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MENINA BONITA NÃO SONHA

A medida que eu avançava, a maneira simples de Freud fazia com que


eu me sentisse seguro e à vontade. Ao mesmo tempo, havia um distancia-
mento que não era aversivo, mas agradável.
Diário de minha análise com Sigmund Freud, Smiky Blanton, 1929

A transferência cria, assim, uma região intermediária entre a doença


e a vida real através da qual a transição de uma para a nutra é efetuada.
"Recordar, repetir, elaborar", Freud, 1914

Certa vez desenvolvi urn longo trabalho analítico c o m uma menininha e seus
pais. Quando ela me encontrou pela primeira vez, tinha dois anos e meio. Algo de
muito grave já havia acontecido em sua vida. Neste momento ela era extremamen-
te apegada à mãe, nutria um desprezo superior por qualquer pessoa que tentasse se
aproximar dela, não conseguia brincar livremente c o m crianças da sua idade e, em-
bora c o m os pais se mostrasse carinhosa em muitos momentos, era tirânica e pro-
fundamente irritadiça.
Por vezes entrava em um estado de choro manhoso, incompreensível para os
país, que podia perdurar por horas. Só uma fraldinha velha, a que ela chamava de
naninha, podia acalmá-la após algum tempo destas crises, e então, ao chupar o dedo,
com um pequenino canto da fraldinha às vezes junto à boca e segurando-a com a
m ã o inteira, podia ficar em silêncio, e por vezes dormir.
Nas longas conversas que tive com sua mãe, pudemos reconstruir algo da histó-
ria de seus primeiros dias e meses de vida. A mãe era a filha mais jovem de sua fa-
mília. Sua mãe, a avó da pequenina M a r i n a , era uma matriarca bastante centra-
lizadora, e o pai havia falecido há alguns anos. Casou-se c o m um h o m e m razoa-
velmente mais velho do que ela própria, em uma união muito amorosa e divertida.
A gravidez muito desejada pelos dois transcorreu de forma tranqüila, c ela sentira-
se profundamente cuidada pelo marido, "é muito bom a gente encontrar uma pes-
soa que a gente verdadeiramente curta, porque as coisas difíceis tornam-se fáceis".
Durante a gravidez, os dois sonhavam c o m o seria a menininha, conversavam com
ela e já a faziam presente na imaginação de sua vida futura.
Porém, nessa história de a m o r e de nascimento, sempre pairou uma dúvida,
que provocava ainda agora, quando essa mulher de 32 anos conversava comigo,
uma certa ansiedade, alguma confusão, algumas palavras fora de lugar, bem c o m o
afetos bastante ambivalentes: desde sempre ela sentia que sua mãe não a consi-
derava em condições de se casar e ter sua própria filha, parecia sentir que sua mãe
a considerava, ou a queria, ainda dependente dela. Foi importante p a r a eia o m o -
mento em que pôde n o m e a r c o m clareza na conversa o seu ódio por sua mãe, por
aquela sua impossibilidade de vê-la adulta, sexualmente adulta. Um ó d i o da filha
pela mãe, por impossibilidades humanas da mãe, que, ao ser nomeado aqui, na re-

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lação c o m o analista, tornava-se humano e compreensível, constituindo-a ao invés
de expressar-se c o m o sintoma.
A história do sofrimento da menininha Marina tem origem nessa impossibili-
dade de mãe e filha, ou, melhor dizendo, entre sua avó e sua mãe, e começava a ser
tratada quando tinha início a sua narrativa. O momento crucia! de ruptura na alma
da mãe de M a r i n a , que levou a uma fissura na relação c o m seu bebê — fissura que
a avó tratou de aproveitar para dar à filha o lugar de dependente, e não de mãe —,
se deu quando do nascimento da menininha, e da violência inesperada da opera-
ção de cesariana que a deixou adoentada p o r alguns dias.
A mãe da bebê sentiu que tinha ficado doente porque fora violentada na ope-
ração e porque sua bebê lhe foi retirada muito rapidamente e não lhe foi devolvi-
da, não foi providenciado um encontro entre bebê e mãe satisfatório para ambas,
1
para que as duas pudessem começar a se conhecer nessa chegada da criança à vida.
C o m a recolha narcísica do corte na barriga se complicava algo de uma falta pro-
funda, a falta do objeto da identificação e da regressão materna, que não pode ser
2
feita durante sua estadia no hospital.
Porque ela ficara doente, mal pôde ver sua filha; porque mal pôde ver sua fi-
lha, ela ficara doente. Ao final deste impressionante relato, de um mal profundo
que um acaso de um ambiente dos homens fez recair sobre uma mãe e um bebê,
esta jovem senhora tem um insigbt espantoso, trazido pelo fluxo de associações e
afetos que se atualizam na comunicação c o m o analista, um comentário que me fez
recordar Freud vivamente: "Tales, me ocorreu agora uma coisa muito louca... es-
pero que você entenda... mas é a melhor imagem que tenho para dizer c o m o eu me
senti: é c o m o se arrancassem o seu pau, e o jogassem pela janela, o jogassem fora...
e, o pior, você não pudesse nem sequer olhar para ele..." A moça na minha frente
não falava de teoria psicanalítica, apenas construía uma imagem viva e intensa para
dar conta de sua vivência emocional...
Quando essa moça saiu do hospital, cerca de dez dias depois do nascimento,
após esse trauma junto a tais fantasias fundamentais de sua forma de ser mãe e
mulher, sua filha já havia saído, sem ela, há alguns dias. A avó se encarregara de
cuidar da menininha, enquanto a mãe estava doente. Ao chegar à casa da avó, a
mãe da pequena M a r i n a encontra sua própria mãe instalada com a bebê, fazendo
o que acreditava ser a maternagem dela, e ela mantém a sua filha, a verdadeira mãe,
longe da bebê, insistindo que ela estava doente, fraca, e que não saberia o que fa-
zer com a própria filha. Aprofunda-se a pequena tragédia: a mãe é definitivamente
castrada na sua potência de ser mãe, não pode mais ver o seu bebê, porque não pode
mais ter a sua própria relação de maternagem c o m ele, que a constituiria como mãe;

1
Ver a respeito da importância da natureza deste encontro primeiro de mãe e bebê "As
comunicações entre o bebê e a mãe e a mãe e o bebê, comparadas e contrastadas", D. W. Win-
nicott, em O que é a psicanálise, Rio de Janeiro, Imago, p. 3 5 .
2
Winnicott desenvolve o risco de adoecimento materno grave se o bebê, objeto da identifi-
cação, faltar, em "Preocupação materna primária", 1 9 5 6 , em Da pediatria à psicanálise* op. cit.,
p. 4 9 4 .

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retorna assim à posição de filha pequena de sua mãe, que. na impossibilidade de
vir a ser avó, torna-se a mãe das duas meninas.
Três ou quatro dias depois, c o m a avó impedindo o acesso da mãe à bebê, e
fazendo-a regredir a uma impossibilidade de ser (mãe), tem início um sofrimento
difuso, hipocondríaco, no qual a jovem senhora tentava expressar a falta de algo
fundamental em sua alma. Sentia uma espécie de falta de ar crônica que quase a
impedia de respirar, e que preocupava. T e m início uma longa j o r n a d a , que vai
atravessar todo o p r ó x i m o ano, de passagem por médicos, cardiologistas e pneu-
mologistas. Nesse período, por questões de organização da vida, e também por causa
do adoecimento daquela jovem mãe, o casal viveu com sua bebê na casa da avó de
M a r i n a , que buscava ocupar o lugar de sua m ã e . Evidentemente, era muito difícil
para aquela jovem mãe livrar-se das fantasias ativas de sua própria m ã e , que em
algum lugar dela mesma a capturavam.
Ao longo deste ano a bebê M a r i n a vai iniciar o seu c h o r o desesperado, que
não era por alimento, nem por remédio, nem por falta de cuidado ou atenção... A
menininha fazia seu périplo, especular ao da mãe, por pediatras, e c h o r o u um cho-
ro seco, irritado e irritante, de protesto (posso dizer agora...), ao longo de um ano
inteiro... Nesta conversa, um novo insight: o c h o r o da bebê teve início simultanea-
mente à falta de ar da mãe, o que me levou a dizer que talvez fosse uma falta de ar
o que a bebê sentisse, falta de ar que a mãe sentia em si de forma dissociada do
cuidado materno que estava impedida de viver. A bebê sentia a falta ''do ar da mãe".
Após um ano tem início o " t r a t a m e n t o " desta mãe e de sua bebê, quando ela,
ainda doente, em um arroubo, que aos olhos da avó e da família materna apareceu
c o m o loucura, um surto, saiu da c a s a da mãe com a menininha e foi começar a
própria relação cm sua própria casa c o m ela, c o m um ano de atraso, e tantas dis-
torções no meio do caminho.
Agora, um ano e meio depois, o tratamento continuava em um n o v o ato, com
as duas vindo até a análise, para que através de mim a mãe pudesse apreender e
recuperar algo da filha que lhe era essencial, que faltara às duas, e que as impedia
de ter confiança na vida e na capacidade de crescimento de ambas. Buscava-se mesmo
algo do humor, do gesto espontâneo e da forma de estar e criar-se no mundo da-
quele bebê, que deveria ter sido apresentado à mãe já no primeiro encontro e que
constituiria a linguagem particular de mães e bebês desta dupla, base da linguagem
3
de todos rumo à vida adulta e à independência.
Na falta dessa experiência, essa mãe sentia a própria filha c o m o uma estra-
nha, era incapaz de compreender suas necessidades e de se comunicar com elas, e
temia imensamente que o ódio reservado ã própria mãe, somado à exigência exte-
nuante de fazer a "terapia" da própria filha, sem usufruir do alimento vivo de seu
desenvolvimento, acabasse por destruir definitivamente as possibilidades de as duas
se encontrarem e se desenvolverem. De fato, neste primeiro momento, a experiência

3
Sobre s origem da identidade a partir da fusão primária e criativa do bebê e mãe, ver "A
criatividade e suas origens", especialmente a discussão dos chamados elementos femininos puros
e sua relação com a base da identidade, em O brincar e a realidade, op. cit., p. 1 1 4 .

