Você está na página 1de 33

o mercado e o mercado interno

no brasil: conceito e história

J o ã o Antonio de Paula
Professor do C E D E P L A R / F A C E / U F M G

RESUMO ABSTRACT

Este texto busca discutir três questões básicas: This article discusses three basic problems:
1. a natureza e o conceito de mercado no 1. the nature and use of c o n c e p t of the
âmbito das ciências sociais; 2. a centralidade market in the social sciences; 2. the centrality
do conceito de mercado interno na gênese of the concept of internai market, as for-
e na dinâmica do capitalismo, tal c o m o foi mulated by M a r x and a certain Marxist
formulado por Marx e certa tradição m a r - tradition for explaining the genesis and the
xista; 3. os traços essenciais do processo de dynamics of capitalism; 3. the essential fea-
constituição do mercado interno capitalista tures of the process of constitution of the
no Brasil. capitalist internal market in Brazil.
P a l a v r a s - c h a v e : mercado interno, capita- K e y w o r d s : internal market, capitalism,
lismo, Brasil. Brazil.

"Quando se julga que as noções econômicas nasceram das necessidades de


ordem material a serem atendidas, e que os termos que traduzem essas noções só
podem ter um sentido material, incorre-se num grave erro.Tudo o que se relaciona
com noções econômicas está ligado a representações muito amplas, que colocam
em jogo o conjunto das relações humanas ou das relações com as divindades:
relações complexas, difíceis, que sempre envolvem as duas partes."
Émile Benueniste

A advertência do g r a n d e lingüista na epígrafe acima é p a r t i c u l a r m e n t e


p e r t i n e n t e s o b r e t u d o para palavras, q u e , t e n d o largo e a n t i g o u s o , e t e n -
do atravessado diversas épocas históricas, a c a b a m p o r i n d u z i r a q u e se
as vejam c o m o p o d e n d o designar f e n ô m e n o s diversos, às vezes radical-
m e n t e distintos, a partir de um signo ú n i c o consagrado p e l o uso. Este
é o c a s o d a p a l a v r a mercado. D e o r i g e m l a t i n a , a p a l a v r a n ã o e x i s t i a n o
g r e g o clássico, q u e t a m b é m n ã o s e o c u p o u e m c r i a r a m a t r i z d a p a l a v r a

história econômica & história de empresas V.1 (2002), 7-39 I 7


trabalho. A a u s ê n c i a de palavras g r e g a s p a r a d e s i g n a r o m e r c a d o e o t r a -
b a l h o , s e n ã o d e v e ser a b s o l u t i z a d a n o s e n t i d o d e v e r n i s t o a a u s ê n c i a ,
n a G r é c i a a n t i g a , das r e a l i d a d e s q u e a q u e l a s palavras d e s i g n a m , d e v e ser
c o n s i d e r a d a expressiva c o m o m e d i d a da rarefação da vida e c o n ô m i c a
n a G r é c i a d a q u e l e t e m p o . E s t a m e s m a G r é c i a clássica r e s e r v a r i a p a r a a
e c o n o m i a u m l u g a r s u b o r d i n a d o e m sua h i e r a r q u i a d e práticas e saberes.
Para Aristóteles, a e c o n o m i a só tinha l e g i t i m i d a d e q u a n d o s u b m e t i d a a
preceitos éticos, q u a n d o subordinada ao b e m c o m u m . D a í q u e as relações
e c o n ô m i c a s , as t r o c a s , d e v e s s e m satisfazer aos p r i n c í p i o s da justiça distri-
butiva. T u d o isto, n a v e r d a d e , v e m r e a f i r m a r a h i s t o r i c i d a d e d a E c o n o -
m i a e de s e u v o c a b u l á r i o , a q u a l d e v e r i a refrear g e n e r a l i z a ç õ e s i n d e v i d a s ,
que p o d e m levar a anacronismos.
D e s d e s u a o r i g e m , a p a l a v r a mercado r e m e t e aos s e n t i d o s c o r r e n t e s
de c o m é r c i o , negócio,feira, praça de comércio, reunião de comerciantes.
P r e s e n t e n a l í n g u a p o r t u g u e s a d e s d e o s é c u l o X I I I , essa p a l a v r a t e r á , até
o s é c u l o X I X , u m s e n t i d o f o r t e m e n t e m a r c a d o p e l a d i m e n s ã o espacial.
É c o m o l o c a l , feira, p r a ç a , l u g a r o n d e s e v e n d e m v í v e r e s q u e a p a l a v r a
está r e g i s t r a d a n a q u i n t a e d i ç ã o d o Dicionário d e M o r a e s Silva, d e 1 8 4 4 .
T e r i a m e s t a d o a u s e n t e s , até a q u e l a d a t a , c e r t o s s e n t i d o s q u e , c o r r i q u e i -
ros h o j e , r e m e t e m à sua d i m e n s ã o a b s t r a t a , v i r t u a l , e n ã o se r e f e r e n c i a m
a espaços específicos da realidade múltipla do m e r c a d o no m u n d o c o n -
temporâneo.
Por o u t r o lado, o texto de Benveniste p e r m i t e que se r e c o n h e ç a m
o s d i v e r s o s c o n t e ú d o s q u e a s palavras v ã o a s s u m i n d o e m c o n f o r m i d a d e
c o m o s d i v e r s o s c a m p o s e m q u e são a p r o p r i a d a s . N o caso d a p a l a v r a
mercado, h á p e l o m e n o s d o i s g r a n d e s s e n t i d o s q u e s e l h e a t r i b u e m . H á o
uso q u e dela fazem os economistas e, de outra parte, a apropriação da
palavra d e c o r r e n t e da prática discursiva e da investigação de a n t r o p ó l o g o s
e historiadores. C o m o diz Walter N e a l e , " p a r a o e c o n o m i s t a o m e r c a d o
é u m a i n s t i t u i ç ã o c o m leis p r ó p r i a s s o b r e a s quais s e c o n s t i t u i u u m a
sólida e s t r u t u r a analítica; p a r a o h i s t o r i a d o r e o a n t r o p ó l o g o , o m e r c a d o
é um lugar de reunião para a troca de p r o d u t o s , lugar q u e n ã o t e m
p o r q u e ser a base da teoria e c o n ô m i c a q u e os economistas c r i a r a m "
(Neale, 1976:405).
É neste sentido q u e Karl Polányi, e t a m b é m Mareei Mauss, além de
u m a s é r i e d e o u t r o s e s t u d i o s o s , i r ã o i d e n t i f i c a r diversas r e l a ç õ e s d e t r o -
ca, q u e t e n d o p a p é i s f u n d a m e n t a i s n a c i m e n t a ç ã o d e d e t e r m i n a d a s s o -
ciedades, realizam-se a partir de motivações q u e nada t ê m em c o m u m
c o m o q u e presidiria a a p a r e n t e m e n t e única m o t i v a ç ã o para a troca,
q u e seria a busca do interesse individual a partir da regra impessoal da

8 I João Antonio de Paula


c o n c o r r ê n c i a , e q u e d e f i n i r i a , p o r m e i o d e p r e ç o s , a e q u i v a l ê n c i a das
trocas. Polányi, M a l i n o w s k y , Mauss, Lévi-Strauss, C h a y a n o v , P i e r r e
C l a s t r e s , M a r s h a l l S a h l i n s , L a w r e n c e K r a d e r , E r i c Wolf, e n t r e o u t r o s ,
m o s t r a r a m a e x i s t ê n c i a d e diversas m o t i v a ç õ e s n ã o - m e r c a n t i s d a t r o c a :
reciprocidade, dádiva, parentesco, redistribuição, v i z i n h a n ç a etc. Esta é
a b a s e da crítica de P o l á n y i q u a n t o à d i s s e m i n a d a p r e s e n ç a , e n t r e os
economistas, de u m a "obsoleta mentalidade mercantil" (Polányi, 1978),
a q u a l c o n s i s t e na d i f i c u l d a d e de se e n t e n d e r q u e o m e r c a d o e a e c o n o -
mia p o d e m n ã o ter em todas as sociedades a centralidade q u e p o s s u e m
n a s o c i e d a d e capitalista; e q u e , e m c e r t a s s o c i e d a d e s , a e c o n o m i a p o d e
estar s o b c o n t r o l e , s u b o r d i n a d a a r e g r a s éticas, c u l t u r a i s , r e l i g i o s a s e p o -
líticas q u e v ã o a l é m d e t o d o c á l c u l o o u i n t e r e s s e i n d i v i d u a l .
A g r a n d e q u e s t ã o a q u i é s a b e r se a t r o c a é u b í q u a , se t e m a e s p e s s u r a
das l i m i t a ç õ e s h u m a n a s e n a t u r a i s , q u e o b r i g a m à d i v i s ã o d o t r a b a l h o ,
ou se n e m toda troca é mercantil e n e m t o d o local de troca configura
u m m e r c a d o . A l é m disso, n e m t o d o m e r c a d o é m e r c a d o capitalista.
D i s t i n g u i r estas q u e s t õ e s significa t a n t o c o n s i d e r a r a a p r o p r i a ç ã o q u e
a h i s t ó r i a e a a n t r o p o l o g i a f a z e m da p a l a v r a mercado, c o m o d e s t a c a r o
e s p e c í f i c o desta p a l a v r a , tal c o m o é u s a d a p e l o s e c o n o m i s t a s e p e l a
crítica da E c o n o m i a Política.
N e s t e a r t i g o vai se, n u m p r i m e i r o m o m e n t o , a p r e s e n t a r o c o n c e i t o
d e m e r c a d o . N u m s e g u n d o passo irá s e d i s c u t i r a i m p o r t â n c i a decisiva
d o m e r c a d o i n t e r n o n a g ê n e s e e d i n â m i c a das e c o n o m i a s capitalistas.
P o r ú l t i m o , a p a r t e final d o t e x t o d e v e r á c o n s i d e r a r a e s p e c i f i c i d a d e d o
p r o c e s s o d e c o n s t i t u i ç ã o d o m e r c a d o i n t e r n o n o Brasil.
No centro do a r g u m e n t o que se procura desenvolver aqui há u m a
tensão. De um lado, temos o r e c o n h e c i m e n t o da exigência definidora
do p r ó p r i o fazer historiográfico, q u e é a recusa do a n a c r o n i s m o . J o h a n
H u i z i n g a vai a p r e s e n t a r assim a q u e s t ã o : " A h i s t ó r i a s e d i s t i n g u e destas
o u t r a s f o r m a s d o e s p í r i t o " (filosofia, l i t e r a t u r a , d i r e i t o , c i ê n c i a s n a t u r a i s )
" e m q u e se p r o j e t a s o b r e o p a s s a d o e s o m e n t e s o b r e o passado. P r e t e n d e
c o m p r e e n d e r o m u n d o no passado e através dele." (Huizinga, 1980:92).
O u seja, a h i s t ó r i a l e g i t i m a - s e c o m o d i s c u r s o r i g o r o s o a p e n a s q u a n d o
é capaz de i l u m i n a r o passado a partir dos e l e m e n t o s q u e este m e s m o
passado c o n t é m . D a í o p e c a d o de se projetar para o passado conceitos,
mentalidades, v o c a b u l á r i o , realidades q u e n ã o estavam, e n e m p o d e r i a m
estar lá, p o r q u e são r e s u l t a d o s d o c o n t e m p o r â n e o . S e esta é e x i g ê n c i a
absoluta e i n c o n t o r n á v e l c o m o p r o c e d i m e n t o e perspectiva, admita-se
a força o p o s t a d e c o r r e n t e d a tese d e C r o c e , d e q u e s ó existe u m a h i s t ó r i a ,
a h i s t ó r i a c o n t e m p o r â n e a . Eis u m a t e n s ã o q u e t e m foro d e a p o r i a , e n t r e

O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história I9


buscar fugir do anacronismo, q u e é inaceitável na historiografia, e, ao
m e s m o , r e c o n h e c e r o inafastável d o c o m p r o m e t i m e n t o d e c o r r e n t e d e
n o s s a c o n d i ç ã o d e sujeitos c o n t e m p o r â n e o s — isto é , d e sujeitos q u e
n ã o p o d e m e v i t a r s e r e m o q u e são, e p r o j e t a r e m e m t u d o o q u e e s c o l h e m
v e r t a n t o o s e u t e m p o c o m o o s seus c o n d i c i o n a m e n t o s . S e isto n ã o n o s
d e s o n e r a d e b u s c a r e v i t a r o a n a c r o n i s m o , q u e seja a o m e n o s o r e c o n h e -
c i m e n t o d a e x i s t ê n c i a d e u m a t e n s ã o p e r m a n e n t e e desafiante n o c o r p o
da historiografia.

O Conceito de Mercado

No s e g u n d o t o m o de sua t r i l o g i a — Civilização Material, Economia e


Capitalismo — F e r n a n d B r a u d e l d i z q u e o s m e r c a d o s são a n t i g o s , e s -
tando presentes desde a Antigüidade, e q u e existiram em t o d o o m u n -
do — na Grécia e em R o m a , no Egito, no M é x i c o , na Europa e na
África. E, m a i s a i n d a , ele passa a d e f i n i r o m e r c a d o e a p r e s e n t a r suas
c a r a c t e r í s t i c a s : " é p r e c i s o falar d a e c o n o m i a d e m e r c a d o d e s d e q u e h á
flutuação e uníssono de preços entre mercados de u m a mesma zona."
(...) " D e s d e a a n t i g ü i d a d e , o s p r e ç o s f l u t u a r a m ; n o s é c u l o X I I I , f l u t u a m
j á c o n j u n t a m e n t e através d a E u r o p a . . . " ( B r a u d e l , 1 9 8 5 : 2 0 3 ) .
B r a u d e l q u e r afastar i n c o m p r e e n s õ e s , d i z e n d o q u e " s o c i ó l o g o s e e c o -
nomistas de o n t e m , antropólogos de hoje, habituaram-nos infelizmente
à i g n o r â n c i a q u a s e p e r f e i t a d a h i s t ó r i a " ( B r a u d e l , l o c . cit.). N e s s a tarefa
de fazer v a l e r o c o n h e c i m e n t o h i s t ó r i c o , B r a u d e l q u a s e n o s leva a p e n s a r
q u e o m e r c a d o é u m a realidade ahistórica. Ao v ê - l o em t o d o t e m p o e
l u g a r , p a r e c e h a v e r q u a s e u m a p a g a m e n t o das e s p e c i f i c i d a d e s h i s t ó r i c a s
do m e r c a d o , c o n f u n d i d o e i g u a l a d o a t o d a e q u a l q u e r t r o c a m a t e r i a l
expressa m e d i a n t e preços. M a s , e m t e m p o , B r a u d e l n o s l e m b r a q u e , " d e
t o d o s estes m e r c a d o s difusos, o m a i s i m p o r t a n t e s e g u n d o a l ó g i c a d e s t e
l i v r o , é o m e r c a d o d e t r a b a l h o " ( B r a u d e l , 1 9 8 5 : 4 0 ) . A o a f i r m a r isto,
B r a u d e l se abre para r e c o n h e c e r algo q u e é decisivo para a c o m p r e e n s ã o
d o m e r c a d o c o m o r e a l i d a d e h i s t ó r i c a , e d o m e r c a d o capitalista e m p a r -
t i c u l a r — a radical t r a n s f o r m a ç ã o h i s t ó r i c a q u e ele significa, ao i r r o m p e r
c o m o violência e coerção.
E l l e n M e i k s i n s W o o d , a p a r t i r das idéias d e R o b e r t B r e n n e r , fez u m
b a l a n ç o das teses clássicas s o b r e a g ê n e s e do c a p i t a l i s m o nas quais a p o n t a
u m a problemática continuidade — c o m poucas exceções, em que se
destaca Polányi — entre autores, c o m o D o b b e Sweezy, p o r e x e m p l o ,
q u e adeptos de perspectivas divergentes sobre o assunto, t ê m a unificá-
los u m a m e s m a a d e s ã o a c e r t o modelo — q u e ela vai c h a m a r de mercantil

10 I João Antonio de Paula


— cujo sentido básico é ver em t u d o q u e antecedeu ao capitalismo
u m a l o n g a p r e p a r a ç ã o p a r a a sua e m e r g ê n c i a . P e r s p e c t i v a c l a r a m e n t e
a h i s t ó r i c a e f o r t e m e n t e a n a c r ô n i c a , este modelo mercantil e n t e n d e r i a a
história européia c o m o u m a superação dos obstáculos q u e ao l o n g o
do t e m p o i m p e d i r a m a plena vigência do capitalismo. O essencial da
tese d e E l l e n W o o d é a f i r m a r a s d i f e r e n ç a s decisivas q u e e x i s t e m e n t r e
a a u f e r i ç ã o de l u c r o c o m e r c i a l e a a c u m u l a ç ã o de capital; o m e r c a d o
c o m o o p o r t u n i d a d e e o m e r c a d o c o m o imperativo e c o e r ç ã o ; entre os
processos transitórios de d e s e n v o l v i m e n t o t e c n o l ó g i c o e o i m p u l s o
capitalista e s p e c í f i c o p a r a a u m e n t a r a p r o d u t i v i d a d e d o t r a b a l h o . O u
ainda, mais especificamente, afirmar q u e

" o m e r c a d o capitalista, c o m o f o r m a social e s p e c í f i c a , p e r d e - s e q u a n d o


a t r a n s i ç ã o das s o c i e d a d e s pré-capitalistas p a r a as s o c i e d a d e s capitalistas
é apresentada c o m o u m a extensão ou maturação mais ou m e n o s
n a t u r a l , a i n d a q u e m u i t a s v e z e s d i s t o r c i d a , d e f o r m a s sociais j á e x i s -
tentes: c o m o u m a transformação mais quantitativa q u e qualitativa."
(Wood, 2001:17).

