural. Neste sentido, acompanhando a política de
divisão de terras, a ser realizada prioritariamente nas terras do Estado, deveria ser
encaminhado o fornecimento de tecnologia e de técnicas para os proprietários rurais.
Assim, a reforma agrária pretendida pelos udenistas aqui abordados relaciona-se
diretamente com o projeto desenvolvimentista deles. O fundamental era aumentar a
produtividade agrícola “estabelecendo medidas de assistência técnica aos que já possuem
terra e aos que vierem a possui-la em virtude da reforma”636 com o intuito de “harmonizar o
desenvolvimento rural com o processo de industrialização”.637 Um preparo técnico
cuidadoso e a disseminação de modernas técnicas agrícolas entre a massa campesina eram
importantes mas deveriam ser encaminhados paralelamente à difusão da educação uma vez
que, se
“(...) temos mais de 50% da população completamente analfabeta, temos ainda uma
alta porcentagem de elementos que, embora ligeiramente alfabetizados, não estão
em condições de receber os ensinamentos que lhes serão fornecidos pelos
responsáveis pelos aprimoramentos da nossa agricultura”.638

Tornava-se importante ainda a viabilização da aquisição de máquinas que pudessem


modernizar, por completo, a estrutura rural. Para tanto, outra parte desta reforma estaria na
organização de uma estrutura de coordenação do Estado na distribuição de verbas e
financiamentos para a agricultura com o objetivo de tornar viável ao homem do campo a
aquisição das máquinas “as mais aperfeiçoadas, para o plantio, para a cultura, para a
639
colheita, para o enfardamento”. Esta modernização era fundamental para o aumento da
produtividade do campo, condição básica para o alcance do desenvolvimento, como já foi
mencionado anteriormente. Outros recursos também seriam necessários para a obtenção de

636
Carta de princípios da União democrática Nacional de 20 de fevereiro de 1962. Arquivo UDN.
637
Tese apresentada à XIV Convenção Nacional pela delegação de São Paulo..., op. cit.
638
Editorial. “A reforma agrária”. In: O Estado de S. Paulo, de 11 de abril de 1964.

238
239

adubos, sementes, cercas, ferramentas, e para a posterior garantia para a colocação do


produto no mercado.
Para tal empreendimento, sugeriam os udenistas que deveriam ser encaminhadas a
organização de um Banco Rural e a manutenção de um crédito móvel. Este banco também
teria por função a aquisição de terras para a redistribuição entre os lavradores. Em suma,
solicitava-se ao governo a mesma prática que estava sendo encaminhada em relação ao
processo de industrialização.
Outra importante medida que se discutia paralelamente era a da questão da
distribuição de terras por parte do governo seria a da consolidação do Estatuto do
Trabalhador Rural. Segundo Teixeira da Silva e Benevides, a UDN oferecia uma resistência
significativa em relação à implementação do Estatuto.640 Afirma a autora que “em níveis
diferentes de radicalização” a UDN era contrária a uma série de fatores que giravam em
torno da reforma agrária. Dentre eles a afirmação do Estatuto do Trabalhador Rural, que
concedia jornada de trabalho de oito horas, repouso remunerado e salário mínimo, dentre
outros aspectos, ao trabalhador do campo.
No entanto, tendo a considerar que a UDN não estava completamente compacta em
torno deste aspecto. Segundo percebo existiria até mesmo uma tendência a tolerar cada vez
mais a aplicabilidade do estatuto para evitar perdas maiores em relação a outras questões
tais como a da desapropriação com títulos públicos ou a avaliação da propriedade de acordo
com o valor declarado no imposto territorial. Sobre este aspecto Aspásia Camargo assinala
que a “iminência de uma reforma agrária que se apóie em setores mobilizados do
campesinato generaliza o temor a medidas radicais de caráter irreversível que possam
iniciar reações em cadeia de resultados imprevisíveis”. Afirma ainda a autora que as
declarações de Pedro Aleixo, ainda em 1962, apresentavam a necessidade da adoção de
medidas “utilizando as possibilidades oferecidas pela Constituição e complementando-as
com as alterações específicas adequadas” .641

639
COSTA, Corrêa da. Discurso. ACD.
640
Segundo Teixeira da silva um aspecto que marca claramente a oposição dos proprietários rurais em torno
da vigência do Estatuto foi o desencadeamento de um “amplo movimento de expulsão de trabalhadores, face
à negativa em arcar com o custo econômico da legislação social”.
641
CAMARGO, Aspásia de A. “A Questão Agrária: Crise do Poder e Reformas de Base (1930-64)”, op. cit.,
pp. 199 e 200.

239
240

Desta forma, grupos que antes se colocavamfrontalmente contrários à aprovação do


Estatuto do Trabalhador Rural passaram a tolerá-lo como alternativa viável para evitar a
radicalização. Foi o caso, por exemplo, do jornal O Estado de S. Paulo, que, segundo
Benevides, exortava as classes produtoras a lutar contra a extensão da legislação trabalhista
no campo. No entanto, observei que a partir de 1961, gradativamente a posição do Jornal
modificou-se, como pode ser observado no trecho a seguir:
“Importante etapa das reformas fundamentais e da própria reforma agrária deve ser
desempenhada pelo Estatuto do Trabalhador Rural, recém-sancionado pelo
presidente da República, depois de exagerada demora em sua elaboração. É lei de
real expressão, capaz de contribuir ponderavelmente para a valorização social do
trabalhador do campo”.642

Geraldo Freire (pertencente à ADP) e Lourival Batista (subsecretário do Partido


em 1965) consideravam também os aspectos positivos do Estatuto. O primeiro apresentou-
se, inclusive, como um dos principais defensores da aplicação do Estatuto, cobrando seu
efetivo cumprimento através de uma “fiscalização autêntica” de forma a que ela estivesse
presente em todo o país. Afirmava ainda que o estatuto representava 50% de uma boa
reforma agrária:
“Assim, se executarmos o estatuto do trabalhador rural, com repouso semanal
remunerado, com salário mínimo, com férias e sobretudo com a previdência social,
cuja ausência é pecado que brada aos céus, se nós aplicarmos com dignidade, com
energia e com patriotismo, o problema diminuirá de importância”.643

A UDN reconhecia a desigualdade social. Considerava-a “natural”, mas o partido


entendia que deveria ser aumentado o direito de acesso da massa camponesa à posse da
terra, no meio rural, e à posse de moradia, nos centros urbanos. Consideravam que esta era
uma reivindicação legítima. Assim pelo menos apresentava a Carta de Princípios de 1962 e
a Proclamação da UDN de 1964, provavelmente como reflexo de uma progressiva guinada
para a esquerda do sistema político. No entanto, isto não representava para eles que as
diferenças sociais seriam, algum dia, eliminadas. Consideravam-nas como naturais.
Lacerda, em sua mensagem à convenção de 1961 indicava que o partido “não pretende
afirmar a utopia e parte do sólido princípio de que a miséria e a injustiça sempre existirão

642
Editorial. “O estatuto do trabalhador rural”. In: O Estado de S. Paulo, de 07 de março de 1963.
643
FREIRE, Geraldo. Discurso. ACD..

240
241

no mundo”.644 Existia uma “desigualdade essencial dos homens entre si” que era própria
da condição humana.645 Afinal de contas, afirmava Hamilton Nogueira, a “pobreza tem sua
dignidade, a pobreza é cristã” e vivênciá-la estava embutido nos desígnios divinos
impostos a determinadas pessoas para que pudessem alcançar o plano da redenção.
A miséria, não a pobreza, mas aquela condição que levava o homem viver “abaixo
da condição humana”,646 abjeta, esta deveria ser eliminada. Como as diferenças sociais
fizessem parte do plano divino e a pobreza um esteio que comporia o plano de salvação de
alguns, a sua minoração resultaria também da prática cristã da caridade. No meio rural esta
prática cristã já se desenvolvia há muito. Lá não existia o “desejo insaciável do lucro” que
marcava a cultura industrial. Eram os “costumes campesinos de tanta formosura da nossa
pátria” que se apresentavam como fundamentais para que o país alcançasse o
desenvolvimento dentro de “seu grande espírito de fraternidade e de senso cristão”.647
Qualquer outra forma de luta pela sua eliminação, consideravam, acabaria por aumentar
ainda mais a situação de penúria vivida por alguns e a ampliação desta condição para
outros.
Somente desta forma as transformações necessárias seriam obtidas a partir do
respeito à tradição e aos costumes culturais brasileiros. O Papa, com sua encíclica Mater et
Magistra, reafirmava justamente estes princípios, segundo atestava editorial do OESP,
baseados na solidariedade humana e nos valores cristãos. Por isso a necessidade,
concluíam, de efetivação de uma reforma agrária. Uma reforma que teria por objetivos a
eliminação de condições abjetas de vida à gigantesca população rural,648 ainda
predominante naquele momento através da sua integração na civilização649 mas mantendo
um estilo de vida cristão.650 Uma reforma que acabasse com a migração excessiva do meio
rural para o urbano.651 Que diminuísse a inflação652 e solucionasse o problema da produção
de alimentos através do aumento da produção e proporcionasse ao país o desenvolvimento

644
Mensagem de Carlos Lacerda à convenção da UDN, de 29.04.61, op. cit.
645
Editorial. “Um despautério!”, op. cit.
646
NOGUEIRA, Hamilton. Discurso. ACD.
647
FREIRE, Geraldo. Discurso. ACD.
648
Editorial. “O povo está cansado de fórmulas: é hora de ação construtiva”. In: Revista Maquis, n° 224, de
14/10/1961.
649
Carta de princípios da União democrática Nacional de 20 de fevereiro de 1962, op. cit.
650
Nota ao povo brasileiro da UDN, 1964. Arquivo UDN.
651
COSTA, Corrêa da. Discurso. ACD..
652
ALEIXO, Pedro. Discurso. ACD..

241
242

almejado,653 com modernização, com mais técnica, mais crédito. Mas que asseverasse,
principalmente, a formação de “uma classe média rural estável e próspera”654 que
viabilizasse o equilíbrio social tão almejado.
Uma reforma que teria como elemento central a propriedade privada. Que buscasse
respeitar ao máximo sua intocabilidade e, ao mesmo tempo, contribuísse para que seus
proprietários viessem a intervir diretamente nos seus arranjos. Uma reforma que
preservasse os preceitos democráticos, cristãos e ocidentais existentes na mentalidade
brasileira.

653
Nota ao povo brasileiro da UDN, 1964, op. cit.
654
Tese apresentada à XIV Convenção Nacional pela delegação de São Paulo, op. cit.

242
243

Política Externa dos udenistas de extrema-direita

“Deveria se mostrar (...) aos brasileiros quais os fatos


que estão interessando a nossa vida civilizada e como o perigo
que havíamos corrido e ainda hoje estamos correndo precisa ser
afastado, com a colaboração do Brasil e não com a maneira
dúbia de ficar ora do lado da Rússia, ora dos Estados Unidos,
como se não estivesse em causa a vida dos brasileiros e a
existência cristã, que sempre desejamos para a nossa Pátria.”

Deputado Federal Alde Sampaio

Os udenistas concebiam que irremediavelmente o país estava atrelado ao mundo


ocidental. Como já assinalado na parte em que analiso a sociedade política, a grande
maioria do partido entendia que o regime de governo que o país havia adotado por opção
era o democrático. Esta opção encontrava um vínculo direto com a postura do Brasil no
plano internacional. Uma vez que o regime político interno era a democracia, nada mais
natural do que fazer a opção pelo alinhamento junto ao grupo de nações que possuía por
característica comum a presença da democracia. Isto era um resultado natural, em vista dos
“determinantes históricos” que uniam o país ao destino “em que comumgam as nossas
irmãs do continente americano e as grandes democracias européias”.655 Outro aspecto que
alicerssava a união entre o Brasil e estas nações era a identidade em relação ao cristianismo.
Segundo João Mendes o país era considerado como uma “nação nitidamente ocidental” em
face de viver sob a “inspiração de uma filosofia cristã de vida e de uma concepção
democrática de sociedade”. Alde Sampaio acrescentava ainda que não havia o que ser
questionado, uma vez que:
“(...) Nossa civilização ocidental está sustentada por um bloco de países formados
no cristianismo com tradição secular, não aceita por outro bloco, (...) [que] hoje
rejeita os princípios fundamentais dessa civilização ocidental [e na qual] nem ao
menos o fundamento cristão é realmente acolhido pela política diretora desses povos
(...)”.656

No plano externo estes vínculos estavam baseados numa tradição de amizade entre
os povos do ocidente que buscavam reproduzir, numa esfera mais ampla, o cristianismo e a

655
Editorial. “O Brasil e o momento internacional”. In: O Estado de S. Paulo, de 17 de fevereiro de 1961.
656
SAMPAIO, Alde. Discurso. ACD..

