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DIÁLOGOS
O BANQUETE - FÉDON- SOFISTA - POLÍTICO
Traduções de:
J o s e ' C a v a l c a n t e d e S o u z a ( O B anquete)
Jorge P a l e i k a t e J o ã o C r u z C o s t a (F édon, Sofista, P olítico)
CuLnfrat
m 1972
O Ba n q u ete .............................................................................................................................. 7
F edon ........................................................................................................................................ 61
S o f is t a .......................................................................................................... ...........................135
P o l ít ic o ..................................................................................................................................... 205
O BANQUETE
Texto, tradução e notas
Para a presente tradução servi-me dos textos deJ. Bumet, da Bibliotheça Oxo-
niensis (Oxford) e de L. Robin, da coleção “Les Belles Lettres". Como comecei
a trabalhar com o primeiro, serviu-me ele naturalmente de primeiro fundamento,
ao qual apliquei algumas lições do segundo, que é mais recente 1 e que oferece um
aparato crítico bem mais rico. O confronto dessas duas excelentes edições possi-
bilitou-me mesmd a apresentação de um terceiro texto, que representa uma tenta
tiva de aproveitamento do que elas têm de melhor, e que espero poderá ser um
dia aproveitado numa edição bilingüe. Na impossibilidade de o fazer agora, julgo
todavia que não será de todo fora de interesse, sobretudo para a apreciação da
tradução, prestar algum esclarecimento sobre a maneira como se preparam as
edições modernas dos textos gregos.
O estabelecimento de um texto grego antigo é um trabalho à primeira vista
altamente maçante, sem dúvida alguma árduo, mas qfinal capaz de suscitar pro
fundo interesse e mesmo empolgar o espírito de quem se disponha a abordá-lo.
Um editor moderno encontra-se em face de várias edições anteriores, de uma
profusão de manuscritos medievais, de alguns papiros e uma quantidade de cita
ções de autores antigos. Tudo isso perfaz a tradição do texto que ele se dispõe a
reapresentar. Numa extensão de dois mil e tantos anos, as vicissitudes da história
fizeram-na seccionar-se em etapas com desenvolvimento próprio, sob o qual se
dissimulam os sinais de sua continuidade. Assim, ele tem que levar em conta
uma tradição antiga, uma tradição medieval e mesmo, podemos acrescentar,
uma tradição moderna. Cada uma delas reclama um tratamento especial, a se
efetuar todavia sempre em correlação com as demais.
Os documentos que lhe vão servir de base são os da tradição medieval, os
manuscritos. A quantidade destes é considerável para uma boa parte dos autores
gregos, mas seu valor é naturalmente desigual. Impõe-se um trabalho de seleção
e classificação em que se procure o liame perdido da tradição antiga, e em que
portanto o testemunho dos papiros e das citações dos autores antigos podem
muitas vezes ser de grande préstimo. Além desse cotejo precioso com os restos
1 De 1929, enquanto que a de Burnet é de 1901. (N. d o T .)
PLATÃO
tradução nada tenha de excepcional, e que o seu autor, em muitos torneios defra
ses e em muita escolha de palavra, tenha sido vítima da falta de disciplina e de
tradição que está porventura alegando nesse setor da nossa atividade intelectual.
No entanto, em alguma passagem ele terá talvez acertado, e esse parco resultado
poderá dar uma idéia do que seria uma reação especial nossa a um texto heléni
co, que conhecemos geralmente através da sensibilidade e da elucubração do
francês, do inglês, do alemão, etc. Nossa língua tem necessariamente uma malea
bilidade especial, uma peculiar distribuição do vocabulário, uma maneira pró
pria de utilizar as imagens e de proceder às abstrações, e todos esses aspectos da
sua capacidade expressiva podem ser poderosamente estimulados pelo verda
deiro desafio que as qualidades de um texto grego muitas vezes representam para
uma tradução. A linguagem filosófica sobretudo, e em particular a linguagem de
Platão, oferece sob esse aspecto um vastíssimo campo para experiências dessa
natureza. Alguns exemplos do Banquete ilustram muito bem esse tipo especial de
dificuldades que o tradutor pode encontrar e para as quais ele acaba muitas vezes
recorrendo às notas explicativas. No entanto, se estas são inevitáveis numa tra
dução moderna, não é absolutamente inevitável que sejam as mesmas em todas
as línguas modernas. Fazer com que se manifestasse nesta tradução justamente a
diferença que acusa a reação própria e o caráter de nossa língua, eis o objetivo
sempre presente do tradutor.
Quanto às pequenas notas explicativas, dão elas naturalmente ’um rápido
esclarecimento sobre nomes e fatos da civilização helénica aparecidos no con
texto do Banquete, mas o que elas almejam sobretudo é ajudar à compreensão
desta obra platônica, ao mesmo tempo em seus trechos característicos e em seu
conjunto. Alguns anos de ensino de literatura grega levaram-me à curiosa cons
tatação da impaciência e desatenção com que uma inteligência moderna lê um
diálogo platônico. Quem quiser por si mesmo tirar a prova disso, procure a uma
primeira leitura resumir qualquer um desses diálogos, mesmo dos menores, e de
pois confira o seu resumo com uma segunda leitura. F oi a vontade de ajudar o
leitor moderno nesse ponto que inspirou a maioria das notas.
Finalmente devo assinalar que, não obstante a modéstia de conteúdo e de
proporções deste trabalho, eu não teria sido capaz de efetuá-lo sem a constante
orientação do Prof. Aubreton, cujas observações levaram-me a sucessivos reto
ques, particularmente na tradução e na confecção das notas. A ele, por conse
guinte, quero deixar expressos, com a minha admiração, os mais sinceros
agradecimentos.
J. C. de Souza
Apolodoro 1 e um Companheiro
bravos10, bravos vão livremente.” ce. Chegado à casa de Agatão, encon- <
Ora, Homero parece não só estragar tra a porta aberta e aí lhe ocorre, dizia
mas até desrespeitar este provérbio; ele, um incidente cômico. Pois logo
pois tendo feito de Agamenão um vem-lhe ao encontro, lá de dentro, um
homem excepcionalmente bravo na dos servos, que o leva onde se recli
guerra, e de Menelau um “mole lancei- navam 13 os outros, e assim ele os
ro”, no momento em que Agamenão encontra no momento de se servirem;
fazia um sacrifício e se banqueteava, logo que o viu, Agatão exclamou: —
c ele imaginou Menelau chegado sem Àristodemo! Em boa hora chegas para
convite, um mais fraco ao festim de um jantares conosco! Se vieste por algum
mais bravo11. outro motivo, deixa-o para depois, pois
Ao ouvir isso o outro disse: — É ontem eu te procurava para te convi
provável, todavia, ó Sócrates, que não dar e não fui capaz de te ver. M as. . .
como tu dizes, mas como Homero, eu e Sócrates, como é que não no-lo
esteja para ir como um vulgar ao fes trazes?
tim de um sábio, sem convite. Vê — Voltando-me então — prosse
então, se me levas, o que deves dizer guiu ele — em parte alguma vejo Só
d por mim, pois não concordarei em che crates a me seguir; disse-lhe eu então
gar sem convite, mas sim convidado que vinha com Sócrates, por ele convi
por ti. dado ao jantar.
— Pondo-nos os dois a caminho 12 — Muito bem fizeste — disse Aga
— disse Sócrates — decidiremos o tão; — mas onde está esse homem?
que dizer. Avante! — Há pouco ele vinha atrás de m «
Após se entreterem em tais conver mim; eu próprio pergunto espantado
sas, dizia Àristodemo, eles partem. Só onde estaria ele.
crates então, como que ocupando o seu — Não vais procurar Sócrates e
espírito consigo mesmo, caminhava trazê-lo aqui, menino1 4? — exclamou
atrasado, e como ò outro se detivesse Agatão. — E tu, Àristodemo, reclina-
para aguardá-lo, ele lhe pede que avan- te ao lado de Erixímaco.
Enquanto o servo lhe faz ablução
10 Ilíada, XVII, 587, “de bravos” (àyaõCiv) coin
cide com o nome do poeta Agatão < . para que se ponha à mesa, vem um
O provérbio homéricò fica estragado, primeira outro anunciar: — Esse Sócrates reti-
mente por se subentender de Agatão, e também
pelo fato de o próprio Sócrates se qualificar de rou-se em frente dos vizinhos e parou;
bravo, contra o hábito de sua irônica modéstia. por mais que eu o chame não quer
(N. d o T .)
n A “mais fraco” e “mais bravo” correspondem entrar.
no texto grego simplesmente os comparativos — É estranho o que dizes — excla
de “ruim” e “bom”. Tal relação deixa-nos ver
assim, sob a capa de uma crítica ao grande poe mou Agatão; — vai chamá-lo! E não
ta*, o aspecto fundamental do pensamento de mo largues!
Sócrates, i.e., sua constante referência à idéia do
bem. Outra indicação dramática, sem dúvida, Disse então Àristodemo: Mas não! »
que preludia a doutrina da atração universal do
bom e do belo. V. infra 205d-e. (N. do T.) 13 Em longos divãs, que geralmente comporta
12 Outra alteração de um verso homérico tam vam dois convivas, às vezes três. (N. do T.)
bém tornado proverbial ( Ilíada, X, 224), em 14 Agatão está falando a um servo, tal como
que npo õ Toii ( = um pelo ojitro) é substi muitas vezes um patrão entre nós fala com em
tuído por irpò òôóü ( = a caminho). (N. do T .) pregado. (N. do T.)
16 PLATÃO
Deixai-o! É um hábito seu esse1 5: às dos copos que pelo fio de lã escorre 1 7
vezes retira-se onde quer que se encon do mais cheio ao mais vazio. Se é
tre, e fica parado. Virá logo porém, assim também a sabedoria, muito
segundo creio. Não o incomodeis por aprecio reclinar-me ao teu lado, pois
tanto, mas deixai-o. creio que de ti serei cumulado com
— Pois bem, que assim se faça, se é uma vasta e bela sabedoria. A minha
teu parecer — tornou Agatão. — E seria um tanto ordinária, ou mesmo
vocês, meninos, atendam aos convivas. duvidosa como um sonho, enquanto
Vocês bem servem o que lhes apraz, que a tua é brilhante e muito desenvol
quando ninguém os vigia, o que jamais vida, ela que de tua mocidade tão
fiz; agora portanto, como se também intensamente brilhou, tornando-se an
eu fosse por vocês convidado ao jan teontem manifesta a mais de trinta mil
tar, como estes outros, sirvam-nos a gregos que a testemunharam.
fim de que os louvemos. — És um insolente, ó Sócrates —
— Depois disso — continuou Aris- disse Agatão. — Quanto a isso, logo
todemo — puseram-se a jantar, sem mais decidiremos eu e tu da nossa
que Sócrates entrasse. Agatão muitas sabedoria, tomando Dioniso por
vezes manda chamá-lo, mas o amigo juiz18; agora porém, primeiro apron
não o deixa. Enfim ele chega, sem ter ta-te para o jantar.
demorado muito como era seu costu — Depois disso — continuou Aris-
me, mas exatamente quando estavam
todemo — reclinou-se Sócrates e jan
no meio da refeição. Agatão, que se
tou como os outros; fizeram então
encontrava reclinado sozinho no últi
libações e, depois dos hinos ao deus e
mo leito1 6, exclama: — Aqui, Sócra
dos ritos de costume, voltam-se à bebi
tes! Reclina-te ao meu lado, a fim de
da. Pausânias então começa a falar
que ao teu contato desfrute eu da sábia
mais ou menos assim: — Bem, senho
idéiá que te ocorreu em frente de casa.
res, qual o modo mais cômodo de
Pois é evidente que a encontraste, e bebermos? Eu por mim digo-vos que
que a tens, pois não terias desistido
estou muito indisposto com a bebe
antes.
deira de ontem, e preciso tomar fôlego
Sócrates então senta-se e diz: — — e creio que também a maioria dos
Seria bom, Agatão, se de tal natureza
senhores, pois estáveis lá; vêde então
fosse a sabedoria que do mais cheio de que modo poderíamos beber o mais
escorresse ao mais vazio, quando um
comodamente possível.
ao outro nos tocássemos, como a água Aristófanes disse então: — É bom o
15 £ curiosa essa explicação de um hábito so que dizes, Pausânias, que de qualquer
crático a amigos de Sócrates, tanto mais que, modo arranjemos um meio de facilitar
um pouco abaixo (d 1-2), Agatão revela estar
familiarizado com ele. Isso denuncia a ficção
_platônica, e em particular a intenção de sugerir 17 Sem dúvida um processo de purificação da
desde já a. capacidade socrática para as longas água. Aristófanes ( Vespas, 701-702) refere-se
concentrações de espírito, como a que Alcibía- ao mesmo processo, mas com relação ao óleo.
des contará em seu discurso (220c-d). (N. do T.) (N. d o T .)
16 Os divãs do banquete se dispunham em for 18 Patrono dos concursos teatrais e deus do vi
ma de uma ferradura. No extremo esquerdo fi nho, Dioniso é apropriadamente mencionado
cava o anfitrião, que punha à sua direita o hós por Agatão como o árbitro natural da próxima
pede de honra. É o lugar que Agatão oferece a competição entre os convivas, no simpósio pro
Sócrates. (N. d o T .) priamente dito. (N. do T.)
O BANQUETE 17
a bebida, pois também eu sou dos que mas bebendo cada um a seu bel-pra
ontem nela se afogaram. zer2 1.
Ouvidos Erixímaco, o filho de Acú- — Como então — continuou Erixí
meno, e lhes disse: — Tendes razão! maco — é isso que se decide, beber
Mas de um de vós ainda preciso ouvir cada um quanto quiser, sem que nada
como se sente para resistir à bebida; seja forçado, o que sugiro então é que
não é, Agatão? mandemos embora a flautista que aca
— Absolutamente — disse este — bou de chegar, que ela vá flautear para
também eu não me sinto capaz. si mesma, se quiser, ou para as mulhe
— Uma bela ocasião seria para res lá dentro; quanto a nós, com dis
nós, ao que parece — continuou Erixí cursos devemos fazer nossa reunião
maco — para mim, para Aristodemo, hoje; e que discursos — eis o que, se
Fedro e os outros, se vós os mais capa vos apraz, desejo propor-vos.
zes de beber desistis agora; nós, com Todos então declaram que lhes m a
efeito, somos sempre incapazes; quan apraz e o convidam a fazer a proposi
to a Sócrates, eu o excetuo do que ção. Disse então Erixímaco: — O
digo, que é ele capaz de ambas as coi exórdio de meu discurso é como a
sas e se contentará com o que quer que Melanipa22 de Eurípides; pois não é
fizermos19. Ora, como nenhum dos minha, mas aqui de Fedro a história
presentes parece disposto a beber que vou dizer. Fedro, com efeito,
muito vinho, talvez, se a respeito do freqüentemente me diz irritado: —
que é a embriaguez eu dissesse o que Não é estranho, Erixímaco, que para
i ela é, seria menos desagradável. Pois outros deuses haja hinos e peãs, feitos
para mim eis uma evidência que me pelos poetas, enquanto que ao Amor
veio da prática da medicina: é esse um todavia, um deus tão venerável e tão
mal terrível para os homens, a embria grande, jamais um só dos poetas que »
guez; e nem eu próprio desejaria beber tanto se engrandeceram fez sequer um
muito nem a outro eu o aconselharia, encómio23? Se queres, observa tam
sobretudo a quem está com ressaca da bém os bons sofistas: a Hércules e a
véspera. outros eles compõem louvores em
— Na verdade — exclamou a se prosa, como o excelente Pródico2 4 —
guir Fedro de Mirrinote20 — eu costu
mo dar-te atenção, principalmente em 21 Geralmente o aipnooiápxn^ , i.e., o chefe
tudo que dizes de medicina; e agora, se do simpósio, eleito pelos convivas, determinava
o programa da bebida, fixando inclusive o grau
bem decidirem, também estes o farão. de mistura do vinho a ser obrigatoriamente
« Ouvindo isso, concordam todos em ingerido. V. infra 213e, 9-10. (N. doT .)
22 M elanipa, a Sábia, tragédia perdida de Eurí-
não passar a reunião embriagados, pedes, que também escreveu Melanipa, a Prisio
neira. Erixímaco refere-se ao verso ovh ô
19 A OLOfipaawi-i socrática, i.e., o domínio do&_ íiSâoç, e/jrJ<r urirpòt; nápa (frag. 487 Wag
apetites e sentidos do corpo, resiste tanto à fa n er): não é minha a história, mas de minha
diga e à dor como ao prazer (v. infra 220a 77 mãe. (N. d a T .)
'tal como Platão queria, que fossem os guardiães 23 Isto é, uma composição poética, consagrada
da sua cidade ideal. V. República III, 413d-e. exclusivamente ao louvor de um deus ou de um
(N. do T.) herói. Um elogio poético belíssimo, embora no
20 U m dos numerosos dem os (no tempo de espírito da tragédia, encontra-se no famoso 3?
Heródoto 100), i.e., distritos em que se subdi estásimo da A ntígona de Sófocles, 783-800.
vidia a população de Ática. (N. d o T .) (N .d o T .)
18 PLATÃO
Amor. E Parmênides diz da sua ori resse de se fazer uma cidade ou uma
gem ~ ’ expedição de amantes e de amados,
não haveria melhor maneira de a cons
tituírem senão afastando-se eles de
bem antes de todos os deuses pensou29 tudo que é feio e porfiando entre si no
em Amor. apreço à honra; e quando lutassem um m„
ao lado do outro, tais soldados vence
c E com Hesíodo também concorda riam, por poucos que fossem, por
Acusilau30. Assim, de muitos lados se assim dizer todos os homens31. Pois
reconhece que Amor é entre os deuses um homem que está amando, se deixou
o mais antigo. E sendo o mais antigo é seu posto ou largou suas armas, aceita
para nós a causa dos maiores bens. ria menos sem dúvida a idéia de ter
sido visto pelo amado do que por todos
Não sei eu, com efeito, dizer que haja
os outros, e a isso preferiria muitas
maior bem para quem entra na moci
vezes morrer. E quanto a abandonar o
dade do que um bom amante, e para
amado ou não socorrê-lo em perigo,
um amante, do que o seu bem-amado.
ninguém há tão ruim que o próprio
Aquilo que, com efeito, deve dirigir
Amor não o torne inspirado para a vir
toda a vida dos homens, dos que estão tude, a ponto de ficar ele semelhante
prontos a vivê-la nobremente, eis o que ao mais generoso de natureza; e sem
nem a estirpe pode incutir tão bem,
mais rodeios, o que disse Homero “do »
nem as honras, nem a riqueza, nem ardor que a alguns heróis inspira o
i. nada mais, como o amor. A que é deus”32, eis o que o Amor dá aos
então que me refiro? À vergonha do amantes, como um dom emanado de si
que é feio e ao apreço do que é belo. mesmo.
Não é com efeito possível, sem isso, E quanto a morrer por outro, só o
nem cidade nem indivíduo produzir consentem os que amam, não apenas
grandes e belas obras. Afirmo eu então os homens, mas também as mulheres.
qué todo homem que ama, se fosse des E a esse respeito a filha de Pélias,
coberto a fazer um ato vergonhoso, ou Alceste33, dá aos gregos uma prova
a sofrê-lo de outrem sem se defender 31 Se não é isso uma alusão ao batalhão sagra
por covardia, visto pelo pai não se do dos tebanos, que se notabilizou em Leutras
(371), uns dez anos depois da provável publi
envergonharia tanto, nem pelos amigos cação do Banquete, é pelo menos um indício de
e nem por ninguém mais, como se fosse que essa idéia já corria o mundo grego, origi
nária de cidades dóricas. (N. do T.)_
visto pelo bem-amado. E isso mesmo é 32 Homero, Ilíada, X, 182 r<5 &' e’dirvevoe
o que também no amado nós notamos, fiévo*; yXctuKCxniç 'A&rjvrj ~ inspirou-lhe ardor
(a Diomedes) Atena de olhos brilhantes; e XV,
que é sobretudo diante dos amantes 262: òx eínòv ê/jnveuoe /jéw iièya TtOL^évt
que ele se envergonha, quando sur Xaüiv assim tendo dito, inspirou um
grande ardor no pastor de povos. (N .d o T .)
preendido em algum ato vergonhoso. 33 Casada com Admeto, rei de Feres, na Tessá
Se por conseguinte ^lgum meio ocor- lia, Alceste aceita morrer em lugar do esposo,
quando os próprios pais deste se tinham recusa
29 Isto é, a deusa Justiça (Simpl. Fís. 39, 18 do ao sacrifício. Mas pouco depois de sua mor
Diels). (N .d o T .) te, Hércules, hospedado por Admeto e informa-
30 Natural de Argos (século V Ia .C .), Acusilau dò doòcorrido, desce ao Hades e traz Alceste
escreveu várias genealogias de deuses e homens. 3e volta. É o tema da bela tragédia de Eurípe-
(N .d o T .) des, que traz o nome da heroína. (N .d o T .)
20 PLATÃO
d não senda um só, é mais acertado pri res3 7 que os jovens, e depois o que
meiro dizer qual o que se deve elogiar. neles amam é mais o corpo que a alma,
Tentarei eu portanto corrigir este e ainda dos mais desprovidos de inteli
senão, e primeiro dizer qual o Amor gência, tendo em mira apenas o efetuar
que se deve elogiar, depois fazer um o ato, sem se preocupar se é decente
elogio digno do deus. Todos, com efei mente ou não; daí resulta então que
to, sabemos que sem Amor não há eles fazem o que lhes ocorre, tanto o
Afrodite. Se portanto uma só fosse que é bom como o seu contrário. Tra-
esta, um só seria o Amor; como porém j.a-se com efeito do amor proveniente
são duas, é forçoso que dois sejam da deusa que é mais jovem que a outra
também os Amores. E como não são e que em sua geração participa da
duas deusas? Uma, a mais velha sem femea e do macho. O outro porém é o
dúvida, não tem mãe e é filha de da Urânia, que primeiramente não par
ticipa da fêmea mas só do macho — e
Urano 3 6, e a ela é que chamamos de
é este o amor aos jovens3 8 — e depois
Urânia, a Celestial; a mais nova, filha
é a mais velha39, isenta de violência;
„ de Zeus e de Dione, chamamo-la de
daí então é que se voltam ao que é
Pandêmia, a Popular. É forçoso então
másculo os inspirados deste amor,
que também o Amor, coadjuvante de afeiçoando-se ao que é de natureza
uma, se chame corretamente Pandê- mais forte e que tem mais inteligência.
mio, o Popular, e o outro Urânio, o
E ainda, no próprio amor aos jovens
Celestial. Por conseguinte, é sem dúvi
poder-se-iam reconhecer os que estão d
da preciso louvar todos os deuses, mas movidos exclusivamente por esse tipo _
o dom que a um e a outro coube deve- de amor 4 0; não amam eles, com efeito,
se procurar dizer. Toda ação, com efei os meninos, mas os que já começam a
to, é assim que se apresenta: em si ter juízo, o que se dá quando lhes vêm
mesma, encjuanto simplesmente prati- chegando as barbas. Estão dispostos,
iíi » cada, nem e bela nem feia. Por exem penso eu, os que começam desse
plo, o que agora nós fazemos, beber, ponto, a amar para acompanhar toda a
cantar, conversar, nada disso em si é vida e viver em comum, e não a enga
belo, mas é na ação, na maneira como nar e, depois de tomar o jovem em sua
enfeito, que resulta tal; o que é bela e inocência e ludibriá-lo, partir à procu
corretamente feito fica belo, o que não ra de outro. Seria preciso haver uma lei
o é fica feio. Assim é que o amar e o proibindo que se amassem os meninos, e
Amor não é todo ele belo e digno de a fim de que não se perdesse na incer
ser louvado, mas apenas o que leva a teza tanto esforço; pois é na verdade
amar belamente. incerto o destino dos meninos, a que
Ora pois, o Amor de Afrodite Pan- ponto do vício ou da virtude eles che-
b dêmia é realmente popular e faz o que 37 Confrontar com 208 e, onde Sócrates encon
lhe ocorre; é a ele que os homens vul tra o grande sentido do amor normal à mulher,
gares amam. E amam tais pessoas, aqui especiosamente confundido como o tipo
inferior do amor. (N. d o T .)
primeiramente não menos as mulhe- 38 Muitos editores consideram esta fràse uma
glosa. (N. do T .)
36Hesíodo, Teogonia, 188-206. Urano foi mu 39 N a velhice .domina a razão. Daí é que os
tilado por seu filho Zeus, e o esperma do seu amantes desse amor procuram os que já come
membro viril, atirado ao mar, espumou sobre çam a ter juízo . . . (N. do T.)
as águas, donde se formou Afrodite. Em Ho 40 Confrontar com 210a-b. A progressão do
mero, no entanto, essa deusa é filha de Zeus, amor, segundo Diotima, exige que o amante
e de Dione ( Ilíada, V, 370). (N. d o T .) largue o amor violento de um só. (N. d o T .)
22 PLATÃO
gam em seu corpo e sua alma. Ora, se veita aos seus governantes que nasçam
os bons amantes a si mesmos se grandes idéias entre os governados,
impõem voluntariamente esta lei, de nem amizades e associações inabalá
via-se também a estes amantes popula veis, o que justamente, mais do que
res obrigá-los a lei semelhante, assim qualquer outra coisa, costuma o amor
como, com as mulheres de condição inspirar. Por experiência aprenderam
livre41, obrigamo-las na medida do isto os tiranos 4 4 desta cidade; pois foi
possível a não manter relações amoro- 0 amor de Aristogitão e a amizade de
is2«. sas. São estes, com efeito, os que justa Harmódio que, afirmando-se, destruí
mente criaram o descrédito, a ponto de ram-lhes o poder. Assim, onde se esta
alguns ousarem dizer que é vergonhoso beleceu que é feio o aquiescer aos </
o aquiescer aos amantes; e assim o amantes, é por defeito dos que o esta
dizem porque são estes os que eles beleceram que assim fica, graças à
consideram, vendo o seu despropósito ambição dos governantes e à covardia
e desregramento, pois não é sem dúvi dos governados; e onde simplesmente
da quando feito com moderação e se determinou que é belo, foi em conse
norma que um ato, seja qual for, incor qüência da inércia dos que assim
reria em justa censura. estabeleceram. Aqui porém, muito
Aliás, a lei do amor nas demais mais bela que estas é a norma que se
cidades é fácil de entender, pois é sim instituiu e, como eu disse, não é fácil
ples a sua determinação; aqui 42 porém de entender. A quem, com efeito, tenha
b ela é complexa. Em Élida, com efeito, considerado 4 5 que se diz ser mais belo
na Lacedemônia, na Beócia, e onde amar claramente que às ocultas, e
não se saiba falar, simplesmente se sobretudo os mais nobres e os melho-
estabeleceu que é belo aquiescer aos ^res, embora mais feios que outros; que
amantes, e ninguém, jovem ou velho, por outro lado o encorajamento dado
diria que é feio, a fim de não terem difi por todos aos amantes é extraordinário
culdades, creio eu, em tentativas de e não como se estivesse a fazer algum
persuadir os jovens com a palavra, ato feio, e se fez ele uma conquista pa
incapazes que são de falar; na Jônia, rece belo o seu ato, se não, parece feio; «
porém, e em muitas outras partes é e ainda, que em sua tentativa de con
tido como feio, por quantos habitam quista deu a lei ao amante a possibili
sob a influência dos bárbaros. Entre os dade de ser louvado na prática de atos
1
c bárbaros, com efeito, por causa das 44 Hípias e Hiparco, filhos de Pisístrato. Numa
tiranias, é uma coisa feia esse amor, primeira conspiração em 514, ao que parece
por -motivos pessoais, Hiparco foi assassinado,
justamente como o da sabedoria e da enquanto Armódio morria na luta e seu com
ginástica43; é que, imagino, não apro- panheiro Aristogitão era condenado à morte.
Quatro anos depois Hípias perdia o poder, víti
41 Isto é, não escravas. (N. d o T .) m a de um a nova conspiração (V. Tucídides, VI,
42 Os manuscritos trazem a expressão “e na 54). (N. d o T .)
Lacedemônia” depois de “aqui”, o que não con 45 Essa subordinada, iniciando um longo perío
corda com a notória tendência dos lacedemô- do, não tem seqüência lógica com a sua princi
nios ao homossexualismo. (N. d o T .) pal, formulada em 183c (Poder-se-ia pensar
43 Observar a expressão grega correspondente que . . . ) . Mesmo à custa da clareza, preferimos
( ifiKoacxfía Kai V •jx.Xo-yuiivaoía ) e lembrar conservar a mesma articulação ampla e irregu
que os ginásios eram dos locais prediletos de lar, a fim de permitir uma melhor apreciação
SScrates (cf7 a irifrod. do" Cármides, Lísís, Lã~- do estilo do discurso, geralmente apontado
ques, e‘íc.). (N. doT .) como uma paródia de Isócrates. (N. do T.)
O BANQUETE 23
sional. Pois de novo revém a mesma cujo conhecimento nas translações dos
idéia, que aos homens moderados, e astros e nas estações do ano chama-se
para que mais moderados se tomem os astronomia. E ainda mais, não só
que ainda não sejam, deve-se aquiescer todos os sacrifícios, como também os
e conservar o seu amor, que é o belo, o casos a que preside a arte divinatória
celestial, o Amor da musa Urânia; o — e estes são os que constituem o
outro, o de Polímnia61, é o popular, comércio recíproco dos deuses e dos
que com precaução se deve trazer homens — sobre nada mais versam
àqueles a quem se traz, a fim de que se senão sobre a conservação e a cura 62
colha o seu prazer sem que nenhuma do Amor. Toda impiedade, com efeito,
intemperança ele suscite, tal como em costuma advir, se ao Amor moderado
nossa arte é uma importante tarefa o não se aquiesce nem se lhe tributa
servir-se convenientemente dos apetites honra e respeito em toda ação, e sim
da arte culinária, de modo a que sem ao outro, tanto no tocante aos pais,
doença se colha o seu prazer. Tanto na vivos e mortos, quanto aos deuses; e
música então, como na medicina e em foi nisso que se assinou à arte divina
todas as outras artes, humanas e divi tória o exame dos amores e sua cura, e
nas, na medida do possível, devesse assim é que por sua vez é a arte divina
conservar um e outro amor; ambos tória produtora 63 de amizade entre
com efeito nelas se encontram. De deuses e homens, graças ao conheci
fato, até a constituição das estações do mento de todas as manifestações de
ano está repleta desses dois amores, e amor que, entre os homens, se orien
quando se tomam de um moderado tam para a justiça divina e a piedade.
amor um pelo outro os contrários de Assim, múltiplo e grande, ou me
que há pouco eu falava, o quente e o lhor, universal é o poder que em geral
frio, o seco e o úmido, e adquirem uma tem todo o Amor, mas aquele que em
harmonia e uma mistura razoável, che tomo do que é bom se consuma com
gam trazendo bonança e saúde aos sabedoria e justiça, entre nós como
homens, aos outros animais e às plan entre os deuses, é o que tem o máximo
tas, e nenhuma ofensa fazem; quando
poder e toda felicidade nos prepara,
porém é o Amor casado com a violên pondo-nos em condições de não só
cia que se toma mais forte nas estações entre nós mantermos convívio e amiza
do ano, muitos estragos ele faz, e ofen
de, como também com os que são mais
sas. Tanto as pestes, com efeito, costu poderosos que nós, os deuses. Em
mam resultar de tais causas, como conclusão, talvez também eu, lou
também muitas e várias doenças nos vando o Amor, muita coisa estou dei
animais como nas plantas; geadas,
xando de lado, não todavia por minha
granizo s e alforras resultam, com efei
vontade. Mas se algo omiti, é tua tare
to, do excesso e da intemperança
fa, ó Aristófanes, completar; ou se um
mútua de tais manifestações do amor,
outro modo tens em mente de elogiar o
61 Padroeira da poesia lírica. Ao contrário de
Pausânias, Erixímaco associou o amor às Mu deus, elogia-o, uma vez que o teu solu
sas e não a Afrodite, o que está de acordo com ço já o fizeste cessar.”
o caráter que seu discurso lhe empresta: o de
uma força de aglutinação universal, suscetível 62 a assimilação das outras artes à medicina
de ser tratada pela afte. Em lugar de Afrodite tornou-se tão completa que o Amor é conside
Pandêmia, ele imaginou a Musa da poesia líri rado como uma afecção como as outras doen
ca, a poesia dos sentimentos pessoais e das pai ças. (N. d o T .)
xões. (N. do T.) ®3~V. supra p. 26, nota 59.
28 PLATÃO
is9 c Tendo então tomado a palavra, con sacrifícios lhe fariam, não como agora
tinuou Aristodemo, disse Aristófanes: que nada disso há em sua honra, quan
— Bem que cessou! Não todavia, é do mais que tudo deve haver. É ele </
verdade, antes de lhe ter eu aplicado o com efeito o deus mais amigo do
espirro, a ponto de me admirar que a homem, protetor e médico desses
boa ordem do corpo requeira tais ruí males, de cuja cura dependeria sem dú
dos e comichões como é o espirro; pois vida a maior felicidade para o gênero
logo o soluço parou, quando lhe apli humano. Tintarei eu portanto iniciar-
quei o espirro. vos 6 5 em seu poder, e vós o ensinareis
E Erixímaco lhe disse: — Meu bom aos outros. Mas é preciso primeiro
b Aristófanes, vê o que fazes. Estás a aprenderdes a natureza humana e as
fazer graça, quando vais falar, e me suas vicissitudes. Com efeito, nossa
forças a vigiar o teu discurso, se por natureza outrora não era a mesma que
ventura vais dizer algo risível, quando a de agora, mas diferente. Em primeiro
te é permitido falar em paz. lugar, três eram os gêneros da humani
Aristófanes riu e retomou: — Tens dade, não dois como agora, o mascu
razão, Erixímaco! Fique-me o dito lino e o feminino, mas também havia a *
pelo não dito. Mas não me vigies, que mais um terceiro, comum a estes dois,
eu receio, a respeito do que vai ser do qual resta agora um nome, desapa
dito, que seja não engraçado o que vou recida a coisa; andrógino era então um
dizer — pois isso seria proveitoso e gênero distinto, tanto na forma como
próprio da nossa musa — mas ridícu-, no nome comum aos dois, ao mascu
l o 64.
— Pois sim! — disse o outro lino — e ao feminino, enquanto agora
nada mais é que um nome posto em
lançada a tua seta, Aristófanes, pensas
em fugir; mas toma cuidado e fala desonra. Depois, inteiriça 66 era a
c como se fosses prestar contas. Talvez forma de cada homem, com o dorso
todavia, se bem me parecer, eu te redondo, os flancos em círculo; quatro
largarei. mãos ele tinha, e as pernas o mesmo
“Na verdade, Erixímaco, disse Aris tanto das mãos, dois rostos sobre um ma
tófanes, é de outro modo que tenho a pescoço torneado, semelhantes em
intenção de falar, diferente do teu e do tudo; mas a cabeça sobre os dois ros
de Pausânias. Com efeito, parece-me tos opostos um ao outro era uma só, e
os homens absolutamente não terem quatro orelhas, dois sexos, e tudo o
percebido o poder do amor, que se o mais como desses exemplos se poderia
percebessem, os maiores templos e supor. E quanto ao seu andar, era tam
altares lhe preparariam, e os maiores bém ereto como agora, em qualquer
das duas direções que quisesse; mas
M De fato seu discurso é engraçadíssimo. A pre
caução de Aristófanes faz lembrar o tom e a quando se lançavam a uma rápida cor-
função de uma parábase, na comédia antiga,
onde o poeta, pela voz do coro, explica-se a 85 A palavra é própria da linguagem dos Misté
respeito de sua peça. V. Os Cavaleiros, 515- rios. Aristófanes não vai explicar as virtudes do
516, e 541-545, onde se sente a mesma nota de Amor, como os dois oradores precedentes, mas
prudência que aqui. Além desse traço de veros tentará o acesso direto à sua natureza, como
similhança dramática, Platão estaria insinuan-, numa iniciação. (N .d o T .)
do uma alusão à insuficlêncfá da artede-A ris» 86 Cf. Empédocles, fr. 62, vs. 4 (Diels).oú\<vuer<:
tôfãnes. que-oão. tem domínio r1? sm g pr/T r;rui (ièv npCira T Í m o i xSovcx; é£avireWov : primeiro,
recursos, dependente que é de u«Ja-ÍnSEka£.ão^ tipos inteiriços surgiram da terra. (N. do
(N .d o T .) T.)
