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Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

Leitura e Redação de Textos Filosóficos

Será razoável crer em Deus? Uma resposta wittgensteiniana


Por Mateus Santos Aguiar
Um dos projetos mais recorrentes do pensamento ocidental é a tentativa de justificar
racionalmente a crença em Deus. Diversas propostas que compartilhavam esse objetivo
surgiram ao longo da história. Pensadores como Santo Anselmo, Tomás de Aquino e
René Descartes elaboraram argumentos que se tornaram clássicos na tradição filosófica
em defesa da existência divina. É notório que todos esses argumentos trabalham com a
hipótese de a crença religiosa ser justificada caso haja dados na realidade que
comprovem ou tornem plausível a existência de Deus. Essa visão é chamada de visão
factual, ou evidencialismo. De acordo com ela, crentes tentam fornecer as mais diversas
provas da existência divina, enquanto não-crentes tentam fornecer os motivos pelos
quais a existência de Deus seria impossível ou, no mínimo, bastante improvável.
A visão factual, portanto, trabalha com a ideia de Deus ser um objeto entre objetos. Isso
significa que, por mais que a definição mais clássica de Deus considere a ideia de um
ser sobrenatural, onisciente, onipotente e onipresente - uma espécie de “superser” -,
ainda assim ele é, ou seja, existe. A visão factual, nesse sentido, sustenta-se
ontologicamente. O debate entre crentes e não-crentes a esse respeito é constante e
interminável, apresentando visões e interpretações distintas das provas e argumentos a
favor da existência de Deus. Em tese, o debate restaria finalizado caso houvesse provas
definitivas que tornassem um dos dois lados vencedor.
É nesse contexto que as ideias de Ludwig Wittgenstein surgem em oposição à visão
factual das crenças religiosas e da existência divina. As interpretações que mencionarei
a seguir podem ser encontradas na dissertação de Alison Vander Mandeli, da
Universidade Estadual de Londrina, e contribuem substancialmente para uma melhor
compreensão da filosofia da religião wittgensteiniana. Não há que se dizer que
Wittgenstein tenha escrito de forma sistemática sobre o tema, mas há um conjunto de
anotações suficiente para que seja defendida uma visão coerente e unificada deste
filósofo acerca da religião. É preciso dizer, ainda, que suas ideias a esse respeito se
encaixam na sua teoria sobre os jogos de linguagem, segundo a qual, em pobre resumo,
o significado de palavras e expressões deve ser examinado à luz dos contextos em que
são utilizadas.
Quando se analisa as ideias de Wittgenstein sobre a crença em Deus, percebe-se que
elas estão em franca oposição à visão factual elucidada anteriormente. De fato, o
filósofo rejeita a ideia de que a proposição “Deus existe”, quando emitida por um
crente, seja uma proposição ontológica, bem como que seja necessário encontrar provas
racionais ou empíricas que a sustentem. Há, em Wittgenstein, um esvaziamento tanto
ontológico quanto metafísico do termo “Deus”.
De acordo com Wittgenstein, deve-se compreender melhor a gramática da proposição
“Deus existe”. No contexto dessa proposição quando enunciada por um crente, a palavra
“Deus” não pode ser tratada como um elemento que faz referência a algum objeto no
mundo. Não haveria, assim, correspondência entre algo que existe no mundo e a palavra
Deus. Pode-se dizer que, nesse contexto, Wittgenstein rejeita a proposição “Deus
existe” como uma proposição empírica, ou seja, uma proposição que afirma algo sobre
um objeto existente no mundo. Essa é a confusão que deve ser desfeita e que vicia o
debate entre crentes e descrentes acerca de Deus.
Mas então que tipo de proposição seria essa? Para Wittgenstein, a proposição “Deus
existe” seria uma proposição fulcral. Para compreendermos melhor o que isso significa,
é necessário recorrer à analogia com as regras de um jogo.
Todo jogo possui suas regras. Quem quer que aceite jogá-lo, deve acatá-las. Não faz
sentido questionar as regras de um jogo, uma vez que elas são condição fundamental
para que ele seja jogado. Se são subvertidas ou ignoradas, perde-se a própria natureza
dojogo. Ainda de acordo com essa linha de raciocínio, não faria sentido também supor
que as regras específicas de um jogo servissem perfeitamente para qualquer outro. Tais
regras não podem ser questionadas ou discutidas. São pressupostos de viabilidade do
jogo em si.
A proposição “Deus existe”, portanto, é uma proposição fulcral na medida em que
funciona como uma regra que informa toda uma visão de mundo e práticas de conduta
na vida do crente. É preciso salientar ainda que “Deus existe” não seria uma proposição
fulcral qualquer, mas a proposição fulcral primeira na vida do crente, a regra básica,
número um, da qual decorre toda a sua visão de mundo e modo de vida. Nesse sentido,
o mundo do crente seria como um jogo, que só pode ser jogado caso se aceite a
cosmovisão que decorre da proposição “Deus existe” como regra. Uma vez aceita essa
observação, vemos que, para o crente, não há que se falar em possibilidade de
inexistência de Deus: a sua existência faz parte da aceitação da visão de mundo
religiosa, do jogo religioso. É pressuposta e necessária.
Isso não significa, no entanto, que Deus não possa de fato existir como objeto. A
discussão aqui não é esta. Wittgenstein não está fazendo ontologia nem metafísica, mas
esclarecendo discursos.Com isso, me parece que ele defende a crença religiosa como
uma operação pessoal e interna de aceitação de práticas e crenças decorrentes de Deus
como uma regra fundamental. O crente a aceita como regra que lhe informa a sua visão