243
244

democracia, aspectos que viabilizariam a fundamentação de uma relação calcada na


“solidariedade entre os povos”.657
Observa-se, portanto, que os fundamentos que os udenistas aqui analisados
buscavam valorizar possuíam ampla identidade com aqueles elencados na DSN: a
localização geográfica que, por sua vez, colocava o país dentro de um contexto em que os
valores morais, espirituais e políticos os vinculavam ao Ocidente e, conseqüentemente, com
os seus parceiros americanos, mais especificamente com os EUA.658
Além disso, o Brasil possuía outros vínculos com o mundo ocidental dos quais não
podia prescindir: “sua lição artística e cultural, sua assombrosa tecnologia e os seus
capitais”.659 O país não poderia abrir mão destes benefícios sem colocar em risco o
restabelecimento do equilíbrio de suas finanças e da economia como um todo.660
Fazer a opção pelo mundo ocidental não significava o fim da independência
nacional, como alguns concebiam. Pelo contrário. A própria UDN apresentava-se como
fiadora de um projeto que sustentava a “independência e defesa da soberania nacional, fiel
aos nossos compromissos com o mundo democrático”.661 A tradição do país neste
posicionamento havia impossibilitado o Brasil de enveredar por erros que eram observados
em outras nações do mundo. Os Estados Unidos, principal nação do mundo ocidental, não
eram vistos como um rival mas sim como um grande parceiro. Até mesmo como uma
República irmã, uma vez que ambas partilhavam de uma espécie de filiação comum
(democracia e cristianismo).
Esta postura de independência, segundo entendiam os udenistas aqui retratados, era
reafirmada pelo posicionamento brasileiro em defesa da autodeterminação dos povos e do
anticolonialismo. Ambos os aspectos eram defendidos pelos udenistas, mas com ressalvas
tão significativas que acabavam por tomar conotações contraditórias. A defesa destas
questões deveria ser encaminhada de forma a não possibilitar a “quebra dos seus

657
Editoral. “Comentário sobre ‘manifesto’ lançado pelo governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, sobre
a situação do país”. In: Revista Maquis, n° 239, 1ª quinzena de fevereiro de 1962.
658
Comblim Estuda a relação entre geografia e Estados. Na DSN estabelece que a geopolítica é “o
fundamento racional dos projetos políticos”. É utilizada para inserir a Nação dentro do conceito de
bipolaridade e, neste sentido, dentro do anticomunismo. “A grande tese geopolítica é a divisão do mundo em
dois poderes antagônicos e a inevitável integração da América Latina em um desses blocos, por motivos
geopolíticos”. COMBLIN, Joseph Pe. A ideologia de Segurança Nacional – o poder militar na América
Latina. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, pp. 25 a 28.
659
Editorial. “Ganhar a guerra com a Revolução”. Tribuna da Imprensa, de 09 e10 de maio de 1964.
660
Editorial. “A vitória está nas mão do presidente”. In: O Estado de S. Paulo, de 02 de abril de 1961.

244
245

compromissos e das tradições que o vinculam aos princípios da política ocidentalista”.662


Percebi que a ressalva na defesa do anticolonialismo e da autodeterminação era dirigida
principalmente no que se refere às suas ligações com os Estados Unidos e Portugal. Apesar
de assinalarem uma posição favorável em relação aos países africanos que lutavam por sua
independência, quanto o assunto abordado era a autonomia dos territórios dominados por
Portugal a situação modificava-se. Cardoso de Menezes, por exemplo, considerava que este
país não possuía colônias, mas sim partes descontinuadas de territórios.663 A postura do
governo brasileiro, ao solicitar à Portugal para que concedesse independência de Angola,
por exemplo, foi considerada como um “extremo de cegueira” que contribuía para que o
país se apresentasse como “caudatário do bloco anti-ocidental na ONU”.664 Geraldo Freire
afirmava, sobre o mesmo aspecto, que se assistia a verdadeira inversão de valores, na qual
“(...) Os homens que criaram as civilizações modernas, que trouxeram as lições de
independência dos povos e da libertação dos indivíduos, são apontados como
escravocratas, como colonialistas, ao passo que as nações que ressuscitaram o
colonialismo em pleno século XX, escravizando os seus vizinhos, liminarmente
livres, são apontadas aos olhos atônitos do mundo como as redentoras da nova
humanidade! (...) Tudo está as avessas”,665

O recado era extremamente direto. O alvo era a União Soviética. Nenhum outro país
apresentava-se mais imperialista no mundo do que esta nação pois não possibilitava
autonomia aos países que se apresentavam como seus “vassalos”. Neste sentido, entendiam
que a repulsa contra a intervenção militar soviética na Hungria, a condenação contra os
massacres encaminhados contra poloneses e alemães orientais e a condenação contra o
recente imperialismo chinês, ao invadir a Coréia, eram, estes sim, atitudes em defesa da
autodeterminação dos povos.
Da mesma forma, quando eram os interesses norte-americanos que estavam em
questão a defesa da autodeterminação encontrava uma grande resistência entre os udenistas
golpistas. O caso cubano demonstra claramente isto. Na verdade, eles entendiam que Cuba
não pretendia obter sua autodeterminação pois “ao fugir do imperialismo americano, ao
fugir das grandes empresas americanas, o Sr. Fidel Castro entregou os pulsos às algemas de

661
Carta de princípios..., op. cit.
662
Moção à 13a Convenção da UDN em 29.04.1961. Arquivo UDN.
663
MENEZES, Cardoso. Discurso. ACD. Membro da UDN da Guanabara e participante da ADP.
664
Editorial. “O filho ingrato”. Tribuna da Imprensa de 17 de janeiro de 1962.
665
FREIRE, Geraldo. Discurso. ACD.

245
246

Moscou”.666 A defesa do princípio de não-intervenção e de autodeterminação neste país


representava na verdade a possibilidade de entrada do comunismo, o estabelecimento de
uma “ponta de lança totalitária que ameaça irradiar-se por todo o Continente”.667 A partir
daí a propaganda comunista propagaria-se para toda a América do Sul, ameaçando os
princípios da liberdade668 e, como conseqüência, o sistema democrático ocidental.669
Entendiam os golpistas da UDN que, diante de tal situação, a política externa
encaminhada pelo governo brasileiro encontrava ressonâncias significativas dentro da
política interna brasileira. Tratava-se da culminância de um processo efetivado
gradativamente pelos governos anteriores, mas colocado em aceleração por Jango, e até
mesmo por Jânio Quadros, e que acabaria por possibilitar a disseminação do comunismo no
Brasil. O apoio de alguns udenistas da extrema-direita à política externa de Jânio foi
realizado com severas restrições. Principalmente a partir da desilusão em que se
encontraram ao observar que esta política não estava acompanhada de um paralelo no que
se refere à “firmeza de declarações e de ações enérgicas contra a penetração e agitação
comunista em todo o país”,670 levando ao comprometimento da segurança da democracia
no Brasil segundo Adauto Lúcio Cardoso.671 Pensavam no “efeito demonstração” que o
exemplo cubano poderia provocar na sociedade brasileira.
A política externa encaminhada principalmente pelo governo Jango apresentava,
portanto, implicações diretas no nível interno. O contexto internacional, segundo
concebiam, colocava o problema da contenção do comunismo não apenas no âmbito de um
embate direto. Tratava-se, a partir de então, de conter a escalada comunista que estava
invadindo o país. O restabelecimento de relações diplomáticas com países do Leste
europeu, com a URSS e a China, teria como desdobramento direto a organização de
missões diplomáticas no país. Segundo Cardoso de Menezes, João Mendes, Othon Mader e
outros, estas “Legações e Embaixadas Soviéticas [eram] verdadeiras agências de

666
Editorial. “Amaral Netto reformula sua posição”. In: Revista Maquis, n° 228, de 11 de novembro de 1961,
pp. 8 a 10.
667
Editorial. “O espirito e a letra”in: Tribuna da Imprensa, de 16 de janeiro de 1962.
668
FREIRE, Geraldo, op. cit.
669
NOGUEIRA, Hamilton. Discurso. ACD..
670
Editorial. “Lacerda x Jânio: crise mais grave do que parece”. In: Revista Maquis, n° 219, de 31 de agosto
de 1961, pp. 4 e 5.
671
Idem, ibidem.

246
247

espionagem e focos de propaganda contra o regime democrático que nos cumpre defender e
aperfeiçoar”.672 A questão tomava uma dimensão ainda maior uma vez que
“(...) neste momento, em que passa o Brasil por delicada conjuntura econômica,
social e política, foi erro grave o restabelecimento de relações diplomáticas com
uma Nação mantida sob o jugo de uma ideologia violenta e agressiva que, na
América Latina, vem fomentando agitações sociais e políticas graves, conduzidas
com brutal desumanidade, visando a usurpar o poder político das mãos do povo, em
benefício de uma minoria astuta, impiedosa e aguerrida, com a supressão das
garantias democráticas”.673

O resultado, afirmavam, era a arrogância de pronunciamentos que davam conta da


real situação no Brasil. Tais como o de Francisco Julião e o de Luís Carlos Prestes onde,
assinalam, teria este afirmado que o caminho do Brasil “é o mesmo de Cuba”.674
A sociedade brasileira, por sua vez, não partilhava da mesma opinião do governo
mas não era ouvida por este. Personalidades como o General Segadas Vianna, D. Augusto
Alvaro da Silva (Primaz do Brasil), D. Vicente Scherer, Deputado Temístocles Cavalcanti,
Monsenhor Arruda Câmara, Marechal Mendes de Morais, Deputado Hamilton Nogueira,
Brigadeiro Pedrosa Hardman, Carlos Lacerda e outros eram citados como exemplo de
figuras importantes da sociedade que se colocavam abertamente contrários à direção que
estava sendo dada à política externa e representavam, verdadeiramente, “as advertências de
quem verdadeiramente reflete o sentir e pensar da nacionalidade”.675 Mais uma vez
observa-se aqui a idéia de presciência das elites, que sabem interpretar a vontade popular.
A Ação Democrática Parlamentar também pronunciou-se neste sentido.676 Um dos
receios era a possibilidade de desenvolvimento de uma nova Intentona Comunista.
Afirmava o editorial da Revista Maquis: “São 22 brasileiros que foram mortos pelos
comunistas. Quantos poderão ser em outra intentona, ninguém sabe”.677 O certo, para eles,
era que os indícios da movimentação comunista concretizavam-se através do aumento da
mobilização dos trabalhadores que tentavam implementar o caos através do correspondente
aumento do número de greves.

672
MENEZES, Cardoso. Discurso. ACD..
673
MENDES, João. Discurso. ACD.
674
Editorial. “Agitação comunista está crescendo”. In: Revista Maquis, de 16 de dezembro de 1961, pp. 10 e
11.
675
Editorial. “A nota do Itamarati”. In: O Estado de S. Paulo, de 12 de maio de 1961.
676
Citado em editorial. “Brasil aprova deboche soviético”. In: Revista Maquis, n° 232, de 09 de dezembro de
1962, pp. 23 a 31.
677
Editorial. “Brasil aprova deboche soviético”, op. cit.

247
248

O restabelecimento de relações diplomáticas com países comunistas, a defesa da


autodeterminação dos povos de forma unilateral e o distanciamento gradativo do Brasil em
relação aos seus tradicionais parceiros eram resultados de uma política externa calcada na
idéia de neutralidade, esta por sua vez extremamente criticada pela ADP. O objetivo de
uma política externa independente até foi considerado como sério por algum tempo, mais
ou menos ao longo do mesmo período em que durou o entusiasmo da UDN com Jânio
Quadros, quando esta política foi aprofundada. No entanto, a posição do partido
rapidamente foi abandonada, ainda mesmo ao longo do governo Jânio, mas principalmente
em função da ojeriza que a UDN possuía em relação a quem a encaminhou posteriormente:
João Goulart. A partir de então, a idéia de aproximação com a União Soviética passou a
representar, para os udenistas, “mais um trunfo poderoso no seu [para a URSS] jogo contra
os Estados Unidos”.678
Uma das justificativas dos neutralistas era a ampliação das possibilidades
comerciais que o país teria com o reatamento das relações com os países socialistas e com a
adoção de uma política mais distanciada com relação aos EUA. Nada mais errôneo,
segundo os udenistas, que apresentavam uma série de argumentos para fundamentar sua
posição. Primeiro porque não era necessária a existência de embaixadas para que relações
comerciais fossem efetivadas entre o Brasil e os países comunistas. Em segundo lugar o
comércio seria desvantajoso para o país pois os principais artigos brasileiros não possuíam
muita entrada no comércio com esta área. Além disto, naquilo que os países socialistas
poderiam oferecer – capital e tecnologia – os Estados Unidos, que seriam o principal
parceiro econômico do Brasil, eram “superiores. Por último, a diversificação econômica na
pauta de exportações, que era a grande justificativa para o vínculo comercial almejado pelo
governo, acabava por ser invalidada devido ao saldo positivo que a relação comercial
estabelecia. Isto, que a princípio poderia ser alvo de comemorações, acabava por tornar-se
negativo devido ao fato de estes saldos “praticamente se tornarem congelados”.679
Os neutralistas tinham a maior parte de seus signatários entre os países
subdesenvolvidos e objetivavam criar “uma atmosfera internacional” que impedisse a

678
Editorial. “O Brasil e o momento internacional”. In: O Estado de São. Paulo, de 17 de Fevereiro de 1961.
679
Editorial. “O COLESTE e o perigo da espoliação no comércio do Leste”. O Estado de Saõ Paulo, de 19
de dezembro de 1962.