O BANQUETE 29
compaixão, Zeus consegue outro expe uma mulher não dirigem muito sua
diente, e lhes muda o sexo para a frente atenção aos homens, mas antes estão
— pois até então eles o tinham paravoltadas para as mulheres e as amigui-
c fora, e geravam e reproduziam não um nhas provêm deste tipo. E todos os que
no outro, mas na terra69, como as são corte de um macho perseguem o
cigarras; pondo assim o sexo na frente macho, e enquanto são crianças, como
deles fez com que através dele se cortículos do macho, gostam dos ho
processasse a geração um no outro, o mens e se comprazem em deitar-se ma
macho na fêmea, pelo seguinte, para com os homens e a eles se enlaçar, e
que no enlace, se fosse um homem a são estes os melhores meninos e
encontrar uma mulher, que ao mesmo adolescentes, os de natural mais cora
tempo gerassem e se fosse constituindo joso. Dizem alguns, é verdade, que eles
a raça, mas se fosse um homem com são despudorados, mas estão mentin
um homem, que pelo menos houvesse do; pois não é por despudor que fazem
saciedade em seu convívio e pudessem isso, mas por audácia, coragem e
repousar, voltar ao trabalho e ocupar- masculinidade, porque acolhem o que
á se do resto da vida. É então de há tanto lhes é semelhante. Uma prova disso é
tempo que o amor de um pelo outro que, uma vez amadurecidos, são os
está implantado nos homens, restau únicos que chegam a ser homens para
rador da nossa antiga natureza, em sua a política71, os que são desse tipo. E
tentativa de fazer um só de dois e de quandcrsnom am homens, são os jo- *
curar a natureza humana. Cada um de vens que eles amam, e a casamentos e
nós portanto é uma téssera comple procriação naturalmente eles não lhes
mentar 70 de um homem, porque corta
dão atenção, embora por lei a isso
do como os linguados, de um só em
sejam forçados, mas se contentam em
dois; e procura então cada um o seu
próprio complemento. Por conse passar a vida um com o outro, soltei
ros. Assim é que, em geral, tal tipo tor
guinte, todos os homens que são um
na-se amante e amigo do amante, por
corte do tipo comum, o que então se
que está sempre acolhendo o que lhe é
chamava andrógino, gostam de mulhe
res, e a maioria dos adultérios provém aparentado. Quando então se encontra
com aquele mesmo que é a sua própria
í deste tipo, assim como também todas
metade, tanto o amante do jovem
as mulheres que gostam de homens e
são adúlteras, é deste tipo que provêm. como qualquer outro, então extraordi- c
Todas as mulheres que são o corte de nárias são as emoções que sentem, de
amizade, intimidade e amor, a ponto
69No mito do Político (271a), Platão refere-se de não quererem por assim dizer sepa
a essa geração da terra, e Aristófanes nas Nu
vens (vs. 853) alude sem dúvida a essa idéia. rar-se um do outro nem por um peque
(N. do T .) no momento. E os que continuam um
70 No grego omflókov (de au^páXKetv , juntar,
fazer conjunto). Era um cubo ou um osso que com o outro pela vida afora são estes,
se repartia entre dois hóspedes, como sinal de
um compromisso. Transmitindo-se aos descen 71 A sátira mordaz aos homossexuais comple
dentes de ambos, podiam estes conferir os seus ta-se habilmente com a sua identificação com
“símbolos” e ter assim a prova de antigos lia- os políticos. Comparar essa passagem com 184
-nes de hospitalidade. (N. do T.) a-7. (N. d o T .)
O BANQUETE 31
os quais nem saberiam dizer o que que tanto ao desejo e procura do todo que
rem que lhes venha da parte de um ao se dá o nome de âmor. Anteriormente,
outro. A ninguém com efeito pareceria como estou dizendo, nós éramos um
que se trata de união sexual72, e que é só, e agora é que, por causa da nossa m»
porventura em vista disso que um injustiça, fomos separados pelo deus, e
gosta da companhia do outro assim como o foram os árcades pelos lacede-
com tanto interesse; ao contrário, que mônios 7 4; é de temer então, se não for
i uma coisa quer a alma de cada um, é mos moderados para com os deuses,
evidente, a qual coisa ela não pode que de novo sejamos fendidos em dois,
dizer, mas adivinha o que quer e o in e perambulemos tais quais os que nas
dica por enigmas. Se diante deles, dei esteias estão talhados de perfil, serra
tados no mesmo leito, surgisse Hefes- dos na linha do nariz, como os ossos
to 73 e com seus instrumentos lhes que se fendem 7 5. Pois bem, em vista
perguntasse: Que é que quereis, ó dessas eventualidades todo homem
homens, ter um do outro?, e se, diante deve a todos exortar à piedade para
do seu embaraço, de novo lhes pergun com os deuses, a fim de que evitemos
tasse: Porventura é isso que desejais, uma e alcancemos a outra, na medida *
ficardes no mesmo lugar o mais possí em que o Amor nos dirige e comanda.
vel um para o outro, de modo que nem Que ninguém em sua ação se lhe opo
de nojte nem de dia vos separeis um do nha — e se opõe todo aquele |que aos
«. outro? Pois se é isso que desejais, deuses se toma odioso — pois amigos
quero fundir-vos e forjar-vos numa do deus e com ele reconciliados desco
mesma pessoa, de modo que de dois briremos e conseguiremos o nosso pró
vos tomeis um só e, enquanto viverdes, prio amado, o que agora poucos
como uma só pessoa, possais viver fazem. E que não me suspeite Erixí-
ambos em comum, e depois que mor maco, fazendo comédia de meu discur
rerdes, lá no Hades, em vez de dois ser so, que é a Pausânias e Agatão que me
um só, mortos os dois numa morte estou referindo — talvez também estes c
comum; mas vede se é isso o vosso se encontrem no número desses e são
amor, e se vos contentais se conse ambos de natureza máscula — mas eu
guirdes isso. Depois de ouvir essas no entanto estou dizendo a respeito de
palavras, sabemos que nem um só diria todos, homens e mulheres, que é assim
que não, ou demonstraria querer outra que nossa raça se tomaria feliz, se ple
coisa, mas simplesmente pensaria ter namente realizássemos o amor, e o seu
ouvido o que há muito estava desejan próprio amado cada um encontrasse,
do, sim, unir-se e confundir-se com o tomado à sua primitiva natureza. E se
amado e de dois ficarem um só. O mo isso é o melhor, é forçoso que dos
tivo disso é que nossa antiga natureza
era assim e nós éramos um todo; e por- 74 Em 385 os lacedemônios destruíram a cida
de de Mantinéia, na Arcádia, e dispersaram
72 Observar a facilidade com que o discurso seus habitantes por várias povoações (Xenofon-
muda de tom, atingindo aqui um lirismo saudá te, V, 2, 1). É o que os gregos chamavam de
vel que permite a eclosão de uma idéia impor &ioLKíun<k , o contrário de uma colonização,
tante nessa sucessão dialética dos discursos: a isto é, um owoiKianác .Notar que o diálogo se
de que o sentimento amoroso não é exclusiva passa em 416 (v. supra p. 14 nota 7). O ana
mente sexual. (N. d o T .) cronismo é gritante. (N. d o T .)
73 O deus do fogo e da metalurgia, o Vulcano 75 Justamente um dos tipos ( Xioimi ) dos “sím
dos latinos. (N. do T.) bolos”, referidos acima, p .30, n .70. (N. do T.)
32 PLATÃO
casos atuais o que mais se lhe avizinha que eu me alvoroce com a idéia de que
é o melhor, e é este o conseguir um o público está em grande expectativa
bem-amado de natureza conforme ao de que eu vá falar bem.
i seu gosto; e se disso fôssemos glorifi — Desmemoriado eu seria, Agatão
car o deus responsável, merecidamente — tomou-lhe Sócrates — se depois de t
glorificaríamos o Amor, que agora nos ver tua coragem e sobranceria, quando
é de máxima utilidade, levando-nos ao subias ao estrado com os atores e
que nos é familiar, e que para o futuro encaraste de frente uma tão numerosa
nos dá as maiores esperanças, se for platéia, no momento em que ias apre
mos piedosos para com os deuses, de sentar uma peça tua, sem de modo
restabelecer-nos em nossa primitiva algum te teres abalado, fosse eu agora
natureza e, depois de nos curar, fazer- imaginar que tu te alvoroçarias por
nos bem-aventurados e felizes. causa de nós, tão poucos.
Eis, Erixímaco, disse ele, o meu dis — O quê, Sócrates! — exclamou
curso sobre o Amor, diferente do teu. Agatão; — não me julgas sem dúvida
Conforme eu te pedi, não faças comé tão cheio de teatro que ignore que, a
dia dele, a fim de que possamos ouvir quem tem juízo, poucos sensatos são
« também os restantes, que dirá cada um mais temíveis que uma multidão insen
deles, ou antes cada um dos dois; pois sata!
restam Agatão e Sócrates.” — Realmente eu não faria bem,
— Bem, eu te obedecerei — tor Agatão — tomou-lhe Sócrates — se a
nou-lhe Erixímaco; — e com efeito teu teu respeito pensasse eu em alguma
discurso foi para mim de um agradável deselegância; ao contrário, bem sei
teor. E se por mim mesmo eu não sou que, se te encontrasses com pessoas
besse que Sócrates e Agatão são terrí que considerasses sábias, mais te preo
veis nas questões do amor, muito teme cuparias com elas do que com a multi
ria que sentissem falta de argumentos, dão. No entanto, é de temer que estas
pelo muito e variado que se disse; de não sejamos nós — pois nós estáva
fato porém eu confio neles. mos lá e éramos da multidão — mas
Sócrates então disse: — É que foi se fosse com outros que te encontras
bela, ó Erixímaco 7 6, tua competição ! ses, com sábios, sem dúvida tu te
Se porém ficasses na situação em que envergonharias deles, se pensasses
agora estou, ou melhor, em que estarei, estar talvez cometendo algum ato que
depois que Agatão tiver falado, bem fosse vergonhoso; senão, que dizes?
grande seria o teu temor, e em tudo por — É verdade o que dizes — res
tudo estarias como eu agora.
pondeu-lhe.
— Enfeitiçar é o que me queres, ó
— E da multidão não te envergo
Sócrates, disse-lhe Agatão, a fim de
nharias, se pensasses estar fazendo
76 A observação de Sócrates é fina. Comentan algo vergonhoso 7 7 ?
do o discurso de Aristófanes, Erixímaco expres
sava seu receio de que os dois últimos concor 77 Esse breve diálogo, aqui interrompido, tem
rentes tivessem dificuldades “pelo muito e va um duplo efeito dramático: serve de intervalo
riado que se disse’-’ (Isto é, não apenas Aristó entre os discursos de dois poetas, tão diferentes
fanes). Sócrates o ajuda então nesse pequeno de método e de espírito, e constitui como um
detalhe e insiste na sua contribuição. Ao mes prelúdio ao discurso especial de Sócrates, que
mo tempo ele tem uma ótima deixa para diri- vai começar, ao contrário dos outros, por um
gir-se à competência de Agatão. (N. do T .) diálogo. (N. d o T .)
O BANQUETE 33
E eis que Fedro, disse Aristodemo, Amor, se é lícito dizê-lo sem incorrer
interrompeu e exclamou: — Meu caro em vingança80, o mais feliz, porque é
Agatão, se responderes a Sócrates, o mais belo deles e o melhor. Ora, ele é
nada mais lhe importará do programa, o mais belo por ser tal como se segue.
como quer que ande e o que quer que Primeiramente, é o mais jovem dos
resulte, contanto que ele tenha com deuses, ó Fedro. E uma grande prova
quem dialogue, sobretudo se é com um do que digo ele próprio fornece, quan
belo. Eu por mim é sem dúvida com do em fuga foge da velhice, que é rápi
prazer que ouço Sócrates a conversar, da evidentemente, e que em todo caso,
mas é-me forçoso cuidar do elogio ao mais rápida do que devia, para nós se
Amor e recolher de cada um de vós o encaminha. De sua natureza Amor a
seu discurso; pague 78 então cada um o odeia e nem de longe se lhe aproxima.
que deve ao deus e assim já pode Com os jovens ele está sempre em seu
conversar. convívio e ao seu lado; está certo, com
— Muito bem, Fedro! — excla efeito, o antigo ditado, que o seme
mou Agatão — nada me impede de lhante sempre do semelhante se aproxi
falar, pois com Sócrates depois eu ma. Ora, eu, embora com Fedro con
poderei ainda conversar muitas vezes. corde em muitos outros pontos, nisso
“Eu então quero primeiro dizer não concordo, em que Amor seja mais
como devo falar, e depois falar. Pare- antigo que Crono e Jápeto, mas ao
ce-me com efeito que todos os que contrário afirmo ser ele o mais novo
antes falaram, não era o deus que elo dos deuses e sempre jovem, e que as
giavam, mas os homens que felici questões entre os deuses, de que falam
tavam pelos bens de que o deus lhes é Hesíodo81 e Parmênides, foi por Ne
causador; qual porém é a sua natureza, cessidade82 e não por Amor que ocor
em virtude da qual ele fez tais dons, reram, se é verdade o que aqueles
ninguém o disse. Ora, a única maneira diziam; não haveria, com efeito, muti
correta de qualquer elogio a qualquer lações nem prisões de uns pelos outros,
um é, no discurso, explicar em virtude e muitas outras violências, se Amor
de que natureza vem a ser causa de tais estivesse entre eles, mas amizade e paz,
efeitos aquele de quem se estiver falan como agora, desde que Amor entre os
d o 79. Assim então com o Amor, é deuses reina. Por conseguinte, jovem
justo que também nós primeiro o lou ele é, mas além de jovem ele é delica
vemos em sua natureza, tal qual ele é, e do; falta-lhe porém um poeta como era
depois os seus dons. Digo eu então que Homero para mostrar sua delicadeza
de todos os deuses, que são felizes, é o de deus. Homero afirma, com efeito,
78 Como um bom “simposiarca”, Fedro zela 80 Cf. 180e-3. As palavras e os atos humanos
pelo bom andamento do programa estabelecido. podem suscitar a justiça vingativa (nemesis) dos
V. supra p. 1 7 , n . 21. (N. d o T .) deuses. (N. do T.)
79 Sócrates louvará mais adiante a excelência 81 Cf. Teogonia, passim. (N .d o T .)
desse princípio, que representa uma etapa deci 82 É talvez idéia de Parmênides. O que este
siva na progressão dos discursos. Com efeito, escreveu sobre os deuses devia estar na parte
embora não vá acertar na definição da natu do seu poema referente às “opiniões” dos mor
reza do Amor, Agatão traz à baila o problema, tais. Segundo Aécio II, 7, 1 (Diels 28, A, 37),
possibilitando assim a refutação socrática (189 ele punha Justiça e Necessidade no meio de vá-
d-204c) e a definição platônica (201c-204a). ias esferas concêntricas, como causa de movi-
(N. do T.) íento e geração. ( N. d o T. )
34 PLATÃO
que Ate é uma deusa, e delicada — parte a parte há guerra. Quanto à bele
que os seus pés em todo caso são deli za da siia tez, o seu viver entre flores
cados — quando diz: bem o atesta; pois no que não floresce,
seus pés são delicados; pois não como no que já floresceu, corpo, alma t
[sobre o solo ou o que quer que seja, não se assenta
se move, mas sobre as cabeças dos o Amor, mas onde houver lugar bem
[homens ela anda83. florido e bem perfumado, aí ele se
Assim, bela me parece a prova com assenta e fica.
que Homero revela a delicadeza da Sobre a beleza do deus já é isso bas
deusa: não anda ela sobre o que é tante, e no entanto ainda muita coisa
í duro, mas sobre o que é mole. Pois a resta; sobre a virtude de Amor devo
mesma prova também nós utilizaremos depois disso falar, principalmente que
a respeito do Amor, de que ele é delica Amor não comete nem sofre injustiça,
do. Não é com efeito sobre a terra que nem de um deus ou contra um deus,
ele anda, nem sobre cabeças, que não nem de um homem ou contra um
são lá tão moles, mas no que há de homem 8 s. À força, com efeito, nem ele
mais brando entre os seres é onde ele cede, se algo cede — pois violência c
anda e reside. Nos costumes, nas não toca em Amor — nem, quando
almas de deuses e de homens ele fez age, age, pois todo homem de bom
sua morada, e ainda, não indistinta grado serve em tudo ao Amor, e o que
mente em todas as almas, mas da que de bom grado reconhece uma parte a
encontre com um costume rude ele se outra, dizem “ as leis, rainhas da cida
afasta, e na que o tenha delicado ele de” 8 6, é justo. Além da justiça, da má
habita. Estando assim sempre em con xima temperança ele compartilha. É
tato, nos pés como em tudo, com os com efeito a temperança, reconhecida
que, entre os seres mais brandos, são mente, o domínio sobre prazeres e
os mais brandos, necessariamente é ele desejos; ora, o Amor, nenhum prazer
196„ o que há de mais delicado. É então o lhe é predominante; e se inferiores, se
mais jovem, o mais delicado, e além riam dominados por Amor, e ele os
dessas qualidades, sua constituição é dominaria, e dominando prazeres e
úmida. Pois não seria ele capaz de se desejos seria o Amor. excepcional
amoldar de todo jeito, nem de por toda mente temperante. E também quanto à
alma primeiramente entrar, desperce coragem, ao Amor “nem Ares se lhe
bido, e depois sair, se fosse ele seco8 4. opõe” 8 1. Com efeito, a Amor não pega *
De sua constituição acomodada e Ares, mas Amor a Ares — o de Afro
úmida é uma grande prova sua bela dite, segundo a lenda — e é mais forte
compleição, o que excepcionalmente o que pega do que é pegado: domi
todos reconhecem ter o Amor; é que nando assim o mais corajoso de todos,
entre deformidade e amor sempre de
85 Como a seguinte, essa frase, com seus para-
83 ilíada, XIX, 92. Ate é a personificação da lelismos exagerados, é típica do maneirismo do
fatalidade. (N. do T .) estilo retórico de Agatão. (N. d o T .)
84 Sendo úmido, mole, Amor cede à pressão, 86 Expressão do retórico Alcidamas, aluno de
adapta-se, modela-se; ao contrário, sendo seco, Górgias, citado por Aristóteles, Ret., 1406a.
não se adapta e não adquire forma convenien (N. d o T .)
te. O argumento é de uma fantasia extrava 87 Frag. de um Tiestes de Sófocles: IIpòc rhv
gante, de acordo com o caráter requintado de ' kvà-ynr\v oúó' "Aptjç àvíorarat (fr. 235 Nau-
Agatão. (N. d o T .) ck2), (N. d o T .)
O BANQUETE 35
seguinte: Será que o Amor, aquilo de za, saúde e fortaleza, o que queres é
que é amor, ele o deseja ou não? também no futuro possuir esses bens,
— Perfeitamente — respondeu o pois no momento, quer queiras quer
outro. não, tu os tens; observa então se, quan
— E é quando tem isso mesmo que do dizes “desejo o que tenho comigo”,
deseja e ama que ele então deseja e queres dizer outra coisa senão isso:
ama, ou quando não tem? “quero que o que tenho agora comigo,
— Quando não tem, como é bem também no futuro eu o tenha.” Deixa
provável — disse Agatão. ria ele de admitir?
— Observa bem, continuou Sócra Agatão, dizia Aristodemo, estava de
tes, se em vez de uma probabilidade acordo.
não é uma necessidade que seja assim, Disse então Sócrates: — Não é isso
o que deseja deseja aquilo de que é então amar o que ainda não está à mão
carente, sem o que não deseja, se não nem se tem, o querer que, para o futu
for carente. É espantoso como me ro, seja isso que se tem conservado
parece, Agatão, ser uma necessidade; e consigo e presente?
a ti? — Perfeitamente — disse Agatão.
— Também a mim — disse ele. — Esse então, como qualquer
— Tens razão. Pois porventura de outro que deseja, deseja o que não está
sejaria quem já é grande ser grande, ou à mão nem consigo, o que não tem, o
quem já é forte ser forte? que não é ele próprio e o de que é
— Impossível, pelo que foi admiti carente; tais são mais ou menos as coi
do. sas de que há desejo e amor, não é?
— Com efeito, não seria carente — Perfeitamente — disse Agatão.
disso o que justamente é isso. — Vamos então, continuou Sócra
— É verdade o que dizes. tes, recapitulemos o que foi dito. Não é
— Se, com efeito, mesmo o forte certo que é o Amor, primeiro de certas
quisesse ser forte, continuou Sócrates, coisas, e depois, daquelas de que ele
e o rápido ser rápido, e o sadio ser tem precisão?
sadio — pois talvez alguém pensasse — Sim — disse o outro.
que nesses e em todos os casos seme — Depois disso então; lembra-te de
lhantes os que são tais e têm essas qua que é que em teu discurso disseste ser o
lidades desejam o que justamente têm, Amor; se preferes, eu te lembrarei.
e é para não nos enganarmos que estou Creio, com efeito, què foi mais ou
dizendo isso — ora, para estes, Aga menos assim que disseste, que aos deu
tão, se atinas bem, é forçoso que te ses foram arranjadas suas questões
nham no momento tudo aquilo que através do amor do que é belo, pois do
têm, quer queiram, quer não, e isso que é feio não havia amor102. Não era
mesmo, sim, quem é que poderia dese- mais ou menos assim que dizias?
já-lo? Mas quando alguém diz: “Eu, — Sim, com efeito — disse Aga
mesmo sadio, desejo ser sadio, e tão.
mesmo rico, ser rico, e desejo isso — E acertadamente o dizes, amigo,
mesmo que tenho”, poderíamos dizer- declarou Sócrates; e se é assim, não é
lhe: “ó homem, tu que possuis rique 102 V. supra p. 35, n. 92. (N. d o T .)
O BANQUETE 39
certo que o Amor seria da beleza, mas discurso que sobre o Amor eu ouvi um
não da feiúra? Concordou. dia, de uma mulher de Mantinéia, Dio-
— Não está então admitido que tima, que nesse assunto era entendida e
aquilo de que é carente e que não tem é em muitos outros — foi ela que uma
o que ele ama? vez, porque os atenienses ofereceram
— Sim — disse ele. sacrifícios para conjurar a peste, fez
— Carece então de beleza o Amor, por dez anos 10 6 recuar a doença, e era
e não a tem? ela que me instruía nas questões de
— É forçoso. ámor — o discurso então que me fez
— E então? O que carece de beleza aquela mulher eu tentarei repetir-vos, a
partir do que foi admitido por mim e
e de modo algum a possui, porventura
por Agatão, com meus próprios recur
dizes tu que é belo?
sos e como eu puder. É de fato preciso,
— Não, sem dúvida. Agatão, como tu indicaste, primeiro
— Ainda admites por conseguinte discorrer sobre o próprio Amor, quem
que o Amor é belo, se isso é assim? é ele e qual a sua natureza e depois
E Agatão: — É bem provável, ó Só sobre as suas obras. Parece-me então
crates, que nada sei do que então que o mais fácil é proceder como
disse103? outrora a estrangeira, que discorria
— E no entanto, prosseguiu Sócra
interrogando-me107, pois também eu
tes, bem que foi belo o que disseste, quase que lhe dizia outras tantas coi
Agatão. Mas dize-me ainda uma pe sas tais quais agora me diz Agatão,
quena coisa: o que é bom não te parece que era o Amor um grande deus, e era
que também é belo? do que é belo; e ela me refutava, exata
•— Parece-me, sim. mente com estas palavras, com que eu
— Se portanto o Amor é carente do estou refutando a este, que nem era
que é belo, e o que é bom é belo, tam belo segundo minha palavra, nem bom.
bém do que é bom seria ele carente 10 4 E eu então: — Que dizes, ó Dioti-
— Eu não poderia, ó Sócrates, ma? É feio então o Amor, e mau?
disse Agatão, contradizer-te; mas seja E ela: — Não vais te calar? Acaso
assim como tu dizes. pensas que o que não for belo, é forço
— É à verdade10 5, querido Aga so ser feio?
tão, que não podes contradizer, pois a — Exatamente.
Sócrates não é nada difícil. — E também se não for sábio é
— E a ti eu te deixarei agora; mas o ignorante? Ou não percebeste que exis
103 Agatão reage como um discípulo ou um te algo entre sabedoria e ignorância?
amigo de Sócrates, isto é, confessando franca — Que é?
mente a ignorância que acaba de descobrir em
si. (N. d o T .) 106 Se se trata da peste que assolou Atenas no
J04 Essa associação do bom e do belo, bem fa começo da guerra do Peloponeso, Diotima te
miliar ao grego (ob. o epíteto corrente: kaXirc ria feito o sacrifício em 440, quando Sócrates
Kàyadm ), e insistentemente defendida na argu entrava na casa dos trinta. (N. d o T .)
mentação socrática (v. por exemplo, Górgias, 107 £ estranho que uma sacerdotisa use o mé
474d-e), será de muita utilidade em 204e. todo de explicação dos sofistas do século V,
(N. do T.) através de perguntas forjadas por ela mesma.
105 Não se trata aqui de refutar a A ou a B, é Esse parece um dos mais fortes indícios de que
o que quer dizer Sócrates; uma vez estabeleci o fato contado por Sócrates é fictício, sobretu
da a veracidade de um argumento, não é mais do se se considera a exata correspondência dos
possível, ou melhor, não é mais questão de diálogos Sócrates-Agatão, Diotima-Sócrates.
cor>testá-lo. (N. do T.) (N. do T.)
40 PLATÃO
só toda arte divinatória, como também sem lar, sempre por terra e sem forro,
a dos sacerdotes que se ocupam dos deitando-se ao desabrigo, às portas e
sacrifícios, das iniciações e dos encan- nos caminhos, porque tem a natureza
m « tamentos, e enfim de toda adivinhação da mãe, sempre convivendo com a pre
e magia. Um deus com um homem não cisão. Segundo o pai, porém, ele é insi
se mistura, mas é através desse ser que dioso com o que é belo e bom, e cora
se faz todo o convívio e diálogo dos joso, decidido e enérgico, caçador
deuses com os homens, tanto quando terrível, sempre a tecer maquinações,
despertos como quando dormindo; e ávido de sabedoria e cheio de recursos,
aquele que em tais questões é sábio é a filosofar por toda a vida, terrível
um homem de gênio111, enquanto o mago, feiticeiro, sofista1 12: e nem <
■
sábio em qualquer outra coisa, arte ou imortal é a sua natureza nem mortal, e
ofício, é um artesão. E esses gênios, é no mesmo dia ora ele germina e vive,
certo, são muitos e diversos, e um deles quando enriquece1 13; ora morre e de
é justamente o Amor. novo ressuscita, graças à natureza do
— pai; e o que consegue sempre lhe esca
E quem é seu pai — perguntei-
lhe — e sua mãe? pa, de modo que nem empobrece11 4 o
t — É um tanto longo de explicar, Amor nem enriquece, assim como tam
disse ela; todavia, eu te direi. Quando bém está no meio da sabedoria e da
nasceu Afrodite, banqueteavam-se os ignorância. Eis com efeito o que se dá 204 a
b — Quando então — continuou ela vista do belo, que de uma grande dor
— é sempre isso o amor, de que modo, liberta o que está prenhe. É com efeito,
nos que o perseguem, e em que ação, o Sócrates, dizia-me ela, não do belo o
seu zelo e esforço se chamaria amor, como pensas.
amor12 s? Que vem a ser essa ativida — Mas de que é enfim?
de? Podes dizer-me? — D a geração e da parturição no
— Eu não te admiraria então, ó belo.
Diotima, por tua sabedoria, nem te — Seja — disse-lhe eu.
freqüentaria para aprender isso — Perfeitamente — continuou. — «
mesmo. E por que assim da geração? Porque é
— Mas eu te direi — tornou-me. algo de perpétuo e imortal para um
— É isso, com efeito, um parto em mortal, a geração. E é a imortalidade
beleza, tanto no corpo como na alma. que, com o bem, necessariamente se
— É um adivinho — disse-lhe eu deseja, pelo que foi admitido, se é que
— que requer o que estás dizendo: não o amor é amor de sempre ter consigo o
entendo. bem127. É de fato forçoso por esse
— Pois eu te falarei mais clara argumento que também da imortali
mente, Sócrates, disse-me ela. Com dade seja o amor.
efeito, todos os homens concebem, não Tudo isso ela me ensinava, quando
só no corpo como também na alma, e sobre as questões de amor discorria, e
quando chegam a certa idade, é dar à uma vez ela me perguntou: — Que
luz que deseja a nossa natureza. Mas pensas, ó Sócrates, ser o motivo 128
ocorrer isso no que é inadequado é desse amor e desse desejo? Porventura
d impossível. E o feio é inadequado a não percebes como é estranho o com
tudo o que é divino, enquanto o belo é portamento de todos os animais quan
adequado. Moira então e Ilitia 12 6 do do desejam gerar, tanto dos que andam
nascimento é a Beleza. Por isso, quan quanto dos que voam, adoecendo b
do do belo se aproxima o que está em todos em sua disposição amorosa, pri
concepção, acalma-se, e de júbilo meiro no que concerne à união de um
transborda, e dá à luz e gera; quando com o outro, depois no que diz respeito
porém é do feio que se aproxima, som à criação do que nasceu? E como em
brio e aflito contrai-se, afasta-se, reco vista disso estão prontos para lutar os
lhe-se e não gera, mas, retendo o que mais fracos contra os mais fortes, e
concebeu, penosamente o carrega. Daí mesmo morrer, não só se torturando
é que ao que está prenhe e já intumes pela fome a fim de alimentá-los como
cido é grande o alvoroço que lhe vem à tudo o mais fazendo? Ora, os homens,
125 N ova m udança no m étodo de exposição,
continuou ela, poder-se-ia pensar que é
que agora passa a ser dircursivo. Assimilando pelo raciocínio que eles agem assim;
abruptam ente, à m aneira dos profetas, a ativi
dade am orosa ao processo da geração, D iotim a
discorre então sobre o sentido desta, revelan 127 206a. V. n ota respectiva. (N . d o T .)
do-a com o um a m aneira de participarem os 128 D iotim a e Sócrates já se entenderam sobre
seres deste m undo da perene estabilidade do o motivo do am or (206-207a, 207c-8-d). P or
m undo ideal. (N . d o T .) conseguinte, sua pergunta agora é apenas p ara
12« D ivindade que preside aos nascimentos, iniciar u m a verificação desse m otivo, conside
assim com o um a das três M oiras ou Parcas. rando-o a p artir do am or físico, a form a mais
(N . d o T .) sçnsível do am or. V. supra 205b-d. (N . d o T .)
O BANQUETE 45
c mas os animais, qual a causa desse seu nascem e outras morrem para nós, e ja
comportamento amoroso? Podes di mais somos os mesmos nas ciências,
zer-me? mas ainda cada uma delas sofre a
De novo eu lhe disse que não sabia; mesma contingência. O que, com efei
e ela me tomou: — Imaginas então to, se chama exercitar é como se de nós
algum dia te tomares temível nas ques estivesse saindo a ciência; esqueci
tões do amor, se não refletires nesses mento é escape de ciência, e o exercí
fatos? cio, introduzindo uma nova lembrança
— Mas é por isso mesmo, Diotima
em lugar da que está saindo, salva a
— como há pouco eu te dizia — que
ciência, de modo a parecer ela ser a
vim a ti, porque reconheci qyue preci
sava de mestres. Dize-me entao não só mesma. É desse modo que tudo o que é
a causa disso, como de tudo o mais mortal se conserva, e não pelo fato de
que concerne ao amor. absolutamente ser sempre o mesmo,
— Se de fato — continuou — crês como o que é divino, mas pelo fato de
d que o amor é por natureza amor daqui deixar o que parte e envelhece um
lo que muitas vezes admitimos, não fi outro ser novo, tal qual ele mesmo era.
ques admirado..Pois aqui, segundo o É por esse meio, ó Sócrates, que o
mesmo argumento que lá, a natureza mortal participa da imortalidade, no
mortal procura, na medida do possível, corpo como em tudo mais130; o imor
ser sempre e ficar imortal. E ela só tal porém é de outro modo. Não te
pode assim, através da geração, porque admires portanto de que o seu próprio
sempre deixa um outro ser novo em rebento, todo ser por natureza o apre
lugar do velho129; pois é nisso que se cie: é em virtude da imortalidade que a
diz que cada espécie animal vive e é a todo ser esse zelo e esse amor acompa
mesma — assim como de criança o nham.
homem se diz o mesmo até se tornar Depois de ouvir o seu discurso,
velho; este na verdade, apesar de ja admirado disse-lhe: — Bem, ó doutís
mais ter em si as mesmas coisas, diz-se sima Diotima, essas coisas é verdadei
todavia que é o mesmo, embora sem ramente assim que se passam?
pre se renovando e perdendo alguma E ela, como os sofistas consumados,
coisa, nos cabelos, nas carnes, nos tomou-me: — Podes estar certo, ó Só
!e ossos, no sangue e em todo o corpo. E crates; o caso é que, mesmo entre os
não é que é só no corpo, mas também homens, se queres atentar a sua ambi
na alma os modos, os costumes, as ção, admirar-te-ias do seu desarrazoa-
opiniões, desejos, prazeres, aflições,
temores, cada um desses afetos jamais 130 A lguns críticos querem ver nessa passagem
um a contradição com a doutrina da im ortali
permanece o mesmo em cada um de dade da alm a, e conseqüentem ente um indício
nós, mas uns nascem, outros morrem. da anterioridade do Banquete ao Fédon, onde
aquela doutrina é longam ente exposta. N a ver
2os a Mas ainda mais estranho do que isso é dade, ela não autoriza a inferência de que a
que até as ciências não é só que umas alm a é m ortal. D iotim a diz que seus afetos e
conhecim entos são passageiros, com o os ele
129 Segue até 208b um quadro m uito vivo da mentos do corpo, m as não afirm a que a alm a
visão heraclitiana da realidade. M as, sob o são esses afètos e conhecimentos. A idéia de vá
fluxo desesperador das coisas, D iotim a vê em rias encarnações da alm a e a do conhecimento-
sua geração, a sua m aneira de continuar, o seu rem iniscência, exposta tam bém no Fédon, ilus
m odo de participar do ser perene das idéias. tra m uito a com patibilidade de um a alm a im or
(N . do T .) tal com ácidentes transitórios. (N . d o T .)
46 PLATÃO
mento, a menos que, a respeito do que estes estão todos os poetas criadores e
te falei, não reflitas, depois de conside todos aqueles artesãos que se diz serem
rares quão estranhamente eles se com inventivos; mas a mais importante,
portam com o amor de se tomarem disse ela, e a mais bela forma de pensa
renomados e de “ para sempre uma gló mento é a que trata da organização dos
ria imortal se preservarem” , e como negócios da cidade e da família, e cujo
por isso estão prontos a arrostar todos nome é prudência e justiça 134 — des- b
d. os perigos, ainda mais do que pelos tes por sua vez quando alguém, desde
filhos, a gastar fortuna, a sofrer priva cedo fecundado em sua alma, ser divi
ções, quaisquer que elas sejam, e até a no que é, e chegada a idade oportuna,
sacrificar-se. Pois pensas tu, continuou já está desejando dar à luz e gerar, pro
ela, que Alceste 131 morreria por Ad- cura então também este, penso eu, à
meto, que Aquiles morreria depois de sua volta o belo em que possa gerar;
Pátroclo, ou o vosso Codro 132 morre pois no que é feio ele jamais o fará.
ria antes, em favor da realeza dos Assim é que os corpos belos mais que
filhos, se não imaginassem que eterna os feios ele os acolhe, por estar em
seria a memória da sua própria virtu concepção; e se encontra uma alma
de, que agora nós conservamos? Longe bela, nobre e bem dotada, é total o seu
disso, disse ela; ao contrário, é, segun acolhimento a ambos, e para um
do penso, por uma virtude imortal e homem desses logo ele se enriquece13 5
por tal renome e glória que todos tudo de discursos sobre a virtude, sobre o c
fazem, e quanto melhores tanto mais; que deve ser o homem bom e o que
<• pois é o imortal que eles amam. Por deve tratar, e tenta educá-lo. Pois ao
conseguinte, continuou ela, aqueles contato sem dúvida do que é belo e em
que estão fecundados em seu corpo sua companhia, o que de há muito ele
concebia ei-lo que dá à luz e gera, sem
voltam-se de preferência para as mu
o esquecer tanto em sua presença
lheres, e é desse modo que são amoro
quanto ausente, e o que foi gerado, ele
sos, pela procriação conseguindo para
o alimenta justamente com esse belo,
si imortalidade, memória e bem-aven-
de modo que uma comunidade muito
turança por todos os séculos seguintes,
maior que a dos filhos ficam tais indi
209 a ao que pensam; aqueles porém que é víduos mantendo entre si, e uma ami
em sua alma — pois há os que conce zade mais firme, por serem mais belos
bem na alma mais do que no corpo, o e mais imortais os filhos que têm em
que convém à alma conceber e gerar; e comum. E qualquer um aceitaria obter d
o que é que lhes convém senão o pen tais filhos mais que os humanos, de
samento e o mais da virtude133 ? Entre pois de considerar Homero e Hesíodo,
131 É um a referência ao discurso de F edro, 179 e admirando com inveja os demais
ss. (N . d o T .) bons poetas, pelo tipo de descendentes
132 Rei legendário de A tenas. Inform ado de
que um oráculo prom etera vitória aos dórios, que deixam de si, e que uma imortal
se estes não o matassem, disfarça-se em solda glória e memória lhes garantem, sendo
do e com o tal encontra a m orte com que sal
vou sua pátria. (N . d o T .) 134 Prudência ( ooxppooúvri ) e justiça são aqui
133 Entender .virtude no sentido am plo de exce form as do pensam ento ( ippóvijoK ); com o no
lência, tal com o o grego apenj . N o tar a dis Protágoras (361b ss.) elas são, com o as de
tinção feita no Banquete entre wóvtiok (de mais virtudes, form as o u aspectos de um a
ifpovèopai ) = disposição p ara a sabedoria, ciência ( èm otvuv )• (N . do T .)
pensam ento e oapia , isto é, sabedoria (v. 202) 135 N o grego eimopeí . V. supra p. 41 , n. 113.
que só os deuses possuem. (N . d o T .) (N . do T .)