P a r a E l l e n W o o d , a p o i a d a e m R o b e r t B r e n n e r , e afinal a p a r t i r d e
M a r x , o q u e c a r a c t e r i z a o c a p i t a l i s m o é a i m p o s i ç ã o do m e r c a d o , n ã o
c o m o o p o r t u n i d a d e o u escolha, mas c o m o c o m p u l s ã o — n o sentido
de que

" a v i d a m a t e r i a l e a r e p r o d u ç ã o n o c a p i t a l i s m o são u n i v e r s a l m e n t e
medidas pelo mercado, de forma que, de um m o d o ou de outro,
t o d o s o s i n d i v í d u o s t ê m q u e e n t r a r nas r e l a ç õ e s d o m e r c a d o p a r a t e r
acesso aos m e i o s d e s u b s i s t ê n c i a ; e s e g u n d o , o s d i t a m e s d o m e r c a d o
capitalista — seus i m p e r a t i v o s d e c o m p e t i ç ã o , a c u m u l a ç ã o , m a x i -
mização de lucros e crescente p r o d u t i v i d a d e do trabalho — r e g e m
n ã o a p e n a s t o d a s as t r a n s a ç õ e s e c o n ô m i c a s , m a s as r e l a ç õ e s sociais
e m geral." ( W o o d , 2 0 0 1 : 1 6 ) .

P a r a M a r x , c o m o p a r a P o l á n y i , a g ê n e s e d o m e r c a d o capitalista n ã o
é s i m p l e s g e n e r a l i z a ç ã o — e x t e n s ã o das t r o c a s , d o c o m é r c i o , d a m o -
n e t i z a ç ã o . A i m p o s i ç ã o d o m e r c a d o capitalista é u m a r e v o l u ç ã o social.
De acordo c o m Marx:

"A expropriação e a expulsão de u m a parte da p o p u l a ç ã o rural


l i b e r a t r a b a l h a d o r e s , seus m e i o s d e s u b s i s t ê n c i a e seus m e i o s d e

O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história I 11


t r a b a l h o , e m b e n e f í c i o d o capitalista i n d u s t r i a l ; a l é m disso c r i a o
m e r c a d o i n t e r n o . N a realidade, o s a c o n t e c i m e n t o s q u e transformam
o s p e q u e n o s l a v r a d o r e s e m assalariados e seus m e i o s d e s u b s i s t ê n c i a
e m e i o s d e t r a b a l h o e m e l e m e n t o s m a t e r i a i s d o capital, c r i a m a o
m e s m o t e m p o p a r a este o m e r c a d o i n t e r n o . " ( M a r x , 1 9 6 8 : 1 , 8 6 5 ) .

T r a t a - s e , p o i s , d e v e r n a c o n s t i t u i ç ã o d o m e r c a d o capitalista p r o c e s s o
q u a l i t a t i v a m e n t e d i s t i n t o d a e x i s t ê n c i a d e relações m e r c a n t i s , d e p r o d u ç ã o
e apropriação de lucros m e d i a n t e o m o n o p ó l i o do c o m é r c i o exercido
p e l o s d e t e n t o r e s das f o r m a s p r e t é r i t a s d o c a p i t a l , a n t e r i o r e s a o d o m í n i o
do c a p i t a l i n d u s t r i a l , c o m o o são o c a p i t a l u s u r á r i o e o capital m e r c a n t i l .
(Marx, 1968:1, 867).
P a r a c o n c l u i r , n e m o c o m é r c i o , n e m o d i n h e i r o , n e m o m e r c a d o são
i d ê n t i c o s a o s i s t e m a d e m e r c a d o , isto é , a o m e r c a d o a u t o - r e g u l a d o . O u ,
c o m o diz Walter Neale,

" o s m e r c a d o s a u t o - r e g u l a d o s são a e x c e ç ã o e n ã o a r e g r a e i n c l u s i v e
s ó a p a r e c e m n o s s é c u l o s X I X e X X " (...) " o s m e r c a d o s c r i a d o r e s d e
p r e ç o s (são) u m p r o d u t o h i s t ó r i c o e x c e p c i o n a l " (...) " d u r a n t e b o a
p a r t e d e sua t r a j e t ó r i a h i s t ó r i c a o h o m e m v i v e u c o m m e r c a d o s d e
p r e ç o s fixos, e talvez, c o m sistemas e c o n ô m i c o s q u e p o d e m ser m e l h o r
c o m p r e e n d i d o s em t e r m o s de instituições de reciprocidade e redis-
t r i b u i ç ã o cujas características essenciais se d e f i n e m à m a r g e m da t e o r i a
e c o n ô m i c a o r t o d o x a e c o m a ajuda de o u t r a s disciplinas mais familia-
rizadas c o m a s instituições alheias a o m e r c a d o . " ( N e a l e , 1 9 7 6 : 4 1 7 - 4 2 0 ) .

N o q u e i n t e r e s s a c e n t r a l m e n t e este t e x t o , t r a t a - s e d e b u s c a r e n t e n d e r
a r e l a t i v a m e n t e l o n g a t r a j e t ó r i a d o s m e r c a d o s n o Brasil (desde o i n í c i o
da c o l o n i z a ç ã o e a v i g ê n c i a do e s c a m b o até a m u l t i p l i c a ç ã o e c o m p l e -
xificação d o s m e r c a d o s , a p a r t i r d o final d o s é c u l o X V I I I ) c o m o p r o c e s s o
h i s t ó r i c o — isto é , c o m o p r o c e s s o d e v i v ê n c i a das d i f e r e n ç a s , d o q u e é
sempre singular e irrepetível, m e s m o q u a n d o expressando c o n t e ú d o s
u n i v e r s a i s . É este o m a t e r i a l de q u e é feita a h i s t ó r i a , o t e c i d o q u e se
t e c e a s i m e s m o p e l a i n t e r c o r r ê n c i a d a c o r l o c a l , pelas v a r i a d a s m a n e i r a s
c o m o as s o c i e d a d e s se a p r o p r i a m e a c l i m a t a m as r e a l i d a d e s gerais. A s s i m ,
a i m p l a n t a ç ã o d o m e r c a d o n o Brasil n ã o s e g u i u q u a l q u e r p a u t a p r é v i a ,
n ã o r e p r o d u z i u q u a l q u e r p a d r ã o a n t e r i o r , m a s foi u m p r o c e s s o ú n i c o .
D e n t r e a s suas s i n g u l a r i d a d e s c o n v é m referir t r ê s , q u e são m a r c a n t e s
e d e i x a r a m c o n s e q ü ê n c i a s : 1) a l o n g a p e r m a n ê n c i a no Brasil da frag-
m e n t a ç ã o do m e r c a d o i n t e r n o — apesar do e m b r i ã o de articulação do

12 I João Antonio de Paula


m e r c a d o i n t e r n o , representado pela e c o n o m i a mineira n o século X V I I I ,
a r e a l i d a d e d o m i n a n t e d o m e r c a d o i n t e r n o n o Brasil, foi, até a s e g u n d a
m e t a d e d o s é c u l o X X p e l o m e n o s , a sua falta d e i n t e g r a ç ã o , a e x i s t ê n c i a
d e u m efetivo a r q u i p é l a g o d e r e l a ç õ e s d e t r a b a l h o , t e c n o l o g i a s , g r a u s
de mercantilização e m o n e t i z a ç ã o , estruturas fundiárias r e g i o n a l m e n t e
d i f e r e n c i a d a s ; 2 ) o i m p o r t a n t e p a p e l n o d e s e n v o l v i m e n t o das r e l a ç õ e s
e c o n ô m i c a s n o Brasil d a c o n t i n u i d a d e d e u m a p o l í t i c a d e t e r r a s , q u e ,
h e r d a d a da tradição sesmarial lusitana, p r o l o n g o u - s e no latifúndio e no
b l o q u e i o a o acesso à t e r r a aos m u i t o s q u e d e l a d e p e n d e m , e q u e a d e -
m a n d a m desde a é p o c a colonial até os mais recentes m o v i m e n t o s de
l u t a p e l a t e r r a ; 3) a i m p o r t â n c i a da m o d a l i d a d e e s p e c i f i c a m e n t e brasileira
de constituição do m e r c a d o de trabalho, marcada pela longuíssima d u -
ração da escravidão e pela pesada h e r a n ç a de u m a sociedade parasitária
e excludente, q u e t e m reiterado historicamente mecanismos de inter-
d i ç ã o d e d i r e i t o s sociais e d e d e s q u a l i f i c a ç ã o d a força d e t r a b a l h o .
Trata-se, enfim, de buscar c o m p r e e n d e r o processo de constituição
d o m e r c a d o i n t e r n o brasileiro c o m o processo d e m o d o a l g u m linear
o u a u t o m á t i c o , m a r c a d o q u e foi, e c o n t i n u a s e n d o , p e l a p r e s e n ç a d e
variadas formas de m e r c a d o s não-capitalistas, em q u e a i m p o s i ç ã o de
u m m e r c a d o e f e t i v a m e n t e capitalista — i s t o é , d e u m m e r c a d o e m q u e
a t e r r a e a f o r ç a - d e - t r a b a l h o são m e r c a d o r i a s , em q u e há a i m p o s i ç ã o
da busca do lucro e da a c u m u l a ç ã o do capital p e l o a u m e n t o da p r o d u -
t i v i d a d e d o t r a b a l h o — d e u - s e d e f o r m a tal q u e o c a p i t a l i s m o q u e a q u i
s e d e s e n v o l v e u foi a s s u m i n d o e s t r u t u r a l m e n t e características d e atrofia,
vulnerabilidade, incompletude e dependência externa, tornando-se um
c e r t o t i p o d e d e s e n v o l v i m e n t o capitalista.

A Questão do Mercado Interno

O processo de constituição do capitalismo n ã o se r e s u m e ao q u e é


m a i s i m e d i a t o e a p a r e n t e nas r e l a ç õ e s e c o n ô m i c a s . T r a t a - s e da imposição
de uma ordem — isto é, da i m p o s i ç ã o de d e t e r m i n a d a s r e l a ç õ e s s ó c i o -
e c o n ô m i c o - p o l í t i c o - c u l t u r a i s q u e , a r t i c u l a d a s , sistêmicas, c o m o s e diz
h o j e , g a r a n t e m a r e p r o d u ç ã o d o s i n t e r e s s e s d e u m a d e t e r m i n a d a classe,
que, para d o m i n a r p l e n a m e n t e , deve, ao lado do m o n o p ó l i o da força da
c o e r ç ã o e da r i q u e z a , b u s c a r o c o n s e n t i m e n t o e a l e g i t i m a ç ã o . D a í o
i m p o r t a n t e p a p e l d a i d e o l o g i a e das i n s t i t u i ç õ e s q u e a p r o d u z e m .
N e s t e s e n t i d o , n ã o s e veja n o q u e vai d i t o a s e g u i r u m a s u b e s t i m a ç ã o
dos aspectos político-culturais na gênese e dinâmica do capitalismo, os
q u a i s são d e c i s i v o s p a r a a r e a l i z a ç ã o d o m a i s c o n c r e t o das r e l a ç õ e s e c o -

O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história I 13


n ô m i c a s . É o q u e s e v ê n a análise q u e M a r x faz d o p a p e l d i s c i p l i n a d o r -
f o r m a d o r d a classe o p e r á r i a , d o m e r c a d o d e t r a b a l h o , d e i n s t i t u i ç õ e s
c o m o as Workhouses, a " l e g i s l a ç ã o s a n g u i n á r i a c o n t r a a v a d i a g e m " , etc.
No q u e se segue b u s c o u - s e a c o m p a n h a r um roteiro de questões
centrais n a gênese d o m e r c a d o i n t e r n o , que, apresentado p o r M a r x e m
O Capital, foi r e t o m a d o p o r L ê n i n e E m í l i o S e r e n i , e m suas análises das
realidades da R ú s s i a e da Itália r e s p e c t i v a m e n t e . N e s t e r o t e i r o são centrais
os s e g u i n t e s t e m a s : 1) a c o n s t i t u i ç ã o do m e r c a d o de t r a b a l h o ; 2) a c o n s -
tituição do m e r c a d o de terras; 3) o grau de articulação-interação do
m e r c a d o i n t e r n o v e r i f i c a d o p e l a análise d a v a r i â n c i a d o s p r e ç o s e n t r e a s
diversas r e g i õ e s ; 4) o s i s t e m a de t r a n s p o r t e e c o m u n i c a ç õ e s ; e 5) a d i -
n â m i c a d e m o g r á f i c a d a p o p u l a ç ã o e c o n o m i c a m e n t e ativa.
P r i v i l e g i a r estes a s p e c t o s n ã o significa i g n o r a r a e x i s t ê n c i a d e o u t r o s
fatores d e t e r m i n a n t e s d e c i s i v o s n a g ê n e s e d o c a p i t a l i s m o , m a s a p e n a s
r e p l i c a r u m m o d o d e a p r o x i m a ç ã o d a r e a l i d a d e capitalista, q u e p e r m i t a
c o m p a r a ç õ e s expressivas c o m e s t u d o s clássicos s o b r e o a s s u n t o .
E n c o n t r a - s e na obra de Lênin a seguinte afirmação: "o 'mercado
i n t e r n o ' p a r a o capitalismo é criado pelo p r ó p r i o capitalismo em desen-
v o l v i m e n t o , q u e , a o a p r o f u n d a r a divisão social d o t r a b a l h o , d i v i d e o s
p r o d u t o r e s d i r e t o s e m capitalistas e o p e r á r i o s . O g r a u d e d e s e n v o l v i -
m e n t o do m e r c a d o i n t e r n o é o grau de desenvolvimento do capitalismo
n o país." ( L ê n i n , 1 9 7 3 : 6 3 ) . D e s t a frase s u b l i n h e - s e q u e o d e s e n v o l v i m e n t o
d o capitalismo s e expressa c o m o d e s e n v o l v i m e n t o d o m e r c a d o i n t e r -
n o , e q u e este é f u n ç ã o da d i v i s ã o social do t r a b a l h o , a q u a l será t a n t o
maior, q u a n t o mais generalizado for o processo de transformação dos
m e i o s de p r o d u ç ã o em capital constante, e dos m e i o s de subsistência
e m capital variável. (Lênin, 1 9 7 3 : 6 2 ) .
A análise clássica d a p i o n e i r a i m p o s i ç ã o d o m e r c a d o capitalista foi
r e a l i z a d a p o r M a r x e m O Capital. E s t a o b r a , q u e t e m u m a n d a m e n t o
expositivo ao m e s m o t e m p o l ó g i c o e genético — c o m a apresentação
do a r g u m e n t o n ã o seguindo a cronologia, mas o acontecer o n t o l ó g i c o
das c a t e g o r i a s — t e m e n s e j a d o certas leituras, q u e , c o n t r a r i a n d o o s e n t i -
d o essencial q u e aquele a u t o r quis i m p r i m i r a o seu t e x t o , acabaram p o r
v e r n a t r a j e t ó r i a d a h i s t ó r i a d o d e s e n v o l v i m e n t o capitalista n a I n g l a t e r r a ,
u m a e s p é c i e d e r o t e i r o n e c e s s á r i o e i n t r a n s p o n í v e l p a r a t o d o s o s países.
E s t a i n t e r p r e t a ç ã o , t o r n a d a d o g m a n a é p o c a stalinista, t a n t o p a r a l i s o u
a p e s q u i s a h i s t ó r i c a , q u a n t o b l o q u e o u resultados q u e p a r e c i a m c o n t r a r i a r
o c â n o n e , c o m o n o c a s o d a d i s c u s s ã o d o m o d o d e p r o d u ç ã o asiático.
A o m e s m o t e m p o , teve i m p o r t a n t e s e problemáticas conseqüências p o -
líticas d e c o r r e n t e s d a i m p o s i ç ã o d a f a m i g e r a d a t e o r i a das etapas. D i g a -

14 I João Antonio de Paula


se, t a m b é m , q u e esta l e i t u r a e m p o b r e c e d o r a b u s c o u a p o i o n u m a p a s -
s a g e m d o p r e f á c i o d a p r i m e i r a e d i ç ã o d e O Capital, d e 1 8 6 7 , q u a n d o
M a r x , u s a n d o e x p r e s s ã o l a t i n a , diz "De te fabula narratur", e a c r e s c e n t a
q u e " o país m a i s d e s e n v o l v i d o n ã o faz m a i s d o q u e r e p r e s e n t a r a i m a g e m
futura dos m e n o s desenvolvidos". E t a m b é m em outros e x e m p l o s e
m e t á f o r a s c o m o " a a n a t o m i a d o m a c a c o d e v e ser e n t e n d i d a à l u z d a
a n a t o m i a d o ser h u m a n o " e m q u e h á u m a r e i t e r a ç ã o d a m e s m a i d é i a
— v i s c e r a l m e n t e d i a l é t i c a — de q u e o d e s e n v o l v i m e n t o é, s o b r e t u d o ,
e x p l i c i t a ç ã o e e x p r e s s ã o d o q u e está c o n t i d o n o ser, u m d e s d o b r a m e n t o
d o s c o n t e ú d o s e das p o t e n c i a l i d a d e s d o q u e está e m g e r m e e m t o d o o
real, e m t o d o o e x i s t e n t e .
C o n t u d o , s e esta i d é i a p o d e c o n d u z i r a i n t e r p r e t a ç õ e s q u e r e s u l t a m
e m a n u l a r a h i s t ó r i a c o m o realização d e p r o c e s s o s singulares e n e r g i z a d o s
p o r forças específicas, insista-se q u e esta n ã o é u m a i n t e r p r e t a ç ã o l e g í t i m a
da perspectiva central de M a r x . Seria, de fato, quase um p a r a d o x o , c o m
a l g o d e p e r v e r s o , q u e s e viesse a t r i b u i r a M a r x u m a v i s ã o a h i s t ó r i c a d a
r e a l i d a d e . F o i M a r x , e n e n h u m o u t r o , q u e disse q u e s ó e x i s t i r i a u m a
c i ê n c i a — a c i ê n c i a da H i s t ó r i a — e q u e esta h i s t ó r i a , no c a s o c e n t r a l
d a s o c i e d a d e h u m a n a , t e r i a c o m o f u n d a m e n t o a l u t a d e classes — isto
é , a p e r m a n e n t e f l u t u a ç ã o d e s e n t i d o s , d e c o r r e l a ç ã o d e forças, a p e r m a -
n e n t e p r o d u ç ã o d e h e g e m o n i a s e c o n t e s t a ç õ e s , d e acasos e s u r p r e s a s .
N e s t e sentido, t o m a r c o m o material e m p í r i c o a história do desen-
volvimento do capitalismo na Inglaterra não constitui a imposição de
u m m o d e l o , m a s a p e n a s u m a e x p l i c i t a ç ã o d a m o d a l i d a d e , específica e
inimitável, inglesa da i m p o s i ç ã o da vitória de um dos c o m p o n e n t e s da
larga e difusa é p o c a h i s t ó r i c a , q u e s e a b r e c o m a c r i s e d o f e u d a l i s m o . A s
teses d e B r e n n e r e d e W o o d j á d i s c u t i d a s a q u i , d ã o c o n t a d a e x i s t ê n c i a ,
n e s t e p e r í o d o , d e diversas forças, t e n d ê n c i a s e interesses c o n f l i t a n t e s .
A o final, u m a destas forças iria p r e v a l e c e r — o s p r o d u t o r e s r u r a i s , q u e ,
tendo se apresentado, inicialmente c o m o arrendatários, iriam i m p o r
u m c o n j u n t o d e t r a n s f o r m a ç õ e s nas r e l a ç õ e s t é c n i c a s e sociais n a a g r i c u l -
tura, c u j o r e s u l t a d o f i n a l seria a i m p o s i ç ã o d o c a p i t a l i s m o n o c a m p o .
F o r a m estes capitalistas a g r á r i o s , q u e , v i t o r i o s o s n o c a m p o , m a i s t a r d e
i r i a m i m p o r à c i d a d e , às a t i v i d a d e s u r b a n o - i n d u s t r i a i s , as m e s m a s regras
prevalecentes no capitalismo agrário.
T o r n a - s e d e c i s i v o s u b l i n h a r a q u i q u e o c a p i t a l i s m o n ã o estava lá, e m
a l g u m lugar, à espera de nascer, e s p e r a n d o q u e se l h e retirassem as a m a r r a s .
O c a p i t a l i s m o era, n o c o n t e x t o d o f i m d o f e u d a l i s m o , u m a das p o s s i b i l i -
d a d e s d o d e s e n v o l v i m e n t o h i s t ó r i c o , e ele n ã o s e i m p l a n t o u e g e n e r a -
l i z o u pacífica e i n t e g r a l m e n t e . N e s t e s e n t i d o , a h i s t ó r i a d o d e s e n v o l v i -

