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DE CÓRDOBA A SALVADOR:

ARTIVISMOS NA RUA COMO CORPO-POLITICA.

Veronica Daniela Navarro (UFBA)i.


Laura Alazraki (UPC)ii.

RESUMO: Esta escrita se desenvolve a partir de nossa própria experiência como


artistas, ativistas e pesquisadoras entre Córdoba/Argentina e Bahia/Brasil. A partir
dos processos histórico-políticos contemporâneos, principalmente o avanço dos
governos fundamentalistas de direita em ambos os países se propõe analisar
algumas das manifestações artísticas, realizadas no âmbito do público, como
espaço de disputa política, por parte de agrupações artísticas e movimentos
feministas e antirracistas conformados a partir de grupos, coletivos ou companhias.
Visualizamos como a partir dos momentos de crises e repressão política, social,
cultural e sexual, os povos se levantam, se organizam e transformam por meio da
resistência organizada. Nesse sentido pensamos o corpo como espaço de
experimentação política desarmando ideias canônicas que o paradigma cartesiano
tem marcado na sua dimensão histórica, política e ontológica.

PALAVRAS-CHAVE: Artivismos. Gênero. Política. Corpo. Arte.

FROM CÓRDOBA TO SALVADOR:


Artivisms in the street as corpo – politics

ABSTRACT: The following writing develops from our own experience as artists,
activists and researchers between Córdoba Argentina and Bahia Brazil. Based on
contemporary historical-political processes, mainly the advance of fundamentalist
right-wing governments in both countries, it is proposed to analyze some of the
artistic manifestations, carried out in the public space, as a political dispute scene, by
artistic groups and feminist movements and anti-racists created from groups,
collectives or companies. We visualize how, from the moments of crises and political,
social, cultural and sexual repression, peoples rise, organize and transform
themselves from organized resistance. From this perspective, we think of the body as
a place for political experimentation, dismounting canonical ideas that the Cartesian
paradigm established in the historical, political and ontological dimension.
KEYWORDS: Artivisms. Gender. Politic. Body. Art.

Introdução.
Partimos de nossa própria experiência como artistas ativistas e
pesquisadoras em Córdoba/Argentina e na Bahia/Brasil, dois contextos onde os
processos coloniais deixaram marcas, até hoje significativas de racismo,
heterocissexismo, patriarcado e desigualdade social. Salvador e Córdoba foram
capitais na época colonial, cenários de grandes revoltas e mobilizações sociais de
resistência. A partir dos processos históricos políticos contemporâneos,
principalmente o avanço dos governos fundamentalistas de direita em ambos os
países, nos propomos analisar algumas das manifestações artísticas realizadas no
âmbito do público, como espaço de disputa política através de grupos, coletivos,
companhias artísticas, movimentos feministas e antirracistas. Nesse sentido
pensamos o corpo como espaço de experimentação política desarmando ideais
canônicas que o paradigma cartesiano tem marcado na sua dimensão histórica,
política e ontológica.
Analisaremos o que aconteceu em quatro manifestações aRtivistas, duas
pertencentes à capital de Córdoba/Argentina e duas pertencentes a Salvador/Brasil.
Por um lado, o trabalho do “malambo por el derecho a decidir” será objeto desse
trabalho daqueles pertencentes à cidade de córdoba, que apelou a mulheres e
dissidentes, principalmente dançarina/e/os e músico/e/as, mas também outros
setores do ativismo da “Campaña por el aborto legal, seguro y gratuito”. Sendo o
malambo um tipo de dança dentro da dança folclórica de hegemonia masculina e
individual, que foi contestada por esta proposta. E, por outro lado, a intervenção
gerada na “Marcha de la gorra” no ano 2017, uma marcha que ocorre anualmente
para exigir justiça pelos assassinatos nas mãos da polícia, o racismo e a
discriminação policial contra as pessoas que vivem nos setores periféricos da
cidade. Quanto a Salvador, temos as marchas e intervenções do “Ele não”, no ano
de 2018, por iniciativa dos movimentos feministas e movimentos LBGTTQ+ em
oposição à candidatura do atual presidente do Brasil. Por outro lado uma
intervenção proposta por grupos feministas de Salvador pelo aniversário do
assassinato da ativista e vereadora Marielle Franco no Rio de Janeiro no mesmo
ano de 2018.
Consideramos essas quatro manifestações, mas poderiam ser muitas outras
nos processos que vêm ocorrendo nos últimos anos em nossos países, mas sem
desconsiderar que é uma decisão arbitrária, confiamos que é a partir dessas
intervenções que poderemos pensar sobre as intrincadas relações entre corpo e
política que estão em jogo em nossos contextos de luta e, particularmente, nos
modos de encontro que a dança e arte gera no espaço público.