O BANQUETE 47
eles mesmos o que são; ou se prefe seu dirigente, deve ele amar um só
res 13 ®, continuou ela, pelos filhos que corpo e então gerar belos discur
Licurgo deixou na Lacedemônia, sal sos139; depois deve ele compreender &
vadores da Lacedemônia e por assim que a beleza em qualquer corpo é irmã
dizer da Grécia. E honrado entre vós é da que está em qualquer outro, e que,
também Sólon 13 7 pelas leis que criou, se se deve procurar o belo na forma,
e outros muitos em muitas outras par muita tolice seria não considerar uma
tes, tanto entre os gregos como entre os só e a mesma a beleza em todos os cor
bárbaros, por terem dado à luz muitas pos; e depois de entender isso, deve ele
obras belas e gerado toda espécie de fazer-se amante de todos os belos cor
virtudes; deles é que já se fizeram mui pos e largar esse amor violento de um
tos cultos por causa de tais filhos, só, após desprezá-lo e considerá-lo
enquanto que por causa dos humanos mesquinho; depois disso a beleza que
ainda não se fez nenhum. está nas almas deve ele considerar
mais preciosa que a do corpo, de modo
São esses então os casos de amor era
que, mesmo se alguém de uma alma
210o* que talvez, ó Sócrates, também tu
gentil tenha todavia um escasso encan
pudesses ser iniciado138; mas, quanto
to, contente-se ele, ame e se interesse, e *
à sua perfeita contemplação, em vista produza e procure discursos tais que
da qual é que esses graus existem, tomem melhores os jovens; para que
quando se procede corretamente, não então seja obrigado a contemplar o
sei se serias capaz; em todo caso, eu te belo nos ofícios e nas leis, e a ver assim
direi, continuou, e nenhum esforço que todo ele tem um parentesco
pouparei; tenta então seguir-me se comum 1 40, e julgue enfim de pouca
fores capaz: deve com efeito, começou monta o belo no corpo; depois dos ofí
ela, o que corretamente se encaminha a cios é para as ciências que é preciso
esse fim, começar quando jovem por transportá-lo, a fim de que veja tam
dirigir-se aos belos corpos, e em pri bém a beleza das ciêricias, e olhando *
meiro lugar, se corretamente o dirige o para o belo já muito, sem mais amar
como um doméstico a beleza indivi
136 A ordem em que aparecem os exemplos da
poesia e da legislação parece sugerir a preem i dual de um criançola, de um homem
nência da prim eira sobre a segunda. Cf. to d a ou de um só costume, não seja ele,
via República, X , 597 e ss., em que Platão, ao
contrário, explica a superioridade da segunda. nessa escravidão, miserável e um mes
(N . do T .) quinho discursador, mas voltado ao
137 Em conferência na A ssociação dos Estudos
Clássicos do Brasil (Seção de São P a u lo ), so
vasto oceano do belo e, contemplan
bre o autocriticism o em A tenas, o Prof. Aubre- do-o, muitos discursos belos e magní-
ton observou com m uito acerto os sentim entos
de laconism o que revela essa m aneira de um 139 Evidentem ente não se tra ta aqui do am or
ateniense citar depois das leis de Licurgo — físico entre o hom em e a m ulher, que tem a
salvadores da G ré c ia . . . — as leis do seu con justificação na procriação (2 0 8 e), e sim de
terrâneo — e tam bém Sólon . . . (N . do T .) um a prim eira etapa do am or entre o am ante e
138 Feito o exam e das diversas form as da ativi-' o bem -am ado, que deve estar condicionado à
dade am orosa (proscrição, poesia, legislação), produção dos belos discursos. Essa etapa ini
D iotim a as considera com o estágios prelim ina cial' corresponde ao que Pausânias, num a pers
res do suprem o ato do am or, que é a conquista pectiva menos clara, afirm a ser o nobre am or
da ciência do belo em si. P ara d ar no entanto de A frodite U rânia. (N . d o T .)
a entender o caráter dessa ciência e de sua 140 Assim como, pouco antes, um belo corpo é
aquisição, ela recorre à alegoria da iniciação irm ão de um belo corpo, todos estes p o r sua
aos mistérios. C om pará-la a esse respeito com vez têm a mesm a relação com os belos ofícios
o m ito da C averna na República. (N . d o T .) e as belas leis. (N . d o T .)
48 PLATÃO
ficos ele produza, e reflexões, em ines tudo mais que é belo dele participa, de
gotável amor à sabedoria, até que aí um modo tal que, enquanto nasce e pe-
robustecido e crescido 141 contemple rece tudo mais que é belo, em nada ele
ele uma certa ciência, única, tal que o fica maior ou menor, nem nada sofre.
«. seu objeto é o belo seguinte. T en ta. Quando então alguém, subindo a partir
agora, disse-me ela, prestar-me a máxi dó que aqui é belo 1 4 4, através do cor
ma atenção possível. Aquele, pois, que reto amor aos jovens, começa a con
até esse ponto tiver sido orientado para templar aquele belo, quase que estaria
as coisas do amor, contemplando
seguida e corretamente o que é belo, já a atingir o ponto final. Eis, com efeito, c
chègando ao ápice dos graus do amor, em que consiste o proceder correta
súbito perceberá algo de maravilhosa mente nos caminhos do amor ou por
mente belo em sua natureza, aquilo outro se deixar conduzir: em começar
mesmo1 42, ó Sócrates, a que tendiam do que aqui é belo e, em vista daquele
todas as penas anteriores, primeira- belo, subir sempre, como que servin-
211 a mente sempre sendo, sem nascer nem do-se de degraus, de um só para dois e
perecer, sem crescer nem decrescer, e de dois para todos os belos corpos, e
depois, não de um jeito belo e de outro dos belos corpos para os belos ofícios,
feio, nem ora sim ora não, nem quanto e dos ofícios para as belas ciências até
a isso belo e quanto àquilo feio, nem que das ciências acabe naquela ciên
aqui belo ali feio, como se a uns fosse cia, que de nada mais é senão daquele
belo e a outros feio; nem por outro próprio belo, e conheça enfim o que em
lado aparecer-lhe-á o belo como um si é belo. Nesse ponto da vida, meu d
rosto ou mãos, nem como nada que o caro Sócrates, continuou a estrangeira
corpo tem consigo, nem como algum de Mantinéia, se é que em outro mais,
discurso ou alguma ciência, nem certa poderia o homem viver, a contemplar o
mente como a existir ém algo mais, próprio belo. Se algum dia o vires, não
b como, por exemplo, em animal da terra
é como ouro 1 4 5 ou como roupa que
ou do céu, ou em qualquer outra coisa;
ao contrário, aparecer-lhe-á ele ele te parecerá ser, ou como os belos
mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, jovens adolescentes, a cuja vista ficas
sendo sempre uniforme1 43, enquanto agora aturdido e disposto, tu como ou
tros muitos, contanto que vejam seus
141A abundância é a grandeza dos discursos
decorrentes da extensão do belo já contem pla amados e sempre estejam com eles, a
do ( irpòç TtoXv ri&n rò ka\óv ) é condição p ara nem comer nem beber, se de algum «
atingir a contem plação do próprio belo.
(N . do T .) modo fosse possível, mas a só contem
142 O bservar r o que precede até essa expressão plar e estar ao seu lado 1 4 6. Que pensa
um a extraordinária técnica de suspense para
preparar o deslum bram ento do que segue, isto mos então que aconteceria, disse ela,
é, a descrição do belo em si. D esencantados da se a alguém ocorresse contemplar o
magia desse trecho, podem os perceber que ele
é um a reSposta àquela litania final do discurso próprio belo, nítido, puro, simples, e
de A gatão (197d-e), mas quão superior em
emoção e grandeza! (N . d o T .) 144 O pronom e rióvòf parece-m e aqui refe
143 Essas expressões, que aparecem freqüente rir-se claram ente à idéia do belo. Assim, trad u
mente no Fédon p ara caracterizar as idéias em zim o-lo especificando: “as coisas belas daqui”.
sua pureza essencial, contrapõem -se a fórm ulas A m enção explícita rd v ka \ ü v , um pouco
usadas pouco acim a (de um je ito . . . de o u abaixo, explica-se pelo fato de que D iotim a
tro . . . , ora . . . o ra . . . quanto a isso . . . quanto está resum indo sua lição. (N . d o T .)
àquilo . . . e tc.) para qualificar as coisas deste 145 C om o o sofista H ípias o define p ara Sócra
m undo, e que representam por assim dizer os tes. V. H ípias M aior, 289e. (N . d o T .)
marcos da argum entação socrática. (N . d o T .) 146 Cf. supra 192d-e. (N . d o T .)
O BANQUETE 49
não repleto de carnes, humanas, de coisa 1 50, que era a ele que aludira Só
cores e outras muitas ninhãrias mor crates, quando falava de um certo dito;
tais, mas o próprio divino belo pudesse e súbito a porta do pátio, percutida,
ele em sua forma única contemplar? produz um grande barulho, como de
212 <. Porventura pensas, disse, que é vida vã foliões, e ouve-se a voz de uma flautis
a de um homem a olhar naquela dire ta. Agatão exclama: “ Servos! Não d
ção e aquele objeto, com aquilo 1 4 7 ireis ver? Se for algum conhecido, cha
com que deve, quando o contempla e mai-o; se não, dizei que não estamos
com ele convive? Ou não consideras, bebendo, mas já repousamos” .
disse ela, que somente então, quando Não muito depois ouve-se a voz de
vir o belo com aquilo com que este Alcibíadesjno pátio, bastante embria
pode ser visto, ocorrer-lhe-á produzir gado, e a gritar alto, perguntando onde
não sombras148 de virtude, porque estava Agatão, pedindo que o levassem
não é em sombra que estará tocando, para junto de Agatão. Levam-no então
mas reais virtudes, porque é no real até os convivas a flautista, que o
que estará tocando? tomou sobre si, e alguns outros acom
panhantes, e ele se detém à porta, cin
b Eis o que me dizia Diotima, ó Fedro
gido de uma espécie de coroa tufada de «
e demais presentes, e do que estou
hera e. violetas, coberta a cabeça de
convencido; e porque estou conven
fitas em profusão, e exclama:
cido, tento convencer também os ou- “ Senhores! Salve! Um homem em
, tros de que para essa aquisição, um completa embriaguez vós o recebereis
colaborador da natureza humana me como companheiro de bebida, ou deve
lhor que o Amor não se encontraria mos partir, tendo apenas coroado Aga
facilmente. Eis por que eu afirmo que tão, pelo qual viemos? Pois eu, na ver
deve todo homem honrar o Amor, e dade, continuou, ontem mesmo não fui
que eu próprio prezo o que lhe con capaz de vir; agora porém eis-me aqui,
cerne e particularmente o cultivo, e aos com estas fitas sobre a cabeça, a fim de
outros exorto, e agora e sempre elogio passá-las da minha para a cabeça do
o poder e a virilidade do Amor na me-mais sábio e do mais belo, se assim
devo dizer. Porventura ireis zombar de
c dida em que sou capaz. Este discurso,
mim, de minha embriaguez? Ora, eu, m «
ó Fedro, se queres, considera-o profe
por mais que zombeis, bem sei por
rido como um encómio 1 49 ao Amor; tanto que estou dizendo a verdade.
se não, o que quer que e como quer que Mas dizei-me daí mesmo: com o que
te apraza chamá-lo, assim deves fazê- disse, devo entrar ou não? Bebereis co
lo. migo ou não?”
Depois que Sócrates assim falou, Todos então o aclamam e convidam
enquanto que uns se põem a louvá-lo, a entrar e a recostar-se, e Agatão o
Aristófanes tenta dizer alguma chama. Vai ele conduzido pelos ho
147 Isto é, com a inteligência, o u antes, com a mens, e como ao mesmo tempo colhia
própria alm a, livre das suas relações com o as fitas para coroar, tendo-as diante »
corpo. V. Fédon, 65b-e. (N . d o T .)
148 São as virtudes praticadas pelo com um dos i5U A ristófanes não parece, como os demais
hom ens, tais com o Platão as explica no Fédon, convivas, em polgado com o que foi dito por
68b-69b. (N . d o T .) Sócrates, o que bem revela sua pouca predis
149 Porque foi proferido à m aneira socrática. posição p ara captar o conteúdo do discurso de
V. supra 199b. (N . d o T .) Alcibíades. (N . d o T .)
50 PLATÃO
dos olhos não viu Sócrates, e todavia mitido dirigir nem o olhar nem a
senta-se ao pé de Agatão, entre este e palavra a nenhum belo jovem, senão
Sócrates, que se afastara de modo a este homem, enciumado e invejoso, faz
que ele se acomodasse. Sentando-se ao coisas extraordinárias, insulta-me e
lado de Agatão ele o abraça e o coroa. mal retém suas mãos da violência. Vê
Disse então Agatão: — Descalçai então se também agora não vai ele
Alcibíades, servos, a fim de que seja o fazer alguma coisa, e reconcilia-nos;
terceiro em nosso leito 1 61. ou se ele tentar a violência, defende-
— Perfeitamente — tomou A me, lci pois eu da sua fúria e da sua pai
bíades; — mas quem é este nosso ter xão amorosa muito me arreceio.
ceiro companheiro de bebida? E en — Não! — disse Alcibíades —
quanto se volta avista Sócrates, e mal entre mim e ti não há reconciliação.
o viu recua em sobressalto e exclama: Mas pelo que disseste depois eu te
Por Hércules! Isso aqui que é? T.u, ó castigarei; agora porém, Agatão, ex
c Sócrates? Espreitando-me de novo aí clamou ele, passa-me das tuas fitas, a «
te deitaste, de súbito aparecendo assim fim de que eu cinja também esta aqui,
como era teu costume, onde eu menos a admirável cabeça deste homem, e
esperava que haverias de estar? E não me censure ele de que a ti eu te
agora, a que vieste? E ainda por que coroei, mas a ele, que vence em argu
foi que aqui te recostaste? Pois não foi mentos todos os homens, não só ontem
junto de Aristófanes1 5Z, ou de qual como tu, mas sempre, nem por isso eu
quer outro que seja ou pretenda ser o coroei. — E ao mesmo tempo ele
engraçado, mas junto do mais belo dos toma das fitas, coroa Sócrates e recos
que estão aqui dentro que maquinaste ta-se.
te deitar. Depois que se recostou, disse ele: —
E Sócrates: — Agatão, vê se me Bem, senhores! Vós me pareceis em
defendes! Que o amor deste homem se plena sobriedade. É o que não se deve
me tomou um não pequeno proble permitir entre vós, mas beber; pois foi
ma 1 53. Desde aquele tempo, com efei- o que foi combinado entre nós. Como
i to, em que o amei, não mais me é per- chefe então da bebedeira, até que tiver
des suficientemente bebido, eu me elejo
151V. supra p. 15 , n. 13, e p. 16 , n. 16. a mim mesmo1 54. Eia, Agatão, que a
(N . do T .)
152 p o r que essa referência a A ristófanes? N ão tragam logo, se houver aí alguma gran
temos nenhum a o u tra notícia da predileção de de taça. Melhor ainda, não há nenhu
Sócrates pelos cômicos, em particular por A ris
tófanes. Por outro lado é de supor que A lcibía ma precisão: vamos, servo, traze-me
des de pronto percebesse a possibilidade de aquele porta-gelo! exclamou ele, quan- 2u «
Sócrates ter sido convidado pelo próprio A ga
tão, com o de fato aconteceu. Assim, suas p ala do viu um com capacidade de mais de
vras devem ser entendidas mais com o um arti oito “ cótilas” 1 5 6. Depois de enchê-lo,
fício dram ático para cham ar a atenção sobre a
incapacidade em A ristófanes de entender o v er
primeiro ele bebeu, depois mandou Só
dadeiro aspecto cômico da atitude de A lcibía crates entornar, ao mesmo tempo que
des p ara com Sócrates. (N . d o T .)
153 Essa observação de Sócrates, com o a de 154 Alcibíades sente em sua em briaguez que o
Alcibíades logo a seguir, anuncia à m aneira de “sim posiarca” (v. supra p. 17 , n. 21) não se
um prelúdio as conclusões que vam os tirar do houve bem em sua função e pretende rep arar a
discurso de Alcibíades sobre a irresponsabilida f a l t a . . . (N . d o T .)
de de Sócrates no com portam ento de A lcibía 155 U m a “cótila” equivalia a pouco mais de
des. (N. do T .) um quarto de litro. (N . do T .)
O BANQUETE 51
faz dizer outra, não te admires; não é flautista quer uma flautista ordinária,
fácil, a quem está neste estado, da tua são as únicas que nos fazem possessos
singularidade dar uma conta bem feita e revelam os que sentem falta dos deu
e seguida. ses e das iniciações, porque são divi
“ Louvar Sócrates, senhores, é assim nas. Tu porém dele diferes apenas
que eu tentarei, através de imagens. Ele nesse pequeno ponto, que sem instru
certamente pensará talvez que é para mentos, com simples palavras, fazes o
carregar no ridículo, mas será a ima mesmo. Nós pelo menos, quando *
gem em vista da verdade, não do ridí algum outro ouvimos mesmo que seja
culo. Afirmo eu então que é ele muito um perfeito orador, a falar de outros
b semelhante a esses silenos] 6 0 coloca assuntos, absolutamente por assim
dos nas oficinas dos estatuários, que os dizer ninguém se interessa; quando
artistas representam com um pifre ou porém é a ti que alguém ouve, ou pala
uma flauta, os quais, abertos ao meio, vras tuas referidas por outro, ainda que
vê-se que têm em seu interior estatue seja inteiramente vulgar o que está
tas de deuses. Por outro lado, digo falando, mulher, homem ou adoles
também que ele se assemelha ao sátiro cente, ficamos aturdidos e somos em
Mársias1 6 1. Que na verdade, em teu polgados. Eu pelo menos, senhores, se
aspecto pelo menos és semelhante a não fosse de todo parecer que estou
esses dois seres, ó Sócrates, nem embriagado, eu vos contaria, sob jura
mesmo tu sem dúvida poderias contes mento, o que é que eu sofri sob o efeito,
tar; que porém também no mais tu te dos discursos deste homem, e sofro
assemelhas, é o que depois disso tens ainda agora. Quando com efeito os «
de ouvir. Ès insolente162! Não? Pois escuto, muito mais do que aos cori-
se não admitires, apresentarei testemu bantes 1 6 4 em seus transportes bate-me
nhas. Mas não és flautista? Sim! E o coração, e lágrimas me escorrem sob
muito mais maravilhoso que o sátiro. o efeito dos seus discursos, enquanto
c Este, pelo menos, era através de instru que outros muitíssimos eu vejo que
mentos que, com o poder de sua boca, experimentam o mesmo sentimento; ao
encantava os homens como ainda ouvir Péricles porém, e outros bons
agora o que toca as suas melodias — oradores, eu achava que falavam bem
pois as que Olimpo 1 6 3 tocava são de sem dúvida, mas nada de semelhante
Mársias, digo eu, por este ensinadas — eu sentia 1 6 B, nem minha alma ficava
as dele então, quer as toque um bom perturbada nem se irritava, como se se
encontrasse em condição servil; mas
160 Tam bém cham ados sátiros, os silenos eram
divindades cam pestres que faziam parte do sé com este Mársias aqui, muitas foram 2/« »
quito de Dioniso. E ram figurados com cauda e as vezes em que de tal modo me sentia
cascos de boi ou de bode e rosto hum ano, sin
gularm ente feio. (N. d o T .)
que me parecia não ser possível viver
161 Exímio flautista, M ársias desafiou Apoio em condições como as minhas. E isso,
com sua lira e, vencido, foi esfolado pelo deus. ó Sócrates, não irás dizer que não é
162 A liberdade espiritual de Sócrates dá-lhe
realmente, em m uitas circunstâncias, essa apa 164 Sacerdotes de Cibele, da Frigia, que dança
rência. V. A pol. 20e-23c, 30c e ss. e 36b-37. vam freneticam ente ao som de flautas, címba-
(N . d o T .) les e tam borins. (N . d o T .)
163 Em M inos Sócrates cita-o com o bem -am ado 165 é que não eram estes oradores “hom ens de
de Mársias. M uitas canções antigas lhe eram gênio” , suscetíveis de um a inspiração divina (v.
atribuídas. (N. do T .) supra 203a). (N . d o T .)
O BANQUETE 53
verdade. Ainda agora tenho certeza de Que esta sua atitude não é conforme à
que, se eu quisesse prestar ouvidos, dos silenos? E muito mesmo. Pois é
não resistiria, mas experimentaria os aquela com que por fora ele se reveste,
mesmos sentimentos. Pois me força ele como o sileno esculpido; mas lá den
a admitir que, embora sendo eu mesmo tro, uma vez aberto, de quanta sabedo
deficiente em muitos pontos ainda, de ria imaginais, companheiros de bebida,
mim mesmo me descuido, mas trato estar ele cheio? Sabei que nem a quem
dos negócios de Atenas166. A custo é belo tem ele á mínima consideração,
então, como se me afastasse das antes despreza tanto quanto ninguém
sereias, eu cerro os ouvidos e me retiro poderia imaginar, nem tampouco a e
em fuga, a fim de não ficar sentado lá e quem é rico, nem a quem tenha qual
aos seus pés envelhecer. E senti diante quer outro título de honra, dos que são
deste homem, somente diante dele, o enaltecidos pelo grande número; todos
que ninguém imaginaria haver em esses bens ele julga que nada valem, e
mim, o envergonhar-me de quem quer que nós nada somos — é o que vos
que seja; ora, eu, é diante deste homem digo — e é ironizando e brincando
somente que me envergonho. Com efei com os homens que ele passa toda a
to, tenho certeza de que não posso vida. Uma vez porém que fica sério e
contestar-lhe que não se deve fazer o se abre, não sei se alguém já viu as
que ele manda, mas quando me retiro estátuas lá dentro; eu por mim já uma
sou vencido pelo apreço em que me vez as vi, e tão divinas me pareceram
tem o público. Safo-me então de sua elas, com tanto ouro, com uma beleza
presença e fujo, e quando o vejo enver tão completa e tão extraordinária que in »
gonho-me pelo que admiti. E muitas eu só tinha que fazer imediatamente o
vezes sem dúvida com prazer o veria que me mandasse Sócrates. Julgando
não existir entre os homens; mas se por porém que ele estava interessado em
outro lado tal coisa ocorresse, bem sei minha beleza, considerei um achado e
que muito maior seria a minha dor, de um maravilhoso lance da fortuna,
modo que não sei o que fazer com esse como se me estivesse ao alcance, de
pois de aquiescer a Sócrates, ouvir
homem.
De seus flauteios então, tais foram tudo o que ele sabia; o que, com efeito,
as reações que eu e muitos outros tive eu presumia da beleza de minha juven
mos deste sátiro; mas ouvi-me como tude era extraordinário! Com tais
ele é semelhante àqueles a quem o idéias em meu espírito1 6 8, eu que até
comparei, que poder maravilhoso ele então não costumava sem um acompa
tem. Pois ficai sabendo que ninguém o nhante ficar só com ele, dessa vez,
conhece^ mas eu o revelarei, já que despachando o acompanhante, encon
comecei. Estais vendo, com efeito, trei-me a sós — é preciso, com efeito, »
como Sócrates amorosamente se com 168 Alcibíades passa a contar os seus esforços
para conquistar o am or de Sócrates. Tais esfor
porta com os belos jovens, está sempre ços constituem, com o observa Robin em sua
ao redor deles, fica aturdido e como Introdução, u m a verdadeira tentação, isto é.
um a caricatura da iniciação am orosa tal como
também ignora tudo e nada sabe 1 67. é caracterizada p o r D iotim a. A través dessa
166 Cf. A lcibíades, 109d e 113b. (N . d o T .) caricatura, Platão pretende ilustrar a qualidade
167 C om o num a cilada para a trair os incautos. superior do cômico obtido com um a verdadeira
Cf. supra 203d. (N . d o T .) arte. (N . d o T .)
54 PLATÃO
que apliquem aos seus ouvidos portas ser verdade o que dizes a meu respeito,
bem espessas 1 7 1. e se há em mim algum poder pelo qual
Como com efeito, senhores, a lâm- tu te poderias tornar melhor; sim, uma
c pada se apagara e os servos estavam irresistível beleza verias em mim, e
fora, decidi que não devia fazer ne totalmente diferente da formosura que
nhum floreado com ele, mas franca há em ti. Se então, ao contemplá-la,
mente dizer-lhe o que eu pensava; e tentas compartilhá-la comigo e trocar
assim o interpelei, depois de sacudi-lo: beleza por beleza, não é em pouco que
— Sócrates, estás dormindo? pensas me levar vantagens, mas ao 2/5«
— Absolutamente — respondeu- contrário, em lugar da aparência é a
me. realidade do que é belo que tentas
— Sabes então qual é a minha adquirir, e realmente é “ ouro por
decisão? cobre” 1 7 3 que pensas trocar. No en
— Qual é exatamente? — tomou- tanto, ditoso amigo, examina melhor;
me. não te passe despercebido que nada
— Tu me pareces — disse-lhe eu sou. Em verdade, a visão do pensa
— ser um amante digno de mim, o mento começa a enxergar com agude
único, e te mostras hesitante em decla za quando a dos olhos tende a perder
rar-me. Eu porém é assim que me sua força; tu porém estás ainda longe
sinto: inteiramente estúpido eu acho disso.
não te aquiescer não só nisso como E eu, depois de ouvi-lo: — Quanto
também em algum caso em que preci ao que é de minha parte, eis aí; nada
sasses ou de minha fortuna ou dos
do que está dito é diferente do que
d meus amigos. A mim, com efeito, nada penso; tu porém decide de acordo com > >
me é mais digno de respeito do que o o que julgares ser o melhor para ti e
tomar-me eu o melhor possível, e para
para mim.
isso creio que nenhum auxiliar me é
— Bem, tomou ele, nisso sim, tens
mais importante do que tu. Assim é
razão; daqui por diante, com efeito,
que eu, a um tal homem recusando
decidiremos fazer, 9. respeito disso
meus favores 1 7 2, muito mais me en como do mais, o que a nós dois nos
vergonharia diante da gente ajuizada parecer melhor.
do que se os concedesse, diante da
Eu, então, depois do que vi e disse, e
multidão irrefletida.
E este homem, depois de ouvir-me, que como flechas deixei escapar, ima
com a perfeita ironia que é bem sua é ginei-o ferido; e assim que eu me ergui
do seu hábito, retrucou-me: — Caro sem ter-lhe permitido dizer-me nada
Alcibíades, é bem provável que real- mais, vesti esta minha túnica — pois
<• mente não sejas um vulgar, se chega a era invemo — estendi-me por sob o
manto deste homem, e abraçado com c
171 A lusão a um a fórm ula de Iniciação órfica: estas duas mãos a este ser verdadeira
ipâéyÇoixat olç dé/jiç èoriv dupaç b' èm&eode, (létftiXoi,
“F alarei àqueles a quem é perm itido; aplicai mente divino e admirável fiquei deita-
portas (aos ouvidos), ó profanos.” (N d0
T .) 173 Ilíada, VI, 236. Etrganado por Zeus, G lauco
172 A lcibíades aplicou literalm ente a doutrina troca suas arm as de ouro pelas de bronze de
de Pausânias. Cf. supra 184d-185b. (N . d o T .) D iom edes (N . do T .)
56 PLATÃO
do a noite toda. Nem também isso, ó mos ali companheiros de mesa. Antes
Sócrates, irás dizer que estou falsean de tudo, nas fadigas, não só a mim me
do. Ora, não obstante tais esforços superava mas a todos os outros —
meus, tanto mais este homem cresceu e~ quando isolados em algum ponto,
desprezou minha juventude, ludibriou- como é comum numa expedição, éra
a, insultou-a e justamente naquilo é mos forçados a jejuar, nada eram os
que eu pensava ser alguma coisa, outros para resistir — e por outro lado
senhores juizes; sois com efeito juizes nas fartas refeições, era o único a ser
da sobranceria de Sócrates1 74 — pois capaz de aproveitá-las em tudo mais,
ficai sabendo, pelos deuses e pelas deu sobretudo quando, embora se recusas
sas, quando me levantei com Sócrates, se, era forçado a beber, que a todos
foi após um sono em nada mais vencia 1 7 *; e o que é mais espantoso de
extraordinário do que se eu tivesse dor tudo é que Sócrates embriagado ne
mido com meu pai ou um irmão mais nhum homem há que o tenha visto. E
velho. disso, parece-me, logo teremos a
Ora bem, depois disso, que disposi
prova. Também quanto à resistência
ção de espírito pensais que eu tinha, a
ao inverno — terríveis são os invernos
julgar-me vilipendiado, a admirar o
ali entre outras façanhas extraordi
.caráter deste homem, sua temperança e
coragem, eu que tinha encontrado um nárias que fazia, uma vez, durante uma
homem tal como jamais julgava pode geada das mais terríveis, quando todos
ria encontrar em sabedoria e fortaleza? ou evitavam sair ou, se alguém saía,
Assim, nem eu podia irritar-me e pri- era envolto em quanta roupagem estra
var-me de sua companhia, nem sabia nha, e amarrados os pés em feltros e
como atraí-lo. Bem sabia eu, com efei peles de carneiro, este homem, em tais
to, que ao dinheiro era ele de qualquer circunstâncias, saía com um manto do
modo muito mais invulnerável do que mesmo tipo que #ntes costumava tra
Ájax ao ferro, e na única coisa em que zer, e descalço sobre o gelo marchava
eu imaginava ele se deixaria prender, mais à vontade que os outros calçados,
ei-lo que me havia escapado. Embara- enquanto que os soldados o olhavam
çava-me então, e escravizado pelo de soslaio, como se o suspeitassem de
homem como ninguém mais por ne estar troçando deles. Quanto a estes
nhum outro, eu rodava à toa. Tudo fatos, ei-los aí:
isso tinha-se sucedido anteriormente; mas também o seguinte, como o
depois, ocorreu-nos fazer em comum fe z
uma expedição em Potidéia 1 7 5, e éra e suportou um bravo177
174 Em sua em briaguez, Alcibíades figura m o lá na expedição, certa vez, merece ser
m entaneam ente um processo em que a acusa ouvido. Concentrado numa reflexão,
ção de sobranceria dissim ula justam ente sua
defesa no processo histórico: a recusa de Só
logo se detivera desde a madrugada a
crates, um crim e de orgulho nessa patuscada, examinar uma idéia, e como esta não
significa de fato sua inocência. (N . d o T .) lhe vinha, sem se aborrecer ele se con
175 Em 432, Potidéia, na Calcídica, recusou-se
a pagar, tributo a A tenas e foi pelos atenienses servara de pé, a procurá-la. Já era
sitiada, capitulando em 430. Essa insurreição
foi um a das causas im ediatas da G u erra do 176 v . supra p. 1 7 , n. 19. (N . d o T .)
Peloponeso. (N . d o T .) 177 Odisséia, IV, 2 4 2 .(N . d o T .)
O BANQUETE 57
meio-dia, os homens estavam obser suas armas de hoplita. Ora, ele se reti
vando, e cheios de admiração diziam rava, quando já tinham debandado os
uns aos outros: Sócrates desde a nossos homens, ao lado de Laques:
madrugada está de pé ocupado em acerco-me deles e logo que os vejo
süas reflexões ! Por fim, alguns dos exorto-os à coragem, dizendo-lhes que
jónicos 17 8, quando já era de tarde, de- os não abandonaria. Foi aí que, me
i pois de terem jantado — pois era lhor que em Potidéia, eu observei Só
então o estio — trouxeram para fora crates — pois o meu perigo era menor,
os seus leitos e ao mesmo tempo que por estar eu a cavalo — 1primeiramente
iam dormir na fresca, observavam-no a quanto ele superava a Laques, em
ver se também a noite ele passaria de domínio de si; e depois, parecia-me, ó
pé. E ele ficou de pé, até que veio a au
Aristófanes, segundo aquela tua ex
rora e o sol se ergueu; a seguir foi pressão18 1, que também lá como aqui
embora, depois de fazer uma prece ao ele se locomovia “impando-se e olhan
sol. Se quereis saber nos combates —
pois isto é bem justo que se lhe leve em do de través” , calmamente exami
conta — quando se deu a batalha pela nando de um lado e de outro os amigos
qual chegaram mesmo a me condeco e os inimigos, deixando bem claro a
rar os generais, nenhum outro homem todos, mesmo a distância, que se
, me salvou senão este, que não quis alguém tocasse nesse homem, bem
abandonar-me ferido, e até minhas vigorosamente ele se defenderia. Eis
armas salvou comigo. Eu então, ó Só por que com segurança se retirava, ele
crates, insisti com os generais17 9 para e o seu companheiro; pois quase que,
que te conferissem essa honra, e isso nos que assim se comportam na guer
não vais me censurar nem irás dizer ra, nem se toca, mas é aos que fogem
que estou falseando; todavia, quando em desordem que se persegue.
já os generais consideravam minha Muitas outras virtudes certamente
posição e desejavam conceder-me a poderia alguém louvar em Sócrates, e
insigne honra, tu mesmo foste mais admiráveis; todavia, das demais ativi
solícito que os generais para que fosse dades, talvez também a respeito de al
eu e não tu que a recebesse. E também, guns outros se pudesse dizer outro
ó senhores, valia a pena observar Só- tanto; o fato porém de a nenhum
22i a crates, quando de Delião 18 0 batia em homem assemelhar-se ele, antigo ou
retirada o exército; por acaso fiquei ao moderno, eis o que é digno de toda
seu lado, a cavalo, enquanto ele ia com admiração. Com efeito, qual foi Aqui
178 Robin prefere aqui a lição de Schm idt les, tal poder-se-ia imaginar Brasi-
( rCiv tóávTo»' = dos que o viram ) à lição
dos mss. ( t &v 'lúvG w - dos jó n ic o s), sob a das182e outros, e inversamente, qual
alegação de que não havia tropas da Jônia, e foi Péricles, tal Nestor e Antenor 183
de que a lição dos mss. se com preende d ificil
m ente com o um a especificação da expressão 181 N a s N u v e n s, 362: (JJ-t 0pevâvei t ' e v rcâç bSã.<;
“hom ens”, usada pou co acim a. Essa últim a ra Kai T(lxpdàKnã> 7rapa/3áXXti<r (N . d o T .)
zão absolutam ente não convence. (N . d o T .) 182 G rande general espartano, vencedor dos ate
179 Essa batalha, travada em 432, precedeu nienses em A nfípolis (422 a .C .), onde morreu.
im ediatam ente o cerco de Potidéia. (N . d o T .) (N . d o T .)
180 C idade da B eócia, na fronteira da Ática. Os 183 D o is grandes conselheiros, o primeiro dos
atenienses foram aí batidos pelos tebanos, c o gregos e o segundo dos troianos, durante a
m andados por Pagondas, em 424 a .C .(N . do T.) G uerra de Tróia. (N . d o T .)
58 PLATÃO
bem, caro Agatão, que nada mais haja tar-se ao lado de Sócrates; súbito
para ele, e faze com que comigo nin porém uns foliões, em numeroso
guém te indisponha. grupo, chegam à porta e, tendo-a
Agatão respondeu: — De fato, ó encontrado aberta com a saída de
Sócrates, é muito provável que estejas alguém, irrompem eles pela frente em
dizendo a verdade. E a prova é a direção dos convivas, tomando assento
maneira como justamente ele se recos nos leitos; um tumulto enche todo o
tou aqui no meio, entre mim e ti, para recinto e, sem mais nenhuma ordem,
nos afastar um do outro. Nada mais é-se forçado a beber vinho em demasia.
ele terá então; eu virei para o teu lado Erixímaco, Fedro e alguns outros,
e me recostarei. disse Aristodemo, retiram-se e partem;
— Muito bem — disse Sócrates — a ele porém o sono o pegou, e dormiu
reclina-te aqui, logo abaixo de mim. muitíssimo, que estavam longas as noi
— ó Zeus, que tratamento recebo tes; acordou de dia, quando já canta
ainda desse homem! Acha ele que em vam os galos, e acordado viu que os
tudo deve levar-me a melhor. Mas pelo outros ou dormiam ou estavam ausen
menos, extraordinária criatura, permi tes; Agatão porém, Aristófanes e Só
te que entre nós se acomode Agatão. crates eram os únicos que ainda esta
— Impossível! — tomou-lhe Só vam despertos, e bebiam de uma
crates. — Pois se tu me elogiaste, devo grande taça que passavam da esquerda
eu por minha vez elogiar o que está à para a direita. Sócrates conversava
minha direita. Ora, se abaixo de ti 18 9 com eles; dos pormenores da conversa
ficar Agatão, não irá ele por acaso disse Aristodemo que não se lembrava
fazer-me um novo elogio, antes de, — pois não assistira ao começo e
pelo contrário, ser por mim elogiado? ainda estava sonolento — em resumo
Deixa, divino amigo, e não invejes ao porém, disse ele, forçava-os Sócrates a
jovem o meu elogio, pois é grande o admitir que é de um mesmo homem o
meu desejo de elogiá-lo. saber fazer uma comédia e uma tragé
— Evoé! — exclamou Agatão; — dia, e que aquele que com arte é um
Alcibíades, não há meio de aqui eu poeta trágico é também um poeta cô
ficar; ao contrário, antes de tudo, eu mico. Forçados a isso e sem o seguir
mudarei de lugar, a fim de ser por Só com muito rigor eles cochilavam, e pri
crates elogiado. meiro adormeceu Aristófanes e, quan
— Eis aí — comentou Alcibíades do já se fazia dia, Agatão. Sócrates
— a cena de costume: Sócrates presen então, depois de acomodá-los ao leito,
te, impossível a um outro conquistar os levantou-se e partiu; Aristodemo,
belos! Ainda agora, como ele soube como costumava, acompanhou-o; che
facilmente encontrar uma palavra per gado ao Liceu 19 0 ele asseou-se e,
suasiva, com o que este belo se vai pôr como em qualquer outra ocasião, pas
ao seu lado. sou o dia inteiro, depois do que, à
Agatão levanta-se assim para ir dei- tarde, foi repousar em casa.