O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história I 15


m e n t o d o c a p i t a l i s m o n a I n g l a t e r r a n ã o é a h i s t ó r i a d e seu m e l h o r caso,
pois isto n ã o existe, já q u e , em cada local, em cada época, a partir de um
c o n j u n t o específico de c o n d i c i o n a m e n t o s , o c a p i t a l i s m o vai se d e s e n v o l -
ver, o u m e s m o d e i x a d e n a s c e r , p o r q u e sua h i s t ó r i a está l o n g e d e ser
u m a história natural.Trata-se da história da imposição de u m a o r d e m ,
d e u m a l ó g i c a , d e u m c o n j u n t o d e r e g r a s e interesses c o n t r a o u t r a s o r -
dens, lógicas, regras e interesses.
A p a r t i r d a análise d e M a r x d o c a p i t a l i s m o n a I n g l a t e r r a , é possível
estabelecer-se um conjunto de mecanismos formativos: a acumulação
primitiva, significando a constituição do m e r c a d o de terras e de traba-
lho; a acumulação de riqueza financeira e monetária; um d e t e r m i n a d o
c o n j u n t o de políticas — o m e r c a n t i l i s m o — c o m a n d a d o s p o r um c e r t o
t i p o d e E s t a d o ; u m a c e r t a r e v o l u ç ã o p o l í t i c o - s o c i a l q u e transfere o p o -
d e r d e E s t a d o p a r a o s capitalistas; u m a c e r t a r e v o l u ç ã o das forças p r o d u -
tivas q u e possibilita o a u m e n t o s i s t e m á t i c o d a p r o d u t i v i d a d e d o t r a b a l h o .
N a v e r d a d e , o q u e está i m p l í c i t o n a análise d e M a r x é q u e estes m e -
canismos formativos d i z e m respeito a todos os processos de constituição
d o c a p i t a l i s m o . T r a t a - s e d e r e c o n h e c e r q u e estes m e c a n i s m o s , i n d i s -
pensáveis a qualquer processo de f o r m a ç ã o do capitalismo, assumirão
a s p e c t o s p a r t i c u l a r e s e m cada país o n d e o c o r r e r e m . Assim, p a r a a H i s t ó r i a ,
n ã o s e trata d e b u s c a r e m c a d a país o s e q u i v a l e n t e s d o s p r o c e s s o s ingleses
de f o r m a ç ã o do capitalismo, m a s de c o m p r e e n d e r as características
específicas q u e m a r c a r i a m , e m c a d a país, a c o n s t i t u i ç ã o d o s e u m e r c a d o
i n t e r n o — o q u e implica em a p r e e n d e r as modalidades nacionais da
constituição dos e l e m e n t o s formativos do capitalismo.
L ê n i n fez i s t o no seu Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia. E m í l i o
S e r e n i , em s e u Capitalismo e, Mercado Nacional, é um o u t r o e x e m p l o
d e b o a a p l i c a ç ã o das teses d e M a r x s o b r e a g ê n e s e d o c a p i t a l i s m o .
N a Itália, o f a t o r e s p e c í f i c o d o p r o c e s s o d e c o n s t i t u i ç ã o d o m e r c a d o
i n t e r n o v i r i a das v i c i s s i t u d e s do p r o c e s s o da unificação e do Risorgimento
italianos, a partir de 1 8 6 1 . Foi Gramsci q u e m abriu c a m i n h o para a
análise de S e r e n i , a p a r t i r da sua tese s o b r e a questão meridional. No
c e n t r o d e s t a tese está o r e c o n h e c i m e n t o das i m p o r t a n t e s c o n s e q ü ê n c i a s
d e c o r r e n t e s d o d e s e n v o l v i m e n t o d e s i g u a l d o sul d a Itália e m r e l a ç ã o a o
n o r t e . Essa d e s i g u a l d a d e , q u e t e m f u n d a s raízes n o d e s e n v o l v i m e n t o
h i s t ó r i c o i t a l i a n o , d e t e r m i n o u diversas c o n s e q ü ê n c i a s e c o n ô m i c a s , p o -
líticas e sociais q u e s e e x p r e s s a r a m n o p r o c e s s o d e u n i f i c a ç ã o i n c o n c l u s o ;
n u m processo de m o d e r n i z a ç ã o desigual e n u m processo de constituição
do m e r c a d o i n t e r n o atrofiado, disto resultando a reiteração da p r e c a r i e -
d a d e m a t e r i a l d o sul d a Itália.

16 I João Antonio de Paula


E m í l i o S e r e n i t r o u x e u m a c o n s i d e r á v e l c o n t r i b u i ç ã o à discussão s o b r e
a constituição do capitalismo, na m e d i d a em que p r o p ô s u m a m e t o d o -
l o g i a p a r a m e d i r o g r a u d e u n i f i c a ç ã o d o m e r c a d o i n t e r n o d e c a d a país
e, neste sentido, do g r a u de d e s e n v o l v i m e n t o do capitalismo através da
análise d a d i s p e r s ã o d o s p r e ç o s d e u m a d a d a m e r c a d o r i a e n t r e a s r e g i õ e s
q u e c o m p õ e m u m país. Q u a n t o m a i o r for a c o r r e l a ç ã o e n t r e o s p r e ç o s ,
e m e n o r a d i s p e r s ã o d e l e s , t a n t o m a i o r será o g r a u d e a r t i c u l a ç ã o d a
e c o n o m i a e t a n t o m a i s p l e n a m e n t e c o n s t i t u í d o estará o c a p i t a l i s m o . A
i d é i a básica a q u i é a d e q u e o m e r c a d o capitalista p l e n o s ó e x i s t e q u a n d o
os preços variam r e g i o n a l m e n t e apenas em função dos custos de trans-
p o r t e (Sereni, 1 9 8 0 : 3 7 ) . A s s i m , u m a g r a n d e d i s p e r s ã o r e g i o n a l d o s p r e ç o s
d e u m a m e r c a d o r i a é i n d í c i o d a e x i s t ê n c i a d e diversas e h e t e r o g ê n e a s
estruturas produtivas, c o m diferenciadas relações de trabalho e t e c n o l o -
gias, r e v e l a n d o q u e , afinal, o m o d o d e p r o d u ç ã o capitalista a i n d a n ã o
chegou a subordinar toda a economia.

O Caso do Brasil

N o caso d o Brasil v a i - s e p r o c u r a r d i s c u t i r a c o n s t i t u i ç ã o d o m e r c a d o
i n t e r n o p e l a análise das i m p o s i ç õ e s d o m e r c a d o d e t e r r a s e d e t r a b a l h o .
A o l a d o d o e s t a b e l e c i m e n t o das c o n d i ç õ e s específicas d a c o n s t i t u i ç ã o
d o s m e r c a d o s d e t e r r a e t r a b a l h o n o B r a s i l , q u e i r i a m a r c a r o essencial
d o m e r c a d o i n t e r n o q u e a q u i s e fez — i s t o é , d o d e s e n v o l v i m e n t o c a -
pitalista n o País — , t a m b é m t e v e p a p e l i m p o r t a n t e n e s t e p r o c e s s o f o r -
m a t i v o a l o n g a p r e s e n ç a d e u m a efetiva d e s a r t i c u l a ç ã o e n t r e a s diversas
r e g i õ e s brasileiras. D e s d e o p e r í o d o c o l o n i a l , c o n s t i t u í r a m - s e e c o n o m i a s
regionais na A m é r i c a Portuguesa c o m p e q u e n a s , q u a n d o existentes,
i n t e r a ç õ e s e n t r e si. T a l f a t o s e d e v e u t a n t o à p r e c a r i e d a d e d o s sistemas
de c o m u n i c a ç ã o e transportes, q u a n t o , mais i m p o r t a n t e , às profundas
d i f e r e n ç a s e s t r u t u r a i s e n t r e essas e c o n o m i a s r e g i o n a i s .
Grosso m o d o , é possível identificar-se q u a t r o g r a n d e s e c o n o m i a s
r e g i o n a i s n o p e r í o d o c o l o n i a l : a economia nordestina, q u e , s e n ã o p o d e
ser r e s u m i d a à plantation a ç u c a r e i r a , t e m n e s t a a t i v i d a d e sua m a r c a d e c i -
siva, daí d e c o r r e n d o a p r e d o m i n â n c i a d o t r a b a l h o escravo e d o l a t i f ú n -
dio. Ao lado da agroindústria açucareira c o m e ç o u a impor-se, no sécu-
lo X V I I I , a p r o d u ç ã o algodoeira, q u e c h e g o u a ter surtos expansivos
e m f u n ç ã o d e r e s t r i ç õ e s nas e x p o r t a ç õ e s d o g r a n d e p r o d u t o r , o s E s t a -
d o s U n i d o s , c o m u m a o r g a n i z a ç ã o d e p r o d u ç ã o e l o c a l i z a ç ã o espacial
distintas das p r e v a l e c e n t e s n a a t i v i d a d e a ç u c a r e i r a , s e n d o n e l a c o m u m a
u t i l i z a ç ã o d e m ã o - d e - o b r a livre d o t r a b a l h o familiar. Essa p r o d u ç ã o

O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história I 17


t a m p o u c o i r i a c o n c o r r e r p o r t e r r a s c o m a c a n a - d e - a ç ú c a r , j á q u e foi s e
e x p a n d i r e m áreas d o A g r e s t e e d o S e r t ã o , d e i x a n d o a s áreas d a M a t a
A t l â n t i c a p a r a o c u l t i v o d a c a n a . A o l a d o destas d u a s a t i v i d a d e s a i n d a
tiveram i m p o r t â n c i a na e c o n o m i a nordestina: u m a pecuária extensiva,
b a s e a d a e m t r a b a l h o livre, s o b a f o r m a d e p a r c e r i a ; a p r o d u ç ã o d e t a b a -
co, s o b r e t u d o n a Bahia, q u e exerceu papel i m p o r t a n t e c o m o m o e d a d e
t r o c a n o t r á f i c o d e escravos; e u m a d i s s e m i n a d a a g r i c u l t u r a d e a l i m e n -
t o s , q u e t a n t o foi d e s e n v o l v i d a p e l o t r a b a l h o familiar, c o m o fez p a r t e
d o s i s t e m a escravista s o b a f o r m a d a " b r e c h a c a m p o n e s a " , d e q u e fala
C i r o C a r d o s o , e q u e resultava d a l i b e r a ç ã o d e p a r t e d a s e m a n a d o t r a b a l h o
do escravo p a r a q u e p u d e s s e cultivar c e r t o l o t e de t e r r a e se a u t o - s u s t e n t a r .
U m a s e g u n d a e c o n o m i a r e g i o n a l característica n a A m é r i c a P o r t u g u e -
s a foi a Amazônica, n a q u a l h o u v e m a i s d e u m t r a ç o d i s t i n t i v o , q u a n d o
c o m p a r a d a ao resto da C o l ô n i a . É q u e a A m a z ô n i a — c o m p r e e n d e n d o
as Capitanias do Grão-Pará, M a r a n h ã o , Piauí, Rio N e g r o , e, em alguns
m o m e n t o s , m e s m o o Ceará — teve administração própria, constituindo
u m E s t a d o s e p a r a d o d o Brasil, até 1808, s e n d o p r i m e i r a m e n t e , e m 1621,
c h a m a d o M a r a n h ã o , d e p o i s G r ã o - P a r á e M a r a n h ã o e m 1751. R e o r g a -
n i z a d a c o m f o r m a ç õ e s d i f e r e n t e s , essa r e g i ã o teve u m a t r a j e t ó r i a s i n g u l a r
n o c o n t e x t o c o l o n i a l - p o r t u g u ê s . S e u t r a ç o m a i s m a r c a n t e foi a a m p l a
difusão, n a s c a p i t a n i a s d o G r ã o - P a r á e R i o N e g r o ( c r i a d a e m 1750), d e
u m a e c o n o m i a d e c o l e t a , e x t r a t i v i s m o , d e e x p l o r a ç ã o das c h a m a d a s
" d r o g a s do s e r t ã o " ( m a d e i r a s , resinas, fibras, caça e p e s c a etc.) a p a r t i r
d o t r a b a l h o i n d í g e n a s e r v i l i z a d o e c o n t r o l a d o p o r o r d e n s religiosas
(jesuítas, f r a n c i s c a n o s , m e r c e d á r i o s , c a r m e l i t a s ) . C o m e x c e ç ã o d o M a -
r a n h ã o , q u e t e v e u m a f o r t e p r e s e n ç a d a plantation p r o d u t o r a d e a l g o d ã o ,
nas o u t r a s C a p i t a n i a s foi p e q u e n a a p r e s e n ç a d o t r a b a l h o escravo, c o m o
t a m b é m seria ali p e c u l i a r a q u e s t ã o f u n d i á r i a . N u m a e c o n o m i a q u e
d e p e n d e d o s f r u t o s da floresta, o q u e i m p o r t a , de fato, é a i n t e g r i d a d e
da floresta — s e u s r e c u r s o s f a u n í s t i c o s e florísticos. D i s s o d e c o r r e u m a
m e n o r relevância da terra c o m o s u p o r t e da p r o d u ç ã o agrícola, d o n d e a
c o n s i d e r á v e l p r e s e r v a ç ã o d a f l o r e s t a até h o j e .
N o extremo sul d a A m é r i c a P o r t u g u e s a , iria d e s e n v o l v e r - s e u m a o u -
tra e c o n o m i a r e g i o n a l específica. S e u s t r a ç o s m a r c a n t e s f o r a m : 1) sua
e s p e c i a l i z a ç ã o n u m a p r o d u ç ã o v o l t a d a p a r a o m e r c a d o i n t e r n o ; 2) a
p e q u e n a p a r t i c i p a ç ã o d o trabalho escravo, q u e s e c o n c e n t r o u s o b r e t u -
d o n a a t i v i d a d e p e c u á r i a n o sul d a C a p i t a n i a d e R i o G r a n d e d e S ã o
P e d r o ; 3 ) a a m p l a difusão d e u m a a g r i c u l t u r a familiar, e m p e q u e n a s e
m é d i a s p r o p r i e d a d e s , r e s u l t a n d o daí u m a e s t r u t u r a f u n d i á r i a b e m m a i s
d e s c o n c e n t r a d a q u e a p r e v a l e n t e n o r e s t o d o Brasil.

18 I João Antonio de Paula


F i n a l m e n t e , u m a quarta e c o n o m i a característica n a A m é r i c a P o r -
t u g u e s a foi a da C a p i t a n i a das Minas Gerais. C e n t r a d a na m i n e r a ç ã o do
o u r o e dos diamantes c o m base no t r a b a l h o escravo, teve u m a estrutura
p r o d u t i v a diversificada — q u e c o n t e m p l o u a t i v i d a d e s m a n u f a t u r e i r a s e
agro-pecuárias — considerável para a é p o c a e local, a l é m de um nível
de urbanização, e outros traços de u m a certa m o d e r n i d a d e , q u e a singu-
l a r i z a r a m n o c o n t e x t o c o l o n i a l . C o n t u d o , t o d a s estas c a r a c t e r í s t i c a s p o -
t e n c i a l i z a d o r a s d e d i n a m i s m o e c r e s c i m e n t o d a e c o n o m i a m i n e i r a , sua
a r t i c u l a ç ã o c o m a s e c o n o m i a s n o r d e s t i n a e s u l i n a , t u d o i s t o , afinal, n ã o
i r i a r e s u l t a r e m efetiva c o n s t i t u i ç ã o d o m e r c a d o i n t e r n o , n a m e d i d a
m e s m o e m q u e isto n ã o i m p l i c o u m u d a n ç a s estruturais, c o n s e r v a n -
d o - s e c a d a e c o n o m i a r e g i o n a l i n t o c a d a n o essencial d e suas e s t r u t u r a s
sócio-econômicas.
Esse q u a d r o , p r e v a l e c e n t e n o p e r í o d o c o l o n i a l , n ã o s e r i a a l t e r a d o , n o
fundamental, na época imperial. Vários autores, Celso Furtado enfa-
ticamente, iriam mostrar q u e não h o u v e alteração estrutural de m o n t a
c o m a I n d e p e n d ê n c i a d o Brasil, q u e , n o e s s e n c i a l , m a n t e v e a m e s m a
d e p e n d ê n c i a e x t e r n a , a e s c r a v i d ã o , a d e s a r t i c u l a ç ã o das e c o n o m i a s r e g i o -
n a i s , a s q u a i s , n o essencial, t a m p o u c o n ã o e x p e r i m e n t a r a m m u d a n ç a s
estruturais. É neste q u a d r o q u e se deve buscar e n t e n d e r a e m e r g ê n c i a
d o s m e r c a d o s d e t e r r a e t r a b a l h o n o Brasil.
U m a forte evidência d a inexistência d e u m m e r c a d o i n t e r n o arti-
c u l a d o n o Brasil d o s é c u l o X I X foi a p r e s e n t a d a p o r E v a l d o C a b r a l d e
M e l o , a o m o s t r a r a d i f e r e n ç a e n t r e a s taxas d e j u r o s p r a t i c a d o s n a e c o n o -
m i a cafeeira (10 a 1 2 % a.a.) vis-à-vis as p r e v a l e c e n t e s na e c o n o m i a n o r -
destina, q u e oscilavam entre 18 e 2 4 % (Melo, 1984).