de mundo e utiliza o termo dentro do jogo de linguagem que lhe é próprio. “Deus
existe” é uma expressão orientadora da conduta e de toda a cosmovisão do crente, não
havendo espaço para o seu questionamento, como regra pressuposta que é.
Se esse é o caso, então não há que se falar em debate acerca da existência de Deus. Do
ponto de vista wittgensteiniano, esse debate é impossível, já que o crente e o não-crente
não estão sequer falando da mesma coisa quando pronunciam o termo “Deus”. Em
resumo: enquanto o crente estaria evocando uma proposição fulcral e pressuposta ao
dizer “Deus existe”, que sustenta toda a sua cosmovisão, o não-crente estaria
dizendo“Deus não existe” de um ponto de vista factual, numa proposição empírica que
considera Deus como um objeto entre objetos. A partir desse ponto, o debate torna-se
inútil, pois crentes e descrentes não estariam falando da mesma coisa. Wittgenstein vai
além ao afirmar que crentes e descrentes não estariam nem vivendo no mesmo mundo,
já que as regras que informam sua cosmovisão não são as mesmas.
Como proposição fulcral, a existência de Deus é, ainda, uma regra informadora de
práticas e crenças. Dela decorrem não só atos religiosos como orar e jejuar, mas também
outras crenças, como milagres ou a autoridade dos textos bíblicos.
O exemplo dos milagres é notável nessa discussão, e pode servir para elucidar ainda
mais a visão que Wittgenstein possui do sujeito religioso. Quando um crente afirma que
um evento é milagroso, isso diz respeito à sua cosmovisão. Não estão em jogo, aqui,
questões sobrenaturais. Um evento é um milagre não porque subverte as leis da física
que regem o mundo, mas porque o crente o sente dessa forma. Nesse sentido, o
posicionamento do crente em relação ao mundo informado pela existência de Deus é
expressão de um sentimento íntimo, pessoal. É por isso que, caso surgissem evidências
científicas comprovando que um evento tido como milagroso nada teve de sobrenatural,
tal fato não faria com que o crente mudasse de opinião a seu respeito, já que a natureza
do milagre decorre não de razões sobrenaturais, mas de uma sensação, de um
sentimento que está inclusive imune a ataques externos. Tal é o poder da crença
religiosa para Wittgenstein.
Parece-me, assim, que a visão de Wittgenstein, ao esvaziar ontológica e
metafisicamente a proposição “Deus existe” e considerá-la como uma proposição fulcral
torna irrelevante o questionamento da razoabilidade da crença em Deus fundamentada
em motivos racionais. De acordo com o paradigma wittgensteiniano, o debate entre
crentes e descrentes é um não-debate, algo impossível. A crença como regra que
sustenta uma cosmovisão é inatacável, imune a qualquer tipo de argumentação ou
evidencialismo.
É elegante a visão de Ludwig Wittgenstein sobre as crenças religiosas enquadradas na
sua teoria dos jogos de linguagem. Certas palavras e usos dependem dos seus contextos,
e se crentes e descrentes vivem em mundos distintos – ou seja, jogam jogos distintos -,
não há que se falar em debate.
A meu ver, é notável a contribuição de Wittgenstein para a filosofia da religião. Embora
a visão factual ainda resista e sustente diversos debates intelectuais na atualidade,
Wittgenstein inaugurou um novo paradigma quando se fala em análise das crenças
religiosas e existência de Deus. Fundamentalmente, ele criou uma bifurcação irreparável
nessa discussão: de um lado, está a visão factual; de outro, a visão fulcral, indicando
caminhos distintos e irreconciliáveis na análise da razoabilidade da crença em Deus. Se
do ponto de vista factual faz sentido recorrer à argumentação e evidências na tentativa
de sustentar ou a existência ou a inexistência divina, do ponto de vista fulcral, o debate
não faz sentido. Se a visão factual legitima e incentiva o debate, a visão fulcral o torna
inócuo, desinteressante e de menor importância. Em verdade, é como se, para
Wittgenstein, essa discussão fosse uma total perda de tempo. E ao desfazer uma certa
confusão em torno do tema, ele deixa aberto o espaço para debates mais frutíferos e
legítimos nesse campo.
Um possível debate daí decorrente, a meu ver, poderia questionar se essas ideias de
Wittgenstein justificariam, de alguma forma, o fundamentalismo religioso, já que
parecem defender uma visão pessoal das crenças religiosas, indiferente à racionalidade,
independentemente de sua natureza. Se um indivíduo, portanto, comete homicídio ou
profere discursos de ódio contra outras pessoas em nome de suas crenças religiosas,
como mensurar, se Wittgenstein estiver certo, a legitimidade de tais atitudes? Parece
que, nesse caso, para resolver moralmente a questão, o mais óbvio seria recorrer ao bom
senso da comunidade, que atualmente gira em torno da promoção da diversidade e do
respeito aos direitos humanos, condenando tal indivíduo. No entanto, que argumentos
racionais poderiam ser utilizados contra uma crença que, de acordo com Wittgenstein,
não estaria baseada na razão? Nesse sentido, creio que, embora a grande contribuição
wittgensteiniana tenha sido a de esvaziar de sentido prático o debate acerca da
existência de Deus, por outro lado é possível argumentar que suas conclusões podem vir
a justificar em algum grau o fundamentalismo religioso e as práticas dele decorrentes, já
que não haveria argumentos racionais capazes de demover o crente fundamentalista das
suas ideias e ações.

Referências bibliográficas:
- Dissertação de mestrado: Wittgenstein sobre as crenças religiosas (Alison Vander
Mandeli – Universidade Estadual de Londrina)

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