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Claude Lévi-Strauss, fundador do pós-estruturalismo

Conferência ao Colóquio Lévi-Strauss: un siglo de reflexión, Museo Nacional de


Antropología, México, 19 de novembro de 2008
Eduardo Viveiros de Castro
Museu Nacional, Rio de Janeiro
I
Prezados colegas,
Devo começar dizendo que sou muito sensível à honra que aqui me é feita, de abrir
com esta alocução o Colóquio Lévi-Strauss: un siglo de reflexión. Não consigo
explicar que me tenham escolhido, dentre tantos colegas aqui reunidos — todos mais
credenciados que eu para tal distinção—, senão pela contingência de ser um etnólogo
nascido no Brasil, e que estuda povos indígenas brasileiros. Vejo neste convite, assim,
uma sorte de homenagem indireta ao meu país, onde Lévi-Strauss fez suas armas de
etnólogo, mas sobretudo aos povos indígenas brasileiros, povos cujo pensamento, ao
contribuir de modo decisivo para formar o de Lévi-Strauss ele próprio, veio em boa
hora irrigar a tradição filosófica do Ocidente, após cinco séculos de olvido ou descaso
— no momento mesmo em que essa tradição necessita como nunca de toda ajuda
externa que puder conseguir. Pois finalmente o Ocidente começa a perceber que não
passou de um acidente, um gigantesco acidente antropológico que poderá encerrar a
carreira da espécie na Terra.
A segunda razão que me ocorre para receber tão distinguido convite seria por assim
dizer intrinsecamente lévi-straussiana ou estruturalista, a saber: vejo-me chamado a
falar-lhes precisamente porque, como vocês podem perceber, não falo sua língua, mas
uma língua gêmea dela. Sabemos como a característica fundamental dos gêmeos na
mitologia ameríndia é a de serem ligeiramente, mas crucialmente, desiguais,
assimétricos. Tal assimetria é palpável no caso de nossas respectivas línguas, onde o
português desempenharia o papel de gêmeo lunar, menor, com algo de enganador (de
malandro, diríamos nessa língua) em seus ditongos traiçoeiros, suas sibilantes
serpentinas e suas estranhas chiantes, em contraposição ao espanhol solar, cristalino,
imperioso e magnificente, que seria como o gêmeo maior, o demiurgo da parelha. O que
vocês estão a ouvir neste momento, portanto, é o enganador outrickster tentando se
fazer passar pelo demiurgo, como sucede em tantos mitos do continente. Como sabemos
também, ele sempre fracassa, de um modo ao mesmo tempo cômico e grotesco.
Seja como for, esta conferência vai-se colocar por inteiro sob o signo dos gêmeos, pois
estes são, como diz algo enigmaticamente Lévi-Strauss em seu livro mais profundo —
refiro-me a História de Lince —, “a chave de todo o sistema”. O mestre francês se
refere aqui ao sistema mítico panamericano analisado nas série das Mitológicas; mas eu
me refiro ao sistema teórico do estruturalismo. Se é que é realmente possível distinguir
os dois sistemas.
II
O título que me ocorreu dar a esta conferência é “Claude Lévi-Strauss, fundador
do pós-estruturalismo”. Temo que seja preciso justificá-lo. Para isso, começo por
falar de um outro título. Venho tentando terminar de escrever um livro sobre Lévi-
Strauss  que se chamaIsso não é tudo: Lévi-Strauss e a mitologia ameríndia. “Isso não é
tudo”,“ce n’est pas tout” é uma fórmula muito frequentemente empregada pelo autor,
especialmente nas Mitológicas, a ponto de poder ser considerada um maneirismo
diacrítico. A “pequena frase de Lévi-Strauss” (chamo-a assim em homenagem à
“pequena frase de Vinteuil” de Em busca do tempo perdido), marca o surgimento quase
prestidigitatório de sempre mais um eixo, invariavelmente “um outro” eixo de
transformação, disposto de través, em diagonal aos vários eixos que vinham até ali
guiando a comparação; ela anuncia a presença de uma torção suplementar
completamente imprevista, que abre subitamente uma progressão que tudo encaminhava
para o fechamento; ela assinala a revelação de um vínculo adicional, implicado,
obscuro, compactado no texto sob análise que subitamente se explica e esclarece, e ao
mesmo tempo se multiplica e difrata em perspectivas que, literalmente, perdem-se de
vista no horizonte.
O movimento assinalado pela pequena frase ocorre com muito maior frequência do que
ela; ela é opcional, mas ele parece-nos necessário, intrínseco ao procedimento lévi-
straussiano, procedimento que jamais termina, ao contrário do que se costuma
preguiçosamente ensinar, com o estabelecimento de oposições binárias; na verdade,
começa por elas, e começa precisamente por complicá-las. Lembremos, entre tantas, da
profunda observação do “Final”  de O homem nu (L.-S. 1971: 539-40): “O problema da
gênese do mito se confunde com o do pensamento ele próprio, cuja experiência
constitutiva não é a de uma oposição entre o eu e o outro, mas do outro apreendido
como oposição.“ Donde se pode concluir, em sintonia com outras passagens do autor,
que o eu é um caso particular do outro, assim como a oposição, tanto quanto a
identidade, é apenas um caso particular da diferença.
Para nosso autor, com efeito, uma oposição binária é tudo salvo um objeto simples, ou
simplesmente duplo, ou sequer simplesmente um objeto; talvez nem mesmo — mas
aqui é possível que estejamos indo longe demais — uma oposição. Leiam-se as páginas
luminosas daOrigem dos modos à mesa ou da Oleira ciumenta sobre a natureza exata,
ou antes, “anexata”, da relação entre o Sol e a Lua na mitologia ameríndia, e se terá uma
idéia do que estou falando.
A pequena frase cumpre, na verdade, uma função fundamental dentro da economia
teórica do estruturalismo. Ele aponta para o inacabamento perpétuo da análise
estrutural, e sugere que a razão desse inacabamento é a multiplicidade virtual de todo
objeto determinado pelo método estrutural, uma vez que o objeto é sempre um estado
particular de um sistema de transformações cujos limites são radicalmente contingentes,
e, além disso, definíveis apenas de modo relacional. A “in-terminabilidade”, no duplo
sentido (sem fim ou término, e sem possibilidade de determinação unívoca do que seja
um termo e uma relação) da análise mítica é um princípio fundamental das Mitológicas,
enunciado logo na “Abertura” de O cru e o cozido: o caráter aberto, intensivo, iterativo,
em nebulosa, poroso, “conexionista” dos sistemas míticos que reconstrói. “Isso não é
tudo”, então, porque nada é tudo, em nenhum momento se alcança uma
totalização.  “Isto não é tudo” projeta um conceito de estrutura (e uma concepção de
análise) que não privilegia nenhuma vontade de fechamento, compleção, compacidade.
Com o “isso não é tudo”, começa-se a divisar a possibilidade de um Lévi-Strauss pós-
estruturalista.
