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EDUCAÇÃO E GÊNERO: UMA DISCUSSÃO PARA ALÉM DA INCLUSÃO 
IGUALITÁRIA 

Daniela Silva Patrício, 

mestranda em Sociologia 

pela FCL/UNESP. 

Email: pessoadany@yahoo.com.br 

Resumo 

O presente artigo se propõe a discutir o papel que a educação assume frente às questões 
de gênero, para além da perspectiva da inclusão igualitária de meninos e meninas.  Nas 
escolas, as relações de gênero ganham pouca relevância entre educadores e educadoras, 
assim  como  no  conteúdo  dos  cursos  de  formação  docente.  Mesmo  num  âmbito 
acadêmico, são pouco examinadas as dimensões  de gênero no dia­a­dia escolar, talvez 
pela  dificuldade  em  refletir  não  apenas  sobre  as  desigualdades  entre  os  sexos,  mas 
também  os  significados  de  gênero  inerentes  a  essas  desigualdades  e  pouco 
contemplados  pelas  políticas  públicas  educacionais.  Pensamos  que  a  ausência  das 
questões  de  gênero  no  currículo  e  na  formação  de  professores,  interfere  nas  práticas 
cotidianas  da  escola  e  da  sala  de  aula,  contribuindo,  em  última  instância,  para  a 
persistência  de  valores  e  práticas  que  reafirmam  as  desigualdades  entre  homens  e 
mulheres. Acreditamos assim, que é necessário que se ultrapasse a questão do acesso, e 
que se inclua o tratamento igualitário de meninas e meninos na sala de aula, assim como 
um conteúdo curricular que despolarize o conhecimento das identidades de gênero que 
afetam o cotidiano das pessoas. 

Palavras­chave: Educação ­ Gênero ­ Políticas públicas.

EDUCATION  AND  GENDER:  A  DISCUSSION  FOR  BESIDES  THE 


EGALITARIAN INCLUSION 

The present article is proposed to discuss the paper what the education assumes in front 
of  the  questions  of  gender,  for  besides  the  perspective  of  the  egalitarian  inclusion  of 
boys  and  girls.  In  the  schools,  the  relations  of  gender  gain  little  relevance  between 
educators,  as  well  as  in  the  content  of  the  courses  of  teaching  formation.  Even  under 
academic aspect, the dimensions of gender were not enough examined in the day by day 
school,  perhaps  for  the  difficulty  in  to  consider  not  only  the  inequalities  between  the 
sexes,  but  also  the  meanings  of  gender  inherent  in  these  inequalities  and  little 
contemplated  by  the  public  education  politics.  We  think  that  the  absence  of  the 
questions of gender in the curriculum and in the teacher’s formation, interferes in daily 
practices  of  the  school  and  of  the  classroom,  contributing,  as  a  last  resort,  to  the 
persistence  of  values  and  practices  that  reaffirm  the  inequalities  between  men  and 
women.  We  believe  so,  that  it  is  necessary  to  exceed  the  question  of  the  access,  and 
includes the egalitarian treatment of girls and boys in the classroom, as well as a content 
curricular what removes the polarized knowledge of the identities of gender that affect 
the daily life of the persons. 

Keywor ds: Education ­ Gender ­ Public Politics. 

Intr odução 

A história da educação no Brasil, assim como na maioria dos países ao redor do 
mundo, coincide com a história da discriminação de gênero. A formação da sociedade 
brasileira,  marcada  pelo  patriarcalismo,  pelo  autoritarismo  e  pela  influência  direta  da 
igreja católica, reflete diretamente a constituição da educação formal no país, com total 
exclusão das mulheres, como nos mostra Beltrão e Alves: 

A  economia  colonial  brasileira  fundada  na  grande 


propriedade  rural  e  na  mão­de­obra  escrava  deu 
pouca  atenção  ao  ensino  formal  para  os  homens  e 
nenhuma  para  as  mulheres.  O  isolamento,  a 
estratificação  social  e  a  relação  familiar  patriarcal 
favoreceram  uma  estrutura  de  poder  fundada  na 
autoridade sem limites  dos  homens  donos  de terras. 
Segundo Ribeiro (2000), a tradição  cultural ibérica, 
transposta  de  Portugal  para  a  colônia  brasileira, 
considerava a mulher um ser inferior, que não tinha

necessidade  de  aprender  a  ler  e  a  escrever.  A 


educação  monopolizada  pela  Igreja  Católica 
reforçava  o  espírito  medieval.  A  obra  educativa  da 
Companhia  de  Jesus  contribuiu  significativamente 
para  o  fortalecimento  da  predominância  masculina, 
sendo que os padres jesuítas tinham apego às formas 
dogmáticas de pensamento e pregavam a autoridade 
máxima da Igreja e do Estado (2004, p. 3­4). 

