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Ensaios de Micro-História,

trajetórias e imigração
Maíra Ines Vendrame
Alexandre Karsburg
Paulo Roberto Staudt Moreira
(Orgs.)

Ensaios de Micro-História,
trajetórias e imigração

OI OS
EDITORA Estudos Históricos
Latino-Americanos

2016
© 2016 – Editora Oikos Ltda.
Rua Paraná, 240 – B. Scharlau
93120-020 São Leopoldo/RS
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Coleção Estudos Históricos Latino-Americanos – EHILA


Direção:
Eliane Cristina Deckmann Fleck (Coordenadora do PPGH-Unisinos)
Luiz Fernando Medeiros Rodrigues (Editor – Linha de Pesquisa Sociedades Indí-
genas, Cultura e Memória)
Maíra Ines Vendrame (Linha de Pesquisa Migrações, Territórios e Grupos Étnicos)
Marluza Marques Harres (Linha de Pesquisa Poder, Ideias e Instituições)

Conselho Editorial:
Eduardo Paiva (UFMG)
Guilherme Amaral Luz (UFU, Uberlândia, MG)
Horacio Gutiérrez (USP)
Jeffrey Lesser (Emory University, EUA)
Karl Heinz Arenz (UFPA, Belém, PA)
Luis Alberto Romero (UBA, Buenos Aires, Argentina)
Márcia Sueli Amantino (UNIVERSO, Niterói, RJ)
Marieta Moraes Ferreira (FGV, Rio de Janeiro, RJ)
Marta Bonaudo (UNR)
Rodrigo Patto Sá Motta (UFMG)
Roland Spliesgart (Ludwig-Maximilians-Universität München)

Editoração: Oikos
Revisão: Autores e Organizadores
Capa: Juliana Nascimento
Imagem da capa: “A aldeia: paisagem com agricultores”, de Pieter Bruegel (o jovem)
(1564-1636)
Arte-final: Jair de Oliveira Carlos
Impressão: Rotermund

E59 Ensaios de micro-história: trajetória e imigração. / Organizadores: Maíra


Ines Vendrame, Alexandre Karsburg e Paulo Roberto Staudt Moreira.
– São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2016.
380 p.; il.; 14 x 21cm. – (Coleção Estudos Históricos Latino-Ameri-
canos – EHILA)
ISBN 978-85-7843-660-5
1. Historiografia. 2. História – Itália. 3. História – Brasil. 4. História
– Rio Grande do Sul. 5. Migração. 6. Imigração. 7. História oral . I. Ven-
drame, Maíra Ines. II. Karsburg, Alexandre. II. . III. Moreira, Paulo Ro-
berto Staudt
CDU 931
Catalogação na publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184
Sumário

Apresentação ......................................................................... 7

Parte I: Sobre a Micro-História: caminhos e perspectivas


30 anos depois: repensando a Micro-História ........................ 18
Giovanni Levi
A longa marcha da Micro-História: da política à estética? ...... 32
Maurizio Gribaudi
História Oral e Micro-História ............................................... 52
Alessandro Casellato
História Total versus Global History: a historiografia
antes e depois da queda do Muro de Berlin ............................ 72
Giovanni Levi

Parte II: Estudos de Trajetórias


Investigação e formalização na perspectiva
da Micro-História .................................................................. 86
Alexandre Karsburg
Maíra Ines Vendrame
Entre o duque de Caxias e dois capitães pardos:
escolha biográfica e escrita da história ................................. 114
Adriana Barreto de Souza
A feiticeira do litoral: comunidade, crença e gênero
(século XIX) ........................................................................ 131
Nikelen Acosta Witter
Paulo Staudt Moreira
Arqueologia do Sagrado: crenças, histórias e mitos do Cariri ... 167
Edianne dos Santos Nobre
Parte III: Contribuições da Micro-História
para o estudo das e/imigrações
Storia e Microstoria al tempo di internet .............................. 194
Emilio Franzina
“Entre idas e vindas”: a contribuição da Micro-História
para o estudo da migração entre Portugal e o Brasil ............. 211
Ana Silvia Volpi Scott
Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX .............................. 234
Alejandro Fernández
Inmigración y familia: una mirada desde las redes
de inmigrantes italianos en la Argentina .............................. 269
Mariela Ceva

Parte IV: Ensaios de Micro-História


Redes mercantis e familiares na Porto Alegre do século XIX .... 292
Gabriel Santos Berute
Vozes da Ordem: proprietários, trabalhadores livres
e escravos na fronteira meridional do Brasil
(Alegrete 1827-1850) ........................................................... 319
Luís Augusto Farinatti
“Entre o local e o global”: imigração, relações sociais
e perfil ocupacional dos estrangeiros na cidade de Pelotas
(1850-1890) ......................................................................... 338
Jonas Moreira Vargas

Resenha Crítica
“A história de Pierina” ........................................................ 363
Maíra Ines Vendrame

Sobre os autores e as autoras ............................................... 375

6
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Apresentação

O presente livro reúne artigos de pesquisadores brasileiros


e estrangeiros que estudam objetos variados dentro de temáticas
igualmente diversas. Dentre eles, destacam-se dois textos do his-
toriador italiano Giovanni Levi que, em junho de 2016, foi pro-
fessor visitante no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, onde ministrou um curso
e participou do II Seminário de Micro-História, Trajetórias e Imigra-
ção. A realização das referidas atividades propiciou a criação de
espaços para ouvir e dialogar com um dos principais historiado-
res ligados ao método da microanálise. Em consequência disso,
surgiu a oportunidade de organizar o presente livro, tendo sido
convidados historiadores que pesquisam diferentes temas, mas que
foram influenciados em suas pesquisas pelas orientações teóricas
e metodológicas da micro-história italiana.
Assim como as obras de Carlo Ginzburg, o livro de Giovan-
ni Levi, Herança Imaterial: a trajetória de um exorcista no Piemonte do
século XVII, difundiu em diferentes partes do mundo o método da
micro-história. Defendida pelo referido historiador como uma “prá-
tica historiográfica” de influências variadas e ecléticas, o que im-
porta é a perspectiva escolhida e não o objeto ou o assunto. Nesse
sentido, a proposta da microanálise é partir de uma situação parti-
cular ou individual, analisada na complexidade de seus contextos
específicos, para propor novas perguntas que permitam compreen-
der processos mais amplos. As situações circunscritas e casos indi-
viduais devem, portanto, fornecer indícios, sugerir questionamen-
tos que ajudem a entender melhor fenômenos gerais.
Na Itália da década de 1970, em torno da revista Quaderni
Storici, é que começaram as ser pensadas as práticas que passa-

7
Apresentação

ram a definir a micro-história. A partir desse momento, a referi-


da perspectiva metodológica passou a influenciar a produção
historiográfica italiana e conquistar adeptos em diferentes par-
tes do mundo, incluso no Brasil. Independentemente dos temas
de pesquisas, é grande o entusiasmo dos pesquisadores brasilei-
ros com os referenciais teóricos e metodológicos apresentados
pela micro-história. A inspiração e os desdobramentos são dife-
rentes, como se poderá perceber nos artigos que compõem o pre-
sente livro.
Em relação ao tema das migrações, uma grande reviravol-
ta ocorreu nos estudos que pensavam os deslocamentos de curta
e longa distâncias, graças às análises que buscavam entender as
motivações individuais, familiares e as características locais das
áreas de partida. A microanálise permitiu perceber, através da
reconstrução da trajetória de sujeitos e famílias, as racionalida-
des que orientavam as transferências, indo além, portanto, das
explicações que entendiam os processos migratórios apenas
como consequência de mudanças estruturais econômicas. Os
imigrantes passaram a ser vistos como atores sociais ativos que
estabeleciam estratégias e articulavam as próprias transferências
da Europa Mediterrânica para os países da América.
Um dos objetivos deste livro foi o de reunir artigos que
apresentem reflexões a respeito de temas variados tendo como
inspiração a metodologia da micro-história. Buscamos congre-
gar estudos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros que rece-
beram influências teóricas e conceituais e utilizaram conceitos
como: estratégia, redes sociais, racionalidade limitada, solidarie-
dade e incerteza. Outra prática frequente nos trabalhos influen-
ciados pela micro-história é a preocupação com o levantamento
do maior número possível de informações sobre as situações e
grupos analisados, realizando um cruzamento de fontes de ori-
gens diversas. Esse procedimento ajuda a apreender a complexi-
dade das situações e contextos estudados.

8
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

O livro que apresentamos se encontra dividido em quatro


partes. A primeira parte, intitulada Sobre a Micro-História: cami-
nhos e perspectivas, inicia com reflexões recentes de um dos maio-
res expoentes da micro-história italiana. No primeiro artigo, 30
anos depois: repensando a Micro-História, Giovanni Levi fala da ori-
gem política da Microstorie, do contexto de surgimento e das pre-
tensões dos fundadores, definindo, ao mesmo tempo, o que bus-
cavam e como pode ser definida enquanto metodologia. Ao afir-
mar que a micro-história necessariamente não procura recons-
truir a história das minorias, dos excluídos e dos indivíduos mar-
ginalizados, reforça um dos objetivos principais da microanáli-
se que é alcançar a complexidade dos contextos nos quais os
sujeitos e grupos agem, reconstruindo, portanto, situações, ex-
periências, incertezas, incoerências e não linearidade das traje-
tórias. A redução de escala é um dos pontos que caracterizam a
micro-história, sendo os problemas sociais observados com o
“microscópio” para deles se extrair perguntas gerais. Essa ques-
tão de método, bem como a sua interlocução com a antropolo-
gia, a relação dos homens com os lugares e a necessidade de se
estudar os vencidos ao invés dos vencedores, é algo que Giovan-
ni Levi aprofunda em seu segundo texto, A História Total versus a
Global History, apresentando algumas das ideias do antropólogo
francês Nathan Wachtel.
Na sequência, Maurizio Gribaudi, no artigo A longa mar-
cha da micro-história, apresenta uma análise sobre os anos iniciais
da micro-história, do final da década de 70 e início dos anos 80, e
como a pesquisa histórica era vivida enquanto “intervenção po-
lítica ativa”. Começa falando da própria experiência como alu-
no de Giovanni Levi e da maneira nada dogmática que o referi-
do professor orientava os jovens pesquisadores, recusando-se a
direcionar as pesquisas com aplicações pré-concebidas de con-
ceitos e de métodos. Gribaudi salienta as próprias dúvidas de
pesquisa, ressaltando, a seguir, a questão do interesse por en-
contrar o sentido da história em toda a sua “contraditória com-

9
Apresentação

plexidade”, finalidade essa que o aproximava, então, das pre-


tensões dos fundadores da micro-história.
Alessandro Casellato, no artigo intitulado História Oral e
Micro-História, analisa algumas das preocupações que conside-
rou ser comum entre os historiadores que passaram a fazer mi-
cro-história e história oral na Itália da segunda metade do sécu-
lo XX. A derrota política da esquerda na década de 60 e a “crise
cultural” levaram à preocupação com o detalhe, com as explica-
ções não mecânicas e à necessidade de inventar modos para apre-
ender as contradições sociais não solucionáveis. Nesse sentido,
Casellato busca mostrar que a história oral e a micro-história
surgiram devido à insatisfação dos historiadores frente à histo-
riografia de seu tempo, bem como da vontade de buscar enten-
der a sociedade como ela era, na sua complexidade e contrarie-
dade. As duas referências metodológicas possuíam muitos pon-
tos em comum, práticas e redes de relações às aproximavam. O
autor identifica as influências da história oral na trajetória de
pesquisa de dois dos principais expoentes da micro-história, antes
mesmo dessa metodologia ter surgido.
A segunda parte do presente livro, denominada Estudos de
Trajetórias, é composta por artigos de autores que foram buscar
na micro-história italiana, principalmente nos livros de Carlo
Ginzburg, inspiração para escrever seus textos. O primeiro de-
les, Investigação e formalização na perspectiva da Micro-história, de
Alexandre Karsburg e Maíra Vendrame, apresenta reflexões de
historiadores que realizaram uma análise das próprias trajetórias
acadêmicas, as relações deles com as fontes, as indefinições quan-
to aos objetivos e a adaptação de métodos de pesquisa que po-
dem (e devem) mudar de acordo com os desafios enfrentados. O
modo com que os historiadores expõem, na própria narrativa,
suas dúvidas e incertezas de pesquisa é a chave de leitura do
presente artigo. Na sequência, Adriana Barreto de Souza, com
o artigo intitulado Entre o duque de Caxias e dois capitães pardos:
escolha biográfica e escrita da história, procurou refletir sobre sua

10
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

experiência de escrita quando realizou uma tese-biográfica so-


bre o duque de Caxias comparando-a a outra completamente
diferente que vem enfrentando atualmente: um estudo sobre dois
capitães do Regimento de Milícias de Homens Pardos do Rio de
Janeiro. Sua intenção, portanto, será justamente estabelecer um
vínculo entre as intervenções metodológicas realizadas durante
cada uma das pesquisas. Dentre suas preocupações está o de
refletir a respeito de uma pergunta simples feita por Marc Bloch
há algumas décadas no Apologia da História (2001, p. 83): “como
posso escrever o que vou lhes dizer?”
Nikelen Witter e Paulo Roberto Staudt Moreira, no A Fei-
ticeira do Litoral: comunidade, crença e gênero (século XIX), partem
de um caso particular para analisar a realidade histórica escra-
vista oitocentista. O evento, sucintamente descrito, permitiu
explorar o teor excepcional de documentos como o processo ju-
dicial que envolveu personagens obscuros para a grande histó-
ria, mas que, uma vez narrado de forma adensada, revelou as
potencialidades que ensejam o entendimento das relações e in-
terdependências comunitárias na sua normalidade e porosida-
de. Através de uma perspectiva microanalítica, os autores pre-
tendem captar o dinamismo comunitário e a circularidade de
crenças, os relacionamentos entre senhores e seus escravizados
e alguns dos papéis e espaços femininos.
Em Arqueologia do Sagrado, Edianne Nobre analisa as cren-
ças, história e mitos do Cariri, região do Ceará que se destaca
por sua vegetação, terras férteis e inúmeras fontes de água mine-
ral. Porém, o que fez a autora abordar essa região específica foi
a forma com que diversos autores narraram o lugar, do início do
século XIX a meados do XX, criando um imaginário que serviu
de legitimação para práticas e manifestações religiosas. O que a
autora propõe no artigo é realizar uma “breve arqueologia” das
histórias que povoam o Cariri e que o conformam em um espaço
sagrado, ressignificado e reinventado continuamente nas vozes
de diversos narradores. O objetivo de seu texto é contar a histó-

11
Apresentação

ria das práticas que legitimam o Cariri cearense como um espa-


ço sagrado no âmbito da religião católica, que se estabelece em
meados do século XVIII e que instaura modos de viver e sentir a
religião que perduram até os dias de hoje.
A terceira parte deste livro, sob o título Contribuições da
Micro-História para o estudo das e/imigrações, é composta por arti-
gos que analisam as migrações transatlânticas entre Europa e
América do Sul no final do século XIX e início do XX. Em Sto-
ria e microstoria al tempo di Internet, Emilio Franzina fala sobre
suas pesquisas recentes a respeito dos imigrantes italianos vo-
luntários que retornaram para a pátria mãe, a Itália, para lutar
como voluntários na Primeira Guerra Mundial. Ressalta a ne-
cessidade de analisarmos a trajetória dos combatentes – suas
expectativas e frustações, utilizando-se de correspondências,
memórias e escritos pessoais – como uma forma de adentar nes-
se grupo de soldados tão pouco conhecidos. A internet, para o
autor, apresenta-se como recurso que atualmente facilita a loca-
lização de material que, em anos anteriores, seria difícil de en-
contrar. Isso tem permitido conhecer vidas anônimas, como a
dos soldados, e inseri-las como objeto de estudo na história.
Estudando a imigração portuguesa para o Brasil, Ana Sil-
via Volpi Scott, com o artigo “Entre idas e vindas”, aponta algu-
mas contribuições da micro-história italiana para o avanço dos
estudos sobre deslocamentos. Partindo das sugestões conferidas
pelos trabalhos que utilizam a microanálise, a autora elenca
novos temas, problemas e possibilidades metodológicas e teóri-
cas para repensar a e/imigração e a estrutura familiar, tanto nos
locais de partida como nos de chegada. Também pensando a
imigração transatlântica, as relações de parentesco, continuida-
de e rupturas entre os lugares de saída e o de chegada, Alejan-
dro Fernandez, em Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX, utiliza o método da micro-
análise para entender as motivações da repentina aceleração do
deslocamento de camponeses de uma aldeia para outra no terri-

12
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

tório espanhol. As relações familiares e afinidades entre os con-


terrâneos foram fundamentais para colocar em marcha as dinâ-
micas migratórias e assegurar a continuidade das transferências.
Encerrando essa parte, Mariela Ceva discute alguns te-
mas que, nos últimos anos, estão no centro dos debates sobre as
migrações transatlânticas no território argentino. Inspirada pe-
los métodos e orientações teóricas sugeridos pela micro-histó-
ria, a autora, no artigo Inmigración y familia. Una mirada desde las
redes de inmigrantes italianos en la Argentina, analisa a relação e os
vínculos entre os membros de um grupo e a imigração. Também
destaca a constituição e o papel das redes relacionais nos movi-
mentos migratórios, na constituição de uma determinada iden-
tidade e “memória familiar”. As cartas e fotografías são utiliza-
das como documentos preferencias para apreender os recursos
acionados para garantir as interações entre indivíduos que se
encontravam afastados espacialmente.
A última parte do presente livro, Ensaios de Micro-História,
reúne estudos que abordam diferentes temas de pesquisa, em
espaços geográficos restritos, mas com preocupações de alcance
mais geral. Os trabalhos tratam de locais específicos do Rio Gran-
de do Sul no decorrer do século XIX. No artigo de Gabriel San-
tos Berute, Redes mercantis e familiares na Porto Alegre do Século
XIX, encontramos um intenso diálogo com a demografia histó-
rica, onde o autor chama a atenção para a potencialidade de
seus referenciais teóricos e metodológicos quando trata de fon-
tes eclesiásticas para os estudos de grupos socioeconômicos.
Nesse sentido, a micro-história é a principal referência, especial-
mente quanto à redução do foco da análise para analisar um
grupo de negociantes que atuava na parte mais meridional da
América portuguesa, permitindo refletir a respeito das rotas de
comércio da primeira metade do século XIX. Um dos métodos
utilizados nessa pesquisa é o cruzamento nominal a partir de
registros de batismo, casamento e óbito, o que permitiu conhe-
cer informações que podem contribuir para investigar a atuação

13
Apresentação

de um determinado grupo socioeconômico. Desse modo, o au-


tor selecionou a família de um comendador para investigar as
relações estabelecidas entre os comerciantes que atuavam a par-
tir de Porto Alegre nas primeiras décadas do século XIX.
Em Vozes da Ordem: proprietários, trabalhadores livres e escra-
vos na fronteira meridional do Brasil (Alegrete 1827-1850), de Luiz
Augusto Farinatti, percebemos a metodologia serial centrada em
fontes massivas e reiterativas, como inventários post mortem e
escrituras públicas. Contudo, o autor procurou agregar técnicas
inspiradas na micro-história italiana “visando problematizar as
conclusões a que havia chegado a partir de categorias homogê-
neas e, assim, alcançar uma visão mais complexa de meu objeto
de estudo”. Desse cruzamento de fontes e análise detalhada dos
dados, o artigo nos apresenta informações diferentes a respeito
do universo agrário da região estudada (metade oeste do RS),
afastando-se de estereótipos que viam “naqueles campos uma
rígida dicotomia entre grandes estancieiros x peões livres prole-
tarizados.” E comprovando o alcance geral que um estudo de
micro-história permite, o texto nos mostra que a escravidão na
campanha sul-rio-grandense era elemento central na reprodu-
ção da grande pecuária, e, mesmo nos estabelecimentos meno-
res, o trabalho cativo mostrava-se extremamente difundido.
O artigo de Jonas Vargas, intitulado “Entre o local e o glo-
bal”: imigração, relações sociais e perfil ocupacional dos estrangeiros na
cidade de Pelotas (1850-1890), traz a análise das relações sociocul-
turais entre estrangeiros e luso-brasileiros na cidade de Pelotas.
Privilegiando a escala microanalítica, o autor busca oferecer
dados quantitativos a respeito do fluxo de estrangeiros em uma
cidade do interior do Rio Grande do Sul, conhecida no século
XIX como núcleo charqueador dos mais importantes. O traba-
lho tem por finalidade contribuir com o tema das relações de
imigrantes europeus e famílias originárias do local, oferecendo
possibilidades de análise e comparações bem como esclarecen-
do quais foram as estratégias de quem procurava se inserir na

14
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

sociedade de elite da época. Os sujeitos eram permeados por


uma racionalidade limitada e seletiva, jogando com os recursos
disponíveis num emaranhado de relações que podiam ser tanto
amistosas como conflituosas. O artigo conclui afirmando que
Pelotas era muito mais do que um núcleo charqueador, e que
não estava polarizada entre os senhores da carne e seus escra-
vos. No final dos anos 1870, o município possuía quase 30 mil
habitantes e havia se tornado o cenário de um grande número
de profissionais de diferentes áreas, atingindo um notável grau
de desenvolvimento econômico e cultural para os padrões da
província sul-rio-grandense.
Por fim, apresentamos uma Resenha Crítica, realizada por
Maíra Vendrame, da obra A História de Pierina, de Yonissa Wadi,
publicada em 2009. O livro parte da trágica trajetória de uma
mulher de 28 anos, moradora de uma região de colonização ita-
liana no sul do Brasil, que mata sua filha e, a seguir, é internada
em um Hospício em Porto Alegre. O livro resenhado apresenta
novas interpretações sobre a condição feminina, revelando as
tensões da vida familiar numa comunidade rural e as relações
entre subjetividade, sociedade e saber médico psiquiátrico no
Rio Grande do Sul na primeira década do século XX.
A diversidade de objetos, recortes e enfoques presentes nos
artigos deste livro comprova que a micro-história não está res-
trita a esta ou àquela temática, pois o método permite o estudo
de todo tipo de assunto. Porém, os pontos que unem a todos os
textos é o cruzamento de fontes de origens diversas e a preocu-
pação em construir uma narrativa que satisfaça o leitor exigen-
te, mas também seja acessível para público mais amplo – esfor-
ço, aliás, que, embora não restrita a eles, faz parte das preocupa-
ções dos chamados “pais” da Micro-História italiana.

Os organizadores

15
Parte I
Sobre a Micro-História:
caminhos e perspectivas
30 anos depois:
repensando a Micro-História1
Giovanni Levi

Poucas experiências historiográficas suscitaram tantos equí-


vocos como aconteceu com a micro-história. Seu amplo sucesso
aconteceu, com certeza, por responder a uma série de exigências
existentes entre o final dos anos setenta e o começo dos anos oi-
tenta, seguindo a polarização da época: os jovens historiadores e
os desiludidos com a história total que não mais acreditavam na
capacidade de reconstruir, mesmo que parcialmente, a verdade
dos fatos do passado. Os jovens historiadores, por seu turno, tam-
bém se separavam daqueles que pensavam ser possível entender a
realidade por meio de uma série de conceptualizações teóricas,
geralmente de origem positivista, que tornava mais rígido os fe-
nômenos, as relações de causa e efeito e os instrumentos de inter-
pretação. Afinal, era essa a doença da historiografia da esquerda
italiana naqueles anos que os jovens historiadores procuravam
superar. O fascínio do positivismo é aquele de pensar de ter en-
contrado a solução que permitisse a explicação dos fenômenos
sociais, culturais, psicológicos e sociológicos. Uma renúncia à
complexidade, à problematização para poder encaixar tudo den-
tro dos esquemas construídos uma vez por todas. Tudo isso teve
uma série dolorida de efeitos sobre a política, antes mesmo do
que sobre a leitura da história.
A origem do equívoco acerca da micro-história estava tam-
bém no nome, que chama atenção mais para a observação de coi-

1
Tradução e revisão: Francesco Santini, Maíra Vendrame e Alexandre Karsburg.

18
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

sas pequenas, acontecimentos, situações individuais ao invés de


ser visto como um problema de metodologia histórica, de análise
minuciosa, de uma observação profunda e concentrada em um
ponto específico. Podemos, portanto, dizer que a principal das
vulgarizações da micro-história foi ligada a uma série de eferves-
cências, denominadas renascimento da narração ou retorno ao
acontecimento. Partamos, então, desta perspectiva que nasce, a
meu ver, não somente de um equívoco sobre o que a micro-histó-
ria italiana propunha-se, mas também de uma imagem errada do
próprio ofício de historiador e da sua relação com os fatos, e do
problema da tradução da realidade na escrita, da relação entre
conhecimento e fatos como aconteceram “ali fora”.
Malgrado as muitas posições e motivações que levaram a
uma deturpação da micro-história quando comparada à sua ori-
gem em um grupo de pesquisadores italianos, todas essas podem
ser unificadas mais na atenção que foi direcionada aos temas tra-
tados do que aos problemas de método. Assim, podemos dizer
que há somente duas leituras contrapostas na micro-história: uma
que remonta a uma teoria da história tradicional, na qual o con-
teúdo prevalece sobre o método, e a outra que insiste no método e
na discussão do aspecto cognitivo da pesquisa histórica; de algu-
ma forma, prevalece esse aspecto sobre o conteúdo da pesquisa.
Tomarei como exemplo da primeira Peter Burke que, escre-
vendo sobretudo de macro-história, interessou-se bastante pela
micro-história e contribuiu de maneira relevante à propagação de
uma interpretação “por conteúdos”. Em um artigo recente define
a micro-história de três maneiras:
1. A definição genérica é chamar a micro-história de qual-
quer estudo de um local ou de pequena escala que é empreen-
dida a fim de iluminar problemas maiores [...]. O ponto, nas
palavras de Hans Medick,2 é ver a história local como histó-
ria geral [...]. É o estudo de uma comunidade;

2
NDT: Historiador alemão que faz parte da rede internacional de Micro-Histó-
ria (http://www.microhistory.eu/). Também é professor da Universidade de
Erfurt, Alemanha.

19
LEVI, G. • 30 anos depois: repensando a Micro-História

2. Uma segunda variedade de micro-história pode ser chama-


da de ‘microbiografia’, que é a biografia de um indivíduo re-
lativamente pouco importante;
3. Uma terceira maneira de ver a micro-história é entendê-la
como a narrativa de um evento em pequena escala que pode
ou não ter repercussões mais amplas [...]. O chamado ‘renas-
cimento da narrativa’ também fornece suporte à micro-histó-
ria (BURKE, 2008, p. 262-264).

O nascimento da micro-história está, para Burke, estreita-


mente ligado à “perda de credibilidade na grande narrativa, ca-
racterística da pós-modernidade, seja a liberal ou a marxista [...] e
à crítica das estruturas com ênfase no indivíduo”. Na opinião de
Burke, a novidade e o caráter da micro-história são, portanto, re-
lativos a seus conteúdos, à história vista de baixo, à atenção ao
indivíduo e ao acontecimento como crítica do caráter cognitivo
que a história pensava ter antes da crise das grandes ideologias,
como expressão da desconfiança na pesquisa da verdade do pas-
sado e da dissolução da história na narração e na ficção.
Naturalmente, cada interpretação é legitima, especialmen-
te agora que a “marca” micro-história se espalhou de modo a co-
brir uma quantidade fragmentária de escritos, que de fato reme-
tem à definição à qual Burke refere-se. Todavia, a experiência de
um grupo restrito de historiadores italianos que se ligou à expe-
riência da micro-história no final da década de 70 era totalmente
diferente. Apesar de ser uma posição particular, tentarei transmi-
tir uma imagem da micro-história que talvez possa refletir a opi-
nião de muitos micro-historiadores: afirmo que o seu nascimen-
to, no final da década de 70, teve, antes de tudo, uma origem po-
lítica. Eram anos de cansaço da esquerda italiana, no qual muitas
tensões e muitos acontecimentos misteriosos nunca foram resol-
vidos: entre a restauração conservadora depois do outono quente
e o ano de 1968, houve atentados terroristas e derrotas do movi-
mento sindical e das suas instâncias de conselho. Esse momento
colocou em evidência a fragilidade das forças progressistas na Itália
e os limites e a inércia da sua análise política. Filha de uma longa
tradição operária, a esquerda italiana ficara confinada em uma

20
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

imagem estática da estrutura social e se adequara a uma ideia de


automatismo, conforme o pertencimento de classe, das escolhas
políticas e ideológicas. Perante as mudanças profundas da orga-
nização da economia e da sociedade, as simplificações de leitura
começavam a mostrar a própria esterilidade. Isto era mais visível
ainda na historiografia, na história do movimento operário e na
interpretação histórica do desenvolvimento distorcido da econo-
mia italiana. A micro-história nascia, pelo menos em minha opi-
nião, da necessidade de recuperar a complexidade da análise, da
renúncia às leituras esquemáticas e gerais para poder observar
realmente como se originavam comportamentos, escolhas e soli-
dariedades.
Havia modelos importantes desta reflexão, começando da
leitura do Gramsci feita pela historiografia marxista inglesa, por
E.P. Thompson em especial, ou pelo trabalho minucioso dos an-
tropólogos de Manchester (Clyde Mitchell, por exemplo) ou por
pesquisadores isolados, mas muito inovadores, como Natalie Ze-
mon Davis. Portanto, dentro da redação da revista “Quaderni Sto-
rici”, para a qual muitos de nós colaborávamos (Edoardo Grendi,
Carlo Poni, Carlo Ginzburg), começou-se a discutir acerca do
problema que poderíamos definir como o resgate da complexida-
de. Assim, em 1980-81, nascia a coleção “Microstorie”, da editora
Einaudi, com breve manifesto que levava a minha assinatura, mas
que era o produto de uma discussão com outros, antes de tudo
com Ginzburg, que dirigiu a coleção comigo durante algum tem-
po. Acredito que seja esta uma boa ocasião para retomar àquele
documento que depois injustamente desapareceu da discussão:
Os historiadores discutem frequentemente o que queria dizer
o Duque d’Auge, em Fiori blu, de Queneau, quando interro-
gava Don Biroton, o capelão:
– Diga-me, tal Concílio de Basileia, é história universal?
– Mas claro: é história universal em geral.
– E os meus canhõezinhos?
– História geral em particular.
– E o casamento das minhas filhinhas?
– Apenas história événementielle. Micro-história, no máximo.

21
LEVI, G. • 30 anos depois: repensando a Micro-História

– História como? – grita o duque d’Auge – que diabo de lin-


guagem é esta?
– Que dia é hoje? Pentecoste?
– Desculpe-me senhor, são os efeitos do cansaço.

Esta irônica hierarquia das histórias e o cansaço do cape-


lão são, com certeza, muito diferentes das motivações pelas quais
nasceu a coleção Microstorie. A condenação do acontecimento em
favor de fenômenos estruturais é uma discussão que já foi supera-
da. O problema, porém, permanece. Como chegar a generaliza-
ções sem esquecer dos indivíduos e das situações? Ou, vice-versa,
como descrever situações, pessoas sem cair em tipologias, exem-
plos e sem renunciar à compreensão dos problemas gerais?
É, talvez, partindo deste problema não resolvido que os his-
toriadores são frequentemente levados a falar das próprias insa-
tisfações, às vezes enfrentadas com a descoberta de novas realida-
des, novos sujeitos. O resultado corre o risco de se tornar lastimo-
so: a historiografia apagou as classes populares, as mulheres, as
culturas orais, a vida quotidiana, os mundos marginais, as socie-
dades diferentes da nossa. Com isso, não quero de certo escapar
daquelas que são as minhas reclamações, mas não basta falar de
alguém para incluí-lo na história do mundo, para mostrar a pre-
sença e a relevância deste. A questão central é como falamos des-
se sujeito.
Nesse sentido, Microstorie é, antes de tudo, uma tentativa
de narrar sem esconder as regras do jogo que o historiador se-
guiu. Claro, não somente remontando aos documentos – isto faz
parte da normal ética profissional. Porém, com a declaração aberta
do processo por meio do qual a história foi construída: os cami-
nhos certos e aqueles errados, a maneira pela qual as perguntas
foram formuladas e as respostas procuradas. Pois que o minucio-
so trabalho de laboratório não permaneça escondido e a receita
não fique um segredo do cozinheiro. Porque os verdadeiros ex-
cluídos da atenção dos historiadores nãos são os protagonistas
negligenciados dos fatos, mas os leitores esmagados pelas pesa-
das interpretações gerais, opiniões discutidas em condições desi-

22
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

guais entre quem escreve e quem lê, mecanismos causais simplifi-


cados e estabelecidos a posteriori. Destas indagações realizadas a
partir do nome do assassino, o verdadeiro excluído é o consumi-
dor dos livros de história.
Microstorie não é, então, necessariamente a história dos ex-
cluídos, dos pequenos, dos que estão nas margens ou além delas.
Antes de tudo, pretende ser a reconstrução dos momentos, situa-
ções, pessoas que, observados com olhar analítico, em um âmbito
circunscrito, recuperam um peso e uma cor; não como exemplos,
na falta de explicações melhores, mas como referência dos fatos à
complexidade dos contextos nos quais os seres humanos agem.
A escala é reduzida, diversamente do que acontece normal-
mente, e isto coloca em xeque os instrumentos conceituais do nos-
so ofício: consumados por causa do uso frequente, entre alusão e
metáfora, cobriram-se da ferrugem da ambiguidade. Pensemos,
por exemplo, as definições cômodas que já se usam para explicar
posicionamentos e comportamentos políticos ou estratificações
sociais e formas de poder: cultura popular, classe média, classe
operária, estado absoluto, camponeses. Malgrado a sua utilidade
hoje requerem sempre mais a especificação e a verificação de
situações concretas, nas quais o indivíduo abstrato volte a fazer
parte, na realidade, a uma forma particular de sociedade, cujas
circunstâncias concretas permitam entender os sucessos e os in-
sucessos dos seus esforços para mudar.
Escolhendo os títulos da coleção, partimos, então, destas
considerações que nos propunham duas alternativas não mistifi-
cadoras no estudo dos mecanismos de causa nos fatos sociais. De
um lado, o consciente isolamento de um sistema normativo (as
leis dos casamentos entre consanguíneos no livro de Raul Merza-
rio (1981), por exemplo), sem introduzir furtivamente a preten-
são de que isto explique uma sociedade na sua complexidade: é o
isolamento abaixo da lupa do pesquisador e do leitor de uma peça,
que para funcionar será encaixada no contexto global, mas que é
movida, de forma experimental, no vácuo. De outro lado, o estu-
do de situações ou pessoas no próprio contexto, ou seja, na com-

23
LEVI, G. • 30 anos depois: repensando a Micro-História

plexa relação de escolhas livres e de vínculos que indivíduos e


grupos realizam nos interstícios da pluralidade contraditória dos
sistemas normativos que os governam. Estas escolhas e estas con-
tradições são o motor interno da mudança social, que assim não
é visto em um sentido único, como um poder imóvel e imodificá-
vel e em momentos extraordinários de revolta aberta, mas como
fruto de um contínuo conflito cujos efeitos o historiador só pode
mensurar. O normal e o cotidiano tornam-se protagonistas da his-
tória e as situações singulares assumem a intensidade de pontos
de vista pelas quais explicam os funcionamentos sociais globais.
Muito frequentemente as explicações que simplificam os
mecanismos causais tendem a descrever o passado como um ne-
buloso mecanismo de necessidades biológicas, políticas e econô-
micas. Foi introduzida assim uma visão evolucionista, apologéti-
ca do presente e do fato existente. Neste sentido, as duas alterna-
tivas que procuraremos documentar e as regras em conflito ope-
rantes em cada situação, são também uma perspectiva de pesqui-
sa diversa. Nos escritos de E.P. Thompson, as raízes de todo o
renovamento da história social são, nas suas próprias palavras,
uma resposta àqueles que descrevem “o homem como acorrenta-
do pela necessidade e sobre o qual domina um único absoluto”
(THOMPSON apud LEVI, 1981, p. 14).
As palavras-chave eram claras: lupa ou microscópio, expe-
rimento, contexto, complexidade, escolha, vínculos, interstícios,
conflitos, pontos de vista. Uma série de práticas e de métodos ao
invés de uma teoria. Todavia, a proposta da micro-história chega-
va em um mundo historiográfico muito sensível. Não era somen-
te o caráter da decisiva mudança que caracterizava os anos oiten-
ta desde seu início. Além disso, a crise do sistema soviético que se
aproximava e a fragmentação do sistema mundial depois do fim
do bipolarismo, fizeram sentir com brutal evidência os seus efeitos
no debate historiográfico, colocando em xeque a historiografia
de inspiração marxista, mas também, a história social em geral, a
experiência central dos “Annales” franceses que falaram do mo-
mento crucial de mudança ou dos “Subaltern Studies” indianos,

24
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

que abandonaram o marxismo para uma atenção bastante confu-


sa aos “post-colonial studies”. No centro da atenção apareciam te-
máticas culturalistas que progressivamente se abriam às dúvidas
relativistas do desconstrutivismo ou à identificação da historio-
grafia com a ficção.
A própria historiografia, afinal de contas, havia perdido a
sua centralidade entre as ciências humanas, visto que é difícil es-
tudar o passado quando não há perspectivas para o futuro e tam-
bém porque o papel central que tinha até os anos sessenta a havia
deixado atrasada no que diz respeito ao debate que outras ciências
humanas estavam enfrentando: a definição de uma racionalidade
incompleta e não uniforme na teoria econômica, a autoridade do
cientista em antropologia, a ambiguidade das identidades pesso-
ais e a não linearidade do personagem homem na teoria literária
e no romance. Contemporaneamente, o senso comum historio-
gráfico mudara frente às simplificações e às acelerações com as
quais as mídias propunham as temáticas históricas, que a lenti-
dão da pesquisa e a complexidade reconstruída justamente pela
historiografia não eram capazes de contrastar sem um profundo
renovamento. Também o número de leitores havia diminuído,
atraídos frequentemente mais pelas imagens do que pelas páginas
escritas, mais pela internet do que pelos livros, uma atmosfera
mudada que hoje ainda encontra dificuldades em se colocar em
um quadro mais sólido.
Era inevitável que também a micro-história sofresse altera-
ções, interpretações distorcidas, simplificações. Mesmo assim, sua
proposta teve e continua tendo uma forte ressonância, até porque
teve – me parece – uma sensibilidade maior em comparação à
história mais acadêmica, às novas instâncias que os novos pes-
quisadores e novos leitores colocavam. Esta quis, no fundo, mos-
trar não a fragilidade das generalizações na história, mas aquilo
que o historiador pode e deve generalizar são as perguntas, que se
podem pôr em contextos temporais e espaciais diferentes, deixan-
do às situações singulares a sua especificidade não repetível. Em
um mundo que não acredita mais que se possam achar funda-

25
LEVI, G. • 30 anos depois: repensando a Micro-História

mentos comuns e universais, a interrogação acerca do modo de se


organizar dos homens e sobre como dar sentido ao mundo de
cada um, continua a nos requerer exercícios de micro-história.
Vejamos, portanto, quais são os caráteres da micro-história
que a tornaram algo diferente de uma pura identificação de novos
temas de pesquisa ou da recusa das sínteses e da macro-história.
Eu os esquematizaria desta maneira:
1. Uma definição da atividade do historiador que quer con-
temporaneamente preservar a absoluta não repetitividade dos
acontecimentos e a possibilidade da generalização, partindo dos
casos particulares. Digamos então: a história é a ciência da espe-
cificidade dos casos, da generalização não das consequências, mas
das perguntas. As mesmas perguntas podem ser direcionadas a
contextos diferentes, não para ter confirmações e analogias ou
semelhanças, mas para ter respostas válidas somente naquele caso
específico. A história, partindo do exame de vários casos, ou de
um caso, identifica relevâncias, perguntas gerais que orientam a
leitura dos casos que conservam a sua especificidade. Disso dou
um exemplo um tanto paradoxal: a identificação feita por Freud
partindo de casos singulares do complexo de Édipo, como um
problema relevante na análise, deixa a cada um o seu modo espe-
cífico de gerir o problema, que também se põe como pergunta e
relevância geral.
2. Sendo assim, não é a busca do típico: seria uma traição
da história negar que não há um quadro típico, uma pessoa típi-
ca, um lugar típico, se por típico entendemos que estudado esse
seremos iluminados acerca de outros casos da série. O caso típico
não existe, mas a pergunta de validade geral sim. Não é típico
Ménétra, malgrado que a introdução de Daniel Roche (1982) ao
seu Journal extraia deste os caráteres típicos do compagnonnage,
eliminando quanto de pessoal e interessante há na vida de Méné-
tra. Tampouco Gonzalez (1968) ou Montaillou de Le Roy Landu-
rie (1975), obrigado a menosprezar a história de um grupo de cam-
poneses que sofre violências atrozes por defender a própria fé re-

26
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

ligiosa herética, para chamar a atenção dos aspectos que torna-


vam a aldeia uma ilustração típica da sociedade camponesa de
seu tempo.
3. Não quer, contudo, contrapor às grandes narrações o pe-
queno acontecimento ou à história individual, renunciando a uma
busca da verdade. Não é então relativismo, pelo contrário: as gran-
des narrações renunciaram a uma parte fundamental da história,
seguindo os modelos estrutural-funcionalistas de uma ciência in-
dutiva à procura de leis de validade universal e apagando como
irrelevantes o acontecimento e as pessoas. A recusa da história
événementielle de Braudel faz o paralelo com a definição de Rad-
cliffe-Brown da antropologia social:
A continuidade da estrutura social, exatamente como aquela
de uma estrutura orgânica, não para de existir por causa do
variar das unidades singulares. Alguns indivíduos podem de-
saparecer, por causa de morte ou por outras razões, outros
podem começar a fazer parte dela. A continuidade da estru-
tura social se mantém para o processo da vida social (RAD-
CLIFFE-BROWN, 1935, p. 5).

A micro-história não isola o fato observado do contexto


geral, mas busca, em um exame rigoroso de um caso singular, as
perguntas fundamentais que permitam uma reconstrução da rea-
lidade sempre parcial, mas não por isso livre de um fragmento
importante de verdade.
4. Por fim, muda a imagem da realidade. As leituras ma-
cro tendem à linearidade, coerência, continuidade, certeza – até
quando escrevem uma biografia – e tendem a dar o sentido de
uma informação completa ou pelo menos a usar uma autoritá-
ria proposta de informação coerente e total. Creio que, nisso, a
micro-história tenha contrastado um dos atrasos maiores da his-
toriografia frente a outras ciências sociais, recuperando a incer-
teza, a incoerência, a não linearidade. Pensemos que a econo-
mia, nestas últimas décadas, está em um processo de revisão de
suas bases teóricas neoclássicas, que imaginavam protagonistas
por convenção, semelhantes por racionalidade, finalidade e in-

27
LEVI, G. • 30 anos depois: repensando a Micro-História

formação. Hoje, no centro do debate teórico dos economistas,


está justamente isso: em que termos é possível construir uma
teoria econômica tendo em conta a diferenciação e a incoerên-
cia da racionalidade, dos escopos, das necessidades, dos desejos
e dos valores dos seres humanos?
5. A micro-história parte considerando as incongruências
do real e a parcialidade do conhecimento – o que não quer dizer
que não nos aproximemos da realidade indefinida, mas somente
que sempre é possível rediscutir e encontrar outras perspectivas
de leitura. É, portanto, o método que está no centro do trabalho
dos micro-historiadores. A observação no microscópio de um fato
permite fazer novas perguntas que ampliem a nossa compreensão
da realidade e que aumente nossos procedimentos cognitivos. Não
é uma recusa das grandes narrações, mas tem o mérito de corrigir
as suas simplificações e modificar as suas perspectivas e concep-
tualizações. Além disso, pela consciência que deve ser declarada
e elaborada como parte fundamental do trabalho do historiador,
segundo a qual a história escrita nos documentos é sempre par-
cial e lacunar, além de ser, de muitos modos, falsa.
A atitude experimental que uniu, no fim dos anos setenta, o
grupo de estudiosos italianos de micro-história [...] estava
baseada sobre a aguda consciência que todas as fases que
marcam a pesquisa são construídas e não dadas [...], mas esta
ênfase ao momento construtivo relativo à pesquisa unia-se a
uma recusa explícita das implicações, céticas (pós-modernas,
se preferirem) assim presentes na historiografia europeia e
americana dos anos oitenta e dos primeiros anos noventa
(GINZBURG, 2006, p. 266).

6. Acredito ser necessário destacar o estreito vínculo entre


o nascimento da micro-história e a crítica política. Uma crítica
interna à esquerda nascida de um grupo de historiadores com pro-
fundas raízes no marxismo e, todavia, sempre externos ao Parti-
do Comunista, baseado em posicionamentos liberal-socialistas
(naquela que foi definida a corrente libertária do liberal-socialis-
mo), à esquerda do conservadorismo cultural da política e da his-

28
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

toriografia comunista. Contudo, essa é uma referência particular-


mente italiana que remonta ao azionismo e a Carlo Rosselli3 que
não posso pedir que o leitor não italiano entenda plenamente.
7. Estas são, então, as questões e os pontos de interrogação
comuns que caracterizam a micro-história: a redução da escala
de análise, o debate sobre a racionalidade, o indício como para-
digma científico, o papel do particular (não em oposição ao so-
cial), a atenção à recepção e à narrativa, uma definição específica
de contexto e a rejeição do relativismo (LEVI, 1991, p. 110). Esta
era a síntese de um ensaio escrito por mim em 1991, que tinha
como objetivo demonstrar como – por mais que fossem distantes
os temas e as atitudes dos micro-historiadores, divididos entre
história social e cultural – havia uma substancial homogeneidade
de métodos e de problemas.
Portanto, se voltamos a Peter Burke, parece-me evidente
que a sua leitura por temáticas não somente distorce a micro-his-
tória, mas atribui ao nosso trabalho caráteres ideológicos distan-
tes dos nossos objetivos e da realidade do nosso trabalho. Micro-
história é, pela definição de Burke, “um tema particularmente ita-
liano, circunscrito às lealdades locais e às vezes descrito como
campanilismo”.4 Sendo assim, o motivo psicológico do nascimen-
to da micro-história estaria ligado ao interesse do historiador em
ocupar-se de uma aldeia ou de uma pessoa. E ainda: “estudos
comunitários do passado apelam à nostalgia e à preocupação com
a sobrevivência das comunidades no presente”. Ou mesmo:
Narrativas históricas de eventos em pequena escala são mui-
tas vezes o que o jornalista chama de “histórias de interesse

3
NDT: o autor refere-se ao período em que surge o Partito d’Azione, durante o
julho de 1942, em plena Guerra Mundial, pela confluência de duas organiza-
ções políticas antifascistas, o movimento Giustizia e Libertà (que entre os seus
fundadores vê o mencionado Carlos Rosselli) e do liberal-socialismo. Para mais
informações consultar a referência a seguir. Enciclopédia Treccani. Disponível
em: <http://www.treccani.it/enciclopedia/partito-d-azione_%28Enciclopedia-
Italiana%29/>. Acesso em: 13 nov. 2016.
4
NDT: campanilismo é sinônimo de história paroquial.

29
LEVI, G. • 30 anos depois: repensando a Micro-História

humano”, narradas mais ou menos para si mesmas e combi-


nando a atração pelo passado com a de uma história de dete-
tive ou drama [...]. Não poucas micro-histórias têm um forte
cheiro de sexualidade e escândalo, e algumas têm títulos sen-
sacionalistas (BURKE, 2008, p. 263-64).

Não quero concluir sem lembrar que hoje a micro-história,


em uma leitura rigorosa, continua trilhando o próprio caminho
de debates, e quem está lendo estas páginas encontrará, em ou-
tros livros e artigos, confirmações e diferenças com os quais estou
fortemente de acordo. Lembrarei ainda dois desses que marcam
esta discussão: o artigo de Edoardo Grendi – o verdadeiro pai da
micro-história – Micro-analisi e Storia sociale (GRENDI, 1977, p.
506-20) e um livro de Henrique Espada Lima que é, talvez, o mais
completo e inteligente exame dos caráteres, dos objetivos e tam-
bém dos limites desta proposta metodológica (LIMA FILHO,
2006).
Escrevendo estas páginas em homenagem a um amigo que
completa 60 anos, voltei a me debruçar sobre um debate em parte
estéril, apesar de achar que a micro-história tenha ainda hoje um
forte potencial de estimulo à pesquisa, em um mundo que muito
mudou e no qual a fragmentação e a fragilidade própria do papel
da historiografia tornaram-se a cada dia mais evidentes. Os mes-
mos livros perderam a sua centralidade esmagados pelas mídias
que sugerem metodologias alternativas, a velocidade e a simplifi-
cação de encontro à nossa lentidão e maneira de complexificar.
Entretanto, Matti Peltonen5 levou muito a sério a micro-história e
a ele devemos a difusão do trabalho da micro-história italiana na
Finlândia: talvez ele se interesse por essas melancólicas conside-
rações.

5
NDT: professor de história cultural na Universidade de Helsinki, Finlândia,
que estuda o desenvolvimento da agricultura na Escandinávia.

30
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Referências
BURKE, Peter. “The Invention of Micro-history”. In: Rivista di Storia
Economica. Nuova Serie (XXIV), 2008.
GINZBURG, Carlo. “Microstoria: due o tre cose che so di lei”. In: Qua-
derni Storici. (86), 1994, p. 522-539.
_____. Il fio e le tracce. Vero, falso, finto. Milano: Feltrinelli, 2006.
GONZALES, L. y GONZALES. Pueblo en vilo. Microhistoria de San
José de Gracia. México: El Colegio de Jallisco/El colegio de Michoa-
can, 1968.
GRENDI, Edorado. “Micro-analisi e storia sociale”. In: Quaderni Storici.
(35), 1977, p. 506-520.
LADURIE, Le Roy. Montaillou. Village occitan de 1294 à 1314. Paris:
Gallimard, 1975.
LEVI, Giovanni. “Microstorie: una proposta”. In: Bollettino Einaudi. 1981.
_____. “On microhistory”. In: BURKE, Peter (Ed.). New perspectives on
historical writing. Cambridge: Politu Press, 1991, p. 93-113.
LIMA FILHO, Henrique Espada. A micro-história italiana. Escalas indícios
e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
MERZARIO, Raul. Il Paese stretto. Strategie matrimoniali nella diocesi
di Como, secoli XVI-XVIII. Torino: Einaudi, 1981.
RADCLIFFE-BROWN, A. R. “The function concept in social scien-
ces”. In: American Anthropologist. (XXXVII), 1935.
ROCHE, Daniel. Journal de ma vie. Edition critique du jornal de Jacques-
Louis Ménétra, compagnon vitrier au XVIIIé sieècle. Paris: Montalba,
1982.

31
A longa marcha da Micro-História:
da política à estética?*
Maurizio Gribaudi

Não sei se estou qualificado para descrever a experiência


da micro-história. Acredito, de fato, ser o único dentre os muitos
alunos de Giovanni Levi a ter defendido, há muitos anos, uma
tese de graduação acerca da permanência das formas modais na
música popular piemontesa. Esta tese, com certeza pouco orto-
doxa, era uma análise de como, em muitas formas da música po-
pular, manteve-se a profundidade de cores e a riqueza expressiva
das antigas tonalidades modais, não obstante a introdução maci-
ça da rígida estrutura tonal durante o século XIX. A tese pouco
tinha a ver com a matéria de docência de Levi, a história econô-
mica. Aliás, “nada mesmo”, como havia literalmente gritado Gi-
ovanni Tabacco, presidente da banca examinadora de graduação
que me “convidou” a sair de imediato da sala. Contudo, pude
voltar a defender a tese graças a Levi que havia insistido com os
membros da banca, defendendo a aproximação metodológica “his-
toricamente válida”. Assim, obtive meu diploma.
Não se trata somente de uma anedota autobiográfica diver-
tida. Antes, acredito ser esta minha experiência um interessante
caso onde se pode visualizar um contexto acadêmico muito parti-
cular – estamos em plenos anos 70 – e de uma atitude específica a
respeito da pesquisa e da cultura universitária de enorme e des-

* Artigo originalmente publicado em: Microstoria: a venticinque anni da L’eredità


immateriale, organizado por Paola Lanaro, Milano (IT), 2011, p. 9-23. Tradu-
ção e revisão: Francesco Santini, Maíra Vendrame e Alexandre Karsburg.

32
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

contraída abertura disciplinar: qual docente de história econômi-


ca correria o risco, hoje, de orientar uma tese deste tipo?
Sobretudo, parece-me difícil escrever a respeito do trabalho
de Giovanni quando se trata de retomar as numerosas problemá-
ticas levantadas pela micro-história e especialmente pelos seus
ensinamentos. Giovanni talvez não se reconheça na minha leitu-
ra, convicto como estou que a micro-história é um pouco como o
Talmude: um corpus de textos rico e variado, no qual se pode ler
de tudo um pouco, no qual todos leram, leem e lerão ainda quase
tudo.
Esclarecido isso, é verdade que esse aspecto faz parte do
conteúdo da nossa discussão, pelo menos por duas razões. Antes
de tudo porque, como Giovanni sempre repetiu até perder a voz,
a variedade de pontos de vista é dada pela própria natureza dos
fatos sociais enquanto produto de interpretações individuais de
imagens normativas, reais ou presumivelmente reais.
A ambiguidade das regras [salientava nas primeiras páginas
da Herança Imaterial], a necessidade de tomar decisões saben-
do estar em uma situação de incerteza, a limitada quantidade
de informações que, mesmo assim, permite agir, a tendência
psicológica a simplificar os mecanismos causais que se consi-
deram relevantes na determinação dos comportamentos e, por
fim, a consciente utilização das incoerências entre sistemas
de regras e de sanções (LEVI, 1985, p. 6).

Em segundo lugar, porque a rica e animada experiência his-


toriográfica que foi a micro-história – e a ainda mais incrível ca-
pacidade de Giovanni de construir uma problemática metodoló-
gica crítica – estimulou uma miríade de leituras diversas e deu
impulso para dezenas e dezenas de jovens debruçarem-se de ma-
neira diferente sobre os objetos da história e das ciências sociais.
O modo de ensinar de Giovanni nunca foi dogmático. Verdadeiro
mestre, ele sempre se recusou a direcionar seus alunos para a apli-
cação cega ou sem originalidade de métodos e problemáticas pré-
moldadas. Ele quis e soube, contudo, valorizar as perguntas de
cada aluno.

33
GRIBAUDI, M. • A longa marcha da Micro-História: da política à estética?

Justamente por estas razões, é impossível retomar todas as


temáticas e os caminhos abertos a partir das sugestões e desenvol-
vidos nos trabalhos realizados sob sua direção. Em parte, esses
emergem das intervenções recolhidas nesta coleção. Deveriam,
contudo, ser lembrados também muitos outros trabalhos impor-
tantes, como aqueles de Sandra Cavallo, Simona Cerutti, Silvana
Patriarca, para citar algumas outras alunas de Giovanni que são,
mais ou menos, da minha geração. De minha parte, limitar-me-ei a
evocar uma dimensão particular da experiência micro-histórica nos
seus anos fundadores, frequentemente esquecida ou até ignorada:
aquela da pesquisa histórica como intervenção política ativa.

A história como ato militante


e tomada de posição política

O sucesso alcançado pela micro-história a partir dos anos


oitenta, a sua internacionalização e a progressiva institucionali-
zação, fez esquecer que muitos de seus protagonistas originais
quiseram abrir uma discussão antes de tudo política, e não so-
mente um debate historiográfico. Na ótica dos anos setenta e na-
quela de alguns de seus historiadores mais expressivos como Gio-
vanni Levi e Edoardo Grendi, isso significava uma tomada de
posição crítica extremamente lúcida no que diz respeito aos mo-
delos e aos instrumentos interpretativos da esquerda. Contraria-
mente ao que seguem afirmando numerosos manuais e textos
apologéticos, surgidos em toda parte nestes últimos anos, os mi-
cro-historiadores não queriam somente criticar a historiografia
conservadora, mas, mais do que isso, mostrar os trágicos impas-
ses teóricos e práticos de uma esquerda que, baseando-se em uma
visão rigidamente teleológica da história, havia implicitamente
adotado uma série de representações do real e das hierarquias das
relevâncias de tipo economicista e fundamentalmente conserva-
dora. Essa historiografia se limitara, afinal, a assumir uma atitu-
de de arrogante distância frente às críticas a ela direcionadas pela
micro-história. A resposta dos historiadores ligados à esquerda ins-

34
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

titucional foi uma declaração de guerra, pois acreditavam que a


experiência historiográfica da micro-história era perigosamente
subversiva. As intervenções mais rancorosas contra a micro-histó-
ria vieram, não por acaso, dos contemporâneos que não queriam
colocar em discussão os modelos marxistas que os inspiravam.
E, em parte, os seus medos eram justificados. A batalha
principal que a micro-história dos anos setenta havia empreendi-
do era aquela contra a visão teleológica da história que a esquer-
da europeia (e a historiografia de esquerda) adotara desde a se-
gunda metade do século XIX. A micro-história se opunha a uma
visão dos processos históricos que pareciam determinados por leis
impessoais e finalizadas pela construção progressiva do presente
no qual está inscrito o observador, e, portanto, também à ideia de
um presente entendido como modernidade, como último aperfei-
çoamento, última etapa no caminho do progresso social.
A fragilidade dos mecanismos causais que os historiadores
usam é relacionada ao fato das suas indagações se desenvol-
verem “a partir do nome do assassino” e as causas tornam-se
campo de opiniões que não podem receber verificação por-
que os fatos permanecem iguais, indiferentes às premissas, às
origens, às causas descritas. É, creio eu, por isso que absorve-
mos fácil e superficialmente os instrumentos das outras ciên-
cias sociais e que conceitos macrossociológicos se instaura-
ram sem modificar nada na nossa maneira de explicar (LEVI,
1981, p. 76).

Enquanto Giovanni dizia e escrevia essas coisas, a historia-


dora Dora Marucco reivindicava como sua a definição de história
social dada naqueles anos por Giuseppe Berta em ocasião de um
convênio da fundação Feltrinelli: “história social como análise da
estrutura de classe, modo de trabalho e vida, para o período que vai
da Revolução Industrial em diante” (MARUCCO, 1981, p. 83).
Eram estes os interlocutores explícitos com os quais a mi-
cro-história tentava dialogar e abrir um debate. Também era este
o tipo de redução simplista da complexidade histórica – estrutura
de classe, modos de trabalho, revolução industrial... – que ela ten-
tava combater. Os instrumentos analíticos da micro-história per-

35
GRIBAUDI, M. • A longa marcha da Micro-História: da política à estética?

mitiam perceber as incertezas e as hesitações dos percursos so-


ciais, individuais e coletivos, que aquelas reduções drásticas e
simplificadoras tendiam a conjugar em uma ideia de desenvolvi-
mento linear e determinado pelas leis imanentes da história. Não
sei se Dora Marucco reivindicaria ainda tal definição. Provavel-
mente não. Mas este tipo de concepção é ainda muito presente no
campo da historiografia do movimento operário contemporâneo
e da história política.
De tal leitura se extraía, e se extrai ainda, a introjeção acrí-
tica da imagem positivista de progresso que se instaurou nas ciên-
cias sociais da segunda metade do século XIX. Uma imagem que
identificava a razão histórica do idealismo hegeliano com o mo-
delo econômico e de produção dominante, tornando-o a única
realidade consubstancial e possível do presente das sociedades con-
temporâneas.
Lembrar esses aspectos com tais termos poderia parecer ex-
cessivamente banal. Infelizmente, acredito que o sentido profun-
do de muitas das ideias desenvolvidas pela micro-história em ge-
ral e por Giovanni Levi em especial, já trinta anos atrás, continue
a não ser entendido plenamente pelos debates atuais, quando não
é até ignorado ou julgado inaceitável. Acredito que não seja inú-
til, portanto, lembrar como a batalha da micro-história contra a
história teleológica, no contexto da época, visava a uma dupla
operação: por um lado, romper com a ideia de necessidade linear
dos processos históricos e, por outro, restituir a complexidade a
cada fragmento do passado, a plena historicidade de cada presen-
te da história.
O problema para o historiador [continuava Giovanni Levi na
ocasião do debate antes mencionado] não é aquele de negar a
verdade dos mecanismos descobertos, mas de inseri-los no
contexto de uma rede menos restritiva do passado e do quan-
to o nosso senso comum está disposto a resolver as contas
com o passado através do passe-partout do progresso: deve-
mos, talvez, diminuir o passado para simplificar apologetica-
mente a aceitação do presente. Os nossos antepassados esco-
lhiam, lutavam, mudavam o mundo nos interstícios do con-

36
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

junto incoerente de normas que a natureza, o poder e as ins-


tituições sobrepunham a eles de forma ambígua. Disso surgi-
am infinitas estratégias de defesa e de ataque, cujo alcance
histórico não se pode entender sem partir da tomada de certo
ponto de vista como central. Por exemplo, a resistência cam-
ponesa à introdução do milho que, apesar das possibilidades
alimentares que se multiplicavam, não era uma luta contra o
progresso. Os camponeses perceberam que o cultivo do mi-
lho perturbava as estruturas de produção dos espaços rurais
provocando um desequilíbrio que favorecia a exploração e a
pelagra. Em outro exemplo, não foram desimportantes as es-
tratégias clientelares com as quais os grupos sociais resolvi-
am ou enfrentavam as suas pequenas querelas com o Estado:
o otimismo com o qual se atribuiu de forma moralizante o
epíteto de ‘atrasado’ a cada tipo de organização de grupo e
da escolha de leaders que não fosse aquela institucional pro-
posta pelos sistemas políticos gerais da sociedade complexa,
obscureceram a compreensão dos conflitos, escolhas políti-
cas, formas sociais (LEVI, 1981, p. 78-79).

