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Certa vez desenvolvi urn longo trabalho analítico c o m uma menininha e seus
pais. Quando ela me encontrou pela primeira vez, tinha dois anos e meio. Algo de
muito grave já havia acontecido em sua vida. Neste momento ela era extremamen-
te apegada à mãe, nutria um desprezo superior por qualquer pessoa que tentasse se
aproximar dela, não conseguia brincar livremente c o m crianças da sua idade e, em-
bora c o m os pais se mostrasse carinhosa em muitos momentos, era tirânica e pro-
fundamente irritadiça.
Por vezes entrava em um estado de choro manhoso, incompreensível para os
país, que podia perdurar por horas. Só uma fraldinha velha, a que ela chamava de
naninha, podia acalmá-la após algum tempo destas crises, e então, ao chupar o dedo,
com um pequenino canto da fraldinha às vezes junto à boca e segurando-a com a
m ã o inteira, podia ficar em silêncio, e por vezes dormir.
Nas longas conversas que tive com sua mãe, pudemos reconstruir algo da histó-
ria de seus primeiros dias e meses de vida. A mãe era a filha mais jovem de sua fa-
mília. Sua mãe, a avó da pequenina M a r i n a , era uma matriarca bastante centra-
lizadora, e o pai havia falecido há alguns anos. Casou-se c o m um h o m e m razoa-
velmente mais velho do que ela própria, em uma união muito amorosa e divertida.
A gravidez muito desejada pelos dois transcorreu de forma tranqüila, c ela sentira-
se profundamente cuidada pelo marido, "é muito bom a gente encontrar uma pes-
soa que a gente verdadeiramente curta, porque as coisas difíceis tornam-se fáceis".
Durante a gravidez, os dois sonhavam c o m o seria a menininha, conversavam com
ela e já a faziam presente na imaginação de sua vida futura.
Porém, nessa história de a m o r e de nascimento, sempre pairou uma dúvida,
que provocava ainda agora, quando essa mulher de 32 anos conversava comigo,
uma certa ansiedade, alguma confusão, algumas palavras fora de lugar, bem c o m o
afetos bastante ambivalentes: desde sempre ela sentia que sua mãe não a consi-
derava em condições de se casar e ter sua própria filha, parecia sentir que sua mãe
a considerava, ou a queria, ainda dependente dela. Foi importante p a r a eia o m o -
mento em que pôde n o m e a r c o m clareza na conversa o seu ódio por sua mãe, por
aquela sua impossibilidade de vê-la adulta, sexualmente adulta. Um ó d i o da filha
pela mãe, por impossibilidades humanas da mãe, que, ao ser nomeado aqui, na re-
1
Ver a respeito da importância da natureza deste encontro primeiro de mãe e bebê "As
comunicações entre o bebê e a mãe e a mãe e o bebê, comparadas e contrastadas", D. W. Win-
nicott, em O que é a psicanálise, Rio de Janeiro, Imago, p. 3 5 .
2
Winnicott desenvolve o risco de adoecimento materno grave se o bebê, objeto da identifi-
cação, faltar, em "Preocupação materna primária", 1 9 5 6 , em Da pediatria à psicanálise* op. cit.,
p. 4 9 4 .
3
Sobre s origem da identidade a partir da fusão primária e criativa do bebê e mãe, ver "A
criatividade e suas origens", especialmente a discussão dos chamados elementos femininos puros
e sua relação com a base da identidade, em O brincar e a realidade, op. cit., p. 1 1 4 .
4
Sobre identificação projetiva, ver o clássico "Noras sobre alguns mecanismos esquizóides",
1 9 4 6 , dc Melanie Klein, em Os progressos da psicanálise, Rio de Janeiro. Zahar, 1 9 8 2 ; sobre a
presença maciça dc identificação projetiva na transferência psicótica, e seus efeitos de deforma-
ção sobre a percepção e o ego, ver, de Bion, "Sobre a alucinação". 1 9 5 8 , em Estudos psicanalíti-
cos revisitados, Rio de j a n e i r o , Imago, p. 7 9 . Aqui sugiro que a lógica meorporativa oral que ten-
de a una relação de totalidade com a matéria que é objeto da pulsão pode implicar em expulsões
também totais, cujo risco é a expulsão das origens do continente psíquico de si mesmo...
