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Como dito acima, embora as informações sobre Santiago de Xerez estejam envoltas em

dados confusos e conflituosos, os argumentos sobre sua transmigração para os campos


que
margeavam o rio Ivinhema, próximo à sua desembocadura no rio Paraná, possuem
evidências
que lhes dão consistência45. Dentre elas, destacam-se as produzidas por Luis de
Céspedes y
Xeria, governador da Província do Paraguai, durante sua viagem de São Paulo a Ciudad
Real
em 1628, tanto no mapa que reflete o roteiro seguido por sua comitiva (Figura 3) como
em
carta encaminhada para a coroa espanhola, em 8/11/1628 (CARTAS..., [1628], f. 4)

Neste último documento se registrou que após chegar em Ciudad Real, Céspedes y
Xeria
se deslocou até Villa Rica del Espíritu Santo, Xerez46 e o puesto (porto?) de Maracayú.
Nestes
locais, deparou-se com a miserável desventura de seus moradores, onde homens,
mulheres e
crianças maltrapilhas e que se abasteciam de poucos de víveres, “[...] seu sustento son
unas
Rayses q se llaman yuca naranjas y plantanos y trigo de las yndías” (CARTAS..., [1628],
f. 4) e
não havia quaisquer tipos de criação de gado.
Como os eventos narrados por Céspedes y Xeria retratam um período de apenas três
anos
após a transmigração de Santiago de Xerez para as cercanias do rio Ivinhema, percebe-
se que
as esperanças de que ali se encontrariam melhores condições de vida para os xerezanos
não
foram alcançadas. Ainda assim, surpreende que neste local tenha existido uma
população
indígena composta por “[...] 600 cristãos yanaconas e 3.000 infiéis encomendados que
falam
Niguará” (PASTELLS, 1912, p. 386, tradução nossa)47, o que leva a duas observações: ou
a
população xerezana foi superestimada ou, então, após a visita de Céspedes y Xeria
houve uma
mudança vital na situação socioeconômica local48, mas ambas questões são duvidosas.
Outro ponto digno de nota, relacionado à Santiago de Xerez e a Vacaria, diz respeito a
existência de dois pueblos que foram fundados na margem direita do rio Paraná, por
volta de
1580. De acordo com registros de Pedro Lozano (BRASIL, 1952a, p. 316), os indígenas
destes
locais, os Cuataguás e os Conumyais54, eram identificadas como guarani. Antonio
Santa
Clara Córdoba, historiador franciscano, acrescenta que a redução dos cuataguás foi
nomeada
de Pacuyú e era atendida pelo Frei Alonso de San Buenaventura; a outra, dos
conumyais,
recebia doutrina do Frei Luis Bolaños (CÓRDOBA, 1937, p. 60-61). Ambos locais teriam
subsistido até 1632, quando foram assolados por uma bandeira55.
Conforme Azara (1847b, p. 202-203), uma redução estava localizada ao norte do rio
Amambai, no caminho depois utilizado para chegar em Xerez; a outra, nas margens da
lagoa
Curumiai, um pouco antes do rio Paraná56. Entretanto, Nimuendajú (2017, p. 121:D7)
aloca os
dois grupos indígenas que formavam estas reduções ao sul de Xerez, em uma área
contínua
entre as cabeceiras dos rios Dourados e Brilhante, equivalente, hoje, à extensão de terras
que
segue do norte de Antonio João àparte leste de Maracaju, municípios sul-mato-
grossenses.
Sobre a existência destes lugares, próximos da Vacaria, Affonso Botelho de Paio e
Souza, em
um relato enleado e atribuído ao Barão do Rio Branco, traz a seguinte informação:
[...] no territorio da Vaccaria, ao norte do Yguatemy, no Alto Amambay e nas
cabeceiras do Rio Pardo, havia também tres aldeias de indios catechisados
pelos jesuitas hespanhóes, e que também estas foram arrazados pelos
Paulistas em seguida a invazão do Goayrá, em 1632; chamavam-se estas
aldeias S. José de Itatines, Augeles e San Pedro-y-San-Paulo e tinham sido
fundadas poucos annos antes com indios já mansos vindos das reducções
jesuiticas do rio Mbotetey (PAIO E SOUZA, 1895, p. 96, grifos do autor).
Contudo, o mesmo autor observa que não tinha acesso a fontes que assegurassem esta
afirmação, pois, “[...] nem nos documentos velhos existentes no archivo, nem nos
mappas
dessa região se encontram referencias a estas reducções jesuiticas do territorio da
Vaccaria”
(PAIO E SOUZA, 1895, p. 96). À parte destas incertezas, a área central da Vacaria
continuou a
despertar o interesse das coroas ibéricas, diferentemente do que ocorreu na região do
Guayrá