Os conteúdos desta longa citação são extremamente im-


portantes e mereceriam uma reflexão muito mais aprofundada.
Limitar-me-ei a salientar como Giovanni Levi manifestou expli-
citamente uma crítica a todas as posturas historiográficas que se-
rializam e conectam como significativos unicamente aqueles fa-
tos e aquelas práticas sociais que parecem ligar-se às formas finais
ou mais recentes de um processo histórico. É aquilo que as insti-
tuições e os grupos dominantes fizeram e fazem quando constro-
em suas histórias colocando à frente das instituições e das fontes
de arquivo discursos e representações. Há a necessidade de supe-
rar o vício, profundamente humano, mas extremamente perigoso
para o historiador, de considerar o presente como um estágio mais
avançado do passado, transformando automaticamente este últi-
mo em um momento necessariamente mais hostil e limitado.
Parar de diminuir o passado significa, então, restituir o sen-
tido da sua modernidade relativa, encontrar novamente todos os
elementos que lhe restitua a plenitude, todas as práticas plenas de
futuro que possam adquirir uma coerência naquele momento, mas
que foram sucessivamente apagadas da nossa memória, ou sim-

37
GRIBAUDI, M. • A longa marcha da Micro-História: da política à estética?

plesmente, interpretadas como marginais e irrelevantes. Resga-


tar, portanto, a complexidade da história além da linearidade apa-
rente induzida pelo prisma deformante das categorias macrosso-
ciológicas utilizadas pelos modelos historiográficos ainda domi-
nantes. Além disso, resgatar as incontáveis coerências sociais di-
ferentes daquelas colocadas em evidência pelos grupos, removen-
do-as assim da sua posição de subalternidade cultural e política.
Tende-se a cair em mecanismos automáticos de explicação
baseados em duas premissas não neutras: a primeira é que as
situações locais, ou pessoais, não são nada mais que o reflexo
– para aquilo que é relevante – do “macro” e que, portanto,
podem ser utilizadas somente para o que possuem de geral
ou como exemplos, somente na falta de uma explicação me-
lhor. [...] Há uma ordem de relevância que assume como in-
discutíveis dicotomias do tipo: cidade-campo, civil-primiti-
vo, culto-ignorante, nos quais a primeira palavra possui uma
prevalência que deriva do progresso e da direção da história.1

Estas propostas, na ótica dos debates dos anos setenta e


oitenta, colocavam explicitamente o problema do protagonismo
social, a necessidade de individualizar, avaliar e mostrar, para cada
indivíduo, a sua qualidade de agente da história.
Não por acaso a micro-história havia aberto um diálogo
importante com a história oral. Desse período, existem numero-
sos textos e projetos, além de uma grande pesquisa dirigida por
Giovanni Levi, acerca dos bairros operários de Turim no inter-
valo entre as duas guerras. Pesquisa que brotou durante a orga-
nização de uma exposição e na criação de um centro de anima-
ção historiográfico no bairro de San Paolo. Era o ano de 1978-
79. Trabalhar com os materiais da história oral parecia impor-
tante também para contribuir em reverter a ordem das relevân-
cias, evitando analisar as práticas sociais através das grades dos
modelos macroestruturais, entrando diretamente na matéria viva

1
NDT: Gribaudi afirma que extraiu esta citação de uma ficha que havia feito no
livro Villaggi: studi di antropologia storica, organizado por Giovanni Levi, Il Mulino,
Bologna 1981. Infelizmente, ele diz que não sabe a referência exata da página.

38
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

da história por meio das palavras e das lembranças dos próprios


protagonistas:
Recuperar o sentido histórico das pessoas e dos lugares, dos
objetos e das atitudes é, antes de tudo, a proposta pela qual
em borgo San Paolo, como nos outros bairros de Turim, come-
cei, em conexão com a escola e com as organizações políti-
cas e sindicais de base, um trabalho de discussão, de recolhi-
mento e de reflexão que amplie o mais possível, para além
dos especialistas da área, o número de produtores de história
(LEVI, 1978, p. 44).

Produzir a história, ao invés de ficar passivos a ela. Resti-


tuir a sua dignidade e o seu protagonismo a estas e a todas as
outras experiências sociais esquecidas, apagadas ou removidas.
Este era o sentido da pesquisa e das animações criadas em torno
da exposição de Turim no intervalo entre as duas guerras. Captar
as práticas e as formas culturais apagadas ou ocultadas pelos câ-
nones historiográficos das academias universitárias, mas também
de muitas organizações políticas e sindicais. E, talvez, este era
também o projeto da minha estranha tese acerca da música popu-
lar. Trabalhar os pontos cegos da historiografia oficial para resga-
tar a complexidade dos mecanismos sociais; resgatar o sentido
dos projetos locais e das perguntas que esses carregavam; desven-
dar as lógicas e o impacto sobre os processos históricos. Um pro-
jeto que o grupo de jovens historiadores reunidos em torno de
Giovanni levava com o entusiasmo de uma verdadeira militância
historiográfica.
Abriam-se contatos, discutia-se com os comitês de bairro ou
de aldeia, com organismos sindicais e pequenos grupos políticos.
Frequentemente partia-se à tardinha para discutir com um grupo
de história oral de Milão, Aosta ou Asti. Depois, participava-se da
reunião de bairro em Alessandria, Gênova ou Mântova. Verdadei-
ras expedições que tinham o mesmo sabor e a mesma intensidade
das panfletagens nas fábricas que havíamos conhecido durante os
primeiros anos da década de setenta. Giovanni fizera, tardiamente,
a carteira de habilitação. Não controlava bem o carro. Mesmo mí-
ope, acelerava loucamente para tentar superar os obstáculos. Como

39
GRIBAUDI, M. • A longa marcha da Micro-História: da política à estética?

magnetizado pelo horizonte e puxado por um volante enlouqueci-


do, levava-nos a uma velocidade insana para estes encontros con-
versando de história, de política e de literatura. Era realmente um
bom período, pelo menos nas minhas lembranças.
Naqueles anos Giovanni organizava, na sua casa, algumas
reuniões nas quais se discutiam vários textos e projetos. Reuniões
que nos marcaram emotivamente e intelectualmente. Dentre as
minhas anotações da época encontro, recorrentemente, longas dis-
cussões sobre a temática da cultura alternativa, da cultura popu-
lar pensada não como alteridade, mas como diferença, como dis-
crepância. Uma leitura diferente de uma mesma realidade. Ex-
pressões de formas de bifurcações possíveis. Eram anos nos quais
ia se desenvolvendo um intenso debate acerca de textos como
aquele de Bakhtin ou de Zemon Davis (BAKHTIN, 1970; DA-
VIS, 1971). Contudo, a especificidade da reflexão micro-histórica
naqueles momentos consistia em inserir estas discussões no inte-
rior de uma perspectiva ao mesmo tempo metodológica e políti-
ca, que colocava explicitamente o problema de subverter centrali-
dades e hierarquias de espaços e de experiências sociais.
Assim, a crítica à história teleológica e quantitativa era tam-
bém uma dura censura ao conceito de progresso e de centralidade
da cultura universitária, vista como primeira e principal expres-
são da evolução histórica das sociedades ocidentais. Edoardo
Grendi, que compartilhava esta aventura – mas de forma mais
distante e menos militante –, chegava lucidamente ao ponto cen-
tral do problema quando escrevia: “Uma proposta de acultura-
ção ao nosso comum etnocentrismo: este é o verdadeiro sentido
político da história como disciplina institucional” (GRENDI,
1981, p. 68).
Perguntas importantes, portanto, e de conteúdo totalmen-
te subversivo, mas que, como há pouco lembrei, tinham sido to-
talmente mal entendidas pela esquerda, com poucas exceções,
talvez somente por alguns componentes da esquerda liberal ou
católica: o resto da esquerda italiana havia recusado as sugestões
da micro-história, interpretando a atenção aos mecanismos inter-

40
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

nacionais como uma recusa reacionária dos modelos historiográ-


ficos marxistas, profundamente identificados com a ideia de de-
senvolvimento teleológico da história.
Repensando agora, acredito que a não atenção a propostas
deste tipo, atentas às dimensões da complexidade e da incoerên-
cia dos fatos sociais, talvez constitua um dos numerosos mecanis-
mos que contribuíram para restringir o horizonte dos possíveis
aberto nos anos sessenta e setenta do século XX. Por um lado,
esta ‘surdez’ significou o fechamento e a rigidez ulterior da es-
querda a respeito das posturas historiográficas clássicas, desde
sempre indecisas entre o economicismo e o idealismo. Por outro
lado, este fechamento “político” impulsionou, provavelmente, este
tipo de aproximação em procurar sempre mais os próprios inter-
locutores no exterior e quase unicamente dentro do debate histo-
riográfico. A superação das fronteiras significou de alguma for-
ma o sucesso acadêmico da micro-história, permitindo-lhe ocu-
par, por muitos anos, um lugar central no campo de pesquisa his-
tórica em nível mundial.2 Todavia, este mesmo sucesso a empur-
rou para uma posição paradoxal, levando-a a participar ao pro-
cesso de “acculturazione al nostro comune etnocentrismo” claramente
denunciado por Levi e Grendi.

2
As etapas e os percursos dessa difusão são interessantes e mereceriam um estu-
do próprio. Estes colocam em destaque a geografia dos laços e das hierarquias
institucionais do mundo científico. Introduzida na França e nos Estados Uni-
dos graças a historiadores como Jacques Revel, Natalie Zemon Davis ou Ste-
ven Kaplan, a presença micro-histórica alastrou-se sucessivamente para os cen-
tros subordinados às academias parisienses e americanas, com tempos e dinâ-
micas típicas dos fenômenos de contágio. Seguindo o percurso de difusão da
micro-história, analisando simplesmente as traduções dos artigos principais de
“Quaderni Storici” e as traduções dos livros de Giovanni Levi e de Carlo Ginz-
burg (mesmo que seria importante separar e analisar em particular os projetos
micro-históricos e as realizações propostas por estes dois historiadores), perce-
bia-se, então, que a micro-história impôs-se na França e na América do Norte
durante os anos oitenta e sua influência se estendeu sucessivamente às univer-
sidades do Norte da Europa por volta do fim da década e o começo dos anos
noventa, para depois alastrar-se em seguida para os países do Leste Europeu,
portanto rumo à Europa do Sul, ao Norte da África, à Ásia e à América Latina
(neste último continente com ritmos e percursos particulares).

41
GRIBAUDI, M. • A longa marcha da Micro-História: da política à estética?

Evolução histórica e modelos historiográficos


Houve também razões institucionais: o isolamento dos
micro-historiadores ao interno das estruturas acadêmicas italia-
nas, o caráter disperso e ao mesmo tempo difuso em diversos pa-
íses e instituições de um grupo que havia construído e mantido
viva uma discussão comum que ligava estreitamente a história e a
pesquisa à política. Provavelmente, isso não chegou a enfraque-
cer a proposta da micro-história, mas deixou para outros, aos “in-
terpreti”, o leme da difusão de um projeto incompleto, porém de
um componente essencial que podia talvez ter consequências mais
radicais. Se uma reflexão em parte crítica sobre aquela experiên-
cia pode ser operada hoje, é justamente essa.
Parece-me que a micro-história, no momento em que con-
seguia alcançar e conquistar um público internacional, encontra-
va-se “fechada” em um debate interno às ciências sociais e ao
papel da história em especial. O contato com outras tradições his-
toriográficas – particularmente com a francesa, mais atenta do
que a italiana aos problemas metodológicos – transformou o proje-
to político e científico da micro-história em prática metodológica,
colocando-a de fato diante de um paradoxo, baseado no fato de ter
desenvolvido um discurso historiográfico que buscava desconstruir
o conceito de progresso – e dos modelos de pensamento que o acom-
panhava – com os instrumentos metodológicos e as práticas insti-
tucionais desenvolvidos a partir deste mesmo conceito.
A micro-história, portanto, encontrava-se também naquele
círculo vicioso que frequentemente limita a força de qualquer apro-
ximação historiográfica que tente romper com as práticas domi-
nantes. Paradoxo que Walter Benjamin expressa bem a propósito
da experiência do movimento operário e daquele operaismo3 her-
dado pelas esquerdas europeias do pós-guerra:

3
NDT: Na linguajem política e sindical, tendência que atribui um papel preva-
lente às reivindicações da classe operária, individuada como única força que
tem a função histórica e a capacidade de atuar na transformação das relações
econômicas e políticas entre as classes. Enciclopédia Treccani. Disponível em:
http://www.treccani.it/vocabolario/operaismo/, consultada em: 13 nov 2016.

42
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a


opinião de que ela nadava com a corrente. O desenvolvimen-
to técnico era visto como o declive da corrente, na qual ela
supunha estar nadando. Daí só havia um passo para crer que
o trabalho industrial, que aparecia sob os traços do progresso
técnico, representava uma grande conquista política. A anti-
ga moral protestante do trabalho, secularizada, festejava uma
ressurreição na classe trabalhadora alemã. O Programa de
Gotha já continha elementos dessa confusão. Nele, o traba-
lho é definido como “a fonte de toda riqueza e de toda civili-
zação”. Pressentindo o pior, Marx replicou que o homem que
não possui outra propriedade que a sua força de trabalho está
condenado a ser “o escravo de outros homens, que se torna-
ram... proprietários”. Apesar disso, a confusão continuou a
propagar-se, e pouco depois Josef Dietzgen anunciava: “O
trabalho é o Redentor dos tempos modernos... No aperfeiço-
amento... do trabalho reside a riqueza, que agora pode reali-
zar o que não foi realizado por nenhum salvador”. Esse con-
ceito de trabalho, típico do marxismo vulgar, não examina a
questão de como seus produtos podem beneficiar trabalha-
dores que deles não dispõem. Seu interesse se dirige apenas
aos progressos na dominação da natureza, e não aos retro-
cessos na organização da sociedade. Já estão visíveis, nessa
concepção, os traços tecnocráticos que mais tarde vão aflo-
rar no fascismo. Entre eles, figura uma concepção da nature-
za que contrasta sinistramente com as utopias socialistas an-
teriores a março de 1848. O trabalho, como agora compreen-
dido, visa uma exploração da natureza, comparada, com in-
gênua complacência, à exploração do proletariado. Ao lado
dessa concepção positivista, as fantasias de um Fourier, tão
ridicularizadas, revelam-se surpreendentemente razoáveis.
Segundo Fourier, o trabalho social bem organizado teria en-
tre seus efeitos que quatro luas iluminariam a noite, que o
gelo se retiraria dos polos, que a água marinha deixaria de ser
salgada e que os animais predatórios entrariam a serviço do
homem. Essas fantasias ilustram um tipo de trabalho que,
longe de explorar a natureza, libera as criações que dormem,
como virtualidades, em seu ventre. Ao conceito corrompido
de trabalho corresponde o conceito complementar de uma
natureza, que segundo Dietzgen, “está ali, grátis”.4

4
NDT: A citação foi retirada diretamente da tese n°11 de Walter Benjamin so-
bre o conceito da história (BENJAMIN, 1987, p. 227-28).

43
GRIBAUDI, M. • A longa marcha da Micro-História: da política à estética?

Texto fantástico, esta undicesima tesi sulla storia, que interro-


ga abertamente e de maneira crítica às visões historiográficas do-
minantes mostrando o seu nefasto impacto sobre a realidade. Todo
o pensamento e o trabalho de Benjamin tende a encontrar no modo
de pensar a descontinuidade da experiência histórica: a sua frag-
mentação, mas também a remoção constante e programada de
todos os liames históricos que geram problemas, de todas as dis-
crepâncias e de tudo aquilo que apresente incoerências com o que
aparece como único e determinante. Benjamin pensa o presente
histórico por meio da imagem da constelação, de um universo de
elementos diversos e contraditórios, aberto a cada momento a mil
possibilidades. Uma visão e uma sensibilidade não distantes das
primeiras reflexões da micro-história, muito próximas à ideia – cen-
tral na Herança Imaterial – de uma configuração histórica em tensão
e amplamente aberta como um leque de possibilidades futuras.
Esta abertura, tanto na visão de Benjamin quanto de Levi,
significa também, e antes de tudo, a recusa de uma história narra-
tiva que se inscreva nos quadros e nas categorias lógicas de quem
ocupou sucessivamente o lugar do vencedor, como ele o chama:
[...] Todos os que até hoje venceram participam do cortejo
triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os cor-
pos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carre-
gados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que
chamamos bens culturais. O materialista histórico os contem-
pla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele
vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem
horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos
grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima dos
seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cul-
tura que não fosse também um monumento da barbárie. E,
assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tam-
pouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na me-
dida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Con-
sidera sua tarefa escovar a história a contrapelo.5

5
NDT: Citação foi retirada da tese n°7 de Walter Benjamin sobre o conceito da
história ( BENJAMIN, 1987, p. 225).

44
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Benjamin comparava a reconstrução a posteriori do historia-


dor ao butim do vencedor, à construção social daquilo que as hi-
erarquias dominantes desde sempre definiram pomposamente
como patrimônio cultural. Como há pouco lembrei, Giovanni Levi
nos avisava para não reescrever a história “a partire dal nome
dell’assassino”. Em ambos os casos, parece-me que a mensagem
principal seja justamente ligada à exigência de se distanciar de
toda modelização que reduza a complexidade e o contraditório
dos processos históricos a partir de uma ótica fundada nas for-
mas que parecem dominar o presente.
É nesta dimensão e por meio desta ótica benjaminiana que
me parece importante retomar e dar novamente vigor às intuições
micro-históricas. Distanciando-se radicalmente de qualquer lei-
tura reducionista, trata-se de reconstruir os liames, as tensões e os
pontos de ruptura que marcam o percurso da história. Devemos
nos esforçar para captar o conjunto completo das diversas práti-
cas e leituras que se cruzam e se chocam dentro de uma dada
sociedade a cada instante, indo além daqueles aspectos que se
impuseram como os mais visíveis e representativos.
No título provisório que havia dado à minha intervenção,
queria sugerir a presença de um percurso da micro-história que se
deslocava progressivamente da dimensão política à estética. Na
verdade, pensava isso como uma chave de leitura e como um per-
curso a acontecer. Parece-me, de fato, que no fundo das hipóteses
micro-históricas podemos encontrar a intuição de uma aproxi-
mação estética da historicidade. A estética dos fatos sociais, por-
tanto, como chave de acesso para a complexidade, como um úni-
co método de análise e de descrição capaz de captar os pontos e
os elementos de tensão que marcam e constituem a verdade de
um momento histórico particular.
Gostaria de dar um exemplo explícito, aquele da magnífica
leitura feita por Goethe do grupo escultórico do Laocoonte.6 Para

6
NDT: o grupo do Laocoonte é uma escultura em mármore que representa La-
ocoonte e seus dois filhos sendo estrangulados por serpentes marinhas envia-
das pelo deus grego Poseidon. A estátua está exposta no Museu do Vaticano.

45
GRIBAUDI, M. • A longa marcha da Micro-História: da política à estética?

ele – que era poeta e, sobretudo, grandíssimo cientista – este gru-


po constituía o exemplo perfeito da expressão artística capaz de
restituir a verdade de um presente graças à reconstrução do con-
junto completo das tensões e das temporalidades solidificadas no
evento. Acredito que todos conheçam esta estátua. Encontrada
em 1506 no colle Oppio de Roma, ela representa o sacerdote Lao-
coonte e os seus dois filhos, Atanodoro e Polidoro, enquanto so-
frem o ataque das serpentes marinhas. A estátua evoca então o
episódio narrado por Virgílio na Eneida e no qual Laocoonte,
que tentava impedir o ingresso do cavalo de Troia na cidade, sofre
a vingança de Poseidon, deus do mar e aliado dos gregos.
A imagem, já icônica, gerou o surgimento de um número
incrível de escritos desde sua descoberta. A respeito desta escre-
veram sucessivamente Bernini, Boselli, Winckelmann, Lessing,
Goethe, Nietzsche, Greenberg, formando um corpus de interpre-
tações que gera ainda hoje debates e controvérsias. A dimensão
que desde sempre chamou a atenção dos comentadores é a mobi-
lidade aparente do grupo. A tensão, perfeitamente demonstrada
pelos escultores, existente entre Laocoonte, no centro com os seus
dois filhos ao lado, e as serpentes em pleno ataque. Ora, Goethe,
retomando e criticando a leitura de Lessing, salienta a estrutura
temporal inscrita no grupo. Em um só movimento, a estátua re-
presenta as três diversas sequências temporais do ataque. À direi-
ta do espectador (à esquerda de Laocoonte) o filho mais velho é
representado no momento em que está sendo atacado. As serpen-
tes começam a cingi-lo, mas o êxito aparece como incerto e ele
parece ainda ser capaz de se libertar. Ao lado oposto, pelo contrá-
rio, o filho mais jovem está totalmente cingido pelas espiras da
serpente e é claro que está próximo o trágico momento no qual
perecerá. No centro, Laocoonte, o pai, representa o momento cul-
minante da ação, em pleno ataque da serpente. Cingido pelas es-
piras, é mordido no quadril. Mesmo assim, não obstante a pro-
funda dor, que o espectador lhe lê no rosto, ele ainda está com
capacidade de reagir e, para o que lhe concerne, os êxitos estão
totalmente incertos.

46
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Em breve, e sem retomar a sua detalhada análise, Goethe


mostra como a potência expressiva do grupo estatuário está na
sua capacidade de captar e sintetizar em um só momento as di-
versas dimensões temporais próprias do acontecimento represen-
tado. Captura de um lado as dinâmicas do passado que pesam
ainda sobre o presente, contribuindo a determinar a natureza des-
tas; mostra, por outro lado, os possíveis desenvolvimentos futu-
ros deste entrelaçamento de circunstâncias; restitui, ao centro desta
tensão de forças, toda a incerteza da ação presente, aberta ainda a
diversas soluções.
A estética desta como de cada obra de arte, sugere Goethe,
está, portanto, na sua capacidade de inscrever o movimento no
presente, de captar o conjunto específico de tensões que animam
um objeto. Além disso, sempre a propósito de Laocoonte, Goe-
the evoca a imagem de um “raio fixado, uma onda petrificada no
momento [Augenblick] em que ia se chocar com a margem”.7
Estética como temporalidades esmagadas e condensadas
no presente. É a capacidade de restituir estas tensões e estes movi-
mentos e, portanto, a própria vida, que distingue a obra de arte da
pura imitação formal. Voltando à dimensão histórica, isso se tra-
duz na capacidade de captar em um evento aquela mistura parti-
cular de sobrevivências e de antecipações, de tensões contraditó-
rias que podem aparecer, como tais, somente em um momento
único e exato da história.
Evidentemente, não estamos longe, também neste caso, do
pensamento de Benjamin quando, por exemplo, define a ‘aura’ de
uma imagem, de um objeto ou de um acontecimento nos termos
de “uma figura singular, composta de elementos espaciais e tem-
porais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto
que ela esteja”.8 Para ele, a verdade de um momento histórico

7
NDT: Citação retirada dos escritos acerca de Laocoonte e sobre as artes de W.
Goethe (Goethe apud SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 266).
8
NDT: Citação retirada do escrito, A obra de arte na era da sua reprodutibilidade
técnica, de Walter Benjamin (1987, p. 170).

47
GRIBAUDI, M. • A longa marcha da Micro-História: da política à estética?

está justamente naquele conjunto de incertezas que parece quase


bloquear a dinâmica da história suspendendo o acontecimento
entre o passado e o futuro. Um conceito ainda mais explicita-
mente exposto nas páginas teóricas do livro I passages, de Beija-
min, quando define a historicidade como imagem, como conste-
lação dos elementos que fazem sentido em um único momento
da evolução histórica:
Não se deve pensar que o passado ilumine o presente ou que
o presente ilumine o passado. Mas, pelo contrário, a uma
imagem na qual em um instante, o Distante vai ao encontro
do Agora para formar uma constelação. Em outras palavras,
a imagem é a dialética imobilizada.9

Dialética imobilizada: claramente, nesta definição, é a re-


ferência à estética goethiana e ao tema da síntese das tensões tem-
porais. Referência fundamental não somente para Benjamin, mas
também e mais amplamente para uma série de pensadores que
sempre trabalharam às margens do espaço acadêmico, justamen-
te por estarem em ruptura com as formas tradicionais de explica-
ção e de representação do real. Aqui também há uma constelação
de nomes e de laços que valeria a pena reconstituir e que aproxi-
ma filósofos como Dilthey a poetas como Baudelaire ou Ménard,
naturalistas como Saint-Hilaire ou Darcy Thompson, geógrafos
e economistas como Geddes, etc. Dentre todos esses podemos
ainda lembrar a fabulosa pesquisa de Aby Warburg a respeito dos
afrescos da capela Sassetti10. Neste famosíssimo trabalho, como
se sabe, o historiador alemão, desmontando as inumeráveis leitu-

9
NDT: Gribaudi traduziu esta citação da edição francesa que, para ele, era “sin-
taticamente mais correta” apesar de na edição italiana a frase estar conceitual-
mente mais exata: “Non è che il passato getti la sua luce sul presente o il presente la
sua luce sul passato, ma immagine è ciò in cui quel che è stato si unisce fulmineamente
con l’ora in una costellazione. In altre parole: immagine è la dialettica nell’immobilità”
(BENJAMIN, 2007, p. 515).
10
NDT: Gribaudi se refere aos seguintes afrescos: Le ultime volontà di Francesco
Sassetti (1907) e Arte del ritratto e borghesia fiorentina. Domenico Ghirlandajo in
Santa Trinita: i ritratti di Lorenzo de’ Medici e dei suoi familiari (1902), publicado
em: WARBURG, 1966.

48
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

ras anacrônicas que se seguem no decorrer dos séculos, mostra


como naquele presente ‘distante’ deve-se ler não somente o nasci-
mento da modernidade e de uma nova concepção do indivíduo,
mas também, e sobretudo, a sobrevivência ativa de crenças e de
práticas tribais, um sincretismo religioso que mescla dimensões
pagãs e cristãs, as formas e as práticas de uma organização de clã
violenta e sanguinária, o ideal de um modelo político, ao mesmo
tempo principesco e comunal, nunca mais reconduzido em quan-
to tal na história11.
O que me parece importante nesta perspectiva é, sobretu-
do, a possibilidade de romper a cadeia das interpretações históri-
cas, distanciando-se de maneira firme dos modelos e das interpre-
tações tradicionais para encontrar novamente o sentido da histó-
ria em toda sua contraditória complexidade. É este também, como
procurei mostrar, o sentido mais verdadeiro e mais profundo do
projeto micro-histórico. Mais de trinta anos atrás, no começo da
sua longa carreira, em um ensaio já totalmente permeado pelo
denso pensamento da Herança Imaterial, Giovanni Levi lembrava
a importância de captar “o conjunto em um momento casual, de
momentos iniciais, intermédios e finais, por meio do qual passam
indivíduos e famílias” (LEVI, 1985, p. 73). A sua pergunta era
claramente direcionada a captar em toda sua densidade o presen-
te histórico observando-o em cada gargalo do real e em toda sua
complexidade. No contexto daqueles anos e dos debates, há pou-
co evocados, isto significava também a tentativa de dar novamen-
te ao historiador os instrumentos para compreender por meio de
quais mecanismos e para a ação de quais indivíduos ou grupos,
as tentativas e os horizontes sociais abertos a todos os presentes
se tinham fechado, e frequentemente com a máxima violência.
Demasiado inovador aos olhos de uma esquerda totalmen-
te dominada pelos paradigmas economicistas, este discurso se fe-

11
Georges Didi-Huberman operou uma atenta leitura dos textos florentinos de
Aby Warburg, mesmo fazendo uma leitura demasiado linear. Ver: DIDI-HU-
BERMAN, 1996, p. 145-163.

49
GRIBAUDI, M. • A longa marcha da Micro-História: da política à estética?

chou progressivamente nos espaços da academia e nas rígidas lin-


guagens das ciências sociais. Voltar hoje a estas sugestões, cap-
tando de maneira mais aberta a dimensão da crítica e do rompi-
mento com os paradigmas oficiais, parece importante para tam-
bém pensar em novas formas de participação política dentro de
uma sociedade em constante mudança.
Talvez, este seja o significado mais profundo das análises
que Giovanni está fazendo, nestes últimos anos, a respeitos do
peso que tem, nos países católicos, o projeto utopista de construir
uma sociedade “justa”, mas hierárquica. Além das visões que
queriam interpretar o espaço político e institucional europeu à
luz de um único modelo e de uma única visão, Giovanni Levi nos
mostra mais uma vez uma história fragmentada e contraditória
que explica a natureza científica da fragilidade institucional dos
países católicos e ao mesmo tempo a origem profunda da Itália
de hoje.

Referências
BAKHTIN, M. L’oeuvre de François Rabelais et la culture populaire ao Moyen
Age et sous la Renaissance. Paris: Gallimard, 1970.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e po-
lítica. Ensaios sobre literatura e história da cultura. A obra de arte na era
da sua reprodutibilidade técnica. São Paulo: Brasiliense, 1987.
BENJAMIN, Walter. I “Passages” di Parigi. Torino: Einaudi, 2007.
DAVIS, Natalie Zemon. The Reasons of Misrule. Youth Groups and Chariva-
ris in Sixtteenth-Century France. Oxford: Corpus Christ College, 1971.
DIDI-HUBERMAN, G. Pour une anthropologie des singularités formelles.
Remarque sur l’invention warburgienne. Em “Geneses”, 24, 1996.
GRENDI, Edoardo. Dieci interventi sulla storia sociale. Torino : Rosenberg
& Sellier, 1981.
LEVI, Giovanni. “Introduzione”. In: BERTOLO, G. Torino entre as duas
guerras. Torino: Galleria Civica d’Arte Moderna, 1978.
_____. Un Problema di Scala, em Dieci interventi sulla storia sociale. Bologna,
Rosenberg & Sellier, Torino 1981.

50
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

_____. Famiglie contadine della Liguria del Settecento. In: LEVI, Giovanni.
Centro e periferia di uno stato assoluto. Tre saggi su Piemonte e Liguria in età
moderna. Torino: Rosenberg & Sellier, 1985 (reedição de um artigo em
“Miscellanea Storica Ligure”, V (1973).
____. L’Eredità immateriale. Carriera di un esorcista nel Piemonte del Sei-
cento. Torino: Einaudi, 1985.
MARUCCO, Dora. La storia sociale: caratteri, originalità, limite della ri-
cerca in Italia. In: Dieci interventi sulla storia sociale. Torino: Rosenberg
& Sellier, 1981.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Ensaio sobre memória, arte, literatura e tra-
dução. São Paulo: Editora 34, 2005.
WARBURG, A. Opere, I.1, La rinascita del paganesimo antico. Firenze: La
Nuova Italia, 1966.

51
História Oral e Micro-História1
Alessandro Casellato

Um dos últimos números de uma importante revista italia-


na de teoria literária, Alegoria, teve como título: Conoscere l’Italia
contemporanea2 (BALICCO, 2014). Investigação sobre o Made in Italy
foi motivada pela pergunta: por que a autorrepresentação da Itália
contemporânea é vista pela maior parte dos intelectuais e historia-
dores italianos como aquela de um país em pleno declínio econô-
mico e cultural desde o final dos anos 70, efetivamente enquanto a
Itália conseguiu, sobretudo nestas últimas quatro décadas, a impor
com força, no exterior, através do brand Made in Italy, uma imagem
de si como modernidade aprazível?
A tese de fundo foi que, já no final dos anos 70 e posterior-
mente, a Itália, apesar dos enormes problemas políticos e sociais
no seu interior, seria um país capaz de exprimir uma espécie contra
a hegemonia cultural no mercado internacional dominado pelos
Estados Unidos; uma contra hegemonia cultural que está expressa
antes de tudo colonizando as formas elementares da vida cotidia-
na: comer, vestir-se, morar. Alimentação, roupas, decoração. Mas
também automação, isto é, mecânica high-tech, que representa a
última evolução da tração artesanal e operária italiana. Em todos
os campos, a marca Made in Italy tornou-se um sinônimo de produ-
tos belos e de alta qualidade, destinados a um mercado de massa,
mas não comum. Isso representa uma alternativa à “americaniza-

1
Uma versão diferente deste artigo foi publicada com o título “L’orecchio e l’occhio.
Storia orale e microstoria” (CASELLATO, 2014). Tradução e revisão técnica do
presente artigo: Leonardo de Oliveira Conedera e Maíra Ines Vendrame.
2
Conhecer a Itália Contemporânea.

52
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

ção do cotidiano” com a qual há alguns anos as ciências sociais


haviam interpretado a passagem da modernidade.
Por qual razão, a partir da segunda metade dos anos setenta
e depois, sobretudo nos anos oitenta, a cultura italiana conseguiu
exportar essa ideia de modernidade aprazível, alternativa tanto ao
modelo comum americano, quanto aos austeros modelos anglo-
franceses de modernidade como racionalização? Talvez uma res-
posta possível possa ser encontrada generalizando com cautela uma
hipótese teórica do americano Fredric Jameson [1981]: “a produ-
ção de uma forma estética ou narrativa deve ser vista como um ato
em si ideológico, cuja função é aquela de inventar ‘soluções’ imagi-
nárias ou formais a contradições sociais insolúveis”. O prazeroso
«nacionalismo soft» condensado nos produtos Made in Italy pode ser
lido como compensação simbólica da trágica derrota política do “lon-
guíssimo” 1968 italiano? (BALICCO, 2016, p. 10-11).3
Experimentei reler os eventos que levaram, portanto, o nas-
cimento da Micro-História e da história oral “a moda italiana” à
luz das hipóteses contidas neste número de “Alegoria” e tendo pre-
sente o amplo debate em curso sobre a Italian Theory, isto é, sobre o
reconhecimento internacional do “pensamento italiano” que acon-
teceu nos dois últimos decênios no campo filosófico (ESPOSITO,
2010, p. 30-33). Como é conhecido, Micro-História e História Oral
estão entre os mais conhecidos êxitos da historiografia italiana no
mundo e os seus intérpretes mais célebres – Carlo Ginzburg e Gio-
vanni Levi, Luisa Passerini e Alessandro Portelli – são reais Clio
Star em nível internacional. Acerca desses pesquisadores podemos
definir como os produtos de excelência do Made in Italy historio-
gráfico.
Micro-história e História oral compartilham a ideia de uma
dimensão artesanal da profissão do historiador – small data, recusa
do lugar comum, cuidado dos detalhes – e representam por muitos
aspectos uma resposta à derrota política do “longuíssimo” 1968

3
Movimentos de protestos coletivos que duraram dez anos na Itália. Sobre isso,
ver: DE LUNA (2011).

53
CASSELATO, A. • História Oral e Micro-História

italiano. Micro-história e História Oral tentaram, a partir daquela


derrota e da crise cultural que se seguiu, “inventar soluções imagi-
nárias ou formais para contradições sociais insolúveis”.

***
História oral e Micro-História nasceram de uma insatisfa-
ção comum frente às disponibilidades da historiografia do seu
tempo, como também de exigência de compreender a sociedade
como é e como deveria ser (SALVATI, 2008, p. 91). Entre ambas
vieram definindo – isto é, se dão o nome e se formalizam como
um conjunto de práticas, lugares e redes de relações – no final dos
anos 70, mas possuem raízes longas e múltiplas, em grande parte
compartilhadas.
Os pioneiros da história oral italiana descobriram as fontes
orais fazendo trabalhos de História local: conduziram pesquisas
circunscritas, empiricamente fundamentadas, procurando novas
variedades de documentos, mesmo aqueles “menores”. Um dos
expoentes desta “nova esquerda historiográfica” foi Gianni Bosio,
intelectual socialista, fundador, já em 1949, da revista “Movimen-
to operário” e depois autor do livro Il trattore ad Acquanegra, que
começou em 1960 para contar a passagem da época: da mecaniza-
ção dos campos (o trator) e as suas consequências na cultura popu-
lar. Esse livro foi publicado postumamente em 1981 e apresentado
como “um exemplar de caso de Micro-História” produzido preva-
lentemente com fontes orais (BOSIO, 1981).
No mesmo âmbito político-cultural nasceu o primeiro livro
de Cesare Bermani, Pagine di guerriglia, que foi, de fato, a micro-
história de uma banda partigiana, realizado através de depoimen-
tos orais. A obra foi publicada no ano de falecimento de Bosio (1971)
e revelou uma resistência muito distante da imagem então canoni-
zada. Anos depois, repensando esse trabalho, Bermani lembraria
as reflexões de um escritor – Hans Magnus Enzensberger, em Lette-
ratura come storiografia – que o ajudaram a colocar em foco um as-
pecto importante da sua pesquisa: o interesse “pelo detalhe”, típi-
co dos narradores, muito mais que “pela totalidade”, à maneira

54
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

dos historiadores que trabalharam com “imensas reduções” (BER-


MANI, 1987, p. 23).
Se os historiadores da oralidade encontraram a Micro-histó-
ria, quando esta ainda não existia, os historiadores da micro-histó-
ria utilizaram as fontes orais ainda antes de serem definidas como
tais. No final dos anos 50, por exemplo, Giovanni Levi transferiu-
se para a Sicília, junto com Danilo Dolci, e com ele iniciou a coleta
de entrevistas:
Fazíamos as entrevistas com os trabalhadores braçais do cam-
po. Essas eram impróprias, no sentido de que cheias de contra-
dições. Perguntávamos quantas jornadas de trabalho haviam
realizado durante o ano precedente e eles diziam: “cinquen-
ta”. Somando-as e dividindo-as por todas as atividades se al-
cançava o número de 350 jornadas ou outras coisas do gênero.
Então tive um choque com Danilo Dolci, dizendo-lhe: “olha
estas entrevistas não se fazem assim, não funcionam”. E ele
me disse: “mas eu devo entregar em quinze dias o livro para
Einaudi”. Nos separamos mal e depois O desperdício saiu sem
as nossas entrevistas, ou melhor, com as nossas entrevistas muito
manipuladas. Depois me formei (LANARO, 2011, p. 172).

No mesmo período Carlo Ginzburg (2006, p. 269-70) traba-


lhou sobre os seus depoimentos orais transcritos nas verbalizações
dos processos de Inquisição, reconhecendo a natureza dialógica, ao
mesmo tempo que sua mãe Natalia se aplicava naquele tipo de auto-
investigação narrativa, que se observa em seu livro Lessico famigliare
(1964), apreendendo as reflexões sobre a linguagem, sobre a me-
mória, sobre a vida cotidiana. A historiografia de Ginzburg, já em
I benandanti (1966), se alimenta dessa dupla influência, historiográ-
fica e literária, que o leva a valorizar a presença de traços da orali-
dade nos documentos de arquivo e a tematizar o encontro entre
tradição oral e circulações de textos escritos produzidos pela men-
talidade popular.
Quase contemporaneamente, Edoardo Grendi começou a
importar da Inglaterra, onde se criou, a tradição da Local History
nos seus estudos de história do movimento operário. A Local His-
tory veio entendida como abertura ao estudo empírico do território

55
CASSELATO, A. • História Oral e Micro-História

e como uma pequena atividade experimental, mais que retórica,


ligada ao “paradigma da observação da Micro-História” (GREN-
DI, 1996, p. 12-14). Ter um campo além do arquivo como ambien-
te de pesquisa impõe ao historiador modificar a sua epistemologia,
alargar o conjunto das fontes possíveis e, sobretudo, situar-se no
interior de um contexto espacial, de um site – assim – que se explo-
ra, a maneira dos arqueólogos e dos topógrafos, interessados na
observação dos artefatos ou dos recursos da vegetação ou dos ves-
tígios deixados pela vida passada, por ter em diálogo com os depó-
sitos documentais presentes nos arquivos (TORRE, 2006, p. 300-
317; MORENO, 1990; GRENDI, 2004; TIGRINO, 2013, p. 211-
232). A passagem da observação dos vestígios para reconstruir as
práticas do passado – em busca das pessoas que ali habitavam e
escutando as memórias localizadas das quais elas são portadoras –
é mais fácil de percorrer (CALEGARI, 2007, p. 30-31).
Os anos posteriores a 1968 são caraterizados por uma não
usual contaminação entre diversos grupos sociais e entre culturas
“altas” e “baixas”; isso que na década precedente era prerrogativa
de grupos minoritários muito localizados tendeu a se difundir e a
se generalizar. Esse clima criaria o humus que consentiu, no final
dos anos 60, o nascimento – ou a formalização – da Micro-história
e da História Oral.
Em 1973 nasceu “Primo maggio”, que se propôs como re-
vista de “História militante”, isto é, visava ligar a historiografia e
as lutas sociais. Apreende da tradição trabalhista o plano teórico, a
curiosidade analítica para o funcionamento da economia capitalis-
ta e para as transformações da composição de classe. Com a entra-
da em redação de Cesare Bermani, em 1975, a revista começou a
dedicar uma atenção constante aos “depoimentos orais da parte
proletária e ao seu uso como fontes funcionais para uma história
da classe e para ela” (BERMANI, 1975: 2010: 2013).
Maurizio Gribaudi, em uma conferência recente, falou das
origens militantes da Micro-história, que nasceria, sobretudo sobre
o impulso de Edoardo Grendi e Giovanni Levi, como “ato militan-
te e junto da posição política” sobre os modelos e sobre os instru-

56
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

mentos interpretativos da esquerda (GRIBAUDI, 2009, p. 10-11).


Assim, na metade dos anos 70, esse grupo que daria vida àquele
dos “primeiros historiadores da Micro-História” teve longas dis-
cussões acerca da cultura popular como um modo diferente de ler
uma mesma realidade e como um recipiente de possíveis bifurca-
ções para a história que não foram tentadas. O debate historiográ-
fico estava ligado àquele político que “colocava explicitamente o
problema de subverter a centralidade e hierarquias de espaços e de
experiências sociais”.
Abriam-se contatos, discutia-se com as comissões de bairro
ou de vilarejo, com organismos sindicais e facções políticas. Fre-
quentemente partia-se em uma noite para discutir com um grupo
de História Oral de Milão, Aosta ou Asti. Depois se iria a uma
reunião de um grupo do bairro em Alessandria, Gênova ou Mân-
tua. Próprias expedições que tinham o mesmo sabor e a mesma
intensidade dos panfletários em frente às fábricas que conheceram
no curso do princípio de setenta (GRIBAUDI, 2009, p. 15).
Além disso, no âmbito historiográfico e político surgiu, na
primeira metade dos anos 70, uma conjuntura cultural muito mais
ampla, que reunia várias artes e que se refere à fragmentação, à
derrubada, à recuperação arqueológica, ao ouvir as vozes sepulta-
das.4 Carlo Ginzburg, por exemplo, lembrou em várias ocasiões as
trocas de ideias das quais participou, em particular com Italo Cal-
vino e Gianni Celati, em torno da projetada – e nunca realizada –
revista “Alì Babà” (BELPOLITI, 2001, p. 126-27). Pontos comuns
e caracterizantes eram “uma geral intolerância em relação ao que
hoje se diz e se escreve” (CALVINO, 1995, p. 321) a discussão so-
bre traços e o saber indiciário (de Benjamin), o olhar dos arqueólo-
gos (ou dos palio-etnógrafos) sobre a realidade presente e a “deli-
mitação do espaço” como instrumento para melhor compreendê-
la (CELATI, 1998, p. 200-222).

4
É uma conjuntura internacional: dois livros desse sintoma são o de Ernest F.
Schumacher (1973) e o de Raymond Carver (1976).

57
CASSELATO, A. • História Oral e Micro-História

É nessa conjuntura, isto é, no interior de tal série de estímu-


los e de expectativas, que, em 1976, saiu Il formaggio e i vermi (O
Queijo e os Vermes), o livro de Carlo Ginzburg com o qual se quer
começar a temporada das pesquisas da Micro-História. No final
do mesmo ano, na Universidade de Bolonha, ocorreu o primeiro
congresso acadêmico dedicado às fontes orais, incentivadas por an-
tropólogos e africanistas, que introduziam na Itália a experiência
da Oral History anglo-saxã; entrementes, acenderam uma faísca com
os “historiadores militantes” que foram convidados para estabele-
cer uma relação. Isto é, foi o primeiro sintoma de um conflito des-
tinado a se alargar (BERNARDI; PONI; TRIULZI, 1978).5
No final da década de 70 instituíram-se as redes e os lugares
de elaboração das práticas que começaram a se definir explicita-
mente como Micro-História e História Oral. A revista Quaderni sto-
rici foi uma incubadora entre as mais precoces e fecundas. A saber,
o periódico é uma referência para a historiografia italiana e caracte-
riza-se pela abertura para as ciências humanas, para a geografia e
para a antropologia. Em 1977, dedicou pela primeira vez um núme-
ro intitulado a Oral history: entre antropologia e história. Vale lembrar
que, nessa edição, Giovanni Levi, Luisa Passerini e Lucetta Scara-
ffia assinaram um artigo sobre a pesquisa que possuíam em curso
sobre um bairro operário de Turim; no mesmo número, Edoardo
Grendi começou a discutir acerca das Microanálises e história social.6
A pesquisa sobre a Cultura operária e vida cotidiana no burgo
San Paolo (1978) de Turim foi inovadora, pois colocou junto um
grupo de trabalho, coordenado por Giovanni Levi, sustentado pela
administração municipal de esquerda eleita em 1975; o projeto pen-
sava envolver o bairro, as escolas, as organizações políticas e sindi-
cais de base e, posteriormente, transformar-se em uma amostra aber-

5
Durante o congresso, a tradução da fala de Cesari Bermani e Bruno Cartosi sobre
subjetividade e história do movimento operário é interrompida e o texto de am-
bos não foi incluído nos anais do evento.
6
A revista Quaderni Storici (n. 35) de 1977 antecipa parte dos textos apresentados
no congresso de Bolonha.

58
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

ta para a cidadania, visto que pretendia ser “um trabalho de discus-


sões de coleta e de reflexões que alargaria maiores possibilidades,
para além dos seus funcionários e os seus trabalhos, o número dos
produtores de história”. Os êxitos da pesquisa foram publicados
em 1978, mas o canteiro ficou aberto e produziria vários êxitos,
mais ou menos diretos.
Contemporaneamente, um outro grupo de pesquisa, que
surgiu, em Turin, com o nome de “Primo Maggio”, moveu do pre-
sente com as mesmas perguntas de quem estava investigando o
passado (o que é, hoje, a classe operária?) e termina por encontrar
os mesmos problemas e tentar as mesmas vias de saída: para enten-
der melhor necessita procurar não a luta, mas a vida cotidiana,
escutar não as vanguardas, mas o operário médio, olhar não tanto
dentro da fábrica, mas o que estava fora dela.
O presente sugere novas pistas de pesquisa para os historia-
dores. Começou-se a ver, também no passado, a classe como um
campo de relações mutáveis entre indivíduos diferentes; pode-se
estudá-la não apenas como luta ou ação coletiva, mas também nas
fases que é silenciosa. A experiência de Turim encontra correspon-
dências em outros contextos: Veneza, Milão, Roma, Florença, Re-
ggio Emilia, Napoli, pesquisadores praticamente coetâneos se co-
locavam para estudar as mesmas coisas nos mesmos anos; fazem,
ao passado, perguntas fortes para compreender um presente sem-
pre mais elusivo, em muitos aspectos decepcionante.
No final dos anos 70, os “intelectuais militantes” formados
em 1968 tornaram-se pesquisadores; para alguns abriram-se as por-
tas das universidades, de maneira estável com a entrada em 1980;
outros encontraram mais ou menos duradoura colocação no inte-
rior de centros de estudo de entidades locais e sindicais. Todos jun-
tos constituíram uma rede informal de estudiosos; entre eles existia
comunicação e eram dotados de um mesmo imprinting geracional,
compartilhando perguntas e afinando instrumentos de análises.
Esses circunscreviam as pesquisas e reduziam a escala de estudo
para a cidade, bairros, fábricas únicas, até a perseguir as trajetórias
biográficas (individuais, familiares ou de grupo); reduziram as ge-

59
CASSELATO, A. • História Oral e Micro-História

neralizações e as fórmulas interpretativas que demostraram não


estarem mais atreladas à realidade. Paradoxalmente, os primeiros
anos de 1980, os conhecidos como o “refluxo” e do eclipse dos
operários da cena pública, coincidiram com o último grande perío-
do da historiografia sobre o trabalho, na qual Micro-História e His-
tória Oral cruzaram e refinaram instrumentos e conceitos.
Há um momento que marca uma reviravolta, em 1981, quan-
do, em Mântua, se tem por três dias o congresso organizado por
“Primo Maggio” sobre a Memória operária e nova composição da clas-
se. Problemas e métodos da historiografia sobre o proletariado (BERMA-
NI; COGGIOLA, 1986). Foi um congresso explosivo, ainda no
interior da tradição do trabalhismo italiano, mas que separou aber-
tamente os historiadores “militantes” daqueles “acadêmicos”. Es-
creveu Bruno Cartosio que com aquele congresso “terminou na
nossa história política e cultural, entre 1980 e assim, aquela pará-
bola iniciada nas escolas e nas fábricas e duradoura por mais de
dez anos” (CARTOSIO, 1982, p. 56).
No interior dessa mudança de fase, em 1981, foi lançada,
por Einaudi, a coletânea “Micro-histórias”, dirigida por Carlo Gin-
zburg e Giovanni Levi, que impulsionou a experimentação histori-
ográfica sobre o terreno empírico e conjunto teórico e epistemoló-
gico, aprofundando limites disciplinares, cronológicos e geográfi-
cos; essa experiência seria considerada como um dos produtos mais
interessantes da historiografia italiana a nível internacional.
Segundo linhas paralelas, mas já distintas a respeito da Mi-
cro-História, mesmo o debate sobre as fontes orais inseriu-se em
um circuito supranacional, no interior daquele da “escola” italiana
– representada no exterior nestes anos sobretudo por Luisa Passeri-
ni e Alessandro Portelli – sendo reconhecida como uma das mais
originais e ricas, mesmo de uma própria específica tradição (BO-
NOMO, 2013, p. 66).
Diferentemente da aproximação empirista e positivista da
oral history anglo-saxã (que põe a atenção em examinar minuciosa-
mente os testemunhos e sua confiabilidade) e daquela fordista e
taylorista oral history estadunidense (que se dedica a grandes proje-

60
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

tos de coleção e arquivamento massivo de fontes orais), a história


oral italiana se distingue pelo trabalho interpretativo profundo que
é realizado mesmo nas pequenas entrevistas. Além disso, também
se diferencia pela atenção dada às temáticas da subjetividade e da
memória e, portanto, à forma, às distorções e aos silêncios presen-
tes nos testemunhos.7 Esta passagem marca uma mudança funda-
mental frente à tradição italiana de uso militante das fontes orais
entendidas somente como documentos de uma contra-história “vis-
ta de baixo”.
Em 1984, realizando um balanço pelos dez anos de “Primo
Maggio”, Portelli (1984, p. 61) escreveu que “o limite principal que
eu deverei indicar no discurso da revista sobre a História oral talvez
por ter apontado principalmente sobre a tangibilidade documentá-
ria da história oral, cortando em parte fora dos instrumentos de
análises mais ricos e complexos que vieram elaborando, sobretudo
na Itália, nos últimos anos”. A referência implícita é ainda a me-
mória que – sustenta Portelli – resulta mais interessante e original
lá onde se afasta da variedade efetiva, enquanto permite acessar
níveis de realidade de outro modo inacessíveis com outras fontes,
ou de compreender como os fatos sejam vividos, percebidos, ima-
ginados, reelaborados e proferidos integrando-se com a história
sucessiva. O livro, Biografia di una città, que Portelli publicaria em
1985 (próprio no interior da coleção “Micro-histórias”) é uma de-
monstração da eficácia desse modo de entender a abordagem das
fontes orais para o conhecimento do passado.
Um êxito praticamente oposto chegou, dois anos depois, com
Maurizio Gribaudi, que concluiu com uma monografia o percurso
de pesquisa iniciado dez anos antes em Borgo San Paolo, derruban-
do em muitos aspectos as hipóteses iniciais e refutando as potenci-
alidades heurísticas das fontes orais: a memória – argumenta Gri-

7
A sociologia também participa deste renovamento metodológico, sobretudo gra-
ças as contribuições e escolhas de de Franco Ferrarotti (1981), que recuperam e
sistematizam uma tradição de uso qualitativo das “histórias de vida” que vem da
Escola de Chicago e, na Itália, de Danilo Dolci e, sobretudo, de Danilo Montald.

61
CASSELATO, A. • História Oral e Micro-História

baudi em Mundo operário, mito operário – reconstituiu o “mito” e


distorceu a realidade; para compreender o que aconteceria nos bair-
ros operários de Turim nos anos 20 e 30 foram outras fontes a que
se necessita voltar: para os arquivos notariais, antes de tudo, que
registram os percursos migratórios do campo, os deslocamentos
internos das cidades, as trajetórias de mobilidade social, e, portan-
to, em última estância, as estratégias colocadas em prática pelos
indivíduos e por aquelas famílias que são os verdadeiros sujeitos
“fortes” e empiricamente para serem investigados em frente àque-
les desgastes irremediáveis da imagem ideológica de uma classe
operária homogênea, coesa e sólida. Gribaudi (1987, p. 12-13), de-
pois de ter por muito tempo observado um grupo circunscrito de
indivíduos, concluiu tematizando a “dificuldade do uso das fontes
orais” para compreender a realidade, “enquanto baseadas sobre as
lembranças frequentemente deformadas pelas sucessivas racionali-
zações”.

***
A parir daquele momento, História Oral e Micro-História
separaram as suas estradas. Já, Giovanni Levi (1980, p. 80) colo-
cou um alerta a partir “dos muitos equívocos e pelo incontrolado
sucesso” da História Oral, na qual “a capacidade emotiva de se
interessar é rapidamente substituída pelo trabalho de interpretação
e a responsabilidade do historiador fica escondida atrás da passiva
função de recolhedor de memórias”.
Parece-me interessante discutir essa posição de Levi porque
coloca em foco o ponto de divergência entre Micro-História e His-
tória Oral, que se aventou no princípio dos anos 80, isto é, no mo-
mento no qual as duas “comunidades de prática” se autonomiza-
ram, progressivamente destilando duas diferentes hermenêuticas:
aquela da visão, ou dos olhos, próxima aos micro-históricos, e aquela
do escutar, ou dos ouvidos, própria dos historiadores da oralidade
O artigo no qual Levi exprime mais completamente a sua
ideia de Micro-História foi publicado em 1991 na obra organizada
por Peter Burke, New perpectives on Historical Writing (Escritas da His-

62
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

tória). A parte central do texto foi dedicada a um confronto com as


posições de Clifford Geertz, em particular com a sua perspectiva
de trabalho antropológico definida como thick description (descrição
densa). A ideia de Geertz foi “a negação da explicitação total e o
esforço de construir uma hermenêutica do escutar” de derivações
heideggerianas, que desemboca no relativismo. O historiador, que
tem em mente Levi, ao contrário, argumenta, valoriza, afronta,
extrai; faz também entrar o leitor no seu laboratório, revela o pro-
cesso de pesquisa e até mostra os limites documentários “fazendo-
o participar no processo de montagem do discurso historiográfi-
co”; porém, mantém sempre uma posição distinta e bastante valo-
rizada a respeito de sua matéria, no esforço de “dar um sentido ao
mundo” (LEVI, 1993, p. 119, 125-26).
O campo semântico dos termos com que se refere a Micro-
História é aquele da visão: contam as formas, as dimensões, a esca-
la de observação dos fenômenos sociais. A reflexão teórica sobre a
História Oral utiliza, ao invés, inevitavelmente, metáforas de tipo
auditivo. A distinção entre os dois campos reflete aquela evidenci-
ada por Walter J. Ong, no seu célebre estudo sobre Orality and Lite-
racy (publicado em 1982, assim contemporâneo à imersão do nó
historiográfico e teórico que estejam investigando): “a visão isola
os elementos, o ouvido os unifica. Enquanto a visão propõe ao
observador um olhar externo daquilo que vê, à distância, o som
flui em direção àquele que ouve […]: quem escuta está no centro
do próprio mundo auditivo, que o envolve, fazendo-o ouvir imerso
nas sensações e na mesma existência” (ONG, 1986, p. 105-106;
GOODY, 1990).
Se o historiador da Micro-História põe uma distância entre
si e o objeto que estuda, para podê-lo observar, o historiador da
oralidade deve aproximá-lo, para ouvi-lo, e se fazer ao menos um
pouco se deixar impregnar, para escutá-lo; se o historiador da Mi-
cro-História – simplificando – é um cientista social que quer man-
ter controle sobre a sua pesquisa, sobre o discurso que deriva e so-
bre os seus significados. O historiador da oralidade é ao contrário
disponível – ou obrigado pela natureza mesma através das suas

63
CASSELATO, A. • História Oral e Micro-História

fontes, dialógicas e sempre excedentes acerca das suas perguntas –


reconhecendo que o círculo da explicação da realidade não é nun-
ca todo fechado: no seu modo de argumentar, através de longas
citações das narrações de outros, isso incorpora outras possíveis
explicações, que “deixam espaço também na autointerpretação dos
narradores” (PORTELLI, 2009).
Como escreveu Gabriella Gribaudi (2005, p. 30) refletindo
sobre a própria experiência de pesquisa sobre a memória de guerra
na Campania,8 a historiografia é um exercício de imersão em outro
mundo”; quando o historiador da oralidade aplica a sua agenda para
a pesquisa sobre o campo, mesmo não distante de casa, termina sem-
pre para se fazer conduzir pelos seus depoentes para explorar mun-
dos que não conhecia, e a se por perguntas que sozinho não se sabe-
ria fazê-lo. Isso significa que o vivido e o descrito em primeira pessoa
pelos narradores não é jamais completamente traduzível nos códi-
gos de quem conduz a pesquisa, e que o trabalho do historiador está
em dar conta na viagem de ida e volta do próprio mundo aquele dos
outros. Quer dizer também que as explicações “nativas” mesmo quan-
do são tecnicamente erradas continham um certo grau de verdade
subjetiva, mas performativa, que não pode ser verificada a partir do
horizonte da pesquisa (CONTINI, 2001, p. 41-60). Conforme escre-
veu Ronald Grele (1997, p. 6), “a história a fazem seja os historiado-
res seja as pessoas que entrevistam, e a entrevista se reconhece como
o lugar de encontro entre dois modos de pensar o passado”: aquele
do entrevistado que compreende a história vivida, aquele do histori-
ador que a compreende a partir do que estudou.
Segundo Erich Auerbach (2000), na tradição cultural euro-
peia existem fundamentalmente dois modos para se representar a
realidade: o lógico de Atenas e aquele narrativo de Jerusalém (dos
poemas homéricos e contos bíblicos).9 As duas tradições não são

8
NDT: Região sul da Itália, cuja capital é Nápoles.
9
Alessandro Portelli utilizou em várias ocasiões a metáfora do Atene e Gerusalem-
me para indicar os dois polos da narração histórica, como o fez em “Milano Co-
rea” di Montaldi e Alasia, “il manifesto”, 27 gennaio 2011.