248
249

Guerra Fria de chegar a um impasse.680 Na medida em que a União Soviética empurrava o


mundo para o abismo, realizando novos testes nucleares, os neutralistas buscavam acentuar
sua coesão interna. Aí estava, segundo assinalavam, a inconsistência do movimento, já que
“(...) a força integradora do neutralismo é bastante reduzida porque este nasceu da
afirmação dos interesses nacionais particulares das potências menores, das potências
fracas, das potências recém-emancipadas, e os interesses nacionais particulares, pela
natureza das coisas, são diferente e até divergentes. O que lhes é comum é a
negação de qualquer forma de imperialismo, colonialismo ou neocolonialismo”.681

Outro aspecto que contribuía para talinconsistência era a existência de diferentes


fatores que geravam este movimento: a vontade de autonomia quanto à política exterior; a
obtenção de ajuda econômica externa sem contrapartida em termos políticos; a indiferença
em relação às ideologias que estavam em embate; e, por último, um neutralismo que
disfarça “uma forma sub-reptícia de alinhamento ao bloco soviético”.682 A partir destes
aspectos geradores, seriam adotadas posturas diferenciadas entre os seus componentes,
acentuando, assim, a inconsistência do grupo.
No Brasil, a adoção do neutralismo resultava de um completo equívoco, segundo os
golpistas da UDN. O governo brasileiro, pressionado pelos nacionalistas e pelos
“filocomunistas”, teimava em empurrar o país em direção ao bloco neutralista. A maior
parte dos udenistas cria que o neutralismo adotado pelo Ministério das Relações Exteriores
brasileiro estava incluído no quarto fator de geração desta política: “uma forma sub-reptícia
de alinhamento ao bloco soviético”.683
Mesmo a política de neutralidade brasileira era dúbia e estava, cada vez mais,
empurrando o país para o isolamento completo e para o descrédito do país junto a outras
nações, segundo Othon Mader.684 Absolutamente ninguém poderia viver sozinho no mundo
moderno, marcado por “uma reciprocidade de relações que torna cada país dependente de
outro país, e numa dependência que mais cresce quanto maior é esse país”.685 Utilizavam-
se da história recente do país para exemplificar os perigos que os brasileiros corriam:
Vargas já havia esboçado o mesmo tipo de política e quase levou o país em direção ao

680
Editorial. “Os blocos e os não comprometidos”. In: O Estado de S. Paulo, de 03 setembro de 1962.
681
Idem, ibidem.
682
Idem, ibidem.
683
Idem, ibidem.
684
MALDER, Othon. Discurso. ACD. Membro da UDN do Paraná e participante da ADP.
685
PADILHA, Raymundo. Discurso. ACD. Mais uma vez se estabelece a relação entre as afirmativas dos
udenistas e o conceito de geopolítica dentro da DSN. COMBLIM, op. cit., pp. 25 a 28.

249
250

Eixo. Entendiam eles que o perigo colocava-se novamente, só que em direção a um outro
regime totalitário: a União Soviética.
Qual deveria ser o caminho brasileiro em termos de política externa? Segundo os
udenistas da extrema-direita o mundo pós-guerra estava, irremediavelmente, dividido em
blocos. Fosse em função da divisão do mundo entre capitalismo e comunismo, ou segundo
consideravam, entre democracia e comunismo; fosse ainda pela internacionalização da
economia mundial. A interdependência das nações era uma realidade inquestionável,
segundo Raimundo Padilha, a qual contribuía diretamente para a garantia da independência
do Brasil. Neste sentido, o país deveria procurar o que seria o seu espaço natural dentro do
“concerto de nações”. Este estaria reservado dentro da Junta Interamericana de Defesa,
órgão militar defensivo e ofensivo vinculado à Organização dos Estados Americanos,
espaço obtido através de inúmeros compromissos diplomáticos e militares que não
poderiam ser ignorados. Seria neste espaço que o Brasil garantiria sua independência,
obteria a contenção do comunismo e se tornaria apto à obtenção dos capitais necessários
para o seu desenvolvimento.
Este havia sido o curso normal da política externa brasileira desde o início de sua
vida republicana, que havia levado o país a uma situação “invejável” na América e na
Europa, e que havia, enfim, evitado que o país enveredasse por “perigosas aventuras”.
Vincular-se ao mundo Ocidental representava aderir aos mecanismos engendrados pelo seu
principal líder, os Estados Unidos, na defesa da “democracia” e do cristianismo. Era um
“dever de solidariedade para com todo o mundo Ocidental”.686 Para o tipo de política
externa pensada pelos udenistas, dentro do contexto vivido, não havia opções.
Não vejo palavras mais acertadas, apesar de equivocadas, para fechar esta parte do
capítulo, do que as proferidas por Cardoso de Menezes:
“Nesta hora de abastardamente moral, de inversão de valores, de cretinização
mental; neste momento em que se congregam os inimigos da Pátria para esmagar as
nossas mais caras tradições e nos transformar em colônia do império soviético, é
mister que nos definamos pela Democracia ou pelo Totalitarismo, pela Liberdade ou
pela Escravidão, pelo Brasil ou pela Rússia!”687

686
Editorial. “A política externa do Brasil”. In: O Estado de S. Paulo, de 09 de Fevereiro de 1961.
687
MENEZES, Cardoso. Discurso. ACD.

250
251

Conclusão parcial
No projeto desenvolvimentista dos udenistas da extrema-direita a política que
privilegiava industrialização desenfreada já havia demonstrado quão permissiva era para a
economia. Era a grande responsável pela inflação ao gerar uma maior disputa pelos fatores
de produção. Tinha contribuído para uma postura excessivamente interventora do Estado na
produção de riquezas e, além disto, limitava significativamente a ação da iniciativa privada,
esteio da geração de bem-estar material de qualquer país, concebiam eles.
O elemento fundamental para o desenvolvimento seria o estímulo à produção
agrícola. De certa forma tem-se uma tentativa de resgatar a idéia da “vocação agrícola” do
país. Esta atividade era a principal geradora de riquezas e não deveria ser menosprezada.
Não se quer assinalar aqui que a UDN era contra o processo de industrialização. O mais
correto seria indicar que era contrária à forma pela qual o processo se conduzia. Em poucas
palavras: contra a industrialização “à caneladas”. Entendiam que o processo era
irreversível, mas que deveria ter uma série de correções de rumos, a começar pelo seu
sistema de financiamento.
Para os udenistas, o capital que deveria ser utilizado para a industrialização deveria
ter sua origem, em primeiro plano, na produção agrícola, nas divisas obtidas com as
exportações. Mas não concebiam desviar uma quantia que nem mesmo atrapalhe a
progressão da própria atividade agrícola, sem confiscos “arbitrários”. O Estado brasileiro
deveria apresentar uma imparcialidade diante das diferentes alternativas de produção de
riquezas. Neste sentido, não solicitavam a intervenção direta do Estado, mas a abertura de
canais de coordenação por parte deste que contribuíssem para o aumento da produção no
campo. Financiamentos, subsídios e uma política aduaneira que corroborasse as
exportações seriam bem-vindas.
A outra parcela de financiamento teria sua origem no capital internacional. Isto
evitaria o emissionismo inflacionário e a concorrência, por fatores de produção, entre
indústria e agricultura. Por isso consideravam tão permissivo a intervenção crescente no
que se refere à diferenciação entre capital nacional e internacional. A ausência deste capital
provocaria o retorno da disputa pelos parcos recursos do Estado. Com estas medidas
esperavam os udenistas conter a espiral inflacionária que corroía o país e que contribuía
para a deflagração das movimentações populares.

251
252

No que se refere à participação política, os udenistas adotavam uma postura


extremamente elitista. Entendiam que o regime político necessitava de uma profunda
“limpeza”. O objetivo seria eliminar as influências negativas tanto do getulismo quanto do
comunismo. Reivindicavam uma democracia de caráter restritivo, ainda mais do que a
existente até então (no período compreendido entre 1945 e 1964). Isto porque os semi-
alfabetizados eram os mais propensos às influências assinaladas acima, para as quais
deveriam ser observados mecanismos de correção. O povo analfabeto não deveria votar
enquanto as condições de instrução e educação necessárias para a erradicação do
analfabetismo não se estabelecessem. A situação sócioeconômica do país era propícia para
que medidas como o voto do analfabeto colocassem a emoção à frente da razão e uma
democracia somente funcionava, compreendiam eles, através da razão. A idéia era evitar-
se o estabelecimento de um “reformismo demagógico”.
Sobrevalorizavam o papel das elites, que consideravam ser a única parcela da
sociedade capaz de interpretar corretamente a vontade popular. Dentre estas elites estavam
os militares, que deveriam exercer um papel de importância na “higienização” do sistema.
Pelo menos até princípios de 1965 não percebi, dentro da UDN, uma corrente que
advogasse explicitamente o estabelecimento de um regime eminentemente militar. Até
então, o que era reivindicado era uma posição de intervenção saneadora, capaz de salvar o
país do perigo comunista mas submetida à liderança civil.
Quanto à questão social entendiam que a reforma agrária, tal como estava sendo
encaminhada, possuía um caráter nitidamente subversivo. Acabaria por impedir a efetiva
eliminação da miséria e representava um atentado contra a instituição da propriedade
privada.
Não eram completamente contrários à reforma, mas ela deveria adequar-se aos seus
preceitos. Um deles era a liderança da iniciativa privada na sua implementação. Evitar-se-
ia, assim, os confiscos brutais contra aqueles que eram os reais produtores de riqueza do
país. Alguns chegam a considerar que a reforma agrária tal como estava sendo
encaminhada nada mais era do que uma outra ofensiva contra o mundo rural.
Outro aspecto a ser considerado era que a reforma agrária deveria sair das mãos do
governo federal e ser encaminhada pelos Estados. Isto porque o problema, segundo
entendiam, assumia importantes diferenças regionais. Deve-se considerar ainda que esta

252
253

reforma deveria ser encaminhada prioritariamente nas terras devolutas do governo, na


forma de ampliação da fronteira agrícola. Paralelamente, o governo contribuiria para que a
verdadeira reforma agrária se estabelecesse a fim de aumentar da produção agrícola, com o
fornecimento de técnicas, tecnologia e verbas – para o grande agricultor –, e educação que
viabilizasse ao pequeno agricultor adotá-las.
O Estatuto do Trabalhador Rural complementaria este quadro da reforma. Não que a
UDN morresse de amores por tal medida. Mas, ao longo do período analisado, percebi que
os udenistas acabaram por optar por um mal menor dentro do quadro que se apresentava.
Talvez o intuito fosse o de deixar apenas no papel tal medida. O certo é que os udenistas da
extrema-direita não esperavam acabar com a pobreza ou a desigualdade social.
Consideravam-na natural na ordem humana. Fundamental, inclusive, para a prática do
“amor ao próximo”.
Por último, a política externa dos udenistas. Para eles o mundo encontrava-se
irremediavelmente entrelaçado. Fosse em função do contexto internacional da Guerra Fria,
fosse em função da internacionalização econômica. Não existia mais a possibilidade de
uma nação viver isolada e o Brasil estava predestinado a vincular-se ao mundo ocidental.
Democracia e cristianismo estabeleciam estes vínculos, que eram ditados ainda pela própria
localização geográfica do país.
As pretensões neutralistas eram por demais inconsistentes, segundo concebiam,
posto que o movimento internacional em sua defesa carecia de consistência programática.
Os países que compunham a “Terceira Via” não possuíam os mesmos objetivos na
associação, apresentando ainda diferentes trajetórias em suas histórias. Além desta política
externa contribuir para camuflar um alinhamento sub-reptício à União Soviética, estava em
completo desacordo com os anseios populares, segundo afirmavam.
Neste sentido defendiam o anticolonialismo e a autodeterminação dos povos mas
desde que estes aspectos não afetassem a política de alinhamento com seus parceiros
ocidentais. Para eles, o único imperialismo existente era o soviético. Na relação com os
Estados Unidos não existiria dominantes e dominados mas sim uma parceria que
viabilizaria a real independência brasileira.