Somente no século XX essa situação começa a ser revertida. Após a Revolução 
de 1930, surgem as primeiras medidas educacionais voltadas para a educação de massa 
e  com  isso, o  acesso  das  mulheres  à  escola  começa  a  ser  facilitado,  porém,  somente 
com a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira) de 1961  foi garantido 
acesso  igualitário  ao  ensino  superior  para  as  mulheres  que  cursavam  o  magistério, 
através  da  equivalência  de  todos  os  cursos  de  nível  médio.  (BELTRÃO  & 
ALVES,2004).  Mas  é  com  a  constituição de 1988,  e  com a  redemocratização do país 
que  se  nota  também  a  incorporação  de  demandas  sociais  especificas  na  legislação. 
Assim,  este  é  um  momento  singular  para  os  grupos  sociais  e  especificamente  para  o 
movimento feminista. 
Nesse  momento,  no  entanto,  a  discussão  sobre  a  desigualdade  de  sexos  na 
educação  se  restringia  ao  acesso  igualitário  entre  meninas  e  meninos.  Nota­se  uma 
ausência do próprio conceito de gênero nessa discussão, devido ao momento histórico 
de  que  estamos  falando,  em  que  este  conceito  ainda  estava  sendo  introduzido  no 
próprio movimento popular de mulheres. 
A  década  de  1990,  em  que  foram  elaboradas  as  leis  para  a  educação  que 
discutiremos  nesse  artigo,  foi  marcada  pela  implementação  de  medidas  chamadas 
neoliberais  em  todos  os  âmbitos,  inclusive  na  educação.  Este  foi  o  contexto  no  qual 
surgiram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9.394/1996) e dos Parâmetros 
Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental – PCN. 
Essa  breve  demarcação  histórica  é  importante  para  que  possamos  entender  a 
trajetória  das  mulheres  no  âmbito  da  educação  formal.  No  entanto,  neste  artigo 
buscaremos  discutir  a  questão  de  gênero  na  educação  para  além  da  igualdade  de 
inclusão de meninos e meninas na escola, tendo em vista que são pouco examinadas as 
dimensões de gênero no dia­a­dia escolar, talvez pela dificuldade em refletir não apenas 
sobre as desigualdades entre os sexos, mas também os significados de gênero inerentes 
a essas desigualdades e pouco contemplados pelas políticas públicas educacionais.

Para tanto, primeiramente é necessário explicitar melhor o conceito que norteará 
a discussão_ gênero_ para que depois possamos passar para a análise de fato da LDB e 
do PCN. 

O Conceito de gênero 

O  conceito  de gênero, que  norteará  toda  a nossa  discussão, permite  pensar  em 


relações  que não  são  fixas,  ao contrário,  estão o tempo todo  em  tensão, de  forma que 
homem e mulher têm posições de relativa mobilidade no campo social. Sendo assim, as 
identidades, primariamente sexuais, são construídas de uma forma cada vez mais social, 
na medida em que ocorre um movimento de desnaturalização do sexo. 
O  conceito  de  relações  sociais  de  sexo  é 
utilizado  pela  Sociologia  francesa  e  responde  pela 
construção  social  das  diferenças  entre  os  sexos, 
pressupondo uma hierarquia social e uma relação de 
dominação e poder entre eles. O conceito de gênero, 
mais utilizado nos estudos de língua inglesa, também 
corrobora  essa  idéia,  buscando  ultrapassar  as 
definições  da  ‘categoria  homem/mulher  como  uma 
oposição  binária  que  se  auto  reproduz...  sempre  da 
mesma  maneira’,  o  que  implica  refutar  sua 
constituição hierárquica natural (...) 
(SCAVONE, p.24, nota de rodapé n°9; 2004). 