Naturalmente, isso de fato não é tudo… A pequena frase, como uma chave, pode ser
usada tanto para abrir o que estava fechado como para fechar o que estava aberto. A
demonstração do fechamento transformacional, da coerência e homogeneidade dos
grupos de mitos em análise aparece repetidas vezes no correr do texto das Mitológicas,
para atingir uma espécie de apoteose enfática no capítulo “O mito único” de O homem
nu. Lévi-Strauss irá insistir repetidas vezes nasMitológicas sobre o fechamento do
sistema que analisa, a redondez da terra da mitologia, a completude do círculo que o
leva dos cerrados do Brasil Central às costas brumosas dos estados de Washington e da
Columbia Britânica, assim como sobre os vários fechamentos secundários dos
subgrupos míticos internos a esse périplo. A idéia de clôture, fechamento, clausura,
parece por vezes consubstancial à análise estrutural: para Lévi-Strauss, é preciso
demonstrar que o grupo se fecha, que se voltou ao estado inicial de uma cadeia de mitos
por uma última transformação; que, na verdade, o grupo se fecha sobre diversos eixos.
Essa insistência está ligada ao tema da necessária redundância da linguagem mítica,
condição do estabelecimento de uma “gramática” da mitologia, como às vezes o autor
se compraz em conceber sua empresa; e sabe-se a antipatia que ele vota à noção de
“obra aberta”.
Acontece, porém, que a multiplicação das demonstrações de fechamento produz a
impressão paradoxal de que existe um número teoricamente indefinido, isto é, aberto, de
estruturas fechadas. As estruturas se fecham, mas o número de estruturas, e de vias por
onde fechá-las, é aberto — não há uma estrutura de estruturas, no sentido de um nível
final de totalização estrutural, nem uma determinação a priori dos eixos semânticos (os
códigos) mobilizados em estrutura.[1] Todo “grupo” de mitos termina por se revelar
situado na intersecção de um número indeterminado de outros grupos; e dentro de cada
grupo, cada “mito” é igualmente uma interconexão; e dentro de cada mito… Os grupos
devem poder se fechar (clore); mas o analista não pode se deixar encerrar
(enfermer) dentro deles: “o próprio de todo mito ou grupo de mitos é de proibir que nos
encerremos nele: sempre chega um momento, no decorrer da análise, em que um
problema se coloca cuja resolução obriga a sair do círculo que a análise havia traçado.“
(1971: 538).
Será preciso então insistirmos, nós, sobre as  tensões internas ao pensamento de Lévi-
Strauss relativo à mitologia americana, a saber, sobre uma dialética da abertura e do
fechamento analítico (como o autor falava em uma “dialética da abertura e do
fechamento” repetidamente tematizada pelos mitos) que cabe explorar, inclusive em
suas tentativas, talvez necessariamente incompletas, de auto-mediação. Necessidade ou
contingência, completude ou inacabamento, estrutura ou multiplicidade, transcendência
da regra ou imanência do sentido : essa quádrupla tensão estrutura o estruturalismo, e
traça as linhas de divergência de sua posteridade. É tal tensão que me levou a escolher o
título desta conferência. Pois se Rousseau, no célebre dizer de Lévi-Strauss
(1962/1973), deve ser visto como o fundador das ciências humanas, então de Lévi-
Strauss ele mesmo se deveria dizer que não só as refundou, com o estruturalismo, como
as “infundou” virtualmente, ao apontar o caminho para um pós-estruturalismo, em
outras palavras, para uma antropologia da imanência, que ele talvez não tenha chegado,
“como Moisés conduzindo seu povo a uma terra prometida cujo esplendor ele jamais
contemplaria” (isto é o próprio Lévi-Strauss, falando sobre Mauss), realmente a
adentrar.[2]
III
A grande questão que se abre hoje, no processo de reavaliação — já ia escrevendo
“reabilitação” — da herança intelectual de Lévi-Strauss é a de decidir se o
estruturalismo é uno ou múltiplo, ou, para usarmos uma polaridade lévi-
straussiana, se ele é contínuo ou descontínuo. Sem deixar de concordar com os
intérpretes que concordam com Lévi-Strauss, isto é, que vêem sua obra como marcada
por uma profunda unidade de inspiração e de método (falaremos mais disso adiante),
vejo a a personalidade teórica do estruturalismo e de seu autor como dividida — mas
não oposta — em dois gêmeos eternamente desiguais, um herói cultural e um deceptor,
o personagem da mediação (mas que é também o instaurador do discreto e da ordem) e
o contra-personagem da separação (mas que é ao mesmo tempo o mestre do cromatismo
e da desordem). Há sim  dois estruturalismos, mas, como Lévi-Strauss ele mesmo
mostrou, dois é sempre mais de dois.
Vejo assim a obra de Lévi-Strauss pelo lado da contingência, do inacabamento e da
multiplicidade: um estruturalismo em desequilíbrio perpétuo. Tal a mitologia ameríndia
que ele soube compreender melhor que qualquer outro antropólogo, essa obra é
complexa, ambígua e plural, e portanto sempre atual. É essa atualidade permanente da
obra ― sua capacidade de auto-defasagem ― que se viu recentemente reconhecida pela
canonização segundo a fórmula indígena (quero dizer, francesa) consagrada que é a
publicação na Bibliothèque de la Pléiade, cujo nome abunda aliás em ressonâncias lévi-
straussianas. Recordemos que a constelação epônima é um signo eminente do contínuo
no pensamento ameríndio; vê-se então a sutileza da “dupla torção” que faz o grande
analista da passagem do contínuo ao discreto ser conduzido de volta ao contínuo ―
mas, na típica marcha em espiral da transformação mítica, a um contínuo mais
profundo, de segunda ordem por assim dizer, sobrenatural mais que natural, um
contínuo cuja relativa indiferenciação interna (autores, séculos, gêneros se perfilam na
série de volumes encapados de um fino marroquim — a pele de alguma sucuri
mitológica? — marcado por uma discretíssima variação cromática), só faz destacá-lo
mais claramente no vasto céu noturno e anônimo da história.
E isso, mais uma vez, não é tudo. Honra suprema, essa ascensão ao contínuo se faz em
vida, no ano mesmo do centenário de Lévi-Strauss que ora celebramos. Todos os
antropólogos do mundo devemos nos sentir orgulhosos e agradecidos pela homenagem
que assim se presta a nossa disciplina na pessoa de seu mais ilustre praticante, o
pensador que reinventou a antropologia, ao desmontar os fundamentos metafísicos do
colonialismo ocidental, e que ao mesmo tempo revolucionou a filosofia, ao abrir um dos
principais caminhos do século para que outros pudessem desmontar os fundamentos
colonialistas da metafísica ocidental.
IV
Trata-se então, hoje, de saber se a antropologia estrutural, em flagrante
discrepância com as configurações simbólicas cujos alicerces ela soube tão bem
expor, é realmente o sistema conceitual fechado, unívoco, homogêneo e equilibrado
que a vulgata antropológica nos legou. Penso, bem entendido, que não. Começamos,
com efeito, a nos dar conta de que a obra de Lévi-Strauss colabora ativamente, e isso
desde seus começos, com muito do que pareceria ser sua subversão futura, e que o
estruturalismo sempre foi gêmeo de si mesmo, para recordarmos a interpretação da
“sentença fatídica” que é o tema de um capítulo de História de Lince. Se Lévi-Strauss
não é o último pré-estruturalista (longe disso, hélas), está entretanto muito perto de ter
sido o primeiro pós-estruturalista.