253
254

4 – Março de 1964: esquecendo as diferenças

Neste momento recapitularei, inicialmente, as perspectivas de cada um dos grupos


no que se refere às idéias polarizadoras. Estas idéias – relativas ao desenvolvimentismo,
política externa, organização política e questão social –, serão abordadas aqui de forma
comparativa, buscando assinalar em que medida os centros polarizadores analisados
identificavam-se e distanciavam-se entre si. O objetivo é duplo. Ao mesmo tempo em que
busco apresentar que estes grupos possuíam projetos políticos diferentes, ainda que muitas
vezes não completamente articulados, indicarei que também apresentavam pontos em
comum que acabavam por distanciá-los em relação ao outro extremo do sistema político: as
esquerdas.
Graças a este segundo aspecto – as identificações –, ocorreu a aproximação cada vez
maior entre as direitas que acabou por culminar com o golpe de 64, viabilizando-o. No
entanto, este processo centrípeto apresentou determinados limites, que foram dados pelas
divergências que eles possuíam relativamente ao tipo de sociedade a construir. Retorno a
abordar o momento culminante desta aliança mais adiante. Por hora, torna-se necessário
tentar reconstruir este movimento de gradativa aproximação. Com este objetivo, inicio
analisando, em cada tema geral, o sentido em que estes grupos discordavam
completamente, passando, em seguida, a analisar os pontos nos quais pelo menos algum
grupo destoava dos demais em relação a determinados temas. Finalizo com os aspectos que
todos possuíam em comum.
Subdivido cada uma das idéias polarizadoras em determinados aspectos através dos
quais entendo que estas idéias eram discutidas. O projeto desenvolvimentista, por exemplo,
era abordado através de questões como: grau de presença do planejamento econômico,
nível de privilégio dado ao processo de industrialização, posição em relação ao
nacionalismo, papel que seria destinado ao Estado, tipo de liderança que seria destinada à
iniciativa privada, necessidade ou não do capital internacional para o país e o problema da
inflação.
No que se refere ao tipo de organização política, os principais temas citados foram:
o papel da classe média no sistema político, o grau de representatividade popular que o
regime deve (ou deveria) ter, o papel das elites e a noção de democracia apresentada por

254
255

estes grupos. A questão social foi abordada através de questões como a concepção sobre a
origem a miséria, a idéia sobre a existência de desigualdades naturais, a forma pela qual a
reforma agrária deveria ser encaminhada, a autoridade que deveria dirigirda esta reforma e
os seus objetivos. Ainda sobre a questão social, o papel que concebiam para a propriedade
privada e as opiniões sobre o Estatuto do Trabalhador Rural e sobre a Legislação
Trabalhista tomam importância significativa para mapear o projeto destes grupos em
relação aos problemas sociais que deveriam ser enfrentados, bem como em relação aos
projetos sociais a serem encaminhados.
Os capítulos anteriores abordaram o projeto de política externa destes grupos a
partir de questões como o vínculo entre política externa e política interna, a importância das
relações comerciais com os países socialistas, a importância do restabelecimento das
relações diplomáticas com estes países e a posição em relação a idéias como
autodeterminação e anticolonialismo, tipo de alinhamento e justificativas para o mesmo que
deveria ser encaminhado pelo país.
Através destas idéias foi discutido o projeto de cada um dos grupos polarizadores.
Se num primeiro momento estas questões foram discutidas verticalmente, realçando a
coerência (ou incoerência) de pensamento de cada grupo em particular, agora abordo os
mesmos de forma horizontal, costurando diferenças e semelhanças entre os diversos
grupos.
Existia um único aspecto, situado dentro do pensamento desenvolvimentista que
colocava os diversos centros polarizadores em divergência completa entre si. Cada um dos
grupos analisados apresentava uma perspectiva diferenciada em relação ao tipo de
planejamento que deveria marcar o seu projeto desenvolvimentista. Variavam, basicamente,
na gradação da interferência no que se refere à planificação econômica. Os udenistas aqui
abordados, por exemplo, pensavam não em planejamento mas numa ação de coordenação
por parte do Estado, que funcionasse de forma subsidiária na economia. Este era o grupo
que mais apresentava resistências relativamente à interferência no livre mercado.
Os membros do complexo IPÊS/IBAD, por sua vez, vislumbravam um grau de
interferência maior, no que se assemelhavam aos militares da corrente internacionalista-
autoritária. Divergiam apenas quanto a quem caberia o papel de organizar o sistema
econômico. Se para o IPÊS/IBAD a ação deveria caber à iniciativa privada, para os

255
256

militares este papel era relativo ao Estado. A posição pode ser atribuída a reflexos da
influência da DSN entre este grupo. Os militares, em geral, encaravam o problema
econômico como uma guerra a ser vencida por todos os meios. Como numa guerra, o
Estado teria um papel fundamental.
No entanto, eram os nacionalistas-ditatoriais que levavam esta perspectiva às
últimas conseqüências. Para estes, o Estado teria um papel mais agressivo diante das
conjunturas econômicas, dando relevância, assim, tanto ao planejamento quanto à ação
estatal neste campo. Todos os grupos analisados, neste sentido, apresentavam divergências,
em maior ou menor grau, quando o assunto era planejamento econômico.
Quanto aos demais aspectos do projeto desenvolvimentista destes grupos existia um
maior consenso. No que se refere ao caminho que o processo desenvolvimentista deveria
trilhar, por exemplo, a UDN era o único grupo que discordava do privilégio dado ao
processo de industrialização. Como assinalado anteriormente, entendiam eles que a vocação
do país era agrícola e era a agricultura que levaria o país a um estágio de grande potência
econômica. Não desconsideravam por completo o processo de industrialização, mas
defendiam um equilíbrio maior entre indústria e agricultura, com privilégio para o segundo
ramo da economia. Todos os outros grupos apostavam na produção industrial como tábua
de salvação do país, apesar de discordarem alguns, como os membros do IPÊS/IBAD, da
“industrialização às caneladas” . Para eles o equilíbrio entre agricultura e indústria também
deveria ser buscado, mas com ênfase na industrialização do país. Já para os militares, em
conjunto, a questão passava pela associação entre industrialização e existência de um
parque bélico significativo, fundamental para a obtenção da segurança do país.
Relativamente aos outros aspectos – nacionalismo, papel do Estado, função da
iniciativa privada, financiamento e tecnologia externos –, que dizem respeito ao projeto
desenvolvimentista, eram os militares nacionalistas-autoritários que divergiam em relação a
todos os outros grupos. Em meu entendimento, esta posição diferenciada foi fruto de uma
postura de caráter “nacionalista” por parte destes.
Dentre os diversos centros catalisadores analisados, estes militares eram os únicos
que entendiam que poderia existir um nacionalismo livre da influência do comunismo,
apesar da perspectiva predominante nas direitas ser aquela que apresentava a influência
desta ideologia na grande parte do movimento. Possuíam certas restrições à necessidade de

256
257

capital internacional e viam com reservas a dependência tecnológica do país. Para sanar
estes problemas propunham um papel mais intenso do Estado como encaminhador do
processo desenvolvimentista, assumindo mesmo a liderança deste e concebendo-o dentro
de uma perspectiva intervencionista, de fato.
Os outros grupos, no entanto, aproximavam-se na crítica ao nacionalismo, no que se
refere à idéia de que o papel do Estado na economia deveria ser diminuto. Também existia
uma proximidade de posições da parte dos udenistas, internacionalistas e ipesianos, quanto
à liderança da iniciativa privada para direcionar o país rumo ao “desenvolvimento”.
Acordavam ainda quanto à necessidade do Brasil em relação à presença de tecnologia e
capitais estrangeiros.
No que se refere a uma avaliação dos males que afetavam o país, no plano
econômico, todos estavam em sintonia. A inflação era o principal mal a ser debelado para
que seus projetos pudessem ser implementados. O quadro I busca sintetizar a abordagem
aqui realizada.
Os diferentes projetos de sociedade, no entanto, ganham relevância quando se
aborda a questão social. Aspectos como a perspectiva da origem da miséria social, o tipo de
encaminhamento que deveria ser dado à reforma agrária e a posição em relação ao Estatuto
do Trabalhador Rural encontravam formas diferenciadas de serem encarados dentro dos
grupos analisados. Pode-se, portanto, afirmar que era nesta idéia polarizadora que a
possibilidade de alcançar-se unanimidade era mais difícil.
Os membros do IPÊS/IBAD entendiam que a origem da miséria de parcelas da
sociedade era fruto do modelo econômico adotado. Não que fossem contrários ao processo
de industrialização contínua que atravessava o país. No entanto, viam com contrariedade a
ação do Estado, que emitia moeda desenfreadamente e ocasionava a inflação. Neste aspecto
concordam os membros da UDN golpista, acentuando ainda a influência que tinha o
processo inflacionário no aumento da disseminação de maiores dificuldades para as
camadas menos abastadas. Já os militares, estes apresentavam, de um lado, uma postura
mais avançada para os grupos de direita. Os nacionalistas entendiam que a miséria,
principalmente presente no campo, era fruto de uma estrutura extremamente arcaica,
baseada na grande propriedade de terra, que impedia o acesso a esta para inúmeros
brasileiros. De outro lado tem-se uma postura mais conservadora dentro das direitas aqui

257
258

analisadas, os internacionalistas-autoritários, que se negavam a reconhecer a extrema


contradição em que estava situada a sociedade brasileira. Para estes, a miséria era fruto de
um processo desenvolvimentista que afetava negativamente alguns grupos. No entanto, os
fins justificavam os meios. O objetivo final, levar o país a um estágio de desenvolvimento,
provocando sacrifícios em determinados grupos que deveriam ser prontamente assimilados
em prol da nação, valia o esforço.
As diferenças também eram marcantes na perspectiva que possuíam em relação ao
Estatuto do Trabalhador Rural. Entre os membros do IPÊS/IBAD as citações em torno do
Estatuto são tão poucas que não viabilizaram a identificação do posicionamento do grupo
em relação ao tema. Talvez porque este assunto não os preocupasse tanto assim. Isto já não
ocorria com os militares internacionalistas. Para eles o Estatuto era um instrumento que
poderia ser utilizado com vias à manipulação eleitoral, e o criticavam por isso. Opunham-se
a esta perspectiva os udenistas e militares nacionalistas: defendiam sua aplicação. Os
motivos, no entanto, eram bem diversos. A posição da UDN pode ser entendida a partir de
uma avaliação dos membros do partido na relação custo/benefício. Entraria aí a máxima de
perder os anéis para não perder os dedos. Ao longo dos anos analisados observei que o
apoio ao Estatuto entre os udenistas aumentou de forma considerável. O provável é que
tenham entendido que ceder quanto à aplicação do mesmo poderia ser uma medida que
refreasse o ímpeto de reivindicação dos trabalhadores rurais e diminuísse a sua vontade de
mexer na estrutura agrária do país. Já os nacionalistas-ditatoriais apresentavam uma outra
perspectiva. Para eles o Estatuto era mais uma forma de contribuir para a alteração da
estrutura arcaica da terra e de minorar as distorções sociais.
Em relação aos procedimentos de encaminhamento da reforma agrária, a
divergência era significativa, inclusive, entre ipesianos e udenistas, dentro de cada grupo.
Existia uma primeira perspectiva que defendia a realização da reforma primeiramente nas
terras devolutas do Estado. Neste sentido, a reforma provocaria um avanço da fronteira
agrícola em direção ao interior do país e diminuiria as tensões sociais em outras áreas. Esta
perspectiva era defendida por udenistas, em sua maioria, da região nordeste, por parcelas de
ipesianos e pelos militares internacionalistas-autoritários. Somente em último caso a
propriedade privada deveria ser tocada, assim mesmo mediante indenização de acordo com
as leis de mercado. Esta perspectiva de avançar para o interior ia de acordo com a idéia de

258
259

segurança nacional apresentada pelos militares de ambos os grupos aqui citados. A posição
dos militares nacionalistas era controversa. Ao mesmo tempo em que vislumbravam um
risco muito grande em mexer na estrutura fundiária, reconheciam que a estrutura agrária
existente era arcaica demais. Tentaram resolver este problema confiando na idéia de que o
avanço da fronteira agrícola estimularia o aparecimento de uma estrutura mais justa.
De outro lado tem-se, entre udenistas e ipesianos, uma outra visão de reforma
agrária. Parcelas destes grupos aceitavam mexer na propriedade rural em áreas onde as
terras devolutas inexistissem. Outros consideravam mesmo a necessidade de mexer-se um
pouco na estrutura fundiária, mas faziam a ressalva de que tal procedimento somente
deveria ser encaminhado após a estabilização da moeda. De comum possuíam a noção de
que a propriedade privada não era tão “intocável” assim. Todos os grupos, no entanto,
concordavam em dois aspectos. Primeiro, com a necessidade de impor maior produtividade
no campo através da implementação de mais tecnologia no sistema produtivo. Os udenistas,
mais do que todos, defendiam esta idéia uma vez que o seu projeto desenvolvimentista
passava mesmo pelo crescimento da produção rural. Segundo que, se a propriedade privada
fosse tocada, deveria ser de acordo com princípios de mercado, o que significa dizer, com o
pagamento de indenizações em dinheiro e não em títulos públicos.
Se a aplicação do Estatuto do Trabalhador Rural e a reforma agrária provocavam
algumas divergências, o mesmo não pode ser assinalado no que tange à legislação
trabalhista existente nos centros urbanos. Quanto a isto, existia quase uma unanimidade,
somente rompida pelos militares nacionalistas, para quem a legislação corrigia as distorções
provocadas pelo avanço do capitalismo no Brasil. Mais uma vez observa-se que, no que
tange a aplicação de reformas na estrutura social, os nacionalistas-ditatoriais eram os mais
avançados dentro das direitas brasileiras aqui analisadas.688 Para os outros grupos a CLT
era fruto de uma política que visava a manipulação e o clientelismo. Uma política de caráter
retrógrado que deveria ser eliminada.
Nas questões relativas à reforma agrária somente os militares nacionalistas-
ditatoriais concebiam uma reforma capitaneada pelas mãos do Estado. Para todos os outros,

688
Dreifuss, referindo-se a este grupo como “extremistas de direita”, assinala que eram os que possuíam
projetos sociais reformistas e que, por isso, provocaram esforços do complexo multinacional-associado e dos
membros da ESG para evitar que estes grupos “estabelecessem uma posição de autoridade no comando do
sistema político e da economia”. DREIFUSS, op. cit., p. 423.