190 G inásio dedicado a A p oio, às margens do
189 Isto é, à sua direita, entre e le e Sócrates. Ilisso, m ais tarde utilizado por A ristóteles para
A gatão passara para a direita de Sócrates, a sua escola, que ficou com esse nome.
ficando este no m eio do divã. (N . do T .l fN . do T .)
NOQ3J
y
Introdução
EQUÉCRATES FÉDON
— Estiveste, Fédon, ao lado de Só — Houve no seu caso, Equécrates,
crates, no dia em que ele bebeu o vene uma coincidência fortuita: a do dia que
no na prisão? Ou acaso sabes, por precedeu ao julgamento com a coroa
outrem, o que lá se passou? ção da popa do navio qüe os atenienses
FÉDON mandam a Delos.
— Lá estive em pessoa, Equécrates. EQUÉCRATES
EQUÉCRATES — E que navio é este?
— E então, de que coisas falou ele FÉDON
antes de morrer? Qual foi o seu fim? — Segundo conta a tradição, é o
Isso eu gostaria de saber, pois atual navio no qual Teseu transportou outro-
mente não há nenhum de meus conci ra os sete moços e as sete moças que
dadãos de Flionte 1 que esteja em Ate deviam ser levados para Creta2. EJe os
nas, e de lá, faz muito tempo, que não
2 A peregrinação a D elos é um sim ples culto ao
nos vem nenhum estrangeiro capaz de deus A p oio e à deusa Ártem is. A lenda é a
nos dar informações seguras, a não ser seguinte: Androgeu, filh o do afam ado rei Mi-
nos de Creta, visitara Atenas e tomara parte
que Sócrates morreu após ter bebido o nos jogos ginásticos; fora superior a todos, des
veneno. Mas, quanto ao mais, ninguém pertando assim a inveja dos atenienses, que o
nada nos soube relatar. mataram. Seu pai, então, para vingar a morte
do filh o, declarou guerra aos atenienses, ven
FÉDON cendo-os, e estabelecendo com o condição de
— Não sabeis, tampouco, nada paz que os vencidos enviassem periodicam ente
7 m oços e 7 m oças a Creta. Estes jovens iriam
também a respeito das circunstâncias servir de alim ento ao m onstro M inotauro que
do seu julgamento? vivia no Labirinto de Creta, palácio fabuloso
cuja saída ninguém conseguira encontrar. Por
EQUÉCRATES m uito tem po os atenienses continuaram a
— Sim, dele tivemos alguma infor enviar novas vítim as para Creta, até que o he
rói Teseu, herdeiro do trono, voluntariam ente
mação. E uma das coisas, mesmo, que entrou no núm ero das vítim as sorteadas, a fim
muito nos surpreendeu foi ter ocorrido de pôr term o a esse sacrifício periódico. Teseu
conquistou em Creta o am or da princesa
sua morte muito tempo depois do Ariadne, que lhe deu um novelo de lã verm e
julgamento. Que houve, Fédon? lha e, assim , entrando no Labirinto, atou ele
uma ponta do novelo numa pedra da entrada
1 Em F lionte 'ou F lio, no Peloponeso, um dis e, enquanto avançava, o desenrolava, ficando
cípulo de F ilolau, Eurito de Tarento, havia desta form a com o cam inho de regresso asse
estabelecido um círculo de pitagóricos, em cuja gurado. C onseguiu assim matar o M inotauro
sede F éd on fo i recebido por Equécrates e asso e retornar com seus com panheiros salvos para
ciados (58d, 102a). (N . do E .) a pátria. (N . d o T .)
64 PLATÃO
A Narrativa
ora chorando; um de nós, até, mais do — Creio que foram estes, mais ou
que qualquer outro: Apolodoro3. menos, todos os que então se encon
b Deves saber, com efeito, que homem é travam a seu lado.
ele e qual seja o seu feitio. EQUÉCRATES
EQUÉCRATES — Bem; e agora, dize, sobre que
— Sim, bem o sei. cousas falaram eles?
FÉDON FÉDON
— Nele, esse estado confuso de dor — Tomando as cousas desde o
e prazer atingia o auge; mas eu mesmo começo, vou esforçar-me por contá-las d
me encontrava presa duma agitação todas minuciosamente. Sabe, pois, que
semelhante, e, da mesma forma, os em nenhum dos dias anteriores havía-
outros.
4 D e todas estas pessoas, os únicos importan
EQUÉCRATES tes são Antístenes, Euclides e Aristipo, funda
— Mas os que então estiveram a dores de escolas filosóficas. Antístenes, na
seu lado, Fédon, quais foram? época em que fo i escrito o presente diálogo,
já' é grande adversário da m etafísica de Platão,
FÉDON mas .o autor o considera boa pessoa e lhe per
— Além do mencionado Apolo m ite, no drama, assistir à m orte de Sócrates,
em bora com o personagem muda. M as Aristi
doro estavam lá, de sua terra, Crito- po, o filó so fo dos gozadores, é unicam ente
bulo com seu pai, e também Hermóge- objeto de desprezo, e por isso Platão o afasta.
(N . d o T .)
nes, Epígenes, Ésquines, e Antístenes. 5 Egina: ilha perto de Atenas. Platão quer sig
Lá se encontravam ainda Ctesipo de nificar que estes hom ens fizeram tal viagem
para se recrearem, não se tratando de um a via
3 A p olod oro já é nosso conhecido do B a n q u e gem longa, necessária e intransferível; logo, é
te: não era o m ais inteligente, mas, por certo, que am bos não sentiam interesse pela sorte de
o m ais entusiasta <los discípulos de Sócrates. Sócrates nem por sua grandiosa filosofia.
( N . do T .) (N . do T .)
66 PLATÃO
mos deixado de encontrar-nos, eu e os os Onze 6 estão a tirar as correntes de
outros, junto a Sócrates, segundo era Sócrates e a comunicar-lhe que este
nosso hábito. Nosso local de encontro, será o seu dia derradeiro.” Depois
ao romper do dia, era o tribunal onde disso quase não demorou a voltar, e
se realizava o julgamento, pois ficava convidou-nos para entrar.
próximo à prisão. E assim todos os Entramos, pois, e encontramos junto
dias, a conversar, esperávamos que a a Sócrates, que acabava de ser desagri-
prisão fosse aberta. Ela não se abria lhoado, X antipa 7 (tu a conheces!), que
muito cedo; logo, porém, que era fran segurava o filho mais novo, sentada ao
lado do marido. Assim que ela nos viu,
queada, dirigíamo-nos até onde estava
choveram maldições e palavrórios
Sócrates, e muitas vezes, passávamos o
como só as mulheres sabem proferir:
dia todo em sua companhia. Naquele “Vê, Sócrates, esta é a última vez que
dia, como deixáramos ajustado, encon conversam contigo os teus amigos, e tu
tramo-nos ainda mais cedo que de cos com eles!” Sócrates lançou um olhar
tume, porque na véspera, ao sair da na direção de Críton: “Críton, disse,
prisão pelo entardecer, havíamos sabi faze com que a conduzam para casa!”
do que o navio sagrado retornara de E, enquanto era levada pela gente de
Delos. Por isso ficara assentado que Críton, ela se debatia e gritava.
nos reuniríamos o mais cedo possível
6 Os Onze: um grupo de onze hom ens esco
no lugar habitual. Ao chegarmos, o lhidos por votação cuidava em A tenas do cár
porteiro, vindo ao nosso encontro (era cere e das execuções. Cf. Arist., C onst. A te n .,
52, 1. (N . d o T .)
ele quem sempre nos àtendia), até 7 X antipa deixou a fam a .de ser um a senhora
pediu-nos que ficássemos por ali e algo violenta, que atorm entou a vida do m a
rido. Segundo X enofon te, era um a verdadeira
esperássemos, para entrar, que nos megera, m as enterneceu-se por ocasião da m or
houvesse chamado. “É, disse ele, que te de Sócrates. (N . d o T .)
O Prazer e a Dor
sião de encontrar esse homem, e, a jul — Dize-nos pois, Sócrates, por que
gar pela minha experiência, ele sem dú motivo se pode certamente negar que
vida seguirá de boa vontade o teu seja coisa permitida o suicídio? Eu
conselho! mesmo, com efeito (é o que nos
— Ora — tornou Sócrates —, será perguntavas há pouco), já ouvi Filolau
que Eveno não é filósofo? dizer, no tempo em que se encontrava
— Segundo penso, é — respondeu entre nós, e também a outros, que tal
Símias. coisa não se pode fazer. Mas ninguém
— Então não há de desejar coisa já foi capaz de ensinar-me qualquer
melhor, ele ou quem quer que dê à filo coisa de exato a esse respeito.
sofia a atenção que ela merece. Toda — Vamos — disse Sócrates — , 62 <,
via, é de esperar que Eveno não fará vamos examinar isso. É possível, tal
violência contra si mesmo, pois, segun vez, que eu te possa ensinar alguma
do dizem, isso não é permitido. coisa. É provável também que isso te
i Assim falando, desencolheu as per pareça maravilhoso e que te espantes
nas e, desde então, foi sentado dessa ao saber que, para todos os homens, há
forma que continuou a conversar. A uma absoluta necessidade de viver,
esta altura Cebes lhe fez a seguinte necessidade invariável mesmo para
pergunta: aqueles para os quais a morte seria
— Como podes dizer, Sócrates, que preferível à vida. Acharás espantoso
não é -permitido fazer violência contra ainda que não seja permitido àqueles,
si mesmo, e, por outro lado, que o filó para os quais a morte seja um bem
sofo não deseja nada melhor do que preferível à vida, o direito de procura
poder seguir aquele que morre? rem, por si, esse bem e que, para o
— Quê? Então, Cebes, não fostes obterem, necessitem recebê-lo de ou
instruídos a respeito deste gênero de trem.
questões, tu e Símias, que vivestes Cebes sorriu docemente:
tanto tempo em companhia de Filo- — Deus o sabe! — disse no modo
lau9? de falar de seu país 1°.
— Não, nada de claro, Sócrates. — Poder-se-ia, com efeito — vol- &
— Eu, também, o que digo é por veu Sócrates — encontrar nisso, pelo
ouvir dizer, e seguramente nada impe menos considerado sob essa forma,
de que se transmita o que dessa forma qualquer coisa de irracional. Todavia
me foi dado aprender. E, com efeito, não é assim, e, muito provavelmente,
talvez convenha particularmente aos aí não falta razão. A esse respeito há,
<• que devem transladar-se para o além a mesmo, uma fórmula que usam os
tarefa de empreender uma investigação adeptos dos Mistérios11: “É uma espé-
sobre essa viagem e de relatar, num 10 C ebes é de Tebas, e os tebanos têm a fam a de
mito, o que julgamos ser tal lugar. E serem pouco instruídos e falarem um grego algo
provinciano. Cebes, o aluno ardente de Sócra
por que não? Que poderíamos fazer tes, fala em geral a língua da gente letrada,
senão isso durante o tempo que nos se m as neste m om ento, apaixonado por um a inte
ressante questão filosófica, descura a lingua
para do por do sol? gem e usa o dialeto regional de seu país.
(N . d o T .)
9F ilolau: filósofo pitagórico. Platão o conhe 11 Platão refere-se aos m istérios órficos, que
cia pessoalm ente, e m uito o estim ou. (N . do T.) m encionara no M en ã o . (N . do T .)
FÉDON 69
A Purificação
— Assim pois, companheiro — não são por acaso aqueles que, no bom
continuou Sócrates — , se é verdade o sentido do termo, se dedicam à filoso
que acabamos de dizer, que imensa fia? O exercício próprio dos filósofos
esperança não existe para aquele que não é precisamente libertar a alma e
se encontra nesta altura de minha afastá-la do corpo?
ro ta ! Lá no além, se tal deve acontecer — Evidentemente.
em algum lugar, ele irá possuir com — Não seria, pois, como eu dizia
abundância tudo aquilo que exigiu de ao começar esta nossa conversa, uma
nós a realização de um imenso esforço, coisa ridícula por parte dum homem,
em nossa vida passada. E assim esta que durante toda a vida se houvesse
viagem, esta viagem que ora me foi esforçado por se aproximar o mais
prescrita, é acompanhada de uma feliz possível do estado em que ficamos
esperança; e o mesmo acontece a quem quando estamos mortos, irritar-se con
quer que possa afirmar que seu pensa tra a morte quando esta se lhe apresen
mento está pronto e o possa dizer tasse?
purificado.
— Absolutamente certo — disse — Por certo que seria ridículo!
Símias. — Assim, pois, Símias, em verdade
— Mas a purificação não é, de fato, estão se exercitando para morrer todos
justamente o que diz uma antiga aqueles que, no bom sentido da pala
tradição ?14 Não é apartar o mais pos vra, se dedicam à filosofia, e o próprio
sível a alma do corpo, habituá-la a evi pensamento de estar morto é para eles,
tá-lo, a concentrar-se sobre si mesma menos que para qualquer outra pessoa,
por um refluxo vindo de todos os pon um motivo de terrores! Eis como deve
tos do corpo, a viver tanto quanto mos julgá-los. Não seria o supra-sumo
puder, seja nas circunstâncias atuais, da contradição que eles, por uma parte
seja nas que se lhes seguirão, isolada e sentindo-se de todos os modos mistu
por si mesma, inteiramente desligada rados com o corpo, e por outra dese
do corpo e como se houvesse desatado jando que sua alma existisse em si
os laços que a ele a prendiam? mesma e por si mesma, se tomassem
— É exatamente isso. de pânico e de irritação quando sobre
— Ter uma alma desligada e posta viesse a realização de seus desejos?
à parte do corpo, não é esse o sentido Sim, não seria uma contradição se não
exato da palavra “morte” ? se encaminhassem com alegria para o
— Ê exatamente esse o sentido. além onde, uma vez chegados, terão a
— Sim. E os que mais desejam essa esperança de encontrar aquilo por que
separação* os únicos que a desejam, em toda a sua vida se mostraram apai
14 Esta tradição é do O rfism o. V eja Çhantepie xonados: a sabedoria, que era o seu
de la Saussaye, H istó ria das R eligiões, Cap. amor; e também não seria contradi
X II. Cf. tam bém E. R ohde, op. cit., assim com o
S. Reinach, O rpheus; Zielinski, L a R elig io n
tório deixarem de sentir alegria ante a
d ans la G rèce A n tiq u e . (N . d o T .) esperança de serem libertados da com-
76 PLATÃO
panhia daquilo que os molestava? Mas coragem também convém ou não con
então! Os amantes, as mulheres, os fi vém, no seu mais alto grau, àqueles em
lhos não foram capazes, quando mor quem se encontram, pelo contrário, as
tos, de inspirar a muitos o desejo de ir disposições de que eu falava?
voluntariamente para as regiões do — Sem nenhuma dúvida!
Hades, na esperança de lá os encontra — Não acontece a mesma cousa
rem, de rever o objeto de seus amores e com a temperança, e até com a tempe
permanecer ao seu lado; ao passo que rança no sentido comum da palavra?
um homem que fosse apaixonado pela Porventura a ausência de veemência
sabedoria, que tivesse ardorosamente nos desejos e uma atitude desdenhosa e
abraçado a esperança de em nenhuma prudente não são próprias unicamente
parte senão no Hades encontrá-la sob daqueles que» no mais alto grau, sen
uma forma digna de ser desejada, tem desprezo pelo corpo e vivem na
então esse homem haveria de irritar-se filosofia?
no momento de morrer, então esse — Necessariamente.
homem não se rejubilaria de poder — Aliás, basta que tenhas a bonda
dirigir-se para aquelas regiões? Eis o de de refletir um momento apenas
que deve pensar, meus companheiros, sobre a coragem e a temperança do
um filósofo, se realmente é filósofo; resto dos homens, para que percebas
pois nele há de existir a forte convic toda a sua estranheza.
ção de que em parte alguma, a não ser — Que queres dizer, Sócrates?
num outro mundo, poderá encontrar a — Não ignoras que a morte é
pura sabedoria. Ora, se assim é, não considerada por todo o resto dos ho
será o cúmulo da extravagância, como mens como pertencendo ao número
disse há pouco, que exista o temor da dos grandes males.
morte no espírito de um tal homem? — A h ! bem o sei.
— Seguramente que seria o cúmu — O temor de mates maiores não
lo, por Zeus! leva, por acaso, os que dentre eles têm
— Dize-me, pois — continuou Só mais coragem a enfrentarem a morte,
crates —, não tiveste oportunidade de quando se apresenta a ocasião de
observar várias vezes que quando enfrentá-la?
alguém se irrita no momento de mor — Conjo n ã o !
rer, não é a sabedoria que alguém — Assim, pois, é por serem medro
ama 1 5, mas sim o corpo? E que esse sos e por temerem que são corajosos
alguém talvez ame ainda as riquezas, todos os homens, com exceção dos
ou as honrarias, quer uma, quer outra filósofos. E, contudo, é absurdo pensar
dessas coisas, ou quem sabe senão as que o temor e a covardia dêem
duas juntas? coragem!
— Realmente. É como dizes. — Tens toda a razão!
— Assim, Símias, o que chamamos — Vejamos agora os que dentre
15 P latão serve-se de um jogo de palavras: eles são considerados prudentes. Não é
p h iló so p h o s (o que am a a sab ed oria), philosô- uma espécie de desregramento, o prin
m a to s (o que am a o co rp o ), p h ilo k h ré m a to s
(o que am a as riquezas) e p h iló tim o s (o que cípio de sua temperança? Podemos
am a as honrarias). (N . do E .) afirmar enfaticamente que é impossível
FÉDON 77
serem as cousas assim, mas é um fato, contrário, a verdade nada mais seja do
contudo, que eles se encontram em que uma certa purificação de todas
situação análoga, na sua ridícula tem essas paixões e seja a temperança, a
perança! Porque é pelo fato de teme justiça, a coragem; e o próprio pensa- c
rem ser privados de outros prazeres mento outra coisa não seja do que um
que cobiçam que se abstêm em face de meio de purificação. É possível que
alguns — porque, afinal, há muitos ou aqueles mesmos a quem devemos a
tros que os dominam. Parece errôneo instituição das iniciações não deixem
69a chamar de desregramento a uma certa de ter o seu mérito, e que a verdade já
continência em face dos prazeres, e de há muito tempo se encontre oculta
todavia é certo que, se esses homens sob aquela linguagem misteriosa. Todo
suportam o jugo de certos prazeres, é aquele que atinja o Hades como profa
porque dessa forma conseguem domi no e sem ter sido iniciado terá como
nar alguns outros. Ora, isto concorda lugar de destinação o Lodaçal, en
com o que acabamos de dizer há quanto aquele que houver sido purifi
pouco. De qualquer modo, é num cado e iniciado morará,-uma vez lá
desregramento que está o princípio de chegado, com os Deuses. É que, como
sua temperança! vês, segundo a expressão dos iniciados
— Verossimilmente, com efeito. nos mistérios: “numerosos são os por
— Na verdade, excelente Símias, tadores de tirso, mas poucos os Bacan
talvez não seja em face da virtude um tes 16”. Ora, a meu ver, estes últimos
procedimento correto trocar assim pra não são outros senão os de quem a
zeres por prazeres, sofrimentos por filosofia, no sentido correto do termo,
sofrimentos, um receio por um receio, constitui a ocupação. E quanto, a mim,
o maior pelo menor, tal como se se tra durante toda a vida e pelo menos na d
tasse duma simples troca de moedas. medida do possível, nada deixei de
Talvez, ao contrário, exista aqui ape fazer para pertencer ao número deles;
nas uma moeda de real valor e em nisso, pelo contrário, pus sem reservas
troca da qual tudo o mais deva ser ofe todos os meus esforços. Entretanto, se
recido: a sabedoria! Sim, talvez seja tudo o que fiz estava certo, se meus
t esse o preço que valem e com que se esforços obtiveram algum êxito, é
cpmpram e se vendem legitimamente coisa que espero saber com certeza
todas essas coisas — coragem, tempe dentro em pouco, no além, se Deus
rança, justiça — a verdadeira virtude, quiser: tal é, pelo menos, minha opi
em suma, acompanhada de sabedoria. nião.
É indiferente que a elas se acrescentem “Aqui está, Símias e Cebes, minha
ou se tirem prazeres, temores e tudo o defesa; são estas as razões pelas quais
mais que há de semelhante! Que tudo vos deixo, tanto a vós como a meus
isso seja, doutra parte, isolado da sabe donos daqui, sem sentir dor nem cóle
doria e convertido em objeto de trocas ra, pois que — disso estou convencido
recíproc&s, talvez não passe de aluci !6 A lusão aos m istérios eiji que havia cerim ô
nação uma tal virtude: virtude real nias de purificação e graus de consagração: o
grau de Bacante é o superior, enquanto que os
mente servil, onde não há nada de são portadores de tirso constituem o grau inferior.
nem de verdadeiro! Talvez, muito ao (N . do T .)
78 PLATÃO
— no outro mundo irei encontrar, não peito dessas coisas. Se, pois, diante de
menos do que aqui, outros bons donos vós fui em minha defesa mais persua
como outros bons companheiros. O sivo do que diante dos juizes de Ate
vulgo, na verdade, é incrédulo a res nas, bem haja!”
A Sobrevivência da Alma
70 a
Os contrários
inversamente, vai do segundo para o enfim, para estes dois termos, as gera
primeiro? Observemos, com efeito, ções são, uma, “adormecer”, outra,
uma coisa maior e uma coisa menor: “acordar” . Achas que isto basta, ou
não há entre as duas crescimento e não?
decrescimento, o que permite afirmar, — Certo que b asta!
de uma, que ela cresce, e, da outra, que — Cabe-te agora a vez de dizer
descresce? outro tanto a respeito da vida e da
— Há. morte. Não dirás, de início, que
— E a decomposição e a composi “viver” tem por contrário “estar
ção, o resfriamento e o aquecimento, e morto” ?
todas as oposições semelhantes, ainda — É o que eu diria.
que às vezes não possuam nomes apro — E, em seguida, que esses estados
priados em nossa língua, não haveriam se engendram mutuamente?
de comportar em todos os casos essa — Diria.
mesma necessidade, tanto de engen- — Que é, por conseguinte, o que
drar-se mutuamente como de admitir provém do que está vivo?
em cada termo uma geração dirigida — O que está morto.
para o outro? — E do que está morto, que é que
— Sim, perfeitamente. provém?
— Por conseguinte, que deveremos — Impossível — disse Cebes —
dizer? — continuou Sócrates. — não admitir que é o que está vivo.
Acaso “viver” não possui um contrá — É, pois, de coisas mortas que
rio, assim como “estar acordado” tem provêm, Cebes, as que têm vida, e,
por contrário “estar dormindo” ? com elas, os seres vivos?
— E absolutamente necessário que — É claro.
tenha. — Quer dizer, então, que nossas
— Qual é? almas existem no Hades 19.
— “Estar morto”. , — Parece mui verossímil.
— Não é verdade que esses estados — Das duas gerações, enfim, que
se engendram um ao outro, já que são aqui temos, não há pelo menos uma
contrários, e também que a geração que não nos deixe dúvida sobre sua
entre um e outro é dupla, já que são realidade? Por que o termo “morrer”,
dois? penso, está fora de dúvida! Não está?
— Assim é ! — Sim, é absolutamente certo.
— Ora pois — continuou Sócrates — Que faremos, então? Não o
— vou mencionar-te um dos dois compensaremos pela geração contrá
pares de contrários, de que há pouco ria? Porque, se não fosse assim, a
falei, e sua dupla geração; e tu depois Natureza seria coxa! Ou, pelo contrá
me indicarás o outro par. Primeiro falo rio, será preciso supor uma geração
eu: dum lado, direi “estar dormindo”, contrária ao “morrer” ?
do outro, “estar acordado” ; em segui — Isso é, segundo penso, absoluta
da, é de “estar dormindo” que provém mente necessário.
“estar acordado”, e de “estar acorda 19 H ades. Para Platão este nom e tem aqui a
significação de Invisível, o país do Invisível, o
do” que provém “estar dormindo” ; reino das sombras. (N . d o T .)
FÉDON 81
reais: o reviver, o fato de que os vivos menos dessa maneira, não se consiga
provêm dos mortos, de que as almas convencer-te! Vê se, encarando a ques
dos mortos têm existência, e — insisto tão de outra forma, poderás comparti
í neste ponto — de que a sorte das lhar de minha opinião. Porque, o que
almas boas é melhor, e pior a das parece difícil de ser compreendido é
almas ruins! precisamente de que maneira o que
— Em verdade, Sócrates — tomou chamamos aprender seja apenas recor
então Cebes — é precisamente esse dar.
também o sentido daquele famoso — Incredulidade a respeito disso?
argumento que (suposto seja verda — volveu Símias; — não, não a
deiro) tens o hábito de citar amiúde. tenho! Sinto apenas necessidade de ser
Aprender, diz ele, não é outra coisa posto nesse estado de que fala o argu
senão recordar22. Se esse argumento é mento, e de que me façam recordar.
de fato verdadeiro, não há dúvida que, Na verdade, Cebes contribuiu um
numa época anterior, tenhamos apren pouco, com a exposição que fez, para
dido aquilo de que no presente nos despertar minhas lembranças e con-
73• recordamos. Ora, tal não poderia vencer-me. Mas nem por isso, Sócra
acontecer se nossa alma não existisse tes, deixarei de ouvir, com prazer, a
em algum lugar antes de assumir, pela tua explicação.
geração, a forma humana. Por conse ‘— Aqui a tens: estamos sem dúvi- c
guinte, ainda por esta razão é veros da de acordo em que para haver recor
símil que a alma seja imortal. dação de alguma coisa num momento
— Mas, Cebes — atalhou por sua qualquer é preciso ter sabido antes
vez Símias — de que modo se poderá essa coisa?
provar isso? Faze com que me lembre, — Sim.
pois, de momento, não consigo recor — E, por conseguinte, sobre o
dar-me muito bem desse argumento. ponto que segue estamos também de
— Temos disso — volveu. Cebes acordo: que o saber, se se vem a pro
— uma prova magnífica: interroga-se duzir em certas circunstâncias, é uma
um homem. Se as perguntas são bem rememoração? Que circunstâncias
conduzidas, por si mesmo ele dirá, de sejam essas, vou dizer-te: se vemos ou
modo exato, como as coisas realmente ouvimos alguma coisa, ou se experi
são. No entanto, esse homem seria mentamos não importa que outra espé
incapaz de assim fazer se sobre .essas cie de sensação, não é somente a coisa
coisas não possuísse um conhecimento em questão que conhecemos, mas
e um reto juízo! Passa-se depois às temos também a imagem de uma outra
figuras geométricas e a outros meios coisa, que não é objeto do mesmo
b do mesmo gênero, e assim se obtém, saber, mas de um outro. Então, dize-
com toda a certeza possível, que as me, não temos razão em pretender que
coisas de fato assim se passam. aí houve uma recordação, e uma recor
— Entretanto — disse Sócrates — dação daquilo mesmo de que tivemos a
é muito provável, Símias, que, pelo imagem?
— Como assim? d
22 Cf. M en ã o , 80 (N. d oT .) — Tomemos alguns exemplos. São
FÉDON 83
coisas muito diferentes, penso, conhe sua semelhança com aquilo de que nos
cer um homem e conhecer uma lira? recordamos?
— Efetivamente. — Sim, isso é necessário.
— Ignoras tu que os amantes, à — Examine agora — tornou Só
vista duma lira, duma vestimenta ou de crates — se não é deste modo que isso
qualquer outro objeto de que seus ama se passa: afirmamos sem dúvida que
dos habitualmente se servem, rememo há um igual em si; não me refiro à
ram a própria imagem do amado a igualdade entre um pedaço de pau e
quem esse objeto pertenceu? Ora, aqui outro pedaço de pau, entre uma pedra
temos o que vem a ser uma recorda e outra pedra, nem a nada, enfim, do
ção. Da mesma forma, também acon mesmo gênero; mas a alguma coisa
tece que, se alguém vê Símias, muitas que, comparada a tudo isso, disso,
vezes isso lhe faz recordar Cebes. E porém se distingue: — o Igual em si
poder-se-iam encontrar milhares de mesmo. Deveremos afirmar que ele
exemplos análogos. existe, ou negar?
— Milhares, seguramente, por — Seguramente que devemos afir
Zeus! — assentiu Símias. má-lo, por Zeus! — disse Cebes. —
— Assim, pois, um caso desse gê Muito bem !
nero constitui uma recordação, princi — E sabemos também o que ele é
palmente quando se trata de coisas que em si mesmo?
o tempo ou a distração já nos tinham — Também.
feito esquecer, não é verdade? — E onde obtemos o conhecimento
— Absolutamente certo. que dele temos? Acaso não foi dessas
— Mas responde-me — continuou coisas de que falamos há pouco?
Sócrates: — ao ver o desenho dum Acaso não foram esses pedaços de
cavalo, o desenho de uma lira, pode-se pau, essas pedras, ou outras coisas
recordar um homem? Ao ver um retra semelhantes, cuja igualdade, percebida
to de Símias, recordar-se de Cebes? por nós, nos fez pensar nesse igual que
— Certo que pode. entretanto é distinto delas? Ou dirás
—Ao ver um retrato de Símias, não que ao teu parecer ele não se distingue
é fácil recordar-se do próprio Símias? delas? Pois bem; examina outra vez a
— Seguramente que sim ! questão, mas sob este outro aspecto:
— Assim — não é verdade? — o não acontece que pedaços de pau ou
ponto de partida da recordação em pedras, sem se modificarem, se apre
todos esses casos é, algumas vezes, um sentem a nós ora como iguais, ora
semelhante, outras vezes também um como desiguais?
dessemelhante? — Acontece, realmente.
— É verdade. — Mas então? O Igual em si acaso
— Mas, considerando o caso em te pareceu em alguma ocasião desi
que o semçlhante nos sirva de ponto de gual, isto é, a igualdade uma desigual
partida para uma recordação qualquer, dade?
não somos forçosamente levados a — Jamais, Sócrates!
reflexões como esta: falta ou não algu — Logo, a igualdade dessas coisas
ma coisa ao objeto considerado, em não é o mesmo que o Igual em si.
84 PLATÃO
— Mas responde, eis aqui uma mesmo em que adquirimos tais conhe
escolha que estás em condições de cimentos; pois essa é a ocasião que nos
fazer, dizendo-me a seu respeito qual é resta.
a tua opinião: um homem que sabe é — É verdade, meu amigo; mas
capaz, ou não; de dar razões daquilo então, em que outra ocasião nós os
que sabe? perdemos? É certo que não dispú
— Necessariamente, Sócrates! nhamos deles quando nascemos, e a
— Crês, além disso, que toda a este respeito estávamos de acordo faz
gente seja capaz de explicar o que são pouco. Assim, ou nós os perdemos no
os seres de que há pouco nos ocupáva momento mesmo em que os adquiri
mos? mos; ou acaso podes alegar algum
— A h ! Bem o desejaria eu — res outro momento?
pondeu Símias. — Mas receio, pelo — Impossível, Sócrates! A verdade
contrário, que amanhã não haja mais é que, sem o perceber, falei leviana
um só homem no mundo que esteja em mente.
condições de sair-se dignamente dessa — Em conseqüência, Símias, se
tarefa.2 4 existe, como incessantemente o temos
— Daí resulta pelo menos, Símias, repetido, um Belo, um Bom, e tudo o
que, no teu entender, o conhecimento mais que tem a mesma espécie de reali
das idéias não pertence a todo o dade; se é a essa realidade que relacio
mundo? namos tudo o que nos provém dos sen
— Absolutamente não ! tidos, porque descobrimos que ela já
— Vale então dizer que os homens existia, e que era nossa; se, enfim, à
se recordam daquilo que aprenderam realidade em questão comparamos
num tempo passado? esses fenômenos — então, em virtude
— Necessariamente. da mesma necessidade que fundamenta
— E que tempo foi esse em que a existência de tudo isso, podemos
nossas almas adquiriram saber acerca concluir que nossa alma existia já
desses seres? Seguramente, não havia antes do nascimento. Suponhamos, ao
de ser a datar de nosso nascimento contrário, que tudo isso não exista.
humano? Não seria, então, pura perda o que esti
vemos a demonstrar? Não é desta
— Seguramente que não !
forma que se apresenta a situação?
— Seria pois, anteriormente?
— Sim. Não há acaso uma igual necessidade
de existência, tanto para esse mundo
— As almas, Símias, existiam, por
ideal, como também para nossas
conseguinte, antes de sua existência
almas, mesmo antes de termos nasci
numa forma humana, separadas dos
corpos e dotadas de pensamento? do, e a não-existência dó primeiro
— A menos, Sócrates, que o ins termo não implica a não-existência do
tante de nosso nascimento seja aquele segundo?
— Não há quem sinta, Sócrates,
24 G lorificação um tanto exagerada de Sócra mais do que eu — disse Símias — que
tes: amanhã Sócrates estará m orto, e após sua
morte não se há de encontrar m ais um bom
a necessidade é idêntica em ambos os
filó so fo . (N . do T .) casos! Que bela base para uma prova,
FÉDON 87
morte o mesmo medo que lhe infun — Ah, é bom ouvir isto! — disse
dem as assombrações. Cebes.
— Mas é preciso então — replicou — Não é uma questão, mais ou
Sócrates — que lhe façam exorcismos menos como esta, a que temos de
todos os dias, até que as encantações o propor-nos: quais são as coisas que
tenham libertado disso uma vez por são suscetíveis de decomposição? A
todas !2 6 propósito de que espécie de coisas
— Mas, Sócrates, onde poderemos devemos temer esse estado, e-para que
encontrar contra esse gênero de terro espécie de seres isso não acontece? De
res um bom exorcista, uma vez que pois disso, teremos ainda de examinar
estás prestes a deixar-nos? qual dos dois é o caso da alma, para
— A Grécia, Cebes, é bem grande finalmente, conforme o resultado que
— respondeu Sócrates — e nela não obtivermos, haurir daí confiança ou
faltarão homens capazes! E, além temor com respeito à nossa alma.
— É verdade.
dela, quantas nações bárbaras exis
— Não é, pois, às coisas compostas
tem !27 Dirigi vossa busca por entre
ou àquelas cuja natureza é composta,
todos esses homens; e na procura de
que cabe corresponder precisamente a
um tal exorcista não poupeis trabalhos
composição? Mas, se acontece haver
nem bens, repetindo convosco, a cada
momento, que nada há em que possais alguma coisa não-composta, não é só a
ela que convém, mais do que a qual
com mais proveito gastar a vossa for
quer outra coisa, o escapar a esse esta
tuna! Mas, antes disso, é necessário
do de decomposição?29
que procureis entre vós mesmos, pois — Sim — disse Cebes — é o que
talvez vos seja muito difícil encontrar penso; assim deve ser.
uma pessoa que esteja em melhores — Dize-me então: os seres que
condições do que vós para realizar sempre se conservam imutáveis e sem
essa tarefa !28 pre se comportam do mesmo modo,
— Pois bem, assim faremos! — não é altamente verossímil que sejam
disse Cebes. — Agora voltemos à esses precisamente os seres que não se
investigação, no ponto em que a deixa decompõem? Ao contrário, o que ja
mos, a menos que isso te cause mais é o mesmo, o que ora se com
aborrecimento. porta de um modo, ora de outro, é ou
— Muito ao contrário, isso agra- não é isso o que chamamos composto?
da-me muito! Por que havia de ser de — Segundo penso, é.
outro modo? — Passemos, agora, àquilo para
onde nos havia encaminhado a argu
26 A lusão aos costum es populares, que acredi mentação precedente! Essa essência,
tavam na possibilidade de expulsar fantasm as
e assom brações m ediante a recitação cantada
de cuja existência falamos em nossas
de certas fórm ulas m ágicas. (N . d o T .) interrogações e em nossas respostas,
27 N ações bárbaras quer dizer nações estran
geiras, e não nações incultas; Platão não igno 29 Opinião dos filó so fo s A naxágoras e Em pé-
rava que os egípcios possuíam doutrinas m uito docles; o transform ar-se resulta da com posi
importantes acerca da ciência. (N . d o T .) ção de certas substâncias simples; o desapare
28 D e fato foram os discípulos de Sócrates, cer nada m ais é do que a decom posição ou
que constituíram a m ais rica sem enteira de desagregação destas substâncias anteriorm ente
doutrinas e escolas da antiguidade. (N . d o T .) unidas num corpo com posto. (N . d o T .)