Essas identidades, que se constroem em contraposição uma a outra, acabam por 
favorecer a naturalização das desigualdades socialmente constituídas, na medida em que 
prescreve ações “típicas” esperadas para cada sexo. 
Segundo Butler, o gênero deve ser considerado como performativo, por não ser 
uma  afirmação  ou  uma  negação,  mas  sim  uma  construção  que  ocorre  através  da 
repetição de atos correspondentes às normas sociais e culturais. Sendo assim, um gênero 
é  um  modo  de  subjetivação  dos  sujeitos,  pois,  “o  ‘eu’  nem  precede  nem  se  segue  ao 
processo  de  atribuição  de  gênero,  mas  surge,  apenas,  no  interior  e  como  matriz  das 
próprias  relações  de  gênero”.  (Butler,  1999,  p.  153).A  autora  argumenta  ainda  que  o 
sexo, assim como o gênero, é materializado através de práticas discursivas, de normas 
que  nunca  são  finalizadas,  pois  permanecem  num  processo  constante  de  reafirmação. 
Este  processo  é  indispensável  para  a  hegemonia  das  leis  reguladoras  sob  pena  de 
enfraquecer e abrir espaços para a contestação dessas leis.

Não podemos  ignorar os  esforços feitos  ao  longo  dos tempos para  tornar  essas 


relações  mais  igualitárias.  A  história  dos  movimentos  feministas  se  confunde  com  a 
própria  história  da  luta  pela  igualdade  entre  os  sexos.  É  importante  ressaltar  que  esta 
divisão histórica não é estanque como nos informa Scavone: 

Embora  possamos  estabelecer  esta  relação  temporal 


com  períodos  e  lutas  distintos,  estas  fases  não  são 
fixas  e  dependem  da situação  histórica  e política  de 
cada  sociedade,  o  que  nos  leva  a  deduzir  que  a 
segmentação  histórica  não  pode  ser  aplicada  com 
rigor às diferentes realidades (2004, p.15­16). 

Entre  os  séculos  XVIII  e  XIX,  paralelamente  a  uma  tendência  política  liberal­ 
democrata,  o  movimento  feminista  tinha  um  cunho  reivindicativo,  ou  seja,  o  que  se 
pretendia neste momento era a conquista de direitos de cidadania; Este  foi o chamado 
feminismo igualitário, que lutava por igualdade entre os sexos na vida pública. 
Na  década  de  60,  mais  precisamente  depois  de  1968,  começam  a  emergir  as 
questões  da  vida  privada,  e  percebe­se  que  o  preconceito  de  gênero  está  no  seio  da 
família.  O  espaço  da  vida  privada  passa  a  ser  observado  como  um  âmbito  político  e 
econômico  e  conseqüentemente,  campo  de  desigualdades,  já  que  a  divisão  sexual  do 
trabalho permeia toda a sociedade. 
O que hoje chamamos de feminismo contemporâneo ou pós­moderno, que tem 
como expressão intelectuais feministas como Judith Butler, por exemplo, nos demonstra 
como  a  identidade  no  mundo  contemporâneo  não  passa  pela  determinação  biológica, 
mas é fluída e socialmente marcada. 
Dentro deste breve panorama histórico do movimento feminista devemos atentar 
para o fato de que a produção teórico­conceitual  acerca do tema tem inicio no pós­68, 
com autoras feministas. 
Até então, as ciências sociais  não haviam dedicado grandes esforços neste tipo 
de  discussão,  e  a  partir  deste  momento  a  conceituação  criada  dentro  do  movimento 
feminista foi incorporada ao espaço acadêmico, sendo­lhe atribuída maior relevância. O 
próprio conceito de gênero passa por essa incorporação.

Um breve histórico do feminismo no Brasil 

Quando  pensamos  a  história  do  feminismo  no  Brasil,  verificamos  que  são 
múltiplos os seus objetivos e as suas formas de manifestação. Em decorrência de ser um 
movimento  difuso,  costuma­se  dividi­los  em  dois  momentos:  o  primeiro,  do  final  do 
século XIX até 1932 e o segundo, do feminismo pós­1968. 