259
260

o papel seria mais pertinente à iniciativa privada; os ipesianos/ibadianos pretendiam até


mesmo que ela fosse dirigida por um grupo específico: os empresários. Afinal de contas,
pensavam, um dos objetivos da dita reforma seria evitar a disputa por fatores produtivos
entre campo e cidade. Com relação a este objetivo concordavam udenistas e militares
internacionalistas. A reforma deveria evitar esta disputa crescente, aumentando a
produtividade no campo. Ipesianos, internacionalisas-autoritários e udenistas entendiam
ainda que outro objetivo seria a formação de uma classe média rural que fornecesse
equilíbrio suficiente para a estrutura social. Existia uma crença generalizada nestes grupos
de que esta classe tinha um papel estabilizador, que seria de fundamental importância num
contexto de crescente polarização.
Não encontrei referência a este assunto entre os nacionalistas-ditatoriais. No
entanto, entre os militares dos dois grupos, observei que a idéia de equilíbrio ia mais longe,
avançando para uma perspectiva onde, mais do que estabilidade, pensava-se na
consolidação da ordem social tão necessária para alcançar os “objetivos nacionais”
proclamados pela DSN. O quadro II sintetiza um resumo das semelhanças e diferenças de
perspectiva em relação à questão social
Política externa e organização política eram os temas que mais aproximavam estes
diferentes grupos. Mais da metade dos itens analisados dentro de cada tema foi observada
dentro de uma mesma perspectiva nestes grupos. Começo pela organização política.
As divergências em relação a este tema restringiam-se, basicamente, ao tipo de
preocupação em relação à democracia e a noção de presciência das elites. Todos
concordavam quanto à necessidade de reformas na democracia existente no Brasil.
Concordavam ainda com a idéia de que o sistema democrático era aquele que consolidava
os vínculos do país com o mundo ocidental e cristão. No entanto, entre os militares
nacionalistas-ditatoriais, embora afirmassem que buscavam a defesa da democracia, já
sinalizavam para a busca de um regime político menos infenso às manipulações, ao poder
econômico e à corrupção das elites civis. Indicavam a tendência a almejar um regime que
se caracterizasse pela permanência de seus governos.
Estes aspectos eram extremamente contraditórios em relação à anterior afirmação de
defesa da democracia, privilégio que não estava apenas entre estes oficiais. Todos os
grupos de direita aqui abordados tinham uma visão extremamente restritiva da vida política

260
261

à que davam o nome de democracia, e consideravam que o momento era de restringir ainda
mais as possibilidades de cidadania política que então existiam. Apenas os militares
nacionalistas eram os mais claros nas suas manifestações antidemocráticas. A contradição
não estava presente somente entre as direitas no Brasil, mas em militares de diversos países
da América Latina.689
Se existia um consenso de todos os grupos em relação ao papel das elites, de
interpretar a vontade popular, de ser o extrato social que deveria comandar os rumos do
país, os mesmo militares nacionalistas eram o único grupo a discordar quanto a que elite
seria esta. Entre estes a noção de elite se restringe ainda mais e os militares passam a ser
vistos não como mais um grupo dentro das elites, mas sim como “a elite”. Escolhida para
comandar a vida política do país, infensa à corrupção e desvinculada de interesses
econômicos. Aos civis caberia, no máximo, uma função de assessoramento.
As idéias que udenistas golpistas, militares nacionalistas-ditatoriais, militares
internacionalistas autoritários e ipesianos tinham em relação ao papel da classe média no
sistema político, sua noção de representatividade e suas preocupações com a moralidade
política, no entanto, eram extremamente próximas. Todos entendiam que a democracia
deveria ser exercida em nome da classe média, grupo de estabilização do regime, como já
assinalado. Em todos eles observa-se a presença de um profundo preconceito em relação às
camadas populares, que funcionavam, segundo afirmavam, de acordo com a emoção em
vez da razão, não ilustradas suficientemente para estarem aptas a interferir nos rumos do
país. A crise política que atravessava o país era fruto desta interferência, que até então era
realizada pelos semi-analfabetos. Da mesma forma, quase todos os grupos, com exceção
dos ipesianos, que não fazem menção ao assunto, estavam profundamente preocupados
com a recuperação da moralidade política do país. Esta era, inclusive, uma das causas da
necessidade de reformar-se o sistema democrático brasileiro. No quadro III, as diferenças e
semelhanças dos grupos analisados apresentam-se sintetizada.

689
A título de exemplo cito uma carta publicada na Revista Terceiro Mundo, na qual um dos oficiais da
extrema-direita do Chile recriminava o então ditador Augusto Pinochet pela sua sede de poder. Para Roberto
Viaux os chilenos esperavam que, com o governo militar, se alcançaria a “participação da maioria do povo [e]
se lançariam as bases para uma democracia renovada”. No entanto, para ele a democracia significaria a
“rotatividade na Presidência pelos comandantes-em-chefe das forças armadas, da polícia, como se havia
pensado no início”689. Talvez o militar estivesse se espelhando nos governos aqui estabelecidos entre 1964 e
1988. MARAMBIO, Roberto Viaux. “Carta aberta ao meu companheiro de curso”. In: Terceiro Mundo, maio
de 1986, no. 89, p. 27.

261
262

Também poucas eram as divergências existentes em torno do projeto de política


externa encaminhado por estes grupos. Dos sete itens em torno dos quais procuro analisar
as propostas de política externa, dois possuíam pequenas nuâncas: no que tange às
possibilidades de estabelecimento de relações comerciais com os países socialistas e no que
se relaciona aos princípios de autodeterminação e anticolonialismo. Um terceiro aspecto,
relativo ao grau de alinhamento do Brasil em relação ao bloco comandado pelos Estados
Unidos, provocava um grau de divergência maior.
No primeiro aspecto eram os membros do complexo multinacional-associado que se
distanciavam um pouco. Todos os outros grupos viam com profundas reservas o
estabelecimento destas relações comerciais. Entendiam que estas poderiam fragilizar a
economia brasileira, deixando-a à mercê do controle externo. Vislumbravam ainda que as
mesmas possibilitariam a disseminação do comunismo e da subversão no Brasil através das
missões comerciais que, segundo afirmavam, estavam repletas de agentes disfarçados
encarregados de tais propósitos. Ipesianos e ibadianos, no entanto, criam que estas relações
poderiam ser extremamente vantajosas e que o perigo que pudesse advir de tal comércio
seria muito mais responsabilidade de quem o encaminhasse. Ou seja, o principal problema
estaria em quem comandaria tal relação e não na relação em si.
Quanto ao posicionamento referente à autodeterminação e ao anticolonialismo, as
variações eram muito mais de gradação do que de antagonismo efetivo. De todos os grupos,
ipesianos e militares internacionalistas eram os que colocavam, acima de qualquer aspecto,
a consolidação da supremacia norte-americana em primeiro plano. Os udenistas colocavam-
se logo a seguir, defendendo estas idéias com limites claros que eram colocados pela
possibilidade destes princípios afetarem o poder, no jogo de forças internacionais, de seus
aliados. Os militares nacionalistas apresentavam um posicionamento mais independente.
Viam com um pouco mais de reservas a vinculação de todos os acontecimentos
internacionais em torno do jogo da Guerra Fria. Até porque eles entendiam que os Estados
Unidos não buscavam somente a consolidação da democracia no mundo mas também a sua
própria supremacia econômica.
Este aspecto possui relação íntima com a perspectiva dos militares nacionalistas-
ditatoriais em relação ao tipo de alinhamento que deveria ser estabelecido pelo Brasil diante
do “grande irmão do norte”. Estes militares consideravam a necessidade de buscar-se, no

262
263

plano internacional, o igualitarismo entre as nações. Pensavam num alinhamento com


restrições, que seria dado pela perspectiva de um jogo internacional extremamente
competitivo. Neste sentido, como pretendiam alçar o Brasil numa posição de liderança
continental, entendiam que os EUA criariam barreiras significativas para a consolidação
deste objetivo. Daí as reservas que faziam a um alinhamento incondicional que era
colocado por ipesianos, militares internacionalistas e udenistas, para quem a autonomia
nacional deveria ser colocada em segundo plano diante da Guerra Fria. Para estes grupos o
plano internacional era marcado por uma desigualdade natural entre as nações que deveria
ser respeitada. Reconheciam a existência de interferências do “grande irmão” mas
postulavam que estas deveriam ser toleradas.
Em todos os outros aspectos os diferentes grupos concordavam. Para eles existia
uma relação direta entre política interna e política externa. A opção pelos Estados Unidos,
neste sentido, reforçava o caráter democrático do país e viabilizava o desenvolvimento
econômico. Apesar da posição do IPÊS/IBAD quanto ao restabelecimento de relações
comerciais com os países socialistas, quando o assunto era o restabelecimento das relações
diplomáticas o consenso era obtido. Nenhum dos grupos abordados concordava com tal
medida. Para eles este procedimento era mesmo uma forma de aproximação indireta com o
arquiinimigo dos Estados Unidos da América: a URSS. O mesmo entendiam em relação ao
movimento neutralista com os quais o Brasil ensaiava uma aproximação, entre 1961 e
1964, dentro da perspectiva de política externa independente. Além de considerá-lo como
um primeiro passo rumo à supremacia soviética, estes grupos faziam coro alardeando a
inconsistência do pretenso bloco em função da ausência de identidade de interesses e de
características culturais comuns que marcavam estes países.
Da mesma forma existia uma uniformidade diante das justificativas para o
alinhamento com os Estados Unidos. Apesar das restrições concebidas pelos militares
nacionalistas-autoritários, todos os grupos concordavam que a necessidade de recursos e a
necessidade de tecnologia eram dois bons motivos. No entanto, as afinidades espirituais e
intelectuais dadas pela origem cultural comum – matriz greco-romana, católica e ocidental
– foram os aspectos mais reiterados por eles. A estas questões os militares davam uma
ressalva especial no que se refere à questão da localização geográfica. O quadro IV
apresenta as observações aqui assinaladas.

263
264

Como pôde ser observado, apesar de algumas poucas diferenças no que se refere ao
projeto de organização política e à política externa, temas como o projeto
desenvolvimentista e o tipo de organização social pretendido por estes grupos os
distanciavam entre si. Em minha perspectiva, era em função destas divergências que
ipesianos, udenistas e militares concorriam entre si na liderança de um processo de
gradativa articulação contra o governo de João Goulart.
No início deste trabalho pontuei que diversas são as questões que colocam em
dúvida a pretensa unidade consensual existente entre os conspiradores. A bibliografia que
aborda o quadro político, econômico e social da década de 60 não observa a concorrência
de projetos assinalada aqui e busca estabelecer, em grande parte, um papel de liderança
entre os diferentes grupamentos políticos que se aglutinaram em torno do golpe.
Desconsideram o conflito presente nas extremidades para privilegiar o confronto maior
entre as extremidades: os grupos de direita e esquerda.
Observando-se a documentação sobre o período, percebe-se que mesmo aqueles que
procuraram dar uma idéia de organização absoluta sinalizam para a existência de
fragmentações. Leônidas Pires Gonçalves afirma que não existiram “ilhas de conspiração”
mas sim movimentações espontâneas que tinham um aspecto em comum.690 Mesmo
apontando para a obediência a um comando único, o então Tenente-Coronel Antonio
Bandeira indica a existência de pelo menos uma divisão entre os participantes do golpe, a
qual se apresentaria delimitada pela organização espacial (nordeste/sudeste). Deoclecio
Lima de Sirqueira não pontua diretamente, mas observa-se em seu depoimento a indicação
de que existiam núcleos de conspiração completamente desvinculados entre si.691 Antonio
Carlos Muricy – denominado pela alcunha de “gorila” por Leonel Brizola e que foi um dos
indicados à Presidência da República nas reuniões do Alto Comando do Exército para a
sucessão de Costa e Silva – tenta apresentar a unidade em uma entrevista concedida logo
após o golpe. Era um aspecto importante devido à “ameaça comunista” ainda rondar a

690
Tenente-Coronel, fez parte do Estado-Maior do Exército com o General Castelo Branco e, entre 1964 e
1966 foi adido militar na Colômbia. Segundo Dreiffus, fazia parte de um sistema de informações que rodeava
o General Golbery, buscando colocar o processo conspirativo sob liderança do IPÊS/IBAD. Dreifuss, op.cit.,
p. 364.
691
Em 1964 o então Coronel Deoclécio Lima chefiava o Departamento de Ensino da Escola de Comando e
Estado-Maior da Aeronáutica (ECEMAR). No governo Castelo Branco foi chefe de gabinete do ministro da
Aeronáutica, Eduardo Gomes, e entre 1967 e 1970 comandou a ECEMAR. Vide Maria Celina D’Araujo;
Gláucio Ary Dillon Soares; & Celso Castro. (Org.) Visões do golpe, op. cit., p. 227.