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da menininha que tendia à construção de um sentido psíquico que não podia ser
compartilhado pelos pais, nem por outras pessoas, tendendo à construção muito
acentuada de uma realidade subjetiva distante da realidade compartilhada, me le-
vava a pensar em um caso extremo, c o m risco de desenvolvimento de situações
fronteiriças, ou, até mesmo, de uma psicose posterior.
Nos primeiros tempos da minha relação com M a r i n a — sempre acompanha-
da atentamente da mãe, que aprendia com o nosso brincar —, vivi experiências muito
primitivas que me pareciam dizer respeito ao universo de narcisização necessário
de toda criança, e que havia sido rompido em falhas ambientais que implicavam
em compor pulsões talhadas — com falhas na constituição dos objetos internos —,
que muitas vezes, antes de serem sentidas c o m o pertencentes à criança, vinham
romper o espaço psíquico de sua representação.
Posso dizer que c o m Marina fui devorado, expulso, cagado, sujo, e também
retido, imensamente odiado, e também amado. N ã o havia traços de complicações
edípicas nos primeiros meses de análise, embora houvesse superego exigente e pro-
jetado sobre mim. O importante era que eu não falhasse na minha presença para a
experimentação pulsional que se expandia, em conjunto c o m a expansão mais am-
pla de fenômenos transicionais expressos no brincar, que ganhavam complexidade
e matizes, na medida em que eu acompanhava suas expressões mais bruscas e sua
progressiva capacidade de transformação.

Recordo-me da primeira sessão c o m Marina. Ela chegou no colo da mãe, com


um ursinho em um braço e com sua naninha na boca. N ã o estava ansiosa, pois estava
protegida em seus brinquedos e no colo da mãe. Olhava-me atentamente, em um
silêncio que não se romperia por nada que não fosse próprio. Seu olhar fechava a
experiência em si mesmo, não se abria para o mundo. Quando nos apresentamos,
ela em silêncio, eu conversei um pouquinho c o m seu ursinho... Na sala, uma no colo
da outra, as duas no divã, eu brinco c o m uns bichinhos a uma distância que me
pareceu interessante para o movimento da vida de imaginação da menininha.
Ela observa atenta, durante um bom tempo. Aos poucos surge uma curiosi-
dade não congelada, e, às vezes, ela olha para a mãe e ri do que os bichinhos es-
tão fazendo lá em sua terra. Eles vivem; c o m e m , dormem e brincam; até que um
deles percebe a menininha no colo de sua mãe, e vem até a aldeia comunicar aos
outros... Aos poucos, um por um, os bichinhos vão até a fronteira para ver a me-
nininha... C o m o ela não se anima a ir encontrar os bichinhos neste momento, eles
retornam à aldeia e continuam a sua vidinha cotidiana. Após um tempo em que
os bichinhos comiam e brincavam c o m tranqüilidade, a menininha desce do c o l o
da mãe c o m autonomia e fica observando em pé, mais próxima à fronteira... Um
pouquinho mais de tempo, e, quando menos espero, ela já está bem pertinho de
mim com um bichinho na mão, creio que um leão... Então ela faz a sua brinca-
deira: os bichinhos se aproximam e se afastam dela, sempre comentando a chega-
da da menininha, ela então os ataca, c o m seu leão: Pá!... Pá!... Bate de cima para
b a i x o , com o leão na m ã o . É c o m o se matasse cada um dos outros bichinhos... Ri
muito quando expressa sua agressividade e destrutividade, que se mantêm brin-
cando... Ficamos assim por um tempo, c o m os bichinhos (bebês) nascendo e mor-

226 Tales A . M . A b ' S a h e r


rendo, várias e várias vezes, até que ela descobre uma pequena bacia de água e
me pergunta se tem água...
V o u até o banheiro, pego a água, e então ela primeiro dá de comer e beber
aos bichinhos, em seguida modifica a natureza da brincadeira, começa a colocá-
los todos dentro da bacia, em grande quantidade, e então move e move a água c o m
a m ã o , fica feliz... Pega outros pequenos objetos que estão ao alcance de sua mão,
peças de Lego, bloquinhos de madeira, e enche a bacia de água com essa "maté-
ria" que vai se tornando indistinta em sua qualidade... a brincadeira agora era en-
cher a bacia de água e de matéria, e movê-la de lá para cá e daqui para lá.
Da qualidade de relações imaginárias dos ataques aos bichinhos, chegamos a
um mundo ainda anterior de fantasias, acredito que associado ao sadismo dos ata-
ques da primeira brincadeira: agora tínhamos um continente que recebe água e
matéria, que se enche e envolve, c o m o um estômago, ou um intestino, seus elemen-
tos, que tendem a preenchê-lo sem deixar nem um espaço, transformando-se em
espécie de massa única... Se a fantasia é da ordem da natureza do aparelho digesti-
vo e de seu trabalho, ainda anterior à analidade, mas c o m ela conectado, vemos
também que há aqui um modelo de continente psíquico que precisa ser preenchido
ao limite de matéria, ou alimento, e cujo risco de expulsão maciço q u e esvazia
4
definitivamente o ego é iminente. A transferência se produz c o m a quantidade de
matéria que preenche e totaliza esse continente, ainda pouco afeito a espaços psí-
quicos menos sólidos, que permitiriam o enriquecimento da vida de fantasia, que
criariam o espaço do deslocamento e da condensação. Creio que estamos às voltas
c o m a lógica da incorporação que ainda busca a totalidade do objeto e de traços
de sadismo de sua expulsão absoluta, c o m o no c a s o do ataque aos bichinhos.
Assim, duas sessões depois desta, a mãe de M a r i n a me diz que, em casa, brin-
cando na hora de comer, a menininha Marina lhe diz: " M ã e , eu posso c o m e r o tio
T a l e s ? " . A mãe percebe que uma comunicação importante está sendo feita, e pros-
segue a brincadeira... N a q u e l a janta ela comeu muito bem, tudo o que a menini-
nha comia era devoração e incorporação do tio T a l e s , de forma que o objeto do
cuidado encontrado na análise era introjetado, e tendia a ter estatuto do objeto
interno, não destruído ao ser devorado. Entre introjeção e projeção, sadismo e incor-
poração do o b j e t o , entre um cuidado que no ambiente sustenta tais manifestações
pulsionais e permite seu desdobramento com a constituição dc um o b j e t o inteiro
no mundo interno, navegávamos, eu, a alma da menininha, ela, a minha.
Creio que naquela terceira sessão mesmo teve início um movimento extrema-
mente importante na brincadeira c o m a água cheia de matéria. Ela havia descober-
to as tintas, c o m a qual fazíamos esboços e garatujas, com pincéis e c o m os dedos,

4
Sobre identificação projetiva, ver o clássico "Noras sobre alguns mecanismos esquizóides",
1 9 4 6 , dc Melanie Klein, em Os progressos da psicanálise, Rio de Janeiro. Zahar, 1 9 8 2 ; sobre a
presença maciça dc identificação projetiva na transferência psicótica, e seus efeitos de deforma-
ção sobre a percepção e o ego, ver, de Bion, "Sobre a alucinação". 1 9 5 8 , em Estudos psicanalíti-
cos revisitados, Rio de j a n e i r o , Imago, p. 7 9 . Aqui sugiro que a lógica meorporativa oral que ten-
de a una relação de totalidade com a matéria que é objeto da pulsão pode implicar em expulsões
também totais, cujo risco é a expulsão das origens do continente psíquico de si mesmo...