5
Sobre o ódio difundido cuja comunicação é comunicação amorosa, ver "Cura psicanalíti-
ca com ajuda da boneca-flor" ( 1 9 4 9 ) . de Françoise Dolto. em No jogo do desejo, R i o de Janeiro,
Zahar. 1 9 8 4 , p. 1 1 6 . Notar a relação entre o ódio para comunicar amor e sensação de incompletude
corporal, típica da situação pré-narcísica.
6
Ver a análise de Freud da reação terapêutica negativa em O Ego e o Id, onde o superego
volta-se sobre o ego exigindo punição por uma culpa inconsciente.
Algum tempo depois volto a falar algo sobre as tintas, de como as tintas pin-
tam o sonho dentro da alma da menininha, e então ela me fez a comunicação que
mais me espantou, entre tantas outras verdadeiramente espantosas que eia pôde me
fazer durante nosso trabalho:
— N ã o é tinta de sonho, tio Tales, porque eu não sonho mais...
Me falou tranqüilamente a pequenina M a r i n a , como se n ã o sonhar fosse uma
experiência absolutamente natural... Após algum tempo refletindo, perguntei:
— V o c ê não sonha mais? — E ela, convicta:
— Não...
— M a s por que você não sonha mais?
7
Tempos depois lembrei-me que Winnicott havia realizado uma interpretação semelhante
relatada era 1 9 7 1 . Ele faiou para a menininha Diana, de cinco anos: " O h ! Olhe só! V o c ê está es-
palhando no chão, em volta das cabeças dos bebês, os sonhos que eles estão tendo, enquanto dor-
mem"; em "O brincar, uma exposição teórica", em O brincar e a realidade, op. cit. p. 6 8 .?
8
Quando Freud amplia a noção de identificação primária do pai para os pais, na impor-
tante nota de rodapé de O Ego e o Id, entendo que abre a noção de identificação primária do bebê
humano para um campo ambiental humano, que inclui mãe, pai, cuidados e objetos culturais.
9
S. Freud, "Sobre o narcisismo: uma introdução", Standard brasileira, vol. X I V , Rio de
Janeiro, Imago, 1990, p. 1 0 9 .
O Sonhar R e s t a u r a d o 231
Tal percepção clara não foi muito considerada por teóricos pós-freudianos que
centraram a pesquisa da psicose sobre a estrutura da rejeição de algo referente ao
complexo de Édipo, equívoco relativo que o próprio Freud induziu... Após a pas-
sagem citada acima, em que Freud chega a pensar um universo de distúrbios refe-
ridos ao engendramento do narcisismo primário e, portanto, do ego, ele mesmo
orienta a pesquisa para o que pode ser considerado um ponto fixo de sua constru-
ção metapsicológica, nem sempre inteiramente ajustado ao fato psíquico que en-
volve a psicose: "Sua parte mais importante [dos disturbios do narcisismo original],
contudo, pode ser isolada s o b a forma do 'complexo de castração' (nos meninos, a
ansiedade em relação ao pênis; nas meninas, a inveja do pênis) e tratada em cone-
10
x ã o com o efeito da coerção inicial da atividade s e x u a l " .
Aí está o explicar o originário pelo que é sua forma desenvolvida. O caso de
nossa menininha M a r i n a não parecia articular — em uma desconexão psíquica
essencial já muito precoce, que atacaria a própria constituição do sonhar — pro-
blemas relacionados ao complexo de castração. Isto porque navegávamos falhas
referentes ao próprio processo de constituição da unidade psíquica, e de sua inte-
gração corporal, o que se dá em um campo de vivências de pulsões pré-genitais, de
percepções onde não há ainda integração egóica e de lentos e gradativos fenôme-
11
nos transicionais.
É assim que podemos compreender algumas expressões da criança ao longo
de sua análise que dizem mesmo respeito à existência originária do bebê, os "dis-
túrbios do narcisismo originário", diria Freud, c o m o quando, por exemplo, em meio
a uma brincadeira c o m um cavalo de pau, ela se concentra na testa do cavalinho e
então me pergunta, muito séria e interessada: " E u tenho testa?'", ou quando, ao me
ver mancar por causa de um machucado, me pergunta ansiosa: "Eu também estou
machucada?". Aqui ela me comunicava percepções corporais e de self que guarda-
vam algo da não integração dos primeiros tempos, tempos em que o ambiente e sua
natureza faziam efeitos reais sobre a experiência de corpo e alma da bebê, e se a
mãe adoecia, ela também adoecia: Eu estou machucada porque você está machu-
cado'í Eu completei a construção do meu corpo como algo que me pertence e uni-
fica, tenho todas as partes do meu corpo}...