Territórios de intervenção política: os movimentos feministas e LGTTBIQ+

Nelly Richard define os territórios de intervenção política como um campo de


forças atravessado por relações de poder e resistência entre práticas, discursos,
identidades, subjetividades, corpos e instituições (RICHARD, 2018). Se tomarmos
essa definição, podemos pensar o contexto em que nos encontramos em Córdoba e
na Argentina em 2018 a partir de um panorama de cruzamentos discursivos e
identitários, de tensões institucionais e uma disputa que colocou o grito dos corpos e
sua autonomia no centro da política.
Naquela época, um novo regulamento para a interrupção voluntária da
gravidez estava sendo discutido nos diferentes estratos do poder legislativo do país.
Um momento histórico que a/o/es ativistas feministas vêm promovendo há anos,
lutando pelo aborto legal, seguro e gratuito. Sem ignorar que é uma luta histórica
que não começou agora, 2018 marca um momento fundamental já que o projeto de
legalização da entrada no Congresso.
Nos meses sucessivos ocorrem manifestações a favor e contra o projeto, com
nuances e variedades, altamente polarizadas entre as posições que se proclamam
"pró-vida" que condenam a legalização do aborto, ignorando os milhares de mortes
que ocorrem em nosso país por abortos clandestinos e suas implicâncias de
classe/raça. Que poderiam se resumir na consigna as “ricas abortam as pobres
morrem” e, por outro lado, os vinculados à campanha pelo aborto legal, seguro e
gratuito que colocou sobre a mesa as perguntas sobre Que corpos importam? Que
vidas são defendidas quando o aborto é proibido e criminalizado? De que
autonomias sobre nossos corpos é possível falar se continuarmos a ser
pensada/e/os como um útero, como uma máquina de gerenciamento infantil?
Nesse contexto, a corporeidade não foi apenas o centro de uma disputa
política, mas também o suporte da intervenção artística, onde se pondera o que esta
dentro e o que está fora da visibilidade, fazer-nos visíveis. Num sentido dos corpos
políticos ou a política dos corpos onde a prática artística pode ser inscrita como
crítica radical à definição dos corpos que importam e aqueles que merecem ser
expulsos, mortos (BUTLER, 2002), em outros termos, de uma corpopolítica que faz
visível aquilo que era do privado, as que abortam. Que abortam também certo
paradigma social/racial/sexual. Uma corpopolítica como pista para a luta pela
igualdade, como possibilidade de criar novos tempos e espaços e múltiplas formas
de viver juntxs. Cruzando a fronteira entre o individual e o coletivo, o próprio e o
alheio, o normal e o patológico, quebrando os binômios que tanto tem nos mantido
nas oposições ocidentais e estabelecendo uma nova relação de continuidade
producente e produzida.
No domingo, 21 de julho de 2018, Ariana Andreoli, dançarina e professora de
dança, posta uma ideia no Facebook: “E se fizermos um malambo verde?”, “Se
juntarmos muitos sapateiro/a/es com lenços verdes?”. O malambo é uma dança