64
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

incompatíveis, aliás: historiadores e histórias oferecem boas provas


quando se sentem responsáveis seja em direção a Atenas que em
direção a Jerusalém, isto é, quando tematizam e refletem sobre esta
dupla lealdade.
Em certos casos, as dívidas que o olho possuía em relação
ao ouvido permaneceram um pouco escondidas. Como nasce, por
exemplo, na cabeça do historiador, a chave que abre a compreen-
são da realidade e que guia depois a pesquisa? Duccio Bigazzi, en-
trevistado por Cesare Bermani, em 1988, sobre a gênese de Il Porte-
llo – um livro sobre a história industrial e operária da Alfa Romeo,
tudo construído sobre fontes documentárias –, disse ter dedicado
dez anos de pesquisa, mas aquilo que queria demonstrar já havia
compreendido no início; além disso, afirma que foram as fontes
orais que lhe possibilitaram ler e entender também as fontes escri-
tas: “Em uma pesquisa deste gênero a relação direta com os ho-
mens é um fator decisivo” (BERMANI, 1988, p. 52).
Às vezes, a base de uma intuição de pesquisa possuiu uma
fonte oral, ou uma experiência direta, declarada. Porém, certos tra-
ços autobiográficos, que foram decisivos para orientar o pesquisa-
dor na compreensão dos fenômenos sociais, frequentemente se en-
contravam fora dos livros onde foram elaborados. Por exemplo, ao
escutarmos a história contada por Gabriella Gribaudi (2007, p. 79-
81) sobre a própria família, por ocasião de um exercício de ego-
histoire, descobre-se que o livro de seu irmão Maurizio – Mundo
operário e mito operário – tem uma clara matriz autobiográfica: a tese
de fundo sobre as estratégias de integração urbana em Turim, apre-
sentada como o resultado de uma pesquisa, se encontrava já inscri-
ta na história familiar do autor; o seu corolário, ou a natureza fala-
ciosa e enganadora dos depoimentos orais é, na realidade, parada
no fato que foi uma fonte de memória – o “boato” em família, que
não formalizado em uma entrevista – que levou à explicação da-
quilo que queria entender antes mesmo do começo da sua pesquisa
no arquivo.
Outros e mais recentes êxitos do cruzamento entre a aborda-
gem do historiador da Micro-História e fontes orais mostram que a

65
CASSELATO, A. • História Oral e Micro-História

memória pessoal do pesquisador, e até os sentimentos e as emo-


ções, ou o seu posicionamento consciente dentro do campo de in-
vestigação, são um recurso, porque podem produzir nele ao mes-
mo tempo empatia e estranhamento, potencializando, enfim, a
imaginação. Isto é, aquela capacidade que lhes consente conectar
os vestígios do passado que possuem a disposição de maneira pers-
picaz e inovadora.

***
Eu gostaria de concluir com um exemplo de alto artesanato
historiográfico realizado e praticado unindo a Micro-História e a
História Oral. O protagonista é um historiador genovês, não aca-
dêmico, muito pouco conhecido fora dos círculos que o estimam.
Chama-se Manlio Calegari, trabalhou no Centro Nazionale delle Ri-
cerche di Gênova; creio que não seja conhecido porque escolheu sem-
pre pequenas editoras locais de sua cidade sem grande distribui-
ção. O seu trabalho é um artesanato historiográfico que privilegia a
fieira curta: do produtor ao consumidor.
Calegari estudou a manufatura pré-industrial, as práticas ar-
tesãs do papel e dos metais, a história da Resistência na sua zona.
Do seu modo tem sempre utilizado as fontes orais, também quan-
do se ocupou de histórias de quatro séculos atrás, passando do ar-
quivo para o campo, da história à etnológica, um pouco como o fez
Nathan Wachtel (2013) em suas pesquisas sobre antropologia his-
tórica. A particularidade dos seus livros é que conseguem dar voz
aos personagens a ponto de o leitor imaginar tê-los a sua frente,
mesmo tendo aqueles vividos cinquenta ou quinhentos anos antes,
como se fossem pessoas vivas e falassem com voz própria.
Os livros sobre a história da Resistência em torno de Gêno-
va basearam-se sobre fontes orais que, porém, são o fruto de longas
relações e, portanto, de colóquios repetidos no curso de diversos
momentos: verdadeiras entrevistas em profundidade, para certos
aspectos maiêuticos. Calegari cruza as lembranças com as datas de
arquivo e com as informações da história ambiental, isto é, com a
estratificação de vestígios naturais e antrópicos daquele território

66
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

que ele sabe reconhecer. Mas os seus depoentes não são apenas
“fontes” que o historiador disseca e coloca sobre o microscópio;
são companheiros de estrada, pesquisadores, curiosos, sujeitos que
participam da pesquisa, que estão em pesquisa, disponíveis para
“repensar a [própria] história colocando-as no centro de outros ele-
mentos” que antes se encontravam nas margens.
O último livro de Calegari (2014) baseia-se sobre o arquivo
de documentos pessoais e familiares entregues por um amigo fale-
cido, Gino Canepa, que foi operário em uma fábrica metalomecâ-
nica de Gênova. O trabalho é a história de uma amizade e do con-
texto social e político que a fez possível; é também a história de um
período historiográfico, que se abriu em torno de 1968 e veio exau-
rindo-se nos primeiros anos da década de 1980: por muitos aspec-
tos, essa é a pesquisa experimental dessa relação que referi sobre os
laços íntimos entre Micro-História e História Oral. Sobretudo, foi
uma pequena obra prima com utilização das fontes orais com uma
chave de leitura da Micro-História. Poucas entrevistas em profun-
didade, repetidas no tempo, são consideradas de forma intensiva,
junto a tudo isso que pode se tornar “fonte”: não por último a pai-
sagem, o território, no qual o olhar de Calegari – como se fosse um
arqueólogo – sabe reconhecer as estratificações de marcas deposi-
tadas pelos diversos usos que foram realizados. Tem atrás disso a
lição da Local History de matriz anglo-saxã, da qual Gênova foi um
laboratório e que a escola do autor se formou; e possui a sua expe-
riência de historiador do trabalho, das profissões e dos saberes táci-
tos, que o faz disponível para reconhecer e capaz de interpretar, ao
lado das palavras ditas nas entrevistas, também “a arte do tácito
comunicar”, que se exprime através dos silêncios, as atitudes, as
posturas, os modos de estar no espaço doméstico.
A uma única vida e ao canto do mundo que essa atravessou,
o historiador propõe perguntas importantes: “um empenho a todo
campo capaz de entrelaçar biografias a história familiar, aconteci-
mentos políticos gerais na história do bairro” (CALEGARI, 2014,
p. 160). E Calegari procura também novos caminhos, que o levam
para dentro do perímetro da historiografia daquelas coisas impal-

67
CASSELATO, A. • História Oral e Micro-História

páveis que são os “sentimentos” sobre as quais mesmo Gino Cane-


pa interrogava-se: a amizade, a possibilidade de mudar as coisas, o
papel do indivíduo no processo histórico, a sua possibilidade (ou
pelo menos) de escolher livremente, o sentido do trabalho e da ação
política para a vida humana.
De tudo peculiar é o tratamento do depoente, um sujeito
consciente, por sua vez desejoso de descobrir mais, de alargar o
próprio conhecimento graças aos saberes específicos ao olhar ex-
terno que “o professor” lhe oferece. Como o depoente é também
um historiador, assim o pesquisador está dentro da história que
conta, a qual é, ao menos em parte, também da autobiografia, por-
quanto conduzida com delicadeza e sem uma invasão egoística.
Esse mérito da qualidade da escrita, que é o último aspecto (mas
não menos importante) que deve ser sublinhado. Calegari tem uma
escrita muito pessoal, não homologada, quase literária, que não
permite uma leitura rápida e que é a cifra da sua abordagem para a
historiografia. Lendo o livro, é como se ouvisse a voz do seu autor.
Também essa é uma História Oral.

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71
História Total versus Global History:
a historiografia antes e depois
da Queda do Muro de Berlim1
Giovanni Levi

Começarei pelo projeto ao qual Nathan Wachtel2 sempre foi


fiel: a história total. “As variações de escalas e o cruzamento das
dimensões temporais visam à transposição do quadro propriamen-
te monográfico, assim como a uma restituição da pluralidade das
durações: em outros termos, proponho-me a permanecer fiel às
ambições de uma história total” (WACHTEL, 1990, p. 20). Por-
tanto, espaço, tempo e micro-história com significado geral: “a res-
tituição do tornar-se consiste então a pôr em evidência os descom-
passos entre os ritmos temporais, as continuidades, as rupturas, as
gestações abortadas, as partidas entre o morto e o vivo”, e a inspi-
ração é a história regressiva recomendada por M. Bloch: “É a par-
tir daquilo que, do passado, está vivo no presente que nos propo-
mos a reconstituir, o filme do tornar-se com suas repetições, latên-
cias, lacunas e inovações [...] os jogos entremeados de conjunturas
históricas e reestruturações sociais” (WACHTEL, 1990, p. 20).
Neste projeto de história total, que se afirmou em 1990, ha-
via uma explícita novidade se comparada à tradição dos Annales e
uma perspectiva próxima à micro-história: tratava-se de uma histó-
ria total, mas vista por meio de grupos marginais e que em grande

1
Este texto foi originalmente apresentado no Colóquio: “NATHAN WACHTEL,
HISTOIRE ET ANTHROPOLOGIE”, acontecido no “Musée du Quai Branly”
(Paris) nos dias 12 e 13 de maio de 2016.
2
NDT: Nathan Wachtel é historiador e antropólogo francês, especialista em
estudos da América Latina, onde trata da conquista espanhola no Peru. Há
alguns livros traduzidos para o português: Deuses e Vampiros (Edusp, 1996); A fé
na lembrança (Edusp, 2009) e A visão dos vencidos (Gallimard, 1971).

72
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

parte tornaram-se invisíveis e transformados no tempo pela repres-


são e pela violência. Todavia, como Wachtel lembra, citando Wal-
ter Benjamin, na epígrafe de A Fé na lembrança: “[...] nada daquilo
que já tenha ocorrido se perdeu para a história” (WACHTEL, 2009).
Frente à forte expansão da ainda indefinida Global History,
a história total como pensa Wachtel não pode ser considerada
como um antecedente. A Global History é algo diferente, isto é, é
filha da impressão segundo a qual o mundo da soft-globalization3
tenha se transformado em uma hard-globalization por meio de uma
forte aceleração que aconteceu durante os últimos dois séculos.
Podemos dizer que existem muitas definições de globalização, mas
a Global History propõe-se a olhar o passado, sobretudo do século
XVI em diante, como uma história genealógica do mundo econô-
mico, político e cultural de hoje, ou seja, uma gênese progressiva.
Nesta minha intervenção quero indagar as diferencias que
existem entre história total e a Global History; o porquê de atual-
mente se falar tanto de Global History e – preciso falar desde já –
dos méritos que ela carrega consigo, como a atenção às conexões
e a recusa do eurocentrismo (mais propalada do que praticada),
mas também dos muitos riscos e ambiguidades ligadas à sua difu-
são em um momento histórico preciso.
Nos últimos trinta anos, o mundo político, econômico e cul-
tural sofreu um trauma, ainda pouco formalizado no que diz res-
peito a suas consequências culturais: o fim do bipolarismo (como
salienta também Jean-Michel Sallman (2011), em Le grand désencla-
vement du monde, 1299-1600). De certo, é possível usar a queda do
muro de Berlim, que coloquei no título desta minha intervenção,
somente como metáfora, símbolo de uma modificação do quadro
mundial que gradualmente se percebia desde 1968 até 1989: desde
uma revolta juvenil seguida pelos anos obscuros da decepção até o
– certamente mais importante – progressivo enfraquecimento e à
queda do sistema soviético. Depois disso, os últimos trinta anos,

3
NDT: A soft-globalization, ou primeira globalização, havia levado à passagem
do feudalismo ao capitalismo, com as descobertas geográficas, o sistema colonial
e a rápida expansão de um mercado mundial entre os séculos XV e XVIII.

73
LEVI, G. • História Total versus Global History

um período no qual as democracias ocidentais haviam lentamente


modificado a própria natureza conforme modelos neoliberais e de
enfraquecimento do papel das políticas públicas, além do encolhi-
mento do welfare em muitos países. O desmoronamento dramático
e rapidíssimo do bloco soviético durante os governos, nos Estados
Unidos e na Inglaterra respectivamente, de Ronald Reagan (1981-
1989), George Bush (1989-1992) e Margareth Thatcher (1979-1990),
dilatou as incertezas inaugurando longos anos de insegurança, de
impossibilidade de previsão do futuro e de guinada pós-moderna
com a queda da confiança nos valores consolidados e substituídos
por um crescente relativismo: terminam as grandes narrações his-
tóricas, a certeza do crescimento de um tempo que coloca em xe-
que a possibilidade de afirmar verdades compartilhadas.
A própria realidade torna-se algo distante sobre a qual não
se pode ter nenhum conhecimento certo, teorizando-se a respeito
do fim da história, do fim da classe operária, do conflito entre
culturas e religiões e da indefinição de história e ficção. O mundo
transforma-se, dissemina-se em muitos subimperialismos e as
ciências humanas, a história e a economia antes de tudo, perdem
as próprias certezas. Multiplicam-se os nacionalismos enquanto
enfraquecem os estados nacionais, substitui-se progressivamente
a ideia da democracia representativa em favor da governabilidade
como tecnologia de gestão política dos estados. Aparecem mode-
los de política que enfraquecem o sistema dos partidos em favor
de uma política gerida por líderes ao mesmo tempo que surgem
modelos de democracia autoritária nos quais confia-se em chefes
que possam reduzir a liberdade em troca de políticas centraliza-
das, mas redistributivas. É diante disso que os historiadores en-
contraram-se, nos últimos trinta anos, e diante disso tentaram
empreender muitos caminhos que previam uma modificação dos
seus campos de estudo ao invés de atentar para um enfrentamen-
to metodológico inovador: inserir na história o ambiente natural
ou as partes do mundo antes negligenciadas, identificar novos sis-
temas (a Atlantic History, que de fato propõe uma centralidade
anglo-americana muito ameaçadora), utilizando-se também de

74
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

novas tecnologias informatizadas que permitam uniformizar e


manejar enormes bancos de dados que podem ser estéreis (History
Manifest). Não é um acaso que muitos dos que acolheram a Global
History propunham novos centrismos, como aconteceu na China,
por exemplo, no recente 22° congresso de Ciências Históricas, no
qual alguns pesquisadores afirmaram a centralidade da civiliza-
ção chinesa e demostraram que o conto bíblico é incongruente,
pois coloca o acontecimento da criação na Mesopotâmia enquanto
que a criação e as primeiras formas de civilidade davam-se na
China; além do próprio jardim do Éden que, segundo os historia-
dores chineses, encontrava-se à beira do Rio Amarelo. Já na Ín-
dia, depois de pedirem justamente que a Europa fosse provin-
cializada, os historiadores confrontaram, mais recentemente, a
realidade da globalização capitalista na modernidade do seu país
em nome de um anticolonialismo nacionalista. Tampouco se pode
esquecer do neo-etnocentrismo que aparece na Global History es-
tadunidense e inglesa e que, aliás, é com demasiada frequência
baseada exclusivamente em livros escritos ou traduzidos em in-
glês. De fato, permaneceram as escolas históricas nacionais a se
interrogar “se existe ao menos uma World History italiana’ (dossiê
especial de Il giornale di Storia, 2015 n°17)4 ou sobre o estado da
disciplina em nosso país [...] em um mundo submetido a uma
globalização cada dia mais invasiva” (GRUZINSKI, 2011).5
Para responder à pergunta, “por que a Global History agora?
(Why now?)”, colocou-se a atenção, sobretudo, na globalização das
últimas décadas, que me parece não explicar muito: o mundo está
mais interconectado, mas está também muito mais fragmentado, mul-
tiplicou seus centros e sua complexidade, reduziu a capacidade de
previsão e de imaginar alternativas ao capitalismo, multiplicou a in-
formação e criou um senso geral de culpa do Ocidente, responsável
pelos desastres do colonialismo e do etnocentrismo, porém abando-

4
Disponível em: <http://www.giornaledistoria.net/index.php?Indici=5C7D0A
71570A740321070E767773>. Acesso em: 07 dez. 2016.
5
Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-annales-2011-4-page-
1081.htm>. Acesso em: 07 dez. 2016.

75
LEVI, G. • História Total versus Global History

nou-se a sistemas incontroláveis de financeirização devastadora. O


nascimento da Global History é uma das respostas confusas e não
inovadoras a uma situação que carece ainda de interpretações.
A Global History nasce neste clima produzido pelo fim do
equilíbrio da Guerra Fria e da bipolarização. Antes de tudo, como
crítica ao eurocentrismo e à superioridade da Europa e do Oci-
dente e como contestação à possibilidade de narrar a história de
um estado-nação sem uma visão transnacional. Todavia, é um
projeto difícil, por vários motivos. Em primeiro lugar, muitas pu-
blicações da World History e da Global History tentam realizar uma
síntese que não resulta em nova pesquisa direta, mas em algumas
sínteses baseadas em uma historiografia muito vasta, porém re-
pleta de lacunas. Em outros casos, trata-se de livros importantes
que, porém, são relativos a aspectos muito específicos – penso,
por exemplo, no belíssimo livro de Timothy Brook (2008),
Vermeer’s hat. Dentre as causas dos riscos da Global History deve-
se considerar obviamente que a história se faz com os documen-
tos e, portanto, privilegiar – com um etnocentrismo inconsciente
e aparentemente inevitável – quem produz uma documentação
mais rica. A produção de documentos é diferente de um grupo
para outro: para o interno, pois os ricos deixam sempre mais do-
cumentos que os pobres, os alfabetizados mais do que os analfa-
betos, os homens mais do que as mulheres, as burocracias organi-
zadas mais do que as situações mais desorganizadas, etc. Para o
externo, conforme o modo segundo o qual os estados funcionam
e conforme os sistemas de organização política e social. Assim,
dever-se-á ler acerca dos índios Tupis nos documentos dos funcio-
nários portugueses ou dos religiosos das várias ordens; do comér-
cio de escravos por meio da organização do mercado ocidental
deixando, porém, na penumbra o que aconteceu nas sociedades
africanas antes da chegada aos portos de embarque. Além disso,
toda a experiência colonial está relacionada a uma documenta-
ção de ‘olhar estrábico’, na qual os colonialistas encontram-se mais
em destaque de que os colonizados. É exatamente o problema que
Nathan Wachtel colocou no cerne de seu trabalho: esclarecer o que

76
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

produziu somente fragmentos de documentação e ler a documen-


tação espanhola ou inquisitorial com a atenção aos indícios e às
pistas deixadas pelos Urus e pelos marranos. Ademais, para fazer
isso, apoiou-se na história oral, na antropologia e nos resíduos
atuais do passado: exatamente aquilo que Benjamin definia como
a atividade anti-historicista de um bom historiador materialista.
Romain Bertrand é um historiador que com certeza conhe-
ce o problema do equilíbrio. Em um artigo publicado em Merkur
(dez. 2015, Für eine Welten-Geschichte) escreve:
trata-se, ao contrário, de inventar novas maneiras de relatar
tais situações para além de toda teleologia, respeitando um
princípio de simetria que consiste, antes de tudo, em dar a
palavra a todos os atores, em dar voz [...] àqueles que a histó-
ria colonial clássica, após tê-los ridicularizado com apelidos
(os indígenas), rebaixou-os ao papel de simples figurantes de
uma história do mundo reduzida à gesta da Europa.6

Discuti brevemente com Bertrand as dificuldades de realizar


este equilíbrio que podemos mensurar no seu ótimo livro ‘Le long
remords de la conquete’ (BERTRAND, 2015). Também neste traba-
lho, a meu ver, os personagens espanhóis aparecem demasiado pro-
tagonistas em comparação às servantes phillipines e a todos os prota-
gonistas de Manille. Os espanhóis e os agostinianos saem-se mal
política e moralmente, mas os filipinos são apenas sombras.
É justamente este o grande problema do equilíbrio que
Wachtel enfrentou colocando-o no centro de seu trabalho: recupe-
rar um equilíbrio que a documentação esconde através daquilo
que as fontes diretas e indiretas deixam escapar e, sobretudo, apon-
tar para os vencidos ao invés dos vencedores. Wachtel, como men-
cionei, dedica atenção especial ao espaço. Entretanto, ao contrá-
rio do espaço predileto da Global History, seu espaço pode ser muito
limitado, mas descrito e estudado de forma microscópica ou ao
inverso, pode ser o espaço dramaticamente dilatado pelos deslo-

6
Disponível em: <https://volltext.merkur-zeitschrift.de/ar ticle/
mr_2015_12_0036-0051_0036_01.pdf>. Acesso em: 07 dez. 2016.

77
LEVI, G. • História Total versus Global History

camentos dos marranos à procura ilusória e infeliz de lugares nos


quais seja possível evadir-se da perseguição inquisitorial. Os per-
sonagens biografados em “La Foi du souvenir” deslocam-se pela
Europa e além do Atlântico em uma dramática e ofegante mobi-
lidade, enquanto o mundo dos Urus, ao invés de favorecer os con-
tatos entre vilarejos próximos, separa Chipaya e Moratos apesar
das distâncias serem relativamente pequenas. A distância reduzi-
da do planalto boliviano faz lembrar a desorientação que Ernesto
de Martino descreve em La fine del mondo (DE MARTINO, 2002),
um livro que trata de muitos aspectos psicológicos em situações
confrontáveis com aquelas examinadas por Wachtel. O espaço,
qualquer que seja, pode possuir um significado global ao abordar
o significado variável (ou seja, contextualizado) do espaço para
os homens, independentemente da distância.
Na Global History, o espaço é frequentemente concebido como
um dado significativo de longas distâncias: o global na escrita da
história emergiu da pós-modernidade e do pós-colonialismo, onde
atravessar e ultrapassar fronteiras uniram aspirações para escrever
uma nova história imperial e para realizar estudos comparativos
do Ocidente e do Oriente. Isso confirma “a crescente insatisfação
com histórias nacionais e estudos regionais”. Por meio dos concei-
tos de conectividade e cosmopolitismo e da atenção à transmissão
cultural, a Global History “salienta a importância da interação e cir-
culação de ideias, povos, instituições ou tecnologias” em um mun-
do global. Porém, sobre a teoria transnacional afirmou-se justa-
mente que ela “não pretende ser um método específico”, e, talvez
um pouco ironicamente, acrescentando:
voltando à pergunta sobre o que é a história transnacional, se
é uma perspectiva ou um método, pode-se argumentar que é
mais do que isso, ela simplesmente é uma realidade. Certa-
mente não é uma novidade, mas é algo que se tornou premente
e que está exigindo uma compreensão histórica (STRUCK;
FERRIS; REVEL, 2011, p. 573-584).

Assim, o espaço ganha seu significado pela distância e pela


diferença cultural e seu papel está relacionado à diversidade e não

78
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

ao significado cultural e social do espaço e dos lugares para os


homens. A história regressiva e total que Wachtel propõe com o
seu trabalho é, pelo contrário, uma proposta metodológica de
como interpretar a relação entre homens e lugares.
O tempo também recebe atenção. Uma específica concep-
ção da temporalidade histórica, que Wachtel define como o “cru-
zamento das dimensões temporais” (WACHTEL, 1990, p. 20), é
para ele central em dois sentidos. Em primeiro lugar, o mesmo
tempo cronológico possui significados e velocidades diferentes
para os homens, determinando assim uma causalidade distinta
na qual se mesclam fatos acontecidos em momentos diferentes
que são causa complexa dos presentes nos quais os homens vi-
vem: poder-se-ia falar da atemporalidade e mesmo da cronologia
desorganizada daquilo que é relevante para ter influência em cada
presente. Em segundo lugar, a plasticidade imprevisível da me-
mória no transcorrer do tempo e da memória como radicação
mental e não territorial e como base da ética da responsabilidade
no hebraísmo: as suas transformações e as pistas que se podem
encontrar e que permitem dar novamente um sentido a uma nar-
ração do passado não linear e não exclusivamente factual. Por
isso, a relação entre documento escrito e indício residual na rea-
lidade de hoje, que é de extrema importância no trabalho de
Wachtel, explica o leque de significados e de possibilidades viven-
ciadas no marranismo. É uma contestação da célebre afirmação de
Freud que considerava os analistas os únicos a poder recuperar as
causas históricas reveladas pelos fragmentos das lembranças, pelas
associações e pelas ativas manifestações do sujeito analisado.
Seu trabalho (do analista) de construção, ou, se se preferir, de
reconstrução, assemelha-se muito à escavação, feita por um
arqueólogo, de alguma morada que foi destruída e soterrada,
ou de algum antigo edifício. Os dois processos são de fato
idênticos, exceto pelo fato de que o analista trabalha em me-
lhores condições [...] já que dispõe de material que não pode
ter correspondente nas escavações, tal como as repetições de
reações que datam da tenra infância e [...] o escavador está
lidando com objetos destruídos, dos quais grandes e impor-

79
LEVI, G. • História Total versus Global History

tantes partes certamente se perderam [...]. Mas, com o objeto


psíquico cuja história primitiva o analista está buscando re-
cuperar, é diferente. [...] Todos os elementos essenciais estão
preservados; mesmo coisas que parecem completamente es-
quecidas estão presentes, de alguma maneira [...] (mas) fo-
ram enterradas e tornadas inacessíveis ao indivíduo. [...] De-
pende exclusivamente do trabalho analítico obter sucesso em
trazer à luz o que está completamente oculto.7

Parece realmente, mesmo que às avessas, a descrição do


trabalho de Nathan Wachtel: os resíduos, completamente modi-
ficados, resgatam uma história profunda aparentemente perdida.
Isto merece mais uma consideração. Wachtel não examina o as-
pecto psicológico do marranismo. Somente em um caso o proble-
ma é colocado com precisão por meio da única citação de Freud
que encontrei nos seus trabalhos, na introdução à obra Entre Moi-
se et Jesus (WACHTEL, 2013, p. 47). Claro que os documentos
inquisitoriais não nos dizem nada diretamente, do significado
psicológico de uma condição tão dramática que, todavia, devería-
mos imaginar: uma infância educada, por razões de prudência,
conforme as práticas católicas, porém em famílias que conservam
rituais judaizantes. Isto deve ter complexas consequências sobre
a identidade, um posterior conflito interno da adolescência e um
conflito não manifestado com a família. Sucessivamente, quando
adultos, o aparecimento “de obscuras forças emocionais, mais
poderosas ainda já que pouco podemos exprimi-las por palavras,
assim como a clara consciência de uma identidade interior”, a fa-
miliaridade que nasce pela mesma construção psíquica e, além
disso, um apelo que torna “irresistível a atração que exercem so-
bre mim o judaísmo e os judeus”. Portanto, uma relação com um
coletivo indefinido além da família, uma identidade de povo. Em
suma, um conflito de três intimidades: com si mesmo, com o pró-

7
Kostruktionen in der Analyse, 1937, p. 533-34, vol. XI. NDT: FREUD, Sigmund.
Moisés e o monoteísmo. Esboço de psicanálise e outros trabalhos. VOLUME XXXIII
(1937-1939). Ensaio “Construções em análise”, 1996. Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Imago, p. 167-168.

80
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

prio grupo doméstico e com o povo hebraico, além daquele mais


geral entre hebraísmo e catolicismo.8 Todavia, penso que este
aspecto, aquele psicológico de uma vida sempre ameaçada, conde-
nada ao secreto e também de renúncia a se identificar com a maio-
ria, mereça ainda ser desenvolvido.
Voltando agora à temática da memória, sempre mais cen-
tral no trabalho de Wachtel: ainda apenas acenado em La vision
des vaincus, por meio das duas contribuições no volume Between
Memory and History, de 1990,9 torna-se sempre mais evidente e
mais específico na sua reflexão. Por outro lado, é indicativo um
indício da presença do problema marrano também quando os Urus
eram o seu argumento principal, um indício que me parece ser, de
alguma forma, autobiográfico: em Le retour des ancetres pode-se
encontrar, de fato, uma única e preciosa pista de como os marra-
nos estiveram presentes na mente de Wachtel enquanto trabalha-
va com os Urus:
Até cerca da metade do século XVII, parece que se está dian-
te de uma justaposição de dois sistemas religiosos, que acom-
panha, no entanto, um jogo recíproco de reinterpretação: os
espanhóis consideram os deuses indígenas como manifesta-
ções do diabo, os índios percebem o cristianismo como um
tipo de idolatria. Sob aparências cristãs dissimulavam-se fi-
delidades e sobrevivências pagãs. Ou seja, a extirpação das
idolatrias resultou em uma sorte de “marranismo” indígena
(1990, p. 525-526).

Confirmação de uma definição coerente: um método ge-


ral, perguntas gerais e a aplicação a campos diversos, preservan-
do na prática a história total, a singularidade de acontecimentos
específicos, identificando as perguntas relevantes a serem postas
ao passado, mas recusando generalizar as respostas e construir

8
NDT: As citações derivam dos escritos de Freud de adesão ao B’nai Brith de
1926, Mitglieder des Vereins B’nai B’rith, vol. X, p. 342.
9
NDT: Introduction a Marie-Noelle Bourget – L. Valensi – N. Wachtel (Eds.).
Between Memory and History, Harwood Academic Publishers, Chur, London,
Paris, N. Y., Melbourne, 1990, p. 1-18; Remember and never forget, ibidem, 1990,
p. 101-130.

81
LEVI, G. • História Total versus Global History

tipologias. Wachtel sugere um esquema generativo que explica


uma pluralidade de consequências diferentes.
Há diversas definições e interpretações da Global History.
Na prática mais corriqueira, propõe uma história comparativa
entre situações geograficamente e culturalmente diferentes, in-
terrogando-se acerca das recíprocas influências entre áreas di-
versas e distantes. Entretanto, parece-me que a essa altura, vai
se manifestando dentre os participantes desta discussão, o senso
confuso de não ter encontrado um método e de terem-se limita-
do a alargar o ponto de vista, permanecendo embrulhados em
uma factualidade fruto de um historicismo linear, uma gênese
progressiva da qual se procuram as origens e as fases culmina-
das com a extrema globalização contemporânea. Por isso, nes-
tes últimos anos, fala-se sempre mais frequentemente de uma
conexão entre micro-história e Global History (Trivellato, Ginz-
burg), de limites da globalização (de Vries), ou de Uses of Global
Microhistory (Ghobrial) e às vezes volta-se, afortunadamente, a
falar de histoire totale (Brewer, Bell).
Penso, todavia, que a história total e a micro-história te-
nham um projeto em comum que implica em uma precisa con-
cepção metodológica: uma definição de história como ciência
das perguntas gerais e das respostas locais por meio de uma ob-
servação intensa de um problema, um lugar, um acontecimento,
uma instituição para extrair perguntas que consentissem a iden-
tificação de coisas relevantes sem as encaixar nas simplificações
do global, mas permitindo uma história comparativa que defina
diversidades e não improváveis semelhanças ou diferenças sim-
plificadas. Eis um método: observar com o microscópio um pro-
blema ‘atacando-o’ com todos os instrumentos necessários: his-
tória, antropologia, economia, psicologia, etc., (talvez não a so-
ciologia: John Murra dizia que “com os sociólogos não somos
nem amigos e nem colegas”) e extrair assim perguntas relevan-
tes. Portanto, nada de local, mas um uso do local como lugar
que sugere problemas e pontos de vista até agora não identifica-
dos ou negligenciados.

82
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Fazendo uma releitura de Wachtel, vem à mente que de-


pois da queda do muro de Berlim, a nossa ciência tenha se per-
dido e esteja atrasada em recuperar o nível que havia alcançado
antes de ter sofrido os efeitos da onda pós-moderna. Wachtel e,
na mesma linha, outros historiadores do marranismo sugeriram
que as raízes da modernidade se encontram em dois fenômenos
opostos: de um lado a versão laica e a minoritária da busca de
uma verdade sempre parcial, que não remonta à metafísica que
caracteriza o marranismo e, por outro, a verdade imposta pelo
domínio absoluto de um poder predominante e totalitário, a in-
quisição. Nós, agora, confrontamo-nos com a pós-modernida-
de. Para concluir com otimismo lembrarei uma frase de Mao
Tsé-Tung: “Grande é a confusão sob o céu, por isso a situação é
favorável”.

Referências
STRUCK, Bernhard; FERRIS, Kate; REVEL, Jacques. “Space and Scale
in Transnational History”. In: The International History Review, dez. 2011,
p. 573-584.
BERTRAND, Romain. Le Long remords de la Conquête. Manille-Mexico-
Madrid: l’affaire Diego de Avila (1577-1580). Paris: Seuil, 2015.
BROOK, Timothy. Vermeer’s Hat: The Seventeenth Century and the Dawn
of the Global World. New York and London: Bloomsbury Press, 2008.
DE MARTINO, Ernesto. La fine del mondo. Contributo all’analisi delle
apocalissi culturali. Turin: Einaudi, 2002.
FREUD, Simond. Kostruktionen in der Analyse, 1937, v. XI, p. 533-34.
_____. Moisés e o monoteísmo. Esboço de psicanálise e outros trabalhos. V.
XXXIII (1937-1939). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GRUZINSKI, Serge. ”Faire de l’histoire dans un monde
globalisé”, Annales. Histoire, Sciences Sociales, 4/2011 (66e année), p. 1.081-
1.091.
REVEL, Jacques; STRUCK, Bernhard; FERRIS, Kate. “Space and Scale in
Transnational History”. The International History Review. Dez. 2011, p. 573-
584.

83
LEVI, G. • História Total versus Global History

SALLMAN, Jean-Michel. Le grand désenclavement du monde, 1299-1600.


Paris: Payot, 2011.
WACHTEL, Nathan. Le retour des ancêtres. Les Indiens Urus de Bolivie, XXe-
XVIe siècle. Essai d’histoire régressive. Paris: Gallimard, 1990.
_____. A fé na lembrança. Labirintos Marranos. São Paulo: Edusp, 2009.
_____. Entre moïse et Jésus. Études marranes (XVe-XXIe siècle). Paris: CNRS Edi-
tions, 2013.

84
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Parte II
Estudos de Trajetórias

85
Investigação e formalização na
perspectiva da Micro-História
Alexandre Karsburg
Maíra Ines Vendrame

Introdução

Em uma palestra para alunos brasileiros de pós-graduação,


o historiador italiano Giovanni Levi polemizou ao afirmar que
95% dos trabalhos históricos são desinteressantes. Essa qualifica-
ção negativa dos textos acadêmicos, segundo ele, viria do fato
que nós, historiadores, não pensamos no leitor na hora da escrita:
“geralmente, os historiadores trabalham imaginando como leito-
res aqueles que estão no seu próprio departamento”, no caso, os
colegas e outros pesquisadores. Essa “escrita corporativa”, segun-
do Levi, “produz livros que não se podem ler, que são chatos, que
não têm público, ou têm um público de 50 pessoas”, ou seja, não
têm a possiblidade de falar para quem não esteja ligado ao campo
da história (LEVI, 2014, p. 5).1
Sabemos que existem historiadores valorizando as técnicas
narrativas já há algum tempo, mostrando habilidade na arte da

1
Evidentemente, gostaríamos de realizar uma reflexão mais ampla sobre esta
premissa, pois acreditamos que estender o público do trabalho do historiador é
um elemento importante de modificação, ainda que pequeno, de outros hábitos
culturais e políticos da população. Portanto, não é só uma questão de ampliar a
audiência, muito menos de entregar para ela aquilo que ela deseja consumir: se a
história enquanto disciplina tem por objetivo derradeiro a transformação social,
por que, então, a escrita da história não pode seguir o mesmo fim? Estamos cien-
tes de que para superar tal barreira uma modificação das técnicas narrativas não
é suficiente, mas, apesar dos riscos da simplificação excessiva, acreditamos que a
escrita universitária necessita urgentemente de uma transformação.

86
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

escrita e atingindo público mais amplo.2 Porém, o desafio para


quem deseja escrever para além dos muros universitários é, justa-
mente, manter-se dentro das exigências básicas da academia, su-
bordinando-se às regras do métier. Como bem lembra Benito
Schmidt, necessitamos “ter como guia de investigação um pro-
blema de pesquisa histórico formulado a partir de referências con-
ceituais e de fontes documentais apropriadas,” indicando “os pro-
cedimentos analíticos utilizados e os materiais empíricos que sub-
sidiaram a investigação” (SCHMIDT, 2012, p. 195). Dito de ou-
tra maneira, é nosso dever citar a origem e a localização das fon-
tes; fazer a análise dos documentos com as devidas críticas inter-
nas e externas; dialogar com a historiografia produzida anterior-
mente ao nosso próprio trabalho; utilizar referenciais teóricos e
metodológicos e trabalhar com conceitos. Em suma, não é tarefa
fácil respeitar os cânones e ainda produzir obras que despertem o
interesse em número maior de leitores. Criar um texto aprazível
sem cair na armadilha das simplificações e da rapidez é um desa-
fio que não para de se apresentar aos historiadores, tendo em vis-
ta a preferência do público por outras mídias para acessar a histó-
ria, como a TV, o cinema e, mas recentemente, as redes sociais.3
Apesar de não ser uma preocupação exclusiva destes, os
pesquisadores que adotam a micro-história como metodologia têm

2
Referimo-nos a pesquisadores universitários ligados à história, e não a jornalistas
que escrevem suas obras, ficcionais ou não, utilizando como pano de fundo al-
gum contexto ou personagem histórico. No Brasil, há exemplos de autores como:
Adriana Barreto de Souza (2008), Benito Schmidt (2004), Sidney Chalhoub (1990)
e Luiz Mott (1993). No exterior, são referência os conhecidos Carlo Ginzburg
(1987), Giovanni Levi (2000), Natalie Davis (1987) e Jacques Le Goff (1999),
além de outros que dão atenção para as questões narrativas.
3
O debate sobre a “história narrativa” não é recente, antes o contrário, vem de
longe e envolveu profissionais como Michel de Certeau (“Operação Historiográ-
fica”, 2002, p. 65-119) que visava, precisamente, equacionar o roteiro “pesquisar,
resumir e comunicar” a que faz referência Giovanni Levi. Além disso, “obras de
autores como Michel de Certeau, Paul Veyne, Paul Ricœur, entre outras, são
geralmente destacadas nesse sentido, mas há certo consenso de que Hayden White
e seu livro Meta-história figuram no centro dos questionamentos mais recentes
sobre a dimensão poética do ofício do historiador” (MARCELINO, 2012, p. 131).

87
KARSBURG, A.; VENDRAME, M. I. • Investigação e formalização
na perspectiva da Micro-História

se preocupado com a arte da narrativa de modo evidente, pois


acreditam que o “minucioso trabalho de laboratório [do historia-
dor] não deve permanecer escondido, e a receita não deve perma-
necer um segredo do cozinheiro”. Com essa metáfora, Levi quer
dizer que ao construirmos nossos textos devemos revelar a “recei-
ta” que nos fez chegar a esta ou àquela conclusão, mostrando o
itinerário da pesquisa e todos seus “ingredientes”, e não tentar
esmagar o leitor com nossas “pesadas interpretações gerais” que
acabam por excluir o verdadeiro “consumidor de livros de histó-
ria” (LEVI, 2009, p.13).4
Desse modo, o que buscamos apresentar neste artigo são
ideias baseadas em percursos de pesquisas de autores ligados à
micro-história, apontando caminhos que podem, ou não, servir
de exemplo. Embora o trabalho histórico deva priorizar os ar-
quivos, as fontes, a bibliografia, a teoria e a metodologia, a nar-
rativa também deve ocupar espaço nas preocupações dos histo-
riadores, principalmente dos iniciantes, pois quanto antes se
começa, mais cedo se pode atingir o objetivo da boa escrita.
Enquanto professores de teoria e metodologia, procuramos in-
centivar os alunos a arriscarem em seus textos, independente-
mente de seus temas, fontes, objetos e objetivos. Cobramos que
eles mostrem o percurso da pesquisa em sua totalidade, apre-
sentando as incertezas, os caminhos certos e errados, as dificul-
dades e como conseguiram, ou não, superá-las. Para isso, orien-
tamo-los a seguirem um roteiro básico nos textos, que pensem
em uma narrativa que descreva a investigação e a formalização.

4
A origem desta metáfora de Giovanni Levi está nas páginas introdutórias de
um livro de Carlo Ginzburg e Adriano Prosperi, chamado “Giocchi di Pazien-
za. Un seminario sul ‘Beneficio di Cristo’” (1975), onde eles chamam a aten-
ção para a tendência dos historiadores de apresentarem seus resultados elimi-
nando qualquer vestígio do processo, nem sempre linear, e nem sempre bem
sucedido, da construção das suas hipóteses e argumentos. A ideia de integrar as
incertezas à narrativa não está, portanto, ligada à tentativa de tornar o texto
mais “atraente”, mas exatamente colocar a serviço da inteligibilidade histórica
as ferramentas da narrativa.

88
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Em conjunto, estas etapas configuram um dos mais importan-


tes trabalhos do historiador.5

A investigação: revendo objetivos,


refazendo hipóteses

Considerando que o leitor destas linhas tenha escolhido o


tema, o objeto e os objetivos de sua investigação, o próximo passo
do trabalho é, portanto, a busca pelos documentos. Quando nos
deparamos com arquivos desconhecidos é importante investir al-
gum tempo entendendo o funcionamento deste arquivo, utilizan-
do-se, para isso, dos instrumentos de busca. Muitos historiadores
já enfrentaram o dilema de não saber exatamente qual procedi-
mento adotar ao estarem em arquivos com milhares de fontes à
sua frente. Em um texto envolvente e empolgante, o renomado
Carlo Ginzburg narra a sua trajetória de pesquisador e a relação
com o tema – feitiçaria – que o fez trabalhar anos a fio.6 Em certo
momento conta suas descobertas no Arquivo do Estado de Vene-
za quando era ainda um jovem pesquisador, no início da década
de 1960.
Entre 1961 e 1962, percorri a Itália seguindo os rastros dos
arquivos da Inquisição. Eu atravessava momentos de dúvida
e descontentamento; tinha a impressão de perder tempo. Mi-
nha hipótese inicial, sobre a feitiçaria como forma elementar
de luta de classe, não me satisfazia mais; mas eu não estava
em condições de substituí-la por outra, mais satisfatória. Fui
bater em Veneza, onde está conservado no Arquivo de Esta-
do um dos fundos inquisitoriais mais ricos: mais de 150 gros-

5
As etapas do trabalho do historiador foi tema de uma aula de Giovanni Levi,
em 2014, a alunos do Programa de Pós-graduação em História da Universida-
de Federal Fluminense (UFF) e do Programa de Pós-graduação em História
Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O resultado foi pu-
blicado em artigo intitulado: “Pesquisar, resumir, comunicar” (Revista Tempo,
vol. 20, 2014).
6
Ginzburg explicava isso em uma conferência em Tóquio no ano de 1992, por
ocasião do lançamento de seu livro História Noturna: decifrando o Sabá, traduzi-
do para o japonês.

89
KARSBURG, A.; VENDRAME, M. I. • Investigação e formalização
na perspectiva da Micro-História

sos envelopes repletos de interrogatórios e de processos, que


cobrem um período de dois séculos e meio [...]. Como eu não
sabia, literalmente, o que estava procurando, fazia pedidos
ao acaso – sei lá, envelopes números 8, 15, 37 – e punha-me a
folhear as páginas dos processos. Parecia-me estar jogando
uma espécie de roleta veneziana (GINZBURG, 2007, p. 302).

Incerto quanto aos rumos do trabalho, o novato pesquisa-


dor passou a jogar com a sorte para encontrar algo que o motivas-
se ou que lhe oferecesse um novo horizonte explicativo para a
hipótese que ele se propunha. Então, em meio aos fundos inquisi-
toriais, encontrou o que não esperava: um processo de 1591, de
um jovem pastor de gado chamado Menichino della Nota, que di-
zia sair quatro vezes por ano, à noite, em espírito, com outros
“nascidos como ele sob uma boa estrela, chamados benandanti”.7
Ginzburg explica que essa palavra era, para ele, totalmente des-
conhecida e incompreensível. Após ler as primeiras páginas do
processo:
Entrei num estado de agitação tão grande que tive de inter-
romper o trabalho. Enquanto eu passeava diante do arquivo
fumando um cigarro depois do outro, pensava ter tido uma
sorte enorme (...). O acaso tinha me posto diante de um do-
cumento totalmente inesperado: por que a minha reação ti-
nha sido tão entusiasmada? Era como se eu tivesse reconhe-
cido de repente um documento que me era perfeitamente ig-
norado até um instante antes; não só isso: que era profunda-
mente diferente de todos os processos de Inquisição com que
eu tinha me deparado até então (GINZBURG, 2007, p. 303).

Evidentemente, nem todos realizam descobertas, ao acaso


ou não, que resultam em entusiasmo dessa magnitude. Há quem
fique meses, anos trabalhando com documentos absolutamente en-
fadonhos, séries documentais sem fim como registros notariais, li-

7
O livro “Os andarilhos do bem”, lançado por Ginzburg, na Itália, em 1966,
conta a história de praticantes de um culto agrário de fertilidade na região do
Friuli, entre o final do século XVI e a primeira metade do XVII. Os andarilhos
se diziam defensores das colheitas contra bruxas e feiticeiros. Uma vez alvos da
Inquisição, foram assimilados aos feiticeiros e praticantes do Sabá diabólico.
No Brasil, a obra foi lançada em 1988.

90
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

vros de batismos, casamentos e óbitos, e precisam extrair deles algo


que vai além do que se pode ver em primeiro plano. Porém, gosta-
ria de chamar a atenção para a explicação dada por Ginzburg a
respeito do motivo que o fez se emocionar tanto com o referido
documento. Afinal, como reconhecer um documento que nos re-
vele algo a ponto de nos deixar desconcertados?
Para entendermos o entusiasmo de Ginzburg com aquela
descoberta inusitada, vale a comparação feita por Giovanni Levi,
que afirmou ser o trabalho do historiador semelhante ao do antro-
pólogo que busca significados nos comportamentos observados:
[...] estamos num lugar imaginário, em um cômodo do arqui-
vo onde há documentos que muitas vezes não encontramos
significado. Da mesma forma que fazem os antropólogos
quando estão em campo: em um determinado momento, os
documentos começam a ter algum significado [...]. Por isso,
os documentos mais interessantes não são os cotidianos, ba-
nais, evidentes para nós, mas sim os que dizem algo que, de
imediato, para nós, é incompreensível, misterioso, porque nos
sugerem a alteridade com o que estudamos, mas, ao mesmo
tempo, há algo que devemos interpretar e dar coerência com os
outros documentos evidentes e banais, já que esse tendem ao
anacronismo, porque os entendemos como se fossem
documentos atuais. Diante do documento “incompreensível”,
entendemos que há algo que deva ser reorganizado. Esse é o
trabalho dos antropólogos. Vão a uma ilha do Pacífico e pas-
sam dias sem saber de nada realmente; olham, escutam e,
uma hora, começam a perceber as lógicas (LEVI, 2014, p. 2).

Portanto, o arrebatamento de Ginzburg só foi possível por-


que ele não reconheceu naquele processo inquisitorial o que esta-
va habituado a encontrar em outros: era um processo “profunda-
mente diferente”, avaliou o historiador (GINZBURG, 2007, p.
303). É válido imaginar quantos, antes e mesmo depois dele, po-
dem ter manuseado o processo inquisitorial de Menichino della Nota,
o dito benandanti, e não terem percebido lógica alguma naquilo
que liam. A explicação para esta indiferença é que certos docu-
mentos não nos atraem porque nossas perguntas nos condicio-
nam a olhar para diferentes direções, pois estamos em busca de

91
KARSBURG, A.; VENDRAME, M. I. • Investigação e formalização
na perspectiva da Micro-História

outras respostas. Sendo assim, acabamos por não atribuir signifi-


cados a eventos como o presente naquele processo.
Para Ginzburg, contudo, a incompreensão inicial o fez per-
ceber que aquele caso em particular precisava ser desvendado, re-
organizado, explicado. O estranhamento do jovem pesquisador
italiano logo cedeu espaço para novos problemas, resultando no
surgimento de objetivos e hipóteses não previstos anteriormente.
O documento, assim, transformou-se em “excepcional”, pois, a
partir de determinadas perguntas, Ginzburg poderia acessar in-
formações da cultura das vítimas perseguidas pela Inquisição,
objeto de pesquisa “marginal e bizarro” no ambiente acadêmico
das décadas de 1950 e 1960 (GINZBURG, 2007, p. 299).8
Um importante ensinamento que podemos extrair deste
exemplo de Ginzburg – além do método narrativo de expor seus
dilemas – diz respeito à maleabilidade que os historiadores de-
vem ter quando se deparam com dificuldades. Descontente com
a pesquisa, o italiano percebeu que deveria substituir sua hipótese
inicial, que era ver na feitiçaria formas elementares de luta de clas-
se, por outra. Porém, não sabia qual seria essa hipótese. Essa é
uma questão relevante para o pesquisador: sempre devemos estar
dispostos a rever objetivos, reelaborar ou até mesmo abandonar
hipóteses, refazer perguntas, reconstruir objetos e, se possível,
encontrar as próprias metodologias de investigação quando as que
temos não nos servem. Se você chegar ao final de sua pesquisa
sustentando suas suposições iniciais, de duas uma: ou você já
começou o trabalho com tudo pronto, ou não pesquisou. Duran-
te o percurso da investigação é comum se apresentarem caminhos
não previstos pelo projeto original, fazendo com que ideias e hi-
póteses mudem ao longo do trabalho.

8
Ao longo de sua trajetória investigativa Ginzburg publicou uma série de artigos
e livros ligados ao tema feitiçaria, destacando-se: Os andarilhos do bem (1988); O
queijo e os vermes (1987); e História Noturna (1991).

92
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Métodos para reconstrução da história

Ao tomar um sujeito qualquer como objeto de estudo, é


fundamental percebê-lo em interação com o contexto em que vi-
via, pois o meio e a época são fatores importantes para compreen-
der a trajetória e os acontecimentos que o envolveram. Contudo,
essa tentativa de reconstituição do contexto não deve nos condi-
cionar a acreditar que o indivíduo deva ser analisado como uma
produção óbvia do cenário, pois, assim como qualquer sujeito,
todos são absolutamente particulares, mas só possíveis de enten-
der com a ampliação do campo de observação à sua volta. Para
realizar tal tarefa, pode-se aplicar um método de pesquisa que
muitos historiadores usam: o “recorte horizontal”, algo pareci-
do ao “método onomástico” popularizado por Carlo Ginzburg
(GINZBURG; PONI, 1989b).9
Antes de ser uma busca ao acaso, como fez Ginzburg no
Arquivo de Veneza, o recorte horizontal orienta que devemos ele-
ger um centro, um alvo bem específico, que pode ser o nome pró-
prio de alguém ou um recorte temporal e espacial preciso (de acor-
do com a quantidade e tipologia de documentos à disposição).
Após isso, passa-se a procurar todo tipo de informação e de docu-
mentos: jornais, relatórios oficiais, correspondências paroquiais
e policiais, inventários e testamentos, processos-crime, registros
notariais de compra e venda de terras, registros de batismo, casa-
mento e morte, etc., ou o que estiver ao nosso alcance nos arqui-
vos. Nenhum documento deverá ser excluído a priori, bem como
nenhuma notícia deve ser eliminada. A ideia é mergulhar total-
mente em um tempo.

9
O método onomástico faz uma referência genérica a um procedimento de pes-
quisa que se inspirava na demografia e estava ligada a certo tipo de documento,
no caso a documentação serial que poderia ser paroquial e notarial (GINZBURG;
PONI, 1989b, p. 174-175). No Brasil, alguns historiadores se dedicaram a pensar
as peculiaridades de tal método para as fontes brasileiras, como João Fragoso
(2002; 2006) e alguns autores presentes em dois livros organizados por Mônica
Ribeiro de Oliveira e Carla Maria Carvalho de Almeida (2006; 2009).

93
KARSBURG, A.; VENDRAME, M. I. • Investigação e formalização
na perspectiva da Micro-História

O recorte horizontal guarda similitude ao procedimento da


arqueologia na busca de material lítico para reconstrução dos há-
bitos humanos. Os arqueólogos, ao selecionarem uma área para
estudos, começam a escavar em forma de quadrículos, que po-
dem ser mais ou menos profundos de acordo com o que buscam.
O uso do recorte horizontal não se limita simplesmente a pinçar
informações a respeito do personagem histórico que buscamos e
excluir o restante, como se nada existisse para além dele. Os sujei-
tos devem ser linhas condutoras para nos guiar por diferentes con-
textos, tal como o “fio de Ariadne” conduz o pesquisador no labi-
rinto documental. Por estes caminhos nem sempre retos, vamos
percebendo que certas linhas convergem e partem dos nossos su-
jeitos, “compondo uma espécie de teia de malha fina”, dando “a
imagem gráfica do tecido social em que o indivíduo” estava inse-
rido (GINZBURG, 1989b, p. 174-75), mesmo sendo alguém de
elevada mobilidade geográfica. Estas linhas, portanto, revelam
outros nomes, indivíduos de estratos sociais diferentes, de posi-
ções políticas e religiosas diversas, de opiniões e ideias distintas
que, em certos momentos, se relacionam com aquele que investi-
gamos e estiveram diante do mesmo horizonte de possibilidades.
Enquanto o método onomástico tem como guia o nome e
as redes de relações pessoais (grupos humanos que buscam esta-
belecer estratégias de sobrevivência de todo tipo), o recorte hori-
zontal privilegia, num primeiro momento, a reconstrução dos con-
textos e suas interconexões; a seguir, busca entender como estes
contextos condicionam as escolhas dos sujeitos; e, por fim, por
que os indivíduos (ou grupos) agem de forma diferente quando
estão diante do mesmo campo de possiblidades. Seja como for, o
que se pretende com tais métodos é a imersão total em um passa-
do e em uma cultura diversa da nossa, para que se possa recupe-
rar, o máximo possível, os dilemas de personagens que viveram
num período específico, percebendo como eles participavam, in-
teragiam e respondiam a certos movimentos gerais da história
(WACHTEL, 2009, p. 33).

94
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Pode-se acessar o passado de diversas maneiras, seja por


um ou vários sujeitos, ou por eventos específicos, independente-
mente do tema. Voltar no tempo e nele se inserir, sem anacronis-
mos de qualquer natureza, pode revelar surpresas ao historiador.
Às vezes, um fato banal, sem qualquer importância aparente e
completamente desconhecido para a história, pode revelar infor-
mações desconcertantes. Por exemplo, o que a “trágica” morte de
um padre, numa pequena localidade, pode nos dizer a respeito de
práticas culturais de um dado grupo social? Ou ainda, por que
seria importante estudar esta morte e o que ela traria de contri-
buição para a história?
Pois bem, provando que toda história, por mais miúda que
seja, tem importância – desde que se façam as perguntas certas e
o objeto seja inserido em diferentes contextos –, discutiremos bre-
vemente a respeito de uma pesquisa que adotou o “recorte hori-
zontal” para mergulhar em um tempo e lugar específicos. Inserin-
do os indivíduos em seu próprio tempo e respeitando as lógicas
dos agentes que fizeram a história, foi possível analisar os ele-
mentos da cultura camponesa europeia de longa tradição que fo-
ram revividas pelos imigrantes do outro lado do Atlântico, no
caso em colônias do interior do Rio Grande do Sul entre 1878 e
1910 (VENDRAME, 2016). Com uma quantidade grande de fon-
tes de natureza diversa, reconstruíram-se muitas histórias parti-
culares que questionaram o que até então se conhecia sobre os
camponeses italianos que vieram para o sul do Brasil.
A pesquisa em questão inicia pela análise da morte do pá-
roco Antônio Sório, ocorrida em 03 de janeiro de 1900, em uma
colônia de imigrantes italianos no interior do Rio Grande do Sul.
O padre era originário da comuna de Zevio (Província de Verona,
Itália) e, assim como seus conterrâneos, veio para o Brasil tentar
conquistar prestígio material e imaterial. Ele chegou em 1881 para
“fazer a América”, ou seja, com a intenção de prosperar na vida,
expectativa essa partilhada pelos camponeses que abandonaram
a Itália nas últimas décadas do século XIX. A morte do padre,
ocorrida 19 anos depois de sua chegada, aparentemente despro-

95
KARSBURG, A.; VENDRAME, M. I. • Investigação e formalização
na perspectiva da Micro-História

vida de significados, fez com que diferentes versões passassem a


circular na pequena comunidade de Silveira Martins, sede do nú-
cleo de colonização italiana no centro do Rio Grande do Sul,
fundada em 1877. Segundo a versão oficial presente no Livro de
Registro de Óbitos de Silveira Martins, o padre falecera em decor-
rência de ferimentos ocasionados por “queda do cavalo” – e as-
sim foi divulgado em um jornal local. Contudo, como anexo ao
registro notarial constava que o sacerdote havia sofrido “violação
da bexiga”, vindo a falecer no dia 3 de janeiro de 1900. Neste
mesmo anexo existia menção a um relatório do médico que aten-
deu o padre, porém, o mencionado relatório foi “arrancado” do
Livro de Registro sem que se saiba por quem e quando. Os jornais
locais da época (da cidade de Santa Maria, distante da colônia 23
km) pouco revelaram, a não ser a informação que o médico Victor
Teltz, “especialista em doenças sifilíticas e problemas urinários”,
nada pode fazer para salvar o padre, “julgando o caso perdido”.10
A população da colônia Silveira Martins, porém, não acre-
ditou na versão de “queda do cavalo”. Para ela, o padre havia
sido espancado por homens que buscavam vingança por algo que
ele havia cometido. Segundo contemporâneos do padre falecido,
que escreveram livros de memórias ou manuscritos sobre a colo-
nização italiana no Rio Grande do Sul alguns anos após a morte,
o sacerdote fora atacado e surrado no “baixo ventre”, sendo alvo
de um crime (VENDRAME, 2016, p. 47-48). Depois de décadas
de silêncio, alguém resolveu reabrir a ferida que foi a morte de
Antônio Sório, dando novos contornos à história. Em 1949, um
sacerdote chamado Pedro Luiz, pertencente a Pia Sociedade das
Missões (Padres Palotinos),11 escreveu que o pároco foi morto por

10
Jornal O Combatente, 07 e 11 de janeiro de 1900. Arquivo Casa de Memória
Edmundo Cardoso (VENDRAME, 2016, p. 40).
11
Ordem religiosa fundada por Vicente Pallotti, na Itália, na primeira metade do
século XIX, que tinha por lema Ora et Labora (Rezar e Trabalhar). A ordem
atuava para concretizar o projeto de romanização da Igreja, ou seja, diminuir
o poder leigo nas igrejas e transferi-los para os sacerdotes. Os padres palotinos
chegaram à região de colonização italiana no Rio Grande do Sul em 1886.
Sobre este assunto, consultar: BIASOLI, 2010.

96
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

“maçons” de Silveira Martins, crime levado a cabo por três italia-


nos que pertenciam à maçonaria local. A versão de crime orques-
trado por maçons ganhou status de verdade para os descendentes
de imigrantes que viviam na região, pois a maçonaria, como eles
sabiam, lutava contra a Igreja Católica e seus representantes, sen-
do assim, não era impossível que tenham assassinado um padre.
Precisou de mais algumas décadas para que outra versão viesse à
tona, essa mais antiga e complexa do que a morte orquestrada
por maçons de acordo com a hipótese do padre Pedro Luiz.
Segundo Luiz Eugênio Véscio (2001), quem chegar à re-
gião para entrevistar os moradores irá ouvir que a pequena Silveira
Martins está “parada no tempo” por maldição de um padre morto
há 100 anos. Para eles, Antônio Sório havia sido atacado por ma-
çons e agonizado por três dias, tempo suficiente para lançar a tal
maldição à cidade. Porém, o entrevistador, ao fazer-se mais conhe-
cido dos habitantes do lugar, poderá escutar outra versão sobre a
morte do padre: Antônio Sório fora punido por transgressões co-
metidas que ofendiam a “honra” de indivíduos do lugar.
Aproveitando que o historiador Luiz Eugênio Véscio não
explorou as contradições das versões, aprofundou-se o estudo em
alguns aspectos da cultura camponesa dos imigrantes, não com a
ideia de revelar a “verdade” sobre o ocorrido, antes para buscar as
lógicas que davam sentido para a versão do crime. Nesse ínterim,
analisaram-se os diferentes contextos daquele período (político,
social e, principalmente, cultural), utilizando, para isso, uma gama
variada de fontes históricas: processos-crime envolvendo italia-
nos que chegaram ao Rio Grande do Sul no final do século XIX;
cartas, memórias e manuscritos desses mesmos imigrantes; jor-
nais do final do século XIX e início do XX; registros notariais de
compra e venda de terra; livros de nascimento, casamento e óbi-
to; e, por fim, o diferencial da pesquisa: inquéritos, processos e
cartas guardadas em arquivos do norte italiano, de inúmeras co-
mune da Itália, como Treviso, Bassano del Grappa, Padova, Vero-
na, Veneza, dentre outras. Desses locais é que partiram os cam-
poneses para o sul do Brasil.