Tomemos por exemplo a idéia-mestra, afirmada na Aula Inaugural ao Collège de
France, segundo a qual a antropologia estrutural utiliza “um método… mais de
transformações que de fluxões”, com o que o autor marcava sua preferência por uma
concepção combinatória antes que diferencial de estrutura (L.-S. 1960/1973: 28) . Essa
idéia foi-se tornando, ao longo da obra de Lévi-Strauss, uma verdade bastante
aproximativa, visto que a noção-chave de transformação foi-se transformando ela
própria. Primeiro, ela foi ganhando precedência semântica sobre a noção de estrutura.
Segundo, foi assumindo uma roupagem cada vez mais analógica, cada vez mais
próxima das fluxões dinâmicas que das permutações algébricas. O ponto de inflexão
dessa curva situa-se, ao que tudo indica, em algum momento da redação
dasMitológicas. Uma nota em Do mel às cinzas é talvez o primeiro registro explícito da
mudança:
Leach nos censurou … por recorrermos exclusivamente a esquemas binários. Como se a
noção mesma de transformação, de que fazemos um uso tão constante depois de tê-la
tomado de d’Arcy Wentworth Thompson, não pertencesse inteiramente ao comínio da
analogia… (L.-S. 1966: 74 n. 1)
Duas décadas mais tarde, o ponto é reafirmado pelo autor: a noção de transformação
não lhe veio nem da lógica nem da linguística (nem, fica-se com a impressão, do
estruturalismo matemático de Bourbaki), mas do naturalista D’Arcy Thompson, e por
ele, de Goethe e de Dürer (L.-S & Eribon 1988: 158-59). A transformação é agora uma
operação estética e dinâmica, não mais lógica e algébrica. Com isso, a oposição entre
certos paradigmas conceituais centrais da fase clássica do estruturalismo, como
{totemismo, mito, descontinuidade} versus {sacrifício, rito, continuidade}, torna-se
bem mais fluida e instável do que o autor continuará, não obstante, afirmando em
algumas passagens da fase posterior da obra, como no célebre contraste entre mito e rito
do “Final” de O homem nu.
A linha de corte passa claramente entre a álgebra finitária adequada aos conteúdos do
parentesco e a forma intensiva do mito:
O problema colocado em As estruturas elementares do parentescoremetia diretamente à
álgebra e à teoria dos grupos de substituição. os problemas colocados pela mitologia
parecem indissociáveis das formas estéticas que os objetivam. Ora, estas formas
pertencem ao mesmo tempo ao contínuo e ao descontínuo… (L.-S. & Eribon 1988: 192)
Lévi-Strauss menciona então a teoria das catástrofes de René Thom, que foi posta em
comunicação com o estruturalismo antropológico por Jean Petitot, um filósofo de
formação matemática. A teoria de Thom, continua Lévi-Strauss na passagem acima,
permitiria superar a antinomia entre o contínuo e o descontínuo, oferecendo-se portanto
como a matemática adequada ao mito.
Não tenho competência para julgar essa adequação ou inadequação. Mas a conclusão
geral que se pode tirar é que a noção estruturalista de transformação sofreu de fato uma
dupla transformação, histórica e estrutural — na verdade, uma única transformação
complexa, que a transformou em uma operação simultaneamente “histórica” e
“estrutural”; como argumenta meu colega Mauro Almeida em um notável artigo recente
(Almeida 2008), o que a a fórmula canônica descreve é precisamente a transformação
de história em estrutura e vice-versa (mas o caminho não é o mesmo nos dois sentidos).
Essa mudança se deve em parte à influência, sobre Lévi-Strauss, das novas
interpretações matemáticas disponíveis; mas sobretudo, penso eu, à mudança do tipo de
objeto privilegiado por sua antropologia. Com o mito, as fronteiras entre permutação
sintática e inovação semântica, deslocamento lógico e condensação morfogenética,
tornaram-se mais tortuosas, contestadas, complicadas — mais fractais. A oposição entre
a forma e a força (as transformações e as fluxões) perdeu seus contornos, e de certa
maneira se enfraqueceu.
Isso não significa que Lévi-Strauss dê grande relevo a tal mudança, nem que se demore
nela, para além da reflexão supracitada a respeito dos diferentes problemas tratados pelo
método estrutural. Ao contrário, sua tendência sempre foi a de sublinhar, “a
continuidade do programa que seguimos metodicamente desde As estruturas
elementares do parentesco” (a advertência está na “Abertura” de O cru e o cozido).
Continuidade — eis aí uma noção ambivalente como poucas, no vocabulário
estruturalista…
É claro que Lévi-Strauss tem razão; seria um pouco ridículo querer corrigi-lo a respeito
de si mesmo, como parecem fazer alguns de seus comentadores mais fundamentalistas
(pois existe um estrutural-fundamentalismo!). Mas a insistência do mestre francês na
unidade de inspiração de sua obra não nos dispensa de propor, como bons
estruturalistas, uma leitura descontinuísta dessa obra; menos para insistir sobre rupturas
unívocas que para sugerir uma coexistência complexa ou uma superposição intensiva de
estados do discurso estrutural.
As descontinuidades do projeto estruturalista podem ser distribuídas dentro das duas
dimensões clássicas: no eixo das sucessões, com a idéia de que a obra lévi-straussiana
conhece fases; e no eixo das coexistências, com a idéia de que ela enuncia um discurso
duplo, descreve um duplo movimento. As duas descontinuidades coexistem na medida
em que os momentos da obra se distinguem pela importância concedida a cada um dos
dois movimentos, opostos contrapontisticamente ao longo de toda ela.
V
Comecemos pela diacronia, dizendo que o estruturalismo é como o totemismo: ele
nunca existiu. Ou mais precisamente, como o totemismo, seu modo de existência não é
o das substâncias mas o das diferenças. No caso, a diferença, várias vezes notada pelos
comentadores, entre a primeira fase da obra de Lévi-Strauss, representada por As
estruturas elementares do parentesco, e que se poderia dizer pré-estruturalista, e a
segunda fase, pós-estruturalista, povoada pelas Mitológicas e as três monografias
subsequentes.
Digo que a segunda fase é pós-estruturalista porque antes dela se inscreve o breve
momento indiscutivelmente “estruturalista”, representado pelos dois estudos sobre o
problema totêmico, que o autor descreve como assinalando uma pausa entre As
estruturas elementares e as Mitológicas. É nos livros de 1962 (O totemismo hoje e O
pensamento selvagem), com efeito, que Lévi-Strauss identifica o pensamento selvagem,
isto é, as condições concretas da semiose humana, a uma gigantesca e sistemática
empresa de ordenamento do mundo, e promove o totemismo, antigo emblema
antropológico da irracionalidade primitiva, a modelo mesmo de toda atividade racional.