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Em meio a nossas pinturas, uma importante comunicação, olhando fixamente para
mim, séria c o m o quem quer ser ouvida e não tem dúvidas sobre o que diz, a meni-
ninha fala: " E u te odeio!...". Continuo pintando meu desenho, c o m o ela mesma, e
digo-lhe algo mais ou menos assim: "E importante pra menininha poder sentir que
me odeia, e que esta raiva bem grande de mim não destrua o tio Tales, o tio Tales
não morre nem fica doente, continua aqui pra brincar, e ser inventado depois pela
5
menininha de outra forma já que ele não se destrói...".
Eu pensava em uma certa impressão que tive c o m nitidez ao conversar com
os pais: era muito difícil para eles incluírem na relação o próprio ódio que sentiam
da menininha tão doente e exigente, pois poder sentir e comunicar algo de seu ódio
aumentava muito a culpa que sentiam pela impossibilidade do desenvolvimento
emocional normal de seu bebê. Eles não podiam odiá-la, e mal sustentavam a pos-
sibilidade humana de ela conhecer o próprio ódio... Imagino que poderia se consti-
tuir um superego terrível nessa relação, onde o ódio que não pode ser sentido para
com o objeto poderia voltar-se imensamente sobre o ego, exigindo a rendição e a
doença no lugar da possibilidade de conhecer as qualidades afetivas da relação
6
c o m as p e s s o a s . Assim, a menininha começava a curar o mal de não poder ter
em si mesma o próprio afeto, porque seus pais não podiam suportá-lo, nem em si
mesmos, nem em seu bebê. Ela começava a curá-los em sua própria alma, odian-
do o tio Tales.
Lentamente, ao longo das próximas semanas, a brincadeira foi se transforman-
do em colocar os potes de tinta na bacia com água, de forma que a água tomasse
definitivamente o colorido da tinta, e c o m o tempo cada um dos potinhos foi inteira-
mente esvaziado, limpo, enquanto a água se turvava com várias cores. Eu acredi-
tava que navegávamos no destino da produção anal, que ganhava continente, e era
tocada pela menina.
Uma modificação importante aconteceu ao longo desse período, em que a gran-
de brincadeira, após alguns desenhos ou movimentos c o m os brinquedo era trans-
formar em água colorida as tintas dos potinhos, e esvaziá-los, ao que ela chamava
de "tintureira". Durante esses esvaziamentos dos potes de tinta, mais de uma vez
observei a menina concentrada e interessada em salivar: sua b o c a semi-aberta fica-
va túrgida, e uma saliva generosa a enchia em determinados momentos... A tintureira,
que fazia elaborar os processos de continência e expulsão anal, bem c o m o os proble-
mas sociais que se colocavam para ela naquele momento de sua vidinha ao redor
da limpeza e da sujeira, também faziam trabalhar, em fantasia, a natureza e a qualida-
de do objeto experimentado oralmente, e a saliva faz reconhecer a presença, em fanta-
sia inconsciente, da experimentação oral. Trata-.se de um índice universal...

5
Sobre o ódio difundido cuja comunicação é comunicação amorosa, ver "Cura psicanalíti-
ca com ajuda da boneca-flor" ( 1 9 4 9 ) . de Françoise Dolto. em No jogo do desejo, R i o de Janeiro,
Zahar. 1 9 8 4 , p. 1 1 6 . Notar a relação entre o ódio para comunicar amor e sensação de incompletude
corporal, típica da situação pré-narcísica.
6
Ver a análise de Freud da reação terapêutica negativa em O Ego e o Id, onde o superego
volta-se sobre o ego exigindo punição por uma culpa inconsciente.

228 Tales A.M. Ab'Sáber


Neste trabalho com a natureza das pulsões básicas, que encontraram na bacia
cia análise um ambiente para serem mexidas e remexidas através da ilusão e do brin-
car, aconteceu um importante deslocamento, que, ao ser tocado por mim, nos trouxe
grandes surpresas: após algumas semanas de tintureira, c o m sua evidente carga de
experimentação da analidade, comecei a perceber o esboço de pequenas narrativas
orais associadas aos desenhos c o m tinta da menininha, narrativas que se rompiam
c o m facilidade, e eram invadidas por experimentação em ato da tinta e das águas,
ou por fragmentos de lembranças, ou por outros fragmentos de narrativa... Enfim,
em meio a um movimento confusional, parecia haver um esboço de tentativa de orga-
nizar a comunicação de experiências humanas mais complexas, através do contar
uma história, que se esboçava e rompia...
Essa matéria narrativa que tentava ganhar forma, em meio à experimentação
pulsional mais básica, me levou a intuir um deslocamento de sentido no interior da
brincadeira da tintureira: antes ela enchia ao m á x i m o de matéria a bacia de água,
agora ela tendia a pintar a água com tinta, e no mesmo movimento surgiam tentativas
de orientação egóica através de narrativas... A matéria sólida havia sido substituí-
da pela tinta, que preenche inteiramente a água, mas também mantém alguma
transparência... Falei então para a menininha que as tintas que ela pintava (que ela
já conhecia c o m o símbolos de "seu c o c ô e seu x i x i , e de alimentos vários dados a
bebês e aos papais") eram também as tintas que fazem os sonhos, as cores dos so-
7
nhos da menininha...
Me lembro que naquela sessão, após essa interpretação, a menininha fez um
movimento de expansão de seu brincar, explorando alguns aspectos da sala e de
si mesma para os quais em outros momentos parecia inibida ou mesmo temero-
sa... Lembro que no c o m e ç o dessa sessão havia comentado algo de forma assus-
tada sobre barulhos da cidade que entravam pela janela, que lhe pareciam amea-
çadores, e ao fim da sessão abre a janela, e brinca observando coisas que estão do
lado de fora dela...

Algum tempo depois volto a falar algo sobre as tintas, de como as tintas pin-
tam o sonho dentro da alma da menininha, e então ela me fez a comunicação que
mais me espantou, entre tantas outras verdadeiramente espantosas que eia pôde me
fazer durante nosso trabalho:
— N ã o é tinta de sonho, tio Tales, porque eu não sonho mais...
Me falou tranqüilamente a pequenina M a r i n a , como se n ã o sonhar fosse uma
experiência absolutamente natural... Após algum tempo refletindo, perguntei:
— V o c ê não sonha mais? — E ela, convicta:
— Não...
— M a s por que você não sonha mais?

7
Tempos depois lembrei-me que Winnicott havia realizado uma interpretação semelhante
relatada era 1 9 7 1 . Ele faiou para a menininha Diana, de cinco anos: " O h ! Olhe só! V o c ê está es-
palhando no chão, em volta das cabeças dos bebês, os sonhos que eles estão tendo, enquanto dor-
mem"; em "O brincar, uma exposição teórica", em O brincar e a realidade, op. cit. p. 6 8 .?

O Sonhai" Restaurado 229


— Porque menina bonita não sonha...
Menina bonita não sonha. Eis aí uma comunicação que tem todo o valor de
um trabalho psicanalítico. O que levava uma menina de dois anos e oito meses, em
uma relação transferencial de confiança e sustentação do gesto espontâneo, menina
com dificuldades emocionais precoces e sensíveis na vida, a conceber e me dizer,
em resposta a um elemento do brincar do analista, as tintas do sonho, que uma
menina bonita não sonha}
Certamente já tínhamos aí condições egóicas desenvolvidas para o nível com-
plexo de comunicação na transferência que vivíamos e para toda uma ordem de
conhecimentos da natureza da vivência interna. A pequena M a r i n a me dizia que
não sonhava mais, acredito que, portanto, deve ter chegado a ter a experiência
do sonho, e a interpretação do analista tocou algo de importante na alma: c o m o
está a qualidade das tintas de seu sonho, da matéria que produz este espaço sóli-
do e insólito do sonhar? Ela me responde que de fato já conheceu a tinta sonho,
inclusive ali no brincar, pela sustentação da ilusão no espaço potenciai, mas ago-
ra não pode mais sonhar, porque menina bonita não s o n h a . Vemos aí que toda
uma construção da vida psíquica que inclui o desenvolvimento da capacidade de
sonhar, definitiva para o estabelecimento da vida desperta, é negada por uma de-
fesa de caráter totalizante, que faz coincidir um superego precoce muito exigente
c o m um ideal do ego narcísico que deve ser mantido em estado de perfeição ima-
ginária: a menina bonita.
M a s a incapacidade de sonhar, que podemos admitir ser teoricamente real,
nos fala também da construção psíquica de um mundo que não é regulado inteira-
mente pela lógica do desejo e de suas produções clássicas de compromisso. Se o
trabalho do sonho é coerentemente pensado c o m o um paradigma fundamental da
construção do conhecimento analítico e da própria alma humana, temos que nos
haver agora c o m os sentidos dessa comunicação analítica da menininha M a r i n a :
"Eu não sonho mais". É necessário que possamos compreender o que se abre na
alma, e o que se fecha, em tal contexto metapsicológico.