sapateada que foi codificada como dança folclórica argentina dançada por homens.
Caracteriza a dança gaúcha argentina, que simboliza a luta pela defensa da pátria
(VEGA, 1986) aquela mesma pátria que vai a estabelecer os nossos corpos como
territórios de decisão de um poder que nos oprime. Se bem os defensores das
danças folclóricas tradicionais nunca explicitaram que as mulheres não podiam
praticá-la, ou seja, sapatear Malambo se estabeleceu uma forma “varonil”1 de
sapatear, masculinizada e individual para o desenvolvimento da dança, que
estabelece um único estado corporal especifico: a força masculina.
Embora, inicialmente destinada a quem se reconheça como “mulher”, a
performance convocou também a dissidentes e população LGBTTIQ+ que praticam
diferentes danças, atrizes, educadora/o/es, música/o/es, médico/a/es, artesã/e/os, e
organizações pela legalização do aborto. Oitenta malambas dançaram, soaram e
gravaram naquela primeira intervenção no âmbito da Campanha pelo Direito ao
Aborto Legal, Seguro e Gratuito, em 28 de julho de 2018, na escadaria do Palácio da
Justiça de Córdoba.
Aquele malambo verde não procurou apenas atordoar os alicerces de uma
legalidade que continua a nos condenar à clandestinidade, à morte, fazendo soar,
vibrar, estremecer na base comum os alicerces daquele espaço símbolo da ação
institucional e daquele outro espaço abstrato das normas sociais / sexuais que nos
são impostas. O malambo verde também quebrou a lógica patriarcal e individualista
que caracteriza o malambo como uma dança folclórica onde os artistas masculinos
competem entre si por quem tem maior habilidade e força, aquele gesto do malambo
1
Faz referencia a varon, termo em espanhol que designa o gênero masculino.
argentino onde se articulam imagens de virilidade, competência individual e
virtuosismo cristalizado na força e agilidade das pernas. (VEGA, 1986)
O malambo verde se estabeleceu como um gesto, uma convocatória a
nossas mortas, nossas vozes, um golpe no chão que toque nossos corpos e nos
obrigue a reconstruir o cenário. Uma pisada que não é mais individual, mas coletiva,
de um coletivo que reivindica o seu direito de decidir sobre o seu próprio corpo. Uma
pisada que já não é competição, se não, uma união de um som conjunto que
desequilibre as bases da tradição, a pátria, o patriarcado.
As práticas artísticas e políticas na América Latina assumem a tarefa de
tornar visíveis os arquivos de domínio, sejam eles sexuais raciais e/ou sociais, a
partir do corpo (CASTILLO, 2015). O próprio corpo é o lugar de onde as ordens
patriarcais, raciais e heteronormativas de opressão são interrompidas. E é neste
sentido que o malambo verde desterritorializa a política do corpo, desafia a narrativa
da tradição, nação, patriarcado, mandato e padrões normativos, da construção de
uma história homogênea e perverte a narrativa hegemônica em deslocamento para
outros corpos, que se encontram e gritam pelo direito de não parir e de viver.