O mercado de terras

E n t r e a s i n s t i t u i ç õ e s c e n t r a i s d a o r d e m capitalista d e s t a c a m - s e o
m e r c a d o de terras e o do t r a b a l h o . Se o d i n h e i r o é o p o n t o de p a r t i -
d a h i s t ó r i c o e g e n é t i c o d a a c u m u l a ç ã o capitalista, c o m o disse M a r x , a
m o n o p o l i z a ç ã o da terra e dos demais m e i o s de p r o d u ç ã o , p o r u m a
classe, e a p r o l e t a r i z a ç ã o de u m a o u t r a classe, q u e assim é o b r i g a d a a
v e n d e r a sua força d e t r a b a l h o c o m o f o r m a básica d e s o b r e v i v ê n c i a , são
o s p r o c e s s o s c o n s t i t u t i v o s d a c h a m a d a a c u m u l a ç ã o p r i m i t i v a d o capital.
N o caso d o Brasil, este foi u m l o n g o p r o c e s s o , q u e s e p r o l o n g o u d o
século X V I a o X X , c o m i m p o r t a n t e s diferenças regionais, s o b r e t u d o
n o q u e diz r e s p e i t o aos r i t m o s d a p r o l e t a r i z a ç ã o e d e m e r c a n t i l i z a ç ã o -
m o n o p o l i z a ç ã o da terra.

O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história I 19


A o r i g e m d o r e g i m e d e t e r r a s n o Brasil r e m o n t a à t r a d i ç ã o m e d i e v a l
p o r t u g u e s a . A sesmaria, i n s t i t u í d a e m 1 3 7 5 , p o r D . F e r n a n d o , rei d e
P o r t u g a l , foi a f o r m a d e d i s t r i b u i ç ã o e o c u p a ç ã o das t e r r a s n o Brasil até
1 8 5 0 . E n t r e seus o b j e t i v o s b á s i c o s , a sesmaria i n c l u í a o c u l t i v o das t e r r a s
o c i o s a s p a r a a u m e n t a r a r i q u e z a do R e i n o . A lei das sesmarias, de 26 de
j u n h o d e 1 3 7 5 , f o i s u c e s s i v a m e n t e i n c o r p o r a d a à s O r d e n a ç õ e s Afonsinas,
M a n o e l i n a s e Filipinas, d e f i n i n d o neste sentido a política de terras do
r e i n o p o r t u g u ê s até o s é c u l o X I X ( P o r t o , 1 9 6 5 ) .
D e r i v a d a da palavra latina seximum, q u e significa a sexta p a r t e , a p a -
lavra sesmaria a c a b o u a s s u m i n d o característica g e n é r i c a de terras d o a d a s ,
casas o u p a r d i e i r o s , c o m vistas a o cultivo. N o Brasil o r e g i m e sesmarial
i m p l a n t o u - s e ao m e s m o t e m p o q u e as Capitanias Hereditárias, definin-
d o u m p a d r ã o q u e iria m a r c a r d e f i n i t i v a m e n t e a e s t r u t u r a fundiária b r a -
sileira c o m o a d o latifúndio. D i s t r i b u í d a s s e g u n d o u m m ó d u l o m í n i m o d e
2
u m a l é g u a q u a d r a d a , o u 6 . 6 0 0 m , a e s t r u t u r a sesmarial n ã o seria h o m o -
gênea, c o n t e m p l a n d o desde verdadeiros "impérios t e r r i t o r i a i s " — c o m o
a sesmaria da Casa Garcia d'Àvila, q u e margeava o R i o São Francisco
— até sesmarias m e n o r e s d e a p e n a s u m a l é g u a q u a d r a d a .
Na v e r d a d e , o m o t i v o b á s i c o da lei de sesmarias e r a a b u s c a do c u l t i v o
d a t e r r a . U m a s e s m a r i a i m p r o d u t i v a d e v e r i a ser r e p a r t i d a d e tal f o r m a
q u e t o d a ela p r o d u z i s s e r i q u e z a s . C o n t u d o , este p r i n c í p i o p a r e c e n u n c a
t e r s i d o o b s e r v a d o , r e s u l t a n d o daí a c o n s o l i d a ç ã o d o l a t i f ú n d i o . E r a
e x p l í c i t o n e s t e s e n t i d o o Regimento do Governador Geral T o m é de S o u z a ,
d e 1 5 4 8 , q u e m a n d a v a d i s t r i b u i r a s t e r r a s e m sesmarias m a s c o n d i c i o n a v a
esta d i s t r i b u i ç ã o aos q u e p o s s u í s s e m c a b e d a l s u f i c i e n t e p a r a c o n s t r u i r
casas-fortes, o q u e significava e x c l u i r d o u n i v e r s o das sesmarias o s p o -
b r e s . E s t e t r a ç o d a t e r r a c o m o m o n o p ó l i o d o s p o t e n t a d o s locais estaria
na base de u m a estrutura fundiária c o n c e n t r a d a , p o n t o de partida para
a conformação do p o d e r oligárquico, do f e n ô m e n o fundamental de
n o s s a v i d a p o l í t i c a e c u l t u r a l q u e foi o coronelismo.
N ã o s e d e v e v e r o r e g i m e s e s m a r i a l , d e s e n v o l v i d o n o Brasil c o m o
u n i f o r m e e m t o d a s a s suas r e g i õ e s . N a v e r d a d e , foi s o b r e t u d o n o c o n t e x t o
da grande empresa agro-manufatureira exportadora colonial que a
questão da terra teve centralidade. N e s t e particular, a questão da terra,
a p o s s e d e g r a n d e s áreas, a i m p o r t â n c i a d o l a t i f ú n d i o , t e v e p e s o m e n o r
na e c o n o m i a e x t r a t i v i s t a das drogas do sertão da A m a z ô n i a , ou m e s m o na
e c o n o m i a m i n e r a t ó r i a . O l a t i f ú n d i o era, c o m o foi o b s e r v a d o p o r v á r i o s
e s t u d i o s o s , u m d o s pilares d e u m a t r í a d e q u e i n c l u í a a m o n o c u l t u r a e o
t r a b a l h o e s c r a v o . Essa e s t r u t u r a , d e s i g n a d a g e n e r i c a m e n t e c o m o planta-
tion, m a r c o u a e c o n o m i a a ç u c a r e i r a n o r d e s t i n a , d e f i n i n d o o s t r a ç o s b á -

20 I João Antonio de Paula


sicos d e u m a t r a j e t ó r i a s ó c i o - e c o n ô m i c a q u e s e c u l a r m e n t e i r i a r e p r o -
duzir um padrão de c o n c e n t r a ç ã o da terra, da renda e do poder.
N ã o s e veja n i s t o , c o n t u d o , u m p r o c e s s o h o m o g ê n e o o u l i n e a r , p o i s
m e s m o a e s t r u t u r a clássica da plantation a d m i t i a v a r i a n t e s e d i f e r e n ç a s .
Veja-se o s e g u i n t e t r e c h o d e R o b e r t o S m i t h :

" A d i s t r i b u i ç ã o d e t e r r a s através d e s e s m a r i a s , n a á r e a c a n a v i e i r a
do N o r d e s t e c o m o um todo, mostrava, em meados do século X V I , a
e x i s t ê n c i a d e a l g u m a s s e s m a r i a s c o n t e n d o g r a n d e s áreas, p o r é m b o a
p a r t e delas e r a d e t a m a n h o m e n o r . S t u a r t S c h w a r t z assinala q u e n a
B a h i a essas s e s m a r i a s m e d i a m u s u a l m e n t e m e n o s d e d u a s l é g u a s
quadradas. Célia Freire A F o n s e c a , em u m a pesquisa de 1.141 ses-
m a r i a s n a P a r a í b a , m o s t r a q u e 8 7 , 5 % delas e r a m m e n o r e s d e 4 l é g u a s
quadradas" (Smith, 1990:297).

S t u a r t S c h w a r t z e m s e u l i v r o Segredos Internos ( 1 9 8 8 ) , h a v i a m o s t r a -
do o e q u í v o c o de se ver a realidade da e c o n o m i a nordestina c o m o
r e s u m i d a à t r í a d e l a t i f ú n d i o - e s c r a v i d ã o - m o n o c u l t u r a . N e s t e s e u livro,
s o b v á r i o s a s p e c t o s f u n d a m e n t a l , figura a r e c o n s t i t u i ç ã o d e u m a r e a l i -
dade s ó c i o - e c o n ô m i c a m e n o s esquemática, c o m a revelação de estru-
t u r a s i n t e r m e d i á r i a s e n t r e os g r a n d e s s e n h o r e s e os escravos, e a p r e s e n -
ça de u m a considerável diversidade no referente ao t a m a n h o da p r o -
p r i e d a d e , às atividades p r o d u t i v a s , o c u p a ç õ e s profissionais, c o n d i ç ã o social
e t c . E s t e é t a m b é m o s e n t i d o b á s i c o das teses d e C i r o F l a m a r i o n C a r -
doso sobre a existência de u m a " b r e c h a c a m p o n e s a " nos interstícios da
e c o n o m i a escravista n o Brasil ( C a r d o s o , 1 9 8 2 )
O q u e s e deseja e v i t a r a q u i é u m a g e n e r a l i z a ç ã o i n c o m p r e e n s i v a
que queira ver h o m o g e n e i d a d e e uniformidade n u m quadro histórico
e e s p a c i a l m e n t e m a r c a d o p e l a d i v e r s i d a d e . P o r e x e m p l o : se o l a t i f ú n d i o
e a escravidão foram fundamentais na e c o n o m i a pecuária do c o u r o , do
c h a r q u e e do gado em p é , na região de Pelotas durante o p e r í o d o c o -
lonial, a agricultura de alimentos do m e s m o R i o G r a n d e de São Pedro,
s o b r e t u d o a desenvolvida pela c o l o n i z a ç ã o alemã, a partir de 1 8 2 5 , da
região da Serra G a ú c h a , teria um p a d r ã o de distribuição da terra e u m a
forma de organização do trabalho marcados pela desconcentração fun-
d i á r i a e p e l o t r a b a l h o familiar. N ã o p o r acaso, nestas r e g i õ e s , n o R i o
G r a n d e do Sul e em Santa C a t a r i n a , o n d e n ã o prevaleceu o latifúndio
e t a n t o a t e r r a c o m o a r e n d a f o r a m m a i s d e s c o n c e n t r a d a s , são as q u e
t ê m o s m e l h o r e s i n d i c a d o r e s d e q u a l i d a d e d e v i d a n o Brasil c o n t e m -
porâneo.

O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história I 21


Se é v e r d a d e q u e , a p e s a r das d i f e r e n ç a s r e g i o n a i s , a p o l í t i c a de terras
n o Brasil c o n s a g r o u o l a t i f ú n d i o , t a m b é m é v e r d a d e q u e este p r o c e s s o
n ã o foi i s e n t o d e a m b i g ü i d a d e s . B a s i c a m e n t e p o d e - s e d e p r e e n d e r d a
p o l í t i c a d e t e r r a s p r a t i c a d a n o Brasil q u e a s t e n t a t i v a s d a C o r o a d e i m -
p e d i r a c o n c e n t r a ç ã o f u n d i á r i a f o r a m frustradas. C o m o d i z E m í l i a V i o t t i
da Costa:

" E r a e v i d e n t e nessas p r o i b i ç õ e s a i n t e n ç ã o d a C o r o a d e e v i t a r
c o n c e n t r a r a t e r r a nas m ã o s d e p o u c o s , p a r a i m p e d i r a c r i a ç ã o n a
colônia de u m a nova o r d e m feudal. As expectativas da C o r o a , e n -
t r e t a n t o , f o r a m frustradas. O s p r o p r i e t á r i o s d e e n g e n h o t e n d e r a m a
a c u m u l a r terra, n ã o s o m e n t e para assegurar o f o r n e c i m e n t o de cana
para seus e n g e n h o s , mas t a m b é m p o r q u e a p r o p r i e d a d e da terra
concedia prestígio social" (Costa, s.d.:143-144).

A q u e s t ã o f u n d i á r i a n o Brasil d e n e n h u m m o d o foi pacífica p a r a


o s governantes portugueses. E m 1 7 9 5 , h o u v e u m a tentativa d e modifi-
car a p o l í t i c a de t e r r a s , a b o l i n d o o r e g i m e das s e s m a r i a s . O A l v a r á de 5
d e o u t u b r o d e 1 7 9 5 dizia: " Q u e s e n d o - m e p r e s e n t e s e m c o n s u l t a d o
C o n s e l h o U l t r a m a r i n o os abusos e irregularidades, e desordens, q u e
t ê m g r a s s a d o , e s t ã o e v ã o g r a s s a n d o e m t o d o o E s t a d o d o Brasil, s o b r e
o m e l i n d r o s o o b j e t o d e suas s e s m a r i a s . . . " ( S m i t h , 1 9 9 0 : 2 8 5 ) . A s u s p e n s ã o
desse A l v a r á , a i n d a q u e i n a p l i c a d o , reflete a e x i s t ê n c i a d e u m a t e n s ã o
c r e s c e n t e e n t r e interesses q u e v ã o s e d i v e r s i f i c a n d o . N ã o é p o s s í v e l
u m a i d e n t i f i c a ç ã o u n í v o c a d e s t e s i n t e r e s s e s . N ã o s e tratava d e u m a
c l i v a g e m e n t r e interesses l o c a i s e i n t e r e s s e s m e t r o p o l i t a n o s , o u e n t r e
interesses nativistas e interesses c o l o n i a i s . T a n t o o Alvará frustrado, q u a n t o
o D e c r e t o q u e o b l o q u e o u faziam parte de um c o n t e x t o m a r c a d o pela
e x p l i c i t a ç ã o d e " p r o j e t o s " a l t e r n a t i v o s p a r a o Brasil. Q u e m talvez t e n h a
m e l h o r s i n t e t i z a d o estas q u e s t õ e s , n a q u e l e m o m e n t o , foi J o s é B o n i f á c i o .
E m d i v e r s o s m o m e n t o s e a p r o p ó s i t o d e q u e s t õ e s essenciais p a r a a
v i d a e c o n ô m i c a e social d o Brasil, J o s é B o n i f á c i o t e r i a u m p a p e l d e
d e s t a q u e (Silva, 1 9 6 4 ) . E l e foi r e s p o n s á v e l p e l o p r i m e i r o projeto sis-
t e m á t i c o de c o n s t r u ç ã o de u m a nova o r d e m s ó c i o - e c o n ô m i c a para o
Brasil. O p r i m e i r o p o n t o d e s t e projeto era a d e n ú n c i a das s e s m a r i a s
c o m o i n c o m p a t í v e i s c o m o d e s e n v o l v i m e n t o d a a g r i c u l t u r a n o Brasil.
S u a p r o p o s t a de 1 8 2 1 e s t a b e l e c i a q u e o acesso à t e r r a no Brasil a p a r t i r
daí d a r - s e - i a a p e n a s m e d i a n t e a c o m p r a , e q u e o s l o t e s n ã o p o d e r i a m
e x c e d e r a m e i a l é g u a q u a d r a d a ( S m i t h , 1 9 9 0 : 2 8 6 ) . N o c o n j u n t o o pro-
jeto i n c l u í a a i n d a o fim do tráfico de escravos, a a b o l i ç ã o p r o g r e s s i v a da