É sobre este aspecto da natureza da experiência psíquica da menininha que


eu quis recuperar alguns dados anteriores de sua análise para que possamos refle-
tir sobre a vida interna de quem não sonha.
A menininha Marina sofreu invasões ambientais muito precoces, ao ser afas-
tada muito rapidamente da mãe e ao experimentar uma luta entre uma avó narcísica
e uma mãe fragilizada. Esse campo de forças ambiental, terrível para a bebê, levou
a um adoecimento primeiro, que significou um c h o r o incomodado, seco, metálico,
desumanizado em sua demanda, que n ã o encontrava objeto, ou relação que fosse
capaz de dotá-lo de sentido. Podemos dizer que neste momento original da dor
psíquica de Marina ela já não sonhava o sonho da bebê, ou melhor, ela já havia
perdido o sentido de continuidade e progresso psíquico, a ser experimentado atra-
vés de outros humanos, o que a levaria, alguns anos mais tarde, a comunicar ao
analista: "eu não sonho m a i s " .
Este nível de falha, que sua mãe deixou muito claro ser uma invasão de sua
própria mãe (a avó) sobre a sua capacidade de maternagem, é trama simbólica hu-

230 Tales A.M. Ab'Saber


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mana expressa no ambiente onde o bebê se constituirá, mas que para o bebê é vivida
como impossibilidade radical de inscrição, impossibilidade de encontro próprio com
os sentidos do mundo, instauração do ciclo completo da pulsão e falha no campo
dos fenômenos e objetos transicionais, que faz dissociar aspectos da alma e impede
mesmo a ampliação de vértices simbólicos, capacidade de auto-engendrar sentido
psíquico. Assim, o bebezinho que chorava por falta de contenção humana sufi-
cientemente boa, necessária para constituir-se como inteira psiquicamente, mais tarde
perdera a dimensão simbolizante essencial de uma criança, colocada na capacida-
de de brincar c o m outras crianças e c o m dimensões estranhas do mundo, as pessoas
com quem não pode se relacionar, e na análise tinha a nítida impressão de que não
podia conhecer o próprio sonhar.
Aqui temos uma discussão importante e que só a psicanálise de hoje nos permite
fazer. Sabemos já c o m relativa segurança que falhas na capacidade de sonhar ten-
dem a deslocar a alma para uma região de difícil operação c o m dimensões simbóli-
cas humanas, onde condensação e deslocamento não operam completamente, onde
a ligação com o objeto estaria fazendo falhar aspectos egóicos, e do senso do real,
que não pode ser inscrito em um continente simbólico estruturado. Temos a deforma-
ção da relação falhada c o m objeto produzindo efeitos em todo o psiquismo; o resul-
tado é uma presença maior de alucinação, ou alucinóse, sob suas várias formas, o
que nos lançaria no campo das psicoses e dos casos fronteiriços. Para Freud, a lógica
de tais processos estava descrita em termos de regressão e defesas específicas; assim,
Schreber vai defender-se da sua falha simbólica projetando no mundo seu próprio
homossexualismo, o que é o retorno delirante ao mundo da libido que lhe foi retirada
por regressão narcísica ao próprio ego, processo silencioso e anterior ao delírio. A
falha simbólica, que estruturaria toda essa dimensão da construção da subjetividade
psicótica, estaria colocada na impossibilidade de reconhecer a castração e consti-
tuir o recalque c o m o defesa neurótica. A rejeição do que estaria colocado na situa-
ção edípica lançaria o psicótico em u m a via regressiva sem fim rumo ao narcisismo.
Do ponto de vista do nosso c a s o , temos aí urna explicação muito avançada
no tempo das construções metapsicológicas para dar conta do choro infindável e
desumanizado da bebê de duas semanas e de sua incapacidade de sonhar já estabe-
lecida aos dois anos e meio. Hoje conhecemos melhor algo que Freud soube deixar
indicado, mas não pôde desenvolver, as condições de constituição da situação nar-
císica primária, aquilo que poderíamos chamar, metaforicamente, c o m o uma his-
tória do narcisismo. Freud foi mesmo inequívoco quanto a esta lacuna em sua obra:
" O s distúrbios aos quais o narcisismo original de uma criança se acha exposto, as
reações c o m que ela procura proteger-se deles e os caminhos aos quais fica sujeita
ao fazê-lo — tais são os temas que proponho deixar de lado, c o m o importante campo
9
de trabalho ainda por e x p l o r a r . "

8
Quando Freud amplia a noção de identificação primária do pai para os pais, na impor-
tante nota de rodapé de O Ego e o Id, entendo que abre a noção de identificação primária do bebê
humano para um campo ambiental humano, que inclui mãe, pai, cuidados e objetos culturais.
9
S. Freud, "Sobre o narcisismo: uma introdução", Standard brasileira, vol. X I V , Rio de
Janeiro, Imago, 1990, p. 1 0 9 .

O Sonhar R e s t a u r a d o 231
Tal percepção clara não foi muito considerada por teóricos pós-freudianos que
centraram a pesquisa da psicose sobre a estrutura da rejeição de algo referente ao
complexo de Édipo, equívoco relativo que o próprio Freud induziu... Após a pas-
sagem citada acima, em que Freud chega a pensar um universo de distúrbios refe-
ridos ao engendramento do narcisismo primário e, portanto, do ego, ele mesmo
orienta a pesquisa para o que pode ser considerado um ponto fixo de sua constru-
ção metapsicológica, nem sempre inteiramente ajustado ao fato psíquico que en-
volve a psicose: "Sua parte mais importante [dos disturbios do narcisismo original],
contudo, pode ser isolada s o b a forma do 'complexo de castração' (nos meninos, a
ansiedade em relação ao pênis; nas meninas, a inveja do pênis) e tratada em cone-
10
x ã o com o efeito da coerção inicial da atividade s e x u a l " .
Aí está o explicar o originário pelo que é sua forma desenvolvida. O caso de
nossa menininha M a r i n a não parecia articular — em uma desconexão psíquica
essencial já muito precoce, que atacaria a própria constituição do sonhar — pro-
blemas relacionados ao complexo de castração. Isto porque navegávamos falhas
referentes ao próprio processo de constituição da unidade psíquica, e de sua inte-
gração corporal, o que se dá em um campo de vivências de pulsões pré-genitais, de
percepções onde não há ainda integração egóica e de lentos e gradativos fenôme-
11
nos transicionais.
É assim que podemos compreender algumas expressões da criança ao longo
de sua análise que dizem mesmo respeito à existência originária do bebê, os "dis-
túrbios do narcisismo originário", diria Freud, c o m o quando, por exemplo, em meio
a uma brincadeira c o m um cavalo de pau, ela se concentra na testa do cavalinho e
então me pergunta, muito séria e interessada: " E u tenho testa?'", ou quando, ao me
ver mancar por causa de um machucado, me pergunta ansiosa: "Eu também estou
machucada?". Aqui ela me comunicava percepções corporais e de self que guarda-
vam algo da não integração dos primeiros tempos, tempos em que o ambiente e sua
natureza faziam efeitos reais sobre a experiência de corpo e alma da bebê, e se a
mãe adoecia, ela também adoecia: Eu estou machucada porque você está machu-
cado'í Eu completei a construção do meu corpo como algo que me pertence e uni-
fica, tenho todas as partes do meu corpo}...
Neste campo muito especial de constituição da alma humana, que a psicaná-
lise contemporânea chegou a conhecer de forma relativamente mais desenvolvida,
vimos que operam pulsões pré-genitais que tentam completar sua relação c o m o
objeto, e completar o próprio objeto c o m o construção psíquica no mesmo movi-
mento. Assim, sadismo anal expulsivo, ecos de dimensões pulsionais orais apresen-
tadas no brincar e na incorporação do analista c o m o alimento, em uma relação

10
Idem.
11
Abraham foi o primeiro a incluir a situação narcísica, e a tentar refletir sobre a lógica do
tipo de ligação com o objeto na esfera dos processos de narcisizacão, na história da psicanálise:
seu espantoso ensaio de 1 9 2 4 "Breve estudo do desenvolvimento da libido à luz das perturbações
mentais", tende a pensar a psicanálise cada vez mais próxima dos processos de engendramento
narcísicos a partir do universo pulsionai pré-genital.

1
232 Tales A.M. Ab Saber
transferencial que sofria as ambivalências muito acentuadas do medo da falha no
objeto e no ambiente sofrida na aurora da existência, conviviam com u m a série de
expansões psíquicas não diretamente pulsionais, os fenômenos transicionais, que
lentamente se desdobravam em brincar neste trabalho.

Por vezes o fenômeno transicional podia coincidir c o m algo da lógica do ob-


jeto da pulsão. Assim, quando após algumas semanas de trabalho havia grande
confiança na fidedignidade do analista e do setting, e ela brincava de forma cada
vez mais livre e de forma a incluir dimensões sensoriais e humanas gradualmente
mais amplas em seu brincar, passou a ser muito difícil o encerramento da sessão, o
término da construção vital que se fazia na sessão, como se o que a menininha criou
de si mesma na análise não pudesse ser levado com ela para fora da análise, para
outros ambientes e situações humanas. A menininha sentia que o fim da sessão rom-
pia sua capacidade criativa, e tendia a sofrer pequenos processos regressivos, em
que voltava para o colo materno, chupando o dedo e segurando sua naninha, per-
dendo rapidamente o humor e a ilusão criativa que inclui o mundo, que um segun-
do antes experimentava no brincar... Resolvi, c o m o encaminhamento técnico para
essa impossibilidade de atravessar sem regressão o término da sessão, marcar o tér-
mino humanamente c o m o uma possibilidade a ser contida no psiquismo: dez mi-
nutos antes, eu a avisava que agora nós faríamos a última brincadeira, para permi-
tir o tempo dela completar a experiência, e muitas vezes, na impossibilidade final
de ela ainda assim se desligar da experiência na análise, eu permitia que ela levasse
um brinquedo, ou algum objeto, que ela estivesse utilizando naquele momento, o
que tornava possível a sua ida embora de forma tranqüila e compartilhada. O ob-
jeto que ela levava guardava a ilusão e permitia à menina transitar de dentro para
fora da análise. Na sessão seguinte ela trazia o objeto de volta, e a esta altura ele já
estava inteiramente desinvestido, e ela podia iniciar um novo ciclo de experiências
no brincar.