Entre arte(s) e ativismo(s): A potencia dos aRtivismos.

Neste mergulhar nos artivismos como os possíveis encontros (ou


discordâncias) entre arte e ativismo que desafiam as narrativas dominantes e
propõem novos discursos, novos espaços e novas formas de interdição de
regulamentos sexuais, de gênero, de classe e de raça, nos parecia importante
destacar a intervenção artística realizada durante a Marcha de la Gorra2 em 2017.
Uma marcha que ocorre anualmente para exigir justiça pelos assassinatos nas mãos
da polícia, o racismo e a discriminação policial contra as pessoas que vivem nos
setores periféricos da cidade de Córdoba, Argentina. Aqui colocando os aRtivismos
como processo de compromisso social, político e ideológico do/a/e artista com a
história, memória e processos de luta de seu povo (SOARES, 2018).
A intervenção foi inicialmente organizada pela artista plástica e cenógrafa
Natacha Chauderlot que convidou diferentes artistas e ativistas para produzir 150
queimadores de incenso feitos com latas de cerveja, tampinhas de refrigerante,

2
Gorra significa boné em espanhol, e faz referencia aquele utilizado pelo/a/e/s jovens das zonas periféricas da
cidade de Córdoba em oposição ao boné da policia.
retalhos de pano, areia e incenso. Ao mesmo tempo em que se planejava uma série
de movimentos que nos permitiram avançar na marcha e produzir na repetição um
rito, uma ação conjunta no espaço público que deixara a marca de nosso caminhar,
de nos apropriar das ruas e nosso direito de habitá-las. Este apelo partia da ideia de
que era necessário gerar novos recursos, novos discursos, novos movimentos que
não se referissem a esta humanidade, como diz a poetisa e transartivista Susy
Shock "Não queremos mais ser esta humanidade".
Um apelo à urgência, à ação, ao estado de vigília de quem não pode mais
esperar e passa a se autorizar, a colocar sua voz e discurso. Quem disse? Quem
pode dizer? Como ele/a/es dizem isso? Colocar o corpo, esse corpo que não mais
se reconhece como humano, daquela humanidade assassina, segregadora,
hierárquica para escolher outras identificações que acentuam e desenha quem nós
queremos ser. A proposta nos convocou nesta ação de acender pequenos fogos, o
ritual, a magia, desde o poder de transformarmos em outra humanidade, de
transformar este mundo, de atear fogo às lutas que se acumulam para que a fumaça
movimente e se leve nossas dores.
Nesses processos de organização aRtivista, nos questionamos sobre a
conexão arte-política ou o que seria uma arte política. Nesta discussão, que já se
arrasta há muitos anos e muitos escritos, e em concordância com o que temos
falado acima, entendemos que não se trata mais apenas de um tema, isto é, que a
arte ou as obras artísticas abordam um determinado tema Político, mas sim, como
as práticas artísticas intervêm sobre um contexto ou certa realidade. Nesse sentido,
não seria só sobre um tema especifico, mas também sobre os processos de
composição, os materiais, os espaços de intervenção/exposição/publicação, as
formas de construção do olhar e do lugar dos espectadores, etc.
O potencial crítico dissidente da arte-política seria dado por três eixos
fundamentais: gesto, contexto e localização (RICHARD, 2015). Da mesma forma, a
autora Marie Bardet (2019) nos convida a pensar não mais a partir dos corpos, mas
dos gestos e esse deslocamento implica nos instalarmos no pensamento das
relações. Pensar a partir dos gestos como relação corpo/objeto/contexto e não como
mera forma corporal. Pensarmos desde um gesto, com gestos, a partir de gestos.
Compreendendo que a partir de certos gestos as formas políticas são reafirmadas.
Maneiras de pensar, fazer e organizar.
O gesto coletivo tanto de bater no chão, de ocupar as ruas com um
movimento coletivo, de acender fogo no epicentro do judiciário, de nos convocar a
partir de uma série de movimentos que se repetiram continuamente naquela jornada
pelas ruas, de queimar incensos e gerar fumaças, são gestos que reafirmam uma
determinada política, que colocam para nós na rua uma nova relação entre
corpos/contexto e disputam um ordenamento da realidade. Eles estabelecem outras
fronteiras de ação, outras formas de compor, outras formas de caminhar, dançar,
nos encontrar, nos manifestar. Talvez estejam aí, nessas outras formas que
podemos reinventar outras relações, outras formas de ser e intervir no mundo que
nos rodeia, de estabelecer fugas, para permear sentidos, para deflagrar tradições
machistas, racistas, classistas e homolesbotrans odiosas. Talvez, seja deste lugar
que possamos caminhar a uma proposta de corpopolítica aRtivistas dos feminismos
nas Américas.
Registro da performance na marcha de la gorra 2017. Autoria coletiva: MedioNegro.

As performances como epistemologia de luta “Ele não”.