22 I João Antonio de Paula


escravidão, o d e s e n v o l v i m e n t o de atividades agrícolas baseadas no tra-
balho de colonos (Smith, 1990:288).
E m b o r a h o u v e s s e , d e s d e 1 8 2 2 , u m a clara i n t e n ç ã o d e p ô r f i m à s v e -
lhas i n s t i t u i ç õ e s das s e s m a r i a s , foi só em 1 8 5 0 , c o m a Lei de Terras, de 18
d e o u t u b r o , q u e iria h a v e r u m a efetiva m u d a n ç a d a p o l í t i c a f u n d i á r i a
no Brasil. A Lei de Terras de 1 8 5 0 foi c o e t â n e a de d o i s o u t r o s i n s t r u -
m e n t o s legais, o Código Comercial e a Lei Eusébio de Queiroz, q u e a b o l i u
o t r á f i c o d e e s c r a v o s . A s três s i g n i f i c a r a m , e m c o n j u n t o , a e m e r g ê n c i a
n o Brasil d o p r o c e s s o d e c o n s t i t u i ç ã o d e u m m e r c a d o e s p e c i f i c a m e n t e
capitalista. E s t e foi o i n í c i o d o p r o c e s s o d e t r a n s f o r m a ç ã o d a t e r r a e d a
força d e trabalho e m m e r c a d o r i a s .
E m í l i a V i o t t i da C o s t a r e s u m i u o e s s e n c i a l da Lei de Terras em q u a t r o
p o n t o s básicos: 1) o acesso às terras p ú b l i c a s , a p a r t i r daí, d a r - s e - i a a p e n a s
p e l a c o m p r a ; 2 ) o t a m a n h o das posses, t e r r a s a p r o p r i a d a s m e d i a n t e o c u -
p a ç ã o , foi l i m i t a d o a o t a m a n h o d a m a i o r d o a ç ã o feita n o d i s t r i t o e m
q u e s e l o c a l i z a v a m ; 3 ) o p r o d u t o d a v e n d a das terras seria u s a d o p a r a
f i n a n c i a r a v i n d a de i m i g r a n t e s p a r a o Brasil e 4) a c r i a ç ã o da R e p a r t i ç ã o
G e r a l das T e r r a s P ú b l i c a s p a r a a d m i n i s t r a r o p r o c e s s o e p r o m o v e r a
m i g r a ç ã o (Costa, s.d:140 e 141).
N e s t e processo é preciso observar q u e , apesar de f o r m a l m e n t e abolidas
as sesmarias, a c o n s t i t u i ç ã o de latifúndios, na verdade, acelerou-se e n t r e
1822 e 1850. Do uso do i n s t r u m e n t o de posse, q u e hoje c h a m a r í a m o s
de grilagem, r e s u l t o u q u e , ao se b a i x a r a Lei de Terras, esta, ao c o n t r á r i o
de r e o r d e n a r a estrutura latifundiária, a c a b o u p o r sancioná-la ao m e s m o
t e m p o q u e , a p a r t i r daí, i m p e d i u o acesso à t e r r a a t o d o s q u e n ã o t i v e s s e m
capital (Smith, 1 9 9 0 : 3 0 4 ) .
F r a n c i s c o Iglésias, e m seu l i v r o s o b r e a P o l í t i c a E c o n ô m i c a d o G o -
v e r n o Provincial, assinalou q u e as terras disponíveis em M i n a s Gerais,
d e p o i s de 1 8 5 0 , p a r a efeitos do d i s p o s t o na Lei de Terras, e r a m a p e n a s
1 8 % d o t o t a l das t e r r a s d a P r o v í n c i a . E s t e d a d o , q u e talvez n ã o p o s s a ser
g e n e r a l i z a d o , d á c o n t a d o q u a n t o a " f r o n t e i r a " j á estava f e c h a d a e m M i -
nas G e r a i s , d o q u a n t o a t e r r a j á estava m o n o p o l i z a d a s e g u n d o a s r e g r a s
da velha o r d e m senhorial, bloqueadora do desenvolvimento de um
efetivo m e r c a d o d e t e r r a s capitalista, o u d a i m p l a n t a ç ã o d a p e q u e n a
p r o p r i e d a d e (Iglésias, 1 9 5 8 ) .
T a l v e z t a m b é m e m H i s t ó r i a , a l g u é m c h e g u e , a l g u m dia, a d i z e r q u e
traduzir é trair tal c o m o comparar. Isto p o r q u e as c o m p a r a ç õ e s t ê m s e m -
p r e a l g o d e a r b i t r á r i o , d e i n c o m p a t í v e l c o m o o específico d a h i s t o -
r i o g r a f i a , q u e d e v e , s o b r e t u d o , zelar p a r a i n t e r d i t a r o a n a c r o n i s m o e as
aproximações indevidas.

O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história I 23


É o risco q u e se c o r r e q u a n d o se busca c o m p a r a r realidades tão d i -
f e r e n t e s c o m o a s d o Brasil e d o s E s t a d o s U n i d o s . D e t o d a s a s a p a r e n t e s
s e m e l h a n ç a s s ó u m a , d e f a t o , resiste à análise c r i t e r i o s a . D e t o d a s a s
p s e u d o - s e m e l h a n ç a s s ó o a v a n t a j a d o d o t e r r i t ó r i o é c o m u m aos d o i s
países. S e a m b o s v i v e r a m s o b a c o n d i ç ã o c o l o n i a l e m a l g u m m o m e n t o ,
d i f e r e n ç a s decisivas s e p a r a r a m suas respectivas t r a j e t ó r i a s c o l o n i a i s . N o
essencial, estas d i f e r e n ç a s t r a d u z i r a m - s e n o s e g u i n t e : e n q u a n t o n o s E s -
t a d o s U n i d o s o c a p i t a l i s m o — i s t o é, a c o m p e t i ç ã o , a a c u m u l a ç ã o , a
maximização do lucro, a busca do a u m e n t o da produtividade do trabalho
— foi o p r ó p r i o m ó v e l da c o l o n i z a ç ã o ; no Brasil, t o d a a m a q u i n a r i a
e c o n ô m i c a instalada aqui, a e m p r e s a comercial q u e p r e d o m i n o u , tinha
c o m o d e s t i n a ç ã o a r e i t e r a ç ã o de p r i v i l é g i o s e i n t e r e s s e s a r c a i z a n t e s , a
p r o m o ç ã o da riqueza c o m o apanágio do senhorio tradicional apegado,
no essencial, aos v a l o r e s e h e g e m o n i a do Antigo Regime. É assim q u e se
explica p o r q u e a I n d e p e n d ê n c i a d o Brasil n ã o t e n h a significado q u a l q u e r
transformação estrutural, q u e a escravidão, o latifúndio, a h e g e m o n i a
dos " h o m e n s b o n s " , t e n h a m se mantido, do m e s m o m o d o q u e se m a n -
tiveram o caráter s u b o r d i n a d o da e c o n o m i a , a estreiteza do m e r c a d o
interno.
F a ç a - s e assim a c o m p a r a ç ã o , n ã o c o m o e x e r c í c i o a r b i t r á r i o , m a s c o m o
i n v e n t á r i o das d i f e r e n ç a s , c o m o e x p l i c i t a ç ã o d o s m o d o s e c o n t i n g ê n c i a s
do processo de constituição do capitalismo, da constituição do m e r c a d o
i n t e r n o n o s d o i s países. O q u e está i m p l í c i t o n a c o m p a r a ç ã o q u e s e vai
fazer n ã o é u m a p e r s p e c t i v a q u e abstraia a s s i n g u l a r i d a d e s , a s d i f e r e n ç a s ,
q u e são a p r ó p r i a m a t é r i a d a r e a l i d a d e h i s t ó r i c a . N ã o h á a q u i q u a l q u e r
" i d e a l i z a ç ã o " d o c a p i t a l i s m o — p o i s este, s e n d o u m p r o c e s s o h i s t ó r i c o ,
é, s o b r e t u d o , i r r e p e t í v e l . O q u e está i m p l í c i t o a q u i é q u e a g ê n e s e do
capitalismo, em cada espaço geográfico específico, é s e m p r e tributária
d o c o n j u n t o das realidades s ó c i o - p o l í t i c o - e c o n ô m i c o - c u l t u r a i s - n a t u r a i s
nas q u a i s e m e r g e . O u seja, ela é s e m p r e m a r c a d a p e l a c o r r e l a ç ã o d e
forças d o m i n a n t e s , r e s u l t a n d o d a í sua e s p e c i f i c i d a d e .
A g r a n d e dificuldade aqui, c o m o em t o d o processo dialético, é r e -
c o n h e c e r a t e n s ã o - m o v i m e n t o q u e se c o l o c a na t r í a d e g e n e r a l i d a d e —>
p a r t i c u l a r i d a d e —> s i n g u l a r i d a d e , a q u a l no c a s o a q u i se m a n i f e s t a da
seguinte f o r m a : o capitalismo, m o d o de p r o d u ç ã o g e n é r i c o t e m supostos
u n i v e r s a i s - g e n é r i c o s (o d i n h e i r o , os p r e ç o s , as m e r c a d o r i a s , o m e r c a d o ,
a f o r ç a - d e - t r a b a l h o , o c a p i t a l . . . ) . C o n t u d o , estes s u p o s t o s u n i v e r s a i s são
p e r m a n e n t e m e n t e alterados p e l a p r ó p r i a d i n â m i c a capitalista, q u e p r o d u z
d e s i g u a l d a d e s — c o n c e n t r a ç ã o , c e n t r a l i z a ç ã o do c a p i t a l — e q u e são
p a r t i c u l a r i d a d e s d o c a p i t a l i s m o ; f i n a l m e n t e estas p a r t i c u l a r i d a d e s s ã o

24 I João Antonio de Paula


submetidas ao escrutínio de formas geo-históricas concretas, realidades
singulares e c o n t i n g e n t e s , q u e d e t e r m i n a m a presencialidade do c a p i -
t a l i s m o , q u e s e d á s e m p r e c o m o r e a l i d a d e s i n g u l a r , específica, " n a c i o -
nal-local-regional".
P o r t a n t o , n ã o s e trata a q u i d e e s t a b e l e c e r h i e r a r q u i a s , d e v e r n o s
Estados U n i d o s u m m o d e l o o u c a m i n h o necessário, mas apenas r e -
c o n h e c e r q u e o c a p i t a l i s m o é um p r o c e s s o h i s t ó r i c o — o q u e significa
dizer q u e cada realidade nacional terá o seu p r ó p r i o c a m i n h o para o
capitalismo, estando implícito, p o r suposto, q u e n e m todos os c a m i n h o s
serão exitosos, ou p r o d u z i r ã o os m e s m o s resultados.
I n i c i e m o s a c o m p a r a ç ã o p e l a Lei de Terras no Brasil c o m a s i m i l a r
n o r t e - a m e r i c a n a , o Homestead Act de 1 8 6 2 , q u e s o b r e t u d o b u s c a r á , de
fato, d i s t r i b u i r t e r r a s , d e t e r m i n a n d o a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a e s t r u t u r a
f u n d i á r i a b a s e a d a n a p e q u e n a p r o p r i e d a d e e n o t r a b a l h o familiar, a b -
s o r v e n d o p o r este p r o c e s s o m i l h õ e s d e i m i g r a n t e s o s q u a i s , n a corrida
para o oeste, d e t e r m i n a r ã o t a n t o a o c u p a ç ã o efetiva do t e r r i t ó r i o , q u a n t o
a a m p l i a ç ã o do m e r c a d o i n t e r n o , b a s e p a r a a u r b a n i z a ç ã o e a i n d u s t r i a l i -
zação americanas (Costa, s.d.:150-157).
As d i f e r e n ç a s e n t r e as filosofias q u e p r e s i d i r a m a Lei de Terras no
Brasil e o Homestead Act, n o s E U A , r e f l e t e m , no f u n d a m e n t a l , o l u g a r
d o s interesses e s p e c i f i c a m e n t e capitalistas n o i n t e r i o r d o a p a r e l h o d o
E s t a d o , e n o c o n j u n t o d a s o c i e d a d e d o s d o i s países. Isto é , e n q u a n t o n o
Brasil o E s t a d o e a s o c i e d a d e a i n d a e s t a v a m s u b m e t i d o s a um s e n h o r i o
escravista, m e r c a n t i l i s t a e e x p o r t a d o r , c ó p i a " n a c i o n a l " d o s v e l h o s i n -
teresses c o l o n i a l i s t a s , n o s E s t a d o s U n i d o s , o s i n t e r e s s e s d o g r a n d e c a p i t a l
j á e r a m h e g e m ô n i c o s , o q u e seria d e f i n i t i v a m e n t e d e m o n s t r a d o p e l a
vitória d o N o r t e n a G u e r r a Civil d e 1 8 6 1 - 6 5 .
E m t e x t o r e c e n t e , L í g i a O s ó r i o Silva d i s c u t i u a s teses d e Tavares
B a s t o s p a r a u m a p o l í t i c a d e t e r r a s d o I m p é r i o brasileiro, i n s p i r a d a n a
experiência n o r t e - a m e r i c a n a . Sua conclusão é reveladora:

"Tavares Bastos tinha, p o r t a n t o , razão em citar o e x e m p l o n o r t e -


a m e r i c a n o , p o r q u e n ã o obstante a política de terras ter favorecido
m a i s o s e s p e c u l a d o r e s e o s g r a n d e s capitalistas d o q u e o s p e q u e n o s
f a z e n d e i r o s i n d e p e n d e n t e s , a i n d a assim p e r m i t i u a f o r m a ç ã o d a p e -
q u e n a p r o p r i e d a d e n u m a escala i n c o m p a r á v e l . " (Silva, 1 9 9 8 : 2 8 ) .

A n t e c i p a n d o u m a c o n c l u s ã o m a i s g e r a l , é p o s s í v e l v e r nas d i f e r e n ç a s
e n t r e as leis de t e r r a s do Brasil e d o s E s t a d o s U n i d o s a ossatura básica
da c o n s t i t u i ç ã o d o s m e r c a d o s i n t e r n o s d e s t e s d o i s países — isto é, a d i -

O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história I 25


ferença e n t r e um m e r c a d o i n t e r n o a m p l o e consistente, q u e é o caso
n o r t e - a m e r i c a n o , e um m e r c a d o i n t e r n o restrito e excludente, realida-
d e p e r m a n e n t e d o Brasil. R e s u l t a m daí t a n t o d i f e r e n ç a s n o r e f e r e n t e a
c o n s t i t u i ç ã o da nação — isto é, no g r a u de i n t e g r a ç ã o social e na c a p a c i -
d a d e d o E s t a d o d e g a r a n t i r d i r e i t o s sociais b á s i c o s , e d e s t e m o d o a l g u m
g r a u de coesão nacional — c o m o d i f e r e n ç a s em r e l a ç ã o ao tônus d o s c a -
p i t a l i s m o s q u e v ã o s e i m p l a n t a r n o s d o i s países. D i t o d e o u t r o m o d o , o
t a m a n h o e a c o n s i s t ê n c i a d o m e r c a d o i n t e r n o está d i r e t a m e n t e r e l a -
c i o n a d o à capacidade de coesão nacional e ao d e s e n v o l v i m e n t o da vida
econômica de ambos.
T a n t o n o Brasil q u a n t o n o s E s t a d o s U n i d o s , a q u e s t ã o d a t e r r a foi
o b j e t o d e t e n s õ e s e d i s p u t a s . L á o s interesses d o s g r a n d e s p r o p r i e t á r i o s
d e t e r r a d o S u l e x p r e s s a r a m - s e n a defesa d e u m a p o l í t i c a d e t e r r a s q u e
c o n s a g r a s s e t a n t o o l a t i f ú n d i o c o m o o t r a b a l h o e s c r a v o . A lei de t e r r a s
n o r t e - a m e r i c a n a de 1862, e a abolição da escravidão, em 1 8 6 3 , no c o n -
t e x t o da Guerra Civil, são sinais i n e q u í v o c o s da v i t ó r i a d o s interesses
e s p e c i f i c a m e n t e capitalistas. N o Brasil, a o c o n t r á r i o , esses interesses e s -
p e c i f i c a m e n t e capitalistas d e m o r a r ã o m u i t o p a r a s e i m p o r , e m e s m o
q u a n d o o f i z e r a m n ã o foi s e m a m b i g ü i d a d e s .
E n t r e a s teses d e J o s é B o n i f á c i o , s o b r e a n e c e s s i d a d e d e s e s u p r i m i r
a d i s t r i b u i ç ã o s e s m a r i a l de t e r r a s , a n e c e s s i d a d e do f i m do tráfico e da
e s c r a v i d ã o , p o r v o l t a d e 1 8 2 1 - 1 8 2 3 , e a efetiva m u d a n ç a d a p o l í t i c a d e
t e r r a s e o fim do tráfico, p a s s a r a m - s e 29 a n o s . D e s s a d a t a , 1 8 5 0 , a t é a
A b o l i ç ã o e m 1 8 8 8 , m a i s 3 8 a n o s . A l é m desta dilação, desta p r o c r a s t i n a ç ã o
l e m b r e - s e d o c a r á t e r limitado desta m e d i d a , j á q u e ela n ã o s i g n i f i c o u a
p l e n a e m a n c i p a ç ã o d o s escravos n a m e d i d a e m q u e isto i m p l i c a r i a ,
d e s d e l o g o , u m a reforma agrária q u e garantisse a o e x - e s c r a v o d i r e i t o s
sociais básicos — t e r r a , t r a b a l h o , e d u c a ç ã o , s a ú d e — c o m o , p o r e x e m p l o ,
advogava A n d r é R e b o u ç a s .
Trata-se, p o r t a n t o , de r e c o n h e c e r que, se o processo de constituição
d o m e r c a d o i n t e r n o n o Brasil a t e n d e u aos interesses d o s e n h o r i o m e r -
c a n t i l - e x p o r t a d o r e escravista n a c i o n a l , este m e s m o s e n h o r i o a p r e s e n t a -
v a - s e , n o p l a n o m a i s g e r a l das r e l a ç õ e s e c o n ô m i c a s i n t e r n a c i o n a i s , c o m o
s ó c i o m e n o r e s u b o r d i n a d o a o g r a n d e c a p i t a l i n t e r n a c i o n a l . Esta p e r -
m a n ê n c i a d a d o m i n a ç ã o colonial traria c o n s e q ü ê n c i a s d e toda o r d e m
p a r a o d e s e n v o l v i m e n t o e c o n ô m i c o , p o l í t i c o social e c u l t u r a l do País.
No q u e interessa mais i m e d i a t a m e n t e a esta discussão s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o
d o m e r c a d o i n t e r n o n o Brasil, é p r e c i s o r e g i s t r a r q u e a c o n t i n u i d a d e ,
n o e s s e n c i a l , d o c a r á t e r c o l o n i a l d a e c o n o m i a brasileira n o s é c u l o X I X ,
s i g n i f i c o u m a n t e r o País b a s i c a m e n t e c o m o empresa exportadora, c o m

26 I João Antonio de Paula


b a i x o nível d e a u t o n o m i a , u m a p e q u e n a capacidade d e introjeção d e
p r o g r e s s o t e c n o l ó g i c o , sujeita, p o r c a u s a disso, à s o s c i l a ç õ e s d o m e r c a d o
i n t e r n a c i o n a l . C o m p r o v a - s e isto l e m b r a n d o a r e l a t i v a m e n t e c u r t a c a r r e i r a
de sucesso da b o r r a c h a , as freqüentes vicissitudes do m e r c a d o i n t e r n a -
c i o n a l d o café p o r o c a s i ã o d a G u e r r a C i v i l n o r t e - a m e r i c a n a e m 1 8 6 1 -
6 5 , e da grande depressão e c o n ô m i c a internacional a partir de 1873
etc.
Um p o n t o c e n t r a l a l e m b r a r a q u i é q u e , se a Lei de Terras de 1 8 5 0 e
a Lei Eusébio de Queiroz t a m b é m , de 1 8 5 0 , f o r a m i n s t r u m e n t o s s o l i d á -
rios e c o m p l e m e n t a r e s na transição para a constituição do m e r c a d o de
t r a b a l h o e d e t e r r a s n o Brasil, elas f o r a m s o b r e t u d o i n s t r u m e n t o s d a
reafirmação de um s e n h o r i o marcado pela experiência colonial, apega-
do a um projeto de d o m i n a ç ã o arcaico, em q u e a p r o d u ç ã o da riqueza,
a e c o n o m i a , r e p r o d u z e m as v e l h a s a s p i r a ç õ e s de status e p o d e r de u m a
elite p r i s i o n e i r a d e u m a m o d e r n i d a d e p e l a s m e t a d e s ( F r a g o s o e F l o -
rentino, 1996).
N e s t e s e n t i d o , os e l e m e n t o s b á s i c o s da Lei de Terras, a n t e s de a t e n d e -
r e m aos i n t e r e s s e s d e u m a b u r g u e s i a m o d e r n a , a t e n d i a m , n a q u e l e m o -
m e n t o e até u m b o m p e d a ç o d o s é c u l o X X , aos interesses d e u m s e -
n h o r i o herdeiro dos paradigmas dos p o t e n t a d o s coloniais, incapaz de
abraçar um projeto de desenvolvimento a u t ô n o m o da e c o n o m i a o q u e
i m p l i c a r i a , c o m o s e v ê e m t o d o s o s casos d e e c o n o m i a s f o r t e s — E U A ,
Japão, França, Inglaterra, etc. — em processos c o n s e q ü e n t e s de distri-
buição de renda e da riqueza, em distribuição primária da renda c o m o
assinalam A m a r t y a S e n e C e l s o F u r t a d o .
Assim, a forma particular c o m o se d e u a constituição do m e r c a d o de
t e r r a s no Brasil, p a r t e de n o s s a s i n g u l a r acumulação primitiva, s i g n i f i c o u ,
n a p r á t i c a , o a d i a m e n t o d e u m a efetiva t r a n s f o r m a ç ã o capitalista d o
campo.