264
265

sociedade brasileira e devido à necessidade de se criar uma legitimidade para o desenrolar


dos fatos. No entanto, não deixa de assinalar que a unidade havia sido construída a duras
penas e que, no momento do golpe, ela chegou apenas a 70% daqueles que concordavam
com a deposição de Jango em torno de uma liderança única e que esta somente foi obtida
nas portas de março de 64. De outro lado, vários depoimentos atestam ora que a liderança
da conspiração foi em boa parte do General Cordeiro de Farias, ora do próprio Castelo
Branco, ora de Lacerda.
A idéia de organização perfeita elaborada a partir de um núcleo organizador do
golpe encontra seus problemas mesmo entre aqueles que se propõe a negá-la. Dreifuss, um
dos principais defensores de um mecanismo golpista perfeitamente “azeitado” sobre a
direção do IPÊS, afirma que o golpe foi desencadeado pelo General Mourão Filho e com o
aval do Governador Magalhães Pinto, dois elementos que, segundo ele, não estavam
diretamente relacionados entre os grupos organizadores do golpe e nem faziam parte da
estrutura do complexo multinacional-associado. Por outro lado, Dreifuss não chegou a
explicar os motivos pelos quais o complexo que teria sido o grande articulador do golpe
acabou por ser, gradativamente, afastado do poder a partir de 1965.
Alguns autores, no entanto apresentam ressalvas a esta questão. Para Argelina
Figueiredo, por exemplo, é problemática
“(...) a alegação de que a burguesia teve um papel de liderança e de coordenação na
conspiração Parece, ao contrário, que havia diversos grupos conspirando dentro das
elites militares e civis, e, a despeito, da interação entre eles, é exagerado considerar
suas ações como uma conspiração única com um comando unificado”.692

Inúmeros são os depoimentos e documentos que consideram, desta feita, de forma


extremamente clara, um processo de radicalização no qual a unidade não era a marca
registrada. Para Carlos de Meira Matos a “conspiração que acabou na Revolução de 31 de
março de 1964 foi uma conspiração multipolar. Houve vários pólos de conspiração, e esses
pólos não tinham muito entendimento”.693 Na concepção de Geisel, General-Presidente
entre 1975 e 1979, existia um sentimento de descontentamento que permeava o conjunto de
conspiradores mas que não existia uma “coordenação planejada” ou um “comando único”.
Para ele existia, isto sim, uma crença num “um levante geral que dispensaria um

692
FIGUEIREDO, op. cit., p. 174.
693
MATTOS, Depoimento, In: Visões do Golpe..., op. cit., p. 102.

265
266

planejamento sobre as operações”,694 Assinala para a existência de uma “revolução com


vários chefes” e indica a presença de alguns grupos específicos. Um formado por militares,
especificamente, outro composto por militares com maior trânsito entre o empresariado (do
Golbery) e mais relacionado com o IPÊS, concentrado na região Sudeste. Por sua vez,
Lacerda, Magalhães Pinto, Ademar de Barros e Menegheti articulavam-se no meio civil e
político. O IBAD apresentava-se com uma organização basicamente política que “pretendia
a predominância no Congresso”. E por último cita o General Mourão, de modo
independente, articulado com civis e, inclusive, armando-os.695 Também José Sarney, que
não tomou participação ativa nas movimentações golpistas mas alcançou papel de destaque
ao longo do regime, assinala que houve, “nitidamente, duas ações”: uma de natureza
política e outra de natureza militar.696 Neste sentido também observa-se um telegrama
norte-americano passado às vésperas do movimento de 64 e citado no início deste trabalho,
que falava de uma conspiração não unificada que contava com a presença de um excesso de
possíveis líderes”.697
A idéia de um golpe extremamente articulado e organizado também pode ser
contestada a partir de outros depoimentos e de análises posteriores ao golpe. Carlos
Lacerda, em seu livro Depoimentos, assinala que no dia posterior ao início do golpe, 1° de
abril, o General Castelo Branco, o suposto líder absoluto do movimento de 64, havia lhe
telefonado e avisado para que deixasse a cidade do Rio de Janeiro. Não existiam, segundo
assinala, condições para salvaguardar a sua pessoa. Lacerda fala, ainda, que o próprio
Castelo Branco estava protegido apenas por alguns soldados com metralhadoras. Afirma
que desconhecia a existência de uma organização mais elaborada com o intuito de derrubar
Jango do poder.
No entanto, pode-se observar também que a divisão apresentava-se não somente em
nível organizacional mas também no que se refere à existência de propostas diferenciadas.
Ferdinando de Carvalho apresenta claramente que o excesso de líderes advinha de uma
multiplicidade de “correntes antes desavindas” que tinham por compromisso o receio do
comunismo e o combate à corrupção e à subversão. Inúmeros são os artigos que

694
Geisel, op. cit., pp. 149 a 157.
695
Idem, ibidem.
696
SARNEY, José. Depoimento. In: COUTO, Ronaldo C. Memória Viva do regime militar – Brasil: 1964-
1985. Rio de Janeiro, Record, 1999, p. 309.
697
Nota de página citada em DREIFUSS, op. cit.

266
267

convocavam as “forças democráticas” em torno da contenção do comunismo e do caminho


totalitarista pelo qual o país atravessava. Mais uma vez cito José Sarney, que, falando sobre
a postura de Magalhães Pinto na conjuntura em questão e que pode muito bem ser ampliada
para o conjunto de articuladores do golpe, observa:
“Eu acredito que, dentro da posição do Magalhães Pinto, muito realista como ele
era, naquela altura já não estava se importando tanto com os aspectos políticos, mas
principalmente com os aspectos logísticos, de natureza militar”698.

Ao priorizar os aspectos pragmáticos, em torno da coalizão antijanguista,


renunciaram às discussões pertinentes aos projetos políticos, mas apenas temporariamente.
Entra, então, em discussão o seguinte aspecto: que motivos teriam provocado esta postura
excessivamente pragmática destes agentes? Através do material analisado aqui, pode-se
concluir que não era apenas no sentido apontado por Carvalho – do combate ao
comunismo, à corrupção e à subversão –, que existia uma identificação entre os diferentes
grupos. A análise dos meses iniciais de 1964 levaram-me a concluir que, na concepção das
direitas, estreitou-se o que Gilberto Velho denomina de “campo de possibilidades”, ou seja,
o leque de alternativas políticas possíveis de ação. Devido a uma situação de enfrentamento
cada vez mais radicalizada, a opção que se colocava em função de uma compreensão do
estreitamento do “espaço para a formulação e implementação de projetos” era a de união
em torno de um objetivo imediato comum que seria a deposição de Jango. Esta união, por
sua vez, ocorre somente às vésperas do golpe, mais precisamente no mês de março.
Em grande parte, a unidade das direitas em torno do 1º de abril não ocorreu a partir
do nada. Calcou-se na existência de determinados pontos comuns nos projetos de sociedade
dos três principais centros catalisadores existentes à direita do sistema político naquele
momento. Pelo que foi apresentado aqui, observa-se que, no que se refere ao projeto de
política externa e à organização política, os diferentes grupos possuíam mais pontos em
comum do que diferenças. As propostas referentes ao desenvolvimentismo e às
transformações sociais encontravam maior divergência dentro destes grupos, o que não
quer dizer que eles não possuíssem algumas afinidades.
Em cima destas foi costurada uma aliança em torno de um objetivo comum
momentâneo em março de 64, propiciada, principalmente, pelo desenrolar dos fatos

698
SARNEY, op. cit., p. 309.

267
268

ocorridos neste mês. Duas datas são fundamentais para a compreensão deste contexto: 13 e
24 de março. No dia 13 tem-se a efetivação do Comício da Central do Brasil. Em 24 de
março efetivou-se a Revolta dos Marinheiros. Pode-se afirmar que estes dois momentos
representaram o ápice do processo de polarização política que então se desenvolvia.
O comício de 13 de março foi marcado em meados de janeiro do ano de 1964. Com
ele Goulart esperava sair do isolamento político a que estava submetido na medida em que
as suas tentativas para a implementação de amplos acordos políticos, que viabilizassem a
elaboração de reformas, acabaram por fracassar. Goulart, mesmo com a convicção de que
as reformas de base eram o caminho para que o país saísse da crise, buscou a todo o
momento implementá-las pela via da negociação, com uma política de centro. No entanto,
as possibilidades de negociação naquele momento eram pequenas e, nos primeiros meses
de 1964, ele buscou o apoio necessário para a efetivação das reformas tão esperadas nos
grupos progressistas na esquerda radical, na CGT.
O comício, organizado pelo movimento sindical e por grupos da esquerda,
apresentava-se para as direitas como uma tentativa de mobilização popular com a intenção
de encurralar o Congresso para que este aprovasse as reformas de base. Aproximadamente
200 mil pessoas compareceram ao evento, que se apresentava como marco inicial da
transformação da sociedade brasileira através de várias medidas: a assinatura do Decreto da
SUPRA, que propunha: a desapropriação de latifúndios a ser paga em dinheiro;
encampação das refinarias de petróleo estrangeiras, representando uma ameaça direta ao
direito de propriedade; e o encaminhamento ao Congresso da proposta que dava direito de
voto aos analfabetos, que seria feito no dia seguinte mas anunciado ao longo do comício.
O outro acontecimento de importância naquele mês, a Revolta dos Marinheiros, foi
um conflito, ocorrido no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, que se desencadeou
pela proibição do Ministro da Marinha para que se realizasse uma assembléia
comemorativa pelo segundo ano de existência da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros
Navais. O evento foi então transferido para o Sindicato dos Metalúrgicos e, diante da
insistência da sua realização, por parte dos seus organizadores, o Ministro da Marinha
decretou a prisão destes. Parte das tropas que para lá se encaminharam acabaram por aderir
ao movimento, que teve como desfecho a anistia decretada pelo novo Ministro da pasta.

268
269

Como estes acontecimentos refletiram-se entre as direitas? Pode-se afirmar que, de


forma geral, os três grupos aqui analisados entenderam que estes acontecimentos
representavam uma dupla ameaça: às instituições civis e às instituições militares do país.
No caso específico das instituições civis, para as direitas a ameaça direta era contra o
Congresso Nacional. Para Muricy o comício de 13 de março nada mais foi do que uma ação
subversiva capitaneada pela CGT, que manipulava o presidente. Tratava-se de um plano
muito bem orquestrado que tinha por intenção enfraquecer as “instituições democráticas”
com uma técnica que consistia em “progressivos golpes, pequenos e grandes, que fossem
num crescendo cada vez mais diminuindo as perspectivas de resistência do povo”. A revista
A Defesa Nacional assinalava, em editorial, que o evento representou uma “investida
audaciosa do comunismo” que ameaçava a legalidade constituída com propósitos espúrios:
“Valendo-se da bandeira reformista, que é uma velha bandeira da revolução
democrática e que a mais de 30 anos tornava vitoriosos os revolucionários da
Aliança Liberal, janguistas e comunistas conseguiram, por outro lado, iludir e
mistificar parcelas consideráveis dos nossos estudantes e dos nossos trabalhadores
da cidade e do campo”.699

Laerte Campos, em pronunciamento na Câmara dos Deputados, afirmava que o


comício teve um caráter subversivo, principalmente em função das falas de Leonel Brizola.
O Governo Federal, por sua vez, compactuava com isto, uma vez que o Presidente da
República partilhou o palanque com ele. Para o Deputado, o Presidente buscava a
marginalização do Congressso na medida em que propunha realização de reformas
constitucionais via plebiscito, apresentando um “esquema de demolição das instituições”.700
O Presidente, segundo Geraldo Freire, resolveu “sair como agitador pelas praças públicas
pregando o ódio, pregando a divisão, pregando a falência das instituições”.
No entanto, não era apenas contra o Congresso, segundo concebiam, que se dirigia a
investida do governo. Março de 64, para as direitas, apresentou-se também como um ataque
das esquerdas que propunha gerar o caos, “a perda da disciplina, seja sindical, seja
militar”.701 A quebra da legalidade visaria o enfraquecimento das Forças Armadas,

699
COSTA, Octávio Ferreira da. Compreensão da Revolução Brasileira. In: Revista Defesa Nacional, nº 597,
de 09-10 de 1964.
700
Deputado Federal Laerte Vieira. ACD.
701
CAMPOS, Roberto de Oliveira. Depoimento. In: COUTO, Ronaldo Costa. Memória Viva do Regime
Militar. Rio de Janeiro, Record, 1999.

269
270

utilizando-a em “benefício da propaganda comunista”.702 Raimundo Padilha apresenta a


indignação com que estes grupos encaravam a situação, “no qual oficiais superiores dessas
mesmas Forças Armadas teriam de prestar guarda e dar proteção ao chefe do Estado que
falava sob inspiração de uma organização revolucionária proibida por lei”.703
O impacto foi tão grande que levou a UDN a lançar uma Proclamação, no
Congresso Nacional. Pedro Aleixo, responsável pela leitura do documento, apresenta a
posição da UDN neste momento:
“Demos apoio ao Plano Trienal anunciando na mensagem presidencial enviada ao
Congresso Nacional em 1963. Mas quando esse pleno de feição democrática é
abandonado sem maiores explicações para ceder lugar a projetos de inspiração
suspeita e incompatível com as bases do regime, então nos opomos porque não
contribuiremos para que progridam os movimento de guerra revolucionária, para
que se infiltre a dominação comunista e para que, por fim, se instale no Brasil
quaisquer regime totalitário supressivo da liberdade (...) Aí estão, para advertência
aos mais ingênuos, os numerosos decretos com que o Poder Executivo vem
legislando sem a menor cerimônia, com invasão das atribuições do Congresso
Nacional”.704

Os militares encaminhavam-se neste mesmo sentido. O processo subversivo que


geraria a guerra revolucionária materializava-se em “atos preliminares” tais como o
“comício de 13 de março, o sacrifício da Marinha na Semana Santa e a Assembléia do
Automóvel Club”.705 No dia seguinte aos acontecimentos no sindicato dos metalúrgicos,
um manifesto do Clube Naval afirmava:
“Esses lamentáveis acontecimentos foram o resultado de um plano executado com
perfeição e dirigido por um grupo já identificado pela Nação brasileira como
interessado na subversão geral do País, com características nitidamente comunistas.
(...) O grave acontecimento que ora envolve a Marinha, ferindo-a na sua estrutura,
abalando a disciplina, não pode ser situado apenas no setor naval. É um
acontecimento de repercussão nas Forças Armadas e a ele o Exército e a
Aeronáutica não podem ficar indiferentes.
Caracteriza-se claramente a infiltração de agentes da subversão na estrutura das
Forças Armadas. O perigo que isso representa para as instituições e para o Brasil
não pode ser subestimado”.706

702
Citado em VICTOR, op. cit., p. 500.
703
CARVALHO, Ferdinando. “A Guerra Comunista no Brasil”. In: Revista Defesa Nacional, n° 597, de 09-
10 de 1964.
704
Deputado Federal Pedro Aleixo sobre proclamação da UDN, em 19 de março de 1964. ACD.
705
COSTA, op. cit.
706
Citado em VICTOR, op. cit., p. 501.