FÉDON 89
— E por que não, com efeito? lugar, um lugar que lhe é semelhante,
— Mas a esta altura podes fazer a lugar nobre, lugar puro, lugar invisível,
seguinte reflexão: depois da morte do o verdadeiro país de Hades, para cha
c- homem, o que nele há de visível, seu má-lo por seu verdadeiro nome30,
corpo, a parte que continua visível, ou, perto do Deus bom e sábio, lá para
por outra, o que chamamos cadáver, a onde minha alma deverá encaminhar-
isto é que convém dissolver-se, desa se dentro em breve, se Deus quiser;
gregar-se, dissipar-se em fumo, e entre então há de ser essa alma, digo, cujos
tanto nada de tudo isso lhe acontece caracteres e constituição natural aca
imediatamente. Bem ao contrário, ele bamos de ver, então há de ser ela que,
resiste durante um tempo relativa tão depressa se separe do corpo, se
mente longo. Sobretudo para um corpo dispersará e aniquilará, assim como
que, ao morrer, está cheio de vida e em pretende o comum dos homens? Não, - *
todo o seu viço, tal duração é de fato muito ao contrário, meu caro Cebes,
muito grande. Ademais, é fato que, se meu caro Símias; muito ao contrário,
for reduzido e embalsamado como as vede o que acontece.
múmias do Egito, sua conservação
será quase perfeita durante uma dura 30 A lusão à filosofia contem porânea de Platão:
os gregos derivavam a palavra isrçç
ção, por assim dizer, incalculável. (H ad es) de a e i&fjc encontra
d Além disso há, mesmo num corpo em ram nesta palavra a significação de invisível,
putrefação, certas partes, como os explicando sim plesm ente que Hades, c o m o rei
dos m ortos, m ora com as alm as destes debaixo
ossos, os tendões e outras do mesmo da terra, e é por isso invisível aos hom ens e
gênero, que são, pode-se dizer, imor aos outros deuses. M as P latão m odifica a acep
ção: H ades é o “invisível verdadeiro”, isto é,
tais. Não é verdade? a substância invariável, eterna e imperceptível
— É. aos sentidos, m as ‘captável pelo espírito, que
depois da m orte se aparta dos obstáculos da
— Mas então a alma, aquilo que ém atéria (corp o) e vê diretam ente o Hades,
invisível e que se dirige para um outro isto é, o ser eterno. (N . do T .)
“Suponhamos que seja pura a alma tado que ela tendeu. O que equivale
que se separa do corpo: deste ela nada exatamente a dizer que ela se ocupa,
leva consigo, pela simples razão que, no bom sentido, com a filosofia, e que,
longe de ter mantido com ele durante a de fato, sem dificuldade se prepara »«
vida um contato voluntário, ela conse para morrer. Poder-se-á dizer, pois, de
guiu, evitando-o, concentrar-se em si uma tal conduta, que ela não é um
mesma e sobre si mesma, e também exercício para a morte?”
pela razão de que foi para esse resul — Sim, realmente é isso.
92 PLATÃO
A função da filosofia
“Pois bem, aí estão, Símias, meu que lhes confere o infortúnio, não é
amigo, e tu, Cebes, os motivos pelos capaz de atemorizá-los, como faz aos
quais os que, no exato sentido da pala que amam o poder e as honras. Por
vra, se ocupam com a filosofia, perma isso, eles permanecem afastados dessa
necendo afastados de todos os desejos espécie de desejos.”
corporais sem exceção, mantendo uma — Aliás, o contrário de tudo isso,
atitude firme e não se entregando às Sócrates, é que lhes ficaria mal! —
suas solicitações. A perda de seu patri acrescenta Cebes.
mônio, a • pobreza não lhes infunde — De fato, por Zeus! Eis aí por
medo, como à multidão dos amigos que motivo se aparta de todas essas
das riquezas; e, da mesma forma, a pessoas, Cebes, o homem que tem al
existência sem honrarias e sem glória, guma preocupação com sua alma e
94 PLATÃO
cuja vida não é gasta em mimar o Que não creiam enfim senao no pró
corpo. Seu caminho não se confunde prio testemunho desde que tenham
com o daqueles que não sabem para examinado bem o que cada coisa é na
onde vão. Acreditando que não deve sua essência e que se persuadam de
agir em sentido contrário a filosofia, que as coisas que são examinadas por b
nem ao que ela proporciona para liber- meio de um intermediário qualquer
tar-nos e purificar-nos, esse homem nada possuem de verdadeiro, e perten
volta-se para o lado dela e segue-a na cem ao gênero do sensível e do visível
rota que ela lhe aponta. enquanto que o que elas vêem pelos
— De que modo, Sócrates? seus próprios meios é inteligível e, ao
— Vou dizer-te. É uma coisa bem mesmo tempo, invisível!
conhecida dos amigos do saber, que “Contra essa libertação a alma do
sua alma, quando foi tomada sob os verdadeiro filósofo persuade-se de que
cuidados da filosofia, se encontrava não se deve opor, e por isso se afasta
completamente acorrentada a um tanto quanto possível dos prazeres,
corpo e como que colada a ele; que o assim como dos desejos, dos incômo
corpo constituía para a alma uma dos e dos terrores. Ela sabe com efeito
espécie de prisão, através da qual ela que, quando sentimos com intensidade
devia forçosamente encarar as realida um prazer, um incômodo, um terror ou
des, ao invés de fazê-lo por seus pró um desejo, por maior que seja o mal c
prios meios e através de si mesma; que, que possamos sofrer nesse momento,
enfim, ela estava submersa numa igno entre todos os que se podem imaginar
rância absoluta. E o que é maravilhoso — cair doente, por exemplo, ou arrui
nesta prisão, a filosofia bem o perce nar-se por causa de suas paixões — ela
beu, é que ela é obra do desejo, e quem sabe que não há nenhum desses males
»3». concorre para apertar ainda mais as que não seja ultrapassado por aquele
suas cadeias é a própria pessoa! que é o mal supremo; é deste mal que
Assim, digo, o que os amigos do saber sofremos, e não o notamos!”
não ignoram é que, uma vez tomadas — E que mal é esse, Sócrates?
sob seus cuidados as almas cujas con — É que em toda alma humana,
dições são estas, a filosofia entra com forçosamente, a intensidade do prazer
doçura a explicar-lhes as suas razões, a ou do sofrimento, a propósito disto ou
libertá-las, mostrando-lhes para isso de daquilo, se faz acompanhar da crença
quantas ilusões está inçado o estudo de que o objeto dessa emoção é tudo o
que é feito por intermédio dos olhos, que há de mais real e verdadeiro, em
tanto como o que se faz pelo ouvido e bora tal não aconteça. Esse é o efeito
pelos outros sentidos; persuadindo-as de todas as coisas visíveis, não é?
ainda a que se livrem deles, a que evi — Efetivamente.
tem deles servir-se, pelo menos quando — E não é em tais afetos que no 'J
não houver imperiosa necessidade; mais alto grau a alma fica sujeita às
recomendo-lhes que se concentrem e se cadeias do corpo?
voltem para si, não confiando em nada — De que modo, dize?
mais do que em si mesmas, qualquer — Assim: todo prazer e todo sofri
que seja o objeto de seu pensamento. mento possuem uma espécie de cravo
FÉDON 95
contrário, é isto mesmo o que vos nenhuma ave canta quando sente fome
embaraça, nada de hesitações! Falai, ou frio, ou quando sente dor; não, nem
dizei, o que vos parecer necessário e, mesmo o rouxinol, a andorinha e a
por vossa vez, tomai-me por auxiliar, poupa, que são precisamente, segundo
se acreditais que vos será mais fácil a tradição, os pássaros cujo canto é
sair das dificuldades com o meu um lamento dolorido. Para mim, não é
auxílio! a dor que faz com que eles cantem,
— Pois bem, Sócrates — responcomo não é ela que faz cantar os cis
deu Símias — vou dizer-te a verdade; nes32. Estes, muito ao contrário, pro
já faz um bom tempo que, sentindo vavelmente porque são as aves de
certa dificuldade a propósito do teu Apoio, possuem um dom divinatório, e
argumento, cada um de nós está procu é a presciência dos bens existentes no
rando fazer com que o outro se decida Hades que os faz, no dia de sua morte,
e te interrogue; temos, com efeito, cantar de modo tão sublime, como ja
muito desejo de ouvir-te falar, mas mais o fizeram no curso anterior de
receamos também causar-te incômodo sua existência. Ora, eu, quanto a mim,
e angústia, pois levamos em conta a penso ter a mesma missão que os cis
situação penosa em que te encontras! nes; creio que estou consagrado ao
Ouvindo isso, Sócrates teve um leve mesmo Deus, que os cisnes não me
sorriso: — Misericórdia, Símias! superam na faculdade divinatória que
Como me seria difícil e incômodo con recebi de nosso Soberano33, e que, do
vencer a outros homens de que não mesmo modo, não sinto mais tristeza
considero penosa a situação em que do que ele ao separar-me desta vida.
atualmente me encontro, uma vez que Essas são as cousas que deveis ter em
não consigo convencer disso nem a vós mente quando quiserdes falar e propor
próprios, e que, além disso, tendes a as questões que desejardes, tanto quan
desconfiança de que nesta ocasião eu to o permitirem os Onze3 4 em nome
esteja possuído de uma enorme triste do povo de Atenas.
za, como nunca senti em minha vida — Alegra-me, Sócrates, esse teu
passada! Isso, possivelmente, provém modo de falar! — disse Símias. —
de me julgardes menos bem dotado do
Vou, portanto, expor-te o que está me
que os cisnes para a adivinhação.
embaraçando, e Cebes, depois, dirá
Realmente, quando eles sentem aproxi-
por que motivo não aceita o que até
mar-se a hora da morte, o canto que
agora foi dito. Meu ponto de vista, Só
antes cantavam se torna mais fre
crates, a respeito de questões deste gê-
qüente e mais belo do que nunca, pela
alegria que sentem ao ver aproximar-se 32 H á aqui alusão a um a antiga lenda da Á tica,
o momento em que irão para junto do segundo a qual a andorinha e o rouxinol são
Procne e F ilom ela, filhas do rei Pandião, de
Deus a que servem. Mas os homens, A tenas. (N . d o T .)
com o pavor que têm da morte, calu 33 O cisne é a ave consagrada a A p oio, deus
da adivinhação. Sócrates aqui se com para p oe
niam até os cisnes: estes estão, dizem, ticam ente ao cisne e considera com o seu derra
a lamentar a sua morte, e a dor é que deiro canto a doutrina sobre a im ortalidade da
alm a. (N . d o T .)
lhes inspira aquele canto supremo. No 34 Funcionários encarregados da execução dos
entanto, ninguém se lembra de que condenados e de fiscalizar a prisão. (N . d o T .)
FÉDON 97
logo destruída como as outras harmo não tenha sido (se pelo menos não é
nias, quer se realizem em sons, quer presunção afirmá-lo) demonstrado de
em outras formas de arte; ao passo que modo plenamente satisfatório. Mas,
o despojo corporal resiste ainda por pretender que depois de nossa morte a
muito tempo, até o dia em que o tenha alma continue a existir, eis uma coisa
i destruído o fogo ou a putrefação. Exa com que não estou de acordo. Por
mina, pois, Sócrates, o que poderíamos certo, a alma é uma entidade mais
objetar a essa teoria segundo a qual a vigorosa e durável que o corpo; e isso
alma, sendo a combinação dos elemen não concedo à objeção levantada por
tos de que é feito o corpo, deve ser des- Símias, pois minha convicção é a de
truídá em primeiro lugar quando so que, em todos os pontos, a superiori
brevêm aquilo a que chamamos morte. dade da alma é imensa. “Então por que
Sócrates teve aquele olhar pene motivo, dir-me-ão, permaneces ainda
trante que, em muitas circunstâncias, em dúvida? Não reconheces que, uma
lhe era habitual, e sorriu: — Há algu vez morto o homem, o que continua a
ma verdade, palavra!, no que Símias subsistir é precisamente o que há de
acaba de dizer! Com efeito, se há den mais frágil? E quanto ao que é mais
tre vós alguém que esteja menos atur durável não achas necessário que con
dido do que eu por suas palavras, por tinue a viver durante esse tempo?”
que não lhe responde? Pois é um temí Examina agora se minha linguagem
vel golpe que ele parece ter desfechado encerra alguma verdade, pois eu, natu
contra as minhas provas! Contudo, ralmente, assim como Símias, sinto
necessidade duma imagem para que
« segundo penso, antes de responder-lhe
me possa exprimir. Para mim, com
devemos primeiramente ouvir dos lá
efeito, seria isso o mesmo que dizer
bios de Cebes o que este por sua vez
alguém a respeito da morte dum velho
reprova no meu argumento. Assim
tecelão: “ O bom do velho tecelão não
teremos tempo para refletir sobre o que está morto; ele continua a viver em
devemos dizer. Depois disso, ouvidos qualquer parte, e, como prova, aqui
ambos, por-nos-emos acordes com está o vestuário que ele usava, e que ele
eles, se julgarmos que seu canto está próprio tecera, conservado em bom es
bem cantado; senão, será porque o tado e não destruído.” E a quem não
processo do argumento deve ser revisa concordasse, poderia fazer esta per
do. Pois bem, Cebes, avante! Fala, por gunta: “Qual dos dois, em seu gênero,
tua vez, sobre o que te preocupa. é mais durável: o homem ou a veste de
— Para mim — disse então Cebes que se serve e traz no corpo?” Então,
— é bem claro que o argumento ainda
baseado na resposta de que muito mais
se encontra na mesma situação e conti durável é o homem, imaginaria ter
nua a ser passível das mesmas obje- demonstrado que, com maior razão
s7« ções de há pouco. Que nossa alma ainda, o homem deve permanecer intei
realmente existiu antes de assumir a ro em alguma parte, pois o que é
forma que agora possui, isso não sou menos durável do que ele não foi
obrigado a admitir. Nada aí existe que destruído!
vá contra o meu modo de pensar e que “Contudo, segundo penso, as coisas
FÉDON 99
mim mesmo, disso. Penso, pois, caro dele, pois pensa que aquela nada mais
amigo, como um egoísta. Se é verdade é do que uma espécie de harmonia.
o que digo, então é bom estar conven Quanto a Cebes, concede, por seu
cido; se, pelo contrário, não há espe lado, que a alma dure mais do que o
rança- para quem morre, eu, pelo corpo, mas, segundo pensa, é bem difí
menos, não terei tornado meus últimos cil saber se a alma, depois de haver
instantes desagradáveis para meus gasto muitos corpos sucessivamente,
amigos, obrigando-os a suportar mi não se dissolve ao sair do último, e se a
nhas lamentações. De resto, não terei morte não consiste justamente nisto,
muito tempo para meditar nisso (o que na destruição da alma, pois que o
seria efetivamente desagradável). Mais corpo, esse, está continuamente des-
um pouco e logo tudo estará acabado. truindo-se. Não é isto, Símias e Cebes,
Assim, preparado com esse espírito, o que devemos examinar?
Símias e Cebes, entro na discussão. Ambos declararam que sim.
Vós, entretanto, se me acreditais, cui — Ora — tornou Sócrates — , não
dai menos de Sócrates que da verdade! aceitais o conjunto das afirmações que
Concordai comigo, se achardes que fizemos ou que apenas aceitais umas e
digo a verdade; se não, objetai-me a outras, não?
cada argumento, a fim de que — ilu — Umas sim, outras não — res
dindo a vós e a mim também, com meu ponderam os dois.
entusiasmo — eu não me vá daqui, — Que pensais a respeito da dou
como a abelha, deixando o ferrão ! 41 trina segundo a qual instruir-se é ape
“Então, avante! Antes de tudo, nas recordar e, que sendo assim, é
porém, fazei-me recordar bem o que necessário que nossa alma, antes de vir
dissestes, se notardes que não me encadear-se em nosso corpo, tenha vi
recordo. Para Símias, salvo erro meu, vido primeiramente noutro lugar?
o objeto de sua dúvida e dos seus — Quanto a mim — respondeu
temores é o de que a alma, sendo algo Cebes — estou perfeitamente persua
de mais belo e mais divino do que o dido disso, e que não há pensamento
corpo, venha a corromper-se antes ao qual eu mais ligado esteja.
4 1 A abelha, que deixa seu ferrão na ferida, — Eu também — ajuntou Símias
provoca dores. A ssim Sócrates, que faria m al e
causaria sofrim entos a seus discípulos se se
— ficaria muito admirado se viesse a
fosse, deixando-lhes erros. (N . d o T .) mudar de opinião a esse respeito.
104 PLATÃO
Resposta a Símias
“Suporta, coração! Infelicidades, já suma como uma coisa por demais divi
as suportaste bem piores!” 4 4 na para se comparar à harmonia?
— Crês que ele teria dito isso se — Por Zeus! é isso justamente o
houvesse considerado a alma como que penso, Sócrates.
simples harmonia, inteiramente sujeita — Logo, meu excelente amigo, não
às inclinações do corpo, e não como é coisa assisada considerar a alma
algo que rege e governa o corpo, em como uma simples harmonia; pois,
« O autor recorre aqui a H om ero, divino poeta, assim, não ficaríamos de acordo nem
porque este dístico se encaixa perfeitam ente na com Homero, divino poeta, nem co
tese que vem desenvolvendo no diálogo; m as em
outras obras P latão o censura, deixando de lhe nosco mesmos.
cham ar divino e sem reconhecê-lo com o autori
dade com a qual é conveniente “estarm os de
— É justamente isso — concedeu
acordo”. (N . d o T .) Símias.
Resposta a Cebes
Ora, o essencial do que queres saber é localizar-se num corpo humano marca
isto: desejas que se demonstre que o início de seu fim, e uma espécie de
c nossa alma é indestrutível e imortal; doença; por isso, é num estado de
sem o que, para o filósofo que está pró miséria que deve viver essa existência,
ximo de morrer, a confiança, a convic e, quando a termina por aquilo a que
ção de ir encontrar no além, depois da chamamos morte, deve ela ser des
morte, uma felicidade que jamais teria truída. É indiferente, como dizes, saber
alcançado se vivesse doutra forma, se ela se localiza em corpos uma só ou
essa confiança seria, pensas, desarra muitas vezes; cada um de nós tem
razão de recear por sua alma. Quem
zoada e tola. Mostrar que a alma é não tem certeza, nem sabe provar que
forte e semelhante à divindade, e que a alma é imortal, deve temer a morte,
existia antes de nos havermos tornado se não for tolo. É mais ou menos isto, t
homens, pode ser prova, como dizes, caro Cebes, o que dizes? Repito-o
não de que a alma é imortal, mas ape propositadamente, para que não olvi
nas de que ela dura muito, de que sua demos nada e para que acrescentes ou
existência anterior preencheu um tires alguma coisa, se quiseres.
tempo incalculável com uma multidão Então Cebes — Nada tenho, no
enorme de conhecimentos e de ações; o momento, que acrescentar, nem que
que, no entanto, não lhe confere imor- tirar. É aquilo justamente o que preten
d talidade, pois o próprio fato de vir do.
O Problema da Física
A esta altura fez Sócrates uma longa em minha mocidade senti-me apaixo
pausa, absorto em alguma reflexão. nado por esse gênero de estudos a que
Depois disse — Não é coisa sem dão o nome de “exame da natureza” ;
importância, Cebes, o que procuras. A parecia-me admirável, com efeito, co
causa da geração e da corrupção de nhecer as causas de tudo, saber por
todas as coisas, tal é a questão que que tudo vem à existência, por que pe
96« devemos examinar com cuidado. Se o rece e por que existe. Muitas vezes
desejares, poderei relatar-te detalhada detive-me seriamente a examinar ques- b
mente as minhas experiências a esse tões como esta: se, como alguns pre
respeito. E se vires que uma ou outra tendem, os seres vivos se originam de
coisa do que eu disser é útil aproveita- uma putrefação em que tomam parte o
a para reforçar tua tese. frio e o calor; se é o sangue que nos faz
— Sim — disse Cebes — é justa pensar, ou o ar, ou o fogo, ou quem
mente o que eu quero. sabe se nada disso, mas sim o próprio
— Escuta, então, o que vou contar: cérebro, que nos dá as sensações de
FÉDON 109
ouvir, ver e cheirar, das quais resulta é visto ao lado dum pequeno, ele é de
riam por sua vez a memória e a opi uma cabeça50 maior do que o peque- e
nião, ao passo que destas, quando no, e, da mesma forma, um cavalo é
adquirem estabilidade, nasceria o co maior do que outro. E o que é mais evi
nhecimento49. Examinei, inversa dente: o número “dez” me parecia
is mente, a maneira como tudo isso se maior do que o número “oito”, preci
corrompe, e, também, os fenômenos samente por causa do acréscimo de
que se passam na abóbada celeste e na “dois”, e o tamanho de dois côvados
terra. E acabei por me convencer de me parecia ser maior do que o de um
que em face dessas pesquisas eu era côvado por este ser a metade daquele.
duma inaptidão notável! Vou contar-te — E agora — perguntou Cebes —
uma ocorrência que bem esclarece qual é a tua opinião a esse respeito?
minha situação naquele tempo. Havia — Por Zeus, atualmente estou
coisas acerca das quais eu antes pos muito longe de saber a causa de qual- >7.
suía um conhecimento certo, ao menos quer dessas coisas! Não sei resolver
na minha opinião, e na dos outros. nem sequer se quando se adiciona uma
Pois bem, essa espécie de estudo che unidade a outra, a unidade à qual foi
gou a produzir em mim uma tal acrescentada a primeira torna-se duas,
cegueira que desaprendi até aquelas ou se é a acrescentada e a outra que
coisas que antes eu imaginava saber, assim se tomam duas pelo ato de adi
como, por exemplo, o conhecimento ção. Fico admirado! Quando as duas
que eu julgava ter das causas que unidades estavam separadas uma da
determinam o crescimento do homem! outra, cada uma era uma, e não havia
d Outrora eu acreditava, como é claro dois; logo, porém, que se aproximaram
para todos, que isso acontece em virtu uma da outra, esse encontro tornou-se
de do comer e do beber: adicionando, a causa da formação do dois. Também
pelos alimentos, carne a carne e ossos não entendo por que motivo, quando
aos ossos, e em geral substância seme alguém divide uma unidade, esse ato
lhante a substância semelhante, acon de divisão faz com esta coisa que era
tece que o volume, antes pequeno, uma se transforme pela separação em
aumenta, e assim, o homem pequeno se duas! Essa coisa que produz duas uni- <>
torna grande. Desse modo pensava eu dades é contrária à outra: antes, acres
naquela época. Não achas tu que isso centou-se uma coisa a outra — agora,
era razoável? afasta-se e separa-se uma de outra51.
— Pelo que me parece, sim — res Nem sequer sei por que um é um!
pondeu Cebes. Enfim, e para dizer tudo, não sei abso
— Mas repara no seguinte: naquele lutamente como qualquer coisa tem
tempo, eu também achava razoável origem, desaparece ou existe, segundo
pensar que quando um homem grande este procedimento metodológico. Esco
49 Platão, quer dizer aqui que em sua m oci
lhi então outro método, pois, de qual
dade se dedicou ao estudo de todas as teorias quer modo, este não me serve. Ora,
da filosofia naturalista pré-socrática. N ã o há
dúvida de que ele coloca nos lábios de Sócra 50 O tainanho da cabeça é usado aqui com o
tes a história de sua própria evolu ção intelec medida. (N . d o T .)
tual. Cf. Burnet, E a rly G reek P hilosophy. 51 Crítica aos filó so fo s eleáticos, que abusam
(N . d o T .) às vezes da dialética. (N . d o T .)
110 PLATÃO
certo dia ouvi alguém que lia um livro relativas como de suas revoluções e de
de Anaxágoras. Dizia este que “o espí outros movimentos que lhes são pró
rito é o ordenador e a causa de todas prios; Nunca supus que depois de ele
c as coisas”. Isso me causou alegria. haver dito que o Espírito os havia
Pareceu-me que havia, sob certo aspec ordenado, ele pudesse dar-me outra
to, vantagem em considerar o espírito causa além dessa que é a melhor e que b
como causa universal. Se assim é, pen é a que serve a cada uma em particular
sei eu, a inteligência ou espírito deve assim como ao conjunto.
ter ordenado tudo e tudo feito da me Grandes eram as minhas esperan
lhor forma. Desse modo, se alguém ças! Pus-me logo a ler, com muita
desejar encontrar a causa de cada atenção e entusiasmo os seus livros.
coisa, segundo a qual nasce, perece ou Lia o mais depressa que podia a fim de
existe, deve encontrar, a respeito, qual conhecer o que era o melhor e o pior.
é a melhor maneira seja de ela existir, Mas, meu grande amigo, bem depressa
seja de sofrer ou produzir qualquer essa maravilhosa esperança se afas
d ação. E pareceu-me ainda que a única tava de m im ! À medida que avançava
coisa que o homem deve procurar é e ia estudando mais e mais, notava que
aquilo que é melhor e mais perfeito, esse homem não fazia nenhum uso do
porque desde que ele tenha encontrado espírito nem lhe atribuía papel algum
isso, necessariamente terá encontrado como causa na ordem do universo, c
o que é o pior, visto que são objetos da indo procurar tal causalidade no éter,
mesma ciência. no ar, na água em muitas outras coi
Pensando desta forma, exultei acre sas absurdas! 52. Parecia-me que ele se
ditando haver encontrado em Anaxá portava como um homem que dissesse
goras o explicador da causa, inteligível que Sócrates faz tudo o que faz porque
para mim, de tudo que existe. Esperava age com seu espírito; mas que, em
que ele iria dizer-me, primeiro, se a seguida, ao tentar descobrir as causas
* terra é plana ou redonda, e, depois de o de tudo o que faço, dissesse que me
ter dito, que à explicação acrescentasse acho sentado aqui porque meu corpo é
a causa e a necessidade desse fato, formado de ossos e tendões, e os ossos
mostrando-me ainda assim como é ela
52 F o i discutido m uitas vezes o problem a de sa
a melhor. Esperava também que ele, ber se Platão tinha razão ao descrever histori
dizendo-me que a terra se encontra no cam ente, desta form a, o pensam ento de A n axá
centro do universo, ajuntasse que, se goras. Os m encionados livros de A naxágoras só
nos chegaram em reduzidos fragm entos. O que
assim é, é porque é melhor para ela sabem os é que aquele filó so fo reconhecia,
estar no centro. Se me explicasse tudo com o princípio m aterial, um as partículas m íni
m as de m atéria — as hom eom erias — e ainda,
isso, eu ficaria satisfeito e nem sequer com o outro princípio — o espírito — cuja fun
desejaria tomar conhecimento de outra ção para nós não é ainda bem clara, e sobre a
qual, aliás, já havia dúvidas na antiguidade:
espécie de causas. Naturalmente, a alguns explicadores antigos viam nesse espírito
propósito do sol eu estava pronto tam um deus, outros, um ordenador do m undo, e
bém a receber a mesma espécie de finalm ente outros, com o nosso autor e tam bém
A ristóteles, um a sim ples prim eira força motriz,
*»o explicação, e da mesma fornia para a isto é, um princípio quase m aterial o u m esm o
lua e os outròs astros, assim como material. Cf. J. Burnet, E a rly G ree k P hiloso-
p h y e Cari Joel, G e sch ich te d e r A n tik e n P hilo-
também a respeito de suas velocidades sophie. (N . d o T .)
FÉDON 111
são sólidos e separados uns dos outros melhor e com inteligência — essa é *
d por articulações, e os tendões con uma afirmação absurda. Isso importa
traem e distendem os membros, e os ria, nada mais nada menos, em não
músculos circundam os ossos com as distinguir duas coisas bem distintas, e
camçs, e a pele a tudo envolve! Articu- em não ver que uma coisa é a verda
lando-se os ossos em suas articulações, deira causa e outra aquilo sem o que a
e estendendo-se e contraindo-se, sou causa nunca seria causa. Todavia, é a
capaz de flexionar os meus membros, e isso que aqueles que erram nas trevas,
por esse motivo é que estou sentado segundo me parece, dão o nome de
aqui, com os membros dobrados. Tal causa, usando impropriamente o
homem diria coisas mais ou menos termo 5 6. O resultado é que um deles,
semelhantes a propósito de nossa con tendo envolvido a terra num turbi
versa, e assim é que consideraria como lhão 5 7, pretende que seja o céu o que a
causas dela a voz, o ar, o ouvido e mantém em equilíbrio, ao passo que
muitas outras coisas — mas, em reali para outro ela não passa duma espécie
dade, jam ais diria quais são as verda de gam ela58, à qual o ar serve de base
deiras causas disso tudo: estou aqui
56 Esta frase exprime desprezo pela filosofia
« porque os atenienses julgaram melhor naturalista: “os demais” poderia ser entendido
condenar-me à morte, e por isso pare aqui como indicando apenas a opinião vulgar,
ceu-me melhor ficar aqui, e mais justo mas o que o autor posteriormente atribui aos
‘demais” são os sistemas filosóficos naturalis
aceitar a punição por eles decretada53. tas. Platão, como quase sempre quando fala nas
Pelo Cão 54. Estou convencido de que teorias naturalistas, acha que não vale a pena
citar os nomes de seus autores, contentando-se
estes tendões e estes ossos já poderiam com dizer “uns”, “alguns” e “outros”.(N . d oT .)
n « há muito tempo se encontrar perto de 57 A palavra díne (turbilhão) é técnica no
sistema de Demócrito e Leucipo. Para estes
M égara ou entre os Beócios, para onde naturalistas gregos, o princípio de todas as coi
os teria levado uma certa concepção sas são os átomos, corpos minúsculos e indivi
síveis (donde átomos, em grego), eternos e invi
do melhor, se não me tivesse parecido síveis; esses átomos estão a cair no vácuo; os
mais justo e mais belo preferir à fuga e mais pesados caem mais depressa, pelo que se
à evasão a aceitação, devida à Cidade, apartam dos demais. Dão, assim, encontrões
uns nos outros, com a conseqüente formação
da pena que ela me prescreveu! de turbilhões, produtores de complexos dè áto
D ar o nome de causas a tais coi mos, que nada mais são do que os objetos exis
tentes. Esses turbilhões jamais terminam, e con
sa s55 seria ridículo. Que se diga que tinuamente os átomos estão a separar-se e a
sem ossos, sem músculos e outras coi reunir-se; é a isto que damos o nome de geração
e corrupção. A terra existe e permanece em seu
sas eu não poderia fazer o que me lugar, porque continuamente está a receber e a
parece, isso é certo. Mas dizer que é perder átomos; e o mesmo vale para os demais
por causa disso que realizo as minhas corpos. Logo, quando um corpo não recebe
novos átomos em troca dos que vai perdendo,
ações e não pela escolha que faço do dá-se sua destruição. Platão se refere aqui ao
turbilhão do céu para meter a ridículo esta
53 Platão conta que Sócrates, tendo uma opor teoria, que mais tarde iria ter grande impor
tunidade para fugir do cárcere, não se apro tância nas ciências naturais. (N . d o T .)
veitou dela porque era sua convicção que um 58 É uma ironia contra Anaxímenes,. mas indi
cidadão deve obedecer sempre às leis e decre cadora das doutrinas deste filósofo. Conforme
tos do Estadt), mesmo quando os concidadãos e ele, o princípio de todas as coisas é o ar: tudo
as autoridades legítimas são injustos. (N . do T.) se forma do ar, volta ao ar, e o próprio ar é
54 Pelo Cão: Sócrates jura muitas vezes desta também o sustentáculo da terra, a qual tem a
forma, certamente porque o cão sempre foi con forma de um tamborim. O termo propriamente
siderado como símbolo da lealdade. (N . do T.) empregado por Platão é o de “gamela”, com o
55 Isto é: as causas materiais. (N . d o T .) que exprime seu desprezo deste sistema.
112 PLATÃO
A Idéia
veu Sócrates — e não estou a enunciar faça a sua comunicação com este. O
nenhuma novidade, mas apenas a repe modo por que essa participação se efe
tir o que, em outras ocasiões como na tua, não o examino neste momento;
pesquisa passada, tenho me fatigado afirmo, apenas62, que tudo o que é
de dizer 61. Tentarei mostrar-te a espé belo é belo em virtude do Belo em si.
cie de causa que descobri. Volto a uma Acho que é muitíssimo acertado, para
teoria que já muitas vezes discuti e por mim e para os demais, resolver assim o
ela começo: suponho que há um belo, problema, e creio não errar adotando
um bom, e um grande em si, e do esta convicção. Por isso digo convicta-
mesmo modo as demais coisas. Se con mente, a mim mesmo e aos demais,
cordas comigo também admites que que o que é belo é belo por meio do
isso existe, tenho muita esperança de, Belo. Acaso não é esta também a tua
por esse modo, explicar-te a causa opinião?
mencionada e chegar a provar que a
— É.
alma é imortal.
— E o que é grande é grande por
— Naturalmente admito que isso
meio da Grandeza; e o que é maior
existe — confirmou Cebes; — e,
pelo M aior; e o que é menor é Menor
agora, faze depressa o que dizes.
por meio da Pequenez?
— Examina, pois, com cuidado, se
— Indubitavelmente.
estás de acordo, como eu, com o que se
— Em conseqüência, jamais esta
deduz dessa teoria! Para mim é evi
rias de acordo com quem te viesse
dente: quando, além do belo em si,
existe um outro belo, este é belo por dizer que um é maior do que outro pela
que participa daquele apenas por isso e cabeça, e que o menor é menor pelo
por nenhuma outra causa. O mesmo mesmo motivo; mas continuarias fir
afirmo a propósito de tudo mais. Reco memente a afirmar que tudo aquilo que
nheces isto como causa? é maior do que outro, não o é por
— Reconheço. nenhuma outra causa senão pela G ran
— Logo — prosseguiu Sócrates — deza; e que o que é menor, não o é por
não compreendo nem posso admitir nenhuma outra causa senão pela Pe
aquelas outras causas científicas. Se quenez. Pois acho que terias medo de
alguém me diz por que razão um obje cair em contradição se dissesses que
to é belo, e afirma que é porque tem uma coisa é maior ou é menor pela
cor ou forma, ou devido a qualquer cabeça: primeiro, porque nesse caso o
coisa desse gênero — afasto-me sem maior seria maior e o menor seria
discutir, pois todos esses argumentos menor, ambos em virtude da mesma
me causam unicamente perturbação. coisa; segundo, porque o maior seria
Quanto a mim, estou firmemente con
maior pela cabeça — que é pequena!
vencido, de um modo simples e natu
Seria, com efeito, prodigioso que al
ral, e talvez até ingênuo, que o que faz
guém fosse grande em virtude de uma
belo um objeto é a existência daquele
coisa pequena! Acaso essa tolice te
belo em si, de qualquer modo que se
assusta?
6! Alusão ao Fedro e ao Banquete, que já apre
sentaram a doutrina das idéias. (N . d o T .) 62 Cf. Parmenides. (N . d o T .)
114 PLATÃO
— Eu? Claro que sim ! — cebes riu ignorância e o teu apego à segurança
e disse. que encontraste ao tom ar por base a
— E não temerias igualmente dizer tese em questão — tudo isso te inspira
— continuou Sócrates — que o dez é ria uma resposta semelhante. E se
maior do que o oito porque o ultra alguém se apresentasse censurando
passa de dois e considerar isso como essa tese, porventura não o deixarias
causa, ao invés de dizer que é pela em paz e sem resposta, até o momento
quantidade e por causa da quantidade? em que houvesses examinado as conse
E serias capaz de dizer, da mesma qüências dela extraídas e verificado se
forma, que um objeto do tamanho de ela concorda consigo mesma ou se
dois côvados é maior do que outro de contradiz? E depois, quando viesse a
um côvado pela metade, em lugar de ocasião de dar as razões desta tese em
dizer que é pela grandeza? Pois, sem si mesma, não o farias da mesma
dúvida, isso não é menos estapafúrdio! forma, tomando desta vez por base
— Efetivamente. uma outra tese, aquela em que encon
trasses maior valor, até atingires um
— Não te envergonharias de dizer
que, acrescentando-se a unidade à uni resultado satisfatório? E não é claro
dade, esse acréscimo, e dividindo-se a que tu, desejando uma doutrina do ser
unidade, essa separação, são ambos verdadeiro, te absterias de tagarelices e
causas da formação do dois? Não mais discussões a propósito do princí
protestarias aos gritos que não com pio e das suas conseqüências, assim
preendes como cada coisa se possa for como fazem os que polemizam profis
mar por outro modo que não seja pela sionalmente? N ada daquilo, com efei
participação na própria substância em to, figura nas pesquisas e preocupações
que essa coisa tom a parte? Não dirias, de tais homens: dão-se por superior
neste caso, que não encontras outra mente satisfeitos com a sabedoria que
causa de formar-se o dois a não ser a possuem, embora confundam tu d o 64.
participação na idéia do dois, e que Tu, porém, se na verdade és filósofo,
deve participar dela o que vem a tor tenho a certeza de que farás o que
nar-se dois, e também que deve partici dig o !
par da idéia de unidade o que se tom a — O que dizes é a pura verdade —
unidade? E, em conseqüência, não responderam ao mesmo tempo Símias
haverias de pôr de lado essas tais sepa e Cebes.
rações e acréscimos e demais artima EQ U ÉC R ATES:
nhas do mesmo gênero, deixando a dis — Por Zeus, caro Fédon, e com
cussão de tais coisas a homens que são 04 Golpe violento contra naturalistas e sofistas:
mais sábios do que tu? Mas o medo estes desejam apenas discutir por discutir, sem
cogitar de obter a verdade; aqueles podem ter
que tens, como se costuma dizer, da uma convicção pessoal da veracidade de suas
tua própria som bra63, o receio da tua teorias, mas seus métodos são tão deficientes
que não conseguem oferecer mais do que fra
83 Temer a própria sombra: expressão prover cas tolices, não merecendo por isso o nome de
bial que exprime o cúmulo do m edo.(N . do T .) filósofos. (N . d o T .)