O Mercado de Trabalho

Foi t a m b é m c o m o um processo marcado p o r ambigüidades e tensões


q u e s e d e u , n o Brasil, a c o n s t i t u i ç ã o d o m e r c a d o d e t r a b a l h o , n a l o n g a
e c o m p l e x a t r a n s i ç ã o d o t r a b a l h o e s c r a v o a o t r a b a l h o livre e d e s t e a o
t r a b a l h o assalariado, a q u a l t o m o u t o d o o s é c u l o X I X e p a r t e significa-
tiva do s é c u l o X X , e c u j o s e n t i d o g e r a l refletiu, nas suas v i c i s s i t u d e s e
especificidades, o m o d o atrofiado da a c u m u l a ç ã o primitiva de capital
n o Brasil. E m o u t r o t e x t o c h a m o u - s e a a t e n ç ã o p a r a u m a e s p é c i e d e
" s a u d a d e s d e a c u m u l a ç ã o p r i m i t i v a d e c a p i t a l " (Paula, 1 9 8 3 ) , q u e t e r i a

O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história I 27


m a r c a d o o d i s c u r s o das e l i t e s e m p r e s a r i a i s e m M i n a s G e r a i s d e s d e
E s c h w e g e , q u e esteve n o Brasil e n t r e 1 8 1 1 e 1 8 2 1 , até o C o n g r e s s o
Agrícola, Comercial e Industrial de Minas Gerais, de 1903. M a s n ã o
f o r a m s o m e n t e a s elites m i n e i r a s q u e v o c a l i z a r a m esta " s a u d a d e " , a n e -
c e s s i d a d e d e c o m p l e m e n t a ç ã o d o p r o c e s s o d e p r o l e t a r i z a ç ã o d a força
d e t r a b a l h o . E s t u d a n d o o d i s c u r s o das elites a g r í c o l a s das P r o v í n c i a s d e
Minas Gerais, Espírito Santo, R i o de Janeiro e São Paulo, em 1878,
Peter E i s e n b e r g detectou a m e s m a queixa-reivindicação. C o m o diz
ele:

" A q u e s t ã o d a m ã o - d e - o b r a foi u m a das q u e s t õ e s m a i s d i s c u t i d a s


nas ú l t i m a s d é c a d a s d o I m p é r i o " (...) " E m 1 8 7 8 essa q u e s t ã o v o l t o u
a ser d i s c u t i d a c o m u m a c e r t a i n s i s t ê n c i a e m d o i s c o n g r e s s o s a g r í c o l a s
r e a l i z a d o s n o R i o d e J a n e i r o , e e m R e c i f e " . (...) " A p r i m e i r a p e r g u n t a
colocada pelo ministro da Agricultura indagava sobre as necessidades
m a i s u r g e n t e s e i m e d i a t a s da g r a n d e l a v o u r a . A g r a n d e m a i o r i a das
p e s s o a s q u e r e s p o n d e u à p e r g u n t a a p o n t o u p a r a falta d e b r a ç o s : " ( . . . )
" O s e n t u s i a s t a s d o t r a b a l h a d o r livre n a c i o n a l a f i r m a r a m q u e este
v i v i a n a o c i o s i d a d e , e s t a n d o d e s e m p r e g a d o o u s u b e m p r e g a d o " (...)
" A c o n c o r d â n c i a a r e s p e i t o d a o c i o s i d a d e d o t r a b a l h a d o r livre n a c i o n a l
n ã o i m p e d i u q u e o s c o n g r e s s i s t a s d i s c o r d a s s e m q u a n t o a s causas e
c u r a s desse i n a t i v i d a d e . A s causas f o r a m e n c a r a d a s c o m o falta d e r e -
pressão, p o l i t i c a g e m e ausência de incentivos positivos. Q u e m i d e n -
tificava a o c i o s i d a d e c o m o r e s u l t a d o d a falta d e r e p r e s s ã o a p e l o u
p a r a a c o r r e ç ã o e p o l í c i a q u e m o r a l i z e e sujeite ao t r a b a l h o a classe
j o r n a l e i r a " (Eisenberg, 1 9 8 9 : 1 4 0 , 1 4 2 , 1 4 3 , 1 4 4 e 145).

N ã o é possível deixar de r e c o n h e c e r aí as m e s m a s m o t i v a ç õ e s q u e
l e v a r a m à " l e g i s l a ç ã o s a n g u i n á r i a " d e q u e fala M a r x a o e s t u d a r a a c u m u -
l a ç ã o p r i m i t i v a ; às Workhouses e o u t r a s f o r m a s de d i s c i p l i n a m e n t o da
classe o p e r á r i a e m c o n s t i t u i ç ã o .
P o r o u t r o l a d o , se se analisar o d i s c u r s o das elites a g r á r i a s n o r d e s t i n a s ,
reunidas em Recife, neste m e s m o 1878, o p a n o r a m a é outro.Tangidos
p e l a seca d e 1 8 7 7 , m i l h a r e s d e n o r d e s t i n o s ( a h i s t o r i o g r a f i a oscila e n t r e
2 0 0 e 5 0 0 m i l ) , i n t e i r a m e n t e e x p r o p r i a d o s , p e r m i t i r a m à s elites n o r d e s -
t i n a s r e s p o n d e r e m n e g a t i v a m e n t e à p e r g u n t a s o b r e a falta de b r a ç o s .
D e a c o r d o c o m E i s e n b e r g , " q u e m n e g a v a a falta d e b r a ç o s n o N o r d e s t e
0 fez e m vista d a c o n j u n t u r a d e 1 8 7 8 , q u a n d o m i l h a r e s d e s e r t a n e j o s
flagelados p e l a g r a n d e seca de 1 8 7 7 - 7 9 i n v a d i r a m a Z o n a da M a t a e a p a -
r e n t a v a m u m a grande reserva d e m ã o - d e - o b r a " (Eisenberg, 1989:170).

28 I João Antonio de Paula


E n t r e a s elites sulinas, e m 1 8 7 8 , e r a c o n s e n s u a l a tese d a n e c e s s i d a d e
d a i m i g r a ç ã o d e e s t r a n g e i r o s ( E i s e n b e r g , 1 9 8 9 : 1 5 0 ) . N a v e r d a d e , esta
q u e s t ã o , e n c a m i n h a d a d e s d e 1 8 4 7 a t r a v é s das i n i c i a t i v a s d o S e n a d o r
Vergueiro, f o r m a j u n t o c o m a Lei de Terras de 1850, e c o m a lei do fim
d o tráfico, t a m b é m d e 1 8 5 0 , a t r í a d e b á s i c a d a c o n s t i t u i ç ã o d o m e r c a d o
d e t r a b a l h o l i v r e n o Brasil. A esta t r í a d e b á s i c a d e v e m s e r associadas
ainda a Lei do Ventre Livre, de 1 8 7 1 , a Lei de L o c a ç ã o de Serviços, de
1 8 7 9 e a L e i d o s S e x a g e n á r i o s , d e 1 8 8 5 , o s d i p l o m a s legais q u e e x p l i -
c i t a r a m , n o p l a n o j u r í d i c o - i n s t i t u c i o n a l , o s r e s u l t a d o s das i m p o r t a n t e s
transformações q u e foram se dando no plano político-econômico-social,
e c u j o d e s e n l a c e foi a A b o l i ç ã o , e m 1 8 8 8 .
Em Mercado de Trabalho Livre no Brasil (1871-1888), A d e m i r G e b a r a
t r a ç o u u m q u a d r o d a c o n s t i t u i ç ã o d o m e r c a d o d e trabalho n o Brasil,
d a n d o d e s t a q u e t a n t o à lei d e 1 8 7 1 q u a n t o d e 1 8 7 9 , q u e r e p r e s e n t a r i a m
i n t e r v e n ç õ e s do E s t a d o p a r a g a r a n t i r a t r a n s i ç ã o o r d e n a d a e o c o n t r o l e
s o b r e o m e r c a d o d e t r a b a l h o n o Brasil.
Trata-se aqui de e n t e n d e r c o m o a l o n g a trajetória da abolição no
Brasil — das teses d e J o s é B o n i f á c i o , e m 1 8 2 1 , até 1 8 8 8 — c o n d e n s a
n o c o n j u n t o d e suas d e t e r m i n a ç õ e s e v i c i s s i t u d e s , a s t e n s õ e s , o s l i m i t e s
e a s c o n t r a d i ç õ e s d a c o n s t i t u i ç ã o d o c a p i t a l i s m o n o Brasil. P a r a isso,
c a b e i n i c i a r a análise p e l a L e i d o V e n t r e L i v r e , d e 1 8 7 1 , t a m b é m c h a m a d a
d e L e i R i o B r a n c o . E m 1 8 7 1 , o V i s c o n d e d o R i o B r a n c o foi c o n v i d a d o
para chefiar G a b i n e t e q u e t e r i a c o m o missão viabilizar q u a t r o g r a n d e s
r e f o r m a s — a do s i s t e m a e l e i t o r a l ; a da a d m i n i s t r a ç ã o da j u s t i ç a ; a da
G u a r d a N a c i o n a l e a do e l e m e n t o servil (Gebara, 1986:29).
Esta última r e f o r m a m a t e r i a l i z o u - s e na L e i de Ventre Livre, q u e tinha
os s e g u i n t e s a s p e c t o s b á s i c o s : 1) t o d o s os filhos de escravos n a s c i d o s a
p a r t i r d e 2 8 / 9 / 1 8 2 1 s e r i a m livres; 2 ) s e r i a c o n s t i t u í d o u m F u n d o p a r a
E m a n c i p a ç ã o de Escravos; 3) foram criadas sociedades emancipatórias
• e m a n d o u - s e l i b e r t a r os escravos p e r t e n c e n t e s a escravos e 4) em d i s p o -
sitivo b a s t a n t e s i n t o m á t i c o das m o t i v a ç õ e s d a L e i , lia-se q u e " e m g e r a l ,
o s escravos l i b e r t a d o s e m v i r t u d e d e s t a lei f i c a m d u r a n t e c i n c o a n o s
s o b a i n s p e ç ã o d o g o v e r n o . E l e s são o b r i g a d o s a c o n t r a t a r seus s e r v i ç o s
sob p e n a de s e r e m constrangidos, se v i v e r e m vadios, a trabalhar em
estabelecimentos públicos. Cessará, p o r é m , o c o n s t r a n g i m e n t o do
trabalho sempre q u e o liberto exibir contrato de serviço" (Gebara,
1986:51-52).
A L e i d o V e n t r e L i v r e , p o r seus d i s p o s i t i v o s e m o t i v a ç õ e s , r e s u l t o u
d e u m a p e r s p e c t i v a q u e , p o r v á r i a s r a z õ e s , foi s e i m p o n d o à s elites
brasileiras, a s q u a i s t i v e r a m q u e a d m i t i r o f i m d o t r a b a l h o e s c r a v o , m a s

O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história I 29


q u e p r e t e n d e r a m c o n t r o l a r e s t e p r o c e s s o p a r a q u e fosse o r d e n a d o , g r a -
d u a l e , s o b r e t u d o , s e m p r e j u í z o s p a r a o s p r o p r i e t á r i o s d e escravos...
M u i t o s e t e m d i s c u t i d o s o b r e a s d e t e r m i n a ç õ e s essenciais d o p r o c e s s o
d e A b o l i ç ã o . N o t e x t o d e G e b a r a h á u m a síntese c o m p r e e n s i v a q u e
r e l a c i o n a t a n t o a p r e s s ã o i n g l e s a , q u a n t o o r e s u l t a d o das c o n t r a d i ç õ e s
a b e r t a s p e l a p a r t i c i p a ç ã o d o s escravos na G u e r r a do P a r a g u a i , e a escalada
d e m o v i m e n t o s d e r e s i s t ê n c i a e r e b e l d i a d o s escravos a p a r t i r d e 1 8 6 0
(Gebara, 1986:49).
A L e i d o V e n t r e Livre, c o m o n o t a r a m v á r i o s e s t u d i o s o s , foi, n a v e r d a d e ,
u m a eficaz t e n t a t i v a d e e s t a b e l e c e r u m p r o c e s s o c o n t r o l a d o d e t r a n s i ç ã o
p a r a o t r a b a l h o livre, c o m u m ú n i c o i n c o n v e n i e n t e , a p o n t a d o p o r R u i
B a r b o s a , q u e e r a sua a b s o l u t a l e n t i d ã o . E s t a levaria a q u e , n o r i t m o
c o m o estava s e d a n d o o p r o c e s s o , n o s é c u l o X X , o Brasil a i n d a t e r i a
c e r c a d e 4 0 0 m i l escravos ( G e b a r a , 1 9 8 6 : 7 0 - 7 2 ) . N e s t e s e n t i d o , p o d e -
se d i z e r q u e o q u e l e v o u à A b o l i ç ã o s e m i n d e n i z a ç ã o e à efetiva r u p t u r a
r e p r e s e n t a d a p e l a L e i d e 1 8 8 8 , foi, p a r a d o x a l m e n t e , a excessiva eficácia
da Lei de 1 8 7 1 .
S e a L e i d e 1 8 7 1 c o n s t i t u i r i a u m a s i n a l i z a ç ã o clara d a m a r c h a d a i n -
t r o d u ç ã o d o t r a b a l h o l i v r e n o B r a s i l , n u m p r o c e s s o s e m sobressaltos,
a d m i n i s t r a d o pelo Estado, um o u t r o c o m p o n e n t e deste processo, a
i m i g r a ç ã o , c o n t i n u o u r e l a t i v a m e n t e a t r o f i a d o até 1 8 7 9 . F o i s ó c o m a
Lei de Locação de Serviços, de 1879, que h o u v e u m a regulamentação
das garantias dadas a o t r a b a l h a d o r i m i g r a n t e . S e g u n d o G e b a r a , " o o b j e t i v o
d a lei d e 1 8 9 7 foi t o r n a r a s c o n d i ç õ e s d e v i d a m a i s atrativas p a r a o i m i -
g r a n t e , de tal m a n e i r a q u e f o s s e m o f e r e c i d a s a eles a l g u m a g a r a n t i a e
proteção legal" (Gebara, 1986:88).
A l e g i s l a ç ã o s o b r e o t r a b a l h o n o Brasil teve seu p r i m e i r o i n s t r u m e n t o
n u m a lei d e 1 8 3 0 , r e g u l a n d o o t r a b a l h o d o s n a c i o n a i s . E m 1 8 3 7 , a lei
nº 108, de 11 de o u t u b r o r e g u l o u o trabalho dos estrangeiros.
A L e i de 1 8 7 9 t e v e três o b j e t i v o s básicos: a) a l o c a ç ã o de s e r v i ç o s
p r o p r i a m e n t e d i t o s ; b) a p a r c e r i a a g r í c o l a e c) a p a r c e r i a p e c u á r i a . No
e s s e n c i a l , esta lei v i n h a c o m p l e m e n t a r a r e g u l a m e n t a ç ã o das r e l a ç õ e s
d o t r a b a l h o n o Brasil. Veja-se a s e q ü ê n c i a d e s t e p r o c e s s o e m G e b a r a :
"escravos e libertos, pela Lei do Ventre Livre; trabalhadores agrícolas
brasileiros e i m i g r a n t e s , pela Lei de L o c a ç ã o de Serviços de 1 8 7 9 ; t r a -
balhadores n ã o - e m p r e g a d o s e m serviços agrícolas,pelo C ó d i g o C o m e r -
cial e , p a r c i a l m e n t e , p e l a s o r d e n a ç õ e s , c o m o p r e v i a m e n t e o c o r r i a "
(Gebara, 1986:90).
T o d o s o s q u e d i s c u t i r a m a L e i d e 1 8 7 9 a p o n t a r a m q u e sua m o t i v a ç ã o
essencial foi a de d e s b l o q u e a r a p e s a d a c a m a d a de suspeitas q u e , s o b r e t u d o