Neste campo muito especial de constituição da alma humana, que a psicaná-
lise contemporânea chegou a conhecer de forma relativamente mais desenvolvida,
vimos que operam pulsões pré-genitais que tentam completar sua relação c o m o
objeto, e completar o próprio objeto c o m o construção psíquica no mesmo movi-
mento. Assim, sadismo anal expulsivo, ecos de dimensões pulsionais orais apresen-
tadas no brincar e na incorporação do analista c o m o alimento, em uma relação
10
Idem.
11
Abraham foi o primeiro a incluir a situação narcísica, e a tentar refletir sobre a lógica do
tipo de ligação com o objeto na esfera dos processos de narcisizacão, na história da psicanálise:
seu espantoso ensaio de 1 9 2 4 "Breve estudo do desenvolvimento da libido à luz das perturbações
mentais", tende a pensar a psicanálise cada vez mais próxima dos processos de engendramento
narcísicos a partir do universo pulsionai pré-genital.
1
232 Tales A.M. Ab Saber
transferencial que sofria as ambivalências muito acentuadas do medo da falha no
objeto e no ambiente sofrida na aurora da existência, conviviam com u m a série de
expansões psíquicas não diretamente pulsionais, os fenômenos transicionais, que
lentamente se desdobravam em brincar neste trabalho.
12
" C o m o sabemos, a disposição desenvolvimento) a uma neurose só é completa se a fase
do desenvolvimento do ego em que a fixação ocorre é levada em consideração, assim como a da
libido. Mas nossa hipótese só se relacionou com a última, e. portanto, não inclui todo o conheci-
mento que deveríamos exigir. Os estádios de desenvolvimento dos instintos do ego são-nos pre-
sentemente muito pouco conhecidos [...]". "A disposição ã neurose obsessiva", em S. Freud, Stan-
dard brasileira, vol. X I I , Rio de janeiro, Imago, p. 4 0 7 .
n
Sobre a ternura infantil, ver Ferenczi, "Confusão de línguas entre os adultos e as crian-
ças" 1 9 3 3 , em Escritos psicanalíticos 1909-1933, Rio de Janeiro, Taurus. p. 3 5 1 .
14
Ver a análise do tipo de investimento e de movimento do brincar cm "Objetos transicionais
e fenômenos transicionais", D. W. Winnicott, op. cit.
15
Renato Mezan, na sessão de defesa deste trabalho como doutorado na Universidade de
São Paulo, apontou adequadamente o paradoxo de que no fundo da brincadeira Trazida aqui como
exemplo de momentos não pulsionais de expressão da vida psíquica infantil, haveria também toda
uma simbólica própria ao desejo, que pode ser reconhecida em expressões como "deita, tio Tales",
"que ninguém nos veja", no toque amoroso, e no convite final para "cavalgarmos" c o m os cavali-
nhos de pau. Sem dúvida há erotismo na passagem, como deve hayer erotismo na vida, mas a libi-
do se movimenta em baixa carga e ganha deslocamento permanente e ilusionado sobre os objetos
do mundo, que não são apenas referência secundária do objeto primário da pulsao, mas informam
o sujeito e o ego com sua própria forma e sensorialidade, com sua qualidade real e particular de
objeto do mundo, e fica evidente que a barba erótica do tio Tales não é menos erótica do que a
crina singular de cada cavalinho, e que o deitar juntos em segredo não é menos importante que o
passear livres pelo mundo. Trata-se da forma, aproximada dos deslocamentos e condensações do
sonho, da libido se investir e se enriquecer do mundo em baixa carga, pulsões do ego, no brincar.
Se há desejo figurado aqui, é interessante a estruturação, sonhadora c potente, era que a criança
simultaneamente realiza e se expande para além do objeto original. Ao mesmo tempo, este é o tí-
pico momento em que Ferenezi alertou a psicanálise para que ela não faça uma confusão de lín-
guas entre a notação desejante adulta c a ternura criativa infantil.
iA
A respeito de tais momentos integradores não pulsionais, ver o interessante e singelo ar-
tigo de Masud Khan "linfance, Solitude ct Folie", em Nauvelle Keinic. de Psycbanalyse, n° 19, 1979,
p. 1 7 7 .