Não obstante, e ao que parece, a locação do trabalho indígena vigorou na Vacaria até
1895. A base para esta afirmação está em uma correspondência escrita por Domingos
Barbosa
Martins145, “Gato Preto”, ao jornal O Matto-Grosso, em novembro daquele ano. No
texto, em
que ele desfere acusações contra Muzzi, lê-se a seguinte afirmação: “[...] elle costuma
receber
peões alheios e conserval-os em sua casa sem pagar as respectivas contas, ferindo assim
directamente interesses alheios e desorganisando o serviço de locação” (MARTINS,
1895, p. 3,
grifos nosso). A partir deste registro e considerando que: a) a locação trata de serviço
feito por
indígena; b) na época os kaiowá tinham uma das maiores populações indígenas146 da
Vacaria,
e; c) que as pessoas envolvidas no conflito possuíam fazendas que estavam nas margens
do
rio Brilhante, é pertinente inferir que entre os peões alheios havia alguns kaiowá147

(Martins foi um dos fazendeiros mais abastados da região. No recenseamento de propriedades rurais, de
1920, ele foi listado como dono das seguintes fazendas: Santo Amaro, Santa Barbara, Jaboticabal,
Chavantes, Laranjalzinho (três áreas), Capão Alto, São Bento e Capão do Gato (BRASIL, 1923a, p. 17-
21).
Estas terras se alastravam da Vacaria até as imediações do rio Paraná. Não é improvável, também, que
outras
terras de Martins não tenham sido elencadas naquele censo (REZENDE, 1924, p. 9-10) )

Ofaie em nova andradina

Para além disso, o fracionamento dos latifúndios representou um impacto duplamente


negativo para os povos indígenas. Primeiro, porque fez com que os colonos avançassem
sobre
locais que, até então, lhes viabilizavam viver com menos afetações advindas da
colonização.

Segundo, e mais grave, é que a ampliação da presença de não indígenas se manifestou,


dentre
outras formas, na pressão pelo estabelecimento de novos aldeamentos na região
(COLONIA...,
1879, p. 95-96) e fora dela223, locais para onde foram deslocados, principalmente, os
Kaiowá.
Ainda interessa considerar, em relação à ação movida contra o estado de Mato Grosso,
os depoimentos de alguns vacarianos que foram juntados ao processo e, em 1924,
publicados
por Astolpho Vieira Rezende. Com base nesses depoimentos é possível construir um
retrato
da diversidade étnica existente na Vacaria, mesmo que já fossem transcorridas várias
décadas
desde a chegada dos primeiros colonos na região. Esses relatos confirmam que até o
início do
século XX, a região que abarca os rios Ivinhema, Brilhante, Vacaria e Dourados era
substancialmente ocupada pelas etnias Kaiowá, Guarani Ñandeva e Ofaié.
Nos depoimentos, fortemente marcados pela visão heroica dos colonizadores224, lê-se
que o principal desafio das famílias que ali chegaram foi viver em um lugar habitado
apenas
por “gentios selvagens”, “bugre brabo e perigoso”, “gentio selvagem e brabo”, “indios
brabos
que matavam civilizados” e “bugres amansados” (REZENDE, 1924, p. 56-70)225,
expressões
que, embora também estivessem associadas aos Guarani Ñandeva, Xavante e Coroado,
sobretudo, se referiam aos Kaiowá (REZENDE, 1924, p. 56-66), etnia considerada a mais
arredia dentre as hordas locais e que, ao lado dos Guarani Ñandeva, era a mais
numerosa.
Todavia, mesmo que o único objetivo da menção aos povos indígenas tenha sido o de
legitimar as façanhas e consolidar benesses dos primeiros colonos, a contrapelo, esses
depoimentos atestam que eram os ocupantes originários da Vacaria. Porém, como na
época
em que se encerrou esta ação judicial a população autóctone já era bastante reduzida
naquela
área, fosse pelas expulsões ou matança, o discurso que negava a presença de alguns
grupos
étnicos em determinados lugares foi facilitado.
Nesse contexto, pode se afirmar que os antigos territórios dos Kaiowá, bem como dos
Guarani Ñandeva e Ofaié, foram locais sobre os quais se edificaram “impérios”
agropastoris
e prestígios pessoais, e que, na direção do que propõe Paul Ricoeur, ali o poder se
firmou por
via de expropriações, mediante as quais “[...] se alcandoram os gozos culturais das elites
sôbre
a massa de trabalhos e de dores dos deserdados” (RICOUER, 1968, p. 227). Esses fatores,
cada
qual ao seu modo, relegam e ofuscam o protagonismo e a anterioridade indígena na
Vacaria.

Para Manuela Carneiro da Cunha, até os anos de 1860 não se debatia acerca “dos fins de
uma
política indigenista, e sim dos seus meios: se se deviam exterminar sumariamente os
índios,
distribuí-los aos moradores, ou se deviam ser cativados com brandura” (CUNHA, 1992,
p. 5).

Há, ainda,
denúncias de que Domingos Barbosa Martins229, o “Gato Preto”, abastado fazendeiro da
Vacaria (Fotografia 5), promoveu uma “caça” aos Ofaié230.