A  primeira  tendência  teve  como  foco  o  movimento  sufragista  liderado  por 


Bertha Lutz. Esta é a fase chamada de feminismo bem comportado (PINTO, 2003), que 
designa  o  caráter  conservador  desse  movimento,  que  não  questionava  a  opressão  da 
mulher. Nesse sentido, a luta pela cidadania  feminina  não se caracterizava pelo desejo 
de alteração das relações de gênero, mas como um complemento para o bom andamento 
da sociedade. 

Já a segunda tendência de feminismo reúne uma gama heterogênea de mulheres 
(intelectuais, anarquistas, líderes operárias) que, além do político, defendiam o direito à 
educação  e  questionam  a  dominação  masculina,  abordando  temas  polêmicos  para  a 
época,  como,  por  exemplo,  a  sexualidade  e  o  divórcio.  Ainda  segundo  Pinto,  há  uma 
terceira  vertente  de  feministas,  oriunda  do  movimento  anarquista  e  do  Partido 
Comunista, tendo como expoente Maria Lacerda de Moura 

Na  década de 1930,  mais  precisamente  após o  golpe  de 1937 ocorre um  longo 


período de retração do movimento feminista que se estende até o começo da década de 
1970. No entanto, isso não significa que durante esse período o movimento de mulheres 
não tenha tido nenhuma expressão. Ao contrário, momentos importantes de participação 
da  mulher,  como o  movimento no  início da década de 1950  contra  a  alta  do  custo de 
vida, por exemplo, marcaram essa época. 

Na década de 70, em pleno governo Médici, o feminismo brasileiro acabou por 
dividir­se entre o “dentro e fora” do país, devido principalmente à grande quantidade de 
feministas  exiladas.  Na  Europa  e  nos  Estados  Unidos  o  cenário  era  de  grande 
efervescência  política,  de  revolução  dos  costumes,  de  renovação  cultural  radical, 
enquanto  no  Brasil a  repressão  era  marca maior da ditadura  militar.  As  características 
que o movimento feminista teve  nesses dois cenários refletem essa conjuntura política

diversa no qual estavam inseridos, sendo que os primeiros grupos feministas em 1972, 
em São Paulo e no Rio de Janeiro, foram inspirados no feminismo dos países do Norte. 

Neste  ano,  os  eventos  que  apontam  para  a  história  e  as  contradições  do 
feminismo no Brasil foram o Congresso promovido pelo Conselho Nacional da Mulher , 
e as primeiras reuniões de grupos de mulheres, que tinham um caráter quase privado, o 
que seria uma marca feminismo brasileiro, posteriormente. 

Entre  os  eventos  que  marcaram  a  entrada  definitiva  das  mulheres  na  esfera 
pública,  podemos  destacar  o  Ano  Internacional  da  Mulher ,  em  1975,  decretado  pela 
Organização das Nações  Unidas  (ONU).  O  evento organizado para  comemorar o  Ano 
Internacional, realizado no Rio de Janeiro e a criação do Centro de Desenvolvimento da 
Mulher Brasileira, acabaram por fortalecer o movimento feminista brasileiro. 

Na década de 1980 o feminismo enfrentou a redemocratização. Neste momento, 
duas  questões  tiveram  que  ser  enfrentadas:  a  unidade  do  movimento  ameaçada  pela 
reforma partidária  de 1979, que dividiu  os  grupos  opostos,  e  a  relação  do  movimento 
com  os  governos  democráticos  que  viriam  a  se  estabelecer,  principalmente  quando  o 
Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) começou a ganhar as eleições 
estaduais.  Surgiram  então, os  grupos  feministas  temáticos,  os  grupos  que  se  chamaria 
posteriormente  de  feminismo  acadêmico  e  começa  a  se  perceber  o  surgimento  de 
núcleos de pesquisa em estudos da mulher. 

A  criação  das  delegacias  especializadas  a  partir  de  1985,  marcaram  um 


importante passo na luta contra a violência cometida contra as mulheres, pois apesar de 
o  feminismo,  as  feministas  e  as  delegacias  da  mulher  não  resolveram  a  questão,  a 
criação  das  delegacias  foi  um  avanço  na  medida  em  que  a  mulher  passou  a  ser 
reconhecida como vítima de violência. 

O planejamento familiar, a sexualidade e o aborto, também foram temas centrais 
no  movimento  feminista  da  década  de  80,  principalmente  após  a  implantação  do 
Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), pelo Ministério da Saúde. 