Assim, víamos a enorme dificuldade c o m a retenção do objeto c o m o algo que


ganhou presença interna e que não se perde no tempo e no espaço, e c o m a neces-
sidade de experimentar pulsões de caráter retentivo, de forma que o ambiente e o
objeto permitissem tal uso, ao mesmo tempo em que se inscrevia lentamente, e de
forma própria, o sentido da experiência da separação, que ganha substituto sim-
bólico, mas que pode ser vivida c o m o uma experiência que traz a vida, e não ape-
nas o esvaziamento psíquico. Um dia, para nossa satisfação, a menina completou
o seu brincar na própria sessão, e pôde me dar tchau, o que sempre fora impossível
para ela.
J u n t o a tais experimentações que a natureza das pulsões parciais sustentava,
lançava-se uma série de experiências psíquicas de fundamental valor para o desen-
volvimento da experiência da vida. Assim, o correr e o inventar um j o g o com as
pernas em movimento, que fazia as pernas serem experimentadas ao extremo e como
próprias, ou a mudança de papéis durante a narrativa de um conto de fadas, ou a
lenta construção de situações narrativas com. os brinquedos da saia, s ã o algumas
das mais variadas miríades de situações psíquicas não redutíveis à lógica da análise
da pulsão, e que na esfera da constituição do ego são fundamentais. Talvez este seja

O Sonhar Restaurado 233


o nível, descrito por Winnicott no interior da lógica da transicionalidade, que Freud
12
tenha nomeado, e nunca desenvolvido, c o m o pulsões do ego.
Quero dar um pequeno exemplo desta matéria psíquica fundamental. Certo
dia a menininha me falou, no início da sessão:
— T i o Tales, vamos nos esconder e olhar a sala?
— Vamos...
Fomos silenciosamente, pé ante pé, até a porta da sala de espera do consultó-
rio, que estava vazia... Ela deitou-se no c h ã o , c o m o quem estivesse se escondendo,
desaparecendo, e, cochichando, pediu: " D e i t a , tio Tales... pra ninguém ver..."
Ficamos assim, desaparecidos junto ao c h ã o , ali ninguém nos veria, e nós
podíamos ver o mundo, por um tempo escutávamos o silencio do consultório... Ela
estava deitada a um palmo de meu rosto... então ela olhou para mim e, perceben-
do a graça de nossa situação, tão próximos e íntimos no brincar, riu... Em um ges-
to espontâneo, e muito afetuoso — o famoso afeto da ternura, uma forma de amar
13
não pulsional muito importante para as crianças —, ela estende a m ã o e toca na
minha barba... ri interessada enquanto experimenta a barba em sua mãozinha... Falo
algo sobre os homens e os adultos que têm cabelo no rosto, de c o m o é engraçado
isto (seu pai tinha bigode...). Após um tempo de experimentação da barba do tio
Tales ela parece ter uma idéia... levanta-se e volta feliz para nossa sala, vai direto
aos dois cavalos de pau que tenho em meu consultório, um c o m a cabeça feita de
tecido e a crina de pele e o outro c o m a cabeça inteiramente feita de madeira, pega
os dois e passa a mãozinha pela crina de um e de outro, experimenta-os c o m o ex-
perimentou a minha barba um pouco antes, a pele e a madeira... Depois pega um
terceiro cavalinho do consultório, um cavalinho de balanço, cuja crina é feita de
corda, e compara a textura de cada forma de cabelo... Por fim pega um dos cavali-
nhos, me dá outro, e me convida para passearmos um pouco pelo quintal da casa...
14
T o d a essa experimentação, movida pelo tipo de investimento do b r i n c a r ,
configurou uma série de experiências c o m o mundo cujo sentido não é derivado de
uma ausência do objeto da pulsão, mas, pelo contrário, é a produção de movimen-
tos que são expansões da alma em um mundo que está disponível para ser encontrado
e usado... Assim experimentamos o silêncio do mundo, a experiência de ver, de fluir
a vida da visão, sem o risco de ser visto, descoberto ou atacado, a proximidade íntima
dos corpos sem excitação pulsional, o gesto espontâneo e a descoberta da dimen-
são sensorial do toque, e das mais variadas formas de cabelo do objeto, e por fim

12
" C o m o sabemos, a disposição desenvolvimento) a uma neurose só é completa se a fase
do desenvolvimento do ego em que a fixação ocorre é levada em consideração, assim como a da
libido. Mas nossa hipótese só se relacionou com a última, e. portanto, não inclui todo o conheci-
mento que deveríamos exigir. Os estádios de desenvolvimento dos instintos do ego são-nos pre-
sentemente muito pouco conhecidos [...]". "A disposição ã neurose obsessiva", em S. Freud, Stan-
dard brasileira, vol. X I I , Rio de janeiro, Imago, p. 4 0 7 .
n
Sobre a ternura infantil, ver Ferenczi, "Confusão de línguas entre os adultos e as crian-
ças" 1 9 3 3 , em Escritos psicanalíticos 1909-1933, Rio de Janeiro, Taurus. p. 3 5 1 .
14
Ver a análise do tipo de investimento e de movimento do brincar cm "Objetos transicionais
e fenômenos transicionais", D. W. Winnicott, op. cit.

234 Tales A . M . A b ' S a b e r


há o movimento sobre o mundo, que se abre no brincar... T o d a s essas descobertas,
feitas no brincar, são expansões psíquicas, que falam aos momentos n ã o mentais
1 5
ou sexualmente pulsionais do e g o . N ã o exigem trabalho mental raciona) para li-
dar c o m o mundo nem descarga de excitação intensa, e constituem tanto na desco-
berta do self junto à presença do objeto criado pela criança quanto a análise do que
16
é da natureza do desejo e da inclusão psíquica da frustração...
Este é o campo em que se sustentam as condições de desenvolvimento do nar-
cisismo primário. Nele, ambiente e ato criativo pessoal se encontram, a realidade e
a onipotência por um instante são unas, e as mães sabem permiti-los aos seus be-
bês, em conjunto c o m a experimentação vital das pulsões sexuais originárias...

Para completar estas lembranças da análise da menininha Marina, quero dar


notícia de c o m o se desenvolveu a sua impossibilidade de sonhar. Ao l o n g o de me-
ses ela foi experimentando e lentamente completando a cena de uma situação que
poderia parecer a alguém um ritual obsessivo, mas se tratava, certamente, de outro
tipo de experiência psíquica: ela fechava as duas janelas da sala, a de vidro e a de
madeira, tinha de fechar todas as portas do corredor, do banheiro e das outras sa-
las do corredor, fechava então a porta da sala, apagava a luz e se aquietava em uma
caminha, que havia preparado anteriormente c o m o travesseiro do divã, cobrindo-
se c o m o tapete da sala...
Era necessário que todas as portas da casa fossem fechadas, que as janelas
fossem fechadas, que ela estivesse inteiramente coberta, que eu e a mãe fingíssemos
dormir e ficássemos inteiramente em silêncio e imóveis, então, e só então, ela come-
çava a dormir: na verdade, durante alguns meses ela oscilava violentamente entre
poder dormir e acordar confusa para dar alimento, chá, aos bebês (os brinquedos
da sala), ou para a mãe, ou para mim...

15
Renato Mezan, na sessão de defesa deste trabalho como doutorado na Universidade de
São Paulo, apontou adequadamente o paradoxo de que no fundo da brincadeira Trazida aqui como
exemplo de momentos não pulsionais de expressão da vida psíquica infantil, haveria também toda
uma simbólica própria ao desejo, que pode ser reconhecida em expressões como "deita, tio Tales",
"que ninguém nos veja", no toque amoroso, e no convite final para "cavalgarmos" c o m os cavali-
nhos de pau. Sem dúvida há erotismo na passagem, como deve hayer erotismo na vida, mas a libi-
do se movimenta em baixa carga e ganha deslocamento permanente e ilusionado sobre os objetos
do mundo, que não são apenas referência secundária do objeto primário da pulsao, mas informam
o sujeito e o ego com sua própria forma e sensorialidade, com sua qualidade real e particular de
objeto do mundo, e fica evidente que a barba erótica do tio Tales não é menos erótica do que a
crina singular de cada cavalinho, e que o deitar juntos em segredo não é menos importante que o
passear livres pelo mundo. Trata-se da forma, aproximada dos deslocamentos e condensações do
sonho, da libido se investir e se enriquecer do mundo em baixa carga, pulsões do ego, no brincar.
Se há desejo figurado aqui, é interessante a estruturação, sonhadora c potente, era que a criança
simultaneamente realiza e se expande para além do objeto original. Ao mesmo tempo, este é o tí-
pico momento em que Ferenezi alertou a psicanálise para que ela não faça uma confusão de lín-
guas entre a notação desejante adulta c a ternura criativa infantil.
iA
A respeito de tais momentos integradores não pulsionais, ver o interessante e singelo ar-
tigo de Masud Khan "linfance, Solitude ct Folie", em Nauvelle Keinic. de Psycbanalyse, n° 19, 1979,
p. 1 7 7 .