FÉDON 115
d — Não serão, caro Cebes, essas trário da que nelas existe. Volta, aliás,
coisas cuja existência as obriga a con às tuas lembranças (não há mal que se
ter em si não só sua própria idéia, mas repitam as mesmas coisas!): O cinco
também, e sempre, a idéia contrária a não receberá em si a natureza do par;
uma certa coisa? nem o dez, que lhe é o dobro, a do
— Não compreendo o que dizes. ímpar. Este dez, como tal, não é con
— Quero dizer o que disse há trário ao outro, mas apesar disso não
pouco: sabes, com efeito, que o que receberá a idéia do ímpar. É o mesmo
contém a idéia do três necessariamente o que acontece com o um e meio e com
não é só três, mas é também a idéia de os outros números que comportam o
ímpar. “meio” , em face da natureza do intei
— Sim. ro; e o mesmo, também, com o terço e
— E que dele jamais se aproximará as demais frações dessa espécie. Supo
a idéia de par? nho que estás a acompanhar-me e a
— É. participar da minha opinião?
— Então a idéia de par jam ais se — Participo com todas as minhas
aproximará do três? forças — disse Cebes — e te acompa
— Efetivamente, jam ais se aproxi nho.
mará. — Agora — disse Sócrates —
— Em conseqüência, o três não recorda-te de nosso ponto de partida e
participa da idéia de par? fala, sem empregar, para responder, as
— Nunca, com efeito. próprias palavras de minha pergunta,
— Com isso, então, diremos que o mas tomando-me por modelo. Expli
três é ímpar? co-me: ao lado da resposta de que eu
— Necessariamente. em primeiro lugar falava, a resposta
— Desta forma, pois, é que se certa a que me referia, vejo, à luz do
determina, como disse, a natureza das que agora dissemos, uma outra certe
coisas, que, sem serem contrárias, não za. Podes perguntar-me: que é que
admitem a presença de seu contrário: o entrando num corpo o faz quente? Não
três, por exemplo, sem ser contrário ao te darei aquela resposta certa, mas
par, nunca o aceita, e não o aceita por simples, que é o calor, mas responder-
que sempre tem incluído em si o con te-ei com uma mais hábil, dizendo que
trário do par; e do mesmo modo o dois é o fogo. Perguntas: que é que,
inclui o contrário do ímpar, o fogo o entrando num corpo, o torna doente?
do frio, e assim em muitíssimos outros Não direi que é a doença, mas a febre.
ws« exemplos. Pensa agora e dize-me se D a mesma forma, não irei declarar que
não concluirias assim: não é somente o um número se tom a ímpar devido à
contrário que não recebe em si o seu imparidade, mas sim devido à unidade,
contrário, mas o mesmo acontece tam e assim por diante. Examina, entre
bém a coisas que, sem serem mutua tanto, se compreendeste bem o que
mente contrárias umas às outras, pos quero dizer!
suem sempre em si os contrários, e as — Compreendi suficientemente —
quais verossimilmente não receberão respondeu Cebes.
jamais uma qualidade que seja o con — Então responde-me, se puderes:
FÉDON 119
muito tempo ainda adejando ao redor cida com a de que falas. Teria, pois,
do cadáver e dos monumentos funerá muito prazer em te ouvir a esse
rios, oferece resistência e sofre, e só se respeito.
deixa levar pelo gênio sob violência e — Pois bem, meu caro Símias.
exigindo grandes esforços. Mas quan Todavia, para explicar como isso é,
do essa alma, afinal, chega ao lugar em evidentemente não necessitamos da
que já se encontram as outras almas, arte de G lauco7 4. Provar, porém, que
cada uma destas imediatamente se isso de fato assim é, eis uma tarefa que
afasta e a evita, pois sabem que ela de muito ultrapassa a arte de Glauco.
praticou uma das negras ações seguin Eu talvez não seja capaz de demons
tes: ou matou injustamente alguém, ou trá-lo, e, mesmo que fosse, parece-me
praticou qualquer crime desse gênero, que ainda assim a minha própria vida,
ou qualquer obra que seja própria caro Símias, não seria suficiente para
dessa espécie de almas. Por isso, nin fazê-lo, tendo em vista a extensão do
guém deseja ter sua amizade e ser seu assunto. Quanto a explicar-vos, entre
companheiro, nem servir-lhe de guia. tanto, as minhas opiniões a respeito da
Assim, essa alma erra desnorteada terra e de suas regiões, nada me impe
daqui para lá, em ignorância absoluta, de de fazê-lo.
durante certo tempo, e em virtude de — Nada mais queremos! — excla
uma necessidade fatal é levada a uma mou Símias.
residência que lhe é conveniente. Inver — Pois bem — continuou Sócra
samente, a alma cuja vida na terra foi tes. — Em primeiro lugar, estou con
pura e sábia lá encontra, por compa vencido de que a terra, sendo redonda
nheiros e guias, os próprios deuses, e e estando colocada no centro da abó
sua residência será, da mesma forma, a bada celeste, não precisa nem do ar
que lhe é adequada. nem de qualquer outra matéria para
“ Ora, a terra possui grande número não cair. Ao contrário, a uniformidade
de regiões maravilhosas, e nem pela existente em cada parte do céu, dum
sua constituição nem pela sua grande lado, e, de outro, o próprio equilíbrio
za, ela não é o que admitem as pessoas da terra são suficientes para sustentá-
que têm o costume de falar sobre ela, la. Assim, pois, um objeto que se man
conforme a convicção que alguém me tém em equilíbrio no centro de um con
transmitiu 73.” tinente uniforme não tem motivo
— Mas que queres dizer, Sócrates? nenhum para inclinar-se mais para lá
— perguntou Símias. — Já tenho ou ou mais para cá e mantém-se efetiva
vido dizer muitas coisas a propósito da mente em sua posição, sem descair
terra, mas, confesso, nenhuma pare- para os lados. Aqui tendes o primeiro
73 Platão apresenta a exposição de uma fantás 74 Glauco: nome de alguns personagens da lenda
tica teoria cosmográfica, na qual não se mostra grega, que realizaram obras dificílimas. A ex
de acordo com nenhuma das teorias naturalis pressão “obra de G lauco” serve para designar
tas que haviam sido elaboradas até então. uma realização árdua e complicadíssima.
(N . do T,.) (N . d o T .)
123
FÉDON
que vêm ter as almas dos mortos, as avança, nas proximidades do lago
quais, após ali permanecerem durante Aquerúsia, mas do lado oposto. Suas
o tempo que lhes foi prescrito, tempo águas tampouco se misturam com
mais longo para umas, mais breve para outra; também elas, após o trajeto cir
outras, são outra vez enviadas para cular, finalmente desembocam no Tár
formarem os seres vivos. Um terceiro taro, num ponto oposto ao Periflege
rio nasce a meia distância entre os dois tonte: o nome deste rio, ao dizer dos
primeiros e, perto do ponto em que poetas é Cocito88.
nasceu, vem a desembocar num vasto “Tal é, pois, meus amigos, a distri
espaço onde arde um fogo imenso; aí, buição natural desses rios. Eis, agora,
então, forma um lago muito maior do os mortos chegados ao lugar para onde
que o nosso m ar8 5, fervendo sempre cada um foi conduzido por seu gênio
água e lama; e daí sai, sujo e cheio de
tutelar. Aí, antes do mais, todos são
lama, serpeando por muitas voltas e julgados, tanto os que tiveram uma
passando por muitos lugares, che vida sã e piedosa como os outros. Em
gando a cruzar pela extremidade do seguida, aqueles de quem se verifica
lago Aquerúsia, sem todavia se mistu
que tiveram uma existência comum
rar com suas águas, para ir, final são dirigidos ao Aqueronte, e nele, em
mente, após mais alguns coleios repeti qualquer embarcação, se encaminham
dos, lançar-se no Tártaro, num ponto para o lago Aquerúsia. Lá, então, pas
mais abaixo: é a este terceiro rio que se sam a morar e a submeter-se a purifi
dá o nome de Periflegetonte8 6, e dele é cações, quer remindo-se pelas penas
que brota toda lava que se encontra, que sofrem das ações de que se torna
onde quer que ela exista, sobre a face ram culpados, quer obtendo pelas boas
de nossa terra. Fazendo por sua vez ações que praticaram recompensas
face a este, corre o quarto rio: rolam
proporcionadas aos méritos de cada
suas águas primeiramente por uma
região de assombrosa horripilância e um 89. Outros, porém, que se verifica
selvageria, completamente revestida de serem incuráveis por causa da gran
uma uniforme coloração azulada — é deza dos pecados que cometeram,
a região que se denomina região Estí- autores de roubos em templos repeti
gia; e Estige8 7 é então o nome do lago dos e graves90, de muitos homicídios
formado por esse rio. Depois de se 88 Cocito (rio das queixas) é igualmente um
haver lançado nesse lago, onde suas dos fabulosos rios do Hades. Platão esclarece:
águas adquirem temíveis propriedades, “ao dizer dos poetas”. Mas aproveitou dos poe
tas apenas o nome do rio, pois em nenhuma
mergulha pela terra adentro e, descre poesia ele desempenha o papel que Platão lhe
vendo espirais, corre em sentido con empresta. (N . d o T .)
89 Os que viveram uma vida comum consti
trário ao Periflegetonte, ante o qual tuem a maioria: não têm nem grandes vícios,
nem grandes virtudes. Corforme a vida que le
85 N ão é bem claro se “nosso mar” indica o varam, recebem punição ou recompensa tempo
Mediterrâneo ou o Egeu, que é o mar propria rária e, ademais, como indica o trecho ante
mente grego. Em todo caso, este lago é bem rior, voltam a inserir-se em novos corpos.
grande. (N . d o T .) Platão não descreve as punições nem as recom
86 Periflegetonte (ao pé da letra: rio de cha pensas. (N . d o T .)
mas de fogo) é também um rio fabuloso que 90 Os salteadores de templos figuram entre os
corre no Hades. Nosso autor utiliza este rio em maiores criminosos: onde se observa o respeito
sentido naturalista para explicar os vulcões. de Platão à religião tradicional. Sócrates, acusa
(N . do T.) do de inimigo desta religião, é que expressa tais
87 Estige, na mitologia, é um rio do Hades. pensamentos. Assim, Platão está defendendo seu
Platão o transforma em lago. (N . d o T .) caro mestre. (N . d o T .)
128 PLATÃO
contra a justiça e contra a lei, e de mui da verdadeira te rra !92 E, entre estes,
tas outras coisas desse gênero — estes aqueles que pela filosofia se purifi
recebem a paga merecida e são precipi caram de modo suficiente passam a
tados no Tártaro, de onde nunca mais viver absolutamente sem os seus cor
sairão91. Quanto àqueles cujos erros pos, durante o resto do tempo, e a resi
foram reconhecidos como sendo faltas dir em lugares ainda mais belos que os
que, não obstante sua gravidade, não demais93. Mas descrever esses lugares
deixam de ter remédio, como as come não é fácil nem possível, pois temos
tidas pelos que sob o domínio da ira pouco tem po!
usaram de violência contra o pai e a “Pois bem, meu caro Símias, são
mãe, e que disso se arrependeram para estas as realidades, cuja exposição
o resto da vida, ou que, em condições fizemos por alto, e, que nos devem
semelhantes, se tornaram assassinos levar a tudo fazermos por participar da
— estes, também, devem necessaria virtude e da sabedoria nesta vida. Bela
mente ser lançados no Tártaro; mas, é a recompensa e grande a esperança!
quando houver decorrido um ano de Entretanto, pretender que essas coisas
pois que foram precipitados, uma onda sejam na realidade exatamente como
os arremessa para fora — e os assassi as descrevi, eis o que não será próprio
nos são lançados no Cocito, e os crimi de um homem de bom senso! Mas crer
nosos contra pai e mãe no Periflege- que é uma coisa semelhante o que se
tonte. Comboiados por esses rios, dá com nossas almas e o seu destino
chegam ao lago Aquerúsia: e ali, cha — porque a alma é evidentemente
mam e pedem em altos brados, uns imortal — eis uma opinião que me pa
àqueles que mataram, outros àqueles rece boa e digna de confiança. Belo
que violaram; e lhes suplicam que os será ter esta coragem ! É preciso repe
deixem passar do rio ao lago e vir ter ti-lo como fórmula mágica e é — pala
com eles. Se conseguem o que pedem, vra! — por tal razão que há muito
saem do rio e não sofrem mais. Em estou a falar nessa lenda mitológica.
caso contrário são de novo jogados ao Pois bem! Considerando estas cren
Tártaro, e de lá outra vez aos rios, ças, deve permanecer confiante sobre o
assim numa repetição sem tréguas, até destino de sua alma o homem que
que hajam obtido o perdão de suas ví
timas — pois essa é a punição que os 92 Chegamos enfim a conhecer quais são os fe
lizes habitantes da superfície da verdadeira
juizes lhes impuseram. Aqueles, enfim, terra,, sobre os quais e sobre cuja bem-aventu-
cuja vida foi reconhecida como de rança Platão tanto tem falado: são os adeptos
da religião tradicional, os piedosos. Agora se
grande piedade, são libertados, como compreende também por que Platão disse antes
de cárceres, dessas regiões interiores que estes tinham comunicação direta com os
deuses: adoravam os deuses nesta vida e nas
da terra, e levados para as alturas da cavidades da terra, e sua recompensa na super
morada pura, indo morar na superfície fície da mesma será uma vida feliz e o contato
com os deuses. (N . do T .)
91 Castigo eterno para os maiores pecadores. 93 Grau supefior da classificação dos homens:
Platão não dá precisão acerca dos sofrimentos oS filósofos. Estes fazem parte dos piedosos a
por que passam no Tártaro. Possivelmente, é que nos referimos na nota anterior; mas são
opinião sua que os turbilhões de água e ar, entre eles os mais genuinamente piedosos, e por
atrás descritos, façam padecer os habitantes da este motivo terão uma sorte melhor do que os
quela região. ( N . d o T . ) demais adèotos da religião tradicional. (N . do T.)
FÉDON 129
durante sua vida desprezou os prazeres tanto a mim e aos meus quanto a vós
do corpo e os ornamentos deste, princi mesmos, ainda que não tenhais assu
palmente, pois são, a seu ver, coisas mido esse-compromisso. Suponhamos,
estranhas e nocivas. O homem que, ao pelo contrário, que de vós próprios não
contrário, se dedicou aos prazeres que tomeis cuidado, e que não queirais
têm a instrução por objeto, e que dessa absolutamente viver em conformidade
forma ornou sua alma, não com ador com o que foi dito tanto hoje como em
nos estranhos e nocivos, mas com o outras ocasiões. Então, quaisquer que
que é propriamente seu e mais lhe con possam ser hoje o número e a força de
vém, com a temperança, a justiça, a vossas promessas, nada tereis adianta
coragem, a liberdade, a verdade9 4 — do !
esse aguarda confiante e corajoso o — Poremos todo o nosso coração,
momento de por-se a caminho do naturalmente — disse Críton — em
Hades, quando seu destino o cham ar! conduzir-nos dessa forma. Mas como
“ Vós, seguramente — ajuntou Só haveremos de enterrar-te?
crates — , vós, Símias, Cébes, e todos — Como quiserdes — respondeu
os outros — será mais tarde, não sei — , isto é, se conseguirdes reter-me a
quando, que vos poreis a caminho. mim, e se eu não vos escapar! —
Quanto a mim, o meu destino neste Então riu-se docemente e, voltando-se
momento me chama, como diria um para nós, disse: — Não há meio, meus
amigos, de convencer Críton de que o
ator de tragédia9 5.
“Creio que ainda me sobra algum que eu sou é este Sócrates que se acha
tempo para tomar um banho: parece- presentemente conversando convosco e
me melhor, com efeito, lavar-me antes que regula a ordem de cada um de seus
de tomar o veneno, e não deixar para argumentos! Muito ao contrário, está
as mulheres o trabalho de lavar um persuadido de que eu sou aquele outro
cadáver.” Sócrates cujo cadáver estará daqui a
Depois destas palavras de Sócrates, pouco diante de seu olhos; e ei-lo a
Críton falou: — Então, que ordens nos perguntar como me deve enterrar! E
dás, Sócrates, a estes ou a mim, a res quanto ao que desde há muito venho
peito de teus filhos ou de qualquer repetindo — que depois de tomar o ve
outro assunto? Quanto a nós, essa neno não estarei mais junto de vós,
seria, por amor a ti, nossa tarefa mais mas me encaminharei para a felicidade
que deve ser a dos bem-aventurados —
im portante!
tudo isso, creio, eram para ele vãs
— Justamente, Críton, não cesso de
palavras, meras consolações que eu
falar sobre ela — respondeu — e nada procurava dar-vos, ao mesmo tempo
de novo tenho para vos dizer! Vede: que a mim mesm o! Sede, pois, meus
cuidai de vós próprios, e de vossa parte fiadores junto a Críton, garantindo-lhe
então toda tarefa será feita com amor, o contrário daquilo que ele afiançou
94 Nesta enumeração de virtudes, a liberdade só aos juizes9 6. Ele jurou que eu ficaria
pode ter o sentido de “libertação de paixões e no meio de vós; vós, porém, afirrrrai-
vícios”. ( N . d o T . )
95 Nas tragédias, os heróis despedem-se de seus 96 Alusão ao processo de Sócrates: Críton ga
amigos com frases como esta e em tom dramá rantiu ao tribunal que Sócrates não fugiria.
tico. ( N . d o T . ) (N.doT.)
130 PLATÃO
lhe que não ficarei entre vós quando estou sofrendo dores inenarráveis, e
morrer, mas que partirei, que me irei que no decorrer dos funerais diga estar
embora! Este é o único meio de fazer expondo Sócrates, conduzindo-o à se
com que esta provação seja mais pultura e enterrando-o! Nota bem,
suportável a Críton, o meio de evitar meu bravo Críton: a incorreção da lin
que, vendo queimar ou enterrar meu guagem não é somente uma falta
corpo9 7, se impressione e pense que cometida contra a própria linguagem.
Ela faz mal às alm as! N ã o ! É preciso
97 A época clássica dos gregos n ã o conheceu o perder esse temor. Realiza estes fune
costum e generalizado dos fu n erais, ten d o insti rais como quiseres e como achares
tuído a liberdade de q u e im a r ou e n te rra r os
cadáveres, com o se quisesse. ( N . d o T . ) mais conforme aos usos.
Epílogo
Dito isto, Sócrates pôs-se de pé, e, com eles em presença de Críton, fazen
para banhar-se, passou a outra peça. do-lhes algumas recomendações. Em
Críton seguiu-o, fazendo-nos sinal que seguida ordenou que se retirassem e
esperássemos. Ficamos, pois, a conver veio para junto de nós.
sar e a examinar tudo quanto se havia Já o sol estava próximo de recolher-
dito. Lamentávamos a imensidade do se, pois Sócrates havia passado muito
infortúnio que sobre nós descera. Ver tempo no outro quarto. Ao voltar do
dadeiramente, era para nós como se banho sentou-se novamente, e a con
perdêssemos um pai, e iríamos passar versa desta vez durou pouco. Apresen
como órfãos o resto de nossa v id a! tou-se então o servidor dos Onze, e, em
Depois de se ter banhado, trouxe- pé, diante dele disse:
ram-lhe seus filhos (tinha dois peque — Sócrates, por certo não me darás
nos e um já grande), e as mulheres de a mesma razão de queixa que tenho
casa98 também vieram; entreteve-se contra os outros! Esses enchem-se de
98 Esta frase suscitou na a n tig u id ad e a seguinte cólera contra mim e me cobrem de
tentativa de ex p licação: em seguida à guerra imprecações quando os convido a
do Peloponeso, em que m o rre ra m m uitos h o
m ens; os atenienses c o n se n tiram que cad a c id a tomar o veneno, porque tal é a ordem
d ã o passasse a ter m ais m u lh eres além da legí dos Magistrados. Tu, como tive muitas
tim a esposa; e Sócrates, m od elo de p a trio ta,
acrescentou a X an tip a um a nova esposa, da ocasiões de verificar, és o homem mais
qual teve um de seus três filhos. M irto era o generoso, o mais brando e o melhor de
nom e desta últim a. M as tu d o isso n ã o está bem
p rovado. Platão, q u a n d o aqui fa la em m u lh e todos aqueles que passaram por este
res de casa, talvez q u eira significar apenas que
X an tip a com pareceu ao cárcere a co m p an h ad a
lugar. E, muito particularmente hoje,
de parentes ou de escravas. ( N . d o T . ) estou convencido de que não será con
FÉDON 131
tra mim que sentirás ódio, pois conhe do demais; vai, obedece, e não me
ces os verdadeiros culpados, mas con contraries.
tra eles. Não ignoras o que vim Assim admoestado, Críton fez sinal
anunciar-te, adeus! Procura suportar a um de seus servidores que se manti
da melhor forma o que é necessário! nham nas proximidades. Este saiu e
Ao mesmo tempo pôs-se a chorar e, retornou daí a poucos instantes, con
escondendo a face, retirou-se. Sócrates duzindo consigo aquele que devia
tendo levantado os olhos para ele: administrar o veneno. Este homem o
— Adeus! — disse. — Seguirei o trazia numa taça. Ao vê-lo Sócrates
teu conselho. disse:
Depois, voltando-se para nós: — Então, meu caro! Tu que tens
— Quanta gentileza neste hom em ! experiência disto, que é preciso que eu
Durante toda a minha permanência faça?
aqui veio várias vezes ver-me, e até — Nada mais — respondeu — do
conversar comigo. Excelente hom em ! que dar umas voltas caminhando, de
E, hoje, quanta generosidade no seu pois de haver bebido, até que as pernas
pranto! Pois bem, avante! Obedeça se tornem pesadas, e em seguida ficar
mos-lhe, Críton, e que me tragam o ve deitado. Desse modo o veneno produ
neno se já está preparado; se não, que zirá seu efeito.
o prepare quem o deve preparar! Dizendo isso, estendeu a taça a Só
Então disse Críton: crates. Este a empunhou, Equécrates,
— Mas, Sócrates, o sol se não me conservando toda a sua serenidade,
engano está ainda sobre as montanhas sem um estremecimento, sem uma alte
e não se deitou de todo. Ademais, ouvi ração, nem da cor do rosto, nem dos
dizer que outros beberam o veneno só seus traços. Olhando em direção do
muito tempo depois de haverem rece homem, um pouco por baixo e perscru-
bido a intimação, e após terem comido tadoramente, como era seu costume,
e bebido bem, e alguns, até, só depois assim falou:
de haverem tido contato com as pes — Dize-me, é ou não permitido
soas que desejaram. Vamos! nada de fazer com esta beberagem uma libação
precipitações; ainda há muito tem po! às divindades?"
Ao que Sócrates respondeu: — Só sei, Sócrates, que trituramos
— É muito natural, Críton, que as a cicuta em quantidade suficiente para
pessoas de quem falas tenham feito o produzir seu efeito, nada mais.
que dizes, pensando que ganhavam al — Entendo. Mas pelo menos há de
guma coisa fazendo o que fizeram. ser permitido, e é mesmo um dever,
Mas, quanto a mim, é natural que eu dirigir aos deuses uma oração pelo
não faça nada disso, pois penso que bom êxito desta mudança de residên-
tomando o veneno um pouco mais
99 Nos banquetes dos gregos era costume que
tarde nada ganharei, a não ser, tornar- todos os convivas, antes de tocarem na primeira
me para mim mesmo um objeto de taça, derramassem no chão algumas gotas, em
homenagem aos deuses, e que ao mesmo tempo
riso, agarrando-me dessa forma à vida recitassem uma breve oração. Aqui, Platão quer
e procurando economizá-la quando sublinhar a tranqüilidade de Sócrates: este se
comporta como se estivesse num banquete.
dela nada mais resta! Mas temos fala (N . do T.)
132 PLATÃO
cia, daqui para além. É esta minha então de costas, assim como lhe havia
prece; assim seja! recomendado o homem. Ao mesmo
E em seguida, sem sobressaltos, sem tempo, este, aplicando as mãos aos pés
relutar nem dar mostras de desagrado, e às pernas, examinava-os por interva
bebeu até o fundo. los. Em seguida, tendo apertado forte
mente o pé, perguntou se o sentia. Só
Nesse momento nós, que então
crates disse que não. Depois disso
conseguíramos com muito esforço
recomeçou no tornozelo, e, subindo
reter o pranto, ao vermos que estava
bebendo, que já havia bebido, não nos aos poucos, nos fez ver que Sócrates
contivemos mais. Foi mais forte do começava a ficar frio e a enrijecesse.
que eu. As lágrimas me jorraram em Continuando a apalpá-lo, declarou-nos
ondas, embora, com a face velada, esti que quando aquilo chegasse até o cora
vesse chorando apenas a minha infeli ção, Sócrates ir-se-ia101. Sócrates já se
cidade — pois, está claro, não podia tinha tornado rijo e frio em quase toda
chorar de pena de Sócrates! Sim, a a região inferior do ventre, quando des
infelicidade de ficar privado de um tal cobriu sua face, que havia velado, e
companheiro! De resto, incapaz, disse estas palavras, as derradeiras que
muito antes de mim, de conter seus pronunciou:
soluços, Críton se havia levantado — Críton, devemos um galo a
para sair. E Apolodoro100, que mesmo Asclépio ; não te esqueças de pagar
antes não cessara um instante de cho essa dívida.
rar, se pôs então, como lhe era natural, — Assim farei — respondeu Crí
a lançar tais rugidos de dor e de cólera, ton. — Mas vê se não tens mais nada
que todos os que o ouviram sentiram- para dizer-nos.
se comovidos, salvo, é verdade, o pró A pergunta de Críton ficou sem res
prio Sócrates: posta. Ao cabo de breve instante, Só
— Que estais fazendo? — excla crates fez um movimento. O homem
mou. — Que gente incompreensível! então o descobriu. Seu olhar estava
Se mandei as mulheres embora, foi fixo. Vendo isso, Críton lhe cerrou a
sobretudo para evitar semelhante cena, boca e os olhos.
pois, segundo me ensinaram, é com Tal foi, Equécrates, o fim de nosso
belas palavras que se deve morrer. companheiro. O homem de quem po
Acalmai-vos, vam os! dominai-vos! demos bendizer que, entre todos os de
Ao ouvir esta linguagem, ficamos seu tempo que nos foi dado conhecer,
envergonhados e contivemos as lágri era o melhor, o mais sábio e o mais
mas. justo.
Quanto a Sócrates, pôs-se a dar
umas voltas no quarto, até que decla 101 A descrição m inuciosa do efeito do veneno
está a m o strar que na realid ad e se tra ta da ci
rou sentir pesadas as pernas. Deitou-se cuta, planta m uito venenosa; e m anifesta, da
m esm a fo rm a, a h u m an id a d e com que os a te
100 o leitor do Banquete já conhece A p o lo d o ro nienses realizavam suas execuções capitais, p ro
com o o m ais em otivo dos alunos de Sócrates. cu ran d o to rrá -la s isentas de so frim en to s e d o
(N . do T .) res. ( N . d o T . )
SOFISTA
Teodoro, Sócrates,
Estrangeiro de Eléia, Teeteto
TEO DO RO SÓCRATES
— Fiéis ao compromisso de ontem, — Tens razão, caro amigo. Temo,
caro Sócrates, aqui estamos. Trouxe entretanto, tratar-se de um gênero que
mos conosco este estrangeiro natural não é em nada mais fácil de determinar
de Eléia e que, aliás, é realmente um do que o gênero divino, tais as aparên
filósofo, pertencente ao círculo de cias diversas de que ele se reveste ao
Parmênides e Zenão. juízo ignorante das multidões, quando
SÓ C R ATES “ indo de cidade a cidade”, aqueles que
— Caro Teodoro! Não terias trazi não apenas parecem, mas que real
do, sem o saber, um deus em lugar de mente são filósofos, observam das
um estranho, para empregar uma ex alturas em que estão, a vida dos ho
pressão de Homero? Ele diz que, em mens de nível inferior. A uns eles pare
bora haja outros deuses companheiros cem, na realidade, nada valer, e a
dos homens que reverenciam a justiça, outros, valer tudo. Tomam as formas
é especialmente o Deus dos Estrangei de políticos, ou de sofistas, e outras
ros, que melhor pode avaliar a dispari vezes dariam ainda, para certas pes
dade ou a eqüidade das ações huma soas, a impressão de estarem comple
nas. Certamente quem te acompanha é tamente em delírio. E precisamente ao
um desses seres superiores que virá estrangeiro é que queria perguntar, se é
observar e contradizer, como refutadof' que a minha pergunta não o desagrada,
divino, a nós que somos fracos pensa por quem os tomam as gentes de seu
dores. país e por que nomes os chamam.
T EO D O R O TEO D O R O
— Tal não é o costume do nosso — A quem?
estrangeiro, Sócrates. Ele é mais come
SÓCRATES
dido do que os ardorosos amigos da — Ao sofista, ao político e ao
Erística1. Não o vejo como um deus, filósofo.
mas parece-me um ser divino, pois
T EO D O R O
chamo assim a todos os filósofos. — Que queres saber, precisamente;
1 Erística (de éris, querela, controvérsia, de qual a questão que te propuseste a res
onde, erist-ikos), relativo à controvérsia. Escola peito deles e para a qual queres uma
erística, escola fundada por Euclides, em Mé-
gara. (N. do T . ) resposta?
138 PLATÃO
bemos esta distinção: que são os obje parte não será menos ridículo que o da
tos que servem ao alimento ou ao uso, primeira e, pois que o que ela vende
tanto do corpo como da alma, que se são as ciências, deveremos chamá-la,
vendem e se trocam por dinheiro? necessáriamente, por um nome que
TEETETO tenha correspondência próxima com o
— Que queres dizer com isso? nome de sua própria prática.
E STR A N G EIR O TEETETO
— Que, talvez, falte-nos reconhecer — Certamente.
parte relativa à alma, pois a outra,
ESTR A N G EIR O
creio, é-nos clara. — Assim, nesta importação por
TEETETO atacado das ciências, a seção relativa
— Sim. às ciências das diversas técnicas terá
E STR A N G EIR O um nome; e a que cuida, em sua impor
— Podemos dizer que a música em tação, da virtude, um outro nome.
todas as suas formas, levada de cidade
em cidade, aqui comprada para ser TEETETO
— Naturalmente.
para lá transportada e vendida; que a
pintura, a arte dos prestidigitadores em E STR A N G EIR O
— À primeira convém o nome de
seus prodígios, e muitos outros artigos
importação por atacado das técnicas.
destinados à alma, que se transportam
Quanto à outra, procura tu mesmo
e vendem, seja a título de divertimento
encontrar-lhe o nome.
ou de estudos sérios, dão àquele que as
transporta e vende, tanto quanto ao TEETETO
vendedor de alimentos e bebidas, direi — Que nome daremos, que não pa
to ao título de negociante? reça falso, a menos que digamos: aí
TEETETO
está o objeto que procuramos, o famo
— O que dizes é a pura verdade. so gênero sofístico.
E STR A N G EIR O E STR A N G EIR O
— Àquele que, de cidade em cidade — Esse, e nenhum outro. Agora,
vende as ciências por atacado, trocan- vejamos, recapitulando, e repitamos:
dò-as por dinheiro, darias o mesmo esta parte da aquisição, da troca, da
nome? troca comercial, da importação, da
TEETETO importação espiritual, que negocia dis
— Certamente. cursos e ensinos relativos à virtude, eis,
E STR A N G EIR O em seu segundo aspecto, o que é a
— Nesta importação espiritual, sofistica.
uma parte não se chamaria, com-justi TEETETO
ça, arte de exibição? O nome da outra — Perfeitamente.
148 PLATÃO
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Dentre as partes da arte de aqui — Colocando, de um lado, a sim
sição, havia a luta. ples rivalidade, e de outro, o combate.
TEETETO TEETETO
— É exato. — Bem.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Não está, pois, fora de propósito — Poderíamos definir conveniente
dividir a luta em duas partes. mente o combate que se realiza corpo
TEETETO a corpo, como um assalto a força
— Explica de que modo. bruta?
SOFISTA 149
TEETETO TEETETO
— Sim. — É certo; as suas divisões são
E STR A N G EIR O realmente muito pequenas e muito
— Mas, àquele em que se opõem diversas.
argumentos contra argumentos, por E STR A N G EIR O
que outro nome chamaríamos, Teeteto, — Mas a contestação conduzida
além de contestação? com arte, e relativa ao justo em si, ou
TEETETO ao injusto em si, e a outras determina
— Por nenhum outro. ções gerais, não a chamamos, comu
E STR A N G EIR O mente, por erística?
— Ora, o gênero de contestação TEETETO
deve ser considerado em duas partes. — E de que outra forma have
TEETETO ríamos de chamá-la?
— De que ponto de vista? ESTR A NG EIRO
E STR A N G EIR O — Ora, na realidade, a erística ou
— Uma vez, opondo-se a um longo bem nos leva a perder ou a ganhar
desenvolvimento outro desenvolvi dinheiro.
mento igualmente longo de argumen TEETETO
tos contrários, mantendo-se uma con — Perfeitamente.
trovérsia pública sobre as questões de E STR A N G EIR O
justiça e de injustiça; é a contestação — Procuremos dizer que nome pró
judiciária. prio se aplica a cada uma delas.
TEETETO TEETETO
— Sim. — Sim, procuremos.
E STR A N G EIR O E STR A N G EIR O
— Mas, se a contestação é privada, — Quando, encantados por esta
fragmentando-se na alternância de per ocupação, sacrificamos os negócios
guntas e respostas, que outro nome lhe pessoais sem darmos, como se diz, pra
damos, comumente, além do de contes zer algum à massa de nossos ouvintes,
tação contraditória? ela se chamará, ao que creio, e tanto
TEETETO quanto posso julgar, simplesmente,
— Nenhum outro. tagarelice.
E STR A N G EIR O TEETETO
— A contradição que tem por obje — É precisamente esse o nome que
to contratos e que, realmente, é contes se lhe dá.
tação, mas que procede ao acaso e sem E STR A N G EIR O
arte, deve, é certo, constituir uma — É tua vez, agora. Procura dizer
forma especial, uma vez que a sua que nome se dá à arte oposta que rece
originalidade ressalta claramente de be dinheiro por disputas privadas.
nossa discussão. Mas, os que viveram TEETETO
antes de nós não lhe deram nome — Que hei de dizer, ainda desta
algum, e a procura de um nome que lhe vez, sem risco de erro, senão que nova
seja próprio não merece agora a nossa mente aí está o prestigioso personagem
atenção. e que assim nos aparece, pela quarta
150 PLATÃO
TEETETO TEETETO
— Agora que tu o dizes, é quase — E bem ridículos, certamente.
evidente. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO — Totalmente ridículos, Teeteto.
— Para a última espécie não tenho Mas, afinal, ao método de argumenta
nome algum que a designe, mas para a ção não importa menos a lavagem com
primeira, a que retém o melhor e rejei esponjas do que os medicamentos,
ta o pior, tenho um nome. atendendo-se a que a ação purificadora
TEETETO de uma arte seja mais ou menos bené
— Dize-o. fica que a de outra. Na realidade, é
ESTRANGEIRO para alcançar a penetração de espírito t
— Toda a separação desta espécie que, investigando todas as artes, ele se
é, creio, universalmente chamada de esforça em descobrir as suas afinida
purificação. des e as suas dessemelhanças. Assim,
TEETETO deste ponto de vista, todas elas valem
— É precisamente assim que é igualmente para ele. Nenhuma arte,
chamada. desde que atenda à conformidade pro
ESTRANGEIRO curada, lhe parecerá mais ridícula que
— A dualidade desta forma de outra. Que a arte da estratégia seja
purificação não é visível à primeira uma ilustração mais grandiosa do que
vista? a arte da caça, o que não aconteceria
TEETETO com a arte de matar piolhos, não admi
— Talvez, se refletirmos. Por en te o método de argumentação que,
quanto, não vejo dualidade alguma. naquela primeira arte, apenas vê maior
ESTRANGEIRO pompa. Assim, no caso presente, ele
— Em todo o caso, as múltiplas apenas considera a questão que pro
formas de purificação que se aplicam pões: que nome se deve dar ao con
aos corpos podem ser reunidas sob um junto destas forças purificadoras desti
único nome. nadas aos corpos, animados ou
TEETETO inanimados, sem se preocupar em <■
— Que formas e que nome? saber que nome seja o mais distinto.