Para  o  que  estamos  nos  propondo  neste  artigo,  esta  contextualização  do 
movimento feminista, do final do século XIX até o final da década de 1980, nos parece

suficiente para que possamos pensar na conjuntura em que foram elaboradas as leis que 
discutiremos a seguir. 

LDB E PCN 

Aprovada em dezembro de 1996, após oito anos de tramitação no Congresso, a 
nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) representa por um lado a vitória de 
setores ligados à educação, que vinham mobilizando­se em torno de sua elaboração, e 
por outro a derrota diante da intervenção federal, sob a coordenação do Ministério da 
Educação,  em  favor  de  um  projeto  substitutivo  elaborado  pelo  então  senador  Darcy 
Ribeiro, que retirava de seu texto importantes reivindicações destes  setores (VIANNA 
& UNBEHAUM, 2004). 
Entre as conseqüências dessa substituição pode­se destacar a indefinição quanto 
ao número de alunos por sala de aula (Art. 25), o que tem resultado na superlotação das 
salas  e em  precárias  condições  para o  trabalho  docente,  diferente  da  meta  prevista  no 
projeto original  (20  alunos/sala  para  a  educação  infantil,  30  alunos/sala  para  o  ensino 
fundamental  e  40  alunos/sala  para o  ensino  médio),  a redução da proposta original  de 
um piso salarial nacional para a de diferentes pisos salariais municipais e estaduais (Art. 
67, III), entre outras. 
Publicado logo após a aprovação da LDB, em 1997, os Parâmetros Curriculares 
Nacionais  para o  Ensino  Fundamental  (PCN),  é  uma proposta  de  conteúdos  que deve 
orientar a estrutura curricular de todo o sistema educacional do país, servindo como um 
referencial e não como uma diretriz obrigatória. 
Como nos mostra Vianna e Unbehaum: 

Os  PCN têm  como  função  subsidiar  a  elaboração 


ou  a  revisão  curricular  dos  estados  e  municípios, 
que  pretende  contextualizá­la  em  cada  realidade 
social.  Nesse  sentido,  a  proposta  curricular  das 
instituições  escolares  envolvidas deve  contar  com 
a participação de toda a  equipe pedagógica,  a fim 
de  garantir  o  diálogo  entre  tais  orientações  e  as 
práticas já existentes nas instituições (2004). 

Assim como a LDB, os PCN foram primeiramente resultado de ampla consulta 
à profissionais ligados à educação, a partir do qual o Ministério da educação elaborou a 
versão final.  Quanto à inclusão da questão de gênero, notamos que existem diferentes

âmbitos nos quais podemos subentender a presença ora velada, ou explicita de questões 
de (des) igualdade entre os indivíduos de diferentes sexos. 

A linguagem 

O primeiro âmbito que podemos destacar é o da linguagem. Apesar de estar em 
consonância  com a  norma culta da língua portuguesa escrita, a utilização do genérico 
masculino  indiscriminado  no  texto  dos  documentos,  reflete  um  certo  androcentrismo 
corrente na sociedades brasileira de forma geral. 

Podemos  notar  no  Art.4,  parágrafos  VIII  e  XIX  da  LDB,  que  se  refere  aos 
sujeitos  de  direito  à  educação  e ao dever  de  educar,  o  exemplo  claro  desta  tendência 
que percorre todo o texto: 

VIII  ­  atendimento  ao  educando,  no  ensino 


fundamental  público,  por  meio  de  programas 
suplementares  de  material  didático­escolar, 
transporte, alimentação e assistência à saúde; 
XIX  ­  padrões  mínimos  de  qualidade  de  ensino 
definido  como  a  variedade  e  quantidade  mínimas, 
por  aluno,  de  insumos  indispensáveis  ao 
desenvolvimento  do  processo  de  ensino­ 
aprendizagem. (Grifos nossos) 

Com isso percebemos que linguagem carrega consigo significados implícitos ao 
ato de falar. Traz também preconceitos e está impregnada de sentidos para além da mera 
comunicação. Como bem assinalam Vianna e Unbehaum: 