Darcy Ribeiro afirma que, na década de 1900, Rondon teria desarmado um bando de bugreiros, caçadores
de
índios, que agiam a mando de Martins. Conforme Ribeiro (1996, p. 133), alegava-se que um grupo de
ofaié
estaria “[...] acabando com seu gado”. Ainda que não seja improvável que este evento tenha ocorrido,
parece-me que a narrativa de Ribeiro é uma corruptela de uma ocorrência registrada na região de
Aquidauana. Neste caso, Rondon interveio para “salvar” os poucos ofaié que ainda viviam nas
“cabeceiras
dos rios Taboco e Negro, os quais estavam sendo sistematicamente caçados e exterminados a tiros de
carabina pelo Coronel José Alves Ribeiro, sob o pretexto de que os índios matavam, para comer, as reses
das
suas fazendas” (MISSÃO..., 2003, p. 41). Esta informação foi reproduzida no boletim no qual o SPI
prestou
homenagem ao centenário do nascimento de Rondon (BRASIL, 1965, p. 6). Há um relatório de
Nimuendajú
(1993, p. 101 et seq.), de 1913, que aborda a violência sofrida e promovida pelos Ofaié na Vacaria.
De toda forma, a percepção de que a violência contra os indígenas não era uma prática
isolada entre os vacarianos também foi confirmada por Nimuendajú. Conforme o
etnólogo
alemão, um grupo remanescente dos kaiowá afastou-se de suas áreas de ocupação para
fugir
“[...] da escravidão assalariada a que lhes submetiam seus patrões brasileiros de Vacaria,
buscando refúgio junto ao Serviço de Proteção aos Índios na reserva dos Ofaié-
Chavante no
Ivinhema” (UNKEL, 1987, p. 14). Em outro caso, narrado pelo mesmo autor, o
assassinato de
dois camaradas de Joaquim Barbosa232, atribuído ao líder ofaié, fez com que se
encarregasse
“um grupo de Kaiuá, moradores desta zona, de trazer as orelhas deste chefe233, sob pena
de
serem todos degolados. Os Kaiuá se meteram no mato atrás dos Ofaié234, e logo depois
entregaram ao fazendeiro os troféus exigidos” (NIMUENDAJÚ, 1993, p. 103-104, grifos
nosso)

A efetiva expressão do ideal colonizante presumia o


afastamento radical dos laços étnicos e das práticas tradicionais dos indígenas, algo que
se
aproximava do que foi relatado por Genesio Pimentel Barboza, agente do SPI, durante
sua
busca para localizar indígenas vivendo nas proximidades do Posto Indígena
Laranjalzinho.
Não ocasião, o agente indigenista reportou que,

Somente dois indios caiuás encontrei no laranjalzinho, no logar denominado


Porto Baguy, Na Margem do Ivinhema, a cerca de cinco kilometros da foz
do laranjalzinho, em casa de Domingos, um dos pretendidos guaranys
apontados por D. Ramon e que sua presença declarou não se considerar
indio, pois nasceu na Vacaria, alli se creou, foi vaqueiro, etc. (BARBOZA
apud FERREIRA, [19--], p. 35, grifo nosso)

Outrossim, cabe notar que nesta mesma região localizava-se uma das mais extensas
fazendas de Domingos Barbosa Martins, a Laranjalzinho (BRASIL, 1923b, p. 17), cuja
sede
estava próxima do posto indígena. Considerando a influência político-econômica de
Martins
(NIMUENDAJÚ, 1993, p. 114) e seus interesses naquele lugar, não é improvável que a
criação
do posto de atração servisse para oferecer alguma proteção para os indígenas. Para
Ribeiro
(1996, p. 133), o posto serviria para fornecer mão de obra indígena para a expansão das
fazendas de Martins. De acordo com Lima (1992, p. 51), no Posto Indígena
Laranjalzinho
chegaram a viver cerca de duzentos indígenas Ofaié e Guarani240.

Para o SPI, os Postos de Atração241 do Peixinho e Laranjalzinho, criados nas margens


dos rios Três Barras e Ivinhema, entre 1911 e 1913, tinham por função salvaguardar os
Ofaié
e, por extensão, os Kaiowá. Dutra (2011, p. 28, grifo do autor) afirma que esses postos
eram
apresentados como aqueles que tinham “[...] a missão de reunir os Ofaié dispersos para
protegê-los do massacre praticado pelos fazendeiros que, nesse período, já infestavam
toda a
sub-bacia do Ivinhema com seus gados”, o que também foi recorrente na Vacaria.

Outra informação sobre os kaiowá deslocados para Laranjalzinho consta no relatório


de José Rufino Beserra Cavalcanti, ministro da Agricultura, Industria e Commercio, em
1915.
Este documento informa que “[...] na Inspectoria de S. Paulo existem a povoação
indigena doArariba para indios guaranys e os postos do Laranjalsinho e Ribeirão dos
Patos, este para os
indios Caingangs, pacificados em 1912, e aquelle para os indios Chavantes-Cayuás”
(BRASIL,
1915, p. 72). Também foi citada a animadora dedicação dos Chavantes e Cayuás à
lavoura e,
ainda, a expectativa da instalação de uma indústria para beneficiar aquilo que fosse
produzido
a partir do trabalho dos indígenas.

REZENDE
REZENDE, P. 125

MANUEL CACULÉ – NEGRO A MANDO DO GATO PRETO PARA “OCUPAR” TERRAS DO SEU
PATRÃO” O BARÃO DE ANTONINA

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