O Sonhar R e s t a u r a d o 235
Este era o ritual: ela queria brincar de dormir, nos dizia, então construía, du-
rante um longo tempo, que em si mesmo já era um meio de evitar o que habitava o
risco de dormir, as condições de absoluta estabilidade e controle ambiental... Em
seguida, c o m a sala e as pessoas inteiramente adaptadas ao nível muito básico de sua
necessidade de expansão simbólica, ela vivia um brincar que se confundia com a pró-
pria regressão real, e enquanto tentava dormir ficava imensamente confusa sobre se
dormia ou acordava, se se alimentava ou ao objeto, ou se adormecia para poder fluir
o silêncio e a estabilidade do ambiente para ela. Nesses momentos, era absolutamente
necessário que o ambiente se mantivesse ajustado e fidedigno, que eu e a mãe não
acordássemos de nosso sono silencioso, a não ser que ela nos acordasse para nos
alimentar...
Reproduzia assim um sono primitivo muito irrequieto, que se rompia facilmen-
te pela invasão da oralidade, e que mal se mantinha em estado tranqüilo e de con-
fiança... Ela ficava verdadeiramente confusa e tirânica nessas horas, sem saber se
devia dormir, ou acordar e alimentar os bebês da sala... Eu e a mãe nos transformá-
vamos em objetos de tal encenação vital, que eram usados para ficar em silêncio,
para recebermos broncas porque nos movíamos ou saíamos de nosso lugar, ou para
sermos alimentados, por um alimento que competia c o m a experiência do dormir
no brincar, sempre rompendo-a...
Essa situação dramática foi repetida inúmeras vezes, e, cada vez mais, a cena
completava a possibilidade de ela chegar a fluir o silêncio e a tranqüilidade de es-
tar alimentada, sustentada em um ambiente estável e passível de identificação huma-
na, para poder dar base libidinal ao sonho e ao sono, que não se confunde c o m a
necessidade de alimento material... O que estava em jogo era a constituição das tintas
ilusórias da pulsão no sonhar, que criam mundos e que dão estabilidade ao sono, e
que aqui emergiriam de uma série de condições ambientais muito rigorosas, c o m o
as que sustentam o bebê humano.
Creio que Marina nos dava notícia de como o alimento foi usado como calman-
te mesmo fora de seu tempo, vindo romper aspectos tranqüilos e não integrados
da bebê na sua tenra infância, e forçando, por excesso incompreensível, uma espécie
de fixação oral... De fato, a mãe reconheceu, nessa cena teatral que a menininha
dirigia, algo muito semelhante ao clima ansioso e irrequieto das noites em que a
bebezinha chorava, nas quais provavelmente a fantasia básica dos pais era a de que
faltava algo de material ao bebê, algo da ordem da matéria do leite... Podemos pensar
agora que, desde a origem, o que faltava era algo da ordem da matéria do sonho e
do sono, algo que se expande da experiência pulsional parcial mas não coincide com
ela, algo que n ã o podia ser sustentado pelos pais c o m o ambiente humano, susten-
tando o vértice do dormir e sonhar com suas próprias presenças, o sonho não senso-
rial da bebê, sonho c o m a tela sonho, dimensão humana não incluída, por ques-
tões que lhes eram próprias, no trabalho de rêverie desta mãe e deste pai.
Essa lenta reconstrução, muito delicada e emocionante para quem a vivia, das
condições humanas necessárias para a emergência de um vértice simbólico huma-
nizador fundamental, o do dormir e sonhar, chegou a completar a sua síntese simbó-
lica e integradora na análise de M a r i n a . Creio que posso dizer que dois foram os
momentos principais da conquista do sonho da menininha, momentos mutativos

236 Tales A.M. Ab'Saber


que emergiram evidentemente de todo esse longo e delicado trabalho realizado por
e!a no brincar...
Um dia, depois de cerca de um ano e meio de análise, a menininha criou no-
vamente, mas |á de forma muito mais desembaraçada e segura, o seu "quarto de
dormir na sessão"... Daquela vez, diferentemente de todas as outras, ao invés de
ela transformar a confusão psíquica em atos, em levantar e acender a luz para pe-
gar chá, ou ver se os bebês estavam cobertos etc..., ela manteve-se o tempo todo
deitada em sua caminha, falando uma fala que ganhava rápidos deslocamentos e
transformações, escorregando de um assunto para outro através de conexões causais
imagéticas e associativas não lineares, muito diferentes das conexões próprias à
consciência... De fato, a menininha parecia bêbada ao falar, em associações conec-
tivas de imagens e sentidos que mais lembravam o tipo de trabalho movido imagetica-
mente no sonhar, movido a condensações e deslocamentos espetaculares, e fasci-
nantemente poéticas... Assim ela ficou por cerca de cinco minutos, bêbada de Imagens
em deslocamento e condensação rápidas, mergulhada em um grande prazer corporal
que irradiava um humor quase erótico em sua falação, com a mãe e eu habitando
imóveis e seguros aquela espécie de loucura compartilhada, à qual já nos acostu-
máramos e n ã o estranhávamos...
Em um determinado m o m e n t o na linha associativa rápida e c o m p l e x a da
menina, quase incompreensível para u m a lógica secundária, ela tocou um interes-
sante significante, o chiclete... Apareceu em sua alminha a palavra e a imagem senso-
rial do chiclete, e naquele momento, imediatamente, toda a prazerosa associação
que se dava, espécie de lógica primária apresentada no brincar de dormir, c o m o um
sonho, foi paralisada... A menininha voltou-se para a mãe e disse que queria chiclete...
A mãe, calma em seu lugar, disse que n ã o tinha chiclete agora... A menininha falou
tirânica: "Eu quero chiclete agora!", a mãe disse que não tinha... A menininha dis-
se que queria agora, a mãe disse que poderia comprar depois da sessão... A menininha
então começa a repetir muito brava, c o m uma espécie de choro seco e não verdadeiro,
por cerca de dez minutos: "Eu quero agora... eu quero agora... eu quero agora..."
Eu faço um sinal para que a mãe não interrompa a lamúria da menininha, e,
após algum tempo, que me pareceu mais ou menos apropriado para q u e eu pudes-
se falar o que eu havia pensado sobre tudo aquilo, falo mais ou menos o seguinte,
enquanto ela continua a repetir mecanicamente o que quer:
— A menininha brincava de dormir e de sonhar... no sonho apareciam mui-
tas brincadeiras e imagens, muitas coisas que se ligavam umas às outras, e a meni-
ninha continuava sonhando c continuava dormindo... de repente aparece o chicle-
te, o chiclete vem na alma da menininha e quebra o sonho, o sonho que podia ligar
tantas coisas, que fazia a menininha continuar brincando em seu sonho... Parece
que na hora que vem a comida concreta, que a mamãe tem que dar, ela vem que-
brando o sonho, as muitas comidas das muitas imagens e brincadeiras do sonho,
então a menininha pára tudo em sua alma, não sonha mais, porque quer a comida
concreta, que não pode mais ser uma imagem no sonho que se ligue às outras ima-
gens, às tantas brincadeiras do sonho, mas esta comida, o chiclete que a menininha
quer, quebrou o sonho e o brincar da menininha, parece difícil continuar sonhan-
do nessa hora em que vem a comida real...