A  linguagem  como  sistema  de  significação  é,  ela 


própria,  expressão  da  cultura  e  das  relações  sociais 
de  um  determinado  momento  histórico.  É 
exatamente  isso  que  as  frases  desses  documentos 
mostram. Se, por um lado, o masculino genérico por 
elas  empregado  expressa  uma  forma  comum  de  se 
manifestar,  por  outro,  seu  uso  ­  especialmente  em 
textos que tratam de direitos  ­ não é impune, pois a 
adoção  exclusiva  do  masculino  pode  expressar 
discriminação sexista e reforçar o modelo lingüístico 
androcêntrico (2004).
10 

Sendo assim a construção de relações de gênero mais igualitárias passa também 
pela  questão  da  expressão  e  da  linguagem  que  utilizamos,  sobretudo  nos  espaços 
voltados para a educação, de forma a criar nos indivíduos, desde a infância, formas de 
se relacionar despojadas de preconceito de qualquer ordem. 

A Educação como direito universal 

Como  já  dissemos  na  introdução, a  educação  na  maioria  dos  países  do  mundo 
teve  como objetivo primeiro educar os homens.  No Brasil essa exclusão das mulheres 
no sistema educacional, também conhecida como hiato de gênero 1  somente começou a 
ser revertida a partir do século XX: 
O  hiato  de  gênero  e  o  déficit  educacional  das 
mulheres  fizeram  parte  da  realidade  brasileira 
durante  mais  de  400  anos.  Contudo,  as  mulheres 
conseguiram eliminar e reverter este hiato durante o 
século  XX.  Segundo  Alves  (2003),  a  reversão  do 
hiato  de  gênero  na  educação  foi  a  maior  conquista 
das  mulheres  brasileiras  no  século  passado 
(BELTRÃO & ALVES, 2004, p. 3). 

A  Constituição  de  1988  marca  um  importante  momento  do  movimento  de 
mulheres.  Na  educação,  assim  como  em  outros  âmbitos,  grandes  conquistas  foram 
alcançadas. 
Neste momento, no entanto, a luta estava inteiramente voltada para a conquista 
de  direitos  igualitários.  Ficava  garantido,  então,  o  acesso  de  todos  os  indivíduos  à 
educação independentemente de classe social, raça/etnia, crença ou sexo. 
Neste  documento  o  conceito  de  gênero  é  inexistente,  devido  ao  momento 
histórico  em  que  foi  gerado,  porém  a  tentativa  de  extinguir  a  descriminação  entre 
homens  e  mulheres  se  dá,  assim  como  em  relação  aos  outros  tipos  de  discriminação, 
pela afirmação do direito de todos à cidadania e pelo repudio a intolerância de qualquer 
espécie. 
A LDB também reflete esta tendência, buscando a eliminação das desigualdades 
no  âmbito  do  direito  igualitário  à  educação.  A  noção  de  tolerância   também  está 
presente, sendo que sua utilização nos parece um tanto quanto complicada, já que o ato 


Para melhor conceituação do conceito de hiato de gênero, ver  BELTRÃO & ALVES, 2004.
11 