É a este momento da obra que um juízo malicioso de Deleuze e Guattari (1981: 289)
parece se aplicar melhor: “O estruturalismo é uma grande revolução, o mundo inteiro se
torna [devient] mais razoável”. Um espírito conciliador poderia ponderar que, com o
estruturalismo, o mundo não se torna mais razoável sem que a razão não se torne outra
coisa … maismundana talvez, no sentido de mais secular, mais popular; mas também
mais artista, mais boêmia — mais surrealista —, menos rentável.[3]
A noção de que As estruturas elementares do parentesco são um livro “pré-
estruturalista” deve ser tomada, bem entendido, com uma boa pitada de sal. De qualquer
modo, penso que antropólogos como David Schneider ou Louis Dumont têm razão em
classificar assim a obra de 1949, organizada como se acha em torno das duas dicotomias
fundacionais das ciências humanas: Indivíduo e Sociedade, de um lado — o problema
da integração e totalização sociais —, e Natureza e Cultura, do outro  — o problema do
instinto e da instituição humanos. As Luzes e o Romantismo: Hobbes e Herder,
digamos. Ou, se quisermos epônimos mais recentes: Durkheim e Boas. (Mediando essas
polaridades, naturalmente, está Rousseau, esse trickster filosófico que Lévi-Strauss, não
por acaso, erigiu como seu santo padroeiro.)
O problema de As estruturas elementares é o problema “antropológico” por excelência
da hominização: a emerg_ência da síntese da cultura como transcendência da natureza.
“O grupo”, isto é, a Sociedade, mantém-se como sujeito transcendental e causa final de
todos os fenômenos analisados. Isso, entretanto, até o último capítulo do livro, quando,
como sublinhou Patrice Maniglier (um dos mais originais comentadores de Lévi-Strauss
que conheço), tudo parece subitamente se dissolver na contingência:
as múltiplas regras que interditam ou prescrevem certos tipos de cônjuges, e a proibição
do incesto que as resume todas, se esclarecem a partir do momento em que se postula
que é necessário que a sociedade exista [seja, soit]. Mas a sociedade teria podido não
existir. (L.-S. 1949/1967: 561)
E segue-se o grandioso desenvolvimento conclusivo, onde se estabelece ao mesmo
tempo que a sociedade é coextensiva ao pensamento simbólico e não sua causa
antecedente ou sua razão de ser, que a sociologia do parentesco é um ramo da
semiologia (toda troca é troca de signos, isto é, de perspectivas), e que toda ordem
humana traz dentro de si um permanente impulso de contra-ordem. Esses acordes
derradeiros marcam a entrada, ainda abafada, do que se poderia chamar de segunda
voz do discurso antropológico de Lévi-Strauss, quando a sociologia do parentesco
começa a abrir espaço para uma “anti-sociologia”,[4] ou seja, para uma economia
cosmopolítica — em outras palavras, para o regime do plano de imanência ameríndio
que será traçado nas Mitológicas.
Pois é com as Mitológicas que a inversão na ordem das vozes se completa — ou
melhor, quase se completa; não teria sido mesmo preciso ir mais longe: como Moisés e
a Terra Prometida… Nas Mitológicas, a noção de sociedade é desinvestida
analiticamente, em favor de um foco sistemático nas transformações narrativas inter-
societárias; a oposição Natureza/Cultura deixa de ser uma condição antropológica
universal (objetiva ou subjetiva) para se transformar em um tema mítico, interno ao
pensamento indígena — tema cuja ambivalência dentro desse pensamento, aliás, só fará
crescer a cada volume da série —; e os objetos algebriformes chamados “estruturas”
ganham contornos mais fluidos, derivando, como mencionamos, para uma noção
analógica de transformação. As relações que constituem as narrativas ameríndias, mais
que formando totalidades combinatórias em distribuição discreta, em variação
concomitante e tensão representacional com os realia sócio-etnográficos, instanciam a
um ponto que se poderia dizer de verdadeira exemplaridade os princípios de “conexão e
heterogeneidade”, “multiplicidade”, “ruptura assignificante” e ”cartografia” que
Deleuze e Guattari irão contrapor aos modelos estruturais em nome do célebre conceito
de “rizoma” — rizoma, o conceito mesmo da anti-estrutura, o emblema do pós-
estruturalismo.
O movimento da demonstração das Mitológicas, com efeito, é o de uma conectividade
heterogenética generalizada, onde um mito de um povo transforma um ritual de um
segundo povo e uma técnica de um terceiro povo; onde a organização social de uns é a
pintura corporal dos outros (ou: como ir da cosmologia à cosmética sem deixar a
política); e onde a redondez geométrica da terra da mitologia é constantemente curto-
circuitada por sua radical porosidade geológica, graças à qual as transformações
parecem saltar entre pontos extremos do continente americano, surdindo aqui e ali como
afloramentos vulcânicos de um oceano subterrâneo de magma. Ação à distância.
Pierre Clastres disse que o estruturalismo era “uma sociologia sem sociedade”; se isso é
verdade — Clastres o dizia para criticá-lo —, então com as Mitológicas temos um
estruturalismo sem estrutura — e o digo para louvá-lo. Todo aquele que se dispuser a
fazer a travessia completa das Mitológicas constatará que a mitologia ameríndia
cartografada pela série não pertence à família das estruturas arborescentes, mas à das
redes rizomáticas: ela é uma gigantesca teia sem centro nem origem, um mega-
agenciamento coletivo e imemorial de enunciação disposto em um “hiper-espaço” (L.-S.
1967: 84) incessantemente atravessado por “fluxos semióticos, fluxos materiais e fluxos
sociais” (Deleuze & Guattari 1981: 33-34); uma teia ou rizoma percorrido por diversas
linhas de estruturação, mas que é, em sua multiplicidade interminável e sua radical
contingência histórica, irredutível a uma lei unificadora e irrepresentável por uma meta-
estrutura. Existem inúmeras estruturasnos mitos ameríndios, mas não há uma
estrutura do mito ameríndio — não há, note-se em particular, estruturas elementares da
mitologia.
A mitologia ameríndia, enfim, é uma multiplicidade aberta, uma “multiplicidade a n–1”,
para usarmos o conceito de Deleuze e Guattari, ou diríamos melhor a “M -1”, em
homenagem ao mito de referência, M1, o mito bororo que, como logo se constatava, era
apenas uma versãoinvertida e enfraquecida dos mitos jê que o seguiam (M7–12). O mito
“dereferência” é um mito qualquer, um mito “sem referências”, um m-1 — como todo
mito. Pois todo mito é uma versão de um outro mito, todo outro mito abre para um
terceiro e um quarto mitos, e os n-1 mitos da América indígena não exprimem uma
origem nem apontam um destino: não têm referência. (Discurso sobre as origens, o mito
é precisamente o que se furta a uma origem.) O “mito” da referência cede lugar ao
sentido do mito, ao mito como máquina de sentido: um instrumento para converter um
código em outro, projetar um problema sobre um problema análogo, fazer “circular a
referência” (como diria Bruno Latour), contra-efetuar anagramaticamente o sentido.