O Centro de Salvador ficou pequeno para a multidão que ocupou as ruas de


Salvador no movimento organizado por mulheres contra a candidatura do
presidencial Jair Bolsonaro (PSL), candidato de extrema direita, em setembro de
2018. Quase agonizando, nossos corpos se encontravam na rua com punho
apertado e olhos brilhantes de esperança. Era a última possibilidade de grito, e nós
sabíamos disso. Não se tratava simplesmente de uma candidatura, era um
pensamento ideológico se re-instaurando em sua força de racismo, machismo e
lesbotransfobia. Esse movimento político de rua, que chamaremos de perfomance
no sentido de acontecimento da vida sócio-cultural (SCHECHNER, 2000), foi
convocado por vários movimentos feministas a nível federal e teve grande adesão
de artistas de alcance midiático e, também do público alvo que precisava ter um
espaço de expressão ante o panorama político 3. Várias expressões ao som de
tambores, camisas pintadas, rostos, cartazes. As cores roxo e as bandeiras
LGBTQ+ criaram o cenário da performance. Uma marcha multitudinária que marcou
a história das lutas no Brasil.
Os movimentos feministas no mundo se caracterizam por sua multiplicidade
de expressão. Não podemos falar nunca em singular, eles são tantos como as
reivindicações que aparecem. Isto muito se deve às reivindicações que as feministas
negras, terceiro-mundistas ou latino-americanas, transfeministas, ecofeministas,
entre outros que têm tensionado a luta pela existência na contemporaneidade na
disputa dentro dos feminismos.
A candidatura do atual presidente era uma ameaça explícita aos direitos
humanos conquistados durante as últimas décadas, que a pesar de não alcançar a
eliminação do racismo e a desigualdade no Brasil, marcou grandes avanços em
matéria de diretos humanos.
A utilização da frase “Ele não” na convocatória, era como forma de evitar que
o nome do atual presidente do Brasil obtivesse mais visibilidade do que ele já havia
conseguido, devido à estratégia da campanha, a qual foi feita por meio das redes
sociais: as fake news. A opção estético-política pela não utilização do nome em
nenhum momento, aglutina um sentimento e a resistência dos corpos que mais
sofrem o impacto do racismo, machismo e lesbotransfobia dos discursos genocidas
e tudo o que representa a política do atual presidente da república. Principalmente,
corpos de jovens negros e negras, LGBTQ+ que transitam nas ruas como espaços
de perigo constante ante ataques violentos e mortes cotidianas.
Para a autora Diana Taylor (2013) a distinção entre arquivo e repertório é
fundamental para entender as performances no sentido estético-político em
detrimento dos arquivos da história que muitas vezes anulam o inviabilizam a
realidade. Para a autora:

A memória “arquival” existe na forma de documentos, mapas, textos


literários, cartas, restos arqueológicos, ossos, vídeos, filmes, CDs, todos

3
https://www.youtube.com/watch?v=-lqtPw0T6gw&feature=youtu.be
esses itens supostamente resistentes à mudança... O repertório, por outro
lado, encena a memória incorporada-performance,
gestos,oralidade,movimento,dança, canto, em suma, todos aqueles atos
geralmente vistos como conhecimento efêmero, não reproduzível. Requer
presença de pessoas que participam da reprodução de conhecimento, ao
“estar lá”, sendo parte da reprodução. (Taylor 2013, p.48)

O que caracterizou a performance do “Ele não” foi a espontaneidade do


rechaço desde o não pronunciamento do nome através da palavra falada. Aqui
novamente o gesto que fazíamos referência anteriormente, no caso, a negação de
nomear o que se converte numa ameaça constante para a vida dos corpos que
menos importam. A necessidade de gritar, sair e expressar com os corpos na rua.
Uma geração de militantes político/a/es que ocupavam as ruas como forma de luta e
há décadas estão dentro dos movimentos identitários antirracistas e antimachistas,
como também as novas gerações de jovens que, hoje ocupam também lugares de
poder e formação política dentro e fora dos movimentos. Como afirma autora
Taylor:

A performance torna visível (por um instante ao vivo “agora”) o que sempre


teve lá: os fantasmas, os tropos, os roteiros que estruturam nossa vida
individual e coletiva. Esses espectros que se manifestam por meio da
performance alteram os fantasmas futuros, as fantasias futuras. (Taylor, p.
207)

Coincidimos com a autora que as performances deixam um traço: ora


reproduzindo, ora alterando os repertórios culturais. Ela não envolve só um objeto ou
uma realização com finalização, ela envolve uma prática invocativa. Evocam
emoções, tristezas, memórias que pertencem a outro corpo. No caso do “ele não”, é
a luta coletiva que se inspira em Palmares, Maria Felipa e tode/a/os que lutaram
incansavelmente pela liberdade, necessitando do último grito na rua, porque como
se diz dentro das comunidades tradicionais afro-brasileiras “nossos passos vêm de
longe”, nossa luta também. “Ele não, ele nunca”.