de  tolerar  pressupõe  uma  atitude  de  bondade  dos  indivíduos  superiores  para  com  os 
inferiores. 
Já no PCN, a referência ao gênero se dá de forma mais concreta e clara. Neste 
documento temas como ética, pluralidade cultural, meio ambiente, sexualidade e saúde, 
aparecem  como  os  chamados  temas  transversais  que  devem  ser  tratados  juntamente 
com todos os conteúdos de que se a escola se ocupa tradicionalmente. 
Dos  volumes  que  se  ocupam  destes  temas,  a  questão  de  gênero  é  mais 
amplamente  tratada  naquele  que  trata  da  sexualidade.  Já  na  apresentação  (v.8),  ao  se 
referir ao tratamento a ser dado à Orientação Sexual, esclarece­se que ele deve enfocar 
as  dimensões  sociológica,  psicológica  e  fisiológica  da  sexualidade;  propõem­se,  com 
isso,  três  eixos  para orientar  a  intervenção  do professor: Corpo  Humano, Relações de 
Gênero  e  Prevenção  às  Doenças  Sexualmente  Transmissíveis/Aids  (Brasil,  1997,  v.8, 
p.31­34). No eixo Relações de Gênero, fica claro, que ele propicia o questionamento de 
papéis rigidamente estabelecidos a homens e mulheres na sociedade, a valorização de 
cada um e a flexibilização desses papéis (PCN, v.8, p.35). 
Os  objetivos  assumidos  neste  volume  são  combater  relações  autoritárias, 
questionar a  rigidez dos padrões de  conduta  estabelecidos para homens e  mulheres  e 
apontar para sua transformação, incentivando, nas relações escolares, a diversidade de 
comportamento de homens e mulheres, a relatividade das concepções tradicionalmente 
associadas  ao  masculino  e  ao  feminino,  o  respeito  pelo  outro  sexo  e  pelas  variadas 
expressões  do  feminino  e  do  masculino  (PCN,  1997,  v.10,  p.144­146).  Nessas 
referências existe a preocupação expressa com a criação de novos padrões de conduta, 
capazes de criar uma sociabilidade pautada na igualdade de gênero. 
Sobre  a  abordagem  da  temática  de  gênero  praticamente  restrita  ao  bloco 
referente à sexualidade, é importante ressaltar que com isso corre­se o risco de vincular 
a  formação  das  identidades  de  gênero  ao  corpo  e  à  sexualidade,  perdendo  assim  a 
própria  dimensão  do  conceito  de  gênero,  que  busca  pensar  nessas  identidades  como 
construções sociais mais amplas, desvinculadas das concepções naturais de formulação 
do feminino e do masculino. 
O  mesmo  acontece  quando  se  trata  das  relações  de  gênero  relacionadas 
diretamente  com  a  discussão  sobre  a  prevenção  de  doenças.  Em  ultima  análise,  essa 
abordagem  incorre  no  risco  de  se  reduzir  aos  aspectos  fisiológicos,  relações 
essencialmente pautadas pela sociedade em que estão inseridas.
12 

Quando  a  temática  da  ética  é  introduzida,  o  gênero  aparece  de  forma  menos 
clara.  Neste  bloco,  a  menção  ao  respeito  mútuo  deixa  subentendido  o  incentivo  ao 
combate as discriminações de todos os tipos. 

Considerações finais 

Após esta breve análise, podemos verificar que desde a Constituição de 1988 o 
movimento de mulheres começa a colher os resultados das lutas encerradas nas décadas 
anteriores.  É  neste  momento que, no  Brasil,  se  formaliza a  democratização do  ensino, 
que teve inicio logo depois da Revolução de 1930. 
As  condições  de  acesso  e  permanência  na  escola  passa  a  ser  direito  efetivo  de 
todos  e  todas  (embora  essa  diferenciação  de  gênero  não  seja  explicita), 
independentemente de origem, raça e sexo. 
Em  consonância  com  a  Constituição,  a  LDB  e  o  PCN  se  apresentam  como 
documentos emblemáticos das conquistas das mulheres no século XX. O PCN, mais do 
que  a  LDB, demonstra  a  tentativa  explicita de  se  incorporar  a  temática  de  gênero  nos 
conteúdos  curriculares,  e  com  isso  representam  o  documento  mais  importante  neste 
sentido até então. O chamado  hiato de gênero começou a ser revertido e atualmente as 
mulheres ultrapassaram os homens no número de anos que permanecem na escola. 
No ensino superior o número de mulheres também vem crescendo visivelmente, 
embora  ainda  haja  diferenciação  de  acordo  com as  carreiras  escolhidas.  No  entanto,  a 
discussão  sobre  a  desigualdade  de  gênero  no  âmbito  educacional  pouco  avançou para 
além da garantia de acesso igualitário de meninos e meninas à escola. 
As  práticas  em sala  de  aula  e  o  cotidiano  na  escola  pouco  foram  alterados nas 
últimas  décadas,  pela  própria  escassez  de  discussões  que  desvinculem  a  questão  de 
gênero da abordagem restrita ao campo da saúde e da sexualidade. 
A  própria  noção  de  papel  social de  homens  e  mulheres,  que  é  trabalhada  pela 
escola  e  incentivada  pelos  documentos  analisados,  demonstra  um  retrocesso  na 
discussão  da  relações,  que  nos  permitem  pensar  de  forma  mais  flexível  e  menos 
determinista. 
Para  que possamos  avançar  neste  sentido,  é  necessário que questões  ligadas  às 
construções de gênero na sociedade como um todo sejam trazidas à tona e amplamente
13 

discutidas com os profissionais ligados à educação, a fim de transformar o enfoque dado 
a estas questões, num enfoque mais amplo e realmente emancipador. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

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14 

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