O Sonhiu- R e s t a u r a d o 237
Enquanto eu falava esta longa fala amalucada do analista, que agora percebo
ser uma interpretação que faz conexões inusitadas, relativamente rápidas e aos sal-
tos imagéticos, e ganha a narrativa, muito semelhante ao que eu chamei de sonhar
na fala dela enquanto ela brincava de sonhar, enquanto eu dava minha interpreta-
ção, que era a continuidade do sonhar no ambiente a ser usado para uma identifi-
cação primária, eia continuava a choradeira irritante: "Eu quero agora!... agora!...
Eu quero...! Q u e r o agora!... Eu quero...!".
Ficamos assim por mais de cinco minutos, ela dizendo que queria, eu dizendo
" c o m o era impossível atravessar a imagem do chiclete c o m o sonho, fazendo ou-
tras imagens e tempos aparecerem daquele tempo do ' j á ' que concretizava tudo...".
Aos poucos, ela foi mudando o ritmo de sua lamúria, e a tirania do choro irritado
foi ganhando um sentimento verdadeiro de desamparo. Agora ela falava apenas:
11
" E u quero... eu quero... eu quero... eu quero... .
Então eu falo, c o m calma, que a menininha queria dizer, repetindo o seu de-
sejo muitas vezes, que ela existia, era quase c o m o se ela quisesse dizer eu existo,
c o m o "eu q u e r o " , que era a forma de ela dizer que existia, querendo e querendo,
para a mamãe... Q u a n d o eu estou falando essas coisas, de repente, para minha
surpresa, a menininha fala:
— Silêncio!...
Imediatamente eu fico em silêncio. Ela também. Ficamos assim, em silêncio,
por cerca de dez minutos... Sinto a calma e a serenidade dela naquele momento
íntimo. A menininha substituiu no fundo de sua alma a necessidade tirânica de uma
experiência pulsional oral falhada, que sempre se repetia rompendo o ser e o so-
nhar, pela experiência do silêncio, do estar existindo no silêncio, base do todo dor-
mir, e de toda comunicação que guarde algo da verdade do self.
Nesse momento, o silêncio era um aspecto simbólico humano que podíamos
compartilhar, eu e a mãe lhe pudemos dar o silêncio, no instante e x a t o em que ela
necessitava dele, ela criou o silêncio no mundo...
O fenômeno transicional tão claro, da integração do self na experiência n ã o
invasiva do silêncio, fez deslocar e dar continente à demanda falhada da pulsão, e
se houve barramento do desejo onipotente, houve a realização de uma pequena e
compartilhada experiência de onipotência, quando a menininha, funcionando aqui
como um bebê, cria o silêncio necessário para que possa continuar existindo... Nesse
momento houve um deslocamento fundamental, do que era pulsão falhada exigin-
do a presença concreta do objeto, para o que é o psiquismo que pode adiar a satis-
fação, porque cria algo de próprio no mundo... Eis a relação profunda, absoluta-
mente paradoxal, entre o objeto da pulsão, c o m seu simbolismo particular, e o o b -
17
jeto transicional, c o m sua própria dimensão simbolizante.
Após alguns minutos de silêncio, a menininha levantou-se c o m o se nada ti-
vesse acontecido e, pedindo para abrir a janela, na figuração de um despertar, vol-
tou a brincar c o m os objetos da sala e c o m i g o de forma tranqüila e criativa... Pro-

17
Essa é a mesma discussão que "Winnicott realiza ao pensar os elementos femininos e mas-
culinos puros, em "A criatividade e suas origens", op. cit., p. 113 e ss.

238 Tales A.M. Ab'Sáber


vavelmente toda aquela cena anterior tão dramática foi esquecida, c o m o matéria
de sonho, que verdadeiramente era, e foi subsumida na construção da matéria que
é o pano de fundo da alma, a presença da continuidade do ser, experiência de ori-
gem pré-narcísica e narcísica que dá o solo de qualquer existência humana que possa
se realizar.

As dimensões deste trabalho fazem sobrepor a análise do desejo e do que pre-


cisa ser compreendido na formulação sintomática do barramento do desejo, das
construções reativas e defensivas ao redor das fantasias pulsionais pré-genitais, e
os processos de sustentação da lenta e neutra experiência da narcisização do bebê
humano, em que se permite a vitalidade da criação de algo próprio no mundo, algo
que faça coincidir onipotência e potência.

Hoje eu tendo a dizer que todo trabalho interessante em psicanálise, mesmo


na análise de "verdadeiros neuróticos" (se é que eles ainda existem...), toca esta
matéria psíquica criativa que dá notícia do self. Muitas vezes esta dimensão sim-
bolizante narcisizante é sustentada pelo analista de forma clara, mas n ã o é comu-
nicada por ele, nem sequer percebida na forma do insight teórico.
Eu recordaria os célebres "erros" técnicos de Freud no caso do homem dos
ratos c o m o espécie de sustentação do tipo de simbolização em que sujeito e objeto
estão unidos em um gesto autocriativo que será o da expansão do próprio ser. Daí
surge a simbolização fundamental que se dá na presença do objeto, transferência
do tipo materno que Freud aprendeu lentamente a sustentar.
Assim, por exemplo, as várias explicações e compartilhamentos referentes à
psicanálise c o m o teoria, que Freud faz questão de manter ao longo de t o d o o tra-
balho, resposta narcísica do próprio homem Freud à comunicação inicial do paciente
"de que ele sabia sobre sua teoria sexual" e por isso o procurava, é um evidente
espaço compartilhado entre o brincar do analista e o do paciente, que faz avançar
a criação da própria análise. Este espaço, a presença neutra da psicanálise como
saber circulando entre a dupla analítica, fazia grandes efeitos no trabalho c o m o
homem dos ratos, e vemos que Freud recorria muitas vezes ao seu brinquedo teóri-
co para nele incluir o seu paciente. Neste processo, em que a teoria tinha dimensão
neutra em relação à própria transferência, era o campo de coincidência dos dois
homens, Freud também n ã o hesitava era reconstruir e sustentar as feridas narcísicas
que a análise podia produzir em seu paciente.
Podemos recordar um dos vários momentos em que Freud faz a psicanálise
intervir c o m o objeto de transformação simbólica compartilhado pelos dois homens,
bem c o m o chega a poder verdadeiramente tranqüilizar o seu paciente, também se
baseando em seu brinquedo teórico:

''Esses pensamentos surpreenderam-no muito, de vez que ele esta-


va bem seguro de que a morte de seu pai jamais poderia ter sido objeto
de seu desejo, mas apenas de seu medo. — Após estas palavras, que enun-
ciou forçadamente, achei aconselhável trazer à sua observação um novo
fragmento de teoria. Conforme a teoria psicanalítica, eu lhe disse, todo

O Sonhar Restaurado 239


medo correspondia a um desejo primeiro, agora reprimido; por conse-
guinte éramos obrigados a acreditar no e x a t o contrário daquilo que ele
afirmara. Isto também se ajustaria a uma outra exigência teórica, ou seja,
a de que o inconsciente deve ser o exato contrário do consciente. — Ele
estava muito agitado c o m isso, e muito incrédulo. Queria saber c o m o
lhe fora possível ter um desejo desses, considerando que ele amava seu
pai mais do que amava qualquer outra pessoa no mundo; não podia haver
dúvida de que ele teria renunciado a todas as suas próprias perspectivas
de felicidade se, fazendo-o, pudesse ter salvo a vida de seu pai. — Res-
pondi que exatamente um amor assim intenso era a pré-condição neces-
sária do ódio reprimido. No caso das pessoas c o m que se sentia indife-
rente, ele podia, seguramente, não ter dificuldades de manter, lado a lado,
propensões a um prazer moderado e a um desprazer igualmente modera-
do; por exemplo, supondo-se que ele fosse um oficial, ele poderia pen-
sar que seu chefe era agradável c o m o um superior, contudo, ao mesmo
tempo, um velhaco c o m o um advogado, um desumano c o m o um juiz
(Shakespeare faz Brutus falar de Júlio César de modo semelhante [...]).
No caso de alguém que fosse mais íntimo dele, sua esposa, por exem-
plo, ele desejaria que seus sentimentos fossem puros, e, em conseqüên-
cia, c o m o era apenas humano, ele não notaria suas faltas, já que estas
poderiam fazê-lo desgostar dela — ele as ignoraria c o m o se não as en-
xergasse. Assim, foi precisamente a intensidade de seu amor que não per-
mitiu que seu ódio - embora este nome fosse caricaturar o sentimento
— permanecesse consciente. [...]

Ele admitiu que tudo isso soava um tanto plausível, mas ele natu-
18
ralmente não estava, em última análise, convencido pelo fato."

Nessa passagem célebre, vemos Freud optando tecnicamente por introduzir a


psicanálise c o m o teoria, c o m o mediadora do duplo processo de criação, na inter-
pretação do analista e na livre associação do paciente. Em uma nota de rodapé
colocada ao fim dessa passagem, Freud diz que tais discussões não têm o objetivo
de convencer, mas devem chegar a produzir a associação, ou seja, lançar a análise
ao seu movimento. Trata-se de um "fragmento de teoria" cujo sentido é lançar a
dupla ao próprio processo criativo da análise, à livre associação do paciente e a in-
terpretação rica de sentido do analista, e a segunda parte da construção freudiana,
que vai dos afetos banais pelo chefe à seleção cuidadosa de afetos e percepções re-
ferentes à esposa, à impossibilidade de odiar o pai, passando por Júlio César de
Shakespeare (não sabemos se Freud falou ou não de Shakespeare para o homem
dos ratos em sua construção, mas eu não duvido nem um pouco que a própria as-
sociação livre do analista na interpretação tenha produzido uma tal c o m u n i c a ç ã o

lt!
S. Freud, "Notas sobre um caso de neurose obsessiva" ( 1 9 0 9 ) , Standard brasileira, vol.
X, Rio de Janeiro, Imago, 1 9 9 0 , pp. 1 8 3 - 4 .