Interseccionalidade feministas. Conflito e disputas pelo lugar de fala.

Seria realizada em Salvador a marcha depois de um ano da morte de Marielle


Franco, organizada por vários grupos, principalmente de mulheres negras da cidade.
Um grupo de artistas da performance, principalmente mulheres não negras e
brancas socialmente, pensaram uma intervenção convocando diferentes mulheres
para realizar uma intervenção durante a marcha. A relevância desta intervenção foi o
fato de minutos antes, haver um chamado das mulheres negras para que a dita ação
artística não fosse realizada.
Que corpos podem entrar em uma performance para reivindicar a luta por
saber quem mandou matar Marielle? De quem é a luta de Marielle? Das mulheres
negras? De todas? A ferida colonial (CUSCANQUI, 2015) reaparecendo na cena,
aquela que existe e persiste em nós sempre, aquela que extermina corpos, que
aplica a necropolitica (MBEME, 2016) e que explicam as reivindicações de
movimentos identitários que existem até agora, quase com as mesmas
reivindicações há anos: “corpos negros existem”, “vidas negras importam”.
Como falamos anteriormente, nossa luta feminista se caracteriza pelas
diferenças. Luta-se com bandeiras diferentes por uma causa justa, que é a
igualdade de direitos e o bom viver, o que implica a luta contra o sistema racista e
patriarcal. Porém se sabe que nossas reivindicações são diferentes, e têm sido
marcadas inumeráveis vezes pelas feministas negras. Como nos diz a pensadora
Sueli Carneiro:

Quando falamos em romper com o mito da rainha do lar, da musa idolatrada


dos poetas, de que mulheres estamos falando? As mulheres negras fazem
parte de um contingente de mulheres que não são rainhas de nada, que são
retratadas como antimusas da sociedade brasileira, porque o modelo
estético de mulher é a mulher branca. Quando falamos em garantir as
mesmas oportunidades para homens e mulheres no mercado de trabalho,
estamos garantindo emprego para que tipo de mulher? Fazemos parte de
um contingente de mulheres para as quais os anúncios de emprego
destacam a frase: “Exige-se boa aparência”. (Carneiro 2011 s/p)

Definitivamente o chamado das mulheres negras para não protagonizar a


marcha com uma intervenção artística, mas sim, de acompanhá-las, tinha haver com
a necessidade de que mulheres não negras ou brancas, não ocupassem o centro da
cena. “O pessoal é político” nos feminismos diz respeito a “mulheres” que são
diferentes. O pessoal de mulher branca nunca será igual que o pessoal de uma
mulher negra, ou trans, ou com deficiência. Até onde a arte pode pensar em que o
silêncio em uma marcha, ou a não ocupação de lugares centrais e visíveis de corpos
privilegiados é estético-político?
O gesto do silêncio pode ser tão potente como o gesto do gritar? A não ação
da intervenção e o silêncio foi o gesto político de mulheres brancas e não negras
que acompanharam a marcha, caminhando junto às mulheres negras, reivindicando
lutas desde lugares diferentes. Por que se o feminismo deve liberar as mulheres,
deve enfrentar virtualmente todas as formas de opressão: classe, raça e gênero
(CARNEIRO, 2011).
A partir desse ponto de vista, é possível afirmar que uma proposta de
aRtivismo feminista, deve ter em conta estéticas políticas construídas dentro do
contexto de sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas – como são as
sociedades latino-americanas – e que o protagonismo visual dentro de uma proposta
de corpo-politico na rua atravessa encruzilhadas raciais que os femininos aRtivistas
precisam atender para se colocar de uma maneira artística-política crítica.

Considerações parciais de uma luta que não acaba...