97
KARSBURG, A.; VENDRAME, M. I. • Investigação e formalização
na perspectiva da Micro-História

Reconstruindo os passos de alguns camponeses italianos,


desde a Itália até o sul do Brasil (incluso o padre Antônio Sório),
foram revistas certas ideias presentes na historiografia tradicional
sobre imigração. A principal diz respeito às condições sociais da-
queles que deixaram o local de origem rumo ao Brasil. Concluiu-
se que a primeira leva de imigrantes, das décadas de 1870 e 1880,
não era de miseráveis que abandonaram uma vida de opressão e
pobreza tentando a sorte no Brasil Meridional. A maioria dos
camponeses vênetos, pelo menos os que emigraram naquele perí-
odo, tinha alguma condição financeira para empreender tal via-
gem. Além disso, esses italianos possuíam uma sólida rede de re-
lações sociais que permitiu uma transferência segura para o Bra-
sil, o que garantiu, também, que no local de destino conseguis-
sem apoio para iniciar a nova vida. A maior riqueza destes italia-
nos não era material, antes imaterial, ou seja, as redes de relações
baseadas no compadrio, no parentesco e na família forneceram
as bases para a reconstrução de um estilo de vida camponês na
América do Sul. Porém, enquanto os vínculos sociais podiam ser
construídos ou perdidos, fortalecidos ou enfraquecidos, havia um
elemento da cultura camponesa que dificilmente poderia ser re-
cuperado: a honra.
A “honra familiar” estava no centro da “moral rústica” dos
italianos, e a forma de preservá-la passava por diversas práticas
de justiça que, muitas vezes, prescindia das autoridades externas,
como o Estado. Os italianos tinham suas próprias maneiras de
resolver impasses na vizinhança e na comunidade, articulando a
formação de “tribunais de grupo” cujos membros eram as pesso-
as de maior respeitabilidade do local – típica prática camponesa
oriunda de uma Europa rural mediterrânica. Quando alguém ofen-
dido buscava a “honra de volta”, a comunidade avaliava se a con-
tra-ofensa havia sido legítima. Caso houvesse aceitação, encerra-
vam-se, ali, os atos de vingança, e o silêncio imperava na comuni-
dade para a preservação da paz. Um dos méritos da pesquisa foi
captar as possíveis intenções dos imigrantes que silenciaram so-
bre a morte do padre Antônio Sório. Apesar de existir a versão do

98
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

crime por vingança, esta explicação não era contada “à voz aber-
ta” na região onde se deu o fato. Foi preciso juntar os fragmentos
para entender que havia uma lógica por trás desta versão, bem
como o silêncio que prevaleceu após a morte.
Reconstruir detalhadamente os diferentes contextos que se
amalgamaram localmente no final do século XIX e início do XX foi
importante para perceber as divisões e tensões existentes na comuni-
dade. Dentre tantas constatações da pesquisa, talvez a principal te-
nha sido a descoberta das normas que estavam na base das práticas
de justiça dos italianos, que podiam ser tão ou mais severas que a
justiça do Estado. O controle comunitário sobre os comportamen-
tos era, muitas vezes, opressivo e constrangedor, como bem demons-
tra o próprio padre Antônio Sório em uma carta escrita poucos
meses antes do falecimento. Neste documento, o sacerdote comen-
ta, com um colega de batina, estar temeroso por algo que possa lhe
acontecer: “caro amigo, andamos mal com este tempo ruim e com
certos ares que inspiram vingança” (VENDRAME, 2016, p. 357).
A versão de crime por vingança ficou circunscrita a poucas
vozes. Segundo se acredita, não foi aberta investigação porque imi-
grantes e autoridades não queriam agravar ainda mais as disputas e
problemas comunitários, pois um processo-crime colocaria em ex-
posição indivíduos, famílias e as autoridades públicas, essas res-
ponsáveis por manter a ordem e controle político local. Assim, in-
dependentemente da veracidade da explicação de vingança de hon-
ra, essa versão permitiu inferir sobre as várias maneiras que os imi-
grantes tinham para resolver impasses entre as famílias na comuni-
dade, indicando para os recursos que poderiam ser acionados quan-
do eventos rompiam com o ideal de equilíbrio almejado por todos.
A realidade complexa e conflitante, percebida através das diferen-
tes explicações sobre um mesmo fato, propiciou um melhor enten-
dimento a respeito dos contextos vividos e das percepções dos imi-
grantes. O evento em si (a morte do sacerdote) serviu como pretex-
to, ou fio condutor, para a referida pesquisa, sendo menos relevan-
te do que os contextos que se conseguiu reconstruir e interligar e
que permitiram distintos questionamentos.

99
KARSBURG, A.; VENDRAME, M. I. • Investigação e formalização
na perspectiva da Micro-História

Para finalizar esta parte da reflexão, gostaríamos de refor-


çar que o método do recorte horizontal pode ser adotado por qual-
quer pesquisa, independentemente do objeto, dos objetivos e da
natureza das fontes à disposição. Também queremos reforçar que
um método pode ser construído e aprimorado ao longo do traba-
lho, adaptando-o ou agregando outros métodos, como a busca
pelo nome dentro de séries documentais diversas tendo alguns
eixos temáticos como referência. Passados vários meses de inves-
tigação em diferentes e distantes arquivos, a quantidade de fontes
históricas pode ser surpreendente, não somente pelo ineditismo
delas, mas pela qualidade. Assim, seguir um ou mais nomes se
apresenta como uma estratégia que orienta a pesquisa na busca
do maior número possível de informações sobre os indivíduos e
os contextos nos quais estavam inseridos, permitindo, também, a
realização de recortes verticais para analisar as camadas profun-
das da sociedade, indo além das práticas e aspectos mais visíveis,
captando aquilo que nem os personagens estudados tinham cons-
ciência ou compreendiam. E, depois de muito trabalho em arqui-
vos, chega-se ao momento de encerrar a pesquisa e passar para a
segunda tarefa do historiador: a formalização, ou, parafraseando
Levi (2014, p. 2), resumir milhares de páginas de anotações em
algo inteligível e atraente ao leitor.

A formalização: exercitar o poder de síntese

Uma das tarefas mais difíceis para os pesquisadores, princi-


palmente para os iniciantes, é a de encontrar, na narrativa, o justo
equilíbrio entre as fontes, a bibliografia e nossas próprias ideias.
Muitas vezes, temos uma quantidade tão grande de fontes que nos
sentimos “afogados” em nomes, números e acontecimentos.12 A

12
Nesse sentido, vale a leitura do artigo de Fragoso (2002, p. 41-70), que declarou ser
a época da história serial um período onde pesquisadores se “afogavam em núme-
ros”. Logo a seguir, com o aparecimento da micro-história italiana, que “preten-
dia enxergar a vida escondida em números”, os historiadores passaram a traba-
lhar com nomes, muitos nomes aliás, e o afogamento foi novamente inevitável.

100
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

sensação em relação à bibliografia não é diferente, ainda mais


nos últimos anos, pois, com o advento da internet, temos à dispo-
sição uma quantidade absurdamente grande de artigos, disserta-
ções, teses e livros. Estabelecer um diálogo com a bibliografia que
nos antecede amalgamando análise de fontes históricas exige, aci-
ma de tudo, paciência. Ao errar na dosagem de algum ingredien-
te, seja nas fontes, seja na bibliografia, podemos deixar o leitor
perdido, confuso e, consequentemente, desinteressado por nosso
estudo.
A formalização é imprescindível para quem trabalha com
séries documentais extensas, como compra e venda de terras, re-
gistros paroquiais de batismo, casamento e morte, inventários post-
mortem, processos-crime e outras tipologias de fontes seriadas. Para
que o leitor entenda aonde queremos chegar e o que pretendemos
dizer quando apresentamos para ele a quantidade de fontes traba-
lhadas, a criação de gráficos, tabelas e quadros explicativos se tor-
na absolutamente obrigatória. Se assim não for, o leitor até pode-
rá ficar impressionado quando informamos que em nossa pesqui-
sa analisamos “500 inventários e 1.000 registros de compra e ven-
da de terras” (exemplo hipotético), mas não passará disso.
A maior contribuição das pesquisas quantitativas são nos-
sas conclusões após a análise das séries documentais, principal-
mente se elas apresentaram explicações que contestem os mode-
los estabelecidos, como, por exemplo, a lógica não capitalista do
mercado de terras entre camponeses europeus da época moderna
(LEVI, 2000), ou as práticas de justiça autônoma dos imigrantes
italianos que prescindiam do Estado brasileiro para resolver os
impasses (VENDRAME, 2016). Mas, como nos avisa Levi, é pre-
ciso tomar cuidado nesse esforço de síntese:
Essa compilação é o lugar no qual os historiadores geralmen-
te fazem o máximo de falsificações. Eu penso na história dita
quantitativa e sei que, com percentagens, podemos mostrar o
que quisermos, podemos manipular os números como dese-
jarmos. Nos anos 1960 e 1970, houve um período em que a
história quantitativa parecia mais científica. Os números são
mais impressionantes e, por isso, buscávamos quantificar as

101
KARSBURG, A.; VENDRAME, M. I. • Investigação e formalização
na perspectiva da Micro-História

coisas. O problema da história não é quantificar, mas formalizar, o


que é muito diferente: [precisamos] encontrar uma forma científica
de comunicar as coisas e não de transformar tudo numa aparente
cientificidade positivista (LEVI, 2014, p. 3. Grifos nossos).

Uma maneira de tentar escapar das falsificações ou da “apa-


rente cientificidade positivista” que a quantificação pode trazer é
o método de confrontar fontes de natureza diversa, partindo do
pressuposto de que certas questões não podem ser compreendi-
das ou visualizadas apenas em um tipo de documento. É o que
nos ensina a micro-história italiana, ou seja: devemos realizar um
mapeamento dos comportamentos sociais, políticos e econômi-
cos locais através da análise sistemática de fontes de origens varia-
das (GRENDI, 2009; LEVI, 2000). E, para nos guiarmos em meio
a esse universo tão diferente de fontes, o nome, como afirma-
mos anteriormente, é um bom fio condutor, tornando-se uma
linha que orienta a investigação nas diversas séries documentais
(GINZBURG, 1989b). Mas não pensemos que um único nome
nos baste, pois, a partir dele, outros surgirão, o que irá sempre
exigir a construção de breves biografias e a reconfiguração das
relações sociais.
A formalização, contudo, também é necessária para aque-
les que trabalham com um único indivíduo ou mesmo para os
que não têm documentos seriais. Essa situação é bastante frequente
atualmente: buscar acessar a história a partir de objetos circuns-
critos, seja um sujeito, uma vila, cidade, fábrica, grupos de traba-
lhadores, seja por uma dada situação ou fato. Estes objetos, por
sua vez, também estão reduzidos há um tempo bastante preciso,
com recortes temporais cada vez menores. Não é tarefa fácil mos-
trar que tais objetos de pesquisa e objetivos são relevantes e que
podem propor novas perguntas para a história. Porém, há quem
se destaque nesta tarefa de acessar o passado pelo ponto de vista
de um ou de poucos indivíduos, já que conseguem questionar cer-
tos consensos historiográficos que estão há longa data estabeleci-
dos. Os estudos biográficos, ou de trajetórias, ganham destaque
nesse sentido.

102
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Antes de tudo, referimo-nos ao tipo de biografia que não


toma o sujeito como alguém a ser idealizado, cultuado ou heroi-
cizado.13 Embora esse modelo de biografia ainda exista, desde há
algumas décadas os pesquisadores analisam o percurso individual
inserindo-o em diferentes temporalidades, contextos e situações.
O biografado deixa de ser pensado como um sujeito imune às
dúvidas e incertezas da vida, e passa a ser estudado em toda sua
contradição. A biografia deve partir do pressuposto que homens
e mulheres são dotados de racionalidade própria, ainda que limi-
tada, possuem horizonte de expectativas e possibilidades em cons-
tante mudança e, acima de tudo, que o destino deles não está dado
desde o início. Toda vida é marcada por indeterminismos resul-
tantes de situações políticas, econômicas, religiosas, comunitá-
rias, etc. que fogem ao controle pessoal, mas é com base nessas
situações que se devem fazer as escolhas. A biografia complexifi-
ca as histórias particulares, relacionando-as e não as isolando da
história geral (KARSBURG, 2015, p. 32-33).
Quando procuramos um sujeito nas fontes, devemos ficar
atentos a outros que, de alguma maneira, se cruzam à trajetória
que queremos construir. Alguns personagens mantêm relação mais
próxima, outros nem tanto, e cada um destes indivíduos pode ser o
nó de uma complexa rede de relações (LEVI, 2000). Reconstruir
essas teias só é possível com a investigação sistemática em diferen-
tes fontes, criando banco de dados para cada ocorrência nominal
que encontrarmos. A partir do cruzamento de informações pode-
remos alcançar detalhes negligenciados por visões demasiado pa-
norâmicas. Desse cotejamento de fontes, devem emergir os contex-
tos que os indivíduos estão inseridos – “mas não quaisquer contex-
tos, antes aqueles em que os sujeitos efetivamente participam, que
os envolvem, condicionando suas escolhas e neles interferindo”
(KARSBURG, 2015, p. 34).

13
Para acompanhar a trajetória do gênero biográfico na literatura ocidental, in-
dicamos a leitura da obra de Dosse (2009) e Schmidt (2012). O texto de Gio-
vanni Levi, “Os usos da biografia” (2006, p. 167-182), traz uma discussão mais
clara sobre as distintas formas de biografia.

103
KARSBURG, A.; VENDRAME, M. I. • Investigação e formalização
na perspectiva da Micro-História

Contudo, certos contextos só podem ser explicados recor-


rendo a uma análise vertical, algo que seja mais profundo do que
o recorte horizontal que falamos em outra parte deste artigo. É o
próprio historiador quem deve saber e ter sensibilidade para perce-
ber o que deve ser mais bem esclarecido, buscando, então, biblio-
grafia de apoio para elucidar questões que se apresentam para
além do contexto que envolve o personagem. Independentemen-
te de realizarmos biografia ou trajetória, toda ou parte da vida de
um sujeito,14 nada impede que retrocedamos no tempo para me-
lhor entendermos certos comportamentos e contextos. Ao recons-
truir a trajetória de alguém que viveu no século XX, por exemplo,
podemos voltar alguns anos, séculos e até milênios, dependendo
do caso. Uma vez respondidas às perguntas, o que pode levar uma,
duas ou mais páginas do texto, devemos retornar para o tempo
do nosso personagem, sob o risco de nos perdermos na narrativa
e confundir o leitor.
Quando se trabalha com histórias de vida, devemos adotar
certos procedimentos metodológicos para evitar interpretações
apressadas e imprecisas. Relacionar nossos sujeitos a outros se-
melhantes é imprescindível, pois, assim, mais longe ficaremos do
erro da generalização, que é acreditar que o particular explicaria
o grupo, e do equívoco da simplificação, como se o grupo fosse
capaz de esclarecer a existência do particular, condicionando o
indivíduo e não lhe dando margem de liberdade ou criatividade.
Outro problema recorrente é supervalorizarmos os sujeitos. Por
mais que sejamos tentados a aceitar a singularidade daqueles que
estudamos, não podemos afirmar que eles foram os únicos a pen-
sar e a agir desta ou daquela forma.
É certo que toda trajetória é singular, mas por mais que o
protagonismo dos indivíduos seja evidente, uma vida só faz senti-
do se confrontada a outras, preferencialmente de pessoas pareci-
das no tempo e no espaço e colocadas diante dos mesmos hori-

14
Sobre as sutis diferenças entre biografia e trajetória, foi escrito um pequeno
texto publicado em E-book (KARSBURG, 2015, p. 32-52).

104
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

zontes de possibilidades (BOURDIEU, 2006, p. 183-191). A par-


tir desse procedimento metodológico chegaremos às similarida-
des e diferenças entre elas, e, quanto mais as compararmos, mas
detalhes surgirão; detalhes, aliás, que podem revelar pormenores
importantes que comporão a identidade dos sujeitos. Para tornar
mais fácil o entendimento, apresentamos abaixo um modelo in-
terpretativo construído a partir do paradoxo “excepcional/nor-
mal” – expressão criada por Edoardo Grendi (1977; 2009) e das
sugestões de Ginzburg (1989b, p. 176-177) – e da análise de bio-
grafias de Giovanni Levi (2006):

Modelo “excepcional/normal” para interpretação de sujeitos históricos.

Antes de explicarmos a tabela acima, lembramos que as


escolhas das categorias de análise e mesmo a pontuação são arbi-
trárias. Outro pesquisador pode perfeitamente criar categorias
diferentes e alcançar pontuação distinta. Mas, independentemen-
te das opções do pesquisador e dos resultados atingidos, os perso-

105
KARSBURG, A.; VENDRAME, M. I. • Investigação e formalização
na perspectiva da Micro-História

nagens analisados sempre irão se situar entre um e outro extremo


(com mais ou menos pontos, mais ou menos representativos), já
que a busca envolve encontrar os sujeitos de “carne e osso” em
toda sua complexidade. Se analisados em comparação a outros,
veremos que não existem indivíduos completamente excepcionais
ou totalmente normais.
Na tabela, realizamos o confronto entre João Maria de
Agostini – um eremita italiano considerado santo por milhares
de pessoas e que se fez missionário no Brasil do século XIX –
com os religiosos da Ordem dos Capuchinhos, também italianos
e que igualmente estiveram no Brasil naquele século. Diante de
horizonte de possiblidades similares, o eremita e os capuchinhos
tentaram concretizar seus objetivos adequando-se às exigências
do Estado Imperial brasileiro que buscava trazer os moradores
mais afastados para a órbita de controle do Estado, como indíge-
nas e sertanejos (KARSBURG, 2014). Nem sempre a atuação
daqueles esteve em sintonia com os objetivos das autoridades bra-
sileiras, o que resultou em investigações, deportações e tensão entre
Estado e Igreja. Um dos resultados desse atrito interinstitucional
foi a produção de documentos variados que permitiram perceber
a atuação prática dos missionários religiosos daquele século.
É correto acreditar que Agostini tinha singularidades, mas
foi a conjugação de fatores que o transformaram em santo popular
ainda em vida (as categorias “e”, “f ” e “l” foram as mais próximas
do modelo de missionário “excepcional”). Por outro lado, sua ins-
piração e métodos de atuação não eram estranhos ou incomuns ao
século XIX (as categorias “a”, “b”, “c”, “g” e “k” estão localizadas
próximas do modelo “normal”), tendo em vista a presença de fra-
des pregadores realizando trabalhos evangélicos pelo interior brasi-
leiro naquele tempo, no caso os capuchinhos italianos.15

15
Para se chegar aos dados apresentados na referida tabela foi preciso analisar
grande quantidade de documentos de natureza diversa e provenientes de dife-
rentes agentes históricos, bem como leitura bibliográfica de vanguarda. Para
mais informações, consultar: KARSBURG, 2014.

106
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Justificamos a utilização da tabela acima como uma forma


de resumir o trabalho de uma pesquisa sem cair em reducionis-
mos e generalizações. Esse procedimento visa escapar de certas
armadilhas, como a de acreditar que nossos sujeitos podem ser
explicados pelo contexto ou, ao contrário, que eles exemplifiquem-
no. Para tornar a análise complexa, é fundamental procurar cap-
tar semelhanças e diferenças entre os indivíduos de um mesmo
tempo, principalmente quando há um contexto comum que os
condiciona. O tema da excepcionalidade/normalidade, portan-
to, deve estar ligado à questão sobre o que se pode perceber de
uma trajetória “particular”, como o singular se articula ao geral e
vice-versa, captando o dinamismo e fluidez da vida, uma vez que
o trabalho do historiador não é o de celebrar a singularidade ab-
soluta, mas extrair uma questão geral ou um problema geral de
pesquisa, necessariamente limitada e circunscrita, para, a partir
do caso particular, chegar a algum outro lugar. Desse modo, pare-
ce-nos que a questão a abordar é a relação entre o individual e o
geral e o que se pode alcançar dessa análise.

Considerações finais

Um dos momentos cruciais da tarefa do historiador é a


narrativa, pois é a partir dela que iremos apresentar os resultados
de nosso trabalho aos leitores. A investigação e a formalização
(pesquisa e resumo) são partes importantes e necessárias, mas a
comunicação não ganha tanta atenção quanto deveria. Embora
não seja uma preocupação recente, os pesquisadores ligados à
micro-história italiana estão voltados às questões da narrativa
ensinando, de modo prático e teórico, maneiras para que nossos
textos atinjam público mais amplo, ultrapassando os muros aca-
dêmicos. A proposta deste artigo foi a de refletir a respeito da
possiblidade de apresentar, na própria narrativa, o percurso de
uma investigação em sua totalidade, desde a procura pelas fontes
até a análise e formalização. Para tanto, foram utilizados exem-

107
KARSBURG, A.; VENDRAME, M. I. • Investigação e formalização
na perspectiva da Micro-História

plos de pesquisas que descreveram seus roteiros de investigação


(como a de Ginzburg), revelando as dificuldades e os meios para
superá-las. Dentre os caminhos para enfrentar e vencer os obstá-
culos, a adoção e adaptação de certos procedimentos nos parece-
ram boa alternativa, surgindo métodos como o “recorte horizon-
tal” e o modelo “excepcional/normal” para interpretação de su-
jeitos históricos.
Mesmo sabendo que devemos seguir as normas que regem
a escrita acadêmica, nada impede que construamos textos pen-
sando em um público maior, buscando um estilo narrativo que
interaja com o leitor. Por isso, antes de começarmos a escrever
temos que nos perguntar quem serão nossos leitores, ou melhor,
para quem escreveremos? Com tantos anos de experiência, a crí-
tica de Giovanni Levi, que apresentamos no início deste artigo,
deve ser levada em consideração, afinal, se 95% dos textos produ-
zidos em universidades são desinteressantes, algo pode estar equi-
vocado.
Não estamos afirmando que os historiadores devam pen-
sar seus trabalhos para se tornarem best-sellers. Em busca de reco-
nhecimento, seria reprovável aderir ao método utilizado por jor-
nalistas quando, ao escrevem sobre algo ou alguém, não apresen-
tam a localização das fontes e nem fazem questionamento delas
(SCHMIDT, 1997). Contudo, o mais execrável para o historiador
seria adotar o procedimento dos meios de comunicação de massa,
como a TV, onde “as coisas devem ser imediatamente compreensí-
veis, ainda quando não são verdadeiras” (LEVI, 2014, p. 7). Nossa
tarefa, portanto, se não é concorrer com as mídias, ao menos é
tentar contrapor o simples com o complexo, o rápido com o len-
to, conduzindo nosso leitor por caminhos que ele desconhece.
Giovanni Levi, ao comentar sobre as habilidades do amigo Carlo
Ginzburg, assim se refere:
Ele guia o leitor em 200, 250 páginas por ruas misteriosas.
Não sabes aonde irás. No final, muitas vezes, diz: “essa era
uma rua sem significado”. Mas, ao final, diz aonde quer nos
conduzir. Acho essa técnica muito persuasiva. Uma das cau-

108
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

sas do êxito de Carlo Ginzburg é sua capacidade literária,


sua capacidade de convencer, porque o leitor já está hipnoti-
zado quando chega à página 200, num labirinto e ansioso
para saber o que vai acontecer no final. É como uma novela
policial. Não é coincidência que, frequentemente, Ginzburg
faça relações entre história e novela policial, porque nossa
investigação, muitas vezes, é semelhante à investigação poli-
cial, procuramos coisas sem saber quem é o assassino (LEVI,
2014, p. 4).16

Para seguir a proposta de Ginzburg, não devemos sobre-


carregar o leitor passando para ele, já de início, todas as informa-
ções que temos. Evidentemente, não podemos abandonar certos
procedimentos que necessitam estar na introdução de qualquer
texto: colocar o tema, o objeto e os objetivos de forma clara e
direta; situar o leitor espacial e temporalmente; mostrar as fontes
que iremos utilizar; apresentar e discutir com a bibliografia que
nos serviu de referência; oferecer hipóteses; expor o referencial
teórico e metodológico; e indicar qual a contribuição que dare-
mos para o tema proposto. Apesar de termos que seguir tal rotei-
ro, não há necessidade de adiantar as conclusões, dar o nome do
“assassino” logo de início.
No trajeto da escrita devemos guiar o leitor com paciência
pelas “trilhas da floresta”, não necessariamente “levando-o pela
mão”, mas ir disponibilizando dados para que ele mesmo se sinta
participante da história que construímos. Nesse ínterim, não está
vedado o uso da imaginação, porém, ao contrário do jornalista
ou do autor de obras ficcionais, temos a obrigação de indicar ao

16
Carlo Ginzburg, em “O fio e os rastros” (2007), lembra como a narrativa do
romance moderno e do cinema poderiam ensinar o historiador a pensar o en-
quadramento dos seus problemas sobre outras bases. No livro “O Queijo e os
Vermes” (1987), Ginzburg tentava de algum modo incorporar a ideia de que
uma mesma história poderia ser contada de muitos modos, com resultados
cognitivos diferentes. Sabemos que o problema da narrativa não se resolve
apenas como uma questão de “técnica”, mas implica questões epistemológi-
cas mais profundas. A “capacidade literária” de Ginzburg, portanto, não é
apenas uma questão de técnica apropriada, mas está ligada a uma reflexão
mais elaborada que ainda merece novas análises.

109
KARSBURG, A.; VENDRAME, M. I. • Investigação e formalização
na perspectiva da Micro-História

leitor quando fazemos a utilização dela. É preciso balizar nossas


afirmações nas fontes que temos disponíveis e assinalar, pontual-
mente, quando recorremos à imaginação, através de palavras como
“verossímil”, “possibilidade”, “provavelmente”, etc.17 Por fim,
ressaltamos que assim como a investigação e a formalização –
elementos centrais deste artigo –, a arte da escrita envolve um
longo processo de aprendizagem que caminha ao lado da pesqui-
sa, da leitura e do debate.

Referências
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_____. “Alternativas metodológicas para a história econômica e social:
micro-história italiana, Frederick Barth e a história econômica”. In:

17
O livro de Natalie Zemon Davis, “O Retorno de Martin Guerre” (1987), nos
traz muitos bons exemplos de como o historiador pode usar a imaginação como
suporte para escrever seus textos.

110
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

ALMEIDA, Carla M. C.; OLIVEIRA, Mônica de (Orgs). Nomes e Nú-


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111
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112
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

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de Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Edusp, 2009.

113
Entre o duque de Caxias
e dois capitães pardos:
escolha biográfica e
escrita da história
Adriana Barreto de Souza

À frente de obras históricas do gênero sério, o autor em geral


coloca uma lista das cotas dos arquivos que vasculhou, das
coletâneas de que fez uso. Isso é muito bom. Mas não basta.
Todo livro de história digno desse nome deveria comportar
um capítulo ou [caso se prefira], inserida nos pontos de infle-
xão da exposição, uma série de parágrafos que se intitulari-
am algo como: ‘como posso escrever o que vou lhes dizer?’
Estou convencido de que ao tomar conhecimento dessas con-
fissões, inclusive os leitores que não são do ofício, experimen-
tariam um verdadeiro prazer intelectual. O espetáculo da
busca, com seus sucessos e revezes, raramente entedia. É o
tudo pronto que espalha o gelo e o tédio (Marc Bloch).

Desde que recebi o convite para participar deste evento,1 há


alguns meses, comecei a pensar como poderia contribuir para o
debate proposto. O que poderia parecer simples não foi assim tão
fácil, mesmo tendo escrito uma tese-biográfica sobre um persona-
gem de peso do panteão nacional brasileiro – o duque de Caxias.
Marc Bloch já apontava em seu clássico Apologia da História ou o
ofício do Historiador para nossa dificuldade, como historiadores,
em explicitar e abordar os bastidores do trabalho que realizamos.
Ou seja, para nossa dificuldade em abordar o modo como chega-

1
Refiro-me ao II Seminário Internacional Micro-História, Trajetórias e Imigração, rea-
lizado na Unisinos entre os dias 7 e 9 de junho de 2016.

114
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

mos a construir nossos objetos de pesquisa e o percurso que cum-


primos – entre acesso a arquivos, leitura das fontes e debates histo-
riográficos – para elaborar uma narrativa propriamente historio-
gráfica (BLOCH, 2001, p. 83).
Apesar dos mais de setenta anos que nos separam de Marc
Bloch, acredito que essa dificuldade ainda persiste. Enquanto os
antropólogos guardam um diário de campo e, em geral, se dedi-
cam a refletir sobre o processo de pesquisa, nós nos limitamos a
listar as fontes consultadas ao final dos trabalhos monográficos.
Ainda não desenvolvemos o hábito – como hábito, prática – de
refletir e escrever sobre uma pergunta simples, aquela proposta
por Marc Bloch na epígrafe desse artigo: “como posso escrever o
que vou lhes dizer?”2
Lembro que a primeira vez que fui instada a realizar essa
tarefa foi ainda durante o doutorado, quando recebi um convite
para participar do dossiê sobre biografia da revista Métis: História
& Cultura.3 Percebi ali, pela primeira vez, a dificuldade desse tipo
de exercício. A experiência foi boa, mas justamente por ter pos-
sibilitado a identificação de tal dificuldade. A partir de então, o
artigo tornou-se o ponto de partida de uma reflexão que – na mi-
nha avaliação – precisava ser amadurecida. Assim, alguns anos de-
pois, retomei o exercício em um trabalho interno, do Núcleo de
Estudos da Política (NUEP/UFRRJ). A boa recepção do novo texto
por alguns colegas, que começaram a usá-lo em sala de aula, me
incentivou a investir em outro artigo, que foi publicado em 2012 no
dossiê sobre biografia organizado por Márcia Gonçalves e Maria
da Glória de Oliveira, na revista de História da Historiografia.4

2
Essa reflexão de Marc Bloch me estimulou ainda a escrever um artigo sobre
minha experiência de pesquisa em arquivos militares. Ver: SOUZA, 2009.
3
O convite foi realizado por Benito Bisso Schmidt, a quem agradeço o incentivo
para que enfrentasse o tema. Trata-se do dossiê: Métis: História & Cultura. V. 2,
N. 3 (2003). Disponível em: <http://www.ucs.br/etc/revist as/index.php/me-
tis/issue/view/74/showToc>.
4
O dossiê encontra-se disponível em: <http://www.historiadahistoriografia.com.br/
revista/issue/view/HH9>. Agradeço às organizadoras o convite para participar
do dossiê.

115
SOUZA, A. B. de • Entre o duque de Caxias e dois capitães pardos

Nesse artigo, procurei refletir sobre uma experiência espe-


cífica – a de escrita de uma tese-biográfica sobre o duque de
Caxias. E, ao receber o convite para este evento, vi nele a possibi-
lidade de enfrentar um novo desafio: comparar a experiência de
escrita da tese com outra, completamente diferente, que venho
enfrentando em minha atual pesquisa: sobre dois capitães do Re-
gimento de Milícias de Homens Pardos do Rio de Janeiro. Daí o
título deste artigo: “Entre o duque de Caxias e dois capitães par-
dos: escolha biográfica e escrita da história”.
Sigo, nessa proposta, uma dica de Reinhart Koselleck. Ex-
plorando as mudanças de sentido ocorridas na palavra experiência
durante a época moderna, Koselleck afirma – a partir de outra
tradição historiográfica, a alemã – que, até aquele momento, expe-
riência guardava seu sentido primeiro, de exploração, de pesquisa
e de verificação, convergindo inteiramente para o significado en-
tão em vigor de história, bem como para o de método histórico,
com todas suas etapas de pesquisa e de verificação. Havia assim –
usando os termos do próprio Koselleck – uma dimensão ativa da
palavra experiência que, no inicio dos tempos modernos, foi gra-
dativamente amputada, colocada entre parênteses, até ser supri-
mida (KOSELLECK, 1997, p. 202). Minha intenção, nas próxi-
mas páginas, é justamente estabelecer um vínculo entre as inter-
venções metodológicas que realizei e as experiências vividas du-
rante cada uma das pesquisas. Ou seja, aquelas vividas na época
da tese e, agora, com a nova pesquisa.

Biografando o duque de Caxias

Meu interesse pela trajetória do duque de Caxias teve iní-


cio com a leitura – no âmbito do projeto A invenção do Exército
brasileiro – da mais importante biografia escrita sobre o duque de
Caxias, intitulada Vida do Grande Cidadão Brasileiro.5 Publicada no

5
Integrei a equipe do projeto, coordenado por Celso Castro – CPDOC/FGV. O
resultado foi um livro do mesmo título. Ver: CASTRO, 2002.

116
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

ano de 1878, pelo padre e político pernambucano Joaquim Pinto


de Campos, esta biografia é uma peça memorialista e, logo na
primeira leitura, reconheci em suas páginas mais um esforço da
velha tradição saquarema – consolidada na década de 1850 e, em
finais dos anos 1870, já bastante criticada – em preservar seus
mitos fundadores e um panteão nacional (CAMPOS, 1938).
O padre Pinto de Campos era sócio do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro (IHGB) e, além de pertencer a esse gru-
po de letrados comprometidos com a confecção de um projeto
nacional centralizador, havia ocupado por sete legislaturas uma
vaga na Câmara dos Deputados e, por várias vezes, havia sido
indicado para o Senado (GUIMARÃES, 1988).
A biografia do duque de Caxias não foi a primeira a que se
dedicou. Sete anos antes, em 1871, havia publicado outra, sobre a
trajetória de d. Pedro II. As razões que levaram o padre conserva-
dor a se interessar por biografias são anunciadas, por ele próprio,
logo nas páginas iniciais da biografia do duque de Caxias. Nela,
ele afirma que, em tempos modernos, a imprensa era bem mais
eficiente que os bronzes na tarefa de erguer monumentos, uma
vez que legava ao futuro nomes e feitos dos grandes da história
(CAMPOS, 1938, p. 9).
Foi essa biografia, escrita como monumento, que me mo-
bilizou. Ou seja, iniciei minha aproximação da temática “biogra-
fia” por meio do debate sobre a construção de memórias políti-
cas. Investia, então, nessa linha de pesquisa – até porque era a
parte que me cabia no projeto coletivo no qual estava inserida.
Levantei e li todas as biografias escritas sobre o duque de Caxias,
mapeei a data de publicação de cada uma delas, identifiquei várias
festas cívicas – quando em geral essas biografias eram publicadas
– até chegar a um amplo debate sobre a confecção de sua estátua
equestre, de um panteão em sua homenagem no centro da cidade
do Rio de Janeiro e de sua transformação em patrono do Exército
brasileiro (SOUZA, 2001a).
Tudo isso, no entanto, era obra do século XX. Ainda que a
temática e a abordagem fossem extremamente interessantes – e,

117
SOUZA, A. B. de • Entre o duque de Caxias e dois capitães pardos

até hoje, eu busco incentivar os alunos a explorá-la – na época,


em função das reflexões que já tinha iniciado durante o mestra-
do, não conseguia deixar de pensar sobre o século XIX. O traba-
lho de monumentalização era do século XX, mas quem era o du-
que de Caxias por trás desse monumento? Quem era o general
“pacificador” dos movimentos contestatórios do século XIX e
chefe militar do Partido Conservador?
O problema dessas perguntas é que elas me levariam – ine-
vitavelmente – a elaborar um projeto de tese com recorte biográfi-
co. E, naquele momento, finais dos anos 1990, a escolha ainda
era delicada. Considerando o personagem – um duque, general,
responsável pela “pacificação” do Império e transformado em
patrono do Exército, instituição que foi responsável por 21 anos
de ditadura – eu teria que enfrentar dois sérios problemas. O pri-
meiro deles era o debate – virulento à época – sobre o retorno da
biografia e, com ela, o fantasma da história événementielle, que vol-
tava a assombrar a historiografia com as novas experiências da
história política e suas técnicas narrativas (RÉMOND, 1996; FER-
REIRA & AMADO, 1998). Por aí, a minha escolha era fatal:
Caxias talvez fosse o melhor exemplo daquilo que seria rechaça-
do por este debate como símbolo de uma história menor – um
“grande homem”, um “homem de Estado”, o que aumentaria os
riscos de se cair numa “rasa história oficial”.
Imaginando de antemão essas críticas, construí uma estra-
tégia metodológica que conduziu toda a pesquisa nos arquivos e,
em seguida, orientou a estruturação da própria tese: a cada capí-
tulo, explicitava – com total clareza – os problemas que conduzi-
riam a narrativa.
O debate sobre o político, ao se fixar na ideia de “retorno”,
fazia menção aos combates contra a “história historizante”, que
funda a Escola dos Annales na década de 1930. E, nesse comba-
te, Lucien Febvre e Marc Bloch elaboraram um método crítico,
que reintroduziu o sujeito no centro da pesquisa historiográfica
(LE GOFF, 2001). O método é hoje lugar comum entre nós, his-
toriadores, aquilo que diferencia nosso trabalho, como profissio-

118
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

nais, de outros, que se propõem a refletir sobre o passado: são as


perguntas que fazemos – nossas hipóteses, diria Bloch – que con-
dicionam a análise (BLOCH, 2001).
Em diálogo com a tradição biográfica memorialista – bem
estruturada no caso do duque de Caxias – construí duas regiões
de interesse que orientaram todas as perguntas da pesquisa. A
primeira dessas regiões foi relativa aos primeiros anos da vida
de Caxias. Se os biógrafos sempre destacavam a vocação inata
do general, lendo informações como a de que ele assentou praça
de cadete no Exército aos cinco anos de idade como prova irre-
futável dessa vocação (SOUZA, 2001b), era preciso tentar en-
tender essa referência no interior do quadro de valores da épo-
ca. Passei a perguntar, então: Como se organizava a carreira
militar? E a Real Academia Militar, como funcionava? Quem
era a família Lima e Silva? Qual o papel da família na formação
do jovem Luís Alves? Daí, inclusive, a decisão de iniciar a histó-
ria do futuro duque de Caxias antes mesmo de seu nascimento,
nas últimas décadas do século XVIII. Pretendia ver a família se
estabelecendo no Rio de Janeiro. Não queria o duque de Caxias
pronto. O duque era o ponto de chegada de uma carreira bem
sucedida, resultado das experiências sociais e políticas de Luiz
Alves de Lima e Silva, e estas é que me interessavam. Não foi
proposital, mas é sem dúvida sintoma dessas escolhas, o fato
não ter chegado, em minha tese, à Guerra do Paraguai (SOU-
ZA, 2008).
A outra região de interesse da pesquisa se organizou a par-
tir do silêncio dos biógrafos memorialistas sobre sua vida políti-
ca. Se estes apenas – e em alguns casos – faziam referência aos
vários cargos políticos ocupados por Luiz Alves, eu estava decidi-
da a recompor – o quanto me fosse possível – a rede político-
social em que ele se achava inscrito nos diferentes momentos de
sua vida, mesmo quando se encontrava em posições de comando.
Mas a decisão por uma tese de recorte biográfico colocava
ainda outro problema – ainda bem difícil de equacionar na época
– cuja formulação devo a meu orientador, Manoel Salgado Gui-

119
SOUZA, A. B. de • Entre o duque de Caxias e dois capitães pardos

marães. Ele o formulou assim: como escrever uma tese, lugar da-
quilo que é geral, a partir da singularidade de uma vida?
Definir com precisão problemas – várias hipóteses – não
era suficiente para enfrentar o debate que nos anos 1990 se ins-
taurou entre nós a partir de uma matriz predominantemente fran-
cesa. O livro de referência do debate aqui no Brasil é Usos e abusos
da História Oral. E, no interior deste livro, o artigo – hoje clássico
– de Pierre Bourdieu, “A ilusão biográfica”. Há um contexto de
produção deste artigo, um contexto francês, que por questão de
tempo não vou recuperar aqui. Se alguém tiver interesse, tentei
fazer isso no artigo da História da Historiografia (SOUZA, 2012).
O importante, no momento, é destacar que a grande polêmica
posta por este artigo – e pelo debate no qual ele se inscreve – é a
legitimidade de se falar do passado a partir da vida de um indiví-
duo, o que contrariava toda a tradição que fundou o social como
objeto de estudos científicos. Tradição toda ela pautada na com-
provação de nossa capacidade de realizar grandes sínteses, de pro-
duzir análises macroestruturais.
Esta tradição, tanto quanto a reação negativa à incorpora-
ção da biografia e da narrativa pela grande área das ciências so-
ciais, no entanto, é um fato francês. E hoje sabemos que deve ser
entendida nos quadros das intensas disputas políticas que funda-
ram a memória disciplinar naquele país (POMIAN, 1986; GUI-
MARÃES, 2003).
Sabina Loriga, mais recentemente, após examinar a obra
de pensadores que, ao longo do século XIX, procuraram restituir
a dimensão individual da história, afirmou que foi na França que
a biografia ficou mais prejudicada, passando a ser vista como um
dos maiores símbolos da história tradicional, mais interessada na
cronologia que nas estruturas e sistemas analíticos (LORIGA
2010, p. 51). Na verdade, essa avaliação de Loriga expressa a pers-
pectiva de outra tradição historiográfica – a italiana. Ainda em
meio ao caloroso debate francês de fins dos anos 1980, Giovanni
Levi já havia destacado – em artigo publicado nos Annales, três
anos após o de Bourdieu – que em sua feição mais recente o deba-

120
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

te sobre a biografia expressava ainda uma crise de paradigmas e


um questionamento dos modelos interpretativos aplicados ao mun-
do social. Não à toa, na tipologia proposta pelo historiador italia-
no, nesse artigo de 1989, Pierre Bourdieu figura ao lado de Michel
Vovelle como exemplos de escrita modal do biográfico. Compro-
metidos com uma perspectiva macro-analítica do social, e com um
determinado projeto de ciência social, em suas pesquisas, a biogra-
fia só é considerada legítima se tomada como representativa de uma
forma típica de comportamento social (LEVI, 1998).
Esta era a forma de abordagem do biográfico mais comum
no Brasil quando definia os contornos de minha tese. Após expli-
car que não pretendia realizar um trabalho de memória política –
ainda que a proposta me parecesse interessante – precisava sem-
pre explicar também que não pretendia tomar a biografia do du-
que de Caxias como representativa. Ou seja, que não pretendia
tornar Caxias um general representativo de uma geração, do cor-
po de oficiais-generais que participou da construção do Estado
nacional brasileiro. Nada em especial contra este tipo de proposta
analítica. Trata-se de uma abordagem clássica na história social.
Porém, no caso da pesquisa que eu desenvolvia, esta opção não
era viável.
O que inviabilizava a opção pela biografia representativa
eram os rumos da própria pesquisa, das primeiras respostas que
tinha obtido – ainda durante o mestrado – ao me propor a anali-
sar o lugar ocupado pelo Exército na política militar conservado-
ra, que fundamentou o Estado imperial brasileiro (SOUZA, 1999).
O modelo de Exército a que cheguei a partir das pesquisas do
mestrado era o de uma instituição aberta, regida por valores e por
um sistema de hierarquias bem amplos, os mesmos da sociedade
política. O corpo de oficiais generais – como procurei mostrar na
época – era heterogêneo, herdeiro de uma tradição portuguesa
estranha ao modelo atual que associa a carreira à aquisição de
conhecimentos técnicos específicos, à incorporação de valores
orientados por uma disciplina rigorosa e a uma forte unidade cor-
porativa. O único ponto comum ao grupo era a dependência da

121
SOUZA, A. B. de • Entre o duque de Caxias e dois capitães pardos

Coroa, que detinha o monopólio das patentes, podendo regular


sua distribuição tal como fazia com outros bens simbólicos (SOU-
ZA, 2004).
Assim, era inviável propor uma abordagem sobre esse gru-
po social – os oficiais generais – a partir da ideia de biografia
representativa ou de estudos de caso. Nem Caxias, nem qualquer
outro general poderiam ser considerados – parafraseando Ginz-
burg – generais “típicos no sentido de médios, de estatisticamente
mais frequentes” (GINZBURG, 1987, p. 27). A heterogeneidade
do grupo impedia a eleição da trajetória de um deles como traje-
tória-síntese de outras vidas.
Mas, então, como formular a experiência de um indivíduo,
a singularidade de uma vida, como problema historiográfico? Só
consegui me mover nesse debate quando – sob a orientação de
Sabina Loriga – me aproximei dessa outra tradição intelectual,
empenhada em guardar uma dimensão individual na história e
enraizada nas historiografias alemã e italiana oitocentistas. Na
época, Loriga preparava seu livro O pequeno x e, como afirmaria
na introdução deste livro, pretendia recolher – por meio da análi-
se das motivações políticas e sociais das obras de vários autores
oitocentistas – pensamentos capazes de povoar o passado. Povo-
ar o passado significava justamente abandonar a prática, necessá-
ria pela estratégia de máxima agregação da história social tradicio-
nal, de operar com conceitos abstratos. A partir da leitura dos
clássicos de Jacob Burckhardt e de Von Humboldt, definiu o ofí-
cio do historiador como um trabalho propriamente morfológico,
que repousa no esforço de juntar, inclusive pelo uso da imagina-
ção, peças que lhe são oferecidas através da observação de vestígios
do passado (LORIGA, 2010).
É verdade que parte dessa crítica já havia sido realizada,
inclusive pelos professores de Loriga, o que a inclui nessa tradi-
ção italiana que se tornou conhecida como micro-história. Po-
rém, é verdade também que essa tradição ficou muito vinculada –
especialmente aqui no Brasil – a outro importante debate, empe-
nhado em romper o “silêncio das classes inferiores”. Foi assim

122
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

que as histórias do moleiro de Carlo Ginzburg e do camponês de


Natalie Zemon Davis encontraram espaço no meio acadêmico
na década de 1980 (GINZBURG, 1987; DAVIS, 1987).
Nesse sentido, e curiosamente, justificar a pesquisa sobre
os capitães que iniciaram um motim no Regimento de Homens
Pardos do Rio de Janeiro seria uma tarefa menos árdua que a
exigida pela pesquisa sobre o duque de Caxias. Mas, gostaria de
invocá-la, a partir de agora, não por meio dessa chave de leitura,
comprometida a ideia de uma “história vista de baixo”. Ainda
que esta abordagem seja absolutamente legítima – e que atual-
mente esteja gostando muito dessa inversão analítica, que me per-
mitirá olhar as forças militares do Império a partir de outro lugar
institucional e social – não foi este o caminho que me levou aos
dois capitães pardos: Antônio de Novaes e Manoel de Jesus.

Os dois capitães pardos

A pesquisa que me levou aos capitães do Exército teve iní-


cio há uns cinco anos, quando comecei a investir de forma mais
sistematizada em uma nova temática: a justiça militar. Assim como
a pesquisa sobre o duque de Caxias, o interesse nessa temática sur-
giu durante a participação em um projeto coletivo. O projeto – so-
bre os 200 anos de justiça militar – integrava as comemorações da
“Vinda da família real para o Brasil”. A equipe era grande, e a par-
te que me coube foi a relativa ao período imperial. Para surpresa da
equipe, porém, após um levantamento minucioso, descobrimos que
não havia pesquisas acadêmicas dedicadas ao tema, e que – na exe-
cução do projeto – contaríamos apenas com alguns poucos traba-
lhos realizados por membros da própria justiça militar.6

6
O projeto intitulava-se: “200 anos de Justiça Militar no Brasil” e foi coordena-
do por Maria Celina D’Araújo, então pesquisadora do CPDOC/FGV. Tratava-
se de uma encomenda do Superior Tribunal Militar (STM) ao CPDOC. O resul-
tado foi um livro coletivo sobre a história do Superior Tribunal Militar – STM.
Mas, apesar de entregue e inteiramente pronto, o livro nunca foi publicado.

123
SOUZA, A. B. de • Entre o duque de Caxias e dois capitães pardos

Alguns anos após a finalização desta pesquisa, decidi fazer


um projeto individual e dar sequência às investigações. A inten-
ção inicial era apenas escrever uma história da justiça militar no
século XIX: estruturar um organograma de seu funcionamento,
explicar o que era o “foro militar”, identificar as forças políticas
mobilizadas para sua criação e, se possível, apresentar as autori-
dades envolvidas na tramitação de um processo militar, com suas
respectivas funções. O objetivo era bem modesto: fazer uma bre-
ve história da instituição para não desperdiçar todo o esforço e
material levantado pela equipe de pesquisadores.
No entanto, à medida que avançava na pesquisa e começa-
va a organizar os dados em forma de artigos, dois pontos desper-
tavam um interesse especial. O primeiro deles foi o momento de
criação dessa justiça. A hipótese que tenho defendido é que isso
ocorreu na virada do século XVIII para o XIX. Esta justiça espe-
cial – a justiça militar – acompanhava uma série de transforma-
ções na forma de gestão e organização do mundo social da época.
Outra instituição nova, por exemplo, criada nesse mesmo contex-
to, foi a Intendência Geral de Polícia. Sobre esta instituição, já
podemos contar com trabalhos importantes, com destaque para
alguns realizados em Portugal (ABREU, 2013). Além disso, ano
passado, durante uma missão de pesquisa na França, pude locali-
zar um amplo debate sobre a implantação dessa justiça. Apesar
de francês, este debate é referenciado por autoridades portugue-
sas que, então, trabalhavam na organização da justiça militar no
Império luso-brasileiro.7
Este debate – tanto em Portugal quanto na França – asso-
cia a criação da justiça militar a um outro campo analítico – o da
profissionalização do Exército. Em defesa de um Exército mais

7
A missão de pesquisa foi realizada entre dezembro de 2015 e março de 2016 na
Universidade de Paris I – Panthéon Sorbonne, sob da supervisão de Annick
Lamperière, com financiamento da FAPERJ. As ideias aqui apresentadas ain-
da precisam ser mais bem fundamentadas, sendo apresentadas aqui como hi-
póteses.

124
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

eficiente, discutia-se nesses países a necessidade de se desvincular


a hierarquia militar daquela que organizava o restante da socie-
dade, definindo princípios disciplinares e formas específicas de
punição de oficiais e soldados que os descumprissem. Daí tam-
bém a discussão, iniciada nesse mesmo período, sobre a necessi-
dade de criação de um código penal e processual militar. Por meio
da justiça militar, punha-se em destaque as particularidades de
um “mundo militar” separando-o, gradativamente, do que viria a
ser o “mundo civil”.
O segundo ponto de interesse – decorrência deste primeiro
– recaiu sobre os processos criminais militares. A cada passo, eles
pareciam constituir uma fonte chave não apenas para compreen-
der o funcionamento desta justiça (me permitindo ultrapassar os
limites de uma pesquisa em fontes legislativas), mas também para
entender essa hierarquia interna e a própria noção de disciplina,
que se tornou tão cara – como nos mostrou Foucault – aos Esta-
dos do século XIX. Ou seja, esses processos me permitiriam ver
como os vários círculos hierárquicos internos ao Exército e as
demais forças militares – como milícias – se cruzavam cotidiana-
mente nesse contexto em que o Estado buscava construir meios
de intervenção nos vários espaços sociais, dentre os quais, pode-
mos situar o próprio mundo militar.
Neste ponto, esbarro com um limite já velho conhecido: o
da pesquisa em arquivos militares (SOUZA, 2009). Não vou me
dedicar ao tema aqui. Nos limites deste debate, gostaria apenas
de destacar que – em um ano inteiro de pesquisa, o do meu pós-
doc, realizado em 2015 – não consegui localizar um arquivo de
processos criminais militares. Nem no Rio de Janeiro, nem em
Brasília, no arquivo do STM. Até me deparar com os limites das
fontes documentais, o interesse era operar com os métodos clássi-
cos da história social – quantificar dados sobre crimes, réus, sen-
tenças e punições. Somente diante da impossibilidade de acessar
esses dados, cheguei aos dois capitães do Regimento de Pardos
do Rio de Janeiro. Lendo a documentação do Fundo Vice-Reina-
do, do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, encontrei em meio a

125
SOUZA, A. B. de • Entre o duque de Caxias e dois capitães pardos

vários ofícios do General Comandante de Tropas do Rio de Ja-


neiro, um processo. Ele referia-se a um princípio de motim, lide-
rado pelos dois capitães em dezembro de 1806.
O caso chamou minha atenção por três razões. Primeiro
porque o Comandante Geral das Tropas do Rio de Janeiro, o te-
nente-general José Narciso de Magalhães, em suas cartas, assu-
mia um discurso impressionantemente novo, sobre a necessidade
de se autonomizar a profissão militar do meio político. Um tom
que eu nunca tinha visto antes para o século XIX. Segundo porque,
controlado o motim, são os dois capitães, depois de presos no Cas-
telo (nome de uma prisão da época), que exigiram o direito a Con-
selho de Guerra. Ou seja, exigiram ser julgados pela justiça militar,
parecendo bem informados sobre a nova instituição, ainda em fase
de implantação no Rio de Janeiro. Por fim, não se pode ignorar
que o motim tinha ocorrido em um Regimento de Homens Pardos,
explicitando uma situação desconhecida em Portugal, na França
ou na Prússia: a existência de milícias organizadas por critérios de
cor. Esta particularidade certamente explicitou para as autoridades
da época a necessidade de pautarem e interporem limites a essas
novas instituições em sociedades escravocratas.

A guisa de conclusão

É neste ponto que minha pesquisa se encontra atualmente.


Esse tipo de exercício sobre meu próprio percurso de pesquisa,
elaborando-o como uma primeira experiência, a partir da qual no
passado se ergueu uma tese, e hoje essa nova pesquisa, tem sido
chave para me permitir pensar os limites e possibilidades do ofí-
cio, de nossa escrita sobre o passado.
O trabalho que resultará desta nova experiência de pesqui-
sa não será uma biografia, pelo menos não como consegui fazer
para o duque de Caxias. Os limites da documentação não me per-
mitiriam ir tão longe. Todavia, tanto quanto para o duque de Ca-
xias, também não pretendo tomar a vida dos dois capitães pardos
como trajetórias típicas para, a partir deles, escrever sobre o con-

126
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

junto dos oficiais pardos de milícia. Continuo, nesse sentido, se-


guindo as orientações de Ginzburg. A imagem da história elabo-
rada por ele e outros pesquisadores identificados com o que se
tornou conhecido como Micro-História é a de um sistema aberto,
em perpétua transformação e determinado por mecanismos e di-
nâmicas interativas.
O resultado de uma ação individual depende de outras ações
e das reações de outros indivíduos. Essa interdependência, defi-
nida como própria do mundo social, impede que os atores dispo-
nham de um sistema de normas para tentar prever sem ambigui-
dades os efeitos de seus atos. Ainda que cada indivíduo tenha
diante de si um campo de possibilidades limitado, com margens
definidas cultural e socialmente, nenhum sistema normativo é
suficientemente estruturado para eliminar todas as possibilida-
des de escolha, interpretação, manipulação e negociação dessas
normas e regras sociais (CERUTTI, 1995; GRIBAUDI, 1987).
É nesse sentido que as pesquisas de corte biográfico tor-
nam-se – acredito eu – um ótimo espaço para se pensar o social e
as relações de poder que lhe são intrínsecas. Elas evitam a cons-
trução de imagens monolíticas do passado, mostrando, ao con-
trário, que se a repartição desigual do poder – de bens materiais e
simbólicos – limita as oportunidades de um indivíduo, ela sem-
pre deixa alguma margem de manobra, através das quais ele pode
se movimentar e promover mudanças no ambiente em que vive
(SOUZA, 2012).
Poderíamos, então, perguntar: o que aproxima a trajetória
dos dois capitães pardos de milícia – Antônio de Novaes e Manuel
de Jesus – da trajetória do duque de Caxias? A princípio e objeti-
vamente, nada. A não ser o esforço analítico do pesquisador, o
que Marc Bloch chamou de “reintrodução do sujeito na pesquisa
historiográfica”. Tanto quanto a vida do duque de Caxias, as de
Antônio e Manuel me permitirão – tudo dando certo – criar uma
brecha de acesso ao passado para, a partir de seus nomes – a mar-
ca mais singular que existe, como já afirmou Ginzburg – elaborar
uma escrita historiográfica.

127
SOUZA, A. B. de • Entre o duque de Caxias e dois capitães pardos

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130
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A feiticeira do litoral:
comunidade, crença e gênero
(século XIX)
Nikelen Witter
Paulo Roberto Staudt Moreira

Segundo o folclorista Câmara Cascudo, São João é um santo


católico cuja comemoração mescla harmonicamente o religioso e
o profano:
Pregador de alta moral, áspero, intolerante, ascético, São João
é festejado com as alegrias transbordantes de um deus amável
e dionisíaco, com farta alimentação, músicas, danças, bebi-
das e uma marcada tendência sexual nas comemorações po-
pulares, adivinhações para casamento, banhos coletivos pela
madrugada, prognósticos de futuro, anúncio da morte no ano
próximo (CASCUDO, 1988, p. 404).

Nos cultos de origem africana, São João é geralmente asso-


ciado com Xangô –, orixá iorubano do raio e do trovão, da justiça
e do fogo (ORO, 1996, p. 49; LOPES, 2004, p. 687). Santo pode-
roso do panteão católico e de forte apelo nas crenças populares
oitocentistas, João costuma dormir no dia que lhe é consagrado e,
por isso, deve ser acordado com o estardalhaço de fogos de artifí-
cio e fogueiras.
Se ele dormia naquela noite de 24 de junho de 1871, deve
ter acordado sobressaltado. Próximo da Costa da Serra de Santo
Antônio da Patrulha, no litoral norte do Rio Grande do Sul, um
violento incêndio consumiu rapidamente a casa de moradia, o
galpão e a cozinha da propriedade de Ana Joaquina de Oliveira.
Talvez por graça de São João, ninguém ficou ferido no sinistro.

131
WITTER, N.; MOREIRA, P. R. S. • A feiticeira do litoral

Ana Joaquina e suas filhas estavam ausentes, assistindo a uma


novena em casa de um vizinho (ou foram a um fandango1, segun-
do outras testemunhas). A família, ao voltar para casa, encontrou
tudo reduzido a “um montão de cinzas [...] e nem um só objeto
pôde ser salvo das chamas”.
Para Ana Joaquina não restavam dúvidas de quem era o
responsável pelo incêndio criminoso. Tratava-se do lavrador e cria-
dor Onofre Pereira da Silva, de 60 anos de idade, natural daquela
vila, que há tempos, segundo Ana, concebia contra ela “ideias
supersticiosas”, e “malévola e gratuitamente” lhe tinha “ódio e
inimizade”, a ponto de “desejar que ela e toda a sua família fos-
sem queimados ou reduzidos à última miséria, como manifestou
a diversas pessoas”.2
Se Onofre era o mandante, não lhe cabiam, porém, os mé-
ritos de um incêndio tão bem realizado, do qual nada restou a
não ser cinzas fumegantes. Segundo as apurações feitas pela polí-
cia local, Onofre pagou pelo serviço ao preto Manoel do Nasci-
mento, escravizado de Domingos Antônio de Pinho. Manoel não
sabia a sua idade, mas aparentava ter cerca de 30 anos e era traba-
lhador de roça.
Afinal, quais seriam as ideias supersticiosas alimentadas pelo
acusado contra Ana Joaquina? De acordo com várias testemu-
nhas, este lhe imputava ser uma feiticeira e como tal responsável
por inúmeros males ocorridos em sua casa. Pela fala das testemu-
nhas (captada nos interrogatórios), poucos parecem duvidar das
capacidades de Ana Joaquina, chegando a nomeá-la uma grande
feiticeira.
No processo montado para apurar os culpados pelo incên-
dio, destacou-se o pronunciamento de uma testemunha informan-
te, que vivia muito próxima dos acusados. O lavrador Adão, de 30
e tantos anos, era escravizado de Onofre e relatou com clareza e

1
“Qualquer tipo de baile, festa ou divertimento, farra” (BOSSLE, 2003, p. 238).
2
APERS – Cartório Cível e Crime, Comarca de Osório, Caixa 274, maço 13,
Processo 488.

132
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

riqueza de detalhes o ocorrido nos dias anteriores a festividade de


São João. Segundo Adão, seu senhor tinha inimizade com Ana
Joaquina, pois ela era uma feiticeira que “lhe trazia tudo atrasa-
do”, “visto como ela com feitiço tinha feito adoecer sua mulher,
tinha feito morrer um filho seu na campanha e mais duas crian-
ças, e um preto velho em casa e, finalmente, que tinha lhe causa-
do grandes prejuízos em seus gados e criação”. Não sabemos se a
campanha de que fala Adão se refere a uma específica área geo-
gráfica ou ao conflito com a República Paraguaia, terminado no
ano anterior.
O caso, sucintamente descrito acima, e cuja narrativa aden-
sada será a base deste artigo, permite-nos vislumbrar àquela reali-
dade histórica escravista oitocentista ao rés-do-chão. O teor ex-
cepcional de documentos como esse processo judicial reside jus-
tamente nas potencialidades que enseja no entendimento das re-
lações e interdependências comunitárias, na sua normalidade e
porosidade. Através de uma perspectiva microanalítica, preten-
demos captar esse dinamismo comunitário, etnograficamente cap-
tando a circularidade de crenças, os relacionamentos entre senho-
res e seus escravizados e alguns dos papéis e espaços femininos.