30 I João Antonio de Paula


n a E u r o p a , pesava s o b r e a s c o n d i ç õ e s d o s t r a b a l h a d o r e s i m i g r a n t e s n o
Brasil. A s t e n s õ e s e r e v o l t a s c o m o a s r e l a t a d a s p o r T h o m a s D a v a t z e m
s e u l i v r o Memórias de um Colono no Brasil (1850), d a n d o c o n t a das t e n -
tativas d e e s c r a v i z a ç ã o d o s i m i g r a n t e s p r e c i s a v a m ser afastadas p a r a q u e
o Brasil, e f e t i v a m e n t e , p u d e s s e c o n t i n u a r a r e c e b ê - l o s . A l e i de 1 8 7 9
dava essa g a r a n t i a .
C o n t u d o , foi s ó c o m a efetiva e n t r a d a d o E s t a d o n o p r o c e s s o , m e d i a n -
te o f i n a n c i a m e n t o do t r a n s p o r t e e da i n s t a l a ç ã o dos i m i g r a n t e s , q u e a
imigração alcançou o caráter m a c i ç o q u e teve entre 1885 e 1914.
T o d a s as m u d a n ç a s a p o n t a d a s a q u i — a m o d e r n i z a ç ã o das r e l a ç õ e s
de t r a b a l h o , a m e r c a n t i l i z a ç ã o da t e r r a — t ê m mais de u m a d e t e r m i n a ç ã o .
D e q u a l q u e r f o r m a n ã o será r e d u c i o n i s m o a f i r m a r q u e o n ú c l e o p r i n c i -
pal destas m u d a n ç a s foi a e c o n o m i a cafeeira. A idéia básica é a de q u e o
café e m sua e x p a n s ã o foi e n f r e n t a n d o c e r t o s obstáculos cuja r e m o ç ã o i m -
p l i c o u e m t r a n s f o r m a ç õ e s estruturais d a v i d a e c o n ô m i c a e social n o Brasil.
O p r i m e i r o o b s t á c u l o q u e se c o l o c o u p a r a a e x p a n s ã o c a f e e i r a foi o
relativo à m ã o - d e - o b r a . Pressionado pela Inglaterra, afetado pelas c o n -
s e q ü ê n c i a s d a G u e r r a d o P a r a g u a i , desafiado p e l a a c e l e r a ç ã o d a resistência
d o s escravos, o I m p é r i o i r i a r e s p o n d e r p r i m e i r o e m 1 8 5 0 c o m o f i m d o
tráfico, a o m e s m o t e m p o e m q u e r e s o l v e u " f e c h a r a f r o n t e i r a " — i s t o é ,
i m p e d i r o acesso à t e r r a , b a i x a n d o a L e i de T e r r a s . Estas d u a s m e d i d a s
legais f o r a m o s p o n t o s d e p a r t i d a d a c o n s t i t u i ç ã o d o s m e r c a d o s d e t r a -
b a l h o e de terras. Ao lado da abolição g r a d u a l da escravatura, o m e r c a d o
d e t r a b a l h o n o Brasil seria d e c i s i v a m e n t e i n c r e m e n t a d o p e l a p o l í t i c a d e
i m i g r a ç ã o — seja p o r m e i o d a L e i d e L o c a ç ã o d e S e r v i ç o s d e 1 8 7 9 ,
seja pelas leis p r o v i n c i a i s de S ã o P a u l o . Veja-se a r e s p e i t o o q u e d i z
Emília Viotti da Costa:

" E n t r e 1 8 8 4 e 1 8 8 8 , v á r i a s leis f o r a m a p r o v a d a s p e l a A s s e m b l é i a
Legislativa d e s t i n a d a s a f a v o r e c e r a i m i g r a ç ã o : L e i P r o v i n c i a l de 29 de
m a r ç o d e l 8 8 4 , l e i d e l 1 d e fevereiro d e 1 8 8 5 , d e 2 1 d e m a r ç o d e 1 8 8 5 ,
de 28 de m a i o de 1886, de 11 de abril de 1 8 8 7 " (Costa, 1 9 8 9 : 2 1 9 ) .

U m o u t r o o b s t á c u l o q u e iria c o l o c a r - s e p a r a a e x p a n s ã o cafeeira foi


a t e r r a . H a v i a a q u i d u a s q u e s t õ e s i m b r i c a d a s . A p r i m e i r a se r e f e r i a ao
e s g o t a m e n t o das t e r r a s d a g e o g r a f i a t r a d i c i o n a l d o café: d a C o r t e a o
Vale do P a r a í b a F l u m i n e n s e e Paulista, e daí à Z o n a da M a t a de M i n a s
G e r a i s . O e s g o t a m e n t o destas t e r r a s l e v o u à o c u p a ç ã o das t e r r a s do
c h a m a d o " O e s t e V e l h o " d e S ã o P a u l o , c u j o c e n t r o foi a c i d a d e d e C a m -
p i n a s , e m a i s t a r d e a s t e r r a s d o " O e s t e N o v o " , cuja c e n t r a l i d a d e seria

O mercado e o mercado interno no Brasil:conceito e história I 31


dada p o r R i b e i r ã o Preto. Nessa c a m i n h a d a para O e s t e a produtividade
f í s i c a d o s cafezais m a i s d o q u e d o b r o u . U m o u t r o p o n t o a d e s t a c a r a q u i
é q u e a l u c r a t i v i d a d e da a t i v i d a d e c a f e e i r a e sua r á p i d a e x p a n s ã o
determinaram, efetivamente, a c o m p l e m e n t a ç ã o do "fechamento da
f r o n t e i r a " , c o m a t e r r a p a s s a n d o a ser m o n o p o l i z a d a p e l o s g r a n d e s
proprietários.
O t e r c e i r o o b s t á c u l o e n f r e n t a d o p e l a e x p a n s ã o cafeeira residia n o
s i s t e m a de t r a n s p o r t e s . A r e s p o s t a a este o b s t á c u l o , o d e s e n v o l v i m e n t o
das ferrovias, b a r a t e o u os c u s t o s de t r a n s p o r t e s e a m p l i o u a c a p a c i d a d e
d e c a r g a , p e r m i t i n d o u m a efetiva i n t e g r a ç ã o e n t r e a s áreas p r o d u t o r a s e
o s p o r t o s , e , afinal, c r i a n d o c o n d i ç õ e s p a r a a u n i f i c a ç ã o d o m e r c a d o
i n t e r n o . De resto, a e x p a n s ã o ferroviária t a m b é m teve repercussões
i m p o r t a n t e s s o b r e o d e s e n v o l v i m e n t o d a m e c a n i z a ç ã o n o Brasil (Silva,
1976).

Limites da Constituição do Mercado Interno no Brasil

D e s d e a I n d e p e n d ê n c i a , é possível rastrear v á r i a s iniciativas do E s t a d o


no sentido de instaurar no Brasil relações mercantis em substituição às
velhas instituições d o A n t i g o R e g i m e . S e n ã o vejamos: 1 ) e m 1824, n a
C o n s t i t u i ç ã o , são abolidas as c o r p o r a ç õ e s de ofício; 2) em 1 8 3 5 é a b o l i d o
o i n s t i t u t o d o m o r g a d i o ; 3 ) e m 1 8 5 0 é p r o i b i d o d o tráfico d e escravos;
4) t a m b é m em 1850 é baixada Lei de Terras; 5) no m e s m o a n o de 1850,
a p r o v a - s e o C ó d i g o C o m e r c i a l ; 6) d a t a de 1 8 6 4 a r e g u l a m e n t a ç ã o das
h i p o t e c a s f u n d i á r i a s ( S m i t h , 1 9 9 0 : 3 7 7 ) . S e a esta lista d e R o b e r t o S m i t h
se a d i c i o n a r a l e g i s l a ç ã o s o b r e a A b o l i ç ã o — de 1 8 7 1 , 1 8 8 5 e 1 8 8 8 —
b e m c o m o a relativa à i m i g r a ç ã o e à l o c a ç ã o d e s e r v i ç o s , t e r - s e - á u m
quadro em q u e transparece o papel do Estado c o m o agente de m o d e r -
nização institucional, s e m p r e refletindo, é claro, interesses e m o t i v a ç õ e s
de setores do s e n h o r i o brasileiro.
N e s t e sentido, apesar d o atraso c o m q u e algumas m e d i d a s f o r a m
tomadas, apesar da procrastinação e da t i m i d e z de certas atitudes, d e v e -
s e c o n c l u i r p e l a e x i s t ê n c i a d e u m p r o j e t o m o d e r n i z a n t e n o Brasil i m -
p e r i a l . C o n t u d o , e é esta a q u e s t ã o c e n t r a l , tais iniciativas e m u d a n ç a s
f o r a m d e tal o r d e m e f o r a m m a r c a d a s p o r tais l i m i t a ç õ e s , q u e o r e s u l t a d o
f i n a l seria a i n s t a u r a ç ã o d e u m a m o d e r n i d a d e atrofiada, a c o n s t i t u i ç ã o
de um m e r c a d o i n c o m p l e t o e e x c l u d e n t e , a afirmação de privilégios e
d e s e q u i l í b r i o s , e a r e i t e r a ç ã o de d e s i g u a l d a d e s sociais e r e g i o n a i s c o m p r o -
metedoras tanto da construção nacional quanto da democracia.
Estes a s p e c t o s p r o b l e m á t i c o s d a m o d e r n i z a ç ã o brasileira t a n t o p o d e m

32 I João Antonio de Paula


ser p e r c e b i d o s n o p l a n o i n t e r n o , p e l a análise d a h e t e r o g e n e i d a d e r e g i -
o n a l d o p r o c e s s o d e c o n s t i t u i ç ã o d o m e r c a d o i n t e r n o n o Brasil, c o m o
p o d e m ser i n f e r i d o s a t r a v é s d a c o m p a r a ç ã o d e s t e s processos c o m o s
e x p e r i m e n t a d o s p o r o u t r o s países. U m a c o m p a r a ç ã o a q u e n ã o s e resis-
t e é a c o m o s E s t a d o s U n i d o s . C o m p a r a ç ã o q u e será t a n t o m a i s l e g í t i -
m a q u a n t o m a i s a s d i f e r e n ç a s das t r a j e t ó r i a s d o s d o i s países s e j a m c o n -
s i d e r a d a s e m t e r m o s r i g o r o s a m e n t e h i s t ó r i c o s , p a r a a l é m dos p r e c o n -
c e i t o s q u e c o s t u m a m c e r c a r estas q u e s t õ e s .
N e s t e esforço c o m p a r a t i v o serão c o n s i d e r a d o s os seguintes aspectos
c o m o índices do desenvolvimento do m e r c a d o interno: 1) a população;
2) as i m i g r a ç õ e s ; 3) a m a l h a f e r r o v i á r i a ; 4) os t r a b a l h a d o r e s no s e t o r i n -
d u s t r i a l ; e 5) o n ú m e r o de u n i d a d e s i n d u s t r i a i s .
No q u e se refere à p o p u l a ç ã o o q u a d r o é o s e g u i n t e :

Tabela 1. População do Brasil e dos Estados Unidos (1800-1930) em milhões de pessoas

Anos BRASIL ESTADOS U N I D O S


1800 3,33 3,93
1850 7,23 23,19
1870 9,80 39,82
1890 14,20 62,95
1900 17,98 75,99
1920 27,40 105,71
1930 33,57 122,78

Fonte: Merrick e Graham, 1980:47.

A expressiva d e f a s a g e m q u e foi se e s t a b e l e c e n d o e n t r e o c r e s c i m e n -
t o p o p u l a c i o n a l d o s d o i s países a o l o n g o d o s é c u l o X I X d e v e u - s e ,
s o b r e t u d o , à i m i g r a ç ã o . V e j a - s e a r e s p e i t o o q u a d r o q u e segue:

Tabela 2. Imigração para o Brasil e os Estados Unidos (1860-1920) — número de pessoas

Anos BRASIL ESTADOS U N I D O S


1860-1869 110.093 2.000.000
1870-1879 193.931 3.000.000
1880-1889 527.869 5.000.000
1890-1899 1.205.803 4.000.000
1900-1909 649.898 9.000.000
1910-1919 821.458 6.000.000

Fontes: Ianni, 1963:99; Cole, 1 9 6 6 : 9 8 .

O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história I 33


Um aspecto decisivo, a p o n t a d o p o r t o d o s os q u e se d e d i c a r a m a
e s t u d a r a c o n s t i t u i ç ã o do m e r c a d o i n t e r n o capitalista, é o r e f e r e n t e ao
d e s e n v o l v i m e n t o do sistema de c o m u n i c a ç õ e s e transportes. N e s t e s e n -
t i d o t e r i a u m a i m p o r t â n c i a decisiva, t a n t o p a r a o caso p i o n e i r o i n g l ê s ,
q u a n t o p a r a o u t r a s e c o n o m i a s , a e x p a n s ã o das ferrovias. V á r i o s a u t o -
res s u b l i n h a r a m o p a p e l e s t r u t u r a n t e e f o r m a t i v o das ferrovias e m p e l o
m e n o s três a s p e c t o s : c o m o m e c a n i s m o d e u n i f i c a ç ã o d o m e r c a d o i n -
t e r n o ; c o m o i n s t r u m e n t o de b a r a t e a m e n t o dos custos de transporte; e
c o m o instrumento indutor de desenvolvimento tanto da indústria de
b e n s d e capital q u a n t o d a f o r m a ç ã o d a m ã o - d e - o b r a i n d u s t r i a l . T r a t a -
se pois de ver na e x p a n s ã o ferroviária um í n d i c e de consistência e força
d o m e r c a d o i n t e r n o . C o m o disse E d w a r d C . K i r k l a n d r e f e r i n d o - s e aos
Estados U n i d o s :

" A s ferrovias a g r e g a d a s às p o s s i b i l i d a d e s do Homestead Act, c o -


l o n i z a r a m o O e s t e c o m a r a p i d e z d o f o g o nas p r a d a r i a s ; e , a o m e s m o
t e m p o q u e n o O e s t e t i n h a m l u g a r estas m u d a n ç a s , a s ferrovias fa-
cilitariam a c o n c e n t r a ç ã o de indústrias no Leste dos Estados U n i d o s "
(Kirkland, 1947:363).

Eis os d a d o s c o m p a r a t i v o s e n t r e a e x p a n s ã o f e r r o v i á r i a do Brasil e
dos Estados Unidos:

Tabela 3. Expansão das Ferrovias no Brasil e nos Estados Unidos (1860-1920) em quilômetros

Anos BRASIL ESTADOS U N I D O S


1860 216 49.008
1870 808 85.440
1880 3.488 135.028,8
1890 16.225,6 258.235,2
1900 - 310.819,2
1910 27.148,8 387.371,2
1920 38.820,8 405.043,2

Fonte: C O L E , 1966, Anexo.

Os trabalhadores industriais nos Estados U n i d o s eram 9 5 7 . 0 5 9


em 1849, passando a 2 . 0 5 3 . 9 9 6 em 1869 (Costa, s.d.:157-158). Para o
Brasil os n ú m e r o s f o r a m os seguintes: 5 4 . 1 6 9 trabalhadores i n d u s -
triais e m 1 8 8 9 ; 1 4 9 . 0 1 8 e m 1 9 0 7 , e 2 7 5 . 5 1 2 e m 1 9 2 0 (Silva, 1 9 7 6 : 7 8 ) .
N o q u e s e refere a o n ú m e r o d e e m p r e s a s i n d u s t r i a i s o s E s t a d o s U n i d o s
t i n h a m , em 1 8 4 8 , 1 2 3 . 0 2 5 , e passaram a ter 3 5 3 . 8 6 3 em 1868 (Costa,
s.d., l o c . c i t . ) . A m a r c h a d a i n s t a l a ç ã o d e e m p r e s a s i n d u s t r i a i s n o Brasil