270
271

Também o Jornal do Brasil reforçava esta perspectiva;

“As forças armadas foram todas – todas, repetimos – feridas no que de mais
essencial existe nelas; os fundamentos da autoridade e da hierarquia, da disciplina e
dos respeitos militares. Sem esses fundamentos, a hierarquia se dissolve e em lugar
delas surgem as milícias político-militares, preconizadas pelos comunistas e
fidelistas. (...) Não voltaremos à legalidade enquanto não forem preservadas a
disciplina e a hierarquia das Forças Armadas. Primeiro, portanto, vamos recompor
os alicerces militares da legalidade – a disciplina e a hierarquia – para depois, e só
depois, perguntarmos se o Presidente da República tem ou não condições para
exercer o Comando Supremo das Forças Armadas”.707

Observa-se, neste momento, o grau de influência da Doutrina de Segurança


Nacional no ideário dos movimentos direitistas da década de 60. Em menor ou maior grau a
DSN influenciou decisivamente na forma de compreender a realidade por parte dos grupos
aqui analisados.
No entanto, tendo a compreender esta influência dentro de uma dupla perspectiva.
Primeiro, a DSN veio apenas a instrumentalizar uma visão extremamente restritiva de
organização que era característico dos grupos de direita daquele momento. Desta forma
encaminho-me no mesmo sentido das observações apresentadas por Rouquié, que,
analisando especificiamente os militares, afirma:
“Atribuir a orientação contra-revolucionária maniqueísta unicamente à
influência das doutrinas made in USA se não decorre de um erro de perspectiva,
pelo menos revela um exagero bastante grande. (...) A ideologia contra-
revolucionária, às vezes elevada, como no caso do Brasil, a verdadeira doutrina da
“segurança nacional”, mas na maioria dos casos elaborada rusticamente, não foi
imposta de fora, mas sim aceita, isto é, na maior parte dos países essa ideologia
simplesmente criou seu próprio espaço”.708

Num segundo aspecto, entendo que a DSN não se apresentou com uma unidade de
pensamento que determinados autores buscam assinalar. Assim como pode ser observado
no século XVIII, quando o Iluminismo apresentou-se como o conjunto de idéias a
instrumentalizar os movimentos sediciosos ocorridos na América Portuguesa e o próprio
movimento de Independência, a Doutrina de Segurança Nacional provocou efeitos
diferentes nos diversos grupos que ela atingiu. Veio apenas a corporificar os interesses
particulares, melhor dizendo, os projetos particulares de cada um dos grupos aqui

707
Idem, ibidem, p. 502.
708
ROUQUIÉ, Alain. O Estado Militar, op. cit., p. 172 a 174.

271
272

abordados. A visão elitista e conservadora da sociedade que esta doutrina propagava era
extremamente assimilável para as elites brasileiras porque representava, em termos gerais,
uma comunhão de interesses.
Com a difusão da idéia de guerra revolucionária, a noção de segurança hemisférica
passou a abranger também a idéia de ameaça interna. O agravamento das condições
econômicas na América Latina e a instauração em Cuba de um sistema socialista,
provocando a consolidação de uma frente anticomunista que associava qualquer tipo de
reivindicação por mudanças como sinal da expansão comunista, foram os aspectos que
contribuíram para esta perspectiva. No Brasil, as idéias polarizadoras, tal como concebidas
pelas esquerdas, apresentaram-se como o símbolos de transformação da sociedade. O
estabelecimento de uma nova perspectiva que respaldasse a representatividade limitada na
vida política, as profundas diferenças sociais, um projeto desenvolvimentista extremamente
restritivo e uma política externa de alinhamento aos EUA foram fundamentais para os
grupos de direita na disputa pelos recursos simbólicos.
A DSN, em maior ou menor grau legitimava o posicionamento destes grupos. A
idéia de que o Estado era a única instância efetiva a representar os interesses da nação e a
perspectiva de ordem interna para galgar os denominados “objetivos nacionais”
coadunavam-se perfeitamente às necessidades de fazer calar os movimentos populares –
através da continuidade da restrição do direito de participação política e da noção de
desigualdade natural entre os homens –, e de contenção da política externa independente.
O Comício da Central do Brasil e a Revolta dos Marinheiros representaram uma
ameaça a tudo isso. Para as direitas, significava a concretização de seus medos e por isso o
caráter de mobilização que então foi desencadeado entre eles. Se o evento mobilizou
amplas parcelas da sociedade, não foi somente entre aqueles que viam nos objetivos de sua
realização, a concretização do início das tão almejadas reformas. Também as direitas viram,
no próprio anúncio do comício, a necessidade de acelerarem suas articulações em torno da
deposição de Jango e da desarticulação do crescente poder do Partido Trabalhista
Brasileiro.
A reação ao anúncio do comício desencadeou também a movimentação de grupos
que até então se colocavam com certa resistência ao governo Goulart mas que ainda não
haviam passado a uma oposição mais ofensiva. Tratou-se, portanto, de uma disputa que

272
273

passava para o campo da obtenção da legitimidade em torno de propostas que, em função


do contexto político vivido, privilegiavam o antagonismo. Em função disto, do
estreitamento do “campo de possibilidades” colocado pela ocorrência do Comício da
Central do Brasil e da Revolta dos Marinheiros, as direitas esqueceram suas diferenças e
marcharam em direção à ameaça mais presente naquele momento: João Goulart e o PTB
radical. Estes dois acontecimentos, somados a um alinhamento dos grupos de centro aos
golpistas, provocaram ainda um clima propício, “nas ruas”, para a ampliação do seu
público, contribuindo para que as direitas obtivessem o respaldo necessário para sua
movimentação.
É claro que isto não aconteceu da noite para o dia. De longa data o IPÊS já
articulava uma propaganda que associava o governo a uma posição de fragilidade que
viabilizava a entrada do comunismo no país. Esta associação vinha sempre acompanhada
do suposto perigo, que os adeptos do catolicismo correriam, se o regime que era por eles
execrado fosse estabelecido no Brasil. Décio Saes assinala que, em relação às camadas
médias, este discurso alcançou êxito considerável, mas tão somente em março de 64,
quando a mobilização atingiu seu clímax.709 Dreifuss, abordando o papel da classe média
no golpe de 64 a partir de 1963, assinala o seguinte:
“A escolha da dona de casa da classe média como potencial ponta de lança para o
contra-ataque a João Goular foi de especial importância. Ao fazer tal escolha, o
IPÊS visava diretamente às esposas, irmãs e mães dos militares, profisinais,
comerciários e tecnoburocrata. Era voz corrente que o IPÊS teria importado
antropólogos e sociólogos, que orientavam sobre a grande influência exercida pelas
mães e avós na sociedade brasileira. Parece que os empresários levaram um ano
para aprender como usar as técnicas de mobilização das classe médias, mas uma vez
aprendidas, elas se tornaram um ‘rolo compressor que não parava’. Glycon de Paiva
a considerava como exemplo perfeito de uma ‘Idéia-Força’, que dispunha de
organização, dinheiro e slogans”.710

Segundo esta observação, apesar de o esforço concentrado, por parte do complexo


multinacional-associado, para obter uma mobilização favorável ter-se iniciado ainda em
1963, na tentativa de organização das mulheres de classe média, somente nos idos de 1964
os resultados foram significativos. A pergunta que fica é: será que o resultado do trabalho

709
SAES, op. cit., p. 500.
710
DREIFUSS, op. cit., p. 294.

273
274

do IPÊS foi efetivamente lento ou será que algo aconteceu em 64 que contribuiu para que
os frutos de tal esforço tenham aparecido somente “nos primeiros meses de 1964”?
A grande questão é que algo aconteceu em 1964 que contribuiu para que a ação dos
grupos de direita surtisse efeito. O fato é que o Comício da Central do Brasil deve ser
apresentado como um marco não apenas para a mobilização das esquerdas mas também
para a reação das direitas, no que se refere à mobilização popular. E o resultado desta
mobilização foi a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, realizada seis dias
depois, em São Paulo. O movimento foi uma resposta direta ao Comício da Central, tanto
que a quase totalidade dos discursos fizeram referência à fala de Jango comício dia anterior.
Se é devido considerar-se que o IPÊS teve significativa contribuição para o
desencadeamento de uma série de mobilizações contra o governo Jango, não se pode
desconsiderar também que esta ação somente surtiu efeito com os desdobramentos de
março de 64, ou seja, com o Comício da Central do Brasil e a Revolta dos Marinheiros.
Segundo Saes, em Recife a CAMDE, órgão em grande parte responsável por estas
articulações, realizou uma marcha no dia 8 que contou apenas com dois mil participantes. A
11 de março, no Rio, com aproximadamente três mil pessoas. No entanto, após o comício
da Central, entre 500 e 800 mil pessoas estiveram presentes em São Paulo. E em 2 de abril,
na chamada Marcha da Vitória, cerca de um milhão de pessoas reuniram-se no Rio de
Janeiro.711
Ainda sobre este movimento pode ser considerado que ele assinalou o respaldo
necessário para que a movimentação golpista se desencadeasse. Os acontecimentos de 1961
ainda pesavam na lembrança de todos aqueles que se articularam em torno de inviabilizar a
posse de João Goulart e poucos eram os que pensavam em encaminhar um movimento que
não estivesse legitimado por mobilizações populares, ainda que elas estivessem, em sua
maioria, calcadas na presença das classes médias. Contudo, não era apenas a classe média
que se manifestava através da “Marcha da Família”. Mário Victor indica que “embora
parecesse estranho, era também grande o número de operários, a maioria deles não
pertencente aos grupos filiados ao Comando Estaduais dos Trabalhadores e ao Forum
Sindical de Debates”.712 Se por um lado Jango afirmava possuir legitimidade na sua
movimentação pelas reformas, após 19 de março as direitas também poderiam alegar o

711
SAES, op. cit., p. 502.

274
275

mesmo. Para Argelina Figueiredo, depois da “marcha”, um grande número de atores passou
a atribuir uma alta probabilidade de sucesso ao movimento contra o governo. Daí em
diante, o custo de participação em atividades antigovernamentais decresceu
marcadamente”.713
Afinados em torno do que não queriam – a continuidade de Jango no poder –, os
grupos acima podiam, naquele mês, encaminhar o afastamento do Presidente em nome da
defesa da legalidade. A situação havia se invertido. Se em agosto de 1961 eram os
ministros militares, e todos aqueles que os apoiavam, que buscavam romper com a
continuidade constitucional, o mesmo não acontecia em março de 64. Para parcelas
significativas da opinião pública, era o Governo que então buscava romper com a
legalidade. Para o ex-presidente JK, “a legalidade estava onde estão a disciplina e a
hierarquia. Não há legalidade sem Forças Armadas íntegras e respeitadas em seus
fundamentos”.714 A propaganda liderada pelo IPÊS surtia, então, o efeito desejado. “A
legalidade está conosco e não com o caudilho aliado do comunismo”, era o que anunciava o
Jornal do Brasil após a eclosão do movimento golpista.715 Era o Governo que pedia
alterações constitucionais “na lei ou na marra”. Para eles era ainda o Governo que buscava
apoio extraparlamentar para encaminhar as reformas de base. Era ainda o Governo Jango
que respaldava ações de insubordinação militar, ao anistiar os marinheiros após a
movimentação do dia 24 de março. Neste sentido, afirmava uma reportagem do O Estado
de S. Paulo:
“Se o governo se põe contra a ordem jurídica, isto é, contra a Constituição e a lei, o
natural é que se crie na opinião pública uma dissidência entre os que seguem um e
outro. É preciso escolher, entre os dois contendores, um, a quem servir (...). assim se
definem as posições: este estará com o regime e contra o governo; o outro, com o
governo e contra o regime.
Para as Forças Armadas não há opção, dentro da lei. A Constituição lhes
impõe um dever expresso e inelutável: o de manter a ordem jurídica. Presume-se
que, portanto, deva começar por manter o governo, porque se pressupõe que o
governo encarne a ordem jurídica e não possa colocar-se contra a mesma. (...) Na
inconcebível situação de luta entre o Presidente da República e a lei, prevalesce a
lei”.716

712
VICTOR, op. cit., p. 486.
713
FIGUEIREDO, op. cit., p. 183.
714
Citado em VICTOR, op. cit., p. 511.
715
Idem, p. 571.
716
OESP, 17 de março de 1963. Citado em FIGUEIREDO, op. cit., p. 182.