Até aqui foram apresentadas algumas propostas que consideramos


relevantes para pensar o que entendemos por corpos-políticos e os aRtivismos
como formas estético-politicas de arte das re-existências. Apontamos as potências
das intervenções e performances na rua como forma de lutas coletivas desde a arte
em relação com outros movimentos sociais, onde as práticas artísticas intervêm
sobre a realidade questionando sentidos e narrativas hegemônicas. Os espaços
artísticos na rua como potencializadores de epistemologias da resistência que
pensam e fazem a partir de outras formas de levantar lutas aos entraves dos corpos,
desde os corpos, nos corpos.
Ainda, abalizamos a pluralidade dos feminismos e suas múltiplas formas de
sobreviver e enfrentar os patriarcados e racismos que se estruturam de diferentes
maneiras nos contextos em que se recriam. E colocamos algumas questões ao
longo do texto que nos possibilitam continuar fazendo/pensando uma arte política,
práticas artísticas plurais, críticas, dissidentes e principalmente libertadoras.

Referencias

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2019.
BUALA produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS Filhos de Império
e Pósmemórias Europeias. Com Fernanda Vilar disponível em:
https://www.buala.org/pt/a-ler/enlaces-artes-perifericas-artivismo-e-pos-memoria
BUTLER, J. Cuerpos que importan, Editorial Paidós, Buenos Aires, Argentina, 2002.
CASTILLO, A. Ars Disyecta. Santiago de Chile, Chile, 2014.
CARNEIRO, S. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na américa
latina a partir de uma perspectiva de gênero em:
https://www.geledes.org.br/enegrecer-o-feminismo-situacao-da-mulher-negra-na-
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gclid=cjwkcajwjqt5brapeiwajlbubxcprf2qoixmxwhrzz1qmqhupmzkxhurduwp2ut2ycck
whbfolvghboczpgqavd_bwe.
MBEMBE, Achille. Necropolitica: biopoder soberania estado de exceção política da
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RICHARD, N. Abismos Temporales: feminismo, estéticas travestis y teoría queer.
Ediciones Metales Pesados, Chile. 2018
____________. Arte y Política 2005 - 2015: Proyectos curatoriales, textos críticos y
documentación de obras. ediciones, Metales Pesados, Chile. 2015
RIVERA CUSICANQUI, Silvia Sociologia de la imagen, Miradas Ch`ixi desde la
historia andina. Tinta limón. Argentina, 2015.
SCHECHNER Richard. Performance. Teorias y prácticas interculturales. Buenos
Aires libro del Rojas. UBA. 2000
SOARES, S. J. P. O corpo-testemunha na encruzilhada poética. 2018. 251f. Tese
(Doutorado em Artes) – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola
de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (PPGAC/ECA/USP), 2018.
Site de jornal consultados:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45700013,
https://correionago.com.br/portal/elenao-milhares-de-pessoas-ocupam-as-ruas-de-
salvador-contra-bolsonaro/
TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório. Perfomance e memoria cultural nas
américas. Belo Horizonte. editorial UFMG.2013.
VEGA, Calos. Las danzas populares argentinas tomos I. disponível em Instituto
Nacional de Musicología “Carlos Vega”, Bs. As., 1986.
i
Doutoranda em artes cênicas no programa de pós-graduação em Artes Cênicas da UFBA. Dançarina, professora e
pesquisadora. Mestra e especialista em dança pela UFBA. Forma parte dos grupos de extensão e pesquisa Andanças, da
Universidade Internacional da Lusofonia Afro-brasilera, do Núcleo de pesquisa e extensão de cultura e sexualidade
NuCuS UFBA, do grupo de pesquisa Umbigada UFBA e do coletivo feminista de capoeira angola Chamada de Mulher
do grupo Nzinga.veronicadnavarro@gmail.com

ii
Professora de Dança pela Universidade Provincial de Córdoba, Argentina e Especialista em Estudos contemporâneos
da dança pela Universidade Federal da Bahía, Brasil. Dançarina, professora e pesquisadora. Forma parte dos projetos de
pesquisa: Filosofía, danza y política: (des)anudamientos de la escena; e La perspectiva de género en la formación de
profesorxs de la UPC (Universidad Provincial de Córdoba). Dirige o grupo de dança Entrelazares e faz parte do grupo
ativista F.A.C (Feministas en Asamblea Córdoba) e do coletivo feminista de capoeira angola chamada de mulher do
grupo Nzinga de capoeira angola. laualazraki@gmail.com.

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