O Sonhar R e s t a u r a d o 235
Este era o ritual: ela queria brincar de dormir, nos dizia, então construía, du-
rante um longo tempo, que em si mesmo já era um meio de evitar o que habitava o
risco de dormir, as condições de absoluta estabilidade e controle ambiental... Em
seguida, c o m a sala e as pessoas inteiramente adaptadas ao nível muito básico de sua
necessidade de expansão simbólica, ela vivia um brincar que se confundia com a pró-
pria regressão real, e enquanto tentava dormir ficava imensamente confusa sobre se
dormia ou acordava, se se alimentava ou ao objeto, ou se adormecia para poder fluir
o silêncio e a estabilidade do ambiente para ela. Nesses momentos, era absolutamente
necessário que o ambiente se mantivesse ajustado e fidedigno, que eu e a mãe não
acordássemos de nosso sono silencioso, a não ser que ela nos acordasse para nos
alimentar...
Reproduzia assim um sono primitivo muito irrequieto, que se rompia facilmen-
te pela invasão da oralidade, e que mal se mantinha em estado tranqüilo e de con-
fiança... Ela ficava verdadeiramente confusa e tirânica nessas horas, sem saber se
devia dormir, ou acordar e alimentar os bebês da sala... Eu e a mãe nos transformá-
vamos em objetos de tal encenação vital, que eram usados para ficar em silêncio,
para recebermos broncas porque nos movíamos ou saíamos de nosso lugar, ou para
sermos alimentados, por um alimento que competia c o m a experiência do dormir
no brincar, sempre rompendo-a...
Essa situação dramática foi repetida inúmeras vezes, e, cada vez mais, a cena
completava a possibilidade de ela chegar a fluir o silêncio e a tranqüilidade de es-
tar alimentada, sustentada em um ambiente estável e passível de identificação huma-
na, para poder dar base libidinal ao sonho e ao sono, que não se confunde c o m a
necessidade de alimento material... O que estava em jogo era a constituição das tintas
ilusórias da pulsão no sonhar, que criam mundos e que dão estabilidade ao sono, e
que aqui emergiriam de uma série de condições ambientais muito rigorosas, c o m o
as que sustentam o bebê humano.
Creio que Marina nos dava notícia de como o alimento foi usado como calman-
te mesmo fora de seu tempo, vindo romper aspectos tranqüilos e não integrados
da bebê na sua tenra infância, e forçando, por excesso incompreensível, uma espécie
de fixação oral... De fato, a mãe reconheceu, nessa cena teatral que a menininha
dirigia, algo muito semelhante ao clima ansioso e irrequieto das noites em que a
bebezinha chorava, nas quais provavelmente a fantasia básica dos pais era a de que
faltava algo de material ao bebê, algo da ordem da matéria do leite... Podemos pensar
agora que, desde a origem, o que faltava era algo da ordem da matéria do sonho e
do sono, algo que se expande da experiência pulsional parcial mas não coincide com
ela, algo que n ã o podia ser sustentado pelos pais c o m o ambiente humano, susten-
tando o vértice do dormir e sonhar com suas próprias presenças, o sonho não senso-
rial da bebê, sonho c o m a tela sonho, dimensão humana não incluída, por ques-
tões que lhes eram próprias, no trabalho de rêverie desta mãe e deste pai.
Essa lenta reconstrução, muito delicada e emocionante para quem a vivia, das
condições humanas necessárias para a emergência de um vértice simbólico huma-
nizador fundamental, o do dormir e sonhar, chegou a completar a sua síntese simbó-
lica e integradora na análise de M a r i n a . Creio que posso dizer que dois foram os
momentos principais da conquista do sonho da menininha, momentos mutativos
O Sonhiu- R e s t a u r a d o 237
Enquanto eu falava esta longa fala amalucada do analista, que agora percebo
ser uma interpretação que faz conexões inusitadas, relativamente rápidas e aos sal-
tos imagéticos, e ganha a narrativa, muito semelhante ao que eu chamei de sonhar
na fala dela enquanto ela brincava de sonhar, enquanto eu dava minha interpreta-
ção, que era a continuidade do sonhar no ambiente a ser usado para uma identifi-
cação primária, eia continuava a choradeira irritante: "Eu quero agora!... agora!...