*****
A presença histórica negra no litoral norte gaúcho é facil-
mente comprovada. Desde o início da conquista efetiva deste es-
paço sob a égide de Portugal, foram estes trabalhadores – a maio-
ria escravizados – as mãos e os pés dos engenhos, fazendas e mes-
mo de muitas das pequenas e médias propriedades. Escavações
arqueológicas feitas no abrigo do Monjolo, um “abrigo sob ro-
cha” localizado em Santo Antonio da Patrulha, revelaram vestí-
gios de ocupações bem mais antigas, datando de cerca de 8.000
anos, por comunidades de caçadores-coletores. No substrato aci-
ma desta ocupação, porém, foram encontradas peças cerâmicas
com “traços bantú”. Tais peças certificam que, onde hoje existe
um santuário de Nossa Senhora da Saúde, viviam no século XVIII

133
WITTER, N.; MOREIRA, P. R. S. • A feiticeira do litoral

africanos e seus descendentes. É possível que esses africanos te-


nham constituído, neste asilo rochoso, um quilombo, composto
de indivíduos evadidos de alguma fazenda ou mesmo da Guarda
de Santo Antônio (CARLE, 2005).
Mas se queremos caracterizar a presença negra nesta re-
gião litorânea, podemos usar os dados censitários que, mesmo
imprecisos, nos evidenciam a importância deste contingente po-
pulacional. Segundo as estatísticas de 1858, naquele ano tínha-
mos:

Tabela 1: População negra litorânea (RS) – 1858

População negra
Distritos Total Livres
Libertos Escravizados Total %
Santo Antônio da Patrulha 4.796 3.750 70 976 1.046 21,81
Miraguaia 1.388 1.044 9 335 344 24,79
Conceição do Arroio 3.348 2.341 43 964 1.007 30,07
Maquiné 1.386 982 22 382 404 29,15
Torres 2.765 2.364 49 352 401 14,50
Palmares 1.189 773 49 367 416 34,99
São José do Norte 1.972 1.286 37 649 686 34,79
Estreito 1.019 616 28 375 403 39,55
Mostardas 2.378 1.499 101 778 879 36,97

Fonte: Fundação de Economia e Estatística, 1981.

No ano seguinte da promulgação da Lei do Ventre


Livre, o governo imperial ordenou que se procedesse um
rigoroso censo populacional. Segundo este levantamento
de 1872, temos:

134
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Tabela 2: População negra no litoral norte (RS) – 1872

Livres Escravizados Total


Santo Antonio da Patrulha 3
21.113 4
3.678 24.791
Osório 5
8.123 6
1.467 9.590
Fonte: Fundação de Economia e Estatística, 1981.

Considerando os municípios acima – os maiores do litoral


norte e palco principal dos acontecimentos que trataremos –, te-
mos uma população total de 34.381 habitantes, composta de
29.236 indivíduos livres (85,03 %) e 5.145 escravizados (14,97 %).
Considerando a composição demográfica étnico-racial daquela
região, temos:

Tabela 3: População não-branca no litoral norte (RS) – 1872

Pardos Pretos Caboclos


Livres Escr Livres Esc Livres
H M H M H M H M H M
SAP7 1.612 1.475 575 572 1.115 1.059 1.318 1.213 519 350
OSO 462 479 263 205 547 520 585 414 103 201
Sub 4.028 1.615 3.241 3.530
Total 5.643 7.852 1.173

Fonte: Fundação de Economia e Estatística, 1981.

Notamos, na tabela acima, uma população não-branca de


14.668 indivíduos, que compunha 42,66% do total da população
local. Chama a atenção de que 53,86% da população negra da-
quelas cidades litorâneas já era livre ou forra em 1872, numa por-
centagem maior do que a média nacional (CHALHOUB, 2012).

3
Neste total não estão computados 193 ausentes e 102 transeuntes.
4
Neste total não estão computados 26 cativos “ausentes”, provavelmente fugidos.
5
Neste total não estão computados 49 ausentes e 119 transeuntes.
6
Neste total não estão computados 6 cativos “ausentes”, provavelmente fugidos.
7
Leia-se por SAP: Santo Antônio da Patrulha; por OSÓ: Osório.

135
WITTER, N.; MOREIRA, P. R. S. • A feiticeira do litoral

O qualificativo étnico-racial quanto a cor cabocla aponta a históri-


ca presença indígena naquela região, atestada por fontes diversas
(SOUZA, 2012).8
Lócus de ocupação antiga, rota de passagem de tropas de
gado e de soldados, de tráfico clandestino de africanos escraviza-
dos, de escaramuças e choques armados, o litoral norte possui
uma história ainda pouco conhecida, baseada em uma popula-
ção pluriétnica, distribuída em uma sociedade altamente desigual.
Mas os recantos do litoral não comportavam apenas peri-
gos materiais, palpáveis. Existiam outros, mais próximos do so-
brenatural, que rondavam os moradores.
São comuns os relatos fidedignos sobre ventos inesperados,
noivas espectrais, ondas misteriosas, fantasmas de escravos que
vigiam tesouros enterrados por seus senhores. Mas talvez as cria-
turas que provoquem mais medo sejam as feiticeiras. Elas habi-
tam o mesmo mundo que nós, possuindo conhecimentos que po-
dem curar, mas também provocar males e até a morte. Não são
raros os documentos judiciários que, se não atestam a existência
do sobrenatural, certificam com clareza a crença generalizada no
mesmo.
Voltemos, então, ao caso do incêndio na noite de São João,
em 1871. Vários vizinhos relataram conversas em que o réu Ono-
fre dizia sem receios, que a feiticeira lhe causava males, como as
moléstias que acometiam a sua senhora, e que “só ficaria satisfei-
to se a visse reduzida a nada”, pobre “como um rato de igreja”. O
próprio irmão e compadre do réu confirmou que ele tinha indispo-
sição com Ana Joaquina e que atribuía a ela “o que vulgarmente
chamam feitiçaria”, e que o feitiço só seria desfeito botando fogo
nos quatro cantos da casa da feiticeira.
Os planos de combate de Onofre em sua luta contra o so-
brenatural foram estruturados após a sua conversa com dois espe-
cialistas. Perturbado pelos tormentos que assolavam sua família,

8
Sobre a presença negra no litoral norte, ver: SANTOS (2009) e BARCELLOS
(e outros, 2004).

136
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

ele procurou primeiro um adivinhador, um negro de Santo Antô-


nio da Patrulha, de nome João Pedreiro. Talvez João tenha lhe
confirmado que se tratava de feitiço poderoso, mas confessou que
não possuía os poderes necessário para debelá-los. Ao que pare-
ce, assustado com a adivinhação, Onofre procurou outro especia-
lista, o feiticeiro Manoel do Nascimento. Pode-se inferir que Nas-
cimento, teria, então, poderes para quebrar a maldição pretensa-
mente lançada por Ana Joaquina.
De acordo com outros relatos sobre feitiçaria no sul do Brasil
do século XIX, a ideia de que a ação de um feiticeiro só poderia
ser quebrada pela a ação de outro era corrente. Nos casos conhe-
cidos, o processo de quebra de poder aparece sempre bastante ri-
tualizado, mas nunca de igual maneira. Sem o conhecimento do
feiticeiro, a ação de quebra poderia ser realizada no corpo do do-
ente (WITTER, 2007). Porém, se o feiticeiro fosse conhecido, a
quebra assumia tintas mais sangrentas e a quebra podia ser feita
no próprio corpo do feiticeiro acusado (WITTER, 2007). No caso
analisado, a quebra envolveu os bens e, portanto, um elemento de
territorialidade da suposta feiticeira, talvez, parte da base de seu
poder. De acordo com a chamada “lei da contiguidade” de Fra-
zer, a ideia de o que esteve unido continuará unido está na pró-
pria estrutura do pensamento mágico. Logo, tanto os lençóis e
roupas de baixo (que poderiam, “temperados”, matar a feiticei-
ra), quanto a casa, poderia representar essa extensão continuada
de poder, através da qual se pode atingir o alvo (MONTEIRO,
1990).
O que chama atenção em todos os casos é a presença de
dois feiticeiros/curandeiros que se apresentam ou são colocados
como rivais. Sendo que o segundo arvora-se ser um curador de fei-
tiços. Esse fato permite ao historiador acreditar que não se tratava
da crença nos poderes deste ou daquele indivíduo, mas num con-
junto lógico de ideias que estrutura parte das relações das pessoas
do período com os infortúnios e moléstias que podiam os acome-
ter (MONTEIRO, 1990; WITTER, 2015a). Por outro lado, a pre-
sença constante de africanos e seus descendentes nos casos estu-

137
WITTER, N.; MOREIRA, P. R. S. • A feiticeira do litoral

dados, não exclui a interação de parcelas brancas e mestiças da-


quela sociedade nas mesmas crenças. De fato, pode-se até mesmo
dizer que o protagonismo pertencia, em geral, a homens e mulhe-
res escravizados ou já libertos, mas quase sempre descritos como
negros. Por outro lado, não se pode falar de uma crença numa
feitiçaria majoritariamente de origem africana. Afinal, Ana Joa-
quina de Oliveira era branca, pelo que indicam os documentos,
mas seu antagonista busca a ajuda de dois feiticeiros negros para
poder atingi-la.
Não era somente a crença da clientela que alicerçava a for-
ça dos feiticeiros – apesar da fé em seus poderes ter papel impor-
tante na manutenção da aura de misticismo, confiança e medo
que também os cercava. Esses feiticeiros/curandeiros eram de-
tentores de saberes de cura, em sua maioria, baseados no conhe-
cimento e uso da vegetação cotidiana. Essa ciência popular, en-
tretanto, não se esgotava no uso do potencial do mundo natural;
feiticeiros sabem que certos males (ou malefícios) só podem ser
resolvidos apelando ao sobrenatural, outra face do poder que con-
centravam9. Por outro lado, porém, essa divisão entre o natural e
o sobrenatural pode ser afigurar por demais racionalista. O mun-
do no qual tais crenças se estruturam tem essas divisões borradas,
podendo até se negar a existência de um sobrenatural, como per-
cebia Marcel Mauss, já que todas as forças que atuam são vistas
pelo crente como passiveis de serem usadas e alteradas pelo re-
curso a elementos naturais (MONTEIRO, 1990).
Retornando aos idos de 1871, Manoel Nascimento, segun-
do o depoimento do escravizado Adão, ao ser procurado pela pri-
meira vez, confirmou que poderia dar cabo do feitiço, propondo
que se acabasse com o verdadeiro foco do mesmo, a feiticeira.
Conforme afirmamos acima, nos documentos que pesquisamos
referentes a casos de feitiçaria ou curandeirismo existem certos

9
Ou concentram. Sabemos que essas figuras ainda estão presentes no mundo
atual. O uso dos verbos no passado pretende apenas não extrapolar nossas con-
clusões para outras épocas que não aquela estudada no artigo.

138
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

consensos que demonstram que eles faziam parte de crenças bas-


tante arraigadas na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul
sobre o poder que detinham certas pessoas para curar, fazer mal
ou matar.10 Entre esses consensos estava o fato de que possuir um
objeto (ou o corpo) da pessoa que se pretendia afetar era essencial
para os desígnios mágico-religiosos, no caso dos feiticeiros.
Assim, Manoel Nascimento respondeu a interpelação, so-
bre se poderia matar a feiticeira, dizendo que para isso precisava
que lhe arranjassem um “lençol [de Ana Joaquina], o qual sendo
por ele temperado havia de matá-la, logo que ela dele se servisse,
assim como uma camisa que também foi reclamada”. Os dicio-
nários de época nos informam que temperar era adubar o comer para
lhe dar bom sabor, e talvez neste caso fosse uma maneira irônica de
Manoel dizer que ia deitar condimentos (na forma de substâncias
ou rezas) diversos na roupa de Ana Joaquina (SILVA, 1922, p.
762).
Por outro lado, o uso dessa palavra nos remete para a per-
cepção dos múltiplos usos de muitas substâncias: como condi-
mentos gastronômicos, como medicamentos e na preparação de
rituais mágico-religiosos. Tal fato coloca a magia como um ele-
mento cotidiano, acessível, conectando a realidade ordinária com
outra, ao mesmo tempo impregnada de fascínio, mistério e peri-
go, o que reforça as fronteiras borradas do natural e do sobrenatu-
ral. Essa proximidade que as crenças dão à magia, estabelece uma
fórmula simples de se compreender as agruras e males cotidianos
que não podiam ser justificados pelo castigo divino. De outra fei-
ta, também indica um tipo de mentalidade que parece não aceitar
com facilidade elementos como o acaso ou o aleatório.
Os autores do livro que aborda a trajetória do alufá Rufino
(REIS; GOMES; CARVALHO, 2010), estabelecem uma ligação
entre os seus misteres domésticos/culinários e curativos. Atuan-
do como cozinheiro de navio negreiro, Rufino se tornava apto a

10
Ver: WITTER (2000); MOREIRA (2015); WITTER & MOREIRA (2016).

139
WITTER, N.; MOREIRA, P. R. S. • A feiticeira do litoral

assumir outras atividades, vinculadas indiretamente aos afazeres


gastronômicos:
Rufino pode ter atuado no âmbito do doméstico, mas não
apenas neste. É possível que suas habilidades na cozinha vi-
essem a ter alguma valia na preparação de remédios de ori-
gem animal e mineral. Nesse caso, ele pode ter se tornando o
que se chamava de prático de botica ou ‘moço do boticário’.
Não se deve esquecer que o laboratório de um boticário era
uma espécie de cozinha, repleta de panelas, caçarolas, baci-
as, canecas, copos, cálices, ânforas, coadores, cântaros, funis,
facas, almofarizes, onde se produziam, com o emprego de
diversas técnicas de cozimento, pós, eletuários, unguentos,
emplastros, pomadas, pílulas, infusões, óleos, xaropes, elixi-
res, decocções, apózemas e outras soluções. Preparava-se tam-
bém, quiçá, comida para doentes – como os frangos de boti-
ca, de carne magra –, no que o boticário e seus assistentes
funcionavam como qualquer cozinheiro. Além de ‘cozinhar’
remédios (e frangos), Rufino pode ter aprendido com seu se-
nhor a aplicá-los, uma vez que na época o boticário fazia
amiúde as vezes de médico, constituindo a figura do boticá-
rio-curandeiro. No meio de suas panelas e infusões, esse pro-
fissional tinha algo de feiticeiro (REIS; GOMES; CARVA-
LHO, 2010, p. 31-32).

Mas a palavra temperar, nos dicionários da época do delito,


também tinha o significado de “fazer abrandar o gosto, sabor, gênio
forte, com algum artifício e meio suave”. Assim, quem sabe, o
feiticeiro Manoel Nascimento pretendia com isso moderar, equili-
brar o poder concentrado em Ana Joaquina, a assustando, ferin-
do ou mesmo matando, conforme diz a Adão.
Mas para Onofre parecia que nada dava certo. A saída pro-
posta por Manoel deve ter lhe dado alívio momentâneo – existia
um lenitivo para seus males. Porém, quando Onofre pensou em
como colocar em prática essa solicitação, viu que era impossível.
No dia seguinte, mandou dizer a Nascimento que pensasse em
outro meio para livrá-lo do feitiço, pois “não podia arranjar a ca-
misa nem o lençol, porque existindo na casa a feiticeira e quatro
filhas, era impossível a ele obter ou conhecer os objetos perten-
centes à velha”.

140
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Não sendo possível matar a feiticeira, era necessário dimi-


nuir seu poder sobre o Onofre, seus próximos e pertences. É pos-
sível, portanto, que a organização de um plano alternativo con-
tasse com a ideia dos envolvidos de que Ana Joaquina possuía
algum objeto de Onofre, que permitia que lhe causasse mal. A
posse deste objeto de uso íntimo – conforme parecem nos atestar
as crenças da época e expostas nesse mesmo processo – era o elo
necessário entre feiticeira e enfeitiçado, e o que causava a vulne-
rabilidade da vítima do malefício, o que lhe fragilizava frente ao
poder da feiticeira.
Os planos, todavia, não pareciam tão simples de serem le-
vados à cabo, pois, ao que parece, Onofre queria dar cabo de Ana
Joaquina, mas sem lastimar suas filhas. Surge, então, o plano de
botar fogo na casa da feiticeira pelos quatro cantos e, com isso,
acabar completamente com os objetos depositados em sua resi-
dência. A oportunidade surgiu na noite de São João, 24 de junho
de 1871. Onofre ficou sabendo por conhecidos que haveria um
grande fandango na casa de João José da Silva, mesmo vizinho
citado por Ana Joaquina como local da novena. Novamente o sa-
grado e o profano se congregando na festa do santo dorminhoco.
Sabendo que a feiticeira iria ao fandango, Onofre mandou chamar
nascimento “a toda a pressa” e, depois de conversarem em segre-
do, entregou-lhe uma caixa de fósforos.
Domingos Antonio de Pinho, o senhor do escravo Manoel
Nascimento, tinha 67 anos, era lavrador, nascido em São José e
morador em Santo Antonio da Patrulha. Ele depôs no processo
procurando provar que Manoel não poderia ter praticado o cri-
me, pois trabalhara a seu lado até tarde da noite. Seu depoimento
nos traz um relato interessante de um dia de trabalho em um en-
genho de cana. Diz Pinho que:
[...] depois dele ter lambicado e seu escravo Nascimento e
seus parceiros terem carregado o bagaço de três carradas de
canas, estando Nascimento no engenho encostado no forno
cochilando, perguntou a ele testemunha se ainda continuava
a trabalhar, ao que ele respondeu que não, que fossem se dei-

141
WITTER, N.; MOREIRA, P. R. S. • A feiticeira do litoral

tar, e que de madrugada fossem picar lenha e que assim fize-


ram, e acrescentou ele testemunha que depois que a mulher
dele aquentou água, fez café e lavando ele testemunha os pés
e deitando-se, ouviu os galos, pelo que não tendo relógio cal-
culou que fossem dez para onze horas ou mais.

O advogado Augusto Frederico de Souza Pinto, escreven-


do de Conceição do Arroio (atual Osório), em 16 de dezembro de
1871, fez uma apelação onde procurou trazer o caso para o lado
da racionalidade, comportamento típico de uma época que aden-
trava os meandros da cientificidade. Dizia o bacharel: “Parece
incrível que, no século 19, surgisse um processo tão original, quão
ridículo, por ser fundado em uma futilidade, qual a de crer o ape-
lante em feitiços”. Mas admitindo mesmo a inimizade capital entre
Ana Joaquina e Onofre, “é claro que neste caso o apelante procu-
raria cortar a existência da apelada, mas nunca trataria de des-
truir a sua propriedade e reduzi-la a miséria, porque assim, em
vez de desfazer-se de sua inimiga, a irritaria cada vez mais”. Esse
segundo trecho, na nossa leitura, parece revelar o medo do causí-
dico em aborrecer uma feiticeira, e conseqüentemente a sua cren-
ça na existência dos malefícios.
Nada disso sensibilizou os jurados, membros da comuni-
dade local e que provavelmente compartilhavam com os persona-
gens do processo a crença na força dos feitiços, que condenaram
Onofre a dois meses de prisão com trabalhos e multa de 5 % do
valor da casa incendiada. A pena para o cativo Manoel Nasci-
mento não foi de prisão, nem multa, mas de 100 açoites, que lhe
lanharam as costas, distribuídos em 25 chicotadas dadas nos dias
29 e 30 de dezembro de 1871 e 2 e 3 de janeiro de 1872. O castigo
tinha que ser executado, mas a propriedade escrava não poderia
ser dilapidada, daí as doses homeopáticas das pancadas que san-
graram as costas do feiticeiro Manoel Nascimento. Mas as chico-
tadas não foram os únicos tormentos. Manoel deveria carregar
um ferro ao pescoço por seis meses.
As comemorações natalinas e de final de ano na vila de
Santo Antonio da Patrulha transcorreram em normalidade na-

142
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

quele ano de 1871. Gritos de escravizados sendo açoitados não


era exatamente uma raridade para os ouvidos dos moradores e
certamente os habitantes das senzalas acompanhavam compun-
gidos os lamentos de seus parceiros. Dias antes do suplício de
Manoel Nascimento, foi a vez do preto José, que cometera um
assassinato em Torres, receber sua dose de chibatadas. O homici-
da nascera em Laguna, mas morava no Chimarrão desde o baru-
lho dos farrapos (lembrança da guerra civil farroupilha, que asso-
lou a província entre os anos de 1835 a 1845). Julgado em novem-
bro de 1871, o cativo foi condenado a receber duzentos açoites e
trazer um ferro ao pescoço por um ano. O carcereiro José da Silva
Filho atestou ter ele recebido os 200 açoites, 50 por dia.11
A esposa de Onofre Pereira da Silva, cujas mazelas teriam
sido provocadas pela feiticeira Ana Joaquina de Oliveira, se cha-
mava Ana Maria de Jesus, filha legítima de Francisco Antônio da
Silva e Ana Joaquina da Conceição. Ela e seu marido nasceram
na vila de Conceição do Arroio – vizinha de Santo Antônio da
Patrulha. Onofre e Maria casaram na Igreja de Nossa Senhora da
Conceição de Osório às 10 horas da manhã de 20 de setembro de
1842, com as bênçãos do Vigário Antônio José Borja, ritual teste-
munhado por José Fagundes da Rosa e Maria Inácia de Jesus.
Onofre era filho legítimo de Manoel Antônio de Souza e Maria
da Conceição.12
Procuramos nos registros de óbitos das duas cidades umbi-
licalmente ligadas, Santo Antônio da Patrulha e Conceição do
Arroio, mas infelizmente os registros eclesiásticos destas locali-
dades foram malconservados e possuem várias lacunas. Em espe-
cial, os óbitos de Conceição do Arroio, nos anos anteriores ao
incêndio de 1871, não foram encontrados. Nossa ideia era com-
provar empiricamente os danos em sua família que Onofre credi-

11
APERS – Cartório Cível e Crime, Comarca de Osório, Caixa 274, maço 14,
Processo 490.
12
ACDO – Livro de Casamentos da Paróquia de Nossa Conceição do Arroio,
1773/1857, folha 137v.

143
WITTER, N.; MOREIRA, P. R. S. • A feiticeira do litoral

tava a Ana Joaquina. A doença da esposa e a morte do filho na


campanha são quase impossíveis de verificar, mas a indicação da
morte de duas crianças e um preto velho em casa nos compeliu a
investigar os registros de óbito.
Não sabemos se foram estes os falecimentos sugeridos por
Onofre como causados pelos malefícios de sua vizinha, mas em
16 de março de 1864 faleceu de ataque de estômago a inocente Ma-
ria, filha de Onofre e Ana Maria de Jesus, com 4 meses de idade.
Alguns anos depois, em 21 de julho de 1868 faleceu de tosse o
inocente Manoel, exposto em casa de Onofre Pereira da Silva,
com 3 meses de idade. Nos dois casos o padre que ministrou os
sacramentos foi o mesmo, Joaquim Ferreira Ramos.13 Tanto Ma-
ria, como Manoel, eram inocentes, ou seja, morreram sem que ti-
vessem recebido os santos óleos do batismo. Talvez a família e as
próprias parteiras tenham seguido as orientações da Igreja e pro-
videnciado um batismo em casa, já que era por este sacramento
que se entrava na Igreja Católica e sem ele ninguém se pode salvar:
“Portanto, devem os pais ter muito cuidado em não dilatarem o
batismo a seus filhos, para que lhes não suceda saírem desta vida
sem ele e perderem para sempre a salvação”.14
Estas mortes em casa, sem que os rebentos recebessem o
sacramento do batismo em sequência, podem ter fragilizado a
família de Onofre, que se julgou desprotegida e vulnerável a um
ataque malfazejo. Podemos imaginar as seguintes possibilidades:
1º) Ana Joaquina devia ter fama de feiticeira na região em que

13
ACDO – Livro de Óbitos de Pessoas livres de Conceição do Arroio (1842/
1867), folha 76; Livro 3º de Óbitos de Pessoas Livres de Conceição do Arroio,
folha 4.
14
Segundo determinava as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia:
“Porque muitas vezes acontece perigarem as mulheres de parto, e, outrossim,
perigarem as crianças, antes de acabarem de sair do ventre de suas mães, man-
damos ás parteiras que, aparecendo a cabeça, ou outra alguma parte da crian-
ça, posto que seja mão, ou pé, ou dedo, quando tal perigo houver, a batizem na
parte que aparecer, e em tal caso, ainda que aí esteja homem, deve por hones-
tidade batizar a parteira, ou outra mulher que bem o saiba fazer” (VIDE, 2010,
p. 139 e 144).

144
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

vivia, não apenas com Onofre, mas com boa parte de sua vizi-
nhança. É possível imaginá-la como uma benzedeira ou ligada a
outras atividades femininas que envolviam curas e o corpo de
mulheres e crianças, em especial. 2º) A inimizade entre Onofre e
Ana Joaquina não parece estar ligada a nenhum dos fatos relata-
dos. Parece mais antiga, sendo os fatos já apontados como decor-
rentes da dita inimizade. Portanto, a atribuição das mortes foi
provavelmente feita a posteriore, na medida em que a tensão entre
os dois vizinhos se aprofundava. Quem sabe a família de Ana
Joaquina não tenha sofrido (tantas) perdas, como a de seu vizi-
nho, fazendo parecer que ela gozava de alguma proteção que ge-
rou a inveja e o rancor dos moradores lindeiros.

A má fé e o oportunismo do escravo Adão

Algumas testemunhas, e os próprios réus, repetiram diver-


sas vezes que a principal testemunha de acusação – o escravizado
Adão –, entregara seu senhor por estar magoado com o mesmo.
Corriam boatos de que Adão afirmava que em breve seria alforria-
do. Nos autos, ora parece que ele acreditava em uma promessa de
seu senhor sobre a alforria – o que Onofre diz que só ocorreria
após a sua morte e da esposa. Ora parece que a promessa vinha
de Ana Joaquina, que o teria persuadido a acusar Onofre pelo
incêndio e ela própria o alforriaria. Onofre disse em juízo que
tudo que estava sofrendo era por calúnia de seu cativo Adão, o
qual andava “de má fé com ele, com quem reinava”. Perguntado
o motivo porque o seu cativo o teria caluniado se era tratado bem,
Onofre retrucou que “só a sua má índole pode atribuir esta decla-
ração”, parecendo-lhe que Adão estava irritado pela proibição de
que ele:
[...] introduzisse em sua casa uma china de nome Maria, com
quem vivia amasiado, visto como tinha mulher e uma sobri-
nha que está criando como filha, e como tal não convinha
semelhante ajuntamento que desmoralizaria e desconceitua-
ria sua casa.

145
WITTER, N.; MOREIRA, P. R. S. • A feiticeira do litoral

Adão aparentava ser um cativo de confiança de seu senhor,


pois tinha quarto “independente da casa da família” senhorial. A
amásia dele se chamava Maria Camila, era forra, tinha 50 anos e
era natural de Rio Pardo. Em seu depoimento, Camila esclareceu
que na noite do incêndio foi a casa de Adão falar-lhe “as escondi-
das de seu senhor”, mas não o encontrou. Logo após, nos dá uma
pista interessante sobre a autonomia que gozava este escravizado,
pois não o encontrando, pegou a chave do quarto – que ele deixa-
va escondida – e esperou-o no aposento.
Um acontecimento ocorrido em 1870, e que encontramos
vestígios em um outro documento judiciário, confirma esta rela-
ção privilegiada de Adão com seu senhor. Em abril de 1870, o
lavrador pernambucano João José da Silva estava em sua proprie-
dade, próxima a de Onofre, quando o cativo Adão ali foi e pediu
que ele fosse até a porteira para conversar com seu senhor. Eram
umas 4 horas da tarde quando João e Onofre conversaram no
local combinado. Aliás, pouco conversaram, pois logo Onofre
passou a agredir o pernambucano com um relho e um porrete e
quando seu adversário caiu ao solo ele ordenou que Adão o dego-
lasse. O assassinato só não ocorreu porque João, mesmo com 65
anos, resistiu tenazmente e pôde fugir de seus agressores. O con-
flito, ao que parece, foi causado por um animal que os dois vizi-
nhos compraram ao mesmo tempo e que foi primeiro marcado
por João José.15
João José da Silva morreu 10 anos depois deste aconteci-
mento, em 23 de outubro de 1880, deixando 3 filhos menores
(Gasparina, de 11 anos; Maria, de 10; e Joana, com 9 anos de
idade). Ele era analfabeto e morava com os filhos e a mulher, Maria
José Belmud, em um rancho coberto de palha, com 33,55 metros
de campo, onde criava 3 vacas e 7 bois mansos, com a ajuda de
um cavalo manso. João era um pequeno proprietário rural, que

15
APERS – Juízo Municipal do Termo de Conceição do Arroio, Sumário Cri-
me, Processo Crime, nº 485, maço 14, 1870, Autora: a Justiça, Réu: Onofre
Pereira da Silva e o seu escravo Adão.

146
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

devia viver da pequena criação de animais e alguma lavoura, sen-


do seus bens avaliados em cerca de 225 mil réis. Pode ser um ho-
mônimo, mas acreditamos se tratar do mesmo indivíduo que pro-
moveu o fandango e/ou novena em 1871.16 Aliás, alcunhar aquela
reunião com estas duas palavras mostra bem os sentidos sagrados
e profanos das festividades dedicadas a São João. Quem sabe João
José da Silva não trouxe de sua província natal – Pernambuco – o
prazer e o enlevo em se dedicar a devoção desse santo, que talvez
fosse um hábito familiar, daí o seu nome homenageá-lo. Os fami-
liares, amigos e parentes nos legam hábitos, assim perpetuando
gostos, preferências, identidades. Acordar e festejar o santo dor-
minhoco devia fazer João José lembrar das raízes que deixara no
Nordeste, renovando suas memórias afetivas, ao mesmo tempo
que reforçava os laços com seus vizinhos e novos parentes.
Atritos como este de Onofre, João José e Ana Joaquina e
Augusto (personagem que apresentaremos melhor adiante) nos
apontam as dissimetrias e divergências comunitárias. A comuni-
dade e a vizinhança longe estão de serem espaços relacionais uni-
camente marcados pelas solidariedades e pelos apoios mútuos.
Essa sociabilidade de vizinhança, essencial em espaços rurais e
urbanos, gerava convivências e potencializava conflitos (LEVI,
2000, p. 147; WITTER, 2015b). A troca de favores entre vizinhos
criava e reforçava vínculos, mas socializava informações íntimas,
que podiam ser manejadas por uma comunidade sequiosa de bo-
atos, nem sempre positivos.
Vizinhos se ajudam e podem se tornar até parentes e com-
padres com o tempo e a persistência das positivas reciprocidades.
Mas também disputam recursos exíguos e cruciais, como terras,
gado, poder político e prestígio social.17 Aliás, marcar encontro

16
APERS – Cartório de Órfãos e Ausentes, Inventário nº 239, maço 8, 1888,
Conceição do Arroio. Inventariado: João José da Silva, Inventariante: Maria
José Belmud (viúva).
17
Encontramos alguns indícios judiciários que apontam disputas entre vizinhos
naquela comunidade rural; em 1865, Bernardo José Pereira reclamou que Ono-
fre estava fazendo derrubadas (estragando os matos) em suas terras, no lugar de-

147
WITTER, N.; MOREIRA, P. R. S. • A feiticeira do litoral

na porteira de certa forma evidencia essas clivagens comunitárias.


Onofre não parece se sentir à vontade para penetrar no espaço
familiar de seu vizinho, por isso chamou-o para um diálogo (ou
escaramuça) num local que marca um nó entre a propriedade pri-
vada e a estrada, de domínio público, território de ninguém, ou
de todos, ou do Rei. O uso de seu trabalhador escravizado Adão
como capanga denota certa covardia, mas também se pode ler
esse ato como uma afirmação sua de superioridade social ao vizi-
nho: ele tinha sob a sua égide homens (mesmo cativos) que por
ele lutavam e até mesmo matavam.18
O documento judiciário produzido pelo incêndio que des-
truiu a residência de Ana Joaquina de Oliveira é rico também em
evidenciar como as experiências de cativeiro eram plurais, sem
que isto descaracterize a violência e a desigualdade que marca-
vam aquela relação de trabalho compulsória. O preto Manoel do
Nascimento, escravizado por Domingos Antônio de Pinho, pelo
fato de portar um sobrenome, mesmo ainda cativo, demonstra ter
conquistado alguns privilégios. Ainda relativamente jovem – apa-
rentava ter cerca de 30 anos – suas habilidades profissionais (entre
as quais talvez possamos inserir as práticas mágico-curativas, já
que era também considerado curandeiro/feiticeiro) e a importân-
cia que tinha na gestão da unidade produtiva de seu senhor o

nominado De Trás da Serra. Em 1871 Onofre e sua mulher discutiram na


justiça a posse de uns terrenos na Costa da Serra, cercado irregularmente por
um vizinho. APERS – Cartório do Cível, Ação Possessória nº 247, maço 6,
1865, Conceição do Arroio. Autor: Bernardo José Pereira, Réu: Onofre Perei-
ra da Silva e sua mulher; APERS – Cartório do Cível, Ação Possessória nº
255, maço 7, 1871, Conceição do Arroio. Autor: Onofre Pereira da Silva e sua
mulher, Réu: Guilherme de Melo Falcão e Laurindo Eufrásio da Rosa.
18
Não sabemos o estado físico e as habilidades guerreiras de cada um dos vizi-
nhos contendores, mas eles eram similares em termos etários. O pernambuca-
no João José tinha 63 anos e Onofre deveria ter cerca de 60. Cinco anos antes,
Onofre Pereira da Silva, com o número 315, foi arrolado na lista de votantes de
Conceição do Arroio. Tinha 55 anos, era casado e reconhecido comunitaria-
mente como lavrador. (AHRS – Lista dos Cidadãos que foram excluídos da
Lista Geral dos Votantes pela Junta revisora de Qualificação da Vila da Con-
ceição do Arroio, 29.01.1865)

148
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

localizavam positivamente naquela comunidade, mesmo sendo


cativo.19
As comunidades negras (coabitando ou não as mesmas sen-
zalas), por serem compostas por seres humanos envolvidos em
suas inerentes redes relacionais, possuíam hierarquias internas,
demarcadas por laços consanguíneos e parentescos fictícios, ali-
anças e divergências étnicas e afetivas (ENGELMANN, 2008).
Vários indícios encontrados no processo mostram a autonomia
relativa de que gozava o roceiro Manoel Nascimento. Adão des-
creveu-o se deslocando em uma égua malacara20, o que lhe facili-
tava a mobilidade por aquelas estradas da serra e do litoral. Ou-
tras testemunhas, ao falarem de Manoel, dizem tê-lo encontrado
em sua senzala, o que nos parece indicar um local de residência
(chamado por ele de rancho em seu depoimento) apartado da resi-
dência senhorial, mas dentro da propriedade de seu senhor, onde
Manoel pudesse entreter relações sem tantas restrições.21 Entre
essas relações estavam os passeios que usualmente Manoel Nasci-
mento fazia a um vizinho, o lavrador João Silveira, descrito como
crioulo e, portanto, um indivíduo egresso do cativeiro. Nessas lú-
dicas visitas eles conversavam, bebiam cachaça (abundante na-
quela região de plantação de cana e ainda hoje produto típico

19
Domingos Antônio de Pinho, o senhor de Manoel Nascimento, era casado
com Clarinda Maria Gertrudes. Ele era filho de Vicente Antônio de Pinho e
Leonarda Teodora do Amor Divino e ela de Inácio Rodrigues da Costa e Ger-
trudes Rodrigues da Costa (ACDO – Livro 6 de Batismos da Conceição do
Arroio de Brancos e Livres, 1856 /1863, folha 180v/181).
20
Malacara: “Animal que tem a testa branca, com uma lista da mesma cor que
desce até o focinho” (NUNES; NUNES, 1992, p. 276).
21
O lavrador Serafim Machado Lopes testemunhou que foi procurar um cavalo
seu “que costuma passar para o potreiro de Domingos Pinho” e que chamou
por Nascimento, “que estava em sua senzala e pedindo-lhe fogo acendeu o
cigarro”. Em um de seus depoimentos, Manoel informa que o escravo Adão
foi algumas vezes até a casa de seu senhor e que numa destas lhe pediu pousa-
da, a que ele teria respondido “que se entendesse com seu senhor, o que feito
este a concedeu”. Como o rancho era nas terras do senhor, onde devia ter uma
pequena roça, Manoel gerenciava aquele seu espaço com autonomia condicio-
nal ou relativa.

149
WITTER, N.; MOREIRA, P. R. S. • A feiticeira do litoral

local), dividiam opiniões, compartilhavam hábitos, criavam e re-


criavam identidades sócio raciais e de gênero.
Manoel Nascimento descrevia-se como trabalhador de roça,
mas também, como vimos, desempenhava atividades no engenho
de seu senhor. As experiências sociais dos escravizados estavam
profundamente vinculadas aos mundos do trabalho em que tran-
sitavam. Incluídos nessas experiências sociais, temos os espaços
de (relativa) autonomia, que também dependiam em grande me-
dida do desmedido esforço desses trabalhadores. Em regiões eco-
nomicamente periféricas e marcadas pelas pequenas escravarias,
onde os senhores não podiam isentar-se completamente do traba-
lho manual, era comum os trabalhadores escravizados se ocupa-
rem de variadas atividades.
Interrogado sobre a sua relação com Onofre, o réu Manoel
Nascimento relatou dois momentos marcados pelo fornecimento
de casca, sendo que em um deles esse produto era dirigido ao Au-
gusto do curtume. Perussatto (2010, p. 43) narra um caso ocorrido
em 1873, na região de Rio Pardo, quando um preto forro foi acu-
sado de furtar “três arrobas de cascas de araçá”, as quais foram
vendidas no curtume de um alemão (Jacob Matt). Não sabemos
se as cascas conduzidas e negociadas por Manoel Nascimento
eram de araçá, mas como esta é uma árvore de quase 10 metros
muito comum na mata atlântica é bem possível que seja. De qual-
quer forma, a extração da casca de araçá, da qual se produzia
excelente corante usado nos curtumes, pode ter significado um
reforço na economia daquelas pequenas e médias propriedades.
Quiçá os escravizados não encontraram também nessa extração
de casca nas árvores dos abundantes matos da costa da serra uma
forma de acúmulo de pecúlios.
Quanto a Adão, a relação dele com o seu senhor Onofre
era similar, como já mencionamos anteriormente. Ele morava em
um quarto apartado da casa senhorial, no qual tinha suas coisas,
inclusive fechadas a chave, e ali recebia sua amásia Maria Cami-
la, com a qual não coabitava. Maria Camila era descrita por dois
qualificativos pelas testemunhas, de forra – indicando ser também

150
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

uma egressa do cativeiro –, e china. Amasiar-se com uma mulher


egressa do cativeiro já mostra como Adão era considerado um
bom partido naquele mercado afetivo-matrimonial. Já a alcunha
de china foi usada em dois depoimentos, do réu Onofre e do açou-
gueiro negro uruguaio José Maria. No primeiro caso, talvez a
palavra tenha sido usada para destacar a consensualidade (por-
tanto, imoralidade) das relações de Adão e Camila; no segundo, o
qualificativo pode ser uma referência a ela ser mestiça de negros e
índios, o que facilmente se justificaria pela forte demografia indí-
gena e afrodescendente da região de sua origem, Rio Pardo (RI-
BEIRO; FONTELLA, 2015).
Mas a traição de Adão, que fez seu senhor ser arrastado aos
tribunais e as costas de Nascimento sangrarem, não ficou impu-
ne. Ao longo do processo a principal testemunha de acusação de-
saparece, mas não antes de agravar a situação de seu senhor em
dois depoimentos ferinos. O lavrador Onofre tinha um conheci-
do com quem entretinha relações cordiais e comércio. Tratava-se
do teuto-brasileiro Augusto Kunz, mencionado logo acima por
comprar cascas para o seu curtume, casado, que tinha 39 anos na
época, morava no litoral, mas havia nascido em São Leopoldo,
cidade próxima de Porto Alegre e onde em 1824 foi instalada uma
colônia formada por imigrantes alemães. Como punição por ter
denunciado seu senhor, Adão foi vendido a Augusto por um con-
to e duzentos mil réis, em 22 de julho de 1871, o qual, por sua
vez, remeteu-o para São Leopoldo, onde foi comprado por um
terceiro. Malograram os planos de alforria do preto Adão, mas
isso não passou despercebido às autoridades judiciárias, que in-
terrogaram seu ex-senhor Onofre perguntando francamente “se
essa venda foi efetuada com o fim de apartar o escravo para lon-
ge, a fim de não dizer o que soubesse?”.22

22
APERS – 2º Distrito de São Domingos das Torres, Livro Notarial de Trans-
missões e Notas S/n.º – 1864 a 1885, folha 21r; ARQUIVO PÚBLICO DO
ESTADO DO RS, 2010: p. 427.

151
WITTER, N.; MOREIRA, P. R. S. • A feiticeira do litoral

Não temos mais notícias de Adão, que submergiu nas fon-


tes documentais que tratam do abundante número de escraviza-
dos existentes em São Leopoldo. Pesquisas recentes23 evidencia-
ram que imigrantes alemães e seus descendentes, logo que acu-
mulavam capital suficiente, adquiriam trabalhadores escraviza-
dos como os demais habitantes das terras brasileiras. A tática de
Onofre vendendo seu cativo dedo-duro para lá, talvez tenha sido
sugestão de Kunz, que nascido em São Leopoldo, sabia ser o lo-
cal consumidor de mão-de-obra escravizada.
Estes dois seres humanos – o escravizado e o seu senhor –
localizavam-se em pontos desiguais daquela sociedade escravista
e estavam envolvidos em um jogo composto de dissimulação e de
expectativas mútuas, baseado em uma interdependência que já se
alongava por vários anos. Ao atribuir às calúnias de seu escravo
Adão o processo que sofria, Onofre desmascara sua surpresa com
o comportamento daquele seu trabalhador, a quem até mesmo
ele e a mulher haviam planejado dar a alforria condicional, após
a morte do casal. O depoimento de Onofre na justiça é dúbio no
que se refere a descrição do relacionamento que tinha com Adão,
dizendo “que o seu escravo anda de má fé com ele respondente,
com quem reinava”. Pressionado a dizer se tinha ou não confian-
ça no escravo Adão, Onofre retruca: “que nunca teve inteira má
fé, nem tão pouco boa-fé, porque não servia bem, não fazendo ou
executando com pontualidade suas ordens, sendo nisto o que con-
sistia a falta de confiança que no mesmo tinha”. Perguntado se o
escravo Adão era humilde e dócil para com ele, “respondeu que
umas vezes sim e outras não”.
Aquele indivíduo escravizado, fiel durante anos ao seu se-
nhor-algoz, denuncia-o para as autoridades, traindo a confiança
que seu senhor dele esperava. Esse mesmo cativo que anos antes
parecia disposto a matar por seu senhor – a mando de seu senhor

23
Ver: ALVES, 2004; CHARÃO, 2002 e 2004; MOREIRA & MUGGE, 2014;
OLIVEIRA, 2006; TRAMONTINI, 2000; WITT, 2008.

152
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

–, neste documento judiciário aparece aproveitando uma chance


de se livrar do jugo do cativeiro. Será que ele tinha alguma forma
de afeto com a feiticeira? Será que ela o afetava de alguma forma?

Um turbulento teuto-brasileiro

O personagem Augusto Kunz não apareceu naquele cená-


rio apenas ao final, adquirindo e revendendo a principal testemu-
nha de acusação. Ele foi citado em vários momentos nos depoi-
mentos. Ele tinha 39 anos, era casado, natural de São Leopoldo,
filho do casal de alemães Johannes Kunz (natural de Schwarzer-
den) e Anna Catharina Dick (de Langenthal), chegados naquela
colônia alemã em 16.12.1827, acompanhados de duas filhas (Anna
Catharina e Catharina). Johannes/João era evangélico e padeiro
e faleceu em 1855, três anos depois de sua esposa. Augusto Kunz
redigiu seu testamento em Osório, em 16.08.1868, onde declarou
ser casado a face da Igreja com Cândida Manique, sem filhos, indi-
cando sua viúva como primeira testamenteira, sendo 2o José de
Almeida Lessa e 3o Joaquim Ribeiro Silva Rocha.24
Não sabemos desde quando Augusto Kunz morava no lito-
ral norte, mas consta no processo menções a construção de sua
casa, na qual teriam ajudado os escravizados Adão e Manoel Nas-
cimento. Ele desempenhava o ofício de curtidor, que certamente
deve ter aprendido ainda em São Leopoldo, local de efusiva pro-
dução artesanal em couro. Sua mudança para o litoral deve ter
sido motivada por atritos que teve em São Leopoldo, mas tam-
bém pela presença da colônia alemã litorânea de Três Forquilhas
(TRAMONTINI, 2000; AMADO, 2003; WITT, 2001 e 2008).
As reiteradas vezes em que Augusto Kunz, um destacado
personagem coadjuvante de nossa narrativa histórica, aparece nos
documentos judiciários e policiais daquela região do litoral nor-

24
APERS – Cartório da Provedoria de Resíduos da Conceição do Arroio, Comar-
ca de Santo Antônio da Patrulha, Testamento nº 75, 1878; ROSA, 2005, p. 90.

153
WITTER, N.; MOREIRA, P. R. S. • A feiticeira do litoral

te, atestam sua circulação por instâncias diversas e talvez tentati-


vas de socialização e participação política de um aparente out si-
der. Os documentos gerados pela esfera pública – principalmente
jurídica e policial – materializam uma sociabilidade ao rés-do-chão,
cheia de atritos, solidariedades, reclamações entre vizinhos. Os
exíguos recursos daquela sociedade oitocentista eram disputados
com afinco, seja em termos materiais (gado, terras) ou imateriais
(prestígio social, afeto).
Em 1876, o professor de primeiras letras João Jacinto de
Andrade montou um processo contra Kunz25, por tê-lo ofendido
durante as eleições paroquiais. Em 14 de outubro, no interior da
Igreja de Conceição do Arroio, a mesa paroquial avaliava as cé-
dulas, quando se apresentou uma delas traçada. Daí derivou uma
discussão na mesa paroquial sobre a validade daquela cédula, onde
se intrometeu Augusto Kunz, que não fazia parte da mesa, des-
respeitando as autoridades e até ameaçando sacar um revólver.
Um criador que estava presente naquele dia de eleições tentou
justificar o exaltamento de Augusto, dizendo que ele entendia mal
o português e que assim não compreendeu direito o que o profes-
sor João Jacinto lhe admoestara.
O autor da queixa escreveu um ofício para as autoridades
dizendo que o réu não era um cidadão útil a sociedade, pois que em
todos os lugares em que já morou “tem feito ações pelas quais já
há muito devia ter respondido”. Em São Leopoldo, onde então
morava, estando em uma sociedade de baile frequentada pelas
melhores famílias do local, Augusto convidou uma dama para
dançar e ela polidamente se recusou. Ele então pegou uma porção
de palha e jogou aos pés da moça dizendo: “vai parir os teus fi-
lhos sobre estas palhas” e dito isto teve de se evadir para não levar
o merecido castigo. O simbolismo da palha é por demais evidente
naquela sociedade ainda rural, significando o ato de gerar como
um animal uma ofensa social (pois indica tomar aquela mulher

25
APERS – Juízo Municipal do termo de Conceição do Arroio, Processo Crime,
nº 544, maço 16, 1876, Autor: João Jacinto de Andrade, Réu: Augusto Kunz.

154
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

por uma pessoa carente de recursos materiais e relacionais para


ter um bom parto) e também de gênero (pois reduzia a mulher a
atividade da procriação). Se a dama ofendida foi, como disse o
acusador, defendida, isso prova que ela contava com a distinção
comunitária e, portanto, não era uma desclassificada.
A queixa do professor Andrade também informava que as
turbulências de Kunz não encerraram quando de sua mudança
para o litoral, onde maltratou com palavras um negociante em
Tramandaí, chamado Zeferino Antônio Gomes. Assim, Augusto
seria um homem prejudicial à sociedade, já se tendo envolvido tam-
bém em um caso de arrombamento em Conceição do Arroio, onde
roubaram algumas peças de prata.
Aquelas brigas ocorridas nas eleições de 1876, naquele nada
pacífico litoral norte gaúcho, configuram-se como desdobramen-
tos dos atritos entre liberais e conservadores. O Juiz de Direito da
Comarca de Santo Antônio da Patrulha, Paulino Rodrigues Fer-
nandes Chaves, conservador, reclamava providências do Império
contra o Juiz Municipal da mesma vila, que por sua vez era libe-
ral (WITT, 2001).
O exaltamento de Augusto Kunz, certamente simpatizante
dos liberais, não se esgotou naquela discussão com o professor de
primeiras letras, na Igreja de Conceição do Arroio. Em dezembro
daquele mesmo ano de 1876 Augusto foi preso pelo crime de tenta-
tiva de morte contra o então Juiz de Direito Paulino Rodrigues
Fernandes Chaves e o Promotor Público José Antonio Botelho.
Augusto Kunz em seu depoimento disse ser filho de João Kunz,
ter 44 anos, casado, oficial curtidor, brasileiro (de São Leopoldo),
que sabia ler e escrever. Em fevereiro do ano seguinte uma sumarís-
sima investigação, que arrolou apenas três policiais como testemu-
nhas, comprovou o suicídio de Augusto na cadeia local, que teria se
enforcado com um laço preso a um travessão da cela que ocupava.
Não sabemos se Augusto suicidou-se ou foi suicidado (assassinado).26

26
Onofre Pereira da Silva também aparece metido nestas questões político-elei-
torais, reclamando ter sido qualificado com o nome errado. O apoio do Juiz de

155
WITTER, N.; MOREIRA, P. R. S. • A feiticeira do litoral

Feiticeira, mãe, queixosa, costureira

O lavrador Onofre Pereira da Silva é bastante criticado ao


longo do processo – por vizinhos, escravizados e até mesmo pa-
rentes –, o que demonstra que o mesmo não gozava de grande
estima em sua comunidade, pelo menos naquele momento. Sem
ter muito o que alegar, ele tentou jogar toda a responsabilidade da
denúncia nas costas de seu escravizado Adão, que estava muito
longe de ser inocente naquela trama comunitária.
A atenta comunidade ouvira Onofre várias vezes se referir
à Ana Joaquina de Oliveira como feiticeira, o que dava um bom
motivo para que ele tivesse sido o mandante daquele incêndio tão
bem realizado. Ele dizia ignorar a razão da inimizade da queixosa
com ele e alegava que com ela se dava muito bem: “Respondeu que
quando com a queixosa se dava, sempre lhe chamara de feiticeira,
mas por brincadeira e que depois que com ela ficou político, nunca
disse, falando com seriedade, que a mesma era feiticeira”.
Usar o termo político para descrever o distanciamento rela-
cional estabelecido entre ele e sua vizinha é significativo da ma-
neira como aquela sociedade rural oitocentista percebia os espa-
ços das leis e do governo. Tornar-se político era se afastar de al-
guém, negar-lhe intimidade, estabelecendo uma distância social
sem parentesco ou amizade. De certa forma, adjetivava uma rela-
ção comunitária marcada não pela solidariedade (real ou poten-
cial), mas pelo estranhamento.

Direito a reivindicação de Onofre faz-nos crer que ele era simpatizante dos
conservadores. APERS – Cartório do Civel e Crime, Corpo de delito, nº 856,
maço 32, 1877, Vítimas: Augusto Kunz, Antonio Joaquim Teixeira e Miguel
Antônio Jacques; APERS – Habeas Corpus, nº 881, maço 33, 1877, Pacientes:
Augusto Kunz, Cândido Gomes Ribeiro e João Polidoro de Souza. Em 1870,
Augusto Kunz foi denunciado por ter injuriado o negro José Maria, conhecido
por Adão – chamando-o de ladrão, na casa de negócio do Alferes Antônio
Higino da Silva Freitas. Adão era uruguaio e movia um processo contra a sua
escravização ilegal por Felisbino Rodrigues Saraiva. APERS – Comarca de
Santo Antônio da Patrulha, Caixa 274, processo crime 480.

156
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Mas quem era Ana Joaquina de Oliveira e como ela se rela-


cionava com aquela comunidade? Infelizmente, Ana Joaquina
nunca foi chamada a depor. Como ela foi chamada de velha pelo
réu Onofre, segundo um dos depoentes, cogitamos que ela tinha
uma idade similar a de Onofre, por volta dos 60 anos.
Anos depois, para a sorte dos pesquisadores, Ana Joaqui-
na entrou com um novo processo contra Onofre, que continuava
se negando a pagar a indenização a que havia sido condenado.27
O prejuízo de Ana Joaquina fora estipulado em 2 contos e 500
mil réis, e Domingos Antônio de Pinho já havia vendido o seu
escravizado Manoel Nascimento por 1 conto e dado esta quantia
para a queixosa. Faltava o restante, que cabia a Onofre saldar.
Onofre alongou a discussão judiciária, procurando justifi-
car que a indenização pedida era excessiva, pois Ana Joaquina de
Oliveira era pobre e a sua casa muito miserável. Quanto à estru-
tura material da casa, várias testemunhas atestam que ela era co-
berta de palha, de pau-a-pique e ripa, “porém de boa construção,
e a mobília compunha-se de mesas, bancos, caixas, camas, tea-
res”. O depoimento do lavrador Antônio Rosa da Conceição
transparece certa irritação ao defender a humildade da cultura ma-
terial daquela comunidade, respondendo que a casa era coberta
de palha: “e que as casas de telhas e tijolos não eram a únicas que
tinham valor”. O pouco valor atribuído para as casas humildes,
na visão daquele lavrador possivelmente negro, refletiria também
na desvalorização de seus moradores, o que pode ser entendido
como uma crítica às hierarquias sociais e raciais daquela comuni-
dade. A aparência física das moradias não deveria – naquela postu-
ra igualitária do lavrador Conceição – discriminar hierarquizando
o merecimento e a estima social das famílias ali residentes.28

27
APERS – Tribunal da Relação de Porto Alegre, Processo crime nº 993, Ape-
lante: Onofre Pereira da Silva, Apelada: Ana Joaquina de Oliveira. Data do
processo: 1875, Município: Osório, Comarca de Santo Antônio da Patrulha.
28
Sobre este assunto das “Estruturas de habitação como indicadores de estrutu-
ras sociais”, ver ELIAS (2001).

157
WITTER, N.; MOREIRA, P. R. S. • A feiticeira do litoral

Segundo os depoimentos, Ana Joaquina tinha sete filhos.


Conforme o negociante Zeferino Antônio Gomes se tratava de
uma família pobre, “mas muito trabalhadeira” e, por isso, esta-
va muito bem suprida de roupas e alimentos. A família se vestia
bem e era das mais “habilitadas de missas da Costa da Serra”.
Zeferino destaca que desde que se conhece por gente vê esta família
empregada em assíduo trabalho. Um dos filhos de Ana Joaquina
era empregado público, outro trabalhava na roça e outro “é ho-
mem para todo o serviço, como seja, lavoura, campeiro, sem
que tenha carreta sua”. Suas quatro filhas se dedicavam ao tra-
balho doméstico, “e que, por conseguinte, todos reunidos debai-
xo do mesmo teto e para o mesmo fim concorrendo, não é para
admirar que possuíssem, após anos de trabalho, a quantia de 3
contos de réis nos objetos que foram consumidos”. Segundo o
lavrador Laurindo Elias da Silveira, a natureza dotou os filhos
de Ana de braços musculosos, “com eles lavravam a terra dois fi-
lhos da justificante, 4 filhas empregavam-se em tecer e fiar, e um
empregado público”. O negociante Francisco Correia de An-
drade confirma a dedicação das mulheres da família a atividade
de tecer e fiar, informando que Ana Joaquina comprava em sua
casa avultadas quantias em fazendas, empregando-se “assidua-
mente no trabalho, sem ser pesados a pessoa alguma”. O já cita-
do lavrador Antônio Rosa da Conceição diz que aquela humil-
de família, graças ao seu trabalho, tinha a casa muito bem supri-
da, “tanto que o próprio justificado [Onofre] para lá corria quan-
do tinha faltas, como sucedeu quando morreu sua mãe”29. A
honesta e honrada pobreza daquela família, descrita pelos vizi-

29
No primeiro processo abordado neste artigo, o procurador da queixosa desen-
volve um violento arrazoado contra o réu, procurando demonstrar como ele
era mal visto naquela comunidade pelos maus tratos infligidos a sua família:
“como filho e esposo é o ente mais digno de excomunhão de Deus e dos ho-
mens, por que a sua desditosa mãe, na avançada idade de oitenta e tantos anos,
sucumbiu pela fome e serviu de pasto aos animais, que a devoraram no sertão,
onde se entranhou em consequência do abandono do apelante e outros filhos,
que a expulsaram fora de casa”.

158
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

nhos como unida e laboriosa, fez desmoronar as insinuações de


Onofre, que foi obrigado pelo Juiz de Direito Paulino Rodri-
gues Fernandes Chaves, em 13.10.1874, a pagar para Ana Joa-
quina o valor de um conto e 500 mil réis.
Em nenhum momento do processo encontramos uma pre-
sença masculina – fora dos três filhos citados – ao lado da feiti-
ceira Ana Joaquina. Ela aparece nos documentos como a matri-
arca de uma família, cujo gerenciamento era elogiado pelos vi-
zinhos, os quais destacam a capacidade de trabalho dos filhos e
filhas e a ausência de desmazelo em sua bem-cuidada residên-
cia. Isso parece indicar matricentralidade, uma “ausência relativa
do homem” (LOBO, 2006). Mesmo que outros homens estives-
sem ali fisicamente presentes, eles parecem atuar de forma pou-
co consistente naquele enredo, onde o protagonismo parece re-
sidir na ação feminina.
Naquelas hierarquias sociais e de gênero comunitárias,
Ana Joaquina de Oliveira não parece ser uma mulher sozinha e
desprotegida. Uma rede comunitária composta de vizinhos a de-
fendeu durante o processo, mostrando como, naquelas relações
cotidianas, provavelmente mantidas por trocas de favores diver-
sos, ela era um polo importante. Noções distintivas cruciais na-
quela comunidade rural a visibilizam positivamente, como por
exemplo a gestão positiva da sua família (que parece sempre
unida) e a educação bem-feita dos filhos e filhas, identificados
como (bons) trabalhadores. Nenhuma desqualificação moral lhe
é dirigida, ela é vista circulando distintamente em dois impor-
tantes observatórios comunitários (a venda e a igreja) e se os
seus filhos eram ilegítimos, tal fato não é citado como inconve-
niente.
Uma análise sociocultural parece ser o melhor recurso ou
caminho para refletirmos sobre os vários papéis exercidos por
esta mulher naquela região rural, localizada entre a serra e o
litoral marítimo. Suas habilidades mágico-curativas devem ter
sido importantes na configuração dessa rede de apoios comuni-
tários, por talvez se efetivarem em auxílios aos vizinhos em

159
WITTER, N.; MOREIRA, P. R. S. • A feiticeira do litoral

momentos de doença familiar, parto, consolo psicológico-espi-


ritual em casos de morte. Conforme Witter:
O cotidiano das mulheres [...] do século XIX era marcado
pela importância que, nas agruras do dia-a-dia, se revestiam
os laços de parentesco, comadrio e vizinhança. Estes permiti-
am que se estabelecesse uma ampla rede de relações, na qual,
a troca de favores era a moeda que permitia a essas mulheres
locomoverem-se, ampliarem suas possibilidades, negociarem
com as regras hostis e poderiam, guardadas as devidas pro-
porções, até mesmo aproximar diferentes categorias sociais.
(2015b, p. 53).