34 I João Antonio de Paula


foi a s e g u i n t e : e m 1 8 7 0 e x i s t i a m 6 3 6 , e m 1 9 0 7 este n ú m e r o p a s s o u a
3 . 2 5 8 , c h e g a n d o a 1 3 . 3 3 6 e m 1 9 2 0 (Silva, 1 9 7 6 : 7 8 ) .
São n ú m e r o s q u e impressionam, sobretudo, q u a n d o se considera q u e
a p o p u l a ç ã o d o s países e r a s e m e l h a n t e n o i n í c i o d o s é c u l o X I X , e q u e
o s d o i s t a m b é m s e a s s e m e l h a m d o p o n t o d e vista d o t a m a n h o d o t e r r i -
t ó r i o . Estas g r i t a n t e s d i s p a r i d a d e s n ã o são r e s u l t a d o s d e q u a l q u e r f a t a -
l i d a d e n a t u r a l , d e q u a l q u e r c o n d e n a ç ã o c l i m á t i c a o u racial. E l a s s ã o o s
r e s u l t a d o s d e d u a s t r a j e t ó r i a s distintas d e r e c e p ç ã o - c o n s t r u ç ã o d o c a p i -
talismo. D e s d e logo, um p o n t o central a se destacar é q u e a vigorosa
e x p a n s ã o c a p i t a l i s t a n o r t e - a m e r i c a n a d e v e u - s e à sua s i n g u l a r í s s i m a
e x p e r i ê n c i a c o l o n i a l . Isto é , o s E s t a d o s U n i d o s , d e fato, n u n c a f o r a m
c o l ô n i a , n o s e n t i d o e c o m a s i m p l i c a ç õ e s q u e isto t e v e p a r a o Brasil
(Paula, 1 9 9 2 ) . E s t a p e c u l i a r i d a d e p e r m i t i u q u e o s E s t a d o s U n i d o s p u -
d e s s e m sair d a c o n d i ç ã o c o l o n i a l , e m 1 7 7 6 , d e t e n t o r e s d e c o n s i d e r á v e l
b a s e d e a c u m u l a ç ã o i n t e r n a , t e n d o s i d o esta a p r i n c i p a l alavanca d o s e u
d e s e n v o l v i m e n t o capitalista. O u seja, o s E s t a d o s U n i d o s c o n s e g u i r a m ,
j á d u r a n t e o p e r í o d o c o l o n i a l , realizar u m d o s d o i s p r o c e s s o s essenciais
da a c u m u l a ç ã o primitiva — a a c u m u l a ç ã o de capital-dinheiro, de r i -
q u e z a m o n e t á r i a e f i n a n c e i r a — q u e seria a b a s e da sua g r a n d e e x p a n -
são n a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o X I X e n o i n í c i o d o X X .
T r a t a - s e , e n t ã o , d e r e c o n h e c e r q u e h á u m a d i f e r e n ç a essencial e n t r e
o Brasil e o s E s t a d o s U n i d o s , q u e e x p l i c a g r a n d e p a r t e das d i s t i n t a s t r a -
j e t ó r i a s capitalistas destes países e q u e foi a forma como viveram a condição
colonial. A esta d e t e r m i n a ç ã o básica a c r e s c e n t e - s e u m d e s d o b r a m e n t o
d i s t o q u e foi a f o r m a c o m o o s d o i s países d e s e n v o l v e r a m seus p r o c e s s o s
d e a c u m u l a ç ã o p r i m i t i v a — seja e m t e r m o s d e v e l o c i d a d e , seja e m t e r -
m o s d e e x t e n s ã o e p r o f u n d i d a d e , seja, s o b r e t u d o , n o r e l a t i v o a o g r a u d e
a u t o n o m i a destes processos.
O essencial das d i f e r e n ç a s e n t r e os d o i s países, n e s t e s e n t i d o , está no
fato de q u e t a n t o o processo de constituição do m e r c a d o i n t e r n o no
Brasil, q u a n t o o d e r e a l i z a ç ã o m a i s g e r a l d a a c u m u l a ç ã o p r i m i t i v a , f o r a m
marcados p o r atrofiamento, incompletamento, heterogeneidade e d e -
p e n d ê n c i a e x t e r n a , e , s o b r e t u d o , p o r u m a tal d e s t i n a ç ã o , q u e a c a b o u
p o r reiterar velhos privilégios oligárquicos antes de generalizar e i m -
pessoalizar as r e l a ç õ e s capitalistas.
P o r outro lado, u m a outra g r a n d e diferença entre os processos de
i n s t a u r a ç ã o capitalista n o s d o i s países foi a c i r c u n s c r i ç ã o d o p r o c e s s o
n o Brasil, d u r a n t e t e m p o c o n s i d e r á v e l , à P r o v í n c i a d e p o i s E s t a d o d e
São P a u l o . D i t o d e o u t r a f o r m a : d e s d e o final d o s é c u l o X I X e até o s
a n o s 1 9 5 0 , se n ã o a t é d a t a p o s t e r i o r , a i n d u s t r i a l i z a ç ã o capitalista, a

O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história I 35


g e n e r a l i z a ç ã o d o m e r c a d o capitalista n o Brasil r e s t r i n g i u - s e p r a t i c a -
m e n t e a S ã o P a u l o , c o m o r e s u l t a d o d a sua d i n â m i c a cafeeira e das t r a n s -
f o r m a ç õ e s q u e ela e n g e n d r o u e m u l t i p l i c o u .
N e s t e s e n t i d o , a c o m p a r a ç ã o e n t r e a e x p a n s ã o cafeeira p a u l i s t a e a
q u e o c o r r e u e m Minas Gerais n o m e s m o p e r í o d o p o d e lançar alguma
luz sobre aspectos i m p o r t a n t e s da questão. Trata-se aqui de atentar para
u m a d i f e r e n ç a decisiva q u e s i n g u l a r i z o u o caso d e S ã o P a u l o . E s t a d i f e -
r e n ç a foi a e x t r a o r d i n á r i a e x p a n s ã o cafeeira d e S ã o P a u l o e m sua m a r c h a
p a r a o o e s t e , vis-à-vis à c r e s c e n t e e s t a g n a ç ã o t a n t o da c a f e i c u l t u r a flu-
m i n e n s e , q u a n t o da m i n e i r a e a do Vale do P a r a í b a paulista. As cidades
mortas, d e q u e fala M o n t e i r o L o b a t o , são o o u t r o l a d o d e u m a m o e d a
q u e t e m u m a o u t r a face b r i l h a n t e , e x p a n s i v a d e p r o s p e r i d a d e e o t i m i s m o ,
nas c i d a d e s q u e n a s c e r a m e s e e n r i q u e c e r a m c o m o café. C o m o d i z
Sérgio Milliet:

"O avanço se processou na obediência a duas determinantes


p r i n c i p a i s : e v i t a r a l i n h a d o T r ó p i c o , a b a i x o d a q u a l o c l i m a n ã o fa-
v o r e c i a , e d e m a n d a r as g r a n d e s florestas de t e r r a v i r g e m e m i l i o n á r i a .
O o e s t e é o p o n t o c a r d e a l do a g r i c u l t o r , o h o r i z o n t e p a r a o q u a l ele
s e d i r i g e , e q u e r e c u a s e m p r e e s e m p r e , até p e r d e r - s e n o n o r t e d o
Paraná, o n d e desde alguns anos, se v ê m i m p l a n t a n d o as primeiras
f a z e n d a s a i n d a t r i b u t á r i a s das estradas d e f e r r o p a u l i s t a s . "
" A t r á s do café, e p o r v e z e s à sua frente, p e n e t r a m as ferrovias.
C o m elas o s c o l o n o s e s t r a n g e i r o s e o c o m é r c i o s e m i - s e d e n t á r i o .
C i d a d e s e r g u e m - s e , c r e s c e m rápidas, s e m t e m p o s u f i c i e n t e p a r a t o m a r
p é , s e m raízes b a s t a n t e f o r t e s p a r a resistir d e s d e l o g o à s v i c i s s i t u d e s
da m a r c h a vertiginosa e fatigante" (Milliet, 1 9 8 2 : 1 9 - 2 4 ) .

T r a t a - s e d e u m a v a n ç o v e r t i g i n o s o c o m o foi d i t o , a v a n ç o esse q u e
s i g n i f i c o u : 1) a c r i a ç ã o de c o n d i ç õ e s p a r a o e f e t i v o f e c h a m e n t o da
f r o n t e i r a , n o s s o " c e r c a m e n t o das t e r r a s " , c o m o s u r g i m e n t o d a r e n d a
da t e r r a e o e n c a r e c i m e n t o de seus p r e ç o s ; 2) a a c e l e r a ç ã o da e n t r a d a de
i m i g r a n t e s , n e s t e s e n t i d o a efetiva c o n s t i t u i ç ã o d o m e r c a d o d e t r a b a l h o
l i v r e e m S ã o P a u l o ; 3 ) e , f i n a l m e n t e , a e x p a n s ã o f e r r o v i á r i a q u e foi i n s -
t r u m e n t o d a plena unificação d o m e r c a d o i n t e r n o paulista.
S e c o m p a r a r m o s este q u a d r o c o m o p r e v a l e c e n t e e m o u t r a s r e g i õ e s
d o País, o c o n t r a s t e é expressivo. U m a p r i m e i r a c o m p a r a ç ã o c o m M i n a s
G e r a i s m o s t r a q u e , até 1 8 8 0 , a p r o d u ç ã o cafeeira d e S ã o P a u l o a s s e m e l h a -
v a - s e à de M i n a s Gerais e Rio de J a n e i r o . F o i a p a r t i r daí q u e o c o r r e u o
g r a n d e salto, e este c o r r e s p o n d e à definitiva c h e g a d a do café ao Oeste Novo.

36 I João Antonio de Paula


N o q u e s e refere a M i n a s G e r a i s , o s é c u l o X I X , c o m o t a m b é m j á
o c o r r e r a n o s é c u l o X V I I I , foi m a r c a d o p e l a d i v e r s i f i c a ç ã o p r o d u t i v a ,
d i s p e r s ã o espacial, e p u l v e r i z a ç ã o d o s e m p r e e n d i m e n t o s . E m q u e p e s e
a e x i s t ê n c i a de i m p o r t a n t e s d i f e r e n ç a s de ê n f a s e e de p o n t o s de v i s t a , a
m o d e r n a historiografia e c o n ô m i c a sobre M i n a s Gerais n o século X I X
talvez r e c o n h e ç a , no geral, q u e o traço efetivamente m a r c a n t e da e c o -
n o m i a mineira, n a q u e l e p e r í o d o , traduziu-se, ao lado de seu d i n a m i s m o ,
silencioso ou não, d e p e n d e n t e da nova m i n e r a ç ã o ou não, resultante ou
n ã o d a e x p a n s ã o c a f e e i r a , n a a u s ê n c i a d e u m efetivo p r o c e s s o d e p r o -
l e t a r i z a ç ã o e d e c o n s t i t u i ç ã o d e u m m e r c a d o capitalista d e t e r r a s . A
i d é i a básica a q u i é q u e o d i n a m i s m o q u e e f e t i v a m e n t e o c o r r e u e m
M i n a s Gerais n o século X I X deu-se n o c o n t e x t o d e u m a reiteração
t a n t o das velhas r e l a ç õ e s d e t r a b a l h o e e s c r a v i d ã o , q u a n t o d a m a n u t e n ç ã o
da velha estrutura de posse de terras.
N e s t e sentido, a g r a n d e diferenciação entre M i n a s Gerais e São P a u l o
iria d a r - s e p ó s - 1 8 8 0 , p e l a a c e l e r a ç ã o d a a c u m u l a ç ã o p r i m i t i v a q u e o c o r -
r e u e m S ã o P a u l o , e n q u a n t o q u e e m M i n a s G e r a i s , até a d é c a d a d e
1950, m e s m o em regiões c o m considerável grau de m o d e r n i d a d e , p r e -
v a l e c e r i a m t r a ç o s d e u m p r o c e s s o d e p r o l e t a r i z a ç ã o i n c o m p l e t a (Paula,
1983).
N u m v o l u m e c o l e t i v o , F r é d é r i c M a u r o , La Préindustrialisation du Brésil,
( 1 9 8 4 ) , o r g a n i z o u u m p a n o r a m a geral d o s p r o c e s s o s d e i n d u s t r i a l i z a ç õ e s
regionais n o Brasil, q u e n ã o resultaram, n o século X I X e n a p r i m e i r a
m e t a d e d o s é c u l o X X , n u m a c o n s o l i d a ç ã o d a g r a n d e i n d ú s t r i a capitalista,
c o m o e m S ã o P a u l o . O e s f o r ç o m e r i t ó r i o desses t r a b a l h o s foi o d e s u -
b l i n h a r q u e o caso d e S ã o P a u l o n ã o é u m c a m i n h o a ser s e g u i d o , m a s
o resultado de um processo histórico c o n c r e t o irrepetível.
D e s t e fato d e c o r r e m várias q u e s t õ e s a se c o n s i d e r a r : 1) q u e a a t u a l
h e g e m o n i a i n d u s t r i a l e e c o n ô m i c a d e S ã o P a u l o foi r e s u l t a n t e d o p i o -
n e i r i s m o paulista e m c o m p l e t a r a a c u m u l a ç ã o p r i m i t i v a d e c a p i t a l e m
seus a s p e c t o s e s s e n c i a i s ; 2 ) q u e , n e s t e s e n t i d o , e n u m a c o m p r e e n s ã o
g l o b a l d o d e s e n v o l v i m e n t o d o c a p i t a l i s m o n o Brasil, t e m q u e s e b u s c a r
e s t a b e l e c e r o c o n j u n t o das c i r c u n s t â n c i a s q u e c o n d i c i o n a r a m , e m c a d a
caso, c a d a p r o c e s s o r e g i o n a l d e a c u m u l a ç ã o p r i m i t i v a d e capital; 3 ) q u e ,
assim, c o n s t i t u i r e d u c i o n i s m o injustificável r e s u m i r a h i s t ó r i a e c o n ô m i -
c a d o Brasil, n o s é c u l o X I X , à t r a j e t ó r i a d a e c o n o m i a cafeeira e m S ã o
P a u l o ; 4 ) q u e , e m q u a l q u e r caso, o d e s e n v o l v i m e n t o d o c a p i t a l i s m o n o
Brasil foi e é p r o f u n d a m e n t e c o n d i c i o n a d o p e l o c o n j u n t o das f o r m a s
d e i n s e r ç ã o d a e c o n o m i a brasileira n o c a p i t a l i s m o i n t e r n a c i o n a l ; e 5 )
f i n a l m e n t e , ressaltar q u e o d e s e n v o l v i m e n t o a u t ô n o m o d a e c o n o m i a

O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história I 37


brasileira, sua c a p a c i d a d e d e c o n t e m p l a r a m e l h o r i a d e q u a l i d a d e d e
vida do c o n j u n t o da população d e p e n d e do grau de generalização da
d i s t r i b u i ç ã o p r i m á r i a d a r e n d a , tal c o m o foi p o s t u l a d o p o r C e l s o F u r t a d o
em A Construção Interrompida ( 1 9 9 2 ) .

Bibliografia
B r a u d e l , F e r n a n d . Civilização Material, Economia e Capitalismo. Trad. p o r c . T o m o II.
Lisboa: C o s m o s , 1 9 8 5 .
C a r d o s o , C i r o F. S. Agricultura, Escravidão e Capitalismo. 2ª edição. Petrópolis:Vozes, 1982,
cap. IV.
a
C o l e , G . D . H . Introducción a la Historia Económica. 3 edição, trad. esp. M é x i c o : F C E ,
1966.
C o s t a , Emília Viotti da. Da Monarquia à República. 5ª edição. São Paulo: Brasiliense, s.d.
________. Da Senzala à Colônia, 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1989.
E i s e n b e r g , P e t e r L. Homens Esquecidos. C a m p i n a s : E D U N I C A M P , 1989.
Fragoso, J o ã o e Florentino, M a n o l o . O Arcaísmo como Projeto.2ª edição. R i o de Janeiro:
Sette Letras, 1 9 9 6 .
F u r t a d o , Celso. Brasil. A Construção Interrompida. R i o de J a n e i r o : Paz e Terra, 1 9 9 2 .
Gebara, A d e m i r . O Mercado de Trabalho Livre no Brasil (1871-1888). São Paulo:Brasiliense,
1986.
a
H u i z i n g a , J o h a n . El concepto de la Historia. Trad. esp. 8 edição. M é x i c o : F C E , 1 9 8 0 .
I a n n i , O c t a v i o . Industrialização c Desenvolvimento Social no Brasil. R i o de Janeiro: Civili-
zação Brasileira, 1 9 6 3 .
Iglésias, Francisco. Política Econômica do Governo Provincial Mineiro (1835-1889). R i o de
Janeiro: I N L , 1 9 5 8 .
________. Introdução à Historiografia Econômica. Belo H o r i z o n t e : F C E / U M G , 1959.
Kirkland, E d w a r d C. Historia Económica de Estados Unidos. 2ª edição, trad. esp. M é x i c o :
FCE, 1947.
L ê n i n , V . I. El Desarrollo del Capitalismo en Rusia. 3ª edição, trad. esp. B u e n o s Aires:
Estudio, 1973.
M a r x , Karl. O Capital. Livro I, trad. p o r t . R i o de Janeiro: Civilização Brasileira, 1 9 6 8 .
M a u r o , F r é d é r i c . (org.). La Préindustrialization du Brésil. Paris: C N R S , 1984.
M e l o , E v a l d o Cabral de. O Norte Agrário e o Império. R i o de Janeiro: N o v a F r o n t e i r a /
INL, 1984.
M e r r i c k , T h o m a s e G r a h a m , D o u g l a s . " P o p u l a ç ã o e D e s e n v o l v i m e n t o no Brasil: u m a
perspectiva h i s t ó r i c a " in N e u h a u s , Paulo (org.). Economia Brasileira: uma visão históri-
ca. R i o d e Janeiro: C a m p u s , 1 9 8 0 .
a
Milliet, Sérgio. Roteiro do Café e Outros Ensaios. 4 edição. São P a u l o : H U C I T E C / I N L ,
1982.
N e a l e , W a l t e r C. " E l m e r c a d o en la t e o r i a y la h i s t o r i a " , in Polanyi, Karl e o u -
tros. Comércio y Mercado en los Imperios Antiguos, trad. esp. Barcelona: Labor, 1 9 7 6 .
Paula, J o ã o A n t ô n i o de. " D o i s Ensaios sobre a G ê n e s e da Industrialização em M i n a s
Gerais: a Siderurgia e a Indústria T ê x t i l " , in II Seminário sobre a Economia Mineira.
Belo Horizonte: U F M G , 1983.
_ _ _ _ _ _ _ _ . " C o l o m b o e T i r a d e n t e s : Ensaios sobre a C o l o n i z a ç ã o e a D e s c o l o n i z a ç ã o " , i n
V I S e m i n á r i o sobre a E c o n o m i a M i n e i r a . B e l o H o r i z o n t e : U F M G , 1992.

38 I João Antonio de Paula


Polányi, K a r l . " A nossa obsoleta m e n t a l i d a d e m e r c a n t i l " , in Revista Trimestral de Letras e
Idéias. P o r t o : A f r o n t a m e n t o , 1978.
P o r t o , Costa. Estudo sobre Sistema Sesmarial. R e c i f e : Imprensa Universitária, 1 9 6 5 .
S c h w a r t z , Stuart. Segredos Internos. Trad. p o r t . São P a u l o : Cia. das Letras, 1 9 8 8 .
Sereni, Emílio. Capitalismo y Mercado Nacional. Trad. esp. Barcelona: Crítica, 1 9 8 0 .
Silva, José Bonifácio de A n d r a d a e. Escritos Políticos. São P a u l o : O b e l i s c o , 1964.
Silva, Ligia O s ó r i o . " T a v a r e s Bastos e a questão agrária no I m p é r i o " , in História Econô-
mica e História de Empresas. São P a u l o : H U C I T E C / A B P H E , 2° semestre, 1 9 9 8 .
Silva, Sérgio. Expansão Cafeeira e Origens da Indústria no Brasil. São P a u l o : A l f a - Ô m e g a ,
1976.
S m i t h , R o b e r t o . Propriedade da Terra e Transição. São P a u l o : Brasiliense, 1 9 9 0 .
W o o d , E l l e n Meiksins. A Origem do Capitalismo. T r a d . p o r t . R i o de J a n e i r o : J o r g e Z a h a r ,
2001.

O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história I 39

Você também pode gostar