Eu quero...! Q u e r o agora!... Eu quero...!".
Ficamos assim por mais de cinco minutos, ela dizendo que queria, eu dizendo
" c o m o era impossível atravessar a imagem do chiclete c o m o sonho, fazendo ou-
tras imagens e tempos aparecerem daquele tempo do ' j á ' que concretizava tudo...".
Aos poucos, ela foi mudando o ritmo de sua lamúria, e a tirania do choro irritado
foi ganhando um sentimento verdadeiro de desamparo. Agora ela falava apenas:
11
" E u quero... eu quero... eu quero... eu quero... .
Então eu falo, c o m calma, que a menininha queria dizer, repetindo o seu de-
sejo muitas vezes, que ela existia, era quase c o m o se ela quisesse dizer eu existo,
c o m o "eu q u e r o " , que era a forma de ela dizer que existia, querendo e querendo,
para a mamãe... Q u a n d o eu estou falando essas coisas, de repente, para minha
surpresa, a menininha fala:
— Silêncio!...
Imediatamente eu fico em silêncio. Ela também. Ficamos assim, em silêncio,
por cerca de dez minutos... Sinto a calma e a serenidade dela naquele momento
íntimo. A menininha substituiu no fundo de sua alma a necessidade tirânica de uma
experiência pulsional oral falhada, que sempre se repetia rompendo o ser e o so-
nhar, pela experiência do silêncio, do estar existindo no silêncio, base do todo dor-
mir, e de toda comunicação que guarde algo da verdade do self.
Nesse momento, o silêncio era um aspecto simbólico humano que podíamos
compartilhar, eu e a mãe lhe pudemos dar o silêncio, no instante e x a t o em que ela
necessitava dele, ela criou o silêncio no mundo...
O fenômeno transicional tão claro, da integração do self na experiência n ã o
invasiva do silêncio, fez deslocar e dar continente à demanda falhada da pulsão, e
se houve barramento do desejo onipotente, houve a realização de uma pequena e
compartilhada experiência de onipotência, quando a menininha, funcionando aqui
como um bebê, cria o silêncio necessário para que possa continuar existindo... Nesse
momento houve um deslocamento fundamental, do que era pulsão falhada exigin-
do a presença concreta do objeto, para o que é o psiquismo que pode adiar a satis-
fação, porque cria algo de próprio no mundo... Eis a relação profunda, absoluta-
mente paradoxal, entre o objeto da pulsão, c o m seu simbolismo particular, e o o b -
17
jeto transicional, c o m sua própria dimensão simbolizante.
Após alguns minutos de silêncio, a menininha levantou-se c o m o se nada ti-
vesse acontecido e, pedindo para abrir a janela, na figuração de um despertar, vol-
tou a brincar c o m os objetos da sala e c o m i g o de forma tranqüila e criativa... Pro-
17
Essa é a mesma discussão que "Winnicott realiza ao pensar os elementos femininos e mas-
culinos puros, em "A criatividade e suas origens", op. cit., p. 113 e ss.
Ele admitiu que tudo isso soava um tanto plausível, mas ele natu-
18
ralmente não estava, em última análise, convencido pelo fato."
lt!
S. Freud, "Notas sobre um caso de neurose obsessiva" ( 1 9 0 9 ) , Standard brasileira, vol.
X, Rio de Janeiro, Imago, 1 9 9 0 , pp. 1 8 3 - 4 .
19
Idem, p. 2 1 0 .
20
Ver Winnicott, "Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no setting analítico",
em Da pediatria à psicanálise.
21
Idem, pp. 2 1 7 - 8 .
22
"Aisha começou a chorar. Deixei-a; depois disse: 'Acho que já tivemos o suficiente de
adestramento para uma manhã". Escolhi deliberadamente uma palavra do vocabulário de equita-
ção. Sorriu e perguntou: 'Como você sabe?' 'O quê?' 'Que sou uma égua indomável. Meu pai sempre
me chamou assim.' Tudo isso foi dito no idioma Chanauti." Esra é uma das muitas passagens em
que Khan percebe uma forma, um padrão pessoal, de caráter quase estético e unitário, do pacien-
te que está com ele. Em "A longa espera", Quando a primavera chegar, São Paulo, Escuta, p. 2 1 6 .
li
Notas à Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de ja -
neiro, Imago, 1 9 9 0 .
O Sonhar R e s t a u r a d o 243