Talvez não possamos descartar a própria habilidade dela


e das filhas na confecção de roupas para usos diversos, com o
manejo dos teares queimados pelo fogo criminoso. Sabemos
como naquela sociedade pré-industrial as roupas ainda manufa-
turadas acompanhavam desejos pessoais e davam sentido a mo-
mentos especiais. A roupas, de fato, eram a base da representa-
ção pessoal diante dos outros, e também uma forma de estabele-
cer hierarquias, respeitabilidade e projetos de ascensão (CRA-
NE, 2006). Frequentar a Igreja, por exemplo, acompanhada por
suas filhas e filhos, todos vestidos adequadamente, era uma for-
ma de distinção social, mesmo que as roupas fossem humildes,
mas bem-feitas (HOLLANDER, 1996). O fazer das roupas cria-
va um outro momento de sociabilidade feminina, já que enco-
mendar a roupa significava trocar gostos e impressões, comen-
tar informações (às vezes íntimas) das respectivas famílias, po-
tencializando redes de apoio feminino. Além disso, naquela so-
ciedade pré-industrial e agrária o pagamento pelo produto não
deveria ser unicamente (ou principalmente) monetário, mas atra-
vés da troca de pequenos favores, partes das produções familia-
res, num jogo social de interesse, intimidade e reciprocidade.
O ano de ocorrência do incêndio, 1871, aponta para a pro-
ximidade com o conflito bélico com o Paraguai, quando àquela
família pode ter intensificado suas atividades com a produção
de alguns produtos específicos para o esforço militar, como pon-

160
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

chos de lã (conhecidos como ponchos de bichará)30, fardas e en-


xergões.31
Em nenhum momento existe menção a terem sido queima-
das, junto com a casa e os móveis, roupas prontas. Isso nos per-
mite especular que as roupas eram produzidas sob encomenda e
mesmo para o consumo familiar. O processo cotidiano de traba-
lho que envolve o fiar, o tecer, o costurar, possibilitava espaços de
convívio femininos: o fazer das roupas, os hábitos compartilha-
dos, a forma como o encomendar roupas fomentava
troca de solidariedades entre aquelas mulheres do mundo
rural numa sociedade pré-industrial. O mundo das solidarieda-
des femininas:
Parentas e vizinhas tinham por costume revezar-se no auxílio
daquela que precisasse e, dentre todas, a figura mais presente
era, geralmente, a da comadre. Sua posição privilegiada de
partilha a fazia participante dos momentos mais importantes
da história da família: dos nascimentos, dos aniversários, das
doenças e da morte. Faziam seu papel ajudando nas costuras,

30
Bichará: “Tecido de lã grossa. O poncho ou cobertor feito dessa lã, com lis-
tras brancas e pretas ao comprido” (BOSSLE, 2003, 77/78). Durante a guer-
ra civil que assolou a província de 1835 a 1845 o comandante interino das
armas, João Manoel de Lima e Silva, em 8 de outubro de 1836, mandou que
os seus subordinados em Pelotas reunissem toda a lã e os teares que encon-
trassem nas vizinhanças e se dedicassem com afinco a fatura de ponchos bi-
chará. Os ponchos deveriam ser de uma cor só, usada a tintura feita da erva
da pedra, que era um líquen de cor cinza-avermelhada (ARQUIVO HISTÓ-
RICO DO RS, 2014, p. 374).
31
Enxergão: “Xairel de lã que se coloca sobre o lombo do cavalo, por baixo dos
arreios. O mesmo que baixeiro” (NUNES, 1992, p. 167). Nos inventários post-
mortem de Porto Alegre do período, acessados em função de outro projeto de
pesquisa, encontramos vários teares, avaliados entre 600 réis (um bem velho) e
11 mil réis. Em um inventário de 1862, que arrola os bens de uma propriedade
rural localizada no distrito sul de Viamão, encontramos um “tear de fazer enxer-
gões” (APERS – 2ª Vara de Família e Sucessão, Cx 004.1447, auto 273 – 1862;
APERS – 2ª Vara de Familia e Sucessão, Cx 004.1447, auto 279, 1863; APERS
– 2ª Vara de Família e Sucessão, Cx 004.1443, auto 219, 1859, Porto Alegre;
APERS – 2ª Vara de Familia e Sucessão, Cx 004.1442, auto 204, 1856; APERS
– 2ª Vara de Familia e Sucessão, Cx 004.1439, auto 159, Gravatai, 1857; APERS
– 2ª Vara de Familia e Sucessão, Cx 004.1441, auto 186; APERS – 2ª Vara de
Familia e Sucessão, Cx 004.1436, auto 132, 1856, Viamão, distrito Norte).

161
WITTER, N.; MOREIRA, P. R. S. • A feiticeira do litoral

no preparo de comidas e remédios, nos cuidados dispensa-


dos aos doentes. Muitas vezes era também a principal conse-
lheira, aquela com quem se dividia os problemas da família
nuclear e extensa (WITTER, 2015b, p. 54).

Conclusões

Haverá história sem imaginação? Será um bom e eficiente


pesquisador aquele que não sabe especular criativamente sobre o
passado? A historiadora Sandra Pesavento tomava como pressu-
posto “que a história utiliza recursos da ficção para compor a sua
trama, definir enredos e articular versões sobre a realidade e a
literatura” (PESAVENTO, 2008, p. 148), navegando próximo ao
que se convencionou denominar – na micro-história italiana – de
imaginação histórica, que não se refere a dicotomia verdadeiro X
inventado, “mas na integração, sempre assinalada pontualmente,
de ‘realidades’ e ‘possibilidades’” (GINZBURG, 1991, p. 183).
Segundo o historiador italiano Giovanni Levi (2000, p. 90), sem-
pre existe na narrativa e na pesquisa histórica, “lacunas, impreci-
sões, obscurantismos e ausências. Por esta razão, a reconstrução
dos acontecimentos e das biografias será, frequentemente, impres-
sionista, alusiva e até, talvez, imaginária [...] indicações ricas e
esporádicas [...] exigem um esforço de fantasia ativa por parte do
leitor”.
As palavras informam, mas também camuflam e distorcem
realidades, mas mesmo fazendo isto não são inúteis para a pes-
quisa histórica, pois evidenciam verdades possíveis, verossímeis,
valores que são vistos comunitariamente como motivos poten-
ciais, aceitos como motivadores de ações diversas. Ler densa e
etnograficamente os documentos judiciários significa ser aquele
tipo de historiador que espreita as realidades históricas ao rés-do-
chão, apreciando os desvãos e as lacunas, apetecendo segui-los e
preenche-los.
Onofre e Ana Joaquina há muito deixaram de existir. A
casa queimada, hoje, só poderá ser encontrada em alguma esca-

162
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

vação arqueológica. Domingos e Adão, talvez, jamais tenham visto


a liberdade. No entanto, suas vidas nos documentos nos dão con-
ta da vivacidade com que, no século XIX, as crenças e a magia
estruturavam as relações sociais e davam forma aos conflitos coti-
dianos.

Abreviaturas

ACDO – Arquivo da Cúria Diocesana de Osório;


AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul;
ANRJ – Arquivo Nacional – Rio de Janeiro;
APERS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul;
BNRJ – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro;
OSO – Osório;
SAP – Santo Antônio da Patrulha.

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166
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Arqueologia do Sagrado:
crenças, histórias e mitos do Cariri
Edianne Nobre

O Vale é sem exageração [sic] de uma riqueza e vastidão que


faz lembrar o Oásis da Líbia para onde correm os árabes do
deserto (BRASIL, 1964, p. 101).1

Dizem que quem bebe da água do Cariri não sai mais de lá,
cai no feitiço das águas doces da Chapada do Araripe. Conhecida
principalmente pela riqueza de sua vegetação, terra fértil e suas
inúmeras fontes de água mineral, a região do Cariri – ou Vale do
Cariri, que compreende a Serra do Araripe e os afluentes dos rios
Jaguaribe e Piranhas – destaca-se por ter uma geografia distinta
das outras regiões do Ceará.
Viajantes e estudiosos da história local sempre chegaram
ao consenso, em suas narrativas, que a região se apresentava como
um alento diante do clima hostil predominante nas regiões vizi-
nhas. Um dos primeiros relatos conhecidos sobre o Vale é do pa-
dre e geógrafo português Manoel Aires de Casal que em sua Coro-
grafia Brasílica, publicada em 1817, afirmava:
Todas as árvores frutíferas do continente prosperam no fértil
terreno do seu distrito, onde se aproveitam as águas correntes
para regar as lavouras, sem excetuar os mandiocais, quando
lhes faltam as chuvas: razão por que se recolhe superabundân-
cia de mantimentos, que são o recurso de outros povos, quan-
do os anos secos experimentam carestia (CASAL, 1947, p. 231).

1
Destacamos que fizemos a correção ortográfica das citações de livros fac-sími-
les, bem como de todas as fontes documentais utilizadas neste trabalho a fim de
facilitar a leitura. Os periódicos citados foram pesquisados no acervo hemero-
gráfico da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro entre 2010 e 2011. Todas as
citações bíblicas foram retiradas da Bíblia de Jerusalém, São Paulo: Paulus, 2002.

167
NOBRE, E. • Arqueologia do Sagrado: crenças, histórias e mitos do Cariri

Esse imaginário2 sobre o poder das águas do Vale é repetido


continuamente na historiografia e, muitas vezes, serviu de legiti-
mação para práticas e manifestações religiosas que perduram até
hoje. Missionários, penitentes, santos populares, beatas e até al-
mas do outro mundo são personagens conhecidos e familiares da
população local e suas histórias são contadas até hoje.
Neste artigo propomos uma breve arqueologia3 das histórias
que povoam o Cariri e que o conformam em um espaço sagrado4
ressignificado e reinventado continuamente nas vozes de diversos
narradores. Devemos considerar, em primeiro lugar, que o espa-
ço não aparece aqui como um mero cenário ou paisagem geográ-
fica, mas é construído, a partir das experiências, vivências e rela-
ções que se estabelecem entre os sujeitos.
O sagrado, por sua vez, encontra-se no campo do sobrena-
tural, em contraponto ao que podemos chamar de “realidades
naturais” que é o campo de atuação do profano: “A primeira de-
finição que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano
[...] O homem toma conhecimento do sagrado porque este se
manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do pro-

2
Cf. Concepção de “imaginário social” formulada por Baczko (1985, p. 309):
Por um lado, trata-se da orientação da atividade imaginativa em direção ao
social, isto é, a produção de representações da ordem social, dos atores sociais
e das suas relações recíprocas (hierarquia, dominação, obediência, conflito, etc.),
bem como das instituições sociais, em particular as que dizem respeito ao exer-
cício do poder, as imagens do chefe, etc. Por outro lado, o mesmo adjetivo
designa a participação da atividade imaginativa individual num fenômeno co-
letivo, indicando que todas as épocas produzem modos próprios de imaginar,
reproduzir e renovar o imaginário.
3
Cf. Concepção de arqueologia em Michel Foucault, como método de análise de
práticas discursivas: “[...] a arqueologia [...] Não é nada além e nada diferente
de uma reescrita: isto é, na forma mantida da exterioridade, uma transforma-
ção regulada do que já foi escrito. Não é o retorno ao próprio segredo da ori-
gem; é a descrição sistemática de um discurso-objeto” (2008, p. 158).
4
Referimo-nos ao conceito proposto por Merleau-Ponty, segundo o qual o espaço
não é um meio “real e lógico” sobre o qual estão dispostas as coisas, mas antes:
“[...] o meio pelo qual é possível a disposição das coisas. No lugar de pensarmos
o espaço como uma espécie de éter onde todas as coisas estariam imersas, deve-
mos concebê-lo como o poder universal de suas conexões” (1999, p. 328).

168
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

fano” (2001, p. 16). Em outras palavras, o sagrado seria identifi-


cado pela fissura que ele causa na “ordem natural das coisas”. É
o plano do desconhecido, do contato com a divindade, do a-his-
tórico, do sobrenatural, no qual os eventos não obedecem a uma
trajetória cronológica dos acontecimentos, da temporalidade e da
espacialidade histórica.
Essa percepção de sagrado só é possível para o homem re-
ligioso, pois para este, o espaço não é homogêneo, apresenta ro-
turas, se mostra qualitativamente diferente em determinados pon-
tos. O homem religioso se permite crer no desconhecido.5 Para
Eliade, é a experimentação de uma hierofania – uma manifestação
do sagrado – que inaugura um espaço como centro de sacralida-
de: “toda hierofania, sem distinção alguma, transfigura o lugar
que lhes serviu de teatro: de espaço profano que era até então, tal
lugar ascende à categoria de espaço sagrado” (1993, p. 295).
Estabelecidas as chaves de leitura que utilizaremos ao lon-
go do texto e considerando que a imaginação é a condição para
produção do conhecimento histórico, partimos dos relatos de
memorialistas e de fontes documentais referentes, basicamente,
ao século XIX e primeira metade do século XX. Nosso objetivo
neste breve texto é contar um pouco a história das práticas que
inauguram ou ratificam o Cariri cearense como um espaço sagra-
do no âmbito da religião, especificamente, o catolicismo, que se
estabelece em meados do século XVIII e que instaura modos de
viver e sentir a religião que perduram até os dias de hoje.

A Igreja e a construção de um imaginário penitencial

A evangelização do Cariri foi feita quase que exclusivamente


pelos capuchinhos italianos6, ao contrário do sul do país onde a

5
Rotura quer dizer: “uma abertura da comunicação entre os níveis cósmicos
(entre o Céu e a Terra) possibilitando a passagem, de ordem ontológica, de um
modo de ser [profano] ao outro [sagrado]” (ELIADE, 2001, p. 59).
6
A ordem dos Capuchinhos surgiu na Itália em 1525, como um terceiro ramo da
Ordem dos Franciscanos. O primeiro aldeamento teria sido o de São José dos

169
NOBRE, E. • Arqueologia do Sagrado: crenças, histórias e mitos do Cariri

atuação dos jesuítas teria predominado.7 A prédica desses missio-


nários era fortemente marcada por elementos da Paixão de Cristo,
na qual a memória dos pecados e da condenação eterna é enfati-
zada continuamente através de práticas que estimulam as peni-
tências, a flagelação e o padecimento do corpo em uma contínua
imitação de Cristo. O catolicismo, dito penitencial, enaltecia o exem-
plo de Cristo tomado a ferro e fogo, as emoções exacerbadas, o
sentimento de fim de mundo, o temor pelo Juízo Final e pelo
destino das almas:
Diz-se comumente que o catolicismo penitencial foi a trans-
plantação europeia do catolicismo medieval tardio. Pois foi
esse tipo de catolicismo que os portugueses nos trouxeram da
Europa. No entanto, é de lembrar que o aspecto penitencial
do cristianismo remonta às origens mesmas da igreja. Uma
consciência profunda do pecado e o temor do julgamento le-
vavam os que traíam seu compromisso com a fé cristã a rigo-
rosas penitências públicas, a maneira de expressar o arrepen-
dimento tinha a forma de rigorismo acentuado, sua religiosi-
dade trazendo um profundo senso de pecado, apesar de seus
grandes crimes, e dentro de sua índole peculiar procurava
expressar seu arrependimento através de rigorosíssimas peni-
tências (FRAGOSO in SILVA, 1987, p. 10-11).

Essas práticas foram difundidas, principalmente, pelos mis-


sionários que circularam na região, cuja ação pode ser registrada
até, pelo menos, fins do século XIX. Dentre eles, podemos desta-
car a atuação de Frei Vitale da Frascarolo (1780-1820), também
capuchinho, que pregava na província e teve uma visão profética
sobre a destruição do mundo ou o exemplo do Frei Estevão Ma-
ria da Hungria que:
[...] chamava o povo a obediência e a penitência, fora deles
eram imensos os benefícios que espargia por entre os necessi-

Cariris Novos, atual Missão Velha no início do século XVIII (BRASIL, 1863,
p. 258; PINHEIRO, 1963, p. 18).
7
Thomaz Pompeu de Sousa Brasil (1863) e Irineu Pinheiro (1963) destacam a
vinda da Companhia de Jesus para o Ceará – litoral e serra da Ibiapaba – já nos
primeiros anos do século XVII, entre 1605 e 1608.

170
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

tados. As classes desfavorecidas dos bens da fortuna recebi-


am diariamente alimentação, em quanto que ele promovia
com louváveis esforços vestir nus amparando assim a todos
que procurarão refúgio sob sua proteção (Abaixo assinado
do Paço da Câmara do Limoeiro de 14.09.1873. Busta 48,
Fasc. 226, Doc. 14. Arquivo Secreto do Vaticano, Nunciatura
Apostólica, Roma).

A atuação de missionários na província foi essencial para o


desenvolvimento não só dessas práticas religiosas vinculadas à
Igreja portuguesa, mas também de uma noção ainda incipiente
de assistência social. Esses missionários também agiam em ou-
tras frentes, como a construção de igrejas, cemitérios, poços de
abastecimento de água e até mesmo de práticas rústicas de sanea-
mento e cuidados com a saúde, além do amparo espiritual através
de ritos fúnebres e práticas do bem-morrer.
Com a constante formação de pequenos povoados em tor-
no dos aldeamentos e, embora, sem um controle efetivo da Igreja
oficial – lembremos também que até 1854 o Ceará ficou sob a
jurisdição eclesiástica da Diocese do Pernambuco –, muitas cape-
las foram erguidas na região. A primeira capela do Cariri foi cons-
truída em Missão Velha sob o orago de Nossa Senhora da Luz
em 1748 e em 1778 o visitador Manuel Antônio da Rocha conce-
deu licença para ereção de uma capela em Barbalha sob o orago
de Santo Antônio.
No final do século XVIII, em 1788, foi autorizada a cons-
trução da Igreja matriz do Crato, sob o orago de Nossa Senhora
da Penha (PINHEIRO, 1963, p. 40), sendo que naquele momento
já existiam na Província do Ceará cerca de vinte e duas freguesias,
sessenta e quatro capelas8 e catorze vilas, segundo o visitador João
José Saldanha Marinho (BRASIL, 1863, p. 240). Estima-se que

8
Canonicamente, as denominações “Igreja” e “Capela” tem sentido hierárqui-
co. A Capela, geralmente possui somente um altar e não tem sacerdote fixo,
recebendo os padres itinerantes enviados pela paróquia local. A Igreja, por sua
vez, comporta uma paróquia com um Vigário ou Pároco responsável pela sua
administração.

171
NOBRE, E. • Arqueologia do Sagrado: crenças, histórias e mitos do Cariri

no momento da criação da Diocese cearense, em 1854, a popula-


ção do estado era de aproximadamente 720 mil pessoas e a do
Cariri cerca de “200 mil almas”, existindo apenas 33 padres para
dar conta do serviço eclesiástico (Jornal O Araripe de 14.07.1855,
n°02).
Apesar da quase inexistência de padres na região, as práti-
cas religiosas não foram negligenciadas, tendo os missionários e
na maioria das vezes, os leigos, assumidos funções pastorais. Uma
informação interessante que as fontes documentais nos trazem,
diz respeito ao fato de existirem muitas capelas em confronto a
um número reduzido de padres denotando a importância do edi-
fício religioso no imaginário cristão. Compreendida enquanto
“casa de Deus”, a igreja constitui uma imago mundi, uma imagem
do mundo construída a partir do modelo geral do grande cosmos,
um lugar de proteção contra o mal. O templo também funciona
como uma casa e posto que seja um espaço sagrado é a própria
“imitação da Jerusalém celeste” e constitui uma “abertura para o
alto” que assegura comunicação com o mundo divino.
Para Mircea Eliade, toda igreja ou templo é, por sua estru-
tura, uma imitação do modelo da Jerusalém celeste, pois foi Jeo-
vá quem revelou a Moisés e a seus eleitos os modelos do taberná-
culo, dos utensílios sagrados e do Templo, desde a eternidade,
para que fossem reproduzidos sobre a Terra (2001, p. 30, 56-59).
Uma das lendas mais antigas da cidade do Crato, por exemplo,
conta que a atual Matriz da Sé foi construída justamente no local
sagrado dos índios Kariri que habitaram a região até meados do
século XVIII, tendo sido dizimados ou obrigados a imigrar para
o norte do país.9

9
Não podemos desconsiderar também uma possível influência dos ritos indíge-
nas, uma vez que na região habitavam as tribos Kariris. Infelizmente é difícil
rastrear possíveis heranças das práticas e rituais peculiares destes, uma vez que
não há documentação que registre a catequese dos índios na região (os relatos
são de memorialistas que se basearam em Cartas de Sesmarias). Um dos moti-
vos da inexistência de tal documentação foi a expulsão e o aniquilamento dos
indígenas pelos colonos que povoaram a região com suas fazendas de gado. O

172
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Outra lenda em torno das igrejas do Cariri, diz respeito à


imagem da Virgem da Penha do Crato. Conta-se que essa peque-
na imagem costumava ficar em uma capela da Missão do Miran-
da, antigo aldeamento capuchinho. Certo dia, a imagem foi trans-
ferida para um templo melhor, mas durante a noite a imagem
voltava ao antigo lugar na capela mais velha. Frustradas as várias
tentativas de levar a imagem para a nova Igreja e enxergando-se
naquilo “milagre do céu” a Virgem permaneceu na Capela antiga
que é a atual Matriz do Crato (FIGUEIREDO FILHO, 2010
[1964], p. 07).
Outro fator que favoreceu o crescimento do patrimônio ecle-
siástico na região foi a presença de famílias mais abastadas. As
doações à Igreja eram geralmente registradas nos livros de tombo
das paróquias e nos dá um quadro mais próximo do cotidiano
religioso, como o caso de D. Luísa Joana Bezerra moradora no
sítio da Mata em Crato que, em 1801, doou para o patrimônio de
São Vicente Férrer, “terras que do lado norte extremavam com a
vila” afim de “beneficiar a alma do seu marido [o capitão Sebas-
tião de Carvalho] e bem espiritual de sua pessoa” (PINHEIRO,
1963, p. 51).
A crença nas almas do purgatório, justificadora da prática
do sufrágio, descrita acima, é evidenciada nessa economia religio-
sa que marca o catolicismo penitencial trazido pelos capuchi-
nhos.10 Note-se que a salvação da alma do marido de dona Luísa

governo da Província, no entanto, entendia o desaparecimento deles de forma


diferente, como ressaltou o Presidente de Província Francisco de Sousa Mar-
tins em seu relatório de 01 de agosto de 1840: “Esta Província era uma das
mais ricas em aldeias de indígenas; mas estes vão pouco a pouco desaparecen-
do: de sorte, que a raça dos primeiros habitantes do Brasil, parece condenada
à completa aniquilação pelos imperscrutáveis Decretos da Providência” (p.
11-12). Disponível em: http://www.crl.edu/content/povopen.htm.
10
O sufrágio é uma “ajuda espiritual” que um vivo concede ao morto. O paga-
mento na terra é convertido na redução do martírio da alma que está no Purga-
tório. A duração das penas no Purgatório, segundo Jacques Le Goff, está sub-
metida a um procedimento judicial complexo, cujo período de purgação da
alma depende da misericórdia de Deus (1995, p. 253).

173
NOBRE, E. • Arqueologia do Sagrado: crenças, histórias e mitos do Cariri

Joana foi “comprada” com o oferecimento de terras ao santo de


devoção. Outras práticas similares denotam um complexo siste-
ma econômico que se desenvolvia naquele lugar. Como saber
quanto vale uma alma?
A importância desse comércio de almas é tão relevante que
mesmo a imprensa é utilizada para saldar dívidas espirituais. No
jornal A voz da religião no Cariri, primeiro jornal de cunho religio-
so publicado no Cariri, temos a notícia, por exemplo, de uma
visão que teve Sr. Manoel Ignácio de Maria com o seu pai, morto
há mais de dezessete anos, na época da narrativa. O defunto vol-
tou do purgatório “ardendo em chamas de fogo desde a cabeça
até os pés” para reclamar ao filho uma solução para o seu sofri-
mento. Contou, então, que sofria os terrores do purgatório, por-
que em vida ficara devendo a “restituição dos pobres” e pediu
que o filho mandasse rezar cinquenta missas: “[...] compadece-te
dos tormentos cruéis, do teu pai que sofre!!!” E diante da promes-
sa do filho em cumprir a missão, desapareceu (Jornal A voz da reli-
gião no Cariri de 05.12.1869, Suplemento ao n° 40. Ano 2).
Cremos que a influência da evangelização dos capuchinhos,
bem como a falta de um controle eclesiástico oficial na região,
favoreceu o desenvolvimento de uma religiosidade muito mais pes-
soal que permitiu o enraizamento de práticas religiosas ligadas a
um catolicismo penitencial. Como assinala Cristina Pompa:
A documentação dessa experiência [de evangelização] [...]
revela a presença de alguns elementos significativos da cate-
quese na construção do horizonte penitencial-apocalíptico do
sertão, mediante um contínuo e complexo processo de leitu-
ras, interpretações e mediações (2004, p. 83).

Os capuchinhos, juntamente com as outras três ordens


mendicantes criadas desde o século XIII – carmelitas, agostinhos
e dominicanos – foram os principais intermediadores entre os lei-
gos e a cultura religiosa erudita popularizando temas ligados aos
cuidados com a alma, ritos de bem-morrer e responsáveis ainda
pela difusão do medo do juízo individual. Pavores esses, intensi-
ficados pelos tratados de bem morrer que começaram a aparecer

174
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

depois da Reforma tridentina, pelas artes moriendis, principalmen-


te, nas representações da boa e da má morte e na iconografia
macabra propagada já desde o século XIV.
Uma marca que não é só das ordens mendicantes, mas da
própria pastoral cristã da época, era o entendimento de que a vida
na terra é só uma passagem para a “bem-aventurança eterna” e
que os cuidados com a alma são mais preciosos que as atenções
dispensadas ao corpo. Daí o alerta dado para o perigo da morte
súbita, mors repentina, sem a devida preparação. Se essa foi uma
grande preocupação para os cristãos do século XVIII, no Cariri
da segunda metade do século XIX, esse medo ainda estava vivo
nas práticas religiosas populares. Mesmo quando já haviam sido
proibidas pela Igreja, a penitência e as procissões de penitentes
ainda eram praticadas e foram registradas nos relatos de viajantes
e cronistas, bem como nos jornais.
Apesar de serem diversos os motivos que inspiravam as pe-
nitências – secas, epidemias, sufrágio das almas do purgatório –
essas práticas eram justificadas e estabelecidas por uma atitude di-
ante da morte e da condenação eterna. A aceitação do castigo como
forma de redimir as faltas nasce, segundo Pompa, “junto com as
aldeias e com o próprio projeto missionário [...]. Os castigos corpo-
rais eram considerados um dos instrumentos da transformação dos
selvagens em homens. [...] a aceitação [do castigo] era sinal da
sua completa integração à comunidade cristã” (2004, p. 84).
Na região do Cariri cearense encontramos alguns casos in-
teressantes de grupos de penitentes e de “procissões penitenciais”
que ocorriam na região. Desde 1864 já encontramos referências à
existência de Irmandades do Santíssimo Sacramento e das Al-
mas, ambas, irmandades de penitentes, formadas exclusivamente
por homens (CARVALHO, 2008, p. 61). A falta de chuvas apare-
cia como um dos motivos principais das expiações dos peniten-
tes. Vejamos, por exemplo, o caso dos Serenos, grupo de peniten-
tes que em 1845 – não coincidentemente, ano de seca na região –
saiam pelas ruas chorando e preconizando o fim do mundo pelas
ruas do Crato:

175
NOBRE, E. • Arqueologia do Sagrado: crenças, histórias e mitos do Cariri

Aquela denominação indicava “companhias de penitentes”


que à noite, nas encruzilhadas ermas, em torno das cruzes
misteriosas, se agrupavam, adoidadamente, numa agitação
macabra de flagelantes, impondo-se o cilício dos espinhos,
das urtigas e outros duros tratos de penitência. Ora, aqueles
agitados saíram certo dia, repentinamente, da matriz do Cra-
to, dispersos, em desalinho – mulheres em prantos, homens
apreensivos, crianças trementes – em procura dos flagícios
[sic] duramente impostos. Dentro da igreja, missionários re-
cém-vindos haviam profetizado próximo fim do mundo. Deus
o dissera – em mau português, em mau italiano e em mau
latim – estava farto dos desmandos da Terra [...] (CUNHA,
1973, p. 119).

O jornal O Araripe, por várias vezes reclamou da adminis-


tração pública, soluções para os problemas causados por esse gru-
po na região. Qualificados como ignorantes e supersticiosos, os
Serenos também representavam uma ameaça à propriedade priva-
da, uma vez que lhe eram atribuídos roubos de animais, facadas,
tiros e morte:
Em 1844 apareceram certos assombramentos dentro desta
cidade [Crato], que o povo tomou logo por mau agouro; não
tardou muito em aparecerem certos furtos, e mesmo roubos
em algumas casas: logo depois e, (oh! miséria das misérias)
cobriu-se a Comarca do Crato de uma chusma de Penitentes,
que levantando cruzes em todas as estradas gerais, e particu-
lares, e mesmo em alguns sítios; por toda a parte se ouviam
as vozes destas chusmas de ladrões, cantando terços, bendi-
tos, ladainhas e pedindo esmolas. [...] (Jornal O Araripe de
14.06.1856, nº. 48, p. 03).

Vindo para o Cariri no final de 1859, o botânico fluminen-


se Francisco Freire Alemão11, presidente da Comissão Científica

11
Chefe da seção botânica, Freire Alemão tinha como missão coletar exempla-
res da flora brasileira e embora a expedição não tenha concluído sua missão,
os relatos deixados por ele em sua passagem pelo estado cearense interessam
pela riqueza de detalhes sobre o cotidiano local. É importante ressaltar que o
Ceará foi escolhido como ponto de partida para o início da missão, embora,
não se saiba bem ao certo os motivos dessa decisão, é possível que uma das
razões fosse a grande variação geográfica e climática da província.

176
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

de Exploração das Províncias do Norte, criada pelo Instituto His-


tórico e Geográfico Brasileiro (IGHB) em 1856, registrou em seu
diário, diversas práticas de autoflagelação exercidas por grupos
de penitentes nas igrejas cearenses.
Aquela experiência religiosa transcendia a própria experiên-
cia pessoal de Freire Alemão enquanto católico e, ao mesmo tem-
po, provocava estranhamento e repulsa como ele mesmo diz: “o
espetáculo era para dar horror e enjoo” (ALEMÃO, 2007, p. 217).
Esse estranhamento se reflete também no aparente desconheci-
mento da ocorrência de ditas práticas: “É isto [a flagelação] sin-
gular aqui e no Crato”, diz referindo-se às penitências do Crato e
de Lavras (distrito vizinho ao do Crato). Quase sempre associada
aos costumes da pobreza, essas práticas religiosas estavam liga-
das a outras, como petição de esmolas, novenas e cantorias popu-
lares:
Este modo de penitência foi aqui introduzido, creio que há
dois ou três anos por um padre Agostinho, fanático religioso
que deixamos na capital. Quando ele pregou por estes ser-
tões se exaltou de tal modo o sentimento religioso do povo,
que não se via senão penitência por toda a parte: nos tem-
plos, nas casas, pelos matos; parece que algumas mulheres
morreram em consequência da abstinência e dos jejuns. Os
penitentes reuniam-se nas praças (não cabiam nas igrejas), aí
se disciplinavam horrivelmente. Faziam procissões rezando e
disciplinando-se (ALEMÃO, 2007, p. 217).

Usando o vocabulário científico para tentar compreender


os sentidos daquelas práticas, a seu ver, típicas de uma “mentali-
dade medieval”, Freire Alemão está vinculado ao seu lugar social
de fala. Para ele, aqueles homens e mulheres partilhavam de al-
gum tipo de loucura coletiva, fanatismo e/ou superstição que lhes
obnubilava os sentidos da razão.
Vindo ao Cariri com a missão de recolher e descrever ele-
mentos da flora local, Freire Alemão deparou-se com um univer-
so de práticas religiosas estranhas ao seu cotidiano, não obstante,
fosse ele um católico devoto. Sua narrativa é permeada de excla-
mações e assomos de horror e surpresa, mas configura-se um im-

177
NOBRE, E. • Arqueologia do Sagrado: crenças, histórias e mitos do Cariri

portante registro para a história do Ceará. Acompanhando sua


trajetória, desde Fortaleza até sua chegada ao Cariri, é possível
perceber também o sensível aumento do registro dessas práticas
na medida em que ele avança em direção ao interior do estado.
Chegando à vila de Lavras em 1860 ele anotou em seu diário:
[...] são homens e mulheres que se metem no coro, fechados,
cobertos os rostos com lenços, e ali se disciplinam a fazer
sangue, que suja o coro e o torna fedorento [...] Nas sextas-
feiras à noite concorre o povo à igreja para a adoração. Nesta
tem lugar a disciplina dos penitentes (esta penitência come-
çou com a pregação do padre ***), e quando o vigário man-
dou fechar o coro, porque o sujavam de sangue, se disciplina-
vam de noite na praça. Dizem-nos que são de ordinário, gen-
te dos matos, homens e mulheres, mulatos, cabras, pretos e
não sei se brancos também; vão com o corpo nu para a igreja.
Os homens com capote e as mulheres de lençol, todos com a
cara coberta (ALEMÃO, 2007, p. 199-200).

O espetáculo de sangue era repetido semanalmente e re-


presentava a luta entre os desejos e a negação do corpo. De fato,
tratava-se de uma imitação do exemplo de Cristo, especificamen-
te, da imitação de Sua Paixão. O que constituía essa experiência
era um transbordamento dos sentidos, no qual o sofrimento cor-
poral era o canal de expiação dos pecados. As penitências lem-
bram a necessidade de purgar os pecados e de preparar-se para a
vida no outro mundo (Jo 11.52; Ef 2.14; Ap 1.5). Essas experiên-
cias individuais tendiam a reproduzir histórias que são modelos
para uma vida casta e de piedade, e, certamente, atraíam a devo-
ção da população que praticavam a flagelação indiscriminada-
mente:
Mal nos tínhamos deitado quando ouvimos na calçada da
nossa casa um dos penitentes pedindo esmola e pedindo pa-
dre-nossos, cantando num tom lamentável e sepulcral que nos
fez ainda mais horror. Levantaram e saíram a vê-lo e darem-
lhe alguma esmola o Lagos, Reis e Manoel. O quadro era
medonho no escuro da noite. Viram um homem pardo, de
constituição atlética, nu, tendo só a ceroula e esta arregaçada
até o alto das coxas, com uma grande pedra na cabeça e na
mão um tijolo com que batia nos peitos, com tanta força, que

178
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

a mim, que estava na minha rede, parecia que batia no chão e


ao mesmo tempo continuava suas lamentações medonhas, às
vezes acompanhadas de grande pranto. Deram-lhe a esmola
e fizeram algumas questões a que respondia; mas se pergun-
tavam quem era, dizia: “Sou um pobre penitente” (ALEMÃO,
2007, p. 199-200).

Assim, flagelos como a seca eram vistos como exemplos


do furor divino contra uma humanidade pecadora e alimentavam
uma prática penitencial da religiosidade. Essa prática religiosa
mais popular destacava-se por ser, “voltada para uma manifesta-
ção exterior e quase teatral dos afetos e das emoções, em que o
religioso evoca um regime de sociabilidade associado à festa, ao
congraçamento, um dos efeitos [...] de uma modalidade de ser
barroca” (GONÇALVES, 2005, p. 48).
Neste sentido, o corpo, alvo dos castigos mais cruéis, é ele
mesmo uma linguagem simbólica que fala do martírio de Cristo,
mas fala também da inutilidade das coisas do mundo e da neces-
sidade da salvação. O pecado motiva a penitência que por sua
vez, purga os pecados, preparando o pecador para a vida eterna. A
prática corresponde ainda, a uma escrita de si. O penitente inscreve
no seu próprio corpo a sua história de culpa e de redenção: “a ex-
periência pessoal aprofunda itinerários biográficos ou psicológicos
estranhos às linguagens institucionais e teológicas que até então
organizaram seu desenvolvimento” (CERTEAU, 2007, p. 58).
O corpo nu do penitente aparece pronto para o flagelo: a
cabeça coberta por um pano, encobre o rosto de cada um e homo-
geneíza o grupo através de uma experiência que deixa marcas de
sangue nas paredes da igreja – espaço institucional sagrado por
excelência:
De manhã fomos todos ver a Igreja, cujo corpo está ainda
bruto, sem teto; o espetáculo era para dar horror e enjoo. As
paredes, até maior altura que a de um homem, estavam borri-
fadas de sangue a não haver onde se pusesse um dedo; pelo
chão, que é de terra, viam-se poças de sangue. [...] Os peni-
tentes se apresentam nus das pernas e do ventre para cima,
levam sempre as cabeças cobertas. E as disciplinas são for-
madas de lâminas de ferro, três ou quatro cortantes e afiadas

179
NOBRE, E. • Arqueologia do Sagrado: crenças, histórias e mitos do Cariri

pela margem; e são desta forma e tamanho para mais ou


menos enfiadas numa argola e suspensa por uma tira de cou-
ro, ou de outra matéria (ALEMÃO, 2007, p. 217).

Para os viajantes que passavam pela região e também para


a população letrada, essas práticas não passavam de rudes mani-
festações de fanatismo. Nesse cenário de luta contra os “castigos
divinos” – da seca e da fome –, aparecem, ainda na segunda me-
tade do século XIX, diversos personagens bastante controversos:
os missionários. Controversos porque ainda que fizessem parte
da Igreja Católica, esses pregadores atuavam de forma quase in-
dependente, isto é, dentro da Igreja, mas sem reportar-se a ela.
Foi o caso do padre José Antônio de Maria Ibiapina (1806-1883)
que missionou na província do Ceará entre 1864 e 1872.
As pregações de Ibiapina giravam em torno de temas como
arrependimento dos pecados – o padre combatia principalmente
a intriga e a mancebia –, conversão, salvação, caridade e trabalho.
Era recorrente também que ele exigisse que toda a comunidade
comparecesse às pregações, sendo que frequentemente “fulmina-
va do púlpito aqueles que por motivo de avareza, deixassem de
comparecer à missão” (CARVALHO, 2009, p. 59).
Bernardino Gomes conta um episódio no qual, devido à
estação de colheita na produção da cana-de-açúcar, muitos se-
nhores deixaram de ir assistir à missão, sendo que no dia seguinte
“dois ou três engenhos quebraram-se”, “uma moenda de ferro
embirrou e não quis dar mais um passo”, “uma casa ardeu em cha-
mas e os seus proprietários, assim castigados serviam de exemplo a
outros” (Idem). Não deixemos de considerar que antes de “mila-
gres”, estes “acontecidos”, podiam ser astúcias dos empregados
dos engenhos que provavelmente desejavam participar da missão.
Outro aspecto da pregação de Ibiapina dizia respeito ao
caráter de espetáculo12 que era conferido à celebração da missa.

12
Entendo por espetáculo a trama de tensões e conflitos que se estabelecem nas
relações de poder entre os personagens de um enredo: “um jogo encenado –
recurso destinado a produzir efeitos que se comparam às ilusões criadas pelo
teatro” (SOUZA, 2007, p. 23).

180
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Ainda aproveitando os relatos de Bernardino Gomes, temos a


seguinte imagem:
O Revmo. Missionário pregava o sermão da Glória com inte-
resse igual à devoção do auditório e chegou a hora de acen-
derem-se as luzes; dez ou doze mil luzes apareceram em cena,
formando uma perspectiva tão interessante que comoveu; e
ao prorromper da música, aos estalos dos foguetes, soltaram-
se muitos vivas animados desse prazer celeste que embriaga
as almas mais tíbias (CARVALHO, 2009, p. 63).

A utilização de recursos como a luz, a música, os estalos


dos foguetes davam vida e completavam o caráter da pregação: o
clamor – quase uma súplica – aos pecadores, para que se arrepen-
dessem, depois o tom se alterava dando lugar a um prorromper
de ameaças, compreendiam uma descrição comovente do sofri-
mento dos pecadores que gemiam e ardiam no purgatório e no
inferno. O padre clamava que todos se arrependessem: os aman-
cebados se casariam; aqueles que tivessem querelas com outrem
perdoariam seus inimigos e seriam perdoados por eles; aqueles
cuja falta era mais grave eram convidados a expiar seus pecados
em público praticando a autoflagelação com disciplinas durante
a procissão da penitência13:
O 12º e o 13º dia da missão foi destinado para a procissão da
penitência. Dispostas as coisas, e preparados os instrumen-
tos de penitência, findo o sermão o Reverendíssimo Missio-
nário deu ordem que se recolhessem a matriz todos os que se
deviam amortalhar, e a matriz com suas sacristias, e o vácuo
que há entre esta e a rua vizinha foi pequeno espaço para a
multidão dos amortalhados. Desfilou a procissão, e tendo
percorrido uma grande parte da cidade, não pôde conter toda
a multidão. O clarão delicioso da lua contrastou nesse dia
com o horror da penitência. A majestade do ato, o retinir de
algumas centenas de disciplinas, o rouco som de alguns mi-
lhares de asorranges [sic], os dobres plangentes do sino da
matriz unidos aos suspiros de dor, aos ais de compunção, as
vozes sonoras que pediam misericórdia, formavam uma músi-

13
Disciplinas eram chicotes de couro com pontas cortantes utilizados pelos pe-
nitentes nos rituais de autoflagelação.

181
NOBRE, E. • Arqueologia do Sagrado: crenças, histórias e mitos do Cariri

ca tão lúgubre, tão melancólica, tão enternecedora, que trazia


ao coração o arrependimento das culpas e aos olhos as lágri-
mas de verdadeira dor e compunção (Jornal A Voz da Religião
no Cariri de 09.05.1869, nº 21).

A descrição da cena nos dá uma ideia do drama que estava


presente nas pregações que serviam para difundir os terrores es-
catológicos, sobre os quais nos fala Delumeau:
Esses nômades do apostolado exortam antes de tudo à peni-
tência, anunciando castigos próximos. Algumas vezes são
acompanhados ao longo de seu périplo por ‘penitentes’, anti-
gos ouvintes de ontem que querem prolongar sua cura espiri-
tual e realizam, em consequência, uma espécie de peregrina-
ção de expiação (2009, p. 319).

Esse tipo de pregação teve como seu principal difusor São


Vicente Férrer (1350-1419) que redefiniu o estilo e popularizou as
pregações nos meios urbanos. Outros elementos que contribuí-
ram para a difusão dessas pregações escatológicas foram a popu-
larização do teatro religioso e o desenvolvimento da imprensa e
da gravura, principalmente as ilustrações sobre a arte de bem-
morrer.
Outro momento do ritual de penitência dirigido por Ibiapi-
na era a queima de violas e de pontas de vestidos. Já no primeiro
dia de missão, Ibiapina convocava os fiéis para corrigirem “o pe-
cado dos escândalos públicos”. As moças mais bonitas e vaidosas
deveriam levar as “pontas dos vestidos” e em troca receberiam
uma estampa de Nossa Senhora.14 Aos homens caberia levar to-
das as violas e instrumentos musicais para serem destruídos no
ritual da penitência:
Na hora marcada pelo Revmo. Missionário [...] formou-se
uma ala de meninas e cada uma tinha nas mãos uma salva

14
Por outra passagem do relato de Bernardino Gomes, é possível entender que
as “pontas de vestidos” eram os vestidos curtos, sem mangas e/ou decotados,
isto é, um vestido incompleto e por sua vez, indecente. Segundo Carvalho,
essa prática era uma tradição antiga, herdada por Ibiapina de outros missioná-
rios e “pretendia erradicar a embriaguez, a prostituição, a ociosidade e a de-
sordem” (2008, p. 49).

182
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

com as pontas dos vestidos, que o Missionário tinha pedido


às mulheres vaidosas, e outra ala de meninos, com as violas.
Dirigiram-se em ordem para o pé do Cruzeiro, onde fizeram
uma fogueira, as meninas atirando as pontas no fogo e os
meninos as violas, e cantavam: Já morreu o samba/ Já ven-
ceu Jesus/ Ardam pontas e violas/ Em honra da cruz (CAR-
VALHO, 2008, p. 51).

Segundo uma nota publicada no jornal O Cearense, em um


desses rituais chegaram a serem queimadas 48 violas, 45 guitarras,
05 machinhos, 04 rabecas, 03 bandolins, 02 violões e 01 tamboril.
O autor da nota ainda chama a atenção do leitor para a vantagem
do ritual que, eliminando os objetos de diversão e distração, exter-
minaria assim a prostituição, a ociosidade e a desordem:
Ordinariamente um tocador de viola é ocioso, ébrio e desor-
deiro, e uma viola somente é capaz de sustentar uma orgia
que desvia a mais de 50 de seus deveres; somente em uma
noite quantas botelhas de aguardente não se beberá! Quantas
prostituições e sangue derramado! (Jornal O Cearense de
14.10.1862, p. 03).

A fama de Ibiapina ia além. Em 13 de dezembro de 1868 o


mesmo jornal, A voz da religião, noticiou pela primeira vez a ocor-
rência de milagres em uma fonte de água mineral existente no
lugar chamado Caldas, na cidade de Barbalha:
Luzia Pesinho, parda, casada, moradora da vila da Barbalha,
paralítica das pernas a 3 anos pede que a levem à presença do
Revdo. Missionário. No dia 20 de Junho de 1868 vê realizado
o seu desejo e achando-se ao encontro do Missionário Cea-
rense, JOSÉ ANTONIO DE MARIA IBIAPINA que lhe pas-
sava na porta, roga-lhe com a mais viva instancia que lhe en-
sinasse o remédio do seu mal. – Eu não sou medico do corpo,
lhe diz Venerando Padre Mestre; o meu ministério é curar as
almas. – Ah! Meu Santo Padre, ensine-me, lhe retorquiu Lu-
zia, sim, ensine-me o que quiser; eu tenho fé de ficar boa. –
Pois bem, mulher, vá tomar 3 banhos na fonte do Caldas ao
sair do sol. Luzia creu, foi ao lugar indicado no meio de uma
carga e acompanhada de seu marido que também sofria de
uma hérnia. Ambos foram ao banho e voltarão bons (Jornal
“A voz da Religião no Cariri” de 13.12.1868, nº 14, Ano I, n° 2,
p. 03. Grifos no original).

183
NOBRE, E. • Arqueologia do Sagrado: crenças, histórias e mitos do Cariri

Essa narração feita sobre o milagre ocorrido com Luzia obe-


dece a um modelo narrativo comum aos relatos de milagres. Ela vê
o missionário passar pela sua porta, então, pede um remédio para
o mal que a afligia e, mediante a confirmação de sua fé, consegue a
cura. Em contrapartida, ela passa a seguir o missionário:
[...] da saída até a entrada de Barbalha, percorrendo a pé,
desde o dia 17 de agosto até 31 de outubro, as missões de
Goianinha, Porteiras, Brejo, S. Pedro, Milagres, Missão Ve-
lha, em cuja peregrinação mais de quarenta mil pessoas vi-
ram-na, interrogaram-na e admiraram-se (CARVALHO, 2008,
p. 68-70).

Esse relato remete ainda à passagem bíblica presente no


Novo Testamento que narra a história da mulher que durante dez
anos padeceu de um fluxo sanguíneo intenso e que obteve sua
graça ao pedir a Cristo que a curasse (Mt 9,18-26; Mc 5,22-43;
Lc 8,40-56). Destacamos ainda o leitmotiv sobre o poder das águas,
simbolicamente percebida como o “elemento de vida, de purifi-
cação e de regeneração” presente na valorização mágica das fon-
tes e dos rios (BETHENCOURT, 2004, p. 152).
Continuamente em todas as edições do jornal – que era
semanal – até novembro de 1869, havia espaço para a divulgação
de milagres realizados pelas águas curativas abençoadas pelo pa-
dre Ibiapina. No mesmo dia em que noticiava a abertura da Casa
de Caridade do Crato, o mesmo jornal dava graças pelos milagres
da fonte de águas curativas do Caldas:
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Sim, louvamo-lo
por tantas e tão grandes maravilhas que tem [ilegível] águas
do Caldas em benefício dos pobres e dos infelizes. Os mila-
gres ainda não cessaram, porque o espírito de fé não se arre-
feceu em todos os que desenganados dos recursos humanos
procuram o remédio de seus sofrimentos na bondade e na
misericórdia de DEUS [sic] (Jornal “A voz da Religião no Cari-
ri” de 14.03.1869, nº 14, Ano I, n° 14, p. 01).

No lugar próximo ao da fonte, o padre Ibiapina ergueu a


Capela do Bom Jesus dos Aflitos. A própria condição da Capela,
erguida naquele lugar, denunciava a fluida fronteira entre o sa-

184
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

grado e o profano. A crença nas águas curativas atravessa diver-


sas formas de comunhão com o sagrado, ratificada nesse caso pela
atuação de um sacerdote, portanto, pela própria Igreja enquanto
instituição.
Sem dúvida os dois leitmotivs que mais aparecem nos rela-
tos religiosos do Vale do Cariri são a pedra e a água. Destacamos
aqui a lenda da pedra da Batateira na cidade do Crato, de origem
indígena, a lenda preconiza que escondido sob a chapada repou-
sa um imenso mar contido por essa pedra colocada pelos índios
Kariri. A profecia diz que um dia a pedra se soltará e todo o vale
será inundado. De fato, até hoje a pedra está acorrentada ao solo
e é proibida sua remoção.
A valorização religiosa das águas tem relação com o Gêne-
sis bíblico, uma vez que as águas precederam a Terra: “as trevas
cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava a superfície das
águas” (Gn 1,2). A água ainda aparece em várias passagens bíbli-
cas como um símbolo da ruptura, por exemplo, no dilúvio que pu-
rificou a terra (Gn 7, 1-24), ou no batismo de Cristo, inaugurando
uma nova era. O simbolismo das águas implica, pois, tanto a mor-
te quanto renascimento (ELIADE, 1992, p. 110). O dilúvio purifi-
cador das águas da batateira é um exemplo claro de ressignificação
da cosmogonia bíblica no imaginário do homem religioso.

Sonhos e profecias do século XX

A presença e importância da religião no Cariri permitiu


inclusive o desenvolvimento de práticas mais refinadas de religio-
sidade como o desenvolvimento de uma mística religiosa em fi-
nais do século XX. O evento mais significativo daquele momento
foi o sangramento de uma hóstia na boca da beata Maria Madale-
na do Espírito Santo de Araújo, em seis de março de 1889, no
povoado de Juazeiro, que originou um culto peculiar ao Sangue
Precioso, substituído mais tarde pelo culto ao padre Cícero através
do reordenamento das práticas de devoção. Conjecturamos que
esse acontecimento marcou a invenção de um novo espaço sagra-

185
NOBRE, E. • Arqueologia do Sagrado: crenças, histórias e mitos do Cariri

do caracterizado pelo culto a um santo popular que, no entanto,


utilizava-se dos elementos tradicionais (NOBRE, 2011).
A partir da condenação dos “fenômenos de Juazeiro” pela
Santa Sé, a história do Cariri ganhou um novo enredo, no qual o
padre Cícero tornou-se personagem principal. Essa nova história
teria começado em 1872, na sala de uma escola onde o padre
Cícero descansava e onde ele sonhou que o próprio Jesus Cristo
lhe dava a missão de cuidar dos habitantes miseráveis daquele
lugar:
Conta a tradição que, depois de um dia cansativo, atendendo
os fieis no confessionário e nos outros misteres presbiterais,
dirigiu-se a escola do professor Simeão para uma soneca, re-
clinando-se sobre a mesa que ali havia. Sonhou então que lhe
aparecia Jesus, acompanhado dos doze apóstolos, como no
painel famoso da Santa Ceia de Leonardo Da Vinci. O Cristo
deixava entrever também o seu coração […] o Mestre recri-
mina a ingratidão dos homens e reafirma sua disposição de
dar mais uma chance de salvação à humanidade pecadora. O
quadro se completa com o surgimento de um grupo de flage-
lados, maltrapilhos e esfomeados. O Coração de Jesus volta-se
então para o padre Cícero e diz: ‘E tu, Cícero, cuida deles!’
(BARBOSA, 2007, p. 17; Grifos nossos).

Como lembra Ramos, no sonho temos duas composições


imagéticas que são muito comuns entre as populações sertanejas:
a primeira é a da Santa Ceia, imagem presente em praticamente
todos os lares católicos; a segunda é a imagem do Sagrado Cora-
ção de Jesus que era o símbolo da política romanizadora que a
Igreja implementou a partir da segunda metade do século XIX.
As duas imagens se mesclam. O Cristo da Santa Ceia se
tornou o Cristo do Sagrado Coração que sangra. A última ceia sim-
boliza, ainda, a caminhada de Cristo em direção à morte. É quan-
do ele escolhe se sacrificar pela humanidade. Naquele momento,
o sacrifício de Cristo será convertido no sacrifício do próprio Cí-
cero. Ele contou ainda outros sonhos, significativos do seu desti-
no e do destino do mundo: “Vira, em um sonho, um enorme urso
branco, com manchas pretas, tendo nas mãos o Globo Terrestre.

186
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

O urso era feroz e retalhava com suas grandes unhas o Globo


causando horríveis sofrimentos e ruínas a todas as Nações” (OLI-
VEIRA, 2001, p. 60). Em outro sonho, o padre viu:
[…] sair do seio da Terra um grande animal, semelhante a
um urso, o qual foi recebido festivamente por diversos mole-
ques, ‘molambudos’, nus, que batiam calorosas palmas. Per-
guntando a razão de tanta festa, responderam: ‘Estamos ale-
gres, porque este é o chefe de todas as concupiscências, que
agora se soltou e chama-se ‘garra das garras’ (Idem).

Sonhos instauradores de novas práticas do espaço não são


novos na literatura religiosa. Lembremos que a atual capital fede-
ral também foi idealizada a partir de um sonho de Dom Bosco
ocorrido no final do século XIX.15 Jean-Claude Schmitt (1999)
lembra que todo relato – de sonhos, visões, revelações, profecias –
tem a função ideológica de mobilizar a população a serviço da
Igreja. Ao contar seus sonhos, acreditamos que o padre Cícero
possuía certa consciência que pelo viés de uma mística religiosa,
– a qual, ele mesmo afirma ter conhecimento – esse tipo de sonho
transcendia a interpretação literal e possuía um significado mais
profundo. Sua missão consistia ainda em interpretar o sonho e
concorrer para, no caso, a não realização dele:
No desejo de se sentir como parte de um projeto Divino, ele
precisava criar cumplicidade. As visões deveriam ressoar na
fé dos que tinham boa-vontade para ver as obras da Divina
Providência. Tratava-se de uma questão política: ser reconhe-
cido como dono do poder de vislumbrar os subterrâneos da
verdade nas imagens recônditas do insondável. Ao falar sobre
as visões noturnas, o padre de olhos azuis mostrava a si e aos
outros a legitimidade de sua missão (RAMOS, 2000, p. 22).

Não bastava assumir a missão, era necessário torná-la sa-


grada, torná-la indispensável. O relato de sonho tem como fun-
ção conferir legitimidade. Na hierarquia das visões místicas, os

15
Nesse sonho, ocorrido em 30 de agosto de 1883, Dom Bosco é guiado por um
jovem até a América do Sul, chegando aos paralelos 15° e 20° que se localiza-
vam em um extenso planalto com um imenso lago.

187
NOBRE, E. • Arqueologia do Sagrado: crenças, histórias e mitos do Cariri

sonhos, no entanto, são considerados como sendo mais sujeitos à


dúvida; são também mais propícios às ilusões do diabo.
Assim, exige-se garantias de autenticidade para as apari-
ções oníricas, quais sejam: “a nobreza e a santidade do informa-
dor não permitem suspeita; seja porque seu próprio informador
tenha se beneficiado do sonho; seja, enfim, porque narre o pró-
prio sonho” (SCHMITT, 1999, p. 92). Outro elemento serve como
fator de autenticação: a repetição do sonho. Nos dois sonhos do
padre Cícero há um mesmo leitmotiv: o aparecimento de um urso
feroz, o “garra das garras” que destroçará a humanidade e provo-
cará danos às nações.
Os relatos de sonhos do padre Cícero legitimariam a sua
ligação mística com Juazeiro e mobilizariam a população em tor-
no de uma causa santa: mostrar que Juazeiro era um lugar sagra-
do, palco de conversões e de salvação. Ora, naquele momento, a
Igreja lutava contra a laicização dos principais sacramentos reli-
giosos – o batismo, o casamento, a morte. Seria o urso esse gran-
de inimigo representado pelos interesses liberais e republicanos?
Mas se o padre afirmava que o sonho se deu em 1871, ou seja,
dezoito anos antes da Proclamação da República, esse sonho não
seria também uma profecia? Nesse caso, teríamos ainda nessa
narrativa de sonho a recriação de um tempo sagrado.
As profecias são um tipo narrativo muito recorrente na re-
gião e pertencem à tradição apocalíptica peculiar do catolicismo
penitencial, predominando a veiculação de diversos prognósticos
atribuídos ao padre Cícero sobre o fim dos tempos e a necessida-
de de preparação para a vida no além. O “fim do mundo” seria
anunciado “pelos três dias de escuro e a corrida da Besta-fera pelo
mundo, marcando seus seguidores com o número 666” (STIN-
GHEN, 2000, p. 117). As profecias foram alimentadas também
pela popularização dos folhetos astrológicos conhecidos como
Almanaques e pelos folhetos de cordel.
Além das profecias indígenas como a da pedra da batatei-
ra, narrada anteriormente, e as relacionadas ao padre Cícero, te-
mos, em pleno século XX, as predições anunciadas pelo padre

188
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

salesiano Carlos Galli, de descendência italiana e radicado em


Juazeiro, diretor do Colégio Salesianos entre 1949 e 1951. Em
maio de 1949, o padre declarou que:
No dia 25 de janeiro de 1959, às 5 horas da tarde, surgirá nos
céus de Juazeiro, um grande sacrário, de 81 metros quadra-
dos de face, Sacrário este todo formado de luzes até então
desconhecidas. Dentro do mesmo haverá uma luz diferente
das outras, mais forte e mais linda que circundará um letreiro
com os seguintes dizeres: RESTAURAÇÃO DO HOMEM-
DEUS NA EUCARISTIA (DHDPG/CRB: 06,38. Declara-
ção do padre Salesiano Carlos Galli em 05.05.1949).

A imagem fala de uma nova vinda de Cristo através da


Eucaristia e é significativa pela quantidade de detalhes que apre-
senta com relação ao dia da realização e do tamanho da imagem
que se apresentará. É importante notar que no Cariri existe a tra-
dição de entronizar o Sagrado Coração de Jesus16 nas casas com
uma imagem cercada de pequenas lâmpadas coloridas, verde e
vermelha, geralmente.
Além disso, o padre Galli anunciava a redenção da beata
Maria de Araújo do padre Cícero pelos quatro cantos do Juazei-
ro. A Igreja assumiria os milagres de 1889, devolveria as ordens
sacerdotais do padre e canonizaria a beata, ambos já canoniza-
dos no coração da população. Essa difusão dos presságios por um
representante da ortodoxia é interessante para percebemos que a
crença e a difusão dessas práticas não estavam limitadas somente
à comunidade leiga e pobre.
Essas práticas são ainda significativas da resistência das
crenças ligadas às origens do cristianismo que passam constan-
temente por releituras e dizem muito sobre as práticas e repre-
sentações desenvolvidas em uma determinada sociedade. Almas

16
A entronização do Sagrado Coração de Jesus é uma prática católica que nas-
ceu na região do Cariri, na qual se inaugura uma casa com a colocação da
imagem do Sagrado Coração na sala principal, daí o verbo entronizar de “colo-
car no trono”. O rito possui orações, cantos e geralmente é feito por uma reza-
deira, uma leiga da comunidade local que dirige os ritos e cantos da ocasião.

189
NOBRE, E. • Arqueologia do Sagrado: crenças, histórias e mitos do Cariri

do purgatório pedindo sufrágio, pedras encantadas, águas cura-


tivas, milagres com uma hóstia consagrada fazem parte do ima-
ginário do católico caririense. Somente a partir do entendimen-
to dessa circularidade cultural de ideias e práticas, para usar um
conceito de Mikhail Bakhtin, entre a Igreja e seus fiéis podemos
entender os cuidados com as almas depois da morte, as trocas
da economia simbólica entre santos e fieis e o valor das águas
mágicas do Cariri.

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192
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Parte III
Contribuições da
Micro-História para
o estudo das e/imigrações

193
Storia e Microstoria
al tempo di internet
Emilio Franzina

In una tipica discussione telematica durata circa una


settimana e avviata l’11 novembre del 20091 da una interpellante
tanto spaesata quanto curiosa, vari corrispondenti si alternarono
con volonteroso impegno e qualcuno anche con evidente passione
proponendo le più diverse soluzioni al quesito da lei posto in questi
termini:

Oggetto: Emigrazione e arruolamento per la Prima Guerra Mondiale


Sto cercando di capire come una persona nata a San Paolo
nel 1895 possa aver fatto la Prima Guerra Mondiale arruolata
nell’esercito italiano. La prima risposta che mi sono data è
che pur essendo nato in Brasile, [egli] sia poi rientrato in Italia
e vi sia rimasto. Successivamente è emigrato nuovamente,
stavolta in Argentina. Questa ipotesi sarebbe corroborata dal
fatto che ha sposato una donna nata in Calabria e non in
Brasile o Argentina. Esiste un’altra possibilità oltre a questa?
Potevano essere obbligati a rientrare dal Brasile anche gli
emigranti? In quel caso dove potrei trovare il suo foglio
matricolare? Grazie Tiziana.