Recorde-se a passagem de O homem nu onde o autor generaliza as observações de
Saussure sobre o anagrama, sugerindo que ali nos aproximamos da matriz de todo
sentido, e que o mecanismo do trocadilho (calembour) constitui o “fundamento de toda
semiologia” (L.-S. 1971: 581). Eis aí uma tese que leva a noção de “jogo de
linguagem” realmente às últimas consequências.
A primeira aproximação ao conceito de mito ensaiada por Lévi-Strauss destacava sua
tradutibilidade integral: “Poderíamos definir o mito como aquele modo do discurso em
que o valor da fórmula traduttore, traditoretende praticamente a zero” (L.-S.
1955/1958: 232). Em O homem nu, a definição é estendida do plano semântico ao plano
pragmático; aprendemos então que mais que simplesmente traduzível, o mito é
eminentemente tradução:
Todo mito é por natureza uma tradução (…) ele se situa, não dentro de uma língua
e dentro de uma cultura ou sub-cultura, mas no ponto de articulação destas com outras
línguas e outras culturas. O mito não é jamais de sua própria língua, ele é uma
perspectiva sobre uma língua outra… (id. 1971: 576-77)
Essa definição perspectivista do mito proposta em O homem nu torna-o contíguo à
antropologia ela própria, saber que se constitui, em uma definição crucial que Lévi-
Strauss avançava já em 1954, como a “ciência social do observado” (1954/1958: 397).
Ora, se a antropologia é a “ciência social do observado”, as Mitológicas, como
sabemos, são “o mito da mitologia” (L.-S. 1964: 20). Essas duas definições são
convergentes. O discurso da mitologia estrutural estabelece as condições de toda
antropologia possível. Toda antropologia é uma transformação das antropologias que
são seu objeto (o objeto de toda antropologia só pode ser uma outra antropologia, a
antropologia do outro), situadastodas, desde sempre, no “ponto de articulação de uma
cultura com outras culturas”. O que permite passar de um mito a outro, e de uma cultura
a outra, é de mesma natureza que o que permite passar dos mitos à ciência dos mitos, e
da cultura à ciência da cultura. Transversalidade e simetria. Abre-se assim uma conexão
inesperada entre o projeto das Mitológicas e o princípio (pós-estruturalista) de simetria
generalizada de Bruno Latour e Isabelle Stengers: a mitologia estrutural é uma
experiência de simetrização antropológica, uma operação de desenglobamento
hierárquico das diferenças entre todos os termos analíticos. (O chamado pós-
estruturalismo é essencialmente a afirmação de uma ontologia das multiplicidades
planas,  onde as noções de continuidade e de homogeneidade nada mais têm em comum.
Uma ontologia da transversalidade, isto é, da continuidade entre heterogêneos.)
Desenglobamento hierárquico, ou seja: a diferença entre a “cultura” (ou “teoria”) do
antropólogo e a “cultura” (ou “prática”) do nativo não é considerada como possuindo
nenhum privilégio ontológico ou epistemológico sobre as diferenças “internas” a cada
uma dessas culturas; ela não é mais nem menos condicionante que as diferenças de
ambos os lados da fronteira discursiva.
E se o mito é tradução, então ele não é, sobretudo, representação, pois uma tradução não
é uma representação mas uma transformação. “Uma máscara não é aquilo que ela
representa, mas sobretudo aquilo que ela transforma, isto é, que ela
escolheu não representar” (L.-S. 1979: 144). O que dá ao meta-objeto multidimensional
que são as Mitológicas um caráter propriamente holográfico, justo como o rizoma
mítico com o qual ele faz rizoma, e que contém em cada mito uma imagem reduzida do
sistema mítico panamericano (o “mito único”). “É justamente porque a estrutura é
rigorosamente definida como um sistema de transformações, que ela não pode ser
representada sem fazer de sua representação uma parte de si mesma” (Maniglier 2000:
sem paginação definida). Isso nos encaminha para uma reconcepção de estrutura como
“transformalista”, ou melhor, transformacionalista — em outras palavras, nem
formalista, no sentido proppiano, nem transformacional, no sentido chomskyano:
Uma estrutura está sempre entre dois: entre duas variantes, entre duas sequências de um
mesmo mito… A unidade da estrutura não é a de uma forma que se repetiria
identicamente em uma e outra variante, mas a de uma matriz que permite mostrar em
que uma variante é uma transformação real da outra… A estrutura é rigorosamente
coextensiva a suas atualizações. Eis porque Lévi-Strauss insiste na diferenca entre o
estruturalismo e o formalismo, que se tende obstinadamente a negligenciar (Maniglier
op.cit)[5]
VI
Se não sem estrutura, então, pelo menos um estruturalismo com uma outra noção
de estrutura que a de As estruturas elementares. Ou talvez se deva dizer que há dois
usos diferentes do conceito de estrutura na obra de Lévi-Strauss: como princípio
transcendental de unificação, lei formal de invariância, e como operador de divergência,
modulador de variação contínua (variação de variação). A estrutura como combinatória
gramatical fechada e como multiplicidade diferencial aberta. Na verdade, ambas sempre
estiveram esteve presentes na obra de Lévi-Strauss, mas seu peso relativo muda ao
longo do tempo.
Voltemos então um passo atrás, ou antes, combinemos esse passo diacrônico com a
descontinuidade sincrônica a que aludimos mais acima. A obra de Lévi-Strauss, desde
muito cedo, contém um subtexto ou contratexto pós-estruturalista. A suposta
parcialidade do estruturalismo por oposições simétricas, equipolentes, duais, discretas e
reversíveis (como as do esquema totêmico clássico), é desmentida não só pela ainda
hoje surpreendente crítica ao conceito de organização dualista do artigo de 1956 (“As
organizações dualistas existem?”, L.-S. 1956/1958) — que postula o ternarismo, a
assimetria e a continuidade como anteriores ao binarismo, à simetria e à
descontinuidade —  como, mais ainda, pela igualmente antiga e ainda mais
surpreendente “fórmula canônica do mito” (L.S-S. 1955/1958), que pode ser tudo,
menos simétrica e reversível. Além disso, é muito digno de nota que Lévi-Strauss
encerre as duas fases das Mitológicas (o “Final” do Homem nu e a História de Lince) 
com advertências sobre os limites do vocabulário da lógica extensional para dar conta
das transformações que ocorrem em/entre os mitos.
Sobretudo, decerto não é por acaso que os dois últimos livros mitológicos de Lévi-
Strauss sejam construídos como desenvolvimentos precisamente dessas duas figuras do
dualismo instável. A oleira ciumenta (1985) é uma ilustração sistemática da fórmula
canônica, ao passo que a História de Lince  concentra-se na instabilidade dinâmica — o
“desequilíbrio perpétuo”[6]— das dualidades cosmo-sociológicas ameríndias. Isso me
faz supor que estamos diante de uma mesma estrutura virtual, da qual a fórmula
canônica, que pré-desconstrói o analogismo totêmico do tipo A : B :: C : D, e o
dualismo dinâmico, que corrói a paridade estática das oposições binárias, seriam apenas
duas atualizações privilegiadas; haveria talvez outras.