ESTRANGEIRO Bastará separar tudo o que purifica a
— Para os corpos vivos, todas as alma e agrupar, em um novo todo,
purificações internas que se operam, tudo o que purifica outras coisas que
graças a uma exata discriminação, não a alma. O que lhe compete, agora,
pela ginástica e pela medicina, e todas se é que compreendemos os seus
as purificações externas, por menos propósitos como método de argumen
característico que lhe seja o nome, e as tação, é discernir, realmente, a purifi
quais a arte do banhista nos prescreve; cação que se dirige ao pensamento e
e para os corpos inanimados, todos os distingui-la de todas as demais.
cuidados próprios do apisoador, ou TEETETO
mais universalmente, próprios à prepa — Sim, compreendo, e concordo
ração do couro, e que se distribuem em que há duas formas de purificação,
nomes que parecem ridículos. uma das quais tem por objeto a alma e
152 PLATÃO
são, se armam contra ela, de um novo a acreditar saber justamente o que ela
método. sabe, mas nada além.
TEETETO TEETETO
— Qual? — Essa é, infalivelmente, a melhor
ESTRANGEIRO disposição e a mais sensata.
— Propõem, ao seu interlocutor, ESTRANGEIRO
questões às quais acreditando respon — Aí estão, pois, muitas razões,
der algo valioso ele não responde nada Teeteto, para afirmarmos que a refuta
de valor; depois, verificando facil ção é o que há de mais importante e de
mente a vaidade de opiniões tão erran mais eficaz na purificação e para acre
tes, eles as aproximam em sua crítica, ditarmos, também, que permanecer à
confrontando umas com outras, e por parte desta prova é, ainda que se trate
meio desse confronto demonstram que do grande Rei, permanecer impurifi- «
a propósito do mesmo objeto, sob os cado das maiores máculas e conservar
mesmos pontos de vista, e nas mesmas a falta de educação e a fealdade onde a
relações, elas são mutuamente contra maior pureza, e a mais perfeita beleza
ditórias. Ao percebê-lo, os interlocu se requer, a quem pretenda possuir a
tores experimentam um descontenta verdadeira beatitude.
mento para consigo mesmos, e TEETETO
disposições mais conciliatórias para — Perfeitamente.
<■ com outrem. Por este tratamento, tudo ESTRANGEIRO
o que neles havia de opiniões orgulho — Pois bem! Que nome daremos
sas e frágeis lhes é arrebatado, ablação aos que praticam esta arte? Pois eu
em que o ouvinte encontra o maior tenho receio de chamá-los de sofistas. «
TEETETO
encanto e, o paciente, o proveito mais — Que receio?
duradouro. Há, na realidade, um prin
ESTRANGEIRO
cípio, meu jovem amigo, que inspira — De dar muita honra aos sofistas.
aqueles que praticam este método pur TEETETO
gativo; o mesmo que diz, ao médico do — E entretanto, há algurr\a seme
corpo, que da alimentação que se lhe lhança entre eles e aquele de quem, hâ
dá não poderia o corpo tirar qualquer pouco, falamos.
proveito enquanto os obstáculos inter ESTRANGEIRO
nos não fossem removidos. A propó — Na realidade, tal como entre o
sito da alma formaram o mesmo con- cão e o lobo, como entre o animal mais
i ceito: ela não alcançará, do que se lhe selvagem e o mais doméstico. Ora,
possa ingerir de ciência, beneficio para estarmos bem seguros é sobre
algum, até que se tenha submetidò à tudo com relação às semelhanças que é
refutação e que por esta refutação, preciso manter-nos em constante guar
causando-lhe vergonha de si mesma, se da: na verdade, é um gênero extrema
tenha desembaraçado das opiniões que mente escorregadio. Mas, por enquan
cerram as vias do ensino e que se tenha to, admitamos que sejam os mesmos,
levado ao estado de manifesta pureza e pois desde que observem uma fronteira
156 PLATÃO
ESTRANGEIRO TEETETO
— Como chegam esses homens a — E bem voluntariamente.
incutir na juventude que somente eles,
ESTRANGEIRO
e a propósito de todos os assuntos, são — É que, ao que creio, eles pare
mais sábios que todo o mundo? Pois, cem ter uma sabedoria pessoal sobre
na realidade, se como contraditores todos os assuntos que contradizem.
não tivessem razão, ou não pareces
TEETETO
sem, à sua juventude, ter razão; se, — Irrecusavelmente.
mesmo assim, a sua habilidade em dis
cutir não desse algum brilho à sua ESTRANGEIRO
— E assim fazem, a propósito de
sabedoria, então seria caso de dizer,
tudo, segundo cremos?
como tu, que ninguém viria voluntaria
mente dar-lhes dinheiro para deles TEETETO
— Sim.
aprender estas duas artes.
TEETETO ESTRANGEIRO
— Certamente. — Dão, então, a seus discípulos a
impressão de serem oniscientes.
ESTRANGEIRO
— Ora, na verdade, os que os pro TEETETO
curam o fazem voluntariamente. — Como n ã o !
SOFISTA 159
ESTRANGEIRO TEETETO
— E sem o ser, na realidade; pois, — Que dizes com isso?
como vimos, isso seria impossível. ESTRANGEIRO
TEETETO — Quem se julgasse capaz de pro
— E como não haveria de ser duzir a mim e a ti e a tudo que nasce e
impossível? cresce. . .
ESTRANGEIRO TEETETO
— Ao que vemos, pois, o que traz o — A que produção te referes? Cer
sofista é uma falsa aparência de ciên tamente não pensas num agricultor,
cia universal, mas não a realidade. pois esse homem produz até mesmo
seres vivos.
TEETETO
— Exatam ente! O que dizes parece ESTRANGEIRO
ser o que de mais justo se possa dizer a — Perfeitamente, e com eles, o
seu propósito. mar, a terra e o céu, e os deuses e tudo
o mais. Produzindo, de um só golpe,
ESTRANGEIRO
— Tomemos agora, a seu propó uma e outra destas criaturas, ele as
sito, um exemplo mais claro. vende por uma quantia bem pequena.
TEETETO
TEETETO — Pretendes brincar ao falares
— Qual?
assim !
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Este. E procura seguir-me bem — E então? Quando se afirma que
atentamente para responder-me. tudo se sabe e que tudo se ensinará a
TEETETO outrem, por quase nada, e em pouco
— A quê? tempo, não é caso de se pensar que se
ESTRANGEIRO trata de uma brincadeira?
— Quem se afirmasse capaz, não TEETETO
de explicar nem contradizer, mas de — Creio que sim, inteiramente.
produzir e executar, por uma única ESTRANGEIRO
arte, todas as coisas. . . — Ora, conheces alguma forma de
TEETETO brincadeira mais sábia e mais graciosa
— Que entendes por todas as coi que a mimética?
sas? TEETETO
ESTRANGEIRO — Nenhuma, pois a forma a que te
— É o próprio princípio de nossa referiste, como a unidade a que subor
explicação que deixaste de perceber, dinaste todas as demais, é a mais com
pois parece nada compreenderes da plexa, e quase a mais diversa que
minha expressão “todas as coisas” . existe.
TEETETO ESTRANGEIRO
— Realmente nada compreendi. — Assim, o homem que se julgasse
ESTRANGEIRO capaz, por uma única arte, de tudo
— Ora, minha expressão “todas as produzir, como sabemos, não fabrica
coisas” quer dizer tu e eu e, além de ria, afinal, senão imitações e homôni
nós, tudo o que mais há, tanto os ani mos das realidades. Hábil, na sua téc
mais como as árvores. nica de pintar, ele poderá, exibindo de
160 PLATÃO
longe os seus desenhos, aos mais ingê ESTRANGEIRO
nuos meninos, dar-lhes a ilusão de que — É precisamente porque todos
poderá igualmente criar a verdadeira nós que aqui estamos nos esforçare
realidade, e tudo o que quiser fazer. mos, e desde agora, em fazer-te avan
TEETETO
çar o mais perto possível, poupando-te
— Sem dúvida. as provas. E, para voltar ao sofista,
dize-me: já está claro que se trata de «
ESTRANGEIRO
— Não devemos admitir que tam um mágico que somente sabe imitar as
bém o discurso permite uma técnica realidades ou guardamos ainda alguma
por meio da qual se poderá levar aos veleidade acreditando que, de fato e
ouvidos de jovens ainda separados por '-ealmente, ele tem a ciência de todos
uma longa distância da verdade das os assuntos aos quais parece capaz de
coisas, palavras mágicas, e apresentar, contradizer?
a propósito de todas as coisas, ficções TEETETO
verbais, dando-lhes assim a ilusão de — Como ainda hesitar, estran
ser verdadeiro tudo o que ouvem e de geiro? Em vista do que precedeu já
que, quem assim lhes fala, tudo conhe está bastante claro que o seu lugar é
ce melhor que ninguém? entre aqueles que participam das diver
sões.
i TEETETO
— Por que razão não existiria tam ESTRANGEIRO
bém essa técnica? — Devemos, pois, situá-lo como
mágico e imitador.
ESTRANGEIRO
— Para a maior parte daqueles que TEETETO ^
— Sem dúvida alguma.
então ouviram tais discursos, não é
inevitável, Teeteto, que, transcorrido o ESTRANGEIRO
tempo suficiente de anos, com o avan — Tratemos agora de não mais dei-
çar da idade, e vistas as coisas de mais xar-nos escapar a presa que, na reali
perto, as provas que os obrigam ao dade, já está bem amarrada às malhas
claro contato com as realidades os com que o raciocínio sabe deter estas &
levem a mudar as opiniões então trans caças. Também a nossa não se esqui
mitidas, a julgar pequeno o que lhes vará mais, pelo menos, disto.
havia parecido grande, difícil o que TEETETO
c lhes parecera fácil, uma vez que os — Do quê?
simulacros que transportavam as pala
ESTRANGEIRO
vras desapareçam em presença das — De ter de colocar-se no gênero
realidades vivas? dos prestidigitadores.
TEETETO TEETETO
— Sim, tanto quanto, à minha — A esse respeito, pelo menos eu,
idade, posso julgar. Quanto a mim, concordo contigo.
entretanto, creio que ainda me encon ESTRANGEIRO
tro dentre os que uma longa distância — Eis, pois, o que ficou decidido:
separa. dividir sem demora a arte que produz
SOFISTA 161
ESTRANGEIRO TEETETO
— Ora, não é neste caso que se — É mesmo o que parece.
encontra uma grande parte da pintura ESTRANGEIRO _
e da mimética, em seu todo? — É a consciência da dificuldade
TEETETO que te leva a essa afirmação ou estará
— Sem dúvida. sendo levado pelo curso da argumenta
ESTRANGEIRO ção e pela força do hábito, ao afirma
— Mas à arte que, em lugar de uma res, tão prontamente, o que eu afirmo?
cópia, produz um simulacro, não cabe TEETETO
ria, perfeitamente, o nome de arte do — Que queres dizer? Por que essa
simulacro? pergunta?
— Sim, perfeitamente. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO — É que, realmente, jovem feliz,
— Aí estão as duas formas que te nos vemos frente a uma questão extre
anunciei da arte que produz imagens: a mamente difícil; pois, mostrar e pare
arte da cópia e a arte do simulacro. cer sem ser, dizer algo sem, entretanto,
— Isso mesmo. dizer com verdade, são maneiras que
trazem grandes dificuldades, tanto
ESTRANGEIRO
— Para o problema que então me hoje, como ontem e sempre. Que modo
deixara perplexo, o de saber em qual encontrar, na realidade, para dizer ou
destas artes colocar o sofista, ainda pensar que o falso é real sem que, já ao
não vejo, claramente, uma solução. proferi-lo, nos encontremos enredados
Esse homem é verdadeiramente um na contradição? Na verdade, Teeteto,
assombro e é muito difícil apanhá-lo a questão é de uma dificuldade extre
completamente, pois ainda desta vez, ma.
lá está ele, belo e bem refugiado, em TEETETO
uma forma cujo mistério é indecifrável. — Por quê?
fácil a resposta. Facilmente ele voltaria todos eles. Fala agora, e sem permitir-
contra nós as nossas fórmulas, e quan lhe vantagem alguma, repele o adver
do o chamássemos de produtor de ima sário.
gens ele nos perguntaria o que, afinal TEETETO
de contas, chamamos de imagens. — Que outra definição daríamos à
Devemos, pois, procurar, Teeteto, o imagem, estrangeiro, se não a de um
que se poderia responder, com acerto, segundo objeto igual, copiado do ver
a este espertalhão. dadeiro?
TEETETO ESTR A N G EIR O
— Evidentemente que responde — Teu “segundo objeto igual” sig
remos lembrando as imagens das nifica um objeto verdadeiro, ou, então,
águas e dos espelhos, as imagens pinta que queres dizer com esse “ igual” ? *
das ou gravadas, e todas as demais, da TEETETO
mesma espécie. — De forma alguma um verda
ESTR A N G EIR O deiro, certamente, mas um que com ele
— Bem se vê, Teeteto, que jamais se pareça.
viste um sofista. ESTR A N G EIR O
TEETETO — Mas, por verdadeiro, tu entendes
— Por quê? “um ser real” ?
ESTR A N G EIR O TEETETO
— Ele te parecerá um homem que — Certamente.
fecha os olhos ou que, absolutamente, ESTR A N G EIR O
não tem olhos. — Então? Por não-verdadeiro tu
TEETETO entendes o contrário do verdadeiro?
— Como assim? TEETETO
ESTR A N G EIR O — Certamente.
— Quando assim lhe responderes, ESTR A N G EIR O
ao lhe falar do que se forma nos espe — O que parece é, pois, para ti, um
lhos ou do que as mãos amoldem, ele não-ser irreal, pois o afirmas não-ver-
se rirá de teus exemplos, destinados a dadeiro.
um homem que vê. Fingirá ignorar TEETETO
espelhos, águas e a própria vista e te — Entretanto, há algum ser.
240o perguntará, unicamente, o que se deve ESTR A N G EIR O
concluir de tais exemplos. — Em todo o caso, não um ser
TEETETO verdadeiro, é o que dizes.
— O quê? TEETETO
ESTRAN G EIRO — Certamente não; ainda que ser
— O que há de comum entre todos por semelhança seja real.
esses objetos que tu dizes serem múlti ESTRAN G EIRO
plos mas que honras por um único — Assim, pois, o que chamamos
nome, que é o nome de imagem, e que semelhança é realmente um não-ser
entendes como uma unidade sobre irreal?
SOFISTA 167
As doutrinas unitárias
nhecido é, segundo vós, ação, paixão, de uma e outra poderemos negar que
ou ambas ao mesmo tempo? Ou ainda tenha tais presenças numa alma?
um é paixão, outro ação? Ou então, TEETETO
nem um nem outro não têm qualquer — De que outra forma poderia
relação nem com uma nem com outra? tê-las?
TEETETO ESTR A N G EIR O
— Evidentemente nem um nem — Teria, então, inteligência, vida e
outro, nem em relação a uma, nem em alma, e ainda que animado, permane
relação a outra. Do contrário seria ceria estático sem mover-se de nenhu
contradizer suas afirmações anteriores. ma maneira?
ESTRANGEIRO TEETETO
— Compreendo. Mas, nisto ao — Seria absurdo!, ao que me pare
menos, concordarão: se se admite que ce.
conhecer é agir, a conseqüência inevi
ESTR A N G EIR O
tável é que o objeto ao ser conhecido — Temos, pois, de conceder o ser
sofre a ação. Pela mesma razão o ser, ao que é movido e ao movimento.
ao ser conhecido pelo ato do conheci
TEETETO
mento, e na medida em que é conheci — Como negá-lo?
do, será movido, pois que é passivo, e
E ST R A N G EIR O
isso não pode acontecer ao que está em
— Do que se segue, Teeteto, que se
repouso.
os seres são imóveis, .não há inteli
TEETETO gência em parte alguma, em nenhum
— É certo.
sujeito e para nenhum objeto.
ESTRAN G EIRO
— Mas como? Por Zeus! Deixar- TEETETO
nos-emos, assim, tão facilmente, con — Certamente.
vencer de que o movimento, a vida, a ESTR A N G EIR O
alma, o pensamento não têm, realmen — Por outro lado se admitirmos
te, lugar no seio do ser absoluto; que que tudo está em translação e em
ele nem vive nem pensa e que, solene e movimento excluiremos a própria inte
sagrado, desprovido de inteligência, ligência do número dos seres.
permanece estático sem poder movi TEETETO
mentar-se? — Como?
TEETETO ESTR A N G EIR O
— Na verdade, estrangeiro, esta — Haverá jamais, a teu ver, perma
ríamos aceitando, assim, uma doutrina nência de estado, permanência de
assustadora! modo e permanência de objeto onde
ESTRAN G EIRO não houver repouso?
— Admitiremos então que ele tem TEETETO
inteligência e não tem vida? — Nunca.
TEETETO ESTR A N G EIR O
— Como admiti-lo? — E, faltando estas condições, crês
ESTR A N G EIR O que exista a inteligência ou que jamais
— Mas, afirmando nele a presença tenha existido, em alguma parte?
SOFISTA 179
A irredutibilidade do ser
ao movimento e ao repouso
TEETETO TEETETO
— Muito bem. — É mais ou menos assim.
ESTR A N G EIR O ESTR A N G EIR O
— Vejamos: o repouso e o movi — Para onde deve dirigir o racio
mento não são, na tua opinião, absolu cínio quem quiser descobrir uma teoria
tamente contrários um ao outro? bem fundada a esse respeito?
TEETETO TEETETO
— Sem dúvida. — Para onde? Dize.
ESTRAN G EIRO ESTR A N G EIR O
— Entretanto tu afirmas que — Creio que em nenhuma parte é
ambos são e tanto um como outro? fácil; pois, se uma coisa não se move,
TEETETO como é possível que não esteja para
— Sim, certamente o afirmo. da? E como deixará de ter movimento
ESTR A N G EIR O aquilo que nunca está quieto? Portan
— Dizendo que são, declaras esta to, o ser revelou-se agora como sepa
rem os dois e cada um deles em rado dos dois. Isto é possível?
movimento? TEETETO
TEETETO — É a coisa mais impossível entre
— Nunca. todas.
ESTR A N G EIR O ESTR A N G EIR O
— Mas dizendo que ambos são, — Aqui devemos lembrar isto.
declaras que estão imóveis? TEETETO
TEETETO — O quê?
— Como é isso? E ST R A N G EIR O
ESTRAN G EIRO — Que encontramos grande difi
— Logo, supões em teu espírito, culdade quando alguém nos perguntou
além dessas duas coisas, uma terceira: com que coisa se relaciona a expressão
o ser. Este abrange repouso e movi “não-ser” . Recordas?
mento. Não dizes que os dois são, TEETETO
unindo-os e observando a sua partici — Certamente.
pação na existência? E ST R A N G EIR O
TEETETO — Será porventura menor a dificul
— Parece realmente que pressen dade em que ora nos encontramos a
timos uma terceira coisa, o ser, quando propósito do ser?
dizemos que movimento e repouso são. TEETETO
ESTR A N G EIR O — A meu ver, estrangeiro, se me
— Logo, o ser não é a reunião de permites dizer, é ainda maior.
repouso e movimento, mas é coisa dife ESTR A N G EIR O
rente de ambos. — Nesse caso, paremos nossa ex
TEETETO posição nessa delicada questão. Já,
— Naturalmente. pois, que o ser e o não-ser nos trazem
ESTR A N G EIR O iguais dificuldades, podemos dora
— Por sua própria natureza, o ser vante esperar que, no dia mais ou
não está imóvel nem em movimento. menos claro, em que um deles se reve-
SOFISTA 181
lar, o outro se esclarecerá de igual que nos for possível, tomando a ambos
modo. Se nenhum deles se revelar a simultaneamente.
nós, não deixaremos de prosseguir em TEETETO
nossa discussão, da melhor maneira — Muito bem.
O problema da predicação e
a comunidade dos gêneros
unir uma a outra quaisquer coisas que imobilizam, e a tese de todos aqueles
sejam, e, considerando-as, ao contrá que, classificando os seres por Formas,
rio, como inaliáveis, como incapazes afirmam-nos eternamente idênticos e
de participação mútua, tratá-las como imutáveis. Pois todas essas pessoas
tais em nossa linguagem? Ou as unire fazem essa atribuição do ser, quer
mos todas supondo-as capazes de se falando do ser realmente móvel, quer
associarem mutuamente? Ou, enfim, falando do ser realmente imóvel.
diremos que algumas possuem essa TEETETO
capacidade e outras não? Dessas pos — Certamente.
sibilidades, Teeteto, à qual poderemos EST R A N G EIR O
afirmar que se orientará a preferência — Além do mais, todos aqueles
dos homens? que ora unificam o todo e ora o divi
TEETETO dem, seja conduzindo à unidade, ou da
— Eu, pelo menos, nada posso res unidade fazendo surgir uma infinidade;
ponder em seu nome, a esse respeito. seja decompondo-o em elementos fini
ESTRAN G EIRO tos e em elementos finitos recom
— Por que não resolves estas ques pondo; quer descrevam este duplo
tões uma a uma, procurando as conse devir como uma alternância ou uma
qüências a que cada hipótese nos coexistência eterna, não importa: nada
conduz? dizem, desde que nada pode associar-
TEETETO se.
— Tua idéia é excelente. TEETETO
ESTRAN G EIRO — É certo.
— Suponhamos, pois, pelo menos E ST R A N G EIR O
como hipótese, que a primeira afirma — Mas aqueles que, entre todos,
tiva seja, se concordas, a seguinte: exporiam sua tese ao ridículo mais rui
nada possui, com nada, possibilidade doso, são os que não querem, em caso
alguma de comunidade sob qualquer algum, consentir que, pelo efeito dessa
relação que seja. Isto não significa comunidade que um ser suporta com
excluir o movimento e o repouso de outro, qualquer que seja ele, receba
toda participação na existência? outra denominação que não a sua.
TEETETO TEETETO
— Perfeitamente. — Como?
ESTRAN G EIRO ESTR A N G EIR O
— E então? Poderá dar-se o caso — É que a propósito de tudo,
de algum deles existir e não possuir vêem-se obrigados a empregar as ex
comunidade com a existência? pressões “ ser” “ à parte” , “dos outros” ,
TEETETO “em si” , e milhares de outras determi
— É impossível. nações. Incapazes de delas se livrarem
ESTRAN G EIRO e delas se servindo em seus discursos,
— Eis uma conclusão que, rapida eles não necessitam que outro os refute
mente, inverteu tudo, ao que parece: a mas, como se diz, alojam no seu ínti
tese daqueles' que movem o Todo, a mo, o inimigo e o contraditor; e essa
tese daqueles que, afirmando-o uno, o voz que os critica no seu interior eles a
SOFISTA 183
A dialética e o filósofo
mos que o movimento e o repouso são, vimos perfeitamente que tudo o que é
c diremos que eles são o mesmo, como outro só o é por causa da sua relação
seres que são. necessária a outra coisa.
TEETETO TEETETO
— Entretanto, isso é impossível. — É verdade o que dizes.
ESTR A N G EIR O E ST R A N G EIR O
— Então é impossível que o mesmo — É necessário, pois, considerar a
e o ser não sejam senão um. natureza do “outro” como uma quinta
TEETETO forma, entre as que já estabelecemos.
— Sim, ao que parece. TEETETO
ESTR A N G EIR O — Sim.
— Deveremos, pois, às três formas ESTR A N G EIR O
precedentes, adicionar “o mesmo” — Diremos, também, que ela se
como quarta forma? estende através de todas as demais.
TEETETO Cada uma delas, com efeito, é outra
— Perfeitamente. além do resto, não em virtude de sua
ESTR A N G EIR O própria natureza, mas pelo fato de que
— E então? “ O outro” deverá ser ela participa da forma do “outro” .
contado como uma quinta forma? Ou TEETETO
será necessário entender a ele e ao ser — Certamente.
como dois nomes que servem a um gê- . ESTR A N G EIR O
nero único? — Eis, pois, o que nos é necessário
TEETETO dizer a respeito dessas cinco formas
— Talvez. tomadas uma a uma.
ESTR A N G EIR O TEETETO
— Mas concordarás, creio, que — O quê?
dentre os seres uns se expressam por si EST R A N G EIR O
mesmos e outros, unicamente em algu — Em primeiro lugar, o movimen
ma relação. to: ele é absolutamente outro que não o
TEETETO repouso. Não é o que dizemos?
— Evidentemente. TEETETO
' E ST R A N G EIR O — É.
— Ora, “o outro” se diz sempre ESTR A N G EIR O
relativamente a um outro, não é? — Logo, ele não é repouso.
TEETETO TEETETO
— Certamente. — De maneira alguma.
E ST R A N G EIR O ESTR A N G EIR O
— Isso não se daria se o ser e o — Entretanto, ele “é” pelo fato de
“outro” não fossem totalmente diferen participar do ser.
tes. Supondo-se que o “outro” partici TEETETO
passe das duas formas, como acontece — É.
com o ser, poderia acontecer que, a um E ST R A N G EIR O
dado momento, houvesse um outro que — E mais: o movimento é outro
não fosse relativo a outra coisa. Ora, já que não o “mesmo” .
188 PLATÃO
TEETETO TEETETO
— Seja. — Seria, ao contrário, perfeita
mente correto, se devemos convir que,
ESTRAN G EIRO
— Então ele não é “o mesmo”. entre os gêneros, uns se prestam à
associação mútua, outros não.
TEETETO
ESTR A N G EIR O
— Certamente não.
— Ora, essa é justamente a de
ESTRAN G EIRO monstração à qual havíamos chegado
— Entretanto, vimos que ele é o antes de atingirmos esta, e havíamos
mesmo, pois como conviemos tudo provado que é precisamente essa a sua
participava do mesmo. natureza.
TEETETO TEETETO
— Certament-e. — Evidentemente.
ESTRAN G EIRO ESTR A N G EIR O
— Então o movimento é o mesmo, — Retomemos, pois: o movimento
e não o mesmo: é necessário convir é outro que não o “outro” , assim como
nesse ponto sem nos afligirmos, pois, era outro que não o mesmo e que não o
quando dizemos o mesmo e não o repouso?
mesmo, não nos referimos às mesmas TEETETO
relações. Quando afirmamos que ele é — Necessariamente.
o mesmo é porque, em si mesmo, ele EST R A N G E IR O
participa do mesmo, e quando dizemos — Em certa relação ele não é, pois,
que ele não é o mesmo, é em conse o outro; e é outro de acordo com o
qüência de sua comunidade com “o nosso raciocínio de agora.
outro”, comunidade esta que o separa TEETETO
do “mesmo” e o torna não-mesmo, e — É verdade.
sim outro; de sorte que, neste caso, ESTR A N G EIR O
temos o direito de chamá-lo — Daí o que se segue? Iremos nós,
“não-o-mesmo” . afirmando-o outro que não os três pri
meiros, negar que seja outro que não o
TEETETO quarto, havendo concordado que os
— Perfeitamente. gêneros que estabelecemos e que nos
ESTR A N G EIR O propusemos examinar eram cinco?
— Se, pois, de alguma maneira, o TEETETO
próprio movimento participa do repou — E o meio? Não podemos admitir
so, haveria algo de estranho em cha um número menor que aquele que há
má-lo estacionário? pouco demonstramos?
SOFISTA 189
tes como seres pela mesma razão que o samente; o não-ser que buscávamos a
que quer que seja. propósito do sofista.
TEETETO
EST R A N G EIR O
— Evidentemente.
— Ele não é, pois, como disseste,
E STR A N G EIR O
— Assim, ao que parece, quando inferior em ser a nenhum outro. É
uma parte da natureza do outro e uma necessário animarmo-nos a proclamar,
parte da natureza do ser se opõem desde já, que o não-ser é, a título está
mutuamente, esta oposição não é, se vel, possuidor de uma natureza que lhe
assim podemos dizer, menos ser que o é própria do mesmo modo que o gran
próprio ser; pois não é o contrário do de era grande e o belo era belo, e o
ser o que ela exprime; e sim, simples não-grande, não-grande, e o não-belo,
mente, algo dele diferente. não-belo; por essa mesma razão tam
TEETETO bém, o não-ser era e é não-ser, unidade
— É claro. integrante no número que constitui a
ESTR A N G EIR O multidão das formas. Ou a teu ver,
— E, então, que nome lhe daría
mos? Teeteto, teríamos alguma dúvida?
TEETETO TEETETO
— Claro que o de “não-ser” preci — Nenhuma.
TEETETO ESTRANGEIRO
— Sim. — Quanto aos sujeitos que execu
d ESTRANGEIRO tam essas ações, o sinal vocal que a
— Prossigamos, a exemplo do que eles se aplica é um nome.
falamos das formas e das letras, e do TEETETO
mesmo modo refaçamos esta pesquisa, — Perfeitamente.
tomando por objetos os nomes. Este é
ESTRANGEIRO
um ponto de vista, no qual se deixa — Nomes apenas, enunciados de
entrever a solução que procuramos. princípio a fim, jamais formam um dis
TEETETO curso, assim como verbos enunciados
— Que questão proporás, pois, a sem o acompanhamento de algum
propósito desses nomes? nome.
*
ESTRANGEIRO TEETETO
— Se todos concordam, ou ne — Eis o que eu não sabia.
nhum; ou se uns se prestam a um acor
ESTRANGEIRO »
do, e outros não. — É que, certamente, tinhas outra
TEETETO coisa em vista, dando-me, há pouco,
— A última hipótese é evidente: teu assentimento; pois o que eu queria
uns se prestam a ele; outros não. dizer era exatamente isso: enunciados
ESTRANGEIRO numa seqüência como esta, eles não
— Eis, talvez, o que entendes por formam um discurso.
isso: aqueles que, ditos em ordem,
TEETETO
« fazem sentido, concordam; os outros,
— Em que seqüência?
cuja seqüência não forma sentido
nenhum, não concordam. ESTRANGEIRO
— Por exemplo, anda, corre,
TEETETO
— Como assim? Que queres dizer? dorme, e todos os demais verbos que
significam ação; mesmo dizendo-os
ESTRANGEIRO
— O que julguei teres no espírito, todos, uns após outros, nem por isso
ao concordares comigo. Possuímos, na formam um discurso.
verdade, para exprimir vocalmente o TEETETO
ser, dois gêneros de sinais. — Naturalmente.
TEETETO ESTRANGEIRO
— Quais? — E se dissermos ainda: leão,
262 a ESTRANGEIRO cervo, cavalo, e todos os demais nomes
— Os nomes e os verbos, como os que denominam sujeitos executando
chamamos. ações, há, ainda aqui, uma série da '
TEETETO qual jam ais resultou discurso algum;
— Explica tua distinção. pois, nem nesta, nem na precedente, os
ESTRANGEIRO sons proferidos indicam nem ação,
— O que exprime as ações, nós nem inação, nem o ser, de um ser, ou
chamamos verbo. de um não-ser, pois não unimos verbos
TEETETO aos nomes. Somente unidos haverá o
— Sim. acordo e, desta primeira combinação
196 PLATÃO
TEETETO TEETETO
— Sim. — Certamente.
E STR A N G EIR O ESTR A N G EIR O
— Que qualidade devemos, pois, — Ora, se não se refere a ti, não se
atribuir a um e outro? refere, certamente, a ninguém mais.
TEETETO TEETETO
— Poderemos dizer que um é falso, — Evidentemente.
outro verdadeiro. ESTR A N G EIR O
ESTR A N G EIR O — Não discorrendo sobre pessoa
— Ora, aquele que, dentre os dois, alguma, não seria então, nem mesmo
é verdadeiro, diz, sobre ti, o que é tal um discurso. Na verdade demons
como é. tramos que é impossível haver discurso
TEETETO
que não discorra sobre alguma coisa.
— Claro! TEETETO
ESTR A N G EIR O
— Perfeitamente exato.
— E aquele que é falso diz outra ESTR A N G EIR O
coisa que aquela que é. — Assim, o conjunto formado de
TEETETO
verbos e de nomes, que enuncia, a teu
— Sim. respeito, o outro como sendo o mesmo,
e o que não é como sendo, eis, exata
E ST R A N G EIR O
mente, ao que parece, a espécie de con
— Diz, portanto, aquilo que não é.
junto que constitui, real e verdadeira
TEETETO
mente, um discurso falso.
— Mais ou menos.
TEETETO
ESTR A N G EIR O — É a pura verdade.
— Ele diz, pois, coisas que são,
ESTR A N G EIR O
mas outras, que aquelas que são a teu — E então? Não é evidente, desde
respeito; pois, como dissemos, ao já, que o pensamento, a opinião, a
redor de cada realidade há, de certo imaginação, são gêneros suscetíveis,
modo, muitos seres e muitos não-seres. em nossas almas, tanto de falsidade
TEETETO como de verdade?
— Certamente. TEETETO
ESTR A N G EIR O — Como?
— Assim, o último discurso que fiz E ST R A N G EIR O
a teu respeito deve, em primeiro lugar, — Compreenderás mais facilmente
e tendo em vista o que definimos como a razão se me deixares explicar em que
a essência do discurso, ser, necessaria eles consistem e em que diferem um
mente, um dos mais breves. dos outros.
TEETETO TEETETO
— Pelo menos é o que resulta de — Explica.
nossas conclusões de há pouco. E ST R A N G E IR O
ESTR A N G EIR O — Pensamento e discurso são, pois,
— Deve, em segundo lugar, refe a mesma coisa, salvo que é ao diálogo
rir-se a alguém. interior e silencioso da alma consigo
198 PLATÃO
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Não nos desencorajemos, pois, — Dividimos a arte que produz as
com aquilo que resta fazer. Uma vez imagens em duas formas: uma produz
esclarecido este ponto, recordemos a cópia, outra produz o simulacro.
nossas anteriores divisões por formas. TEETETO
— Sim.
TEETETO ESTRANGEIRO
— Exatamente que divisões? — Quanto ao sofista, embaraça-
SOFISTA 199
mo-nos sem saber em que forma este método, têm as mais próximas afi- m «
colocá-lo. nidades de espírito.
TEETETO TEETETO
— Realmente. — Muito bem.
ESTR A N G EIR O E ST R A N G EIR O
— E no meio desta dificuldade uma — Não começamos, então, nossas
vertigem ainda mais tenebrosa nos ata divisões pela arte da produção e arte
cou quando se propôs o argumento da aquisição?
que, contrariando a todos, sustenta que TEETETO
nem a cópia, nem a imagem, nem o — Sim.
i simulacro são; pois não há falsidade ESTR A N G EIR O
de modo algum, em tempo algum, em — E, na arte da aquisição, a caça,
parte alguma. a luta, o negócio, e outras formas desta
TEETETO
espécie, não nos deixaram entrever o
— É verdade. sofista?
ESTR A N G EIR O TEETETO
— Agora, entretanto, uma vez des — Perfeitamente.
coberta, pelo menos, a existência do E ST R A N G EIR O
discurso falso, e da opinião falsa, são — Já que ele está incluído na arte
possíveis as imitações dos seres; e da mimética 6, é evidentemente necessário,
intenção em produzi-las, pode nascer em primeiro lugar, dividir em dois a
uma arte da falsidade. própria arte da produção. Pois a imita- <>
ção é, na verdade, uma espécie de pro
TEETETO
— É, realmente, possível. dução; produção de imagens, certa
mente, e não das próprias realidades.
E ST R A N G EIR O Não é certo?
— Que o sofista, finalmente, fosse
TEETETO
colocado em uma das formas acima — Sim, perfeitamente.
referidas, é uma conclusão sobre a
ESTR A N G EIR O
qual já concordamos anteriormente.
— Comecemos, então, por distin
TEETETO guir, na produção, duas partes.
— Sim. TEETETO
ESTR A N G EIR O — Quais?
— Procuremos* então, prosseguir EST R A N G EIR O
novamente, dividindo em dois o gênero — Uma divina, outra humana.
* proposto, e seguindo sempre a parte TEETETO
direita de nossas divisões, e prenden — Ainda não compreendo.
do-nos ao que elas apresentam de E ST R A N G EIR O
comum com o sofista, até que, haven — É produtor, dizíamos, se nos
do-o despojado de tudo o que ele tem recordamos de nosso início, todo
de comum, só lhe deixemos a sua natu poder que se torna causa daquilo que,
reza própria. Poderemos, assim, tor
6 Arte mimética é a arte da imitação, conside
ná-la clara, primeiramente a nós mes rada em seus caracteres gerais e em suas seme
mos, e, em seguida, àqueles que, com lhanças com o que se produz. (N. d o T .)
200 PLATÃO
rados igualmente a produção e a obra pela arte que produz as coisas reais; de
de Deus. É o que sabemos, não é outro, a imagem, devida à arte que
certo? produz imagens.
TEETETO TEETETO
— Sim. — Agora compreendo melhor e
estabeleço, para a arte da produção,
E STR A N G EIR O
— Ao lado de cada uma delas vêm, duas formas, das quais cada uma é
em seguida, colocar-se suas imagens dupla; de um lado, produção divina e
que não são mais suas realidades, e produção humana; de outro, criação
que também devem a sua existência a de coisas, ou criação de certas seme
uma arte divina. lhanças.