La persona che si firmava anche “celanzit” (con ogni


probabilità, un’insegnante di Brescia o di quella zona gardesana)
poneva un problema al quale da molto tempo anch’io mi stavo
interessando senza sapere, all’epoca, che un altro volontario figlio

1
Nel sito “htt://www.tuttogenealogia.it” alla voce “Per le mie ricerche -
Emigrazione e arruolamento per la Prima Guerra Mondiale” (ultima
consultazione di chi scrive del 3 marzo 2016).

194
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

d’italiani, sulla carta classe 1895 e venuto lui pure dal Brasile,
oltre ad aver condiviso con quello paulista non meglio identificato
l’esperienza dell’arruolamento nel regio esercito, aveva lasciato
scritte le proprie memorie di un anno di guerra sul fronte
dell’Isonzo: si chiamava Olyntho Sanmartin, figlio di emigranti
veneti stabilitisi sul finire dell’Ottocento a Santa Maria da Boca
do Monte (RS), che, per potersi avvalere delle agevolazioni fatte
per il viaggio transatlantico dalle autorità consolari “regnicole” a
chi avesse risposto positivamente alla chiamate alle armi, aveva
barato nel 1915 sulla propria data di nascita (30 dicembre 1895)
aggiungendosi un anno di età per venire a combattere in Italia
(SANMARTIN, 1957). Olyntho scelse con ogni probabilità di
partire perchè animato da sete d’avventura e forse anche perchè
imbevuto di idee desunte dalla cultura tipica del patriottismo
risorgimentale italiano che tuttavia abbandonò o cambiò in fretta
a contatto con la cruda realtà del fronte dove la sua maggior
preoccupazione divenne ben presto quella di dover condividere,
semmai, lo sgomento e l’orrore per la guerra con altri “volontari”
arrivati al pari di lui in Italia dal Brasile. Riformato per propria
fortuna e ritornato dopo un anno e mezzo nel Rio Grande do Sul
egli vi rimase sino alla fine dei suoi giorni professando sempre un
attaccamento, definito dal suo amico e biografo Moacyr Flores
“quasi morboso”, alla terra natale e in particolare a Santa Maria
da Boca do Monte.
Alla figura di Sanmartin ho già dedicato anch’io qualche
attenzione altrove, ma per saperne di più sul suo conto varrà la
pena di riferirsi, per il momento, alle indicazioni fornite oltre
quarant’anni fa appunto da Moacyr Flores (1975) nell’ambito di
una rivisitazione personale e un po’ anche di storia locale. Una
cosa però è certa: a patto che si presupponga e si individui con
nettezza un problema storico (qui, per me, la questione del
coinvolgimento nella grande guerra di singoli e di comunità
immigratorie in Sud America fra il 1914 e il 1918) ovvero un
problema a cui si ritenga utile e significativo trovare soluzione e
dare una risposta, persino da una singola storia di vita, meglio se

195
FRANZINA, E. • Storia e Microstoria al tempo di internet

ricostruita con pazienti riscontri e quindi intrecciando quelli


biografici con altri dati puntuali o di contesto, possono scaturire
risultati importanti così a livello locale come a livello
transnazionale.
Su tale presupposto si basano del resto, ormai da molti anni
in qua, le ricerche che hanno preso a modello le opere di alcuni
storici di grande valore e di altrettanto grande notorietà (Carlo
Ginzburg e Natalie Zemon Davis, Jacques Revel e Giovanni Levi,
Robert Darnton e Edoardo Grendi ecc.) e di qui spesso provengono
anche le più diverse ricostruzioni del passato dei seguaci e degli
estimatori, particolarmente numerosi in Brasile e in America
Latina, della cosiddetta scuola microstorica. Che si tratti,
insomma, di riflettere sulle possibili interrelazioni delle questioni
di storia del lavoro in termini di storia globale (FRANZINA, 2013,
p. 39-54) con le vicende di un oscuro marinaio di colore nell’antica
Desterro (o meglio con le attività svolte da un “africano livre” in
Santa Catarina intorno alla metà dell’Ottocento) oppure di
esaminare “dal basso” le migrazioni inter nazionali e
contemporaneamente le loro ricadute in Europa e in Brasile
nell’arco degli ultimi due secoli (LIMA, 2015; CROCI, 2009), la
sfida appare di quelle che non si possono sottovalutare e che si
devono anzi accogliere con profitto sfruttando le armi (tecniche,
metodi e oggetti) dell’analisi microstorica dove tuttavia, alla forza
dei modelli, si sono aggiunte e sovrapposte da ultimo, come un
po’ dappertutto, le opportunità, non sempre usufruibili a dovere
perché fomiti di distrazioni e di alterazioni continue, offerte dalla
enorme mole di notizie oggi reperibili in rete.
Prendendo spunto da questa circostanza, ad esempio, io
stesso ho provato a inoltrarmi in un territorio d’indagine come
quello sopra accennato delle collettività immigratorie in Brasile,
in USA e in Argentina durante il primo conflitto mondiale che
non ha goduto sin qui di eccessiva considerazione tra gli specialisti,
né in America Latina né in Italia, riguardando sì, da un lato, la
storia dell’immigrazione e da un altro, però, non tanto quella del
lavoro (o della colonizzazione agraria, della evoluzione

196
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

economica, delle trasformazioni sociali ecc.), bensì e piuttosto


quella delle passioni e delle idee “patriottiche” (o già
nazionalistiche) innescate tra molti immigrati “americani” dalla
grande guerra del 1914-18. Su tale argomento che qualcuno oggi
potrebbe anche definire, volendo strafare, come uno speciale
capitolo di storia dei foreign fighters europei del Novecento (dagli
ultimi “garibaldini” italiani in Francia ai membri delle Brigate
internazionali scese a fianco dei repubblicani nella guerra civile
spagnola), la memoria si è come appannata o inceppata tra gli
addetti ai lavori sicché non ci sarà da meravigliarsi del fatto che
tra tanta gente comune continuino a circolare, a cent’anni di
distanza dagli eventi bellici del 1914-18, dubbi, perplessità e
impressioni come minimo bizzarre 2 sul tipo di quelle che
documentano lo stupore di chi, ai giorni nostri, si accorge ma
non si capacita del fatto che tra i volontari portatisi a combattere

2
Potrebbero provarlo anche le sviste (poichè solo di sviste probabilmente si tratta)
dell’anziana discendente di uno dei pochi scrittori applicatisi in chiave
propagandistica durante e subito dopo la fine del conflitto alla descrizione del
contributo civile e “militare” offerto dagli “italiani del Brasile” alla “epopea”
guerresca del ’15-’18. Alfredo Cusano, questo il suo nome, era stato attivo
soprattutto a San Paolo segnalandosi in veste di pubblicista con opere come Italia
d’oltre mare: impressioni e ricordi dei miei cinque anni di Brasile, Milano, Stab. tipogr.
Reggiani, 1911 - Commercio ed emigrazione italiana al Brasile, Milano, Tip. Concordia,
1913 - La più grande guerra d’Italia., San Paolo, 1917 (São. Paulo, Typ. Paulista) - Il
paese dell’avvenire: Rio Grande del Sud. Roma, Buenos Aires ,San Paolo, Editrice
L’italo-sudamericana, 1920, ma soprattutto come autore dell’importante libro
panoramico sulle vicende che qui più ci interessano ovvero Il Brasile, gl’italiani e la
guerra (ivi, 1921). Ed ecco come, fattasi internauta e superati da poco i settant’anni,
ne discorre sua nipote Anna Chaim in Meu avô Alfredo Cusano (Arquivo da tag:
Il Brasile gli italiani e la guerra – Primeira geração, publicado em janeiro 3, 2012,
por Renata Chaim, https://vovofazia.wordpress.com/tag, ultima consultazione 4
aprile 2016): “Quando do falecimento de meu avô 1942 minha mãeestava me
preparando há quase nove meses. Mas a morte nãoespera e lá fui eu de canguru
na barriga da mamãe de teco teco de Marília [piccolo comune nella mesoregione
omonima di San Paolo] até São Paulo. Sobrevivi é obvio mas a emoção ficou
registrada no meu DNA. Dascoisa importantes que lembrodel eé queele escreveu
um livro queh oje é considerado raro. Seu título “Il Brasile, Gli italiani e la Guerra”
1919 . Esse livro retrata a vinda de imigrantes italianos para o Brasil depois da
segunda grande guerra [sic].”

197
FRANZINA, E. • Storia e Microstoria al tempo di internet

sui fronti europei di tanto in tanto si ritrovassero “persino”, accanto


ai francesi o agli inglesi, ai polacchi e (in numero necessariamente
minore a causa del blocco dei mari e in specie dell’ oceano atlantico
realizzato dalla RoyalNavy britannica) ai tedeschi, dei soldati
italiani o italo discendenti venuti dal Brasile.
Ma il Brasile, si badi, non è poi il solo paese americano a
darci prova di quanta confusione circondi le dinamiche politiche
ed esistenziali alla base dei fenomeni prodotti dall’incontro degli
immigrati con la grande guerra se volessimo andare anche solo a
vedere quante agnizioni e scoperte sorprendenti si sprechino al
riguardo essendosene susseguite e moltiplicate in effetti parecchie,
durante questi ultimi anni, sul filo del web e grazie all’uso crescente
delle “chat”, in molte parti del nuovo continente. E valga, stavolta,
un esempio italo–nordamericano.
Ben prima di transitare agli onori di una brillante antologia
allestita nel 2008 da Peter Englund, il segretario permanente
dell’Accademia di Svezia preposta all’assegnazione dei Nobel per
la Letteratura3, il siciliano di New York Vincenzo D’Aquila, nato
a Palermo nel 1893 ma cresciuto da bambino a Brooklyn, aveva
raccontato nel 1931, in un’autobiografia rimasta a lungo poco
conosciuta, di come egli fosse partito per l’Europa, poco più che
ventenne e di nascosto dai propri genitori, all’indomani della
dichiarazione di guerra del 24 maggio 1915. Di quel suo viaggio
con destinazione Napoli a bordo di una nave stracolma di
“riservisti” italonordamericani e poi anche di alcuni mesi di
esperienze belliche fatte sul fronte italiano sotto la protezione
d’una invisibile “guardia del corpo”, D’Aquila (1931), sempre più
religiosamente ispirato e trasformatosi via via in un convinto
pacifista, scrisse nel proprio libro visionario con accenti però di
verità, e dimenticato da tutti morì quarant’anni più tardi, nel 1971,
in quell’America “sorella” dov’era subito tornato a vivere e a
lavorare come tipografo copista. Ignaro di ciò e soprattutto

3
Cito dalla edizione italiana di quattro anni dopo: Peter Englund (2012).

198
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

all’oscuro della rara autobiografia divenuta del resto, con l’andar


degli anni, quasi introvabile, il nipote di un suo omonimo, Ignatius
D’Aquila residente a New Orleans, “postò” in rete, nel febbraio
del 2000, una serie di notizie a proposito del proprio nonno,
anch’egli di nome Vincenzo e anch’egli siculoamericano,
originario però di Cefalù ed emigrato a Fort Adams.
Queste notizie vennero riscontrate meno di un mese più
tardi da un altro internauta dallo stesso cognome, Cosmo
D’Aquila, il quale, scrivendo nel marzo successivo dalla California
informava, come “[his] grandfather was Bernadino D’Aquila from
Compabasso [sic, recte forse Campobasso], Italy. He settled in
NYC and served with the Italian Armed Forces during WW1. He
had 5 children who settled in NYC and Canada”. A questo punto,
sempre nel marzo del 2000, due giorni dopo Cosmo, cominciarono
a farsi vivi i primi veri “eredi” del soldato memorialista Vincenzo
grazie a un pronipote adolescente, di cui s’ignora il nome, il quale
avvisava:
I am 16 and my mother knows more about this than I do, but
I am writing to ask the question for her. We have a relative, by
the name of Vincenzo D’Aquila who also served in the Italian
Armed Forces during WWI. He wrote a book about his
experience, called Bodyguard Unseen. Please reach me by e-
mail if you have any relations to Vincenzo.

E a rinforzo, ma solo nel luglio del 2001 e con la probabile


mediazione dello storico italoamericano Dominic Candeloro, un
ultimo discendente, Steve Antonuccio, poteva infine precisare:
I’m trying to get any information I can about an obscure novel
written in 1931 called “Bodyguard Unseen.” It was written
by my Great Uncle,VincenzoD’Aquila, and is about his
experiences in World War 1 with the Italian army. Born in
Palermo, my uncle immigrated to the United States as a young
boy with his parents (My great grandparents). When World
War 1 broke out, he was recruited by the Italian army at his
home in Brooklyn, and volunteered to return to Italy to fight
in the war. This was before the United States became involved
in World War 1. I have a copy of the novel and I did a world
catalog search and found over 50 copies of his book in libraries

199
FRANZINA, E. • Storia e Microstoria al tempo di internet

across the country, including Harvard and Yale libraries. It is


an anti-war novel that I would compare to “All Quiet on the
Western Front”, except it really is a quirky and strangely
entertaining novel. Written in the first person, it tells how my
Uncle survived the war after making a pact with God not to
use his weapon, if God would promise to protect him.
Working as a clerk for one of the Generals, he is saved from
the front lines because of his ability to write and use a
typewriter. He is eventually sent back to the front lines where
he refuses to fire his weapon and creates quite a stir among
the other soldiers who decide to follow his lead. Unable to
shoot him since he is a naturalized American citizen, the
Italian Army doesn’t know what to do with him so they
eventually send him to an insane asylum in southern Italy.
After performing some miracles in the institution, the doctors
become afraid of him and the army sends him to the Italian
Riviera, where he spends the rest of the war in comfort
befriending the Italian aristocracy. I must admit my Great
Uncle was probably a little bit of a nut, but his story would
make a wonderful black comedy starring Roberto Benigni.
The book was published by Richard R. Smith, Inc. and my
Uncle worked in the publishing business in New York for most
of his career. His parents divorced, and my Grandmother (his
sister) left to San Francisco with her Mother around the turn
of the century. Vincent stayed in New York with his Father,
where he eventually volunteered to join the Italian Army. My
Grandmother kept in touch with her brother Vincent
throughout his life, but I have no contact with his family. I’m
trying to find out who owns the rights to the book or if anyone
might have known him in New York or any of his family. He
died in the 1970’s. Thanks for any help you might be able to
provide.

Se non fosse stato ricordato già da Moacyr Flores (1975) e


quantunque sia stato menzionato più di recente in rilievo da
Antonio De Ruggiero (2015), anche Olyntho Sanmartin, il
memorialista ed ex soldato italo-gaúcho che ho citato all’inizio,
rimase segnato a propria volta dalla grande guerra a cui aveva
preso parte in Italia ed altresì da una religiosità che a dispetto del
sentimento cattolico prevalente fra i coloni suoi conterranei era
stata di stampo metodista: lui sì, come autore di un libro
emblematico sulla grande guerra quale “scuola di morte”, avrebbe

200
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

forse potuto far approdare in rete, per iniziativa di qualche suo


eventuale discendente, la ricomparsa di alcune rimembranze
abbastanza simili a quelle ispirate da Vincenzo D’Aquila.
Forse a partire da biografie e da storie di vita di questo genere
attraverso un approccio microstorico “beninteso” ossia capace - e
non solo in una eventuale o ideale battaglia per la storia ‘from the
bottom up’ (LORIGA, 2009) - di valorizzare al massimo anche le
risorse che appunto in rete circolano4 , si potrebbero ottenere discreti
risultati contrastando, fra l’altro, i rischi che la rete a sua volta
prospetta o comporta in termini di affastellamento martellante e
continuo di dati (talvolta pressoché impossibili, altrimenti, da
raggiungere, ma soprattutto difficili da padroneggiare o da verificare
in tempi brevi): dati dei quali, va detto en passant, lo studioso non
aveva magari preventivato l’esistenza o in cui s’era imbattuto, come
sovente capita, per puro caso (FRANZINA, 2016).
Chiunque, dopo essersi formato, per dirla alla Zweig, nel
“mondo di ieri”, abbia vissuto la transizione all’universo della
rivoluzione informatica, non ha potuto fare a meno d’interrogarsi
sulle ambivalenze che essa comunque racchiude o ha dischiuso
(COHEN; RSENZWEIG, 2005) e cioè, per un verso, l’ampliamento
smisurato ed esponenziale della disponibilità di fonti primarie e
secondarie e, per un altro, ma quasi in conseguenza, il profilarsi
d’inedite sfide nell’uso di categorie d’analisi necessariamente
nuove, nella capacità di di operare scelte pertinenti in una massa
costantemente in crescita di documenti o d’interventi saggistici e
interpretativi nonché nel possesso di competenze linguistiche
adeguate. Il passaggio nell’odierno “presente elettronico” - in cui
il passato rischia d’inabissarsi se non pure di dissolversi, come
ammoniva Carlo Ginzburg parlando a Porto Alegre alcuni anni

4
Una buona guida al riguardo è ancora quella offerta da un quotato storico
americano del fascismo come Roger A. Griffin curatore del libro on line Using
the Internet as a resource for historical research and writing, Austin 1999, URL: <http:/
/www.austincc.edu/history/inres04prm.html> [consultato il 20 aprile 2016].

201
FRANZINA, E. • Storia e Microstoria al tempo di internet

fa della “História na era Google”5 - da una ricostruzione “solida”


a una miriade di ricostruzioni “liquide” (SIMON, 2011), mette in
luce alcuni pregi, ma anche molti limiti e non pochi rischi di un
sapere storico costretto a fare i conti con continue accelerazioni
temporali e con la fluidità nell’acquisizione delle fonti indotte da
quella che Pierre Lévi ebbe a definire, ormai vent’anni fa (e quasi
in contemporanea con Roger Chartier), la «deterritorializzazione»
dei testi (LÉVY, 1997). Una ulteriore questione che si pone
riguarda infatti anche il modo in cui le pratiche del mondo digitale
(RAGAZZINI, 2004) interferiscono a questo proposito nelle varie
fasi del lavoro svolto dal ricercatore “tradizionale” ove questi entri
in contatto con nuove tipologie di fonti storiche reperibili in rete:
da qualunque parte le si guardi esse assomigliano sempre di più a
un oceano o quanto meno a un grande fiume in perenne
scorrimento (MANDIC, 2011) come quello a cui allude Anita
Lucchesi, l’animatrice del blog Historiografia na Rede6, dedicato
alla Digital History e all’uso pubblico della storia, che in varie
occasioni e programmaticamente su riviste legate fra loro da
comuni progetti “transnazionali”, si è impegnata, anche sulla scia
di altri autori sia brasiliani che italiani - dal compianto Antoniono
Criscione (1999) al più giovane Alfredo Enrico Matta (2001) a
riflettere sulla trasformazione dei media, dei nuovi media digitali,
considerati nelle loro dimensioni ipertestuali:
guardando solo alla superficie di questo fiume, qualcuno
potrebbe dire, per esempio, che l’attuale e straordinario
fenomeno di digitalizzazione attuato da librerie, musei e
archivi in tutto il mondo non cambi in nulla i nostri compiti,
ma li renda semplicemente più veloci e meno costosi, evitando

5
Titolo della conferenza da lui tenuta di fronte a un pubblico di oltre mille persone
in chiusura della quarta edizione del seminario Fronteiras do Pensamento (Porto
Alegre 29 novembre 2010, ora disponibile in video audio sub https://www.youtube.com/
watch?v=CqxP9taRUvA).
6
Attiva sino al 2013 presso l’Università Federale di Sergipe Anita Lucchesi
gestisce questo vivace blog di cui si può confrontare qualche esempio recente in
URL: https://historiografianarede.wordpress.com/tag/anita-lucchesi/

202
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

i tempi e i costi dei viaggi fisici, sostituendoli con il repertorio


fisico di queste o quelle fonti. Ma la corrente storica digitale
di cui [si discute]– e che continuo a pensare che in Brasile (e
altrove) sia marginale –, va ben oltre la digitalizzazione e ciò
che ci giunge evidente sullo schermo dei nostri computer, tablet
e simili (LUCCHESI, 2012, p. 7).

Tenuto conto del notevole peso conseguito durante gli ultimi


trent’anni nei cosiddetti migration studies, a cui in fin dei conti
appartiene o presume di potersi riferire anche questo mio modesto
contributo, dall’uso dei big data e dal ricorso ai principali portali
di enti e istituzioni legate all’emigrazione italiana (BASSI, 2011),
il discorso a questo punto rischierebbe di complicarsi a dismisura
rinnovando oltre al resto, per forza di cose, l’annosa discussione
su rapporti fra micro e macro nella ricostruzione storica dove alla
seconda dimensione, oggi rivitalizzata come global o world history,
parrebbero meglio addirsi le pratiche informatiche (FAVERO,
2011), anche se poi non sembra a tutt’oggi dimostrato che esse
abbiano avuto la forza di scalzare gli esiti delle più classiche o
artigianali indagini cartacee anche nel caso della storiografia
macroeconomica o delle indagini cliometriche7 dove comunque
maggiori restano i rischi di semplificazionee di fraintendimento.
Questo può succedere, certo, anche a chi maneggi in prevalenza
fonti non ancora digitalizzate (documenti pubblici o privati di specifica
localizzazione, pubblicistica minore, letteratura “grigia” e così via),
ma la necessità, pur senza trascurare quadri e contesti generali, di
rimanere concentrato sull’oggetto apparentemente assai circoscritto
della propria ricerca e sui quesiti da esso suscitati limiterà sempre, in
lui, i danni dello spaesamento e del frammentarsi continuo
dell’attenzione che inibiscono la capacità di riflettere e di “pensare in
profondità”.

7
TROILO, Matteo. Il digitale che diventa archivio. Le fonti on-line per la storia economica
italiana. In: Diacronie. Studi di Storia Contemporanea: Digital History: la storia nell’era
dell’accesso”, 29/6/2012, URL: <http://www.studistorici.com/2012/06/29/
troilo_numero_10/>.

203
FRANZINA, E. • Storia e Microstoria al tempo di internet

Il pericolo, denunciato in via generale alcuni anni fa dal


Premio Pulitzer Nicholas Carr, di un impoverimento progressivo
del pensiero critico - in estrema sintesi “Mi manca il mio cervello,
Google ci rende stupidi” (CARR, 2011) nel mestiere di storico si
traduce paradossalmente, ma di fatto, in un incontrollabile
ampliamento dei dati messi a sua disposizione da software e
algoritmi sconosciuti e ad altro finalizzati (in sintesi altrettanto
estrema “Google può renderci impotenti”). D’altro canto è anche
vero che sembrano non di rado promettenti, per lo storico avvertito,
le potenzialità della combinazione, in una indagine meticolosa su
eventi e su fenomeni collettivi sperimentati e poi ricordati o narrati
individualmente, di conoscenze desunte da fonti tradizionali (libri
e saggi, carte d’archivio, collezioni di giornali, diari e memorie e
persino “postmemorie” familiari recuperate attraverso indagini di
storia orale8) con elementi gnoseologicamente della stessa natura
ma recuperabili o recuperati oramai soltanto in rete9 (con tutte le
cautele del caso farei l’esempio della consultazione dei giornali
laddove ne siano state digitalizzate le raccolte o delle ormai
innumerevoli tesi di mestrado, di dottorato ecc. oppure degli stessi
articoli comparsi su riviste e in volumi editi in parti del mondo
distantissime fra loro).
Tra questi fenomeni ed eventi si può collocare senz’altro, per
quanto di proporzioni numericamente ridotte, ma d’indubbio
significato e valore (non solo altamente simbolico come ho cercato
di dimostrare in un libro ancora inedito da cui traggo ora spunto10),
la partenza per il fronte fra il 1915 e il 1918, anche dalle zone
coloniali e rurali, di un certo numero d’immigrati e di italo

8
Sulle postmemorie dei nipoti o dei pronipoti di coloro che vissero la grande
guerra in prima persona e sui ricordi più significativi, anche per questa via, del
primo conflitto mondiale (CASELLATO, 2016).
9
É, questa, fra le altre, la tesi sostenuta dal sociologo belga canadese Derrick De
Kerckhove (2016).
10
E provvisoriamente intitolato Tra due patrie. La grande guerra degli immigrati italo-
brasiliani (1914-1918), previsto in uscita a Belo Horizonte (MG) nel febbraio del
2017.

204
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

discendenti (quasi 400 dal solo Rio Grande do Sul), talvolta magari
gli stessi che in anni non lontani, all’inizio del Novecento, avevano
dato vita a proteste e a piccole sollevazioni in alcuni centri rurali
proprio per non obbedire all’obbligo di leva brasiliano adducendo
a giustificazione del proprio gesto il fatto d’essere italiani o figli
di italiani (VENDRAME, 2015, p. 31).
Non si può escludere che qualcuno di loro, che aveva
manifestato allora contro una coscrizione sulla carta già
obbligatoria al grido di “Viva l’Italia”, abbia più tardi partecipato
alla grande guerra, inizialmente come Sanmartin di buon grado,
militando nelle file del regio esercito in forza di un arruolamento
volontario e non necessitato almeno sin tanto che le gerarchie
militari brasiliane (SODRÉ, 1965, p. 198-99; BEATTIE, 2001) e
gli accordi un po’ tardivi stretti fra i due paesi alleati (le due patrie
italiana e brasiliana) non lo avessero reso tale e cioè reciproco
anche per il Brasile, ma del tutto in extremis a poche settimane
dalla conclusione del conflitto come si vide succedere nel settembre
del 1918 a San Paolo allorchè il Comandante della 6^ Regione
Militare di quello Stato decise di opporsi con successo alla partenza
per la guerra in Europa (dal 1917 appunto condivisa dagli USA e
dal Brasile) dell’ennesimo riservista italiano intenzionato a
raggiungere i campi di battaglia del Veneto:
Il Generale Luiz Barbedo – informava il “Fanfulla” – ha
impedito la partenza per l’Europa, quale volontario
dell’esercito italiano, al giovane Américo Umberto Matina,
nativo di Pedreira in questo Stato. Matina, che non ha ancora
compiuto i vent’anni, è stato compreso nel sorteggio di
quest’annoe deve servire nell’esercito brasiliano. Il Gen.
Barbedo ha comunicato questa decisione al R. Console
Generale d’Italia in San Paolo e al Delegato generale di polizia
perchè provveda ad impedire la partenza del Matina.11

Leggendo articoli come questo e dando qualche credito ai


più sporadici racconti epistolari dei riservisti italo brasiliani, come

11
La partenza di un riservista di San Paolo impedita dal Comandante la 6^ Regione
militare, in “Fanfulla” 11 settembre 1918.

205
FRANZINA, E. • Storia e Microstoria al tempo di internet

quelli di Américo Orlando, un altro volontario italo paulista su


cui si è abbastanza lavorato (MIRIAN, 2007; CROCI, 2011:2012;
FRANZINA, 2014:2016), si riesce a recuperare il senso del
coinvolgimento nel conflitto di singoli individui e d’intere
popolazioni che pure risiedevano in territori lontanissimi
dall’Europa, mentre ai soldati al fronte - e lo sperimentarono anche
molti dei “volontari” venuti spontaneamente a combattere in Italia
dal Brasile o da altre parti d’America e del mondo - restava
soprattutto un carico di nostalgie e di sofferenze da provare tutte
e direttamente sulla propria pelle.
Restano, sullo sfondo, ma sempre meritevoli di doverosa
attenzione, tutte le variabili imposte o suggerite
dall’approfondimento di quelli che furono poi i “retroscena” degli
avvenimenti sovrastanti le storie individuali dei D’Aquila, dei
Sanmartin, degli Orlando ecc. situate a livello personale e meglio
abbordabili in una dimensione microstorica, nel campo più
tradizionale della storia politica e diplomatica: penso ad esempio
a un gran numero di notizie riguardanti - nei rapporti, inviati a
Roma e mai pubblicati, dei consoli italiani - le effettive relazioni
dell’establishment politico – come in Rio Grande so Sul quello
borgista quale emerge dalle analisi riservate di G.B. Beverini – e
dei quadri di potere locali, anche con i maggiorenti delle comunità
immigratorie italo gaúchas - i Gallo, i Lorenzoni, i Laner, i
Germani, gli Eberle ecc. – (BIAVASCHI, 2011) durante la speciale
congiuntura bellica che mise in luce varie tensioni e alcuni contrasti
sorti anche nel loro seno o per l’inasprirsi delle contese con gli
italofoni trentini o per l’erompere della paura del cosiddetto
“pericolo tedesco” (GERTZ, 1991; BERTONHA, 2013:2015).
Spero di poterne dar conto a breve in quel mio libro in fieri a cui
ho sopra acccennato e del quale, tuttavia, non mi conviene
anticipare nè potrei del resto sintetizzare i contenuti in questa sede
non foss’altro che per banali ragioni di spazio e di tempo.

206
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Referências
BAIVASCHI, Márcio Alex A. Relações de poder coronelistas na Região
Colonial Italiana do Rio Grande do Sul durante o período borgista (1903-1928).
Porto Alegre: Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da PUCRS, 2011.
BASSI, Jacopo. La rete e l’immigrazione italiana nell’area platense. In:
Diacronie. Studi di Storia Contemporanea. 2011, n. 5, URL: http://
www.studistorici.com/29/01/2011/.
BEATTIE, Peter M. The Tribute of Blood: Army, Race and Nationa in Brazil,
1864-1945. Durham: Duke University Press, 2001.
BERTONHA, João Fabio. Non tutti gli italiani sono venuti dall’Italia.
L’immigrazione dei sudditi imperiali austriaci di lingua italiana in Brasile,
1875-1918. In: Altreitalie. 2013, n. 46, p. 4-28.
BERTONHA, João Fabio. “Una “guerra di carta”. Giornali italiani e
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210
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

“Entre idas e vindas”: a contribuição


da Micro-História para
o estudo da migração entre
Portugal e o Brasil
Ana Silvia Volpi Scott

A participação no II Seminário Micro-história, Trajetórias


e Imigração foi o mote para retomar os estudos sobre a migra-
ção entre Portugal e o Brasil, tema que tenho trabalhado nos
últimos anos, revisitando a imigração portuguesa para o interior
da Província de São Paulo, na segunda metade do século XIX1.
Partindo da contribuição da micro-história para abordar a te-
mática, a inspiração veio da leitura de um texto de Giovanni
Levi, intitulado “Micro-história e história da imigração”, publi-
cado em 20152.
Naquele texto Giovanni Levi tece, inicialmente, algumas
considerações sobre a micro-história e, entre elas, destaco quatro
pontos importantes que serviram de eixo para abordar o tema
que privilegio aqui: uma experiência muito particular de migra-

1
O estudo da emigração/imigração entre Portugal e o Brasil tem sido objeto de
minhas pesquisas desde o início dos anos 2000. No âmbito do projeto “A imi-
gração invisível: Portugueses no Brasil independente” (2005), financiado pelo
CNPq e desenvolvido em parceria com Oswaldo Truzzi (UFSCar), foi analisa-
do o caso da Colônia da Nova Lousã. Atualmente este estudo está sendo reto-
mado, integrando o projeto “Percursos Histórico-Sociais na Incorporação de
Imigrantes no Oeste Paulista (1880-1950)”, coordenado por Oswaldo Truzzi e
financiado pela FAPESP.
2
Palestra de abertura proferida no Seminário Micro-história, trajetórias e imi-
gração, em 28 de outubro de 2014, publicada em 2015, conforme referência
citada ao final deste texto.

211
SCOTT, A. S. V. • “Entre idas e vindas”: a contribuição da Micro-História...

ção entre Portugal e o Brasil, na segunda metade do século XIX


que se desenrolou em um núcleo colonial no interior paulista.
Entre as afirmações sobre a micro-história, o autor subli-
nha que ela estuda “coisas grandes” ao microscópio; vê coisas
que não são imediatamente evidentes; coloca em evidência as di-
ferenças; busca a complexidade.
Partindo desses pontos e afirmando que não era um histo-
riador da imigração, Levi assinala questões, que segundo seu pon-
to de vista, não foram tratadas na história da imigração e que di-
zem respeito ao “problema do equilíbrio”. Esse “equilíbrio” tem a
ver com o que a corporação dos historiadores aborda: “estudamos o
que ocorreu sem pensar naquilo que não ocorreu...”. Em termos da
história da imigração, o grande desafio seria reconstruir o mundo
relacional local das duas partes (quem emigra e quem permanece), o
que explicaria muito mais sobre o fenômeno (LEVI, 2015, p. 250).
Levi, assim como os estudiosos da e(i)migração, apontou a
íntima relação desse fenômeno com a estrutura familiar, uma vez
que apenas alguns indivíduos emigram: nem todos podem (que-
rem) e(i)migrar e esta opção é determinada pela estrutura familiar.
Ao levar em conta estrutura e a organização da família campone-
sa, admite-se que a busca de equilíbrio entre consumo e trabalho,
é considerada no cálculo sobre a decisão de emigrar. Para mais, a
emigração se dá quando a relação consumo/trabalho é favorável.
Assim, é muito importante, do ponto de vista dos estudos migra-
tórios, estudar o lugar de saída.
A partir desses elementos apontados por Giovanni Levi,
minha proposta é analisar a emigração/imigração portuguesa para
o Brasil, focando a Província de São Paulo, com ênfase especial
no caso da Colônia da Nova Lousã, situada no interior da provín-
cia, entre as décadas de 1860 e 1880.
Este texto divide-se em quatro partes: a primeira analisa
brevemente a problemática de emigração portuguesa para o Bra-
sil, com ênfase na experiência minhota; a segunda explora as ca-
racterísticas da imigração lusa; destacando o caso de São Paulo;
a terceira examina um caso diferente, que remete à experiência

212
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

migratória que partiu da Lousã (região de Coimbra – Portugal)


para o interior da província de São Paulo, na segunda metade do
século XIX; a última parte analisa trajetórias individuais e familia-
res, entre a Lousã e a Nova Lousã, buscando perceber as relações
entre as duas pontas do percurso migratório, para compreender
os artifícios utilizados para alcançar o “equilíbrio” entre a situa-
ção de saída e a situação de permanência na terra natal. A partir
desse caso, procurarei fazer um exercício metodológico, usando
o cruzamento nominativo de fontes, para incorporar as sugestões
de Giovanni Levi no estudo da e(i)migração portuguesa para o
Brasil.

Emigração Minhota para o Brasil

Desde a publicação do texto de Vitorino Magalhães Godi-


nho, nos finais dos anos 1970, afirma-se que a emigração é um
fenômeno estrutural na sociedade portuguesa. Especialmente para
a região noroeste (Minho) ela representava a necessária acomo-
dação e equilíbrio entre a escassez de recursos (terra) e o cresci-
mento constante da população. A saída periódica de indivíduos
proporcionava a manutenção da estabilidade da unidade produti-
va familiar (baseada na pequena propriedade). O envio de jovens
para o Brasil integrava, assim, um conjunto de estratégias familia-
res para garantir a reprodução social das famílias minhotas3. Isto
é, essa reflexão está em acordo com as afirmações de Levi, que
coloca no centro da questão migratória a estreita relação com a
estrutura familiar.
De outra parte, é importante salientar que no caso da emi-
gração para o Brasil deve-se relativizar o perfil do emigrante, que
variou ao longo do tempo. Ao longo do XIX, ele tem característi-
cas específicas, que o distingue da emigração em massa que ocor-

3
Para uma análise mais aprofundada da relação entre sistemas familiares no
noroeste português veja Scott, 2012, p. 55-69.

213
SCOTT, A. S. V. • “Entre idas e vindas”: a contribuição da Micro-História...

reu nos finais do século XIX e inícios do XX (Leite, 2000). A


partir daqui, interessa chamar a atenção para o perfil do emigran-
te que deixava a região minhota ao longo do século XIX.
Estudos relativos ao fenômeno emigratório luso têm apon-
tado diferenças importantes entre o grupo de portugueses que
emigrava e o que permanecia na terra natal. Entre elas, por exem-
plo, destaca-se a questão da alfabetização. Até finais do século
XIX estima-se que cerca de 20% da população portuguesa era
alfabetizada, contra 80% que não era.
No entanto, ao examinarem-se os índices de alfabetização
entre os emigrantes, a realidade era bem diferente. Se observar-
mos os dados disponíveis para algumas áreas do noroeste, vere-
mos que a situação invertia-se, e a maioria dos emigrantes era
alfabetizada: para Fafe, entre os emigrantes, 64% eram alfabeti-
zados, enquanto 36% não o eram; para a região de Viana do Cas-
telo, entre 1836 e 1847, 76% dos emigrantes eram alfabetizados,
percentual que ainda foi superado pelos emigrantes da região de
Famalicão, entre 1873 e 1877, que atingiram 89% de emigrantes
que sabiam ler e escrever4. Predominavam entre os emigrantes os
jovens do sexo masculino, que estavam na faixa entre 12 e 15 anos.
Podemos, assim, traçar o perfil do emigrante que veio para
o Brasil ao longo do século XIX. Em geral, era um jovem do sexo
masculino, alfabetizado, proveniente de uma família com recur-
sos para arcar com as elevadas despesas de viagem e instalação
no Brasil e que tinha como destino preferencial o Rio de Janeiro.
Tal perfil sugere que o Brasil era um “destino de distinção”, como
afirmou Miguel Monteiro (1998).
Outro elemento que reforça a especificidade desse contin-
gente que partia para o Brasil pode ser encontrado ao comparar-
mos com a migração interna dentro do território continental luso.
Nesse caso, os estudos tem revelado que no caso dos deslocamen-
tos dentro do país, predominavam homens mais velhos e pobres,

4
Entre os estudos que analisam com profundidade o perfil dos emigrantes da região
noroeste de Portugal, destacam-se trabalhos de Henrique Rodrigues (1995 e 2003).

214
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

que faziam uma migração sazonal para a região do Alentejo, du-


rante a época das colheitas5.

Imigração portuguesa para o Brasil: o caso de São Paulo

Entre os finais do século XIX e os inícios do XX o Brasil


recebeu um fluxo grande de imigrantes. Essa entrada maciça de
imigrantes europeus e, entre eles, portugueses, acarretou muitas
mudanças no perfil do estrangeiro que adentrava terras brasilei-
ras. No caso da província e, mais tarde, estado de São Paulo a
imigração subsidiada carreava a mão de obra para as fazendas de
café, instaladas no interior paulista, que vivenciava a expansão
da lavoura cafeeira, tema muito estudado e que conta com uma
bibliografia bastante ampla.
O interessante é destacar, neste contexto, a mudança signi-
ficativa no volume de imigrantes em geral e dos portugueses em
particular, em pouca mais de um século (1820-1930). Herbert Klein
trás informações que revelam a magnitude da mudança nos flu-
xos de entrada:

Quadro 01: Entrada de Imigrantes no Brasil

Período Portugueses Total


1820-1876 160.119 350.117
1877-1886 83.998 273.162
1887-1903 305.582 1.654.830
1904-1914 412.607 1.085.849
1915-1918 41.897 111.648
1919-1930 337.723 945.284
Fonte: Dados reelaborados a partir de Klein, 1993.

5
O estudo de Miguel Monteiro sobre a região de Fafe (concelho situado no Baixo
Minho) analisa com detalhes as diferenças entre os padrões de emigração para o
Brasil e a migração interna sazonal no território português. Veja Monteiro, 1998.

215
SCOTT, A. S. V. • “Entre idas e vindas”: a contribuição da Micro-História...

Como podemos observar, ao longo de praticamente todo o


século XIX (1820-1886) haviam entrado no Brasil, pouco mais de
623.000 imigrantes, o que daria uma média anual que estava abaixo
de 9.500 ingressantes no país. Nesse mesmo período, os portugue-
ses somavam cerca de 244.000 (isto é, 39% dos imigrantes), regis-
trando um movimento médio anual de quase 3.700 indivíduos.
Nos anos seguintes, percebe-se o crescimento acelerado da
entrada de estrangeiros, incluindo aí os portugueses que, compa-
rativamente perderam participação em relação ao montante geral
de estrangeiros. Entre 1887 e 1914 (início da Grande Guerra),
que corresponde a um período de 27 anos apenas, entraram mais
de 2.740.000 estrangeiros e, os portugueses contribuíram com cerca
de mais de 718.000 pessoas (26% do total). No entanto, a queda
da participação global esconde o fato de que a média anual de
entrada dos portugueses naquele período ultrapassou os 26.500
ingressos, multiplicando por sete vezes a média anual registrada
ao longo de boa parte do século XIX (1820-1886).
Especificamente para São Paulo, temos informações sobre
a entrada de portugueses, pelo porto de Santos, principal via de
acesso dos imigrantes para a Província e mais tarde Estado de
São Paulo. Pelos dados coletados através da Inspetoria do Porto
de Santos, para os anos entre 1908 e 1936, os portugueses teriam
chegado a 275.257 imigrantes registrados naquela repartição.
Desses, 57% eram analfabetos e 43% alfabetizados, corroboran-
do a mudança no perfil dos que aportavam no Brasil, nas primei-
ras décadas do século XX6.
Embora os números dessa imigração sejam bastante signi-
ficativos, como mostramos, é importante chamar a atenção para
o fato de que o estudo da imigração portuguesa para o Brasil, até
poucos anos atrás havia recebido, comparativamente, menor aten-
ção dos estudiosos da imigração. Em trabalhos anteriores (espe-
cialmente SCOTT, 2000) já discutimos essa questão e foi lançada
uma hipótese para explicar aquela lacuna.

6
Para mais informações sobre os portugueses em São Paulo, veja-se SCOTT, 2000.

216
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Naquela ocasião, argumentei que o estudo da imigração


portuguesa enfrentava dificuldades adicionais que iam além da-
quelas encontradas para o estudo de outros grupos de imigrantes.
Isto por que os portugueses nem sempre se valiam dos mesmos
mecanismos de inserção utilizados por outros grupos devido a
um conjunto de fatores, entre eles: o fato de dominarem a língua
do país de acolhimento lhes dava um grau maior de autonomia e
vantagem; gozavam de uma rede informal de solidariedade e de
amizade que funcionava muito bem para acolher os recém-chega-
dos e os contatos mantidos entre os conterrâneos facilitavam o
percurso migratório, assim como recebiam precioso auxílio na
busca das primeiras acomodações e trabalho.
Um dado importante ajuda a corroborar essa hipótese. A
consulta aos dados relativos à Inspetoria do Porto de Santos mos-
trou que parcela importante dos portugueses recém-chegados não
passava pelos canais normais de recepção de imigrantes existen-
tes na província/estado de São Paulo. O grosso dos imigrantes
que desembarcavam no porto de Santos era dirigido para a Hos-
pedaria dos Imigrantes, que por sua vez, encaminhava a maioria
dos recém-chegados às fazendas de café espalhadas pelo interior
paulista.
Os portugueses, por seu turno, diferentemente dos demais,
se inseriam na nova terra através de outras atividades, especial-
mente aquelas vinculadas ao comércio. Por conta disso, instala-
vam-se majoritariamente em áreas urbanas ou ainda se emprega-
vam como trabalhadores na construção das ferrovias que come-
çavam a rasgar o território de São Paulo.
Uma vez absorvidos pela comunidade receptora pratica-
mente não deixavam rastros para o acompanhamento de suas tra-
jetórias. Tornavam-se invisíveis, tornando-se virtualmente impos-
sível distingui-los, com segurança, da população brasileira em
geral. Essa invisibilidade, sem dúvida trouxe dificuldades para o
estudo dos imigrantes portugueses, já que os mesmos nomes e
sobrenomes impedem a sua identificação positiva como “portu-
gueses”. Mais uma vez os dados corroboram essa inserção dife-

217
SCOTT, A. S. V. • “Entre idas e vindas”: a contribuição da Micro-História...

renciada. Pelo Relatório da Inspetoria do Porto de Santos, para o


ano de 1907, constatou-se que, dos 1.152 portugueses desembar-
cados, apenas 199 (17%) haviam sido encaminhados para a Hos-
pedaria. Se comparados aos espanhóis ou aos italianos desem-
barcados no mesmo ano, veremos que 77% dos primeiros e 40%
dos segundos deram entrada na Hospedaria7
Se estas dificuldades adicionais colocam mais percalços para
o estudo da imigração portuguesa para o Brasil, é necessário bus-
car soluções para contornar esses problemas, valendo-se do uso
de fontes variadas (estatísticas, nominativas, qualitativas) e, so-
bretudo, usar metodologias que privilegiem outras abordagens.
Nesse sentido é que a contribuição da micro-história e dos
seguimentos nominativos, pode ser decisiva para entender as idas
e vindas de portugueses para o Brasil, para recompor trajetórias
individuais e familiares, especialmente no período que antecede a
imigração de massa.
Para viabilizar essa alternativa foi fundamental encontrar
um caso “sui-generis”, uma experiência migratória que tinha atri-
butos diferenciados, e que permitiu o estudo de um grupo fecha-
do e homogêneo, identificado – positivamente – como portugue-
ses, que tinha a vantagem ainda de ser oriundo da mesma região,
e que foi encaminhado para o interior de São Paulo para traba-
lhar, como assalariados, numa fazenda de café. Focarei minha
análise nesse caso “excepcional”, que possibilitou a aplicação de
metodologias microanalíticas, baseadas no estudo de trajetórias
individuais e familiares nas duas pontas do percurso, entre Portu-
gal e o Brasil, observando o período de que antecede a grande
imigração de massa, grosso modo, até o final da década de 1880,
quando a entrada de imigrantes portugueses no Brasil mais que
triplicou (veja Quadro 01).

7
Os dados estão disponíveis na S. Manuscritos – Fundo da Secretaria da Agri-
cultura e Abastecimento. Inspetoria de Imigração no Porto de Santos. Nº de
Ordem C09824 – Movimento Migratório (1907-1911).

218
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Uma experiência diferente: a migração lusa


entre a Lousã e a Nova Lousã

A experiência migratória de portugueses que partiram da


região da Serra do Lousã, para o Núcleo Colonial da Nova Lou-
sã, situado no interior da Província de São Paulo oferece uma
oportunidade excelente para usar os recursos da micro-história e
do cruzamento nominativo de fontes, privilegiando o estudo das
comunidades de partida e de chegada.
Para essa análise foram selecionadas fontes de cunho varia-
do, de caráter local e regional, tanto de cunho quantitativo quan-
to as de caráter nominativo e qualitativo. Entre as fontes nomina-
tivas chamo a atenção para os Assentos Paroquiais (Lousã e Nova
Lousã), Recenseamentos Eleitorais (Lousã), Passaportes (Lousã),
Recrutamento Militar (Lousã), Cartas (Lousã), mapa Geral da
População em 1875 (Nova Lousã). Também reunimos um con-
junto de mapas de população para a Lousã. A partir da explora-
ção conjunta dessas fontes, procurei privilegiar as trajetórias indi-
viduais e familiares dos lusos que emigraram para o interior de
São Paulo, entre 1867 e 1888.
É importante, a partir de agora apontar alguns elementos
que nos deem subsídios para conhecer as duas pontas do percur-
so migratório. Boa parte dos emigrantes que se deslocou para o
interior de São Paulo, partiu do Concelho da Lousã, pertencente
ao Distrito de Coimbra, região central de Portugal. Esse espaço
estava encravado na Serra da Lousã, onde predominava a peque-
na propriedade. Os camponeses, além do cultivo as terra, criavam
cabras, fabricavam queijo e carvão, além da exploração do mel e
de castanhas, para garantir a sobrevivência do grupo familiar, que
repousava sobre um equilíbrio bastante precário, entre o trabalho
agrícola e o pastoril (MONTEIRO, 1985).
A mobilidade de parcelas da população se fazia presente no
cotidiano dos lousanenses. Ao longo do século XIX e inícios do
XX a saída da população masculina (essencialmente) era dirigida
para a migração interna, seja em direção ao Alentejo, seja em dire-

219
SCOTT, A. S. V. • “Entre idas e vindas”: a contribuição da Micro-História...

ção a Lisboa e, muitos deles buscavam tanto o serviço como cria-


dos, como o trabalho sazonal de colheita na região alentejana que,
em Portugal, se associa à área de latifúndios. A partir dos meados
do século XIX parcela dos emigrantes passou a dirigir-se ao Brasil
e, mais para o final do século para os Estados Unidos8.
A emigração para o Brasil, que partia da Lousã, está vincu-
lada ao nome do João Elisário de Carvalho Montenegro, conhe-
cido como Comendador Montenegro. Ele era filho de um médico
lousanense e nasceu em 1823. Aos 17 anos de idade, portanto no
ano de 1840, emigrou para o Brasil e, como tantos outros jovens
portugueses, dirigiu-se para o Rio de Janeiro onde se dedicou ao
comércio, trabalhando como caixeiro-viajante. Sua trajetória no
comércio foi um sucesso, seu negócio prosperou e ele se tornou
conhecido como “rei dos viajantes” (SCOTT; TRUZZI, 2008).
Montenegro faleceu no Brasil, na cidade de Espírito Santo
do Pinhal, em 1915. Mesmo tendo optado por viver no Brasil,
Montenegro é reconhecido como importante benemérito e filan-
tropo entre seus conterrâneos da Lousã: fez a doação do primeiro
conjunto de livros que deu origem à Biblioteca Municipal da Lou-
sã, foi fundador do hospital da vila, além de ser conhecido por
doar esmolas aos pobres de sua terra.
De sua trajetória de 75 anos no Brasil, quero chamar a aten-
ção para os anos entre 1867 e 1888. Nesse período Montenegro
fundou o Núcleo Colonial da Nova Lousã, situado entre Espírito
Santo do Pinhal e Mogi Mirim. O núcleo estava instalado numa
fazenda com área de 200 alqueires e recebeu o primeiro grupo de
imigrantes naturais da região da Lousã em fevereiro de 1867.
De fato, o Núcleo Colonial da Lousã, ficou nas mãos de
Montenegro até o ano de 1888, quando a fazenda foi vendida.
Esses anos entre 1867 e 1888 deram lugar a uma experiência ino-
vadora, para os padrões da época como teremos oportunidade de
verificar.

8
Estudo fundamental sobre a emigração de lousanenses para os Estados Unidos
foi feito por Paulo F. Monteiro (1985).

220
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

O proprietário do núcleo colonial tinha uma posição con-


trária ao trabalho escravo, assim como também fazia críticas ao
sistema de parceria, que vigorava em muitas fazendas de café si-
tuadas na província paulista. Na sua propriedade, Montenegro
introduziu o trabalho assalariado e procurava estimular a boa con-
vivência dos seus empregados, não apenas a partir da instituição
de um regulamento interno que vigorava na Nova Lousã, mas
também propiciava a oportunidade dos trabalhadores estudarem
na escola noturna que funcionava no interior da fazenda. Tão
diferente foi a experiência implantada por Montenegro que o
Imperador D. Pedro II chegou a visitar a propriedade9.
Aqui interessa discutir, sobretudo, as trajetórias de algu-
mas dessas famílias. Chamo a atenção em primeiro lugar, para o
sistema de recrutamento dos imigrantes, que era realizado pelo
próprio Montenegro, como se depreende de notícia publicada no
jornal Gazeta de Campinas, de outubro de 1872:
O sr. Montenegro é oriundo daquella mesma povoação, cu-
jos habitantes elle conhece pessoalmente. Por isso, faz elle a
sua escolha com pleno conhecimento de causa, e os recém-
chegados se incontram, quase sem transicção, entre amigos
de que apenas se achavam separados pelo lapso d’alguns an-
nos. Fonte: Gazeta de Campinas, 17 de outubro de 1872.

Poucos anos depois dessa notícia, foi publicado pelo pró-


prio Montenegro o “Mapa Geral da Nova Lousã”, para o ano de
187510. Naquele momento, o núcleo colonial contava com 154
indivíduos, sendo que 132 eram homens (85,7%) e 22 mulheres
(14,3%). Daqueles colonos, 29 eram casados, 2 eram viúvos e a
maioria (120) eram solteiros. Uma comparação com o quadro mais
abrangente da província de São Paulo como um todo, mostra que,

9
Para uma discussão mais aprofundada da relação estabelecida entre proprietá-
rios e empregados da fazenda, veja (Truzzi e Scott, 2005; Scott e Truzzi, 2008).
10
Montenegro, João Elisário de Carvalho. Colônias Nova-Louzã e Nova Co-
lômbia. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Presidente da Província de
São Paulo. 06 de fevereiro de 1875. São Paulo: Typ. da Província de São Pau-
lo, 1875.

221
SCOTT, A. S. V. • “Entre idas e vindas”: a contribuição da Micro-História...

pelo censo de 1872, dos 6.867 portugueses recenseados, 5.434 eram


homens (79,2%) e 20,8% eram mulheres (1.433). Ou seja, a imi-
gração recrutada através do proprietário, continuava privilegian-
do os homens em detrimento das mulheres, e os solteiros eram os
preferidos. De fato, na Nova Lousã, a supremacia masculina era
ainda mais acentuada do que entre os portugueses radicados em
toda a província paulista.
A análise do processo e(i)migratório entre a Lousã e a Nova
Lousã permitiu, através do cruzamento nominativo de fontes,
perceber as diferentes histórias e experiências familiares que esta-
vam por trás da vinda para o Brasil.
Através de algumas trajetórias foi possível recompor os equi-
líbrios internos dos grupos familiares que viveram na Lousã, e a
busca de estratégias diferenciadas para garantir a manutenção das
famílias e dos indivíduos. As distintas estratégias e situações fa-
miliares vêm à tona e se tornam visíveis aos estudiosos nesta es-
cala de observação.
Nesta perspectiva pudemos entrever as idas e vindas desses
homens e mulheres e, mais do que tudo, ficou claro que eram
muitas e diferentes as histórias que envolviam a e(i)migração para
o Brasil. A migração transoceânica poderia integrar as estratégias
de famílias completas (pais e filhos) melhor posicionadas na
sociedade local, mas também poderia ser a saída para trabalha-
dores com menos recursos, mulheres solteiras, jovens solteiros.

Entre idas e vindas: famílias e indivíduos


na travessia da Lousã para a Nova Lousã

Algumas das trajetórias que foram recuperadas através do


cruzamento de fontes variadas, corroboram que a e(i)migração
tinha papel fundamental no equilíbrio das famílias camponesas e
na garantia de sua manutenção. As diferentes estratégias e situa-
ções em que o processo migratório foi utilizado pelos grupos fa-
miliares só podem vir à tona nesta escala de observação. Entre os
grupos de indivíduos que emigraram da Lousã para a Nova Lou-

222
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

sã, selecionamos alguns exemplos que dão conta da diversidade


do perfil dos indivíduos e famílias11. Comecemos pelo percurso
migratório da família Serra.
A família de Antônio Serra e Rosária Jesus, também co-
nhecidos por Antônio Henriques Serra e Rosária Serra ilustra bem
os vínculos com a migração e, ao mesmo tempo, os vínculos man-
tidos na comunidade de origem. O casal partiu na primeira leva
de colonos, acompanhado por seis filhos. O grupo familiar com-
punha-se de filhos mais velhos, mas também de crianças de me-
nor idade, como Antônio e Eduarda, que haviam sido batizados
na igreja da Lousã, respectivamente, em 1861 e 1864.
A história deste casal é interessante, pois vemos que Antô-
nio não era um indivíduo pobre. Vinha de uma família cujo pai
era proprietário, e que nos censos eleitorais era tido não só como
eleitor, mas tinha sido arrolado também como deputado no cen-
so relativo a 1852. Como seu pai, o próprio Antônio foi registra-
do no censo eleitoral de 1858.
Na lógica da sociedade portuguesa da segunda metade do
século XIX, estar incluído neste tipo de fonte (recenseamento elei-
toral) constitui uma grande distinção socioeconômica, pois ape-
nas uma minoria de indivíduos possuía os rendimentos anuais
mínimos requeridos para ser considerado eleitor, ou para integrar
o grupo dos elegíveis. Pela legislação eleitoral de 1852 (primeiro
ano que temos esta fonte disponível para a Lousã), a condição
para ser eleitor era ter uma renda líquida anual de 100$000 réis,
provenientes de bens de raiz, capitais, comércio, indústria, ter
emprego inamovível e ser “de maior idade”. Entre os eleitores
havia ainda o grupo considerado elegível para os cargos públicos,
e estes teriam que ter uma renda anual equivalente a 400$000, ou
obedecer aos outros quesitos definidos (SCOTT, 2012: 425-428).
Só isto mostra que Antônio desfrutava de uma condição social
privilegiada, se comparada à seus conterrâneos.

11
Algumas dessas trajetórias foram apresentadas inicialmente em Truzzi e Volpi
Scott, 2006/7.

223
SCOTT, A. S. V. • “Entre idas e vindas”: a contribuição da Micro-História...

Antônio e a família emigraram, mas, curiosamente, no pas-


saporte emitido em Coimbra ele foi identificado como “trabalha-
dor”, condição bem mais humilde do que aquela que se deixa
entrever, com base nos censos eleitorais, o que nos leva a crer que,
por algum motivo que desconhecemos, ele declarou outra ativi-
dade no momento solicitar o documento.
A experiência migratória vivenciada pela família Serra mos-
trou que seus filhos tiveram opções diferentes quanto aos seus des-
tinos nos anos que seguiram a instalação na Nova Lousã. A ques-
tão de gênero parece ter um papel importante na escolha feita.
Para os filhos do sexo masculino, João, Manuel e Antônio,
tudo indica que não se colocou a possibilidade de retornar à terra
natal. Encaminharam suas vidas na terra de acolhimento. Pelo
“Mapa Geral de 1875”, sabemos que os três ainda residiam na
Nova Lousã, e tinham, respectivamente, as ocupações de: carrei-
ro, empregado doméstico e trabalhador. Os dados coletados nos
assentos paroquiais da Nova Lousã não indicam que tenham se
casado ou tido filhos no núcleo colonial.
As suas filhas do casal, por outro lado, tiveram uma vida
familiar construída na Nova Lousã que, paralelamente, resgatou
a ligação com a terra natal, uma vez que duas delas optaram por
retornaram à Lousã e ao lugar da Favariça, de onde tinham parti-
do alguns anos antes, com seus pais.
Eduarda Jesus Serra, a filha mais nova de Antônio e Rosá-
ria, nascida aos 24 de abril de 1864, migrou com os pais, mas
retornou a Lousã, em data desconhecida. O retorno ocorreu en-
tre os anos de 1876 e 1883, já que no mapa de 1875 ela se encon-
trava na fazenda de Montenegro.
Casou-se no dia 8 de janeiro de 1884, aos 20 anos, na igreja
da Lousã com Adelino Caetano Silva de 26 anos de idade, natu-
ral do Concelho de Miranda do Corvo, e foram residir no lugar
da Favariça, de onde era originária a família da noiva. No perío-
do que temos os registros paroquiais levantados, vimos que Eduar-
da e Adelino tiveram duas filhas, Julia (05/10/1884) e Maria
Adelina (01/08/1886).