Com a fórmula canônica, em lugar de uma oposição simples entre metáfora totêmica e
metonímia sacrificial, instalamo-nos imediatamente na equivalência entre uma relação
metafórica e uma relação metonímica, a “torção” que faz passar de uma metáfora a uma
metonímia ou vice-versa (L.-S. 1966: 211): a famosa “dupla torção”, a “torção
supranumerária” que na verdade é a transformação estrutural pura e simples (ou antes,
híbrida e complexa): a “relação desequilibrada …. [que é] uma propriedade inerente às
transformações míticas” (L.S. 1984: 13). A conversão asimétrica entre o sentido literal e
o figurado, o termo e a função, o continente e o conteúdo, o contínuo e o descontínuo, o
sistema e seu exterior — estes são os verdadeiros temas estruturalistas, que atravessam
todas as análises lévi-straussianas da mitologia ameríndia.
Com a História de Lince, o desequilíbrio ou a abertura intensiva que é uma propriedade
constitutiva da estrutura — dessa segunda noção de estrutura — atinge o que se poderia
chamar de maneira jocosamente hegeliana de “consciência de si”. Já observamos que
as Mitológicasconcedem muita importância, retórica inclusive, ao imperativo de
fechamento. Mas esta import_ância é drasticamente relativizada por diversas passagens
da obra que, em sentido inverso, sublinham a interminabilidade da análise, a marcha em
espiral (antes que em círculo) das transformações, a assimetria das oposições, a
pluralidade dos níveis, as dimensões suplementares, a multiplicidade e diversidade dos
eixos necessários para se ordenar os mitos…  A palavra-chave aqui
édesequilíbrio, obsessivamente repetida nas Mitológicas. Alguns poucos exemplos:  “o
desequilíbrio é sempre dado…” (L.-S. 1966: 222); “longe de estar isolada das outras,
cada estrutura contém um desequilíbrio que não pode ser compensado sem apelar para
um termo tomado de empréstimo de uma estrutura adjacente…” (id.1967: 294);
“mesmo quando a estrutura muda  ou se enriquece para superar um desequilíbrio, é
sempre ao preço de um novo desequilíbrio que se revela em outro plano… [...] … a
estrutura deve a uma inelutável disssimetria seu poder de engendrar o mito, o qual não é
nada mais que um esforço para corrigir ou dissimular essa dissimetria constitutiva” (id.:
406)
Esse desequilíbrio não é uma simples propriedade formal da mitologia, que responde
pela transformabilidade e tradutibilidade dos mitos, mas um elemento fundamental de
seu conteúdo. Os mitos pensam atravésdesse desequilíbrio — e o que eles pensam é
esse desequilíbrio ele próprio, a “disparidade” em que consiste “o ser do mundo”
(id.1971: 539). Os mitos contêm sua própria mitologia, ou teoria “imanente” (id.1964:
20), a teoria que afirma, segundo uma célebre passagem de O homem nu, uma
…assimetria primeira, que se manifesta diversamente segundo a perspectiva em que nos
colocamos para apreendê-la: entre o alto e o baixo, o céu e a terra, a terra firme e a água,
o próximo e o distante, a esquerda e a direira, o macho e a fêmea etc. Inerente ao real,
essa disparidade põe a especulação mítica em movimento; mas isso é assim porque ela
condiciona, antes mesmo do pensamento, a existência de todo objeto de pensamento (i.d
1971: 539).
Mas é apenas vinte anos depois, com História de Lince, que o mito acederá ao que se
poderia chamar seu momento propriamente especulativo, quando ele transforma o
desequilíbrio perpétuo decondição em tema:
Qual é, efetivamente, a inspiração profunda desses mitos? […] Eles representam a
organização progressiva do mundo sob a forma de uma série de bipartições; mas sem
que entre as partes resultantes em cada etapa apareça jamais uma verdadeira igualdade
[…] Deste desequilíbrio dinâmico depende o bom funcionamento do sistema que, sem
isso, estaria perpetuamente ameaçado de cair em um estado de inércia. O que
proclamam implicitamente esses mitos é que os pólos entre os quais se odernam os
fenômenos naturais e a vida social: céu e terra, alto e baixo, perto e longe, índios e não-
índios, concidadão e estrangeiros etc. jamais poderão ser gêmeos. O espirito se esforça
por emparelhá-los sem entretanto conseguir estabelecer entre eles uma paridade. Pois
são estes afastamentos diferenciais em cascata, tais como os concebe o pensamento
mítico, que põem em marcha a máquina do mundo.” (1991: 90-91).[7]
Os mitos, enfim, pensando-se entre si, se pensam enquanto tais, em um movimento
especulativo que, se ele “reflete” — isto é, se auto-transforma — corretamente, não
poderá escapar ao desequilíbrio sobre o qual reflete. A dualidade imperfeita em torno da
qual gira a última grande análise mitológica de Lévi-Strauss, a gemelaridade que é “a
chave de todo o sistema”, é a expressão acabada dessa assimetria auto-propulsiva. A
verdadeira dualidade que interessa o estruturalismo não é o combate dialético entre
Natureza e Cultura, mas a diferença intensiva e interminável entre os gêmeos desiguais
de História de Lince, que são a cifra do pensamento mítico. A cifra, em todos os
sentidos da palavra: a chave, o número e a senha. A cifra: a disparidade fundamental da
díade, a oposição como limite inferior da diferença, o dois como caso particular do
múltiplo.
VII
Aproximemo-nos de nossa conclusão. Patrice Maniglier observava, a respeito da
diferença entre as duas fases maiores do projeto estruturalista, que
Se o primeiro momento da obra de Lévi-Strauss parece se caracterizar por uma intensa
interrogação sobre o problema da passagem da natureza à cultura, e sobre a
descontinuidade entre essas duas ordens, … o segundo momento é não menos
intensamente caracterizado por uma denúncia obstinada, por parte de Lévi-Strauss, da
[tentativa de] constituição da humanidade como uma ordem à parte. (Maniglier 2000:
sem pág. def.).
Com efeito, considere-se o último parágrafo de As estruturas, onde o autor observa que,
em seus mitos sobre a Idade de Outro e o Além, “a humanidade sonha em capturar e
fixar aquele instante fugidio em que lhe foi permitido crer que podia trapacear com a lei
da troca, ganhando sem perder, desfrutando sem partilhar”, e que assim para ela a
felicidade completa, “eternamente negada ao homem social”, é aquela que consiste em
“viver entre si”. Compare-se essa constatação, finalmente tão freudiana, com um passo
bem mais tardio da obra de Lévi-Strauss, onde o antropólogo define o mito como sendo
“uma história do tempo em que os humanos e os animais não se distinguiam entre si”
(L.S. & Eribon 1988: 193), acrescentando que a humanidade jamais conseguiu se
resignar diante da falta de acesso comunicativo às outras espécies do planeta.
Reflitamos: a nostalgia de uma comunicação originária entre todas as espécies (a
continuidade interespecífica) não é exatamente a mesma coisa que aquela nostalgia da
vida “entre si” responsável pela fantasia do incesto póstumo (a descontinuidade intra-
específica). Muito ao contrário, diríamos: mudou a ênfase, e o sentido, daquilo que o
estruturalismo toma como sendo o contra-discurso antropológico, isto é, humano. Em
outras palavras, a segunda voz do discurso antropológico do estruturalismo começa a
soar mais forte.