240 Tales A . M . A b ' S a b e r


de um objeto pessoal do self do analista), c o m p õ e m um m o m e n t o extremamente
inspirado da forma de Freud ser analista.
A psicanálise compartilhada pelos dois, desde a primeira sessão, cumpriu seu
papel criador, fazendo objeto e sujeito encontrarem-se no a t o criativo. Quero di-
zer que aqui, se a teoria propõe a separação inconsciente do objeto, ela é também
brinquedo em que analista e paciente se constituem em união.
Para encerrar este comentário sobre as dimensões narcisizantes do trabalho
de Freud, gostaria de lembrar duas passagens muito importantes do caso, que intro-
duzem no manejo clínico de Freud aspectos n ã o desenvolvidos em sua própria
teorização.
Uma é a descrição das "crises transferenciais" do homem dos ratos, em que a
presença dos problemas referentes ao amor e ao ódio peio objeto se confunde clara-
mente c o m uma espécie de regressão real, na tentativa de restaurar, na presença do
objeto Freud na transferência, o aspecto da humanidade falhado mesmo na consti-
tuição origina! do ego:

"Seu comportamento, enquanto me repetia estes insultos, era de


um homem em desespero. ' C o m o pode um cavalheiro c o m o o senhor',
ele costumava perguntar, 'deixar-se xingar desse m o d o por um sujeito
baixo e à toa c o m o eu? O senhor devia é me enxotar, é o que m e r e ç o . '
Enquanto assim falava, costumava levantar-se do divã e circular pela sala
— um hábito que a princípio explicou c o m o sendo uma questão de éti-
ca: ele não podia chegar, c o m o disse, a proferir coisas tão horríveis estan-
do ali deitado, tão comodamente. Logo, porém, ele próprio encontrou
uma explicação mais plausível, ou seja, que estava evitando a minha
proximidade por medo de que eu lhe desse uma bofetada. Se ficava no
divã com portava-se c o m o alguém em desesperado terror que tentava se
salvar de castigos terrivelmente violentos; costumava enterrar a cabeça
nas mãos, cobrir o rosto com o braço, saltar de repente e correr, c o m o
semblante desfigurado de dor, etc. Recordou que seu pai tivera um tempe-
ramento passional e, às vezes, em seu caráter violento, não soubera quan-
do parar. Assim, paulatinamente, nessa escola de sofrimento, o pacien-
te logrou o sentimento de convicção que lhe faltava — embora a uma
1 9
pessoa de fora a verdade fosse evidente quase por si m e s m a . "

Freud permitia e sustentava violentas crises confusionais em que uma espécie


de alucinose a respeito de castigos corporais que emergiam c o m o reais tinha lugar.
Aqui o objeto era regressivamente testado na própria experiência do ambiente ana-
lítico, refazendo o ponto violento em que a falha invasiva e precoce produziu uma
desconexão fundamental na alma atormentada do homem dos ratos.
Este é apenas um dos muitos aspectos da presença de matéria psicótica em toda
evidente construção neurótica do h o m e m dos ratos. Os ensaios da tentativa de vi-

19
Idem, p. 2 1 0 .

O Sonhar Restaurado 241.


ver algo com Freud, que se repetiam de tempos em tempos em tais dramáticas atua-
ções, nos falam de uma espécie de a p r o x i m a ç ã o graduai da regressão ao ponto em
que o ambiente resgataria o ataque primordial ao ser, muito semelhante aos m o v i -
mentos regressivos que tentam acertar o ambiente h u m a n o com a própria alma que
2 0
descrevi na menininha de três a n o s . Freud certamente possibilitava tais movimentos
muito radicais e referentes ao originário, sustentando a maternagem do h o m e m dos
ratos, e algo aí de fundamental importância devia se constituir, a que Freud cha-
m a v a de " c o n v i c ç ã o que f a l t a v a " , em uma referência a sua forma de compreendei"
a experiência analítica sempre em termos representacionais.
Outro m o m e n t o de grande interesse, e que mostra uma grande acuidade de
Freud para os problemas da emergência do self, é a espantosa interpretação em que
ele localiza uma extremamente precoce identificação do h o m e m c o m os ratos.

"A n o ç ã o a respeito de um rato está inseparavelmente c o m p r o m e -


tida c o m o fato de que este possui dentes afiados, com os quais rói e
morde. Os ratos, c o n t u d o , n ã o p o d e m ter dentes tão afiados, ser de-
v o r a d o r e s e sujos impunemente: s ã o cruelmente perseguidos e impie-
dosamente mortos pelos homens, c o m o o paciente muitas vezes obser-
vara c o m grande terror. C o m freqüência havia-se a p i e d a d o das pobres
criaturas. Ele p r ó p r i o , porém, tinha sido um sujeitinho asqueroso e sujo,
sempre pronto a morder as pessoas q u a n d o enfurecido, e fora assusta-
doramente punido p o r tê-lo feito. É bem verdade que ele podia ver no
rato ' u m a imagem viva de si m e s m o ' . Foi quase c o m o se o p r ó p r i o des-
tino, q u a n d o o capitão lhe contou sua história, o estivesse submetendo
a um teste de associação: o destino lhe apresentara, em desafio, uma pa-
21
lavra-estímulo-complexa e ele reagira c o m sua idéia o b s e s s i v a . "

V e m o s F r e u d partindo de uma referência pulsional que diz respeito ao sadis-


mo oral e chegando a u m a imagem muito sofisticada do destino do p r ó p r i o h o m e m
dos ratos, uma imagem identificatória precoce c o m um sentido do m u n d o , os ratos,
à qual o h o m e m ficou imensamente superposto, inclusive pela tradição oral psica-
nalítica. Temos aí uma imagem do self fugidia mas sempre presente, construída c o m o
sentido simbólico p r ó p r i o e intransferível daquele h o m e m , algo muito semelhante
a certas avaliações da forma estética de alguns pacientes realizadas por M a s u d K h a n ,
2 2
setenta anos depois desta psicanálise já bastante a v a n ç a d a de F r e u d .

20
Ver Winnicott, "Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no setting analítico",
em Da pediatria à psicanálise.
21
Idem, pp. 2 1 7 - 8 .
22
"Aisha começou a chorar. Deixei-a; depois disse: 'Acho que já tivemos o suficiente de
adestramento para uma manhã". Escolhi deliberadamente uma palavra do vocabulário de equita-
ção. Sorriu e perguntou: 'Como você sabe?' 'O quê?' 'Que sou uma égua indomável. Meu pai sempre
me chamou assim.' Tudo isso foi dito no idioma Chanauti." Esra é uma das muitas passagens em
que Khan percebe uma forma, um padrão pessoal, de caráter quase estético e unitário, do pacien-
te que está com ele. Em "A longa espera", Quando a primavera chegar, São Paulo, Escuta, p. 2 1 6 .

242 Tales A . M . Ab'Sáber


Estamos realizando um giro de modelos psicanalíticos no interior do relato
freudiano, que para nós tem o caráter de d e m o n s t r a ç ã o da presença de matéria
transferencial e de manejo clínico que Freud era ainda incapaz de n o m e a r , embora
lidasse de tato c o m questões presentes no c a m p o analítico c o n t e m p o r â n e o aqui
desenhado. N a d a disso retira o peso e a verdade da análise da neurose centrada sobre
as formas clássicas da defesa obsessiva e seus p r o b l e m a s realizada por F r e u d .
N ã o deixa de ser verdadeiramente interessante que as duas passagens interpre-
tativas que citei c o m o aspectos do trabalho da psicanálise do self cm F r e u d , a do
fragmento de psicanálise c o m o objeto compartilhado pela dupla analítica, e a do
reconhecimento de uma imagem unitária do self no destino do homem r a t o , sejam
duas passagens em que Freud invoca importantes objetos identifícatórios de seu pró-
prio self. Deparei-me c o m isto agora, ao escrever este trabalho: no fragmento com-
partilhado de teoria v i v a , Freud lembra Shakespeare, uma passagem de Júlio César,
23
que, c o m o nos lembra J a m e s S t r a c h e y , tem importante papel nas associações de
um sonho do próprio Freud; e na passagem do menininho r a t o , Freud l e m b r a G o e -
the em uma nota, outro objeto de profundo impacto em sua a l m a e em seus sonhos.
Shakespeare e G o e t h e são m o d e l o s identifícatórios definitivos p a r a a forma
do ser de F r e u d , são verdadeiros precursores culturais de sua própria pesquisa c o m
a alma h u m a n a e fazem parte de seu registro de objetos íntimos e de grande v a l o r ,
pois os poetas "sabiam espontaneamente o que o homem de ciência tinha de con-
quistar a r d u a m e n t e " . De fato, s a b e m o s que F r e u d era um cientista que sabia o que
os poetas sabiam, e fez comunicar à esfera de um conhecimento operacional e trans-
missível tal saber espantoso.
No fundo da alma do homem dos ratos F r e u d encontrava, entre tantas coi-
sas, também a sua própria alma.

li
Notas à Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de ja -
neiro, Imago, 1 9 9 0 .

O Sonhar R e s t a u r a d o 243

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