275
276

Aproveitando-se do “impacto emocional” provocado pela “Marcha”, Lacerda


articulou no mesmo dia uma aliança com um dos seus principais opositores políticos,
Adhemar de Barros. Saiu do Palácio dos Bandeirantes afirmando que “quem ousar tocar em
São Paulo não espere que a Guanabara fique ausente nem indiferente”.717 A “Marcha”,
neste sentido, contribuiu para que a tomada de posição fosse realizada calcada nas
reivindicações populares. E não foi por menos que pôde ser observado uma maior
hostilidade por parte dos grupos golpistas. Magalhães Pinto falava de uma “tomada de
consciência do povo brasileiro, que se quer independente, dono de si mesmo e de seu
destino”.718 Logo em seguida circulou uma mensagem, de autoria de Castelo Branco, que
convocava as Forças Armadas claramente para deporem Jango.
A “Marcha” contribuiu ainda para que os que estavam no centro se definissem por
um dos pólos. Os governadores do Mato Grosso e do Paraná alinharam-se a Carlos
Lacerda. Auro de Moura Andrade assinalava:
“Hoje é a Marinha de Guerra, e com ela, o Exército e a Aeronáutica, seus
companheiros de sagrada missão, construtores e herdeiros das mais comovente e
vibrantes páginas da História, que recebem duro golpe. Amanhã, será o Congresso e
em seguida o Poder Judiciário. E os templos, as escolas, as liberdades humanas, a
dignidade da vida familiar. (...) Na qualidade de Presidente do Congresso Nacional,
declaro ao Povo e às Forças Armadas que esta hora dramática do Brasil pode
também se transformar, pela força invencível do patriotismo brasileiro, na mais
retumbante afirmação de vigor da Democracia.
Nada obriga que seja o fim. Tudo indica que pode ser o recomeço”.719

Não era novidade este tipo de pronunciamento partir do Senador em questão. A


novidade foi ele falar em nome do Congresso brasileiro, declarando o rompimento do
Legislativo com o Executivo. Falava também em nome de todo o PSD. Juscelino
Kubitschek referenda o posicionamento antigovernista do partido ao afirmar:
“Repudiemos sem vacilações o comunismo, que jamais conseguirá empolgar o
nosso povo livre e cristão. Repudiemos, igualmente o reacionarismo intolerante em
que se encastelam os falsos salvadores da democracia. O Brasil não precisa de
salvadores e sim de soluções. (...) O que desejamos, repito é a bandeira da reforma,
e não a reforma da Bandeira”.720

717
VICTOR , op. cit., p. 489.
718
Citado em VICTOR, op. cit., p. 489.
719
Idem, ibidem, p. 510.
720
Citado em HIPOLLITO, op. cit., p. 245.

276
277

O último e derradeiro acontecimento a confirmar estas suspeitas, na perspectiva das


direitas, foi a reunião que marcaria a posse da nova diretoria da Associação dos Sargentos
no Automóvel Clube do Brasil, no dia 30 de março, a qual contaria com a presença do
Presidente da República. Discursando aproximadamente para dois mil suboficiais, o
presidente apresentou apoio à reivindicação dos marinheiros, asseverou que a crise era
provocada por uma minoria de privilegiados, citou as Forças Armadas como reacionárias,
criticou o recentemente extinto IBAD devido aos seus vínculos com os Estados Unidos e
atacou os interesses das empresas estrangeiras no Brasil. Depois de tudo isso, mesmo
conclamando o público presente a manter a disciplina e deixarem de lado os
ressentimentos, a presença do Presidente no evento soou de forma extremamente negativa.
No dia seguinte, uma série de editoriais de Jornais importantes do Rio e de São Paulo, entre
eles o do Correio da Manhã e do Jornal do Brasil, pediam a renúncia ou o afastamento do
Presidente. Estava consolidado o clima propício para o Golpe de 1° de abril. A nota da
CGT publicada no dia seguinte ao evento identificava claramente alguns dos motivos para a
reação das direitas:
“As forças reacionárias inconformadas com o avanço democrático do nosso povo e
com os recentes decretos patrióticos do Presidente da República, o da SUPRA, dos
aluguéis, e gêneros alimentícios e encampação das refinarias de petróleo, articulam-
se publica e notoriamente, visando à deposição do Presidente da República, para
anular aquelas conquistas e impor ao nosso povo restrições às liberdades
democráticas e sindicais”.721

No entanto, apesar de estarem de comum acordo quanto à deposição de Jango, não


existia um consenso absoluto sobre o que fazer depois. Parcelas significativas da produção
histórica sobre o contexto de 64 assinala a inexistência de um projeto por parte dos
golpistas. Outros, por sua vez, indicam a supremacia absoluta de um determinado projeto –
ora do grupo multinacional-associado, ora dos udenistas, ora dos militares –, sobre os
demais. Contudo, como foi apresentado anteriormente, o que se observa era uma profusão
de projetos que concorriam entre si. Não foi a ausência de projetos que marcou o golpe,
mas sim a abundância destes, caracterizando uma mobilização das direitas nas quais não
existia consenso sobre o que fazer e, nem mesmo, a liderança de um grupo específico sobre
os demais.

721
Jornal do Brasil, de 31 de março de 1964. Citado em VICTOR ,op. cit.,p . 505.

277
278

A disputa foi acirrando-se ao longo dos anos de 1964 e 1965, culminando neste
último período. No entanto, o momento ainda privilegiava o combate às esquerdas e não o
confronto entre si. Somente em fins de 1965 esta questão passou a estar mais presente e
vários foram os motivos para o confronto. Os militares nacionalistas-ditatoriais reclamavam
do alinhamento incondicional aos Estados Unidos e da liberdade, mesmo que limitada, que
alguns políticos ainda desfrutavam. Solicitavam o aprofundamento da limpeza na vida
política do país e a estatização de áreas que consideravam de segurança nacional.
Reivindicavam ainda medidas efetivas para diminuir as diferenças sociais.
De outro lado temos os internacionalistas-autoritários que buscavam abreviar a
intervenção militar na vida política mas que acabaram por ceder algo para os nacionalistas
em função de privilegiarem a unidade das Forças Armadas. Os udenistas, por sua vez,
senão a maioria pelo menos parcelas significativas do partido, discordavam da reforma
agrária que foi encaminhada ainda em 1965, apesar de seus limites. Manifestaram ainda seu
descontentamento em relação à perpetuação do regime de intervenção militar. Já os
ipesianos observaram contrariados a estatização de parcelas da economia, tal como nos
setores de produção de energia e telecomunicações. Viram-se, gradativamente, alijados do
poder que ajudaram a implementar.
Como pode ser depreendido pela análise do período posterior ao golpe, nos
governos dos sucessivos Generais-Presidentes, muito do que foi estabelecido nestes
projetos foi implementado. Não se observa a hegemonia de um único grupo, mas aspectos
que estavam presentes nos diversos projetos de sociedade aqui analisados. Talvez surja daí
a afirmativa de Maria Helena Alves que, analisando o período 1964-1984, indica que o
regime calcado na Doutrina de Segurança Nacional, no Brasil, apresentou-se atípico porque
não seguiu, por completo, o receituário liberal. Para ela, a política econômica adotada
apresentava um “modelo específico de desenvolvimento econômico associado-dependente
que combina elementos da economia keynesiana ao capitalismo de Estado”.722 Pode-se
assinalar que o ponto culminante do conflito destes projetos foi o estabelecimento do Ato
Institucional-2. Ao estabelecer o bipartidarismo e as eleições indiretas para presidente, o ato
provocou um profundo mal-estar em parcelas da UDN. Acabou por significar uma resposta
às reivindicações dos militares nacionalistas, que solicitavam uma higienização maior do

722
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1987, p. 26.

278
279

sistema, que desconcertou parcelas dos internacionalistas-autoritários. Na medida em que


representava um espaço maior para os nacionalistas, representou também um duro golpe
para os ipesianos, um dos grupos que, na ótica do complexo multinacional-associado, era
considerado como parte dos políticos e militares “dissidentes e recalcitrantes” que deveriam
ser controlados. Neste sentido, apesar do golpe de 64, o debate político não se encerrou.
Apenas ficou, em grande parte, circunscrito a um dos pólos do sistema político brasileiro:
as direitas.

279
280

5 - Conclusão

A bibliografia aqui citada, apesar das muitas divergências quanto à forma de análise
sobre o contexto político da década de 1960, apresenta-se de acordo em um aspecto
fundamental. Todos consideram os grupos analisados aqui como pertencentes à direita
política brasileira. Ora de forma mais direta, mas por vezes não sendo tão objetivos em suas
perspectivas, as análises sobre 1964 assinalam, em sua grande parte, que os grupos
apresentados pertenciam à direita política brasileira em função de sua oposição aos
movimentos populares, às forças progressistas de transformação ou ao governo Jango.
Stepan, Skidmore, Benevides, Dulci e Dreifuss, dentre outros, observam que estes grupos
eram restritivos quanto à questão da mobilização popular, quanto ao direito de voto e
quanto ao acesso à propriedade privada. As análises efetuadas confirmam esta perspectiva.
No entanto, se antes as abordagens feitas pelos autores mencionados priorizou o enfoque
particular de cada um dos grupos aqui estudados, o caminho seguido nestas páginas não foi
neste sentido. O enfoque realizado buscou a análise comparativa dos projetos dos centros
catalisadores: militares, políticos e elite empresarial. Compreendo que a metodologia
utilizada possibilita visualizar melhor em que aspectos estes grupos aproximavam-se e
distanciavam-se uns dos outros.
No entanto, se os grupos abordados – parcelas dos principais encaminhadores do
golpe que afastou Jango do poder –, estavam localizados, dentro do sistema político
brasileiro da década de 1960 no espaço das direitas, isto não é apenas em função de seu
referencial lógico, as esquerdas. Foi também resultado da presença de uma concepção de
mundo que possibilitava a sua existência enquanto grupamento político, viabilizando a
unidade que se percebe em março de 1964. Todos os grupos aqui analisados possuíam
como elemento fundamental a questão da desigualdade – fosse ela política, econômica ou
social – como aspecto inerente à estruturação de uma sociedade. Desta forma, não foram
apenas as questões conjunturais que provocaram a oposição entre direita e esquerda.
Quanto a este aspecto, os fatores da oposição entre direita e esquerda, dois autores
destacam-se pela forma quase antagônica de encaminharem suas análises. Renné Rémond e

280
281

Norberto Bobbio confrontam-se quanto à essência da existência da dicotomia723. É


justamente com relação a este aspecto que procuro apontar para uma terceira possibilidade
de abordagem do problema. As análises aqui efetuadas procuram apresentar que as duas
formas de “enxergar”" a díade acabam por se complementar na medida em que a base da
oposição está realmente no fundamento da concepção do “Homem Natural”, mas a
conjuntura e o contexto têm sua importância e delimitam em grande parte os temas em
debate na medida em que se apresentam como respostas às demandas empreendidas pelos
participantes do sistema político aos quais, e sem os quais, os que encampam os extremos e
as diversas combinações da díade não existiriam. A supressão de determinados temas por
outros, que ocorre de acordo com a modificação das conjunturas, não significa a eliminação
da base da díade direita/esquerda que se refere à diferente concepção do homem dentro da
sociedade. Antes de tudo, reflete estratégias contextuais divergentes para tentar a
implementação de seu conceito de mundo com legitimidade.
A análise das direitas, ao longo da primeira metade da década de 1960, confirma
esta perspectiva. Mais do que uma questão topográfica, a distinção entre direita e esquerda
passava pela concepção de sociedade que as direitas possuíam em comum. Encaminhavam-
se no sentido de que a existência deles, enquanto parte do espectro político, possuía uma
identidade que era dada pela questão da concepção de mundo que considerava a
desigualdade entre os homens como algo inerente à sua formação social e como um dado
impossível de ser alterado. Contudo, eles não apresentavam uma concepção única de
sociedade e procurei assinalar justamente isto.
Apesar deste fator de identificação - entre membros do IPÊS/IBAD, militares
nacionalistas-ditatoriais, militares internacionalistas-autoritários e udenistas de extrema-
direita - , existiam diferenças significativas. As idéias polarizadoras - ampliação/restrição
da participação política, a ampliação/restrição do direito de propriedade, a idéia de
alinhamento/neutralidade no quadro internacional da Guerra Fria e o tipo de projeto
desenvolvimentista –, não opunham apenas direita e esquerda. Embora não com a mesma

723
Para maiores detalhes que caracterizam a dicotomia direita/esquerda ver: BOURDIEU, Pierre. O Poder
Simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 1989, p. 179; BOBBIO, Noberto. Direita e Esquerda: razões
para uma distinção política. São Paulo, Universidade Estadual Paulistana, 1995, p. 63; e, ainda, RÉMOND,
René. La Politique N'est plus ce qu'elle Était. Paris, Ed. Calmann-Levy, 1994.

281
282

intensidade elas provocaram divergências significativas entre os militares, empresários e


políticos envolvidos na coalizão que encaminhou e respaldou o golpe.
Mesmo assim, procuro mostrar que a crise político-militar que se estabeleceu
contribuiu para que estas divergências, entre as direitas, fossem colocadas gradativamente,
de lado. E isto foi possível porque, se de um lado algumas das idéias polarizadoras
opunham os centros catalisadores e contribuía para que seus projetos de sociedade fossem
diferentes e até mesmo concorrentes, de outro, estas idéias também eram responsáveis pela
possibilidade de aglutinação, como pôde ser observado em março de 1964. Neste sentido,
ao apresentar as diferenças existentes nos projetos das direitas, considero que a proposta
inicial deste trabalho, a desmistificação de uma pretensa unidade quase que absoluta destes
grupos em torno da realização do golpe, foi efetivada.

282
283

6 - Referências bibliográficas

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240.

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Escola Superior de Guerra, códigos de referência C2-01-63 a C2-21-63, C-01-64 a C2-40-
64, C2-29-65 até C4-80-65, e C-01-66 a C4-87-66.

Revista do Clube Militar – Biblioteca Nacional, seção de periódicos, n° de localização 1-


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