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As frutas contam outras histórias de Dourados-MS

EDUARDO MARTINS –
professor adjunto III do curso de história – UFMS-CPNA.

Descendo a Marcelino Pires rumo ao rio Dourados, chupei mangas e


logo à frente, colhi limões na mesma rua em que peguei laranjas doces. Ali na
Eulália Pires com a Onofre Pereira de Matos, altos do 336, naquela esquina tem
um imenso pé de seriguela, pendendo de frutas maduras e muito suculentas
que contam histórias de uma família numerosa e feliz e antiga que ali se
estabeleceu, fez dali sua morada e da sua sombra o lugar de tardes felizes e
memoráveis enquanto lugar fresco e de “ver gente” e de ser gente, um velho
serigueleiro.

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FONTE: GOOGLE, 2023.
Foi noutra esquina, num abacateiro que comi um madurinho, tudo isso
sem sair da área urbana, e tinha uma goiabeira carregada de verdes, de vez e
aquelas madurinhas quase amarelas e graúdas, algumas bichadas como é de
costume e comer os bichos da goiaba. O jatobazeiro exuberante, forte e
imponente carregado daquela fruta que gruda na garganta, mas que tem um
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sabor exótico, ainda peguei pitangas e pitombas e acerola na Monte Alegre –


nome justo - frutinhas pequenas e doces e gostosas e eu colhi e comi e gostei. Já
no lago que recebe as águas, no começo da Marcelino Pires, onde tem
capivaras e capivarinhas nadando e pastando e sendo felizes, foi num
alagadiço ali que vi um ingazeiro se debruçando num lamaçal, pesado de tanto
ingá, fruta de baga doce e casca aveludada apessegada, chupei muitos, fartei-
me, lembrei-me de esquecer dos tempos modernos.

Vivia-me, curtia-me, dessapressadamente, sossegadamente. Sem tempo e


sem pressa, naquele parque do lago, denominado Martins, nome de outro
colonizador, seria mais justo e honesto o parque receber um nome indígena,
tupi-guarani, que teve relações diretas com este lugar belo e natural. Já saindo
rumo ao mato tinha as guaviras, também chamadas de gabiroba, esta sim com
termologia guarani wa’bi rob, que significa “árvore de casca amarga” e a fruta
sendo doce como mel. Colhi mel de araçá, jataí e todos os tipos de abelhas e
flores. Neste tipo de bioma o cerrado, ou a savana que se daria um nome de
uma população indígena habitante deste lugar os Xavante, por habitarem a
“shavana”, ou savana.

Foi mais adiante que comi jaca, chupei as bagas doces, me lambuzei e
saciei minha fome e sede e paz, me enchi de paz embaixo da jaqueira, gigante,
imponente, copada fechada, me refresquei na sua generosa sombra. E fui grato.

Frutas que a natureza dá, de graça, graças a chuva mansa de Dourados e


do sol quase que, simultaneamente, banham as terras férteis dessa cidade
antiga habitada pelos povos originários; Guarani, Kaiowá, Terena, que vivem
aqui e conhecem tudo isso na palma da mão e convivem com essa natureza em
harmonia e respeito com a terra que é frutífera.
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É fácil entender que em passados remotos e não tão assim, essa


população humana de homens, mulheres, crianças, sobretudo de velhos eram
muito felizes por essas bandas vivendo de pequenas caças e principalmente de
coleta das frutas que hoje insistem em revelar parte da história da natureza
que compôs e foi composta na simbiose da vida, sem hierarquia, onde os três
reinos se misturavam; animal, vegetal e mineral, compondo-se em uma só
coisa; vida.

Não é tão difícil assim saber como e porque Dourados tem a maior
população indígena do Estado de Mato Grosso do Sul (MS) 11 mil almas de
acordo com o senso do IBGE, 2010, bem defasado e que na atualidade teve um
aumento significativo, provavelmente 20 mil, quase dobrou, o que prova que
eles resistem, existem e crescem. Por sua vez o MS possui a segunda maior
população de povos originários do Brasil, 70 mil pessoas (IBGE, 2010).

É descer a Marcelino Pires rumo ao rio Dourados e ver a grande


quantidade de frutas que pendem dos galhos, nas ruas, praças e bosques que é
possível imaginar o que era essa cidade e essa região num passado recente; o
lugar ideal para se estabelecer habitação, família, ritos, religiosidade, costumes,
enterrar seu mortos. Assim, fica muito fácil saber e estabelecer com certeza
absoluta que todas essas terras eram de propriedade das nações indígenas que
aqui se encontram, propriedade por usufruto, usucapião e demais termos que
os dotô em “dereito” quiser usar, donos das terras porque faziam cumprir sua
função social; semeadura, plantio, colheita e alimentação das pessoas, donos
porque enterravam seus mortos nela, faziam dela seu lugar sagrado.

Por fim, é só ver, olhar e ver, mas podem comer também as frutas que a
cidade dá de bom grado. Quem tem olhos que escute.
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FONTE: GOOGLE, 2023

Eduardo Martins, em 18 dias de fevereiro, no ano 523 da invasão


portuguesa contra as terras indígenas e também alguns séculos da invasão de
paulistas, gaúchos e mineiros contra as terras do Rio Dourados, terras de
propriedade dos povos caçadores e coletores de frutas daqui.

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