224
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

A irmã de Eduarda, Maria Piedade Serra, retornou tam-


bém à vila da Lousã e ao mesmo lugar da Favariça. Diferente-
mente de Eduarda, Maria Piedade se casou na colônia da Nova
Lousã, aos 16 anos de idade com Diamantino Caetano de Miran-
da, também natural de Miranda do Corvo. Diamantino havia
entrado na colônia em 19 de dezembro de 1871. No seu passapor-
te foi dado como trabalhador, mas no Mapa Geral de 1875, sua
ocupação é telheiro.
Diamantino e Maria Piedade tiveram dois filhos batizados
na Nova Lousã, os dois de nome João, o primeiro nascido em 25
de dezembro de 1876 e o segundo em 21 de julho de 1878, segura-
mente uma homenagem ao comendador Montenegro, que foi o
padrinho das duas crianças.
O retorno às terras lousanenses deu-se antes do mês de agos-
to de 1880, pois aos cinco dias do mês de setembro daquele ano, o
casal batizou mais uma criança, na Igreja da Lousã, nascida em
24 de agosto de 1880. Os padrinhos foram o avô materno Antô-
nio Serra e a tia Eduarda Serra. Mais duas crianças nasceriam da
união de Maria Piedade e Diamantino, Antônio e Augusto, nas-
cidos em 1882 e 1883, respectivamente, tendo como padrinhos,
Augusto José Santos, e a avó materna Rosária Serra.
A terceira filha do casal, Ana Serra, também se casou na
Nova Lousã em 25 de dezembro de 1872, com Joaquim Couceiro
Arouce, natural de Foz de Arouce, concelho da Lousã, que en-
trou havia chegado à Nova Lousã em setembro de 1869, aos 18
anos. No passaporte sua ocupação não foi declarada, mas em 1875
foi dado como ferreiro.
O conjunto de registros reunidos através do cruzamento
de fontes que nos permitiram reconstruir a trajetória de vida deste
casal. Além dos filhos tidos na vigência do casamento, o cruza-
mento de fontes nos revelou que Ana e Joaquim mantiveram
uma relação que precedeu o casamento, pois registramos o bati-
zado de Afonso Albuquerque, nascido em 3 de fevereiro de 1872,
apesar do casamento de Ana e Joaquim ter se realizado somente

225
SCOTT, A. S. V. • “Entre idas e vindas”: a contribuição da Micro-História...

em dezembro daquele ano. Portanto, a criança nasceu na condi-


ção de natural, sendo legitimada após o casamento de seus pais.
Além de Afonso, o casal batizou na Nova Lousã mais um
menino, que recebeu o nome de Gil Vicente. Em ambos os batiza-
dos foram padrinhos o Comendador Montenegro e seu irmão o
padre José Daniel de Carvalho Montenegro.
Maria Jesus Serra, a quarta filha do casal Antônio e Rosá-
ria, casou com Francisco Guilherme Rodrigues, em local desco-
nhecido, pois não foi localizado o assento do casamento. Sabe-
mos de seu casamento através dos assentos de batizado de duas
crianças, Alexandre Herculano, em 1870 e Antônio em 1872. O
marido de Maria Jesus, Francisco, deu entrada na Nova Lousã na
primeira leva de imigrantes, junto com a família de sua mulher,
com apenas 16 anos de idade, sem profissão declarada no passa-
porte. Ele era natural da Lousã e residente no lugar do Cabo do
Souto. Seu pai, a exemplo do que sucedeu com seu sogro, Antô-
nio Serra, também foi registrado nos censos eleitorais da Lousã,
indicando posição socioeconômica mais privilegiada. Francisco
Guilherme Rodrigues (pai) foi registrado nos censos eleitorais
(1852, 1854 e 1858) como lavrador.
A imigração parece ter funcionado como uma estratégia de
reprodução social que poderia ter como objetivo desagravar a si-
tuação familiar dos Serra. Uma estadia no Brasil permitiu não só
o ganho propiciado pelos salários, como o encaminhamento para
outras atividades, uma vez que Antônio Serra foi identificado
como negociante no Mapa Geral de 1875.
Uma família grande que, possivelmente, nos limites da eco-
nomia familiar característica da região da Lousã, não suportaria
manter o número de indivíduos atrelados à unidade produtiva fami-
liar, adotou como estratégia o encaminhamento dos filhos do sexo
masculino fora da casa paterna. De outra parte, fica clara a escolha
de favorecer a continuidade da família na terra natal, através do re-
torno das filhas casadas e genros, depois da experiência migratória.
O exemplo dos Serra mostra a imigração inserida numa
unidade familiar completa, onde a decisão levou a uma migração

226
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

do grupo familiar como um todo. Outros casos não seguiram a


mesma estratégia. Temos aqueles indivíduos que, casados, viam
na migração temporária para o Brasil uma oportunidade de me-
lhorar a sua condição de vida, mas sem o objetivo de enriquecer,
talvez apenas de poder alcançar algum equilíbrio menos precário
entre o crescimento da família e as oportunidades de trabalho na
terra natal. Esta situação foi claramente enunciada através das
redes que ligavam indivíduos radicados no lugar do Caterredor,
outra localidade da freguesia da Lousã.
Uma estadia curta na colônia da Nova Lousã foi a estraté-
gia escolhida pela família de Joaquim Antônio Catarredor. Como
o próprio nome indica, Joaquim Antônio era natural da Lousã e
radicado no lugar do Catarredor. Joaquim Antônio, registrado
como trabalhador no seu processo de passaporte deu entrada na
Lousã em 19 de setembro de 1874. Ele era casado com Rosária
Maria e registramos uma descendência de oito filhos, batizados
respectivamente em 1861, 1864, 1867, 1871, 1873, 1874, 1878 e
1881, como ficou comprovado através da ficha de família, cons-
truída a partir do cruzamento dos assentos paroquiais da Lousã.
O primeiro filho, batizado com o nome de José, seguiu as pega-
das de seu pai e também emigrou da Lousã para a Nova Lousã,
quatro meses depois de Joaquim Antônio. Seu filho José deu en-
trada na colônia, em 12 de janeiro de 1875, aos 13 anos de idade.
Aqui a opção adotada foi o pai emigrar primeiro e depois chamar
o filho mais velho para a sua companhia.
Os dados recolhidos e cruzados mostram que a estadia do
pai se deu exatamente no intervalo entre o nascimento de dois de
seus filhos: Antônio, o sexto da prole, nascido em 12 de setembro
de 1874 e Clara, nascida em 22 de abril de 1878. Portanto, antes
mesmo do nascimento de Antônio, Joaquim seguiu para a Nova
Lousã, deixando sua mulher grávida e seus cinco filhos menores
(lembremos que a entrada na colônia em 19 de setembro). Quan-
do seu primogênito, José, seguiu o pai, encaminhando-se para a
Nova Lousã, o fez na companhia de Manoel Dias e Joaquim Dias,
pai e filho, também residentes no lugar do Catarredor. Sem dúvi-

227
SCOTT, A. S. V. • “Entre idas e vindas”: a contribuição da Micro-História...

da, as ligações entre as famílias que viviam na mesma vizinhança


forma fundamentais, não apenas na troca de informações privile-
giadas entre os dois lados do Atlântico, como a oportunidade de
enviar o filho sob os cuidados do conterrâneo.
Da mesma forma que seu patrício e vizinho Joaquim, tudo
indica que Manoel Dias recorreu à mesma estratégia de uma emi-
gração temporária para a Nova Lousã. Ele era casado com Jacin-
ta Jesus, e haviam sido recebidos como marido e mulher na igreja
da Lousã, em 14 de outubro de 1862. Tiveram também oito filhos
batizados na Lousã nos anos de 1863, 1866, 1868, 1871, 1873,
1880, 1881 e 1883 (fichas de família). Manoel, que entrou na Nova
Lousã em 1875, também levou seu primogênito na travessia tran-
satlântica.
A circunstância de o ritmo intergenésico dos nascimentos
(intervalo de tempo entre os nascimentos sucessivos) registrado
entre os casais Joaquim Antônio e Rosária e Manoel e Jacinta, só
ter sido quebrado durante a estadia de seus maridos na Nova Lou-
sã. Isso sugere que as famílias com uma prole numerosa e sem
muita perspectiva de aumentar seus rendimentos com base nas
oportunidades de trabalho na terra natal, aproveitaram a chance
de emigrar oferecida pelo Comendador Montenegro. Possivelmen-
te recolheram informações com outros indivíduos que haviam
compartilhado esta experiência migratória e foram capazes de,
após alguns anos, retornar com um pequeno pecúlio que lhes ga-
rantisse a sobrevivência do grupo familiar, mesmo com os recur-
sos limitados pelo ambiente característico da serra da Lousã.
Outros, pelo contrário poderiam enxergar a oportunidade
de emigrar, como uma possibilidade de começar uma vida nova
fora da terra natal, uma vida nova que se teria iniciado com o
casamento na igreja da Lousã, seguido da viagem para a Nova
Lousã. Aqui referimos os jovens recém-casados, como também
aqueles que iniciam o ciclo de vida familiar e tinham filho(s)
pequeno(s).
João Gonçalves e Maria Piedade Gonçalves, por exemplo,
casaram-se na Lousã em 18 de setembro de 1867, os dois com 24

228
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

anos. Seguiram para a Nova Lousã dois meses após a celebração


das bodas, em 21 de novembro de 1867, ainda no primeiro ano de
fundação da colônia.
João tinha a ocupação de trabalhador e sabemos que fica-
ram na colônia até 1875. Nesse período Maria Piedade deu a luz
a duas crianças, Eugênia e João, que tiveram como padrinhos João
Elisário Carvalho Montenegro e o Padre José Daniel de Carva-
lho Montenegro.
Estratégia semelhante usou José Santos Semide. Ele e sua
mulher, Ana Conceição Santos, casaram e logo depois seguiram
para a Nova Lousã, acompanhados da filha de um ano de idade,
a pequena Jacinta. O casal, recém-formado, ele com 27 anos e ela
com 29, deu entrada na colônia em outubro de 1873, e continuou
sua vida reprodutiva lá, ao batizar mais três crianças, respectiva-
mente em 1875, 1878 e 1880.
Outras trajetórias mostraram irmãos solteiros que escolhi-
am o caminho da emigração. A opção mais recorrente era aquela
que se iniciava com o caminho aberto por um dos irmãos que, na
sequência, chamava os demais (incluindo irmãs também).
A família de Bernardo Antunes e de sua mulher Tereza
Maria, naturais do concelho da Lousã e residentes na freguesia
de mesmo nome, no lugar de Ceira dos Vales adotou esta estraté-
gia de emigração para a Nova Lousã como importante via de in-
serção dos filhos do casal.
A trajetória para a fazenda de propriedade de João Elisário
de Carvalho Montenegro foi aberta por Manuel Antunes que en-
trou na Nova Lousã em oito de setembro de 1869, aos 23 anos de
idade. Na esteira de Manuel Antunes temos a chegada de irmãs,
Eufrásia Maria e Ludovina Maria, ambas solteiras, que desem-
barcam na Nova Lousã em dezembro de 1870, pouco mais de um
ano depois da chegada de Manuel.
As duas se casaram na Nova Lousã poucos anos depois.
Ludovina Maria casou com Manoel Pedro Gomes, em 24 de ju-
nho de 1872, ela aos 20 anos de idade e ele com 25. Ele era natu-
ral do Concelho de Miranda do Corvo e nasceu em 25 de feverei-

229
SCOTT, A. S. V. • “Entre idas e vindas”: a contribuição da Micro-História...

ro de 1845, tendo entrado na Nova Lousã em dezembro de 1868.


O casal permaneceu na colônia, pelo menos até 1880, quando
temos o registro do terceiro filho do casal
A irmã de Ludovina, Eufrásia Maria, se casou na colônia
em 7 de janeiro de 1872, com Manoel Carvalho. Do casamento
teve uma criança batizada na Nova Lousã. O casal retornou para
a Lousã, pois batizou mais outro filho na igreja paroquial de lá
em 26 de novembro de 1876. Ficaram portanto, em torno de qua-
tro anos na fazenda.
O irmão de Ludovina e Eufrásia, Manuel Antunes, que
abriu o circuito migratório para a Nova Lousã, também optou
por retornar à terra natal. A destacar, no entanto, que Manuel,
diferentemente, escolheu se casar ao voltar da Nova Lousã. É
possível especular que o casamento foi viabilizado depois de reu-
nir algum pecúlio nos anos de trabalho na lida do café. Como foi
sublinhado, o acesso ao casamento no norte de Portugal, era li-
mitado e tardio.
A experiência vivenciada por Manuel se adequa a esse
modelo. Manuel teve que esperar para se casar. Só pode realizar
as bodas, na igreja da sua terra, aos 31 anos, em 8 de agosto de
1876, com Rosaria Jesus, filha de Manoel Ferreira e Joana Si-
mões, que contava com 45 anos. Ela era já viúva de Antônio Maria
Neto, sendo mãe de quatro filhos deste primeiro casamento. Ela
era natural de Vilarinho da Lousã e residente na Lousã, também
no lugar de Ceira dos Vales, onde continuaram a residir depois do
casamento. Do casamento com Manoel Antunes Rosária, teve
ainda mais uma filha, Virgínia, nascida em 15 de outubro de 1879
e batizada em 9 de novembro de 1879.
Sabemos ainda que mais uma irmã pertencente à família
Antunes, do lugar de Ceira dos Vales, migrou para a Nova Lousã
em período posterior a 1875. Ela se chamava Leopoldina Jesus e se
casou na colônia com Antônio Soares, em 31 de maio de 1879.
Desse matrimônio nasceram dois filhos, registrados em 1880 e 1881.
Também aqui parece haver uma estratégia explícita de en-
caminhar os filhos para conseguir reunir pecúlio para se casar.

230
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Alguns “fora da casa” e outros “na casa”. Tal opção possibilitaria


a constituição e a manutenção novos núcleos familiares, alguns
ligados à casa mãe, e outros não.
Isso tudo vem reforçar a ideia de que a realização do casa-
mento dependia da existência de condições concretas. Nesta área,
como de resto para toda a região a norte de Coimbra, o acesso ao
casamento era restrito, exatamente porque a pequena propriedade
de terra, da qual dependia o sustento do grupo familiar, não pode-
ria garantir a sobrevivência de um grupo familiar muito alargado,
uma vez que estavam inseridos numa economia que era essencial-
mente limitada ao trabalho agrícola e a atividade do pastoreio.
Como ocorria no Minho (SCOTT, 2012), a saída do exce-
dente populacional através da emigração, criava as condições para
que os jovens pudessem ter alternativas de trabalho fora da casa-
mãe. Os filhos teriam a oportunidade de formar novos núcleos
familiares: alguns continuando na terra natal, outros, optando por
estabelecer suas famílias fora, como vimos nos casos concretos
analisados na Nova Lousã.
A oportunidade de trabalho fora da terra natal, aberta por
Montenegro, possibilitou que as famílias lousanenses buscassem
aproveitar da melhor maneira possível, segundo necessidades es-
pecíficas, a porta para o outro lado do Atlântico, com uma vanta-
gem sobre outros emigrantes, já que sabiam exatamente o que
esperar na sociedade receptora, que diferia substancialmente de
outras experiências migratórias, seja para outras fazendas e nú-
cleos coloniais no interior da província de São Paulo, seja para o
trabalho na ferrovia ou no comércio, que seguia atraindo muitos
portugueses, no último quartel do século XIX.

Considerações finais

Nesse exercício, baseado no estudo do caso da migração


entre a Lousã e a Nova Lousã, procurei examinar “coisas gran-
des” – a e(i)migração de Portugal para o Brasil – ao microscópio.
Acredito que trouxe à tona aspectos do processo migratório que

231
SCOTT, A. S. V. • “Entre idas e vindas”: a contribuição da Micro-História...

não são imediatamente evidentes em outra escala de abordagem.


Para mais, colocou em evidência diferenças existentes nas estra-
tégias utilizadas para a busca do equilíbrio familiar, explorando a
complexidade do jogo de opções e constrangimentos que cada
família daquela região da serra da Lousã, poderia se valer para
viabilizar a sua reprodução biológica e social.
O passo seguinte, que poderá ser aprofundado em etapas
futuras, é o estudo daqueles indivíduos e famílias que não pude-
ram (ou não quiseram) aproveitar a oportunidade de migração
para o Brasil, posta à disposição pelo Comendador Montenegro.
Que estratégias teriam levado a efeito para manter o equilíbrio
entre recursos, consumo e trabalho? A opção seria a migração
interna para a região do Alentejo? Seria o aumento de restrições
do acesso ao casamento e à terra? O aprofundamento do estudo
das variáveis demográficas, assim como as de caráter econômico
e social poderão dar pistas para desvendar estas estratégias e com-
pará-las ao grupo de indivíduos e famílias que “embarcaram” na
busca de equilíbrio através da viagem rumo ao Brasil.

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232
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

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imigração de lousanenses ao Brasil imperial. Portuguese Studies Review,
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233
Parentela y paisanaje en
la emigración zamorana a la
Argentina a comienzos del siglo XX
Alejandro Fernández

Introducción

Una de las características a menudo destacadas por los


historiadores acerca de la emigración transatlántica española es
su marcada impronta regional. A diferencia de otros países de
elevada emigración respecto de la población residente, como
Irlanda, Escocia o Italia, en donde el éxodo comenzó en algunas
regiones específicas pero terminó convirtiéndose en un fenómeno
de corte nacional, en España los desplazamientos hacia América
estuvieron muy concentrados en determinados focos, incluso
cuando el movimiento alcanzó su plena madurez. Es así que,
mientras que la mayor parte de Galicia, Asturias, Cantabria, el
País Vasco y Cataluña presentan una orientación emigratoria de
largo plazo – en algunas comarcas ya desde mediados del siglo
XVIII y hasta mediados del XX –, otras regiones, como
Extremadura, Murcia, La Mancha o casi toda Andalucía y Aragón
muestran una emigración al exterior poco significativa, aunque sí
aportaron importantes contingentes a las migraciones internas.
Está claro que tales desniveles en los índices emigratorios
responden a los profundos desequilibrios regionales que existían
en la península ibérica y que pueden rastrearse a través de múltiples
indicadores, como la distribución de la propiedad de la tierra, el
índice de alfabetización, la esperanza de vida al nacer, la media
de hijos por matrimonio, el porcentaje del producto bruto aportado

234
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

por la agricultura o el porcentaje de mano de obra que empleaba.


Todo ello deriva en la conveniencia de estudiar los movimientos
emigratorios españoles en una escala diferente de la nacional,
excepto cuando se trata de analizar las políticas migratorias o las
políticas económicas o monetarias que tuvieron un alto impacto
sobre tales desplazamientos. La escala regional o aún las más
reducidas, como la comarcal o la local, no solamente tienen la
ventaja de permitirnos detectar las profundas diferencias existentes
por debajo de unas medias nacionales en el fondo poco
representativas, sino que, por lo común, nos ponen en contacto
con los mecanismos microsociales a través de los cuales operaban
y tendían a perpetuarse las experiencias emigratorias, como son
los de la parentela y el grupo de paisanaje.1
En esta perspectiva nos proponemos abordar aquí el caso
de un movimiento emigratorio que, en rigor, no puede ser ubicado
en ninguno de los dos polos mencionados anteriormente, ya que
se trata de la provincia de Zamora, entonces integrante del reino
de León, que se caracterizaba por una muy baja emigración
transatlántica hasta fines del siglo XIX -como casi todas las
provincias vecinas-, pero que se sumó con ímpetu a la corriente
en la primera década de la centuria siguiente, convirtiéndose en
un denso núcleo emisor de población. Por otro lado, esa
emigración era una de las que presentaba mayor orientación hacia
la Argentina, junto con la adyacente Salamanca, por lo que las
fuentes del país de destino reflejan algunas de sus características
con bastante precisión. En trabajos anteriores nos hemos ocupado
de la emigración castellana y leonesa, y en particular de la
zamorana, pero si bien ya entonces empleamos una escala regional
de análisis, nuestra atención sobre todo se concentró en los factores
de la economía argentina que actuaron como un poderoso imán a
la distancia para los emigrantes de esa zona de la península
(FERNÁNDEZ, 2005: 2008a: 2008b).

1
Ver al respecto las observaciones de Devoto (1996, p. 479-505).

235
FERNÁNDEZ, A. • Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX

A posteriori, la Junta de Castilla y León y la Universidad


Nacional de Educación a Distancia de España (UNED) han
auspiciado una valiosa labor de recopilación y edición de
memorias y relatos de emigrantes zamoranos y de sus
descendientes, en particular de los radicados en la Argentina, que
estuvo a cargo del equipo encabezado por el profesor Juan Andrés
Blanco Rodríguez.2 Se trata de un rico material primario, que
comprende desde historias de vida de los emigrantes narradas por
ellos mismos o por sus hijos, abarcando decenas de páginas, con
abundante información que resulta de nuestro interés, hasta otras
mucho más breves que se limitan a enumerar datos familiares
difíciles de integrar en un cuadro explicativo más amplio, o que
reiteran los lugares comunes de este tipo de literatura, en particular
por lo que se refiere a los valores y conductas incorporados y
defendidos, como veremos más abajo. En medio de esas
alternativas, y dado que la convocatoria era amplia y no se ajustaba
a un determinado modelo, la recopilación incluye otro tipo de
textos, también provechosos, como por ejemplo el diario de viaje
del hijo adolescente de un emigrante zamorano a la Argentina,
cuando retornan de visita a la tierra de origen, escrito en 1929
pero publicado ochenta años más tarde con una introducción
explicativa (MOSTAZA BARRIOS, 2009, p. 55-87). Gran parte
de los relatos son acompañados por fotografías y por diversos tipos
de documentos personales. Hasta donde sabemos, todo este
material no ha sido utilizado hasta el momento como fuente para
abordajes científicos.
Nuestro propósito en esta oportunidad es el de aproximarnos
a la emigración zamorana con un enfoque microanalítico, como se
verá en la primera parte del artículo, que considera las características

2
Los resultados de esa convocatoria fueron dados a conocer en las siguientes
publicaciones: BLANCO RODRÍGUEZ; BRAGADO TORANZO (2007:
2009a: 2009b), BLANCO RODRÍGUEZ; BRAGADO TORANZO;
DACOSTA MARTÍNEZ (2011), BLANCO RODRÍGUEZ; BRAGADO
TORANZO; DACOSTA MARTÍNEZ; ESPADA RODRIGO (2012).

236
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

de la emigración zamorana a la Argentina y las razones de su


súbita aceleración, en una escala desagregada por comarcas de la
provincia e incluso dedicando un apartado al análisis particular
de algunas de las aldeas desde las que más se emigraba. El período
en el que nos concentramos, dada su importancia en la historia
de este movimiento migratorio y la abundancia de fuentes para
registrarlo, es el trienio 1910-12, aunque con abundantes
referencias a los años de entreguerras, cuando la corriente fue
madurando y variando algunas de sus caracteres. La
documentación que utilizamos allí tiene un carácter serial y
público (listas de inmigrantes, padrones de población de las
localidades de origen de estos últimos, registros impositivos). La
segunda parte analiza las vivencias de los emigrantes zamoranos
y el proceso de su integración en la sociedad argentina a través de
los testimonios escritos y orales a los que hemos hecho mención
más arriba. Especial interés cobra allí lo referido a la continuidad
de los nexos pre-migratorios, familiares y paisanos, y la aparición
de otro tipo de vínculos y contactos, a medida que se prolongaba
el tiempo de radicación en América.
En los últimos tiempos la historiografía de los movimientos
migratorios ha concedido una creciente importancia a la acción de
los sujetos involucrados en tales procesos, así como de sus grupos
de pertenencia, como la familia, los amigos y paisanos de la tierra
de origen o los conocidos y eventualmente amigos que se van
incorporando a sus experiencias vitales en los lugares de destino.
Con ello ha tendido a descartar la imagen de unos emigrantes que
se desplazaban por el mundo al compás de las mutaciones
económicas, privados de opciones, para concentrarse en los
márgenes de acción que ellos pudieron retener y en las decisiones
que tomaron, por sí mismos o apoyados en tales grupos de
pertenencia, a fin de llevar a cabo los proyectos que los llevaron a
cruzar el océano (YANS-MACLAUGHIN, 1991, p. 254-291). En
ese tránsito historiográfico han ganado significación los textos
elaborados por los emigrantes concretos, como cartas, memorias y
autobiografías, que reflejan momentos específicos de sus existencias

237
FERNÁNDEZ, A. • Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX

y que a menudo constituyen lo único que nos ha quedado de ellos


como documentación escrita.3
El uso de este tipo de fuentes puede constituir un buen
complemento del enfoque microterritorial de los movimientos
migratorios, en la medida en que los marcos de referencia que en
ellas aparecen (la familia, la parentela más amplia, la aldea de
origen y su entorno) corresponde aproximadamente al de la
documentación serial que por lo común se emplea en esa escala
(padrones locales de población, listas de contribuyentes, actas
matrimoniales, registros de emigrantes) (NÙÑEZ SEIXAS y
SOUTELO, 2005, p.29-30). Sin embargo, también se trata de
fuentes que adolecen de determinados problemas a los que se debe
prestar atención, siendo uno de los más mencionados es el de su
representatividad. En este artículo se utilizarán fuentes que no
provienen de un mismo grupo primario, ni siquiera en sentido
amplio, ya que la convocatoria que oportunamente se realizó para
la presentación de memorias y autobiografías tuvo una difusión
extendida por diversos núcleos de asentamiento de la colectividad
zamorana de la Argentina y, como se verá, las aldeas de origen
comprenden casi toda la geografía de la provincia. Más allá de
eso, es obvio que, salvo en uno de los casos, se trata de una
representación que se centra en quienes permanecieron en el país
de destino -aunque en los testimonios aparecen referencias a los
retornados-, en aquellos que todavía conservaban la memoria de
la emigración -o la habían transmitido a sus descendientes antes
de morir- y en los que contaban con más vinculaciones
comunitarias, aunque, como veremos, esto último admite algunas
excepciones.
Por otra parte, cabe recordar que, en general, las memorias
escritas y autobiografías tienden a sobrevolar determinados
aspectos de la vida de los emigrantes, concentrándose más bien

3
Para una reflexión sobre la importancia de este tipo de documentación referida
a los sectores subalternos de la sociedad, en particular en el caso español
(CASTILLO, GÓMEZ, 2001, p. 9-34).

238
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

en otros, sin que sea posible repreguntar sobre los primeros, como
acontece en las entrevistas. En nuestro caso, por ejemplo, la
función de las remesas durante la etapa en que los emigrantes
seguían contando con familiares en la tierra de origen, sea que
mediante aquéllas colaboraran para que algunos de estos últimos
se sumaran al cruce transoceánico o para pagar las deudas
acumuladas en la explotación doméstica, se encuentra poco
mencionada en las memorias, mientras que cobran una
importancia mucho mayor los sucesivos pasos que permitieron la
integración del individuo en el país de destino y eventualmente
su ascenso social (obtención de nuevos empleos, paso por la escuela
argentina entre quienes arribaron siendo niños, mudanzas a otras
ciudades, incorporación a instituciones de la sociedad receptora,
matrimonio, nacimiento y educación de los hijos). No obstante,
sabemos por otras fuentes escritas, como las cartas, que la cuestión
de las remesas y su destino solía ocupar un lugar central en los
intercambios familiares durante coyunturas como la recién
mencionada (MARTÍNEZ MARTÍN, 2011, p.123-146).
Asimismo, las autobiografías suelen hallarse permeadas por
la experiencia del emigrante en el país receptor y por el éxito -o
falta de éxito- del proceso de adaptación y de incorporación de
los valores vigentes en este último, incluso si en algunos casos
están en contraste con los del país de origen (COTA FAGUNDAS,
2010, p.11-28).4 En los documentos que emplearemos, la escritura
corresponde a veces a los hijos de los inmigrantes, que recogen
los relatos orales de las historias de vida de sus padres y en cierto
modo retransmiten esos valores que asocian con la Argentina,
tales como la vigencia de las libertades civiles, las posibilidades
de movilidad social, la diversidad de su población, la ausencia de
rígidas jerarquías y, en algunos casos, el republicanismo.

4
Nuevamente, podemos mencionar aquí que se trata de una cuestión que suele
plantearse también en las entrevistas, pero que puede ser matizada o corregida
a través de nuevas preguntas por parte del investigador.

239
FERNÁNDEZ, A. • Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX

Como contrapartida, una posible ventaja de las autobiografías


respecto de las cartas y diarios escritos en la misma época en que se
iban produciendo los acontecimientos que modelaron la vida de
los emigrantes es que aquéllas, al ser redactadas en una etapa
avanzada de la vida de sus autores, o incluso cuando se aproxima
el final de las mismas, suelen incluir un cierto balance de los
resultados obtenidos, cotejándolos con las expectativas que los
llevaron a emigrar décadas antes (ÁLAVEZ GILA, 2016, p.101-
121). A ello se agrega lo señalado por Rosoli, en cuanto a que,
frente a la más vívida frescura de las cartas, las autobiografías
permiten una interpretación de largo plazo, en la medida en que
los autores tratan de abarcar todo su pasado y de reorganizar su
propia experiencia en torno de ciertos temas centrales (ROSOLI,
1992, p.175-192).

Zamora, un caso de emigración intensa y tardía

La emigración española a la Argentina fue la segunda en


importancia numérica, luego de la italiana. Una de sus
características más destacadas es la continuidad en el tiempo, desde
mediados del siglo XVIII hasta mediados del XX, con la excepción
de los veinte años que siguieron al estallido de la revolución de
independencia. Hasta la década de 1880 se trataba de una corriente
no muy nutrida, pero en la segunda mitad de ese decenio creció
considerablemente, en parte como consecuencia de la política
argentina de subsidio de los pasajes de inmigrantes, que se ejecutó
durante esos años. Las principales regiones que aportaban a la
emigración española hasta entonces eran Galicia, Asturias, el País
Vasco y Cataluña. La crisis económica de 1890 frenó ese ritmo
ascendente, que recién se recuperaría entre 1902 y 1913, cuando
se alcanzaron los registros más elevados de toda la historia
inmigratoria argentina. Desde el punto de vista de las regiones de
origen, la principal novedad consistió en la firme incorporación
de Castilla y León, que hasta ese momento habían ocupado un
lugar muy secundario.

240
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Según los datos del Instituto Geográfico y Estadístico de


España, el conjunto de Castilla y León presentaba un índice
emigratorio hacia toda América (emigrantes sobre el total de la
población) del 1 por mil en 1888-90, mientras que en 1911-13
llegó nada menos que al 11,7 por mil. De las nueve provincias
que componen la región, Zamora, Salamanca y León fueron, en
ese orden, las que más incrementaron el índice emigratorio en
igual lapso. Zamora pasó del 0,6 por mil de 1888-90 al 19,6 por
mil de 1911-13, lo cual representaba el tránsito de una de las
provincias de muy baja emigración a una de las más emigratorias
de toda España en el curso de un cuarto de siglo (ver mapa 1). Si
consideramos a la Argentina como destino, la cantidad total de
emigrantes zamoranos se elevó en el mismo lapso de una media
de 170 anuales a otra de 4.400, con un máximo de 5.700 en 1912.
Desde entonces y hasta 1929 la corriente siempre estuvo
compuesta por más de 500 individuos anuales, con la excepción
del bienio 1917-1918. En conjunto, entre 1911 y 1929 la Argentina
atrajo al 62,3 por ciento de los zamoranos que emigraron hacia
América.
En síntesis, si consideramos a la emigración zamorana
ultramarina desde el punto de vista global, podemos definirla como
un movimiento que mostró un incremento de elevadas

241
FERNÁNDEZ, A. • Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX

proporciones luego de 1900. El impacto del éxodo hacia América


fue considerable, contribuyendo al estancamiento de la población
de la provincia, que pasó de unos 270 mil habitantes en 1887 a
280 mil en 1930, con un leve descenso durante las dos primeras
décadas del siglo. Por su parte, el arribo de los zamoranos a la
Argentina se fue produciendo en esos años con un ritmo muy
emparentado con el de los leoneses y salmantinos. Todo ello
resultaría consistente con la presencia de inmigrantes de las tres
provincias -y en general de los castellano-leoneses- en la ciudad
de Buenos Aires y en varios puntos del interior, que ha sido
detectada mediante diversos indicadores (MOYA, 2004, p. 28:
MALUENDRES, 1994, p. 425-453).5
En el tiempo en que Zamora fue intensamente afectada por
los desplazamientos transatlánticos, se trataba de una provincia
en la que más del ochenta por ciento de la población vivía de la
agricultura, principalmente de la producción de cereales y vid.
De acuerdo a la información contenida en los partes consulares
de 1910-12, el 98 por ciento de los varones zamoranos que llegaban
a la Argentina declaraban ser labradores, jornaleros o braceros,
oficios todos asociados con el campo.6 En el caso de las mujeres,
si excluimos los rubros “su casa”, “su sexo” o “sus labores”, que
impiden tener una idea de su ocupación exacta, todas ellas eran
labradoras o jornaleras. Si pasamos a los libros de desembarco de
1923-26, en los que la información sobre ocupaciones -entre otras-

5
Basándose en actas de registro civil, Patricia Marenghi ha mostrado que las
provincias españolas con mayor presencia en el territorio de La Pampa entre
1900 y 1930 eran Salamanca, León y Zamora, lo que estaría en consonancia
con el momento relativamente tardío en que se produjo la colonización de la
región (MARENGHI, 2003, p. 135-204).
6
Los partes consulares eran expedientes que correspondían a cada viaje de los
buques que transportaban emigrantes a la Argentina, compilados en el momento
en que arribaban al puerto de Buenos Aires. Incluían, entre otra documentación,
las listas de emigrantes embarcados en cada puerto de escala, elaboradas en el
consulado argentino que correspondía al mismo. Como se trata de listas que en
muchos casos incluyen la localidad de nacimiento del emigrante -a diferencia
de los libros de desembarco-, resultan de gran utilidad para los estudios de escala
local, comarcal o regional (BERMASCONI, 1995, p. 191-201).

242
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

resulta más precisa, podemos observar que el 82 por ciento de los


varones se presentaba como “agricultor”, “jornalero” o
“labrador”, habiendo desaparecido la categoría “bracero”,
situación que se reiteraba con el 89 por ciento de las mujeres. Es
decir que el perfil rural de la emigración seguía siendo muy
dominante.
Una confirmación de esto último puede ser intentada
mediante el análisis de las variaciones estacionales del éxodo
transatlántico. El procedimiento fue ensayado por Yáñez para el
conjunto de la emigración española a la Argentina en 1905-1913,
basándose en fuentes del país de origen. Su trabajo demostró la
existencia de una marcada estacionalidad, tanto en las salidas (las
que se producían en octubre-noviembre cuadruplicaban a las de
junio-julio) como en los retornos (los de mayo-junio triplicaban a
los de octubre-enero) (YÁÑEZ, 1999, p.67). Pero si en lugar de
considerar al total de la emigración española queremos ver qué es
lo que sucede con la estacionalidad por provincias, debemos
recurrir nuevamente a una fuente argentina en la que se incluye el
desagregado: los libros de desembarco de 1923-26. Allí podemos
observar que, para el caso de Zamora, el 67,5% de las salidas se
concentraban en el último cuatrimestre del año (con diciembre
como el punto más alto), mientras que en el segundo sólo se
producía un 4,8% de aquéllas (con mayo como punto más bajo).
Estos resultados son consistentes con lo planteado por Yáñez e
incluso las diferencias estacionales son más acusadas, lo que se
justificaría por el hecho de que estamos analizando una provincia
en la que la emigración tenía un muy alto componente campesino.
Por contrapartida, si consideramos el caso de Oviedo, marítima y
con un perfil ocupacional más variado, el porcentaje del cuarto
trimestre desciende al 56,7%, y en Barcelona, con una presencia
mucho más marcada de ocupaciones urbanas, cae al 49,8%.
Las mayores salidas desde Zamora se producían por lo tanto
durante los meses que seguían a la mayor actividad agrícola en la
península, momentos en que las condiciones para financiar el costo
de la emigración (pago del pasaje o de parte del mismo, tiempo

243
FERNÁNDEZ, A. • Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX

perdido sin trabajar durante el viaje, instalación en destino) podían


resultar mejores que en el resto del año. Al mismo tiempo, dicha
estacionalidad correspondía con precisión a los meses en que la
agricultura argentina generaba mayor empleo. Ello no significa
que los emigrantes zamoranos fueran a trabajar al campo en todos
los casos, ya que otras actividades predominantemente urbanas,
como el transporte, los servicios portuarios e incluso parte de la
construcción, del artesanado o del comercio mostraban un cierto
enlace con los ritmos de la agricultura.7

Cambiando la escala: un enfoque comarcal


y local de la emigración

Una sociedad campesina y aldeana, con predominio de las


localidades de menos de mil habitantes dentro del total de
trescientas que componían la provincia, era por ende la
característica central de Zamora (MATEOS RODRÍGUEZ, 1995,
p.431-491). De ese total, 178 localidades -es decir casi el 60%-
aparecen mencionadas en los partes consulares argentinos de 1910-
12 como lugares de nacimiento de los emigrantes, y para 37 de
ellas hemos podido estimar el elevado índice emigratorio a la
Argentina de más del cinco por mil anual respecto de la población
existente en 1910. 8 Como se aprecia en el mapa 2, dichas
localidades se hallaban dispersas por toda la provincia, lo cual

7
Carina Frid (1996, p. 522-527) ha demostrado que el movimiento estacional de
albañiles italianos y de otros trabajadores afines presentaba hacia 1910 una
notable adherencia respecto del movimiento total de los emigrantes de ese origen,
tendiendo a concentrarse en los mismos meses que estamos señalando aquí.
8
El procedimiento que empleamos consiste en computar la cantidad de
emigrantes zamoranos según localidades de origen, teniendo en cuenta la
totalidad de los barcos arribados a Buenos Aires entre el 1 de enero de 1910 y el
31 de diciembre de 1912, tal como se desprende de los partes consulares. A
continuación hemos confrontado los totales por localidad con la población que
cada una de ellas había registrado en el censo de 1910, a los efectos de calcular
el índice de emigración. Desde luego, este último no es un índice de emigración
total, sino a la Argentina, dada la fuente empleada. Más detalles metodológicos
en Fernández (2008, p.565-593).

244
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

constituye una anomalía respecto de las situaciones de nueva


emigración, como la que estamos presentando, debido a que
normalmente es necesario el transcurso del tiempo para que nuevos
focos emigratorios se vayan incorporando a los iniciales, merced
a la difusión capilar de la información. En este caso, en cambio,
los focos emigratorios estaban dispersos, lo que la teoría asocia
con situaciones de emigración más antigua.
El panorama es entonces de una notable difusión de la
propensión a emigrar en un lapso muy breve, ya que, diez o quince
años antes de la fecha considerada en el mapa, eran mínimos los
registros de expatriados a la Argentina. Sin embargo, esa difusión
no era pareja en el territorio de la provincia, sino irregular.
Precisamente, en esa irregularidad trataremos de buscar las
explicaciones de un despegue tan brusco de la emigración
transatlántica, que no afectó a toda la provincia de la misma
manera. La forma en que trabajamos con la fuente nos permite
intentar la respuesta, ya que podemos modificar la escala de
análisis, reduciéndola desde la provincia hasta la comarca e incluso
hasta las aldeas involucradas.

245
FERNÁNDEZ, A. • Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX

Veamos en primer lugar cuáles de esas comarcas eran las


más afectadas por el proceso emigratorio. Tierra del Vino, en el
sur de la provincia, era una de ellas. Como su nombre lo indica,
se trataba de una comarca en la que predominaba la producción
vitivinícola, muy damnificada a comienzos del siglo XX por la
plaga de la filoxera, cuyos primeros registros se remontan a
mediados de la década de 1880-89, aunque su pleno impacto se
alcanzaría en esta comarca recién un veintenio más tarde.
Peleagonzalo, una de las localidades de Tierra del Vino, perdió
entre 1905 y 1920, los años de mayor ruina de los viñedos, una
quinta parte del millar de habitantes con los que contaba en la
primera fecha, principalmente debido a la emigración
transatlántica.9 Una situación similar se evidenciaba en otras dos
aldeas de la comarca cuyos índices emigratorios superaban el diez
por mil en 1910-12: Pontejos y Cazurra.
Pero la filoxera no era un problema exclusivo de Tierra del
Vino, sino que abarcaba a otras comarcas, como se advierte por el
hecho de que el total de la tierra zamorana dedicada a la
vitivinicultura se redujo de las 80.000 hectáreas de 1900 a las 40.000
de 1920. Sayago, adyacente a Tierra del Vino, constituía un ejemplo.
Siete localidades de esa comarca superaban el diez por mil de
emigración en 1910-12: Gáname, Palazuelo, Cabañas, Villar del
Buey, Bermillo, Torrefrades y Luelmo. La franja de Sayago limítrofe
con Portugal, conocida como Arribes del Duero, también sufrió
los embates de la plaga, lo que obligó a una renovación general de
las cepas (HUETZ DE LEMPS, 2001, p. 295-299). Sin embargo,
desde allí se emigraba principalmente a Cuba, por lo que las
localidades que componían dicha franja no figuran con cifras tan
elevadas en nuestro propio registro.10 Menos relevante era en
9
Cifras proporcionadas por el historiador local Sánchez (1979, p. 356-357).
10
La principal de ellas es Fermoselle, que en 1900 tenía 4.500 habitantes, una
cantidad significativa en términos de la provincia. Como veremos, la emigración
fermosellana se reorientó desde Cuba hacia la Argentina recién después de la
primera guerra mundial, alcanzando tanta importancia que el Centro
Fermosellano (1923) habría de ser la primera asociación creada por los
zamoranos en Buenos Aires (RIVERA LOZANO, 1996, p. 67-82).

246
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

cambio la filoxera para la Tierra del Pan, al oriente de la provincia,


en la que cinco localidades rebasaban la tasa emigratoria indicada
(Gallegos del Pan -que registraba 35,4, la más alta de toda la
provincia-, Benegiles, Arquilinos, Castro Nuevo y Torres del
Carrizal). Se trata de aldeas en las que la población se dedicaba
principalmente a la producción de trigo, y sólo en segundo término
a la vitivinicultura.
La filoxera no parece por lo tanto la única causa de la súbita
aceleración de la emigración desde Zamora hacia América -y en
particular hacia la Argentina- luego de 1900. Esa explicación debe
ser combinada con una segunda, que englobaba a varias comarcas
de la provincia, en particular de su mitad occidental: el predomino
de la minúscula propiedad de auto-subsistencia, combinada con
la explotación comunal de montes, dehesas y pastos. En 1900 el
47 por ciento de los propietarios del occidente de la provincia
disponían de menos de una hectárea de tierras, y el 92 por ciento
de menos de diez (MATEOS RODRÍGUEZ, 1993, p. 237-250).
Los campesinos zamoranos se encontraban por lo tanto en serias
dificultades para hacer frente a cualquier situación de emergencia
debido a que sus recursos eran muy limitados, mientras que sus
familias tendían a engrosarse en la medida en que aumentaba la
expectativa de vida de sus integrantes. A ello se agregaba que los
precios de los cereales, el otro rubro central de la producción de la
provincia, presentaban una clara tendencia a la baja, debido a la
competencia de los productos importados de América y Rusia y a
la disminución del proteccionismo cambiario y arancelario.11
Ahora bien, ¿por qué se emigraba tan poco hacia la Argentina
desde otras comarcas situadas más al norte, incluso linderas con

11
Podría también señalarse una cuarta causa, que no solamente incluía a Zamora,
sino en general a España, y es que la revaluación de la peseta, derivada de las
reformas financieras emprendidas por el Estado luego de la guerra de Cuba,
hizo que los pasajes transatlánticos resultaran más baratos en términos de la
moneda propia. Sobre este punto cf. Sánchez (2000, p. 309-330). Sin embargo,
se trata de un factor que facilitó el proceso emigratorio, pero que sin dudas no
fue el que lo desencadenó.

247
FERNÁNDEZ, A. • Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX

provincias de fuerte emigración, como Orense o León? ¿Cómo es


posible que ello ocurriera si tenemos en cuenta que también se
trataba de comarcas en las que predominaba la economía
campesina orientada a la cerealicultura, cuyos precios, como
vimos, tendían a la baja? Son las preguntas que surgen cuando
consideramos los casos de Tierra de Campos y de Benavente,
comarcas en las cuales ninguna de las localidades superaba el
umbral del diez por mil de índice emigratorio, y tan sólo una en
cada una de ellas alcanzaba el del cinco por mil.
Tierra de Campos constituía el núcleo de la industria
harinera castellana y en la mayoría de los pueblos que componían
esta comarca -extendida a las provincias linderas de Valladolid,
Palencia y León- los campesinos vivían de los trabajos
relacionados con la producción de trigo. Pero la propiedad de la
tierra era allí diferente que en el resto de Zamora, ya que junto
con el minifundio existía una importante proporción de la
superficie que pertenecía a medianas y grandes explotaciones. La
mano de obra ocupada en estas últimas provenía del sector de los
jornaleros, la mayoría de los cuales no poseían tierras, mientras
que otros, que sí eran propietarios de pequeñas parcelas,
complementaban los magros ingresos provenientes de éstas con
los obtenidos en los trabajos estacionales (siembra, carpido,
cosecha) realizados en las más extensas.
Tales ingresos suplementarios permitían la sobrevivencia de
las pequeñas explotaciones familiares, pero probablemente no
bastaban para sustentar unas estrategias de emigración transatlántica
como las que contemporáneamente se formulaban en otras
comarcas zamoranas.12 Menos aún lo permitían en el caso de los
jornaleros sin tierras. Es por ello que desde Tierra de Campos (lo
mismo que desde Benavente), la emigración a la Argentina era muy
limitada, mientras que, por el contrario, existía una prolongada

12
Ver al respecto las reflexiones de uno de los principales representantes del
regeneracionismo castellano de comienzos del siglo XX Senador Gómez (1992,
p. 229-267).

248
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

tradición de migraciones temporales de jornaleros hacia provincias


limítrofes, e incluso por períodos más dilatados hacia Bilbao, un
centro industrial en plena expansión.13 Se reiteraría aquí lo ya
observado para otras provincias castellanas, como Valladolid, o
incluso para otras regiones de España, como Andalucía, en donde
la fuerte presencia de un campesinado sin tierras era acompañada
por unas frecuentes migraciones de corto radio y por una baja
emigración transatlántica.14
Si consideramos el problema en una escala todavía más
reducida, la de las aldeas de origen de los inmigrantes, podremos
obtener mayores precisiones. Para ello nos concentraremos en las
cuatro localidades que en 1910-12 presentaban los más elevados
índices emigratorios hacia la Argentina respecto de la población
residente: Gallegos del Pan y Benegiles en Tierra del Pan, Santa
María de Valverde en el Valle del Tera y Peleagonzalo en Tierra
del Vino. Se trata de cuatro minúsculas aldeas, cuya población
osciló entre los 350 y los 550 habitantes en el período comprendido
entre los censos de 1897 y 1930. En los cuatro se cultivaban cereales
y forrajeras (trigo, cebada, centeno), aunque mientras en Gallegos
del Pan y Benegiles se trataba de la actividad principal, ésta estaba
representada en Pelagonzalo por la vitivinicultura y en Santa María
de Valverde por la ganadería lanar. Los cuatro pueblos registraban
un muy bajo porcentaje de emigrantes al exterior hasta la década
de 1890, pero las salidas crecieron súbitamente en el siguiente
decenio, convirtiéndose en una riada, con un predominio
abrumador de la Argentina como país de destino.
Veamos cómo se distribuía la propiedad de la tierra en estos
pueblos de alta emigración. Para ello utilizaremos como fuente
los repartimientos individuales conservados en el Archivo

13
Sobre este fenómeno tradicional en la segunda comarca (FUENTES GANZO,
2005, p. 618-619).
14
Sobre el caso de Valladolid, Instituto de Reformas Sociales, Memoria acerca de
la información agraria en ambas Castillas, Madrid, Editorial de la Sucesora de
Minuesa de los Ríos, 1904, p. 135 y ss.; sobre el de Málaga (Andalucía) (MOYA,
2004, p. 86-88).

249
FERNÁNDEZ, A. • Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX

Histórico Provincial de Zamora, correspondientes al año 1912.


Estos repartimientos nos muestran que la hegemonía del
minifundio era muy pronunciada en los cuatro lugares. Las
pruebas de ello son varias: en primer lugar, un tercio de sus
habitantes poseían al menos una parcela (sin contar a sus familias
y dejando aparte a los “hacendados forasteros”); en segundo lugar,
más de la mitad de este grupo de propietarios tributaba hasta diez
pesetas anuales de impuesto a la propiedad rústica, lo que
corresponde -de manera aproximada, ya que depende de las
características de la tierra en cada lugar- a unas extensiones
inferiores a las dos hectáreas; en tercer lugar, la media de la
contribución se situaba en torno de las veinte pesetas anuales de
impuesto, cuando en las zonas de propiedad más extensa, como
Tierra de Campos o Benavente, se elevaba a cuarenta o cincuenta
pesetas.15 Por otro lado, en los repartimientos de los cuatro pueblos
aparece un renglón titulado “el común de los vecinos”, que nos
remite al usufructo colectivo de montes y prados, característico
de este tipo de economía agropecuaria.16
Más allá de que esta aproximación a escala más reducida
tiende a confirmar la vinculación entre minifundio y emigración,
¿en qué medida los emigrantes de estos cuatro pueblos se
reclutaban en este estrato de los pequeños propietarios? Para tratar
de responder a esta pregunta hemos cruzado la fuente del
repartimiento impositivo con los datos procedentes de los partes
consulares de 1910-12 y de los padrones de vecindad o municipales
de 1907 y 1912, en los cuales los censistas volcaban, aunque no

15
Archivo Histórico Provincial de Zamora, Repartimientos individuales de la
contribución rústica y pecuaria en términos municipales de la provincia (1912),
Legajos 371-A, 372-A, 384-A y 391-A.
16
Es posible que en Santa María de Valverde la proporción de esas tierras comunes
fuese mayor que en las otras tres localidades, ya que el resto de las propiedades
representa un monto menor. Esto sería consistente con la orientación más
ganadera de ese pueblo, pero se trata de una conjetura imposible de demostrar
ya que la fuente no incluía en este renglón en particular una estimación de lo
que se debería haber tributado.

250
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

de manera exhaustiva, la información sobre los nativos de cada


localidad que se hallaban ausentes al realizarse el recuento. Con
ello hemos obtenido una base de datos que, si bien no es completa,
constituye una muestra altamente representativa, en la medida en
que abarca aproximadamente a la décima parte de la población
promedio de los cuatro pueblos y a más de un tercio del total de
sus emigrantes en esos años.
La primera comprobación que podemos hacer es que el
estrato de labradores constituía a gran distancia el principal núcleo
socio-ocupacional que aportaba a la emigración, si consideramos
a los jefes de las familias de los que partió al menos un emigrante
entre 1907 y 1912. En particular debe destacarse el lugar ocupado
por los minifundistas que contribuían con menos de veinte pesetas
anuales de cuota impositiva, es decir el estrato más bajo de los
propietarios de tierras. Este estrato de labradores de baja renta
pudo sufrir las consecuencias de la erosión del proteccionismo
cerealero, pero en tres de los pueblos (Gallegos del Pan, Benegiles
y Peleagonzalo) parece haber sido afectado sobre todo por la
difusión de la filoxera, que arruinó la producción vitivinícola, sea
que ésta constituyera o no el renglón principal de la economía
doméstica. Sabemos con precisión que los efectos de la filoxera se
hicieron sentir con intensidad en Tierra del Pan y Tierra del Vino
desde la primera década del siglo. La expansión vitivinícola fue
sostenida durante la segunda mitad del siglo XIX, sobre todo desde
el momento en que arribaron las noticias del ataque de la plaga a
los viñedos franceses. A partir de 1900 la enfermedad alcanzó a
las plantaciones de la zona, provocando una importante
disminución de la producción (VIDALES, 2002, p. 29-30).
Sin embargo, como veremos en los testimonios recogidos
en la segunda parte, la crisis de la agricultura zamorana no llegó a
un grado de terminalidad que obligara a la emigración simultánea
de familias completas. Por el contrario, lo que encontramos como
situación más habitual en 1907-12, a partir del mencionado cruce
de fuentes, es la emigración del jefe de familia o bien de alguno de
los hijos, generalmente el mayor de los varones, cuando se trataba

251
FERNÁNDEZ, A. • Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX

de labradores. La disminución del índice de masculinidad en la


emigración zamorana de conjunto que se puede detectar entre
ese período y el de 1923-26 sería consistente con ello, ya que
vendría a mostrarnos una segunda fase en que las mujeres van a
reunirse con los hombres previamente emigrados, o bien que éstos
regresan a sus hogares para preparar la emigración de toda o parte
de la familia. El aumento en el porcentaje de menores de 14 años
entre los emigrantes de esa fase, que igualmente hemos hallado,
respondería a las mismas condiciones de la coyuntura
(FERNÁNDEZ, 2008, p. 158-59).
Por su parte, los casos en que el propio jefe de familia era
jornalero, es decir trabajador agrícola no propietario de tierras,
ocupan un lugar bastante restringido en la emigración desde los
cuatro pueblos, debido a la falta de recursos para financiar el éxodo,
incluso en un momento en que el costo del traslado había
disminuido en términos relativos. Como hemos observado, el
estrato de los jornaleros con más probabilidad participaba de las
migraciones internas, sea hacia otras provincias españolas, sea
dentro de la propia Zamora, según las necesidades de las faenas
agropecuarias o bien para instalarse como trabajadores de baja
calificación en alguno de los grandes centros urbanos. Un
fenómeno similar ha sido observado para provincias vecinas, como
León o Salamanca, por autores como Moya o Robledo, con el
agregado de que este último indicó que los jornaleros salmantinos
que, pese a todo, lograban cruzar el Atlántico, lo hacían hacia
Brasil con bastante más frecuencia que hacia la Argentina, lo cual
podría explicarse por la política brasileña y sobre todo paulista de
subsidio de los pasajes (ROBLEDO, 1988, p. 212-244).

La perspectiva de los protagonistas

Casi todas las memorias y relatos coinciden en trazar un


horizonte social previo a la emigración asociado con la pequeña
propiedad rural, en la cual normalmente la casa solariega tenía
dos plantas, funcionando la baja como establo y la alta como lugar

252
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

de vida de una familia que contaba con entre cinco y ocho


integrantes. El riesgo de ruina de la explotación doméstica o la
acumulación de deudas son las causas mencionadas para emigrar,
combinadas con las noticias y los recursos que llegan desde la
Argentina a través de una red cada vez más densa de contactos
familiares y paisanos.17 La continuidad del minifundio, asociado
con la de la propia familia campesina, constituía un objetivo
estratégico. Si bien la herencia podía ser igualitaria, el papel del
primogénito era fundamental en el intento de que no se fragmentara
la parcela solariega, recurriendo a menudo, en el período que
estamos analizando, a la emigración como un instrumento para
lograrlo. Así, Simón Katon Álvarez, de Tolilla, en la comarca de
Aliste, explica las razones por las que la emigración resultaba algo
habitual en su ambiente en los siguientes términos:
Es natural, que dentro del clan familiar que todavía en aquellos
años funcionaba en una comarca de las tantas marginadas,
que por razones del minifundio tenía la necesidad de un alto
grado de endogamia parental, a fin de evitar las particiones
hereditarias, donde la vida agrícola y ganadera en totalidad
transcurría con muchas carencias, inclusive nutritivas
(KATON ÁLVAREZ, 2012, p.143-186).

Sin embargo, ese objetivo podía cambiar radicalmente una


vez producida la emigración. Simón arribó a la Argentina con 22
años, merced a una carta de llamada de una prima emigrada
mucho tiempo antes, pero poco después de desembarcar inició
una trayectoria, en Río Negro y luego en la ciudad de Buenos
Aires, que lo alejó por completo de la familia zamorana y lo
catapultó a un notable ascenso educativo y ocupacional. Él, que
contemplando su pasado en Zamora se definía como “buen arador,
destacado segador con la guadaña, de los mejores con la hoz…”,
se volcó decididamente a ocupaciones urbanas en la Argentina,
completando la enseñanza secundaria y luego obteniendo el título

17
Por ejemplo en Simón Prieto (2009a, p. 385-395) y D’Amato Rodríguez (2011,
p. 25-56).

253
FERNÁNDEZ, A. • Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX

de abogado. Esa movilidad se basó casi con exclusividad en los


nuevos contactos que fue estableciendo y en mecanismos más
impersonales de obtención de información sobre oportunidades
de empleo, como los anuncios de la prensa KATON ÁLVAREZ,
2012, p.169-175).18
La historia de Francisca Rodríguez, nacida en 1905 en Sejas
(Aliste), muestra otro ejemplo de mudanza en la estrategia
migratoria transatlántica. La infancia de esta mujer transcurrió
en el seno de una familia campesina que producía trigo y hortalizas
y criaba cerdos. En 1924 Pedro, su padre, emigró a la Argentina,
con la idea de obtener recursos adicionales para la explotación
doméstica, que quedó a cargo de la esposa y de Julián, el mayor
de sus cuatro hijos. Se empleó como jardinero de una familia de
clase alta y comenzó a enviar remesas, pero más tarde cambió de
parecer, decidiendo que permanecería en el destino y traería al
resto de la familia. Probablemente en ello incidió el hecho de que
Julián, por su cuenta, se marchó a Cuba en 1926 junto con algunos
paisanos. Es así que en 1928 Pedro envió una primera carta de
llamada para Francisca, que al llegar a Buenos Aires se ocupó
como sirvienta. Ambos siguieron consignando remesas a Sejas,
pero por entonces la continuidad de la nueva estrategia sufrió dos
duros golpes: la muerte de la madre y el reclutamiento militar de
José, el hermano menor, ahora a cargo de la explotación, que
derivó luego en su larga participación en la guerra como integrante
de las tropas franquistas. A su vez, Francisca se casó en Argentina
en 1935, mientras que su hermana Pascuala lo hacía en Zamora
poco más tarde. Finalmente, en 1948 emigró José, llamado por
los dos integrantes de la familia que vivían en Buenos Aires y se
empleó como mozo en el restaurante que poseía el esposo de
Francisca (D’AMATO RODRÍGUEZ, 2011, p. 27-36).

18
De hecho, el principal contacto con la colectividad que mantenía, luego de
más de veinte años de arribar al país, es como integrante del consejo directivo
de la Cámara Española de Comercio de Buenos Aires, pero su acceso a la
misma se basa en la posición que para entonces tenía como gerente o contador
de empresas.

254
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Un tercer ejemplo es el de Manuel Martínez Centeno, de


Uña de Quintana, en Benavente. Se trataba de un labriego que
emigró repetidamente, entre 1912 y 1927, a Argentina, donde se
desempeñó como herrero, carpintero y empleado de una fábrica de
golosinas. En cada regreso a España invertía en la construcción de
un molino harinero en el pueblo de origen, mientras que los hijos
varones se ocupaban de los sembradíos. La muerte sorprendió a
Manuel sin haber podido completar el molino, luego de lo cual tres
de los hijos emigraron a su vez: Teresa y Rosa a Buenos Aires y
Juan a Bahía Blanca, destinos ambos en los que había estado
trabajando su padre. El estallido de la guerra civil impidió la venta
de la pequeña propiedad familiar, que recién se concretaría en 1948,
cuando la madre y los otros dos hijos pudieron finalmente emigrar
y radicarse en Bahía Blanca, donde José había logrado instalar una
pequeña fábrica de fideos (POLI MARTÍNEZ, 2011, p. 333-341).
En otros casos, las estrategias migratorias de acumulación
de ahorros y retorno al lugar de origen en plazos relativamente cortos
eran más exitosas, como demuestra el caso de la familia Alonso-
Antón Vara, de Tábara, capital de la comarca de Tierra de Tábara.
Los individuos de esta familia, a lo largo de cuatro generaciones,
emigraron por períodos breves (nunca más de cinco años por cada
integrante o rama de la familia), entre 1910 y 1969, a lugares tan
diversos como Buenos Aires y Coronel Pringles (Argentina), Port
Henry (Estados Unidos), Le Havre (Francia), San Sebastián
(España), Düsseldorf y Goslar (Alemania Federal). En esa
prolongada trayectoria, a veces emigraron hombres solos, en otras
ocasiones fueron acompañados por sus esposas y por algunos de
los hijos y finalmente también fueron las mujeres quienes emigraron
en soledad. Los mecanismos emigratorios generalmente se basaron
en las redes parentales y paisanas, pero luego de la Segunda Guerra
Mundial también intervinieron los institucionales, como la
Comisión Católica Española de Migración. Si bien todos los
emigrados retornaron a Tábara, no siempre lo hicieron a la vida
campesina, sino que los ahorros acumulados permitieron a veces el
desplazamiento a ocupaciones y viviendas urbanas (AMO
ALONSO, 2011, p. 131-160).

255
FERNÁNDEZ, A. • Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX

Cuando contamos con menciones de retorno a los pueblos


zamoranos, o bien con comparaciones con la situación de quienes
se quedaron, podemos advertir que en general los emigrantes
estaban más alfabetizados, eran más jóvenes y provenían de un
estrato superior a la media. En el ya citado diario de viaje de Julio
Monterrubio, quien permaneció varios meses junto a sus padres
en dos pueblos de la comarca de Sanabria, de donde aquéllos
provenían, hay tres cosas que surgen con claridad. En primer lugar,
que los padres tenían un origen campesino, pese a lo cual en
Argentina (en este caso en Punta Alta, en las inmediaciones de
Bahía Blanca) desempeñaron ocupaciones urbanas. En segundo
lugar, que el estrato de origen era el de los pequeños propietarios
de tierras y no el de los jornaleros, con hermanos del padre que
luego se orientaron al comercio en el modesto sector urbano
zamorano, en el veintenio aproximado que transcurre entre la
emigración de aquél y el retorno de visita a Zamora en 1929. En
tercer lugar, que el ascenso social logrado en Argentina por los
padres y la educación que le estaban brindando al hijo -promediaba
por entonces su enseñanza secundaria- incrementó en ese lapso
la distancia con la media de las aldeas de origen de aquéllos, más
allá de los constantes gestos de hospitalidad y fraternidad que le
brindaron los paisanos en ocasión de ese regreso temporario
(MOSTAZA BARRIOS, 2009a, p.75-86).19
Los vínculos familiares con los emigrantes anteriores a 1914
fueron fundamentales para asegurar la continuidad de la
expatriación luego de la guerra, aunque gradualmente iban ganando
importancia los llamados “lazos débiles”, una vez que