TEETETO ESTR A N G EIR O
— Que imagens? — Muito bem; mas lembremos que
ESTR A N G EIR O esta produção de imagens deveria
— Aquelas que nos vêm no sono e compreender dois gêneros: a produção
todos os simulacros que, durante o dia, de cópias e a produção de simulacros,
se formam, como se diz, espontanea- uma vez demonstrado ter o falso um
c mente: a sombra que projeta o fogo ser real de falso e assim contado, por
quando as trevas o invadem; e esta direito de sua natureza, como unidade <•
aparência, ainda, que produz, em su entre os seres.
perfícies brilhantes e polidas, o concur TEETETO
so, num mesmo ponto, de duas luzes: — Foi exatamente esse nosso ra
sua luz própria e uma luz estranha, e ciocínio.
que opõe, à visão habitual, uma sensa
ESTR A N G EIR O
ção inversa. — Ora, a demonstração foi feita e,
TEETETO por conseguinte, é incontestável nosso
— Eis, pois, as duas obras da pro direito de distinguir essas duas formas.
dução divina: de um lado, a coisa em TEETETO
si mesma; e de outro, a imagem que — Sim.
acompanha cada coisa.
E ST R A N G EIR O 26
ESTR A N G EIR O — Dividamos, ainda, o simulacro
— Mas que diremos de nossa arte em dois.
humana? Não afirmaremos que, pela TEETETO
arte do arquiteto, se cria uma casa — Em que sentido?
real, e, pela arte do pintor, uma outra
ESTR A N G EIR O
casa, espécie de sonho apresentado — De um lado, o simulacro se faz
pela mão do homem a olhos desper por meio de instrumentos. De outro, a
tos? pessoa que executa o simulacro se
* TEETETO presta, ela própria, como instrumento.
— Perfeitamente. TEETETO
E STR A N G EIR O — Que queres dizer?
— Assim, pois, se repete até o fim E ST R A N G EIR O
esta dualidade de obras de nossa ação — Supõe que alguém movimente o
produtora: de um lado, a própria coisa, seu corpo para reproduzir uma atitude
202 PLATÃO
tua, ou sua voz para reproduzir a tua suas forças e zelo, para fazê-la apare
voz; esta maneira de simular é, acredi cer como uma qualidade pessoal real
to, o que se chama propriamente por mente neles presente, imitando-a o
mímica. mais que podem em seus atos e
TEETETO palavras?
— Sim. TEETETO
ESTRAN G EIRO — Muitos, realmente, muitos.
— Separemos, pois, esta parte com EST R A N G EIR O
o nome de mímica. Quanto ao resto, — E será que todos falham em
deixemos tranqüilamente de lado, sem parecer justos sem absolutamente o
com ele preocupar-nos, ficando a ou serem? Ou é exatamente o contrário o
tros o cuidado de reduzi-lo à unidade e que acontece?
de dar-lhe um nome conveniente. TEETETO
TEETETO — Exatamente o contrário.
— Sim, separemos e prossigamos. EST R A N G EIR O
ESTRAN G EIRO — Eis, pois, dois imitadores que é
— Mas esta primeira parte, Teete- necessário considerar diferentes um do
to, deve ainda ser dividida em dois. outro: aquele que não sabe e aquele
Vejamos por quê. que sabe.
TEETETO TEETETO
— Dize-o. — Sim.
ESTR A N G EIR O E ST R A N G EIR O
— Dentre os que imitam, uns co — Sendo assim, onde encontra
nhecem o objeto que imitam, e outros remos para cada um deles um nome
assim fazem sem o conhecer. Orá, que que lhes caiba? Evidentemente é difícil
maior princípio de divisão poderemos encontrá-lo, pois para esta divisão
estabelecer senão este do não-conhe- por gêneros e formas, parece ter sido
cimento e do conhecimento? inveterada a indolência de nossos
TEETETO predecessores que dela tiveram tão
— Nenhum. pouca noção que nem mesmo o tenta
ESTR A N G EIR O ram. Assim, nossos recursos a propó
— Bem; a imitação de que faláva sito de nomes são, necessariamente,
mos há pouco, era imitação por pes pouco abundantes. Entretanto, embora
soas que conhecem, pois tua figura e pareça muito ousada nossa expressão,
tua pessoa são possíveis de serem nós a usaremos para distinguir bem
conhecidas por quem quer que queira uma da outra: à imitação que se apóia
imitá-las. na opinião daremos o nome de doxo-
TEETETO mimética; e à que se apóia na ciência,
— Naturalmente. o nome de mimética sábia.
ESTR A N G EIR O TEETETO
— Mas que dizer da figura da justi — Está bem.
ça, e, em geral, de toda virtude? Não E ST R A N G EIR O
haverá muitos que, sem a conhecer, — Ora, é da primeira que nos deve
mas dela tendo apenas uma opinião mos ocupar, pois o sofista não per
qualquer, se desdobram em todas as tence ao número daqueles que sabem,
SOFISTA 203
mas daqueles que se limitam a imitar. argumentos breves, obrigando seu in
TEETETO terlocutor a se contradizer.
— Certamente. TEETETO
ESTR A N G EIR O — O que dizes é bem exato.
— Examinemos, então, o doxô- ESTR A N G EIR O
mimo para ver se ele é perfeito como — Que personagem, será, pois,
uma barra de ferro ou se há nelè algu para nós, o homem dos discursos lon
ma divisão. gos? Político ou orador popular?
TEETETO TEETETO
— Examinemos. — Orador popular.
ESTR A N G EIR O ESTR A N G EIR O
— Há, realmente, e uma divisão — E como chamaremos ao outro?
26s a bem visível. Dentre estes imitadores há Sábio ou sofista?
o ingênuo, que crê ter ciência do que TEETETO
apenas tem opinião, e, além dele, outro — Sábio, exatamente, é impossível,
que, de tanto haver revolvido os argu pois já afirmamos que ele não sabe
mentos, em si mesmo desperta uma nada. Mas, porque imita ao sábio, ele
forte desconfiança, uma viva apreen terá um nome que se aproxime deste, e
são de ignorância pessoal, mesmo em já estou quase convencido de que é a
relação a assuntos sobre os quais, seu propósito que devemos dizer: eis,
diante dos outros, ele se dá ares de verdadeiramente, nosso famoso sofista.
sábio. ESTR A N G EIR O
TEETETO — Encerraremos aqui a cadeia,
— Um e outro gênero existem, como o fizemos anteriormente, rea
certamente, tal como dizes. tando juntos, de ponta a ponta, retros
ESTR A N G EIR O pectivamente, os elementos de seu
— Assim, a um consideraremos nome.
simples imitador, e a outro como imi TEETETO
tador irônico? — É precisamente o que quero.
TEETETO E ST R A N G EIR O
— É razoável. — Assim, esta arte de contradição
ESTR A N G EIR O que, pela parte irônica de uma arte fun
— E o gênero ao qual pertence este dada apenas sobre a opinião, faz parte
último, consideraremos único ou da mimética e, pelo gênero que produz
duplo? os simulacros, se prende à arte de criar
TEETETO imagens; esta porção, não divina mas *
— Decide tu mesmo. humana, da arte de produção que, pos
i ESTR A N G EIR O suindo o discurso por domínio próprio,
— Ao examinar, percebo clara através dele produz suas ilusões, eis
mente dois gêneros. No primeiro, dis aquilo de que podemos dizer “que é a
tingo o homem capaz de praticar esta raça e o sangue” do autêntico sofista,
ironia em reuniões públicas, em longos afirmando, ao que parece, a pura
discursos, diante de multidões; ao verdade.
passo que o outro, em reuniões parti TEETETO
culares, dividindo seu discurso em — Perfeitamente.
POLÍTICO
Sócrates, Teodoro, Estrangeiro,
Sócrates, o Jovem
estes jovens poderão ser meus parentes Sócrates, ele não teria lugar na mesma
longínquos. Dizes que um deles se pa classificação.
rece comigo, pelos traços fisionômi- SÓCRATES, O JOVEM
258 a c o s 5; o outro, tendo nome semelhante — Em qual, então?
ao meu, terá comigo certo parentesco. ESTR A N G EIR O
E nós devemos sempre procurar reco — Em outra.
nhecer nossos parentes pela maneira SÓCRATES, O JOVEM
por que conversam. Com Teeteto con — Sim, é o que parece.
versei ontem e ouvi, ainda há pouco, o E ST R A N G EIR O
que te respondeu; mas do jovem Sócra — E onde poderíamos encontrar o
tes, nada ouvi. É mister, porém, que o caminho pelo qual poderemos chegar à
conheçamos. Interroga-o tu primeiro e compreensão do que é o político? É
mais tarde responderá a mim. mister que o encontremos e que o sepa
ESTRANGEIRO remos dos demais, diferenciando-o por
— Muito bem. Ouviste, jovem Só aquilo que lhe é característico, para, a
crates, o que disse Sócrates? seguir, dar aos outros caminhos, que
SÓCRATES, O JOVEM dele se afastam, um caráter único espe
— Sim. cífico a todos, de sorte a finalmente
ESTRANGEIRO permitir ao nosso espírito classificar
— Concordas com o que ele pro todas as ciências em duas espécies.
põe?
SÓCRATES, O JOVEM
SÓCRATES, O JOVEM
— Esse trabalho, caro Estrangeiro,
— Com todo o gosto.
parece-me ser teu, e não meu.
b ESTRANGEIRO
— Assim se tu não te recusas, E ST R A N G E IR O *
— Entretanto, jovem Sócrates, en
muito menos posso eu recusar-me. De
contrando esse caminho, ele será tanto
pois do sofista, penso que devemos
teu quanto meu.
agora estudar o político. Dize-me,
SÓCRATES, O JOVEM
pois: devemos ou não colocar o polí
— Está bem.
tico entre os sábios?
ESTR A N G EIR O
SÓCRATES, O JOVEM — A aritmética assim como outras
— Sim.
artes que lhe são semelhantes não são
ESTRANGEIRO
— Nesse caso devemos classificar separadas da ação e dirigidas apenas
as ciências do mesmo modo como o para o conhecimento?
fazíamos ao estudar a personagem SÓCRATES, O JOVEM
precedente 6? — É verdade.
SÓCRATES, O JOVEM E ST R A N G EIR O
— Creio que sim. — Entretanto, as artes que se rela
ESTRANGEIRO cionam com a arquitetura ou com
— Mas, ao que me parece, jovem qualquer outra forma de construção
5 Também no diálogo Teeteto assinala-se a se manual estão ligadas originalmente à
melhança fisionômica entre Sócrates e Teeteto. ação e o seu concurso à ciência faz «
(N. do T.)
8 A personagem precedente é o Sofista. (N. com que sejam produzidos corpos que
do T.) antes não existiam.
POLÍTICO 209
ca, com o papel de simples espectador, pesquisa tem por objeto o dirigente e
ou será melhor decidirmos pela arte não o oposto do dirigente.
diretiva, pois na realidade ele ordena, SÓCRATES, O JOVEM
como o senhor? — Sim.
SÓCRATES, O JOVEM ESTR A N G EIR O
— Não há razão para hesitar. — Ora, muito bem, se o gênero em
ESTR A N G EIR O questão está bem separado dos outros
— Devemos agora examinar se por meio desta oposição, do poder pes
também a arte de dirgir permite qual soal e do poder de empréstimo, é mis
quer divisão. Penso que do mesmo ter que o dividamos, por sua vez, se
modo que na arte dos comerciantes se encontrarmos nele possibilidade para
distinguem os produtores dos revende- isso.
d dores, da mesma foram se diferencia o
SÓCRATES, O JOVEM
gênero real do gênero dos arautos. — Perfeitamente.
SÓCRATES, O JOVEM
ESTR A N G EIR O
— Como? — Julgo que há essa possibilidade.
ESTR A N G EIR O Acompanha-me e faze comigo essa
— Os comerciantes, comprando as divisão.
mercadorias produzidas por outrem, as
SÓCRATES, O JOVEM
revendem a terceiros. — Qual?
SÓCRATES, O JOVEM
— Claro. ESTR A N G EIR O
— Quando pensamos em dirigen
ESTR A N G EIR O
— Assim também a família dos tes, no exercício de alguma direção,
arautos recebe as decisões alheias para não vimos também que as suas ordens >>
têm sempre como finalidade alguma
transmiti-las a terceiros.
SÓCRATES, O JOVEM
coisa a ser produzida?
— É verdade. SÓCRATES, O JOVEM
ESTR A N G EIR O
— Evidentemente.
— E então? Confundiremos a arte E STR A N G EIR O
do rei com a do intérprete, do patrão — Pois bem. Não é difícil dividir-se
* de barco, do adivinho, do arauto e em duas partes tudo o que se produz.
muitas outras semelhantes, que têm em SÓCRATES, O JOVEM
si, realmente, um poder diretivo? Ou — De que maneira?
preferes que, prosseguindo a nossa ESTR A N G EIR O
comparação, forjemos, por analogia, — Uma parte desse todo é formada
um outro nome, pois nenhum existe pelos seres inanimados, e a outra pelos
para designar esse gênero de dirigentes seres animados.
cujo mando deriva deles mesmos? Este SÓCRATES, O JOVEM
característico servirá para a nossa — Sim.
divisão e assim poremos o gênero real E ST R A N G EIR O
na classe autodirigente sem nos preo — É desse mesmo modo que a
cuparmos com as demais e darmos a parte diretiva da ciência teórica deve
elas outro nome qualquer, pois a nossa ser dividida.
212 PLATÃO
Quadrupedes e bípedes.
O concurso das duas majestades
266 a E STRAN G EIRO SÓCRATES, O JOVEM
— Todos os seres mansos e que — Não.
vivem em rebanho já estão discrimi ESTR A N G EIR O
nados, exceto duas espécies, pois, ao — Ora, o modo de caminhar pró
que creio, não convém incluir a família prio a um segundo gênero tem um
dos cães no número dos animais que se valor igual à diagonal daquele valor
criam em rebanhos. próprio ao nosso modo de caminhar,
SÓCRATES, O JOVEM pois que, naturalmente, ele vale duas
— Não, mas segundo que princípio vezes dois pés.
dividiremos essas duas espécies? SÓCRATES, O JOVEM
ESTR A N G EIR O — É certo. Agora começo a com
— Segundo o princípio que distin preender aonde queres chegar.
gue Teeteto de ti, pois que vós ambos E ST R A N G E IR O
vos ocupais da geometria. — Mas, caro Sócrates, não vemos
SÓCRATES, O JOVEM ocorrer novamente, nessa divisão, algo *
— Como? ridículo?
E STR A N G EIR O SÓCRATES, O JOVEM
— Pela diagonal, e depois pela dia — O quê?
gonal da diagonal. E ST R A N G EIR O
SÓCRATES, O JOVEM — Colocar o gênero humano na
— Como? mesma liça e fazê-lo disputar em velo
b ESTR A N G EIR O cidade com o gênero de seres ao
— A natureza do gênero humano mesmo tempo imponente e o mais
nos permitirá um modo de caminhar indolente.
diverso daquele que se exprime pelo SÓCRA TES, O JOVEM
valor da diagonal, igual a dois pés8. — Sim, vejo, é uma coincidência
curiosa.
8 Pé é medida grega. No M enão está substituí
do pelo metro, a fim de facilitar a leitura do EST R A N G E IR O
diálogo pelo leitor moderno. Encontramos no — Mas como? Não é natural que o
Político idêntico quadrado ao que aparece na
quele livro. A diagonal dessa figura é o lado mais vagaroso venha por último?
de um quadrado cuja área é o duplo da área SÓCRATES, O JOVEM
do primeiro quadrado. A digressão pela mate — Sim.
mática é puramente simbólica. A área do qua
drado cujo lado mede dois pés de quatro pés ESTR A N G EIR O
quadrados e sua diagonal é o lado do quadra — Mas não observas também que o
do de área dupla. Por causa desses dois núme
ros — dois e quatro — o autor considera a rei será ainda mais ridículo ao concor
diagonal ,do 10 quadrado como símbolo do mo rer com seu rebanho e ao medir-se,
do de andar dos seres de dois pés e a d o 2°
quadrado — cujo lado é a diagonal do 19 — sobre a pista, com o homem mais *
como símbolo do modo de andar dos quadrú entregue a esta vida indolente9.
pedes. Essas proposições provocam sorrisos
entre os ouvintes, predispondo-os a prestar mais 9 Platão refere-se aqui aos monarcas persas que
atenção. Tal método didático era empregado estão sempre cercados de ajudantes, fâmulos e
pelo autor em suas aulas. (N. do T .) companheiros. (N. d o T .)
POLÍTICO 219
mais sem chifres; e, ainda, esta raça de procuramos; a arte que se honra por
animais sem chifres inclui uma parte dois nomes: política e real.
que só poderá ser compreendida por SÓCRA TES, O JOVEM
um único termo pela adição necessária — Exatamente.
EST R A N G E IR O
de três nomes: ela se chamará “a arte
— Mas, Sócrates, essa pesquisa foi
de criar raças que não se cruzam”. Por realizada por nós assim como acabas
fim, a última subdivisão restante nos de dizer?
rebanhos bípedes, será a arte de dirigir SÓCRATES, O JOVEM
os homens. É precisamente o que — Que pesquisa?
Crítica da definição. Os
rivais do político
membros do rebanho, mas também dos que 10 000 outros que pretendam
governantes? sê-lo.
SÓCRATES, O JOVEM SÓCRATES, O JOVEM
— E não teriam razão de assim — De nenhum modo.
protestar? E STR A N G EIR O
— Não teríamos nós razões para
E ST R A N G EIR O
inquietação quando, ainda há pouco,
— Talvez. Haveremos de ver. Uma
nos assaltou a suspeita de que talvez
coisa, porém, sabemos, e que ninguém
houvéssemos traçado um esboço plau
negará, é que isso também se estende
sível do caráter real mas que, no entan
ao criador de bois. É ele que alimenta
to, não o leváramos até o retrato fiel
o seu rebanho, é ele o médico e só ele
do político, pelo fato de não o distin
escolhe os coitos: tanto na procriação
guirmos de todos aqueles que à sua
como no nascimento, é o único par
volta se agitam e que reclamam uma
teiro competente. Na medida em que
parte dos seus direitos de pastor? Não
seus animais participam da sedução da
o separamos suficientemente dos seus
música, nenhum outro é mais capaz de
rivais para mostrá-lo, unicamente, na
acalmá-los e de consolá-los por meio
sua pureza?
de sons. Sabe executar excelentemente
a música de que seu rebanho gosta, SÓCRATES, O JOVEM
— Muito bem.
seja por intermédio de instrumentos,
seja apenas pela voz. O mesmo poder- ESTR A N G EIR O
— É o que faremos, caro Sócrates,
se-ia dizer dos demais pastores, ou
se não quisermos levar esta discussão
não?
a um fim que a desmereça.
SÓCRA TES, O JOVEM SÓCRATES, O JOVEM
— Claro. — É o que preciso evitar a todo
EST R A N G EIR O custo.
— Mas, então, será tão certa e E ST R A N G EIR O
inatacável a nossa teoria sobre o rei? — Partiremos de outro ponto, pros
Nós o consideramos como pastor e seguiremos por outro caminho.
alimentador do rebanho humano, di SÓCRATES, O JOVEM
zendo que é ele mais importante do — Qual?
222 PLATÃO
O Recurso ao Mito
agora, deveremos conhecer, pois que é capaz. Eis por que foi animado do
ela nos será útil para definir a natureza movimento de retrocesso circular que
do rei. dentre todos é o que menos o afasta de
SÓCRATES, O JOVEM
seu movimento primitivo. Ser a causa
— Disseste bem. Conta-a, e nela contínua de sua própria rotação não é
não suprimas nada! possível senão ao que rege tudo aquilo
que se move. Esse ser, porém, não
EST R A N G E IR O
pode mover-se, ora num sentido, ora
— Escuta! Este universo, em que
no sentido contrário. Por estas razões
estamos, algumas vezes é o próprio
todas não podemos afirmar que o
Deus que lhe dirige o curso e preside à
mundo seja a causa contínua de sua
sua revolução; outras vezes, termina
própria rotação nem dizer que toda
dos os períodos que lhe foram determi
nados, ele o deixa seguir; e então, por ela, sem interrupção, é dirigida por um
deus nas suas revoluções contrárias e
si mesmo, o Universo retoma o seu
curso circular, em sentido inverso, em alternadas e muito menos que ela se
deve a duas divindades cujas vontades
virtude da vida que o anima e da inteli
se opõem. Mas, como dizia há pouco,
gência que lhe foi dada, desde a sua
a única solução que resta é que umas
origem, por aquele que o criou. Esse
vezes ela seja dirigida por uma ação
movimento de retrocesso faz parte
estranha e divina e assim, recebendo
necessariamente da sua natureza, pelo
uma nova vida, recebe, igualmente de
motivo seguinte.
seu autor, uma nova imortalidade, que
SÓCRATES, O JOVEM
outras vezes, abandonado a si mesmo,
— Que motivo?
caminhe em retrocesso durante milha
EST R A N G EIR O res e milhares de períodos, pois que a
— Somente ao que há de mais divi sua grande massa se move num per
no convém conservar sempre as mes feito equilíbrio sobre um eixo extrema
mas qualidades, permanecer no mesmo mente pequeno.
estado e ser sempre o mesmo. A natu SÓCRATES, O JOVEM
reza corpórea não participa dessa — Tudo a que acabas de dizer pa
ordem. O que chamamos céu e mundo, rece estar bem próximo da verdade.
apesar dos muitos dotes esplêndidos EST R A N G EIR O
que recebeu de seu criador, está preso — Prossigamos no raciocínio e
à sorte do corpo. Por isso é impossível examinemos a causa, como dissemos,
que fique eternamente alheio à mudan de todos esses prodígios. Ele consiste
ça e, na medida de suas forças, move- no seguinte:
se no mesmo espaço, com um movi SÓCRATES, O JOVEM
mento mais idêntico e mais uno de que — Em quê?
224 PLATÃO
Os filhos da Terra
Os Pastores Divinos
O mundo abandonado
Assim termina este mito, do qual a tomaram desde logo selvagens, agora
primeira parte servirá à nossa teoria do que também eles se viram sem força e
Rei. Quando o mundo, por um movi sem proteção, os homens se tomaram
mento reverso, desviou-se para o modo presas desses animais. Nos primeiros
atual de geração, a evolução das ida tempos, não tiveram qualquer indús
des parou uma segunda vez para voltar tria ou arte; e foi desde este momento
num sentido contrário àquele que de grande abandono, em que seus ali
então seguia. Os seres vivos que se ha mentos deixaram de vir-lhes esponta
viam reduzido a quase nada voltaram neamente, e em que não sabiam ainda
a crescer e os corpos recém-nascidos procurá-los, pois que nenhuma necessi
da terra tomaram-se grisalhos, defi- dade os havia, até então, obrigado a
274« nharam-se e voltaram à terra. E todo o isso, que, segundo as antigas tradições,
resto voltou, da mesma forma em sen nos foram dadas, pelos deuses, lições e
tido contrário, amoldando-se e regu- ensinamentos indispensáveis: o fogo
lando-se à nova evolução do universo; por Prometeu1 2; as artes por Hefes-
e especialmente a gestação, o parto e a to 1 3 e sua companheira; as sementes e
criação imitaram e seguiram o pro as plantas por outras divindades.
cesso geral. Já não era possível que o Assim tudo o de que a vida humana é
animal nascesse do seio da terra, por feita nasceu desses primeiros passos;
um concurso de elementos estranhos; quando os homens, como disse, vi
uma vez que o mundo assim se tomara ram-se privados da vigilância divina,
o seu próprio senhor, sujeito a dirigir a devendo conduzir-se sós e zelar por si
sua evolução, também as suas partes mesmos, tal como o universo, pois
deveriam, por uma lei análoga, conce tudo o que fazemos é imitá-lo e segui-
ber, dar à luz e criar por si mesmas, na lo, alternando, na eternidade do tempo,
•> medida em que pudessem. E assim eis- estas duas maneiras opostas de viver e
nos agora chegados ao ponto a que se nascer. Terminemos aqui o nosso mito,
dirigia todo este raciocínio. No que se dele nos servindo para medir a falta
refere aos outros animais seriam neces que cometemos ao definir, como o fize
sárias muitas palavras e muito tempo mos anteriormente, o homem real e o
para dizer qual era então a condição político.
de cada espécie e por que influências SÓCRATES, O JOVEM
ela se modificou; mas relativamente — A que falta te referes, e qual a
aos homens, esta exposição será mais sua importância?
breve e mais a propósito. Uma vez pri 12 Prometeu: gigante amigo dos homens. Doou
o fogo aos homens, contra a vontade de Zeus.
vados dos cuidados deste deus que os Nesta versão, porém, o fogo é dádiva feita aos
possuía e os mantinha sob sua guarda, homens pelos próprios deuses. (N .d o T .)
13 Hefesto: deus dos ferreiros. A companheira
cercados de animais dos quais a maior de Hefesto é Atena, protetora dos trabalhos
parte era naturalmente feroz, e que se manuais femininos, como o bordado. (N. do T.)
POLÍTICO 229
sario, pois, um nome que servisse a comum a todos? Falando, pois, da arte
todos, ao mesmo tempo. que se ocupa dos rebanhos, que por
SÓCRATES, O JOVEM eles vela e deles cuida, designando a
— O que dizes é certo, desde que função que compete a todos, haveria
tal nome exista. um termo capaz de servir ao político e
ESTR A N G EIR O a todos os seus rivais, e é esse, precisa
— Como não? O cuidado para mente, o fim de nossa pesquisa.
com os rebanhos desde que não se SÓCRATES, O JOVEM
determine como alimentação ou qual — Bem, mas como proceder então m,
quer outro cuidado específico, não é à divisão que seguiria?
forma nós, procurando corrigir, sem minado, mas ao qual, entretanto, falta
demora, e de maneira grandiosa o erro o relevo que lhe será dado pela pintura
cometido em nossa exposição anterior, e pela harmonia de cores. E o que me
acreditamos que para o Rei só eram lhor nos convém não é o desenho, nem
dignos os modelos de alta grandeza; e uma representação manual qualquer;
assim tomamos uma parte enorme de são as palavras e o discurso; pois que
uma lenda da qual nos servimos mais se trata de expor um assunto vivo a
do que seria necessário, alongamo-nos espíritos capazes de segui-lo. Para
na demonstração sem havermos, afi outros, seria necessária uma represen
nal, chegado ao fim de nosso mito. Ao tação material.
contrário do que te parece, o nosso dis SÓCRATES, O JOVEM
curso se assemelha a um quadro muito — É certo. Mas é preciso mostrar
bem desenhado em suas linhas exterio então o que, segundo crês, falta em
res, de sorte a dar a impressão de ter nossa exposição.
O paradigma da tecedura
talvez essa distinção te seja lição mamos fios da trama e dizemos que a
oportuna. arte que preside sua colocação tem por
finalidade a fabricação da trama.
SÓCRATES, O JOVEM
— Como fazê-lo? SÓCRATES, O JOVEM
— Muito bem.
ESTR A N G EIR O
— Do seguinte modo: entre os pro E ST R A N G E IR O
dutos da cardadura, existe um que pos — Eis, pois, a parte da tecedura
sui comprimento e largura, a que cha que nos interessava, perfeitamente
mamos roca? compreensível daqui por diante. Quan
do a operação de reunião, que é a parte
SÓCRATES, O JOVEM
do trabalho da lã, entrelaçou a urdi
— Sim.
dura e a trama, de maneira a formar
ESTR A N G EIR O
um tecido, damos, ao conjunto do teci
— Muito bem, pela fiação rotativa
do, o nome de vestimenta de lã, e, à
no fuso, que a transforma num sólido
arte que o produz, o nome de tecedura.
fio, obteremos o fio da urdidura e a
arte que dirige esta operação é a arte SÓCRATES, O JOVEM
— Muito bem.
de fabricar urdidura.
E ST R A N G EIR O
SÓCRATES, O JOVEM — Bem, mas então por que não
— Correto. dizer logo: “A tecedura é a arte de
ESTR A N G EIR O entrelaçar a urdidura e a trama” em
— Mas todas as fibras que produ lugar de fazer tantos rodeios e um
zem apenas fios frouxos e que possuem acervo de distinções inúteis?
justamente a flexibilidade necessária SÓCRATES, O JOVEM
para se entrelaçarem na urdidura e — A meu ver, Estrangeiro,nada há
resistirem às trações da tecedura, cha de inútil no que dissemos.
b certo número de coisas possui algo em traços de semelhança que elas encer
comum, não abandoná-las antes de ram, reunindo-as na essência de um gê
haver distinguido, naquilo que tem em nero. Basta o que fica dito quanto a
comum, todas as diferenças que consti esse problema e quanto às faltas e aos
tuem as espécies; e, com relação às excessos: observemos apenas que aqui
dessemelhanças de toda espécie, que encontramos dois gêneros de medida, *
podemos observar numa multidão, não lembrando-nos dos caracteres que lhes
nos desencorajarmos nem delas nos atribuímos.
separarmos, antes de havermos reuni SÓCRATES, O JOVEM
do, em uma única similitude, todos os — Não os esqueceremos.
A norma verdadeira.
A síntese dialética
ao político, aplicando a ele nosso nem política; mas não há, por outro
exemplo sobre a tecedura. lado, operação alguma da arte real que
SÓCRATES, O JOVEM lhes possamos atribuir.
— Tens razão. Façamos como SÓCRATES, O JOVEM
dizes. — Não, com efeito.
ESTR A N G EIR O ESTR A N G EIR O
— Havíamos, pois, separado o Rei — Realmente é difícil a tarefa que
de todas as artes que possuem o nos propusemos, procurando distinguir
mesmo domínio e, especialmente, de este gênero dos demais, pois não há
todas aquelas relativas aos rebanhos. nada que não se possa com alguma
Restam, entretanto, no interior da razão chamar de instrumento disto ou
cidade, as artes auxiliares e as artes daquilo. Há, entretanto, entre os obje
produtoras, e é necessário, antes de tos que possui a cidade, uma espécie
tudo, separar umas das outras. que é necessário caracterizar de outro
SÓCRATES, O JOVEM modo.
— Muito bem.
SÓCRATES, O JOVEM
ESTR A N G EIR O — Como?
— Sabes que é difícil dividi-las em
E STR A N G EIR O
duas? Penso que compreenderemos — Suas propriedades são diferen
melhor a razão disso, prosseguindo. tes. Pois ela não é fabricada como
SÓCRATES, O JO V E M _ instrumento, para servir à produção de
— Prossigamos, então. qualquer coisa, mas para conservá-la,
E STR A N G EIR O uma vez produzida.
— Sendo impossível a divisão em
SÓCRATES, O JOVEM
duas, temos que dividi-las membro a — A que te referes?
membro como a uma vítima. Pois é
necessário sempre dividir no menor E STR A N G EIR O
número de partes possível. — A esta espécie variada, produ
zida para a preservação dos objetos
SÓCRATES, O JOVEM
— Como faremos neste caso? secos ou úmidos, preparados ao fogo
ou não, à qual damos o nome comum
ESTR A N G EIR O
— Como há pouco, com relação a de vasilhame, espécie certamente
todas as artes que fornecem os instru muita rica e que não pertence de
mentos à tecedura, e que classificamos maneira alguma à ciência em questão.
como artes auxiliares. SÓCRATES, O JOVEM
— Sem dúvida alguma.
SÓCRATES, O JOVEM
— Sim. ESTR A N G EIR O
ESTR A N G EIR O — Vejamos agora uma terceira es
— Pois bem, devemos agora fazer pécie de objetos, absolutamente dife
o mesmo e por mais forte razão. Todas rente das outras: terreste ou aquática,
as artes que fabricam, na cidade, um móvel ou fixa, preciosa ou sem preço
instrumento pequeno ou grande devem possui um nome apenas, pois sua fina
ser classificadas como auxiliares. Sem lidade é simplesmente dar um assento,
elas, com efeito, jamais haverá pólis servindo de sede a alguma coisa.
244 PLATÃO
A ilegalidade ideal.
A força impondo o bem
coisas humanas, não admite em nenhu mas que prescrevem, ao dirigir essas
ma arte, e em assunto algum, um abso competições, os treinadores que as
luto que valha para todos os casos e conduzem de acordo com regras cientí
para todos os tempos. Creio que esta ficas.
mos de acordo sobre esse ponto. SÓCRATES, O JOVEM
SÓCRATES, O JOVEM — Que máximas?
— Sem dúvida. ESTR A N G EIR O
ESTR A N G EIR O — A eles, não parece necessário
— Ora, em suma, é precisamente considerar os pormenores dos casos
este absoluto que a lei procura, seme individuais, formulando, para cada
lhante a um homem obstinado e igno pessoa, prescrições especiais; ao con
rante que não permite que ninguém trário, acreditam que é necessário ver
faça alguma coisa contra sua ordem, e as coisas de um modo geral, estabele
não admite pergunta alguma, mesmo cendo, para a maioria dos casos e das
em presença de uma situação nova que pessoas, preceitos que sejam úteis para
as suas próprias prescrições não ha o corpo em geral.
viam previsto, e para a qual este ou SÓCRATES, O JOVEM
aquele caso seria melhor. — Muito bem !
SÓCRATES, O JOVEM ESTR A N G EIR O
— É verdade: a lei age sobre cada — Essa é a razão por que, na reali
um de nós, exatamente como acabas dade, impõem a um grupo de pessoas
de dizer. as mesmas fadigas, iniciando e paran
ESTR A N G EIR O do ao mesmo tempo a corrida, a luta
— E não é, porventura, impossível, ou qualquer outro exercício corporal.
ao que permanece sempre absoluto, SÓCRATES, O JOVEM
adaptar-se ao que nunca é absoluto? — É verdade.
SÓCRATES, O JOVEM ESTR A N G EIR O
— Assim parece. — Acontece o mesmo com o legis
ESTR A N G EIR O lador: tendo que prescrever a suas ove
— Por que, pois, é necessário fazer lhas, obrigações de justiça e contratos
as leis se elas não são a regra perfeita? recíprocos, jamais seria capaz, pro
É necessário investigar por quê? mulgando decretos gerais, de aplicar, a
SÓCRATES, O JOVEM cada indivíduo, a regra exata que lhe
— Naturalmente. convém.
ESTR A N G EIR O SÓCRATES, O JOVEM
— Não há entre vós, assim como — Provavelmente.
nas outras cidades, constituições onde ESTR A N G EIR O
os homens praticam a corrida, ou ou — Estabeleceria, antes, o que con
tras provas, por simples espírito de viesse à maioria dos casos e dos iiidiví-
emulação? duos, e assim de modo geral, legislaria
SÓCRATES, O JOVEM para cada um, por meio de leis escritas
— Certamente, e muitas espécies. ou não, contentando-se, neste caso, em
ESTR A N G EIR O dar força de lei aos costumes nacio
— Lembremo-nos então das máxi nais.
252 PLATÃO
A legalidade necessária:
os dois perigos
As constituições imperfeitas
sua alma com um fio divino, e em vida em cidade, ao passo que, privado
seguida, depois dessa parte divina, une das luzes que apontamos, atrairia a si,
a parte animal com fios humanos. com justiça, a humilhante fama de
SÓCRATES, O JOVEM
tolo?
— Que queres novamente dizer? SÓCRATES, O JOVEM
ESTR A N G EIR O — Perfeitamente.
— Se uma opinião realmente ver E ST R A N G EIR O
dadeira e firme se estabelece nas — Não será necessário afirmar,
almas, a propósito do belo, do bom, do agora, que este laço jamais unirá de
j'usto e de seus opostos, digo que algo maneira durável, nem os maus, entre
divino se realizou numa raça demonía si, nem os maus com os bons, e que
ca. ciência alguma jamais pensará seria
SÓCRA TES, O JOVEM
mente em servir-se de pessoas desta
— Isto, seguramente, convém dizer. espécie?
ESTR A N G EIR O SÓCRATES, O JOVEM
— Ora, não sabemos que somente — Como pretendê-lo, com efeito?
o político e o sábio legislador têm esse ESTR A N G EIR O
privilégio de, auxiliados pela musa da — É somente entre caracteres em
ciência real, poder imprimir tal opinião que a nobreza é inata e mantida pela
nos espíritos formados pela boa educa educação que as leis poderão criar este
ção de que falávamos há pouco? laço; é para eles que a arte criou esse
remédio; ela é, como dizíamos, o laço
SÓCRATES, O JOVEM
— Pelo menos é verossímil. verdadeiramente divino que une entre
si as partes da virtude, por mais desse
ESTR A N G EIR O melhantes que sejam, por natureza, e
— Mas, Sócrates, jamais daremos
por mais contrárias que possam ser
os títulos em questão, a quem não
pelas suas tendências.
tenha esse poder.
SÓCRATES, O JOVEM
SÓCRATES, O JOVEM
— É verdade.
— É justo.
ESTR A N G EIR O
E STR A N G EIR O — Quanto aos demais laços pura
— Muito bem. Uma alma enérgica mente humanos, já não é difícil conce
não se suavizaria quando penetrada bê-los, uma vez criado esse primeiro
assim de verdade, e não se abriria mais laço, nem, havendo-os concebido, rea
espontaneamente às idéias de justiça, lizá-los.
enquanto antes se fechava numa fero SÓCRATES, O JOVEM
cidade quase bestial? — Como assim, e de que laços se
SÓCRATES, O JOVEM trata?
— Sem dúvida alguma. EST R A N G EIR O
ESTR A N G EIR O — Daqueles que se criam, entre
— Mas que dizer do natural mode cidades, pelos casamentos que elas
rado? Estas opiniões não o tomariam autorizam e pela troca de seus jovens;
verdadeiramente sóbrio e prudente, e, entre particulares, pelos casamentos
pelo menos tanto quanto o requer a que contratam. Ora, a maioria con-
268 PLATÃO