A discordância ou tensão criativa entre os “dois estruturalismos” contidos na obra de
Lévi-Strauss é internalizada de modo especialmente complexo nas Mitológicas. Vimos
acima que Lévi-Strauss contrastava a álgebra do parentesco de As estruturas
elementares, que estaria inteiramente do lado do discreto, com a dialética mítica entre
contínuo e descontínuo. Essa diferença não é puramente formal. Pois não é apenas a
forma estética da mitologia ameríndia que se mostra um misto de contínuo e
descontínuo, mas seu conteúdo filosófico igualmente — e de resto, como poderia um
verdadeiro estruturalista separar forma de conteúdo?
Assim, é preciso concluir que as Mitológicas são um pouco mais que uma empresa
centrada no “estudo das representações míticas da passagem da natureza à cultura”, que
é como o autor descreve modestamente sua empresa em Paroles Données (L.-S. 1984).
Pois é à medida em que elas vão sendo escritas que seu autor começa, por seu lado, a
contestar a pertinência de um contraste radical entre Natureza e Cultura, como observa
Maniglier. Seria então um pouco absurdo imaginar que Lévi-Strauss transferisse para os
índios a insensatez que ia diagnosticando como a tara fatal do Ocidente. E com efeito,
as Mitológicas, longe de descreverem uma passagem clara e unívoca entre Natureza e
Cultura, obrigaram seu autor a cartografar um labirinto de caminhos tortuosos e
equívocos, vias transversas, becos estreitos, impasses obscuros, rios que correm nos
dois sentidos ao mesmo tempo, como aqueles evocados em A origem dos modos à
mesa… A passagem de mão única ente Natureza e Cultura não passa, em certo sentido,
da primeira metade do primeiro livro da tetralogia. Dali para frente, os setes livros da
série completa mostram-se fascinados pelas “mitologias da ambiguidade” (Do mel às
cinzas), pelas “mitologias das fluxões” (A origem dos modos à mesa), pelos percursos
regressivos e as marchas retrógradas da Cultura à Natureza, as zonas de compenetração
entre essas duas ordens, os pequenos intervalos, as periodicidades curtas, as repetições
rapsódicas, os modelos analógicos, as deformações contínuas, os desequilíbrios
perpétuos, os dualismos que se desdobram em semi-triadismos e explodem
inesperadamente em uma multiplicidade de eixos transversais de transformação… O
mel e a sedução sexual, o cromatismo e o veneno, a lua e a androginia, a algazarra e o
fedor, os eclipses e a garrafa de Klein, os tri_ângulos culinários que vistos de perto se
transformam em curvas de Koch, isto é, fractais infinitamente complexas… Dir-se-ia
que o conteúdo da mitologia ameríndia consiste em uma negação do próprio impulso
gerador do mito, na medida em que essa mitologia pensa ativamente, e contempla
nostalgicamente, um contínuo cuja negação é, no entender de Lévi-Strauss, a condição
fundamental do pensamento. Se a mitologia ameríndia possui, como afirma várias vezes
Lévi-Strauss, um direito e um avesso, um sentido progressivo e outro regressivo, é
também porque estes são os dois sentidos ou direções do discurso estruturalista ele
próprio (ou vice-versa). A polêmica distinção entre mito e ritual do “Final” de O
homem nu revela-se, no final das contas, como tendo sido recursivamente interiorizada:
o grande mito tupi de História de Lince descreve um movimento idêntico ao que define
a essência de todo rito (rito, não mito, note-se bem), o cascatear de oposições de escopo
decrescente, sua convergência assintótica em um esforço “desesperado” para captar a
assimetria última do real. Como se o único mito que funcionasse realmente como um
mito lévi-straussiano fosse o “mito da mitologia”, isto é, as Mitológicas elas mesmas.
Ou não; ele tampouco. Esse é certamente um problema a ser retomado.
Chamo vossa atenção, aqui, para um parágrafo situado já no apagar das luzes de  O
homem nu, na página 448 do original. A propósito de um mito norte-americano sobre a
conquista do fogo celeste, que envolve o uso de uma escada de flechas que se parte e
rompe a comunicação entre o céu e a terra, o autor observa — o mesmo autor,
recordemos, que começava O cru e o cozido com um elogio do discreto, do
enriquecimento lógico efetuado pela redução dos contínuos primordiais — agora, repito,
ele conclui:
Não se deve esquecer que esses atos não-reversíveis de mediação acarretam pesadas
contrapartidas: empobrecimento quantitativo da ordem natural — na duração, pelo
termo exíguo atribuído à vida humana; no espaço, pela diminuição do número de
espécies animais após sua desastrosa incursão celeste — e também empobrecimento
qualitativo, visto que, por ter conquistado o fogo, o Picapau perde a maior parte de sua
veste de plumas rubras (M729), e que se, em troca, o Melro adquire um peitoral
vermelho, é sob a forma de uma lesão anatômica subsequente ao seu fracasso no
decorrer da mesma missão. Seja por destruição de uma harmonia primitiva, seja pela
introdução de afastamentos diferenciais que a alteram, o acesso da humanidade à cultura
se acompanha, no plano da natureza, de uma espécie de degradação que a faz passar do
contínuo ao discreto.
Esse é um daqueles trechos meio perdidos na selva das Mitológicas que percebemos
subitamente cruciais, quando a ambiguidade entre os dois discursos do estruturalismo,
aquele da hominização triunfante de As estruturas elementares e aquele da denúncia da
auto-separação da humanidade é “interiorizada” analiticamente e posta na conta de uma
reflexão imanente ao mito: são os mitos que contam as duas histórias, e a marcha
regressiva não é tão negativa assim, ou pelo menos não mais apenas negativa: a gênese
da cultura é degenerativa? E nesse caso, a marcha regressiva é regenerativa? Impossível,
entretanto? Imaginária, simplesmente?  Ou pior? Pois há momentos em que a nostalgia
do contínuo aparece para Lévi-Strauss como sintoma de uma doença real provocada
pela proliferação descontrolada do descontínuo, dir-se-ia, e não apenas como mera
fantasia ou liberdade imaginária. O aquecimento global da história, o fim das histórias
frias, é o fim da Natureza.[8]
VIII
A distância real que separa as duas grandes fases da obra de Lévi-Strauss é um
movimento crucial realizado nas Mitológicas: a “amerindianização do
estruturalismo”. As Mitológicas são um real tratado de sociologia indígena, no sentido
autoral da palavra. Sociologiados índios, feita pelos índios: “a ciência social do
observado”. E é neste sentido que elas completam o trabalho de dissolução da
sociologia cujos primeiros sinais P. Maniglier via em As estruturas elementares. É
claro, asMitológicas são antes de mais nada uma análise de mitos feita por Lévi-Strauss,
com uma pretensão de tipo psicológico-cognitivo. A proposta do autor é examinar o
funcionamento da imaginação mítica enquanto uma faculdade do espírito humano. Não
obstante, além disso ou, talvez, em lugar disso, as Mitológicas constituem também um
estudo de etno-sociologia, isto é, de anti-sociologia. Existe ali uma imagem
do sociusinscrita nesse discurso mitológico; essa imagem tem pouco em comum com
nossas próprias imagens, as metáforas milenares de nossa própria tradição. É
interessante notar que nos mitos analisados na série, fala-se muito pouco naquilo que a
antropologia clássica entende por ‘sociologia”. Os mitos pouco dizem sobre clãs,
direitos, poder político, estruturas de autoridade… Eles falam de sangue, mel, tabaco,
podridão, fantasma, porcos, canibalismo, cores dos pássaros, pênis removíveis, ânus
personificados… Em suma, os mitos falam de um universo essencialmente material,
corporal, sensível e sensorial, e muito pouco de um universo jurídico e normativo, que é
como nós estamos acostumados a conceber o discurso sociológico.
As Mitológicasdemonstram que a sociologia indígena é uma sociologia dos corpos e
dos fluxos materiais. Na verdade, esses livros são como uma luta cerrada entre a
unidade do espírito humano e a multiplicidade do corpo indígena. O espírito começa
com nítida vantagem, na Abertura de O cru e o cozido; mas o corpo vai
progressivamente dominando a luta, até ganhá-la inequivocamente, ainda que por
pontos — por um pequenoclinamen que se acentua nitidamente nos rounds finais,
com História de Lince.
A idéia de uma amerindianização do estruturalismo é, a meu ver, essencial para que a
retomada da herança intelectual de Lévi-Strauss se faça sob o modo de um avanço
epistemológico, isto é, político, não de um retorno nostálgico a um pretenso rigor
cientifico que teria sido abandonado pela antropologia pós-moderna. Devemos poder ser
capazes de tirar todas as consequências da idéia de que o estruturalismo lévi-
straussiano, pensamento autenticamente especulativo ou auto-temático, é uma
transformação estrutural do pensamento ameríndio; ele é a resultante da inflexão que
este último pensamento recebe ao ser filtrado por problemas e conceitos característicos
da logopoiesis ocidental (o mesmo e o outro, o contínuo e o discreto, o sensível e o
inteligível, a natureza e a cultura…), segundo um movimento de “equivocação
controlada”, em equilíbrio instável, sempre ameaçado fecundamente pela traição e pela
corrupção. Entendo que é tão pouco avisado separar a antropologia de Lévi-Strauss de
suas condições de constituição no contato com a linguística de Saussure, ou com a
morfologia de D’Arcy Thompson, quanto o seria separá-la da experiência formativa do
autor, no campo e nas bibliotecas, junto aos povos ameríndios. Os “alicerces ameríndios
do estruturalismo”, para falarmos como A.-C. Taylor (2004: 97), não podem ser
ignorados sem que percamos com isso uma dimensão vital de compreensão da obra
inteira de Lévi-Strauss. Isso não significa de modo algum que a validade dos problemas
e conceitos propostos por esse antropólogo se restrinja a uma “área cultural”, por vasta
que seja, mas justo o contrário: a obra de Lévi-Strauss é o momento em que o
pensamento ameríndio faz seu lance de dados, émet son coup de dés, ultrapassando seu
próprio “contexto” e se mostrando capaz de dar a pensar a outrem, isto é, a todo aquele
que, persa ou francês, se disponha a pensar — sem mais.
Esta é a lição maior do mestre: tornarmo-nos capazes de ouvir outras lições, as lições do
outro, praticar aquela “abertura ao Outro” que, por uma surpreendente reviravolta, a
antropologia descobre ser a atitude que caracteriza esses outros que ela estuda muito
mais que nós mesmos, esses outros que antes ela se comprazia em imaginar encerrados
em seu intemporal casulo etnocêntrico. A mensagem final deHistória de Lince é assim
aquela, perturbadora, de que o outro dos outros também é outro. E a conclusão mais
geral a tirar é que a antropologia não dispõe de outra posição possível que a do
estabelecimento de uma coplanaridade de princípio com o pensamento selvagem, o
traçar de um plano de imanência comum a seu objeto. Ao definir as Mitológicas como o
“mito da mitologia” e o conhecimento antropológico como uma transformação da praxis
indígena, a antropologia lévi-straussiana projeta uma “”filosofia por vir”” marcada
positivamente pelo selo da interminabilidade e da virtualidade: o Anti-Narciso.
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[1] A inexistência de uma meta-estrutura é assinalada desde a “Introdução à obra de


Marcel Mauss” (1950) e de “A noção de estrutura em etnologia” (1958). Sobre a
indeterminação de princípio dos eixos semânticos de um sistema mítico, cf. a máxima
de O pensamento selvagem de que “o princípio de uma classificação jamais se postula”.
[2]“Deve haver em algum lugar uma passagem decisiva que Mauss não franqueou…“
(L.-S. 1950: xxxvii).
[3] Recordemos que o contrário do “pensamento selvagem” é o pensamento
“domesticado em vista de obter um rendimento” (L.-S. 1962: 289).
[4] A expressão foi aplicada por Jacques Donzelot (1977) ao O Anti-Édipo(Deleuze &
Guattari 1972), esse manifesto pós-estruturalista.
[5] Eis porque também a busca de uma “estrutura do mito” enquanto objeto
sintagmático fechado é um perfeito contra-senso. Como ressalta dessa observação de
Maniglier, e ainda mais enfaticamente da demonstração de Mauro Almeida em artigo já
citado, a transformação estrutural por excelência, a fórmula canônica do mito, não
permite definir a “estrutura interna” de um mito — pois não existe tal coisa. Um mito
não se distingue de suas versões, a composição “interna” de uma narrativa é de mesma
natureza que suas transformações “externas”. O que se passa dentro de um mito é o que
permite passar de um mito a um outro. Todo mito é “em [forma de] garrafa de Klein”
(L.-S. 1985: 209-ss).
[6] A expressão “desequilíbrio perpétuo” faz sua primeira aparição emAs estruturas
elementares, para descrever o casamento avuncular dos Tupi, povo cuja mitologia é,
talvez não por acaso, a referência principal para o tema do desequilibrio perpétuo
em História de Lince.
[7] A palavra final deste trecho, no original, é “univers” — mas “mundo” vai aqui como
homenagem ao máximo poema de Carlos Drummond de Andrade.
[8] Esta passagem ecoa a “moral dos mitos” do final de A origem dos modos à mesa,
que ecoa tantas outras passagens, como a do artigo em homenagem a Rousseau. Cito
aqui A origem, p. 422 do original::
Neste século em que o homem teima em destruir inumeráveis formas de vida, depois de
tantas sociedades cuja riqueza e diversidade constituíam desde tempos imemoriais seu
maior patrimônio, nunca, com certeza, foi mais necessário dizer, como o fazem os
mitos, que um humanismo bem ordenado não começa por si mesmo. Coloca o mundo
antes da vida, a vida antes do homem, o respeito pelos outros seres antes do amor-
próprio. E que mesmo uma estadia de um ou dois milhões de anos nesta terra — já que
de todo modo há um dia de acabar — não pode servir de desculpa para uma espécie
qualquer, mesmo a nossa, dela se apropriar como coisa e se comportar sem pudor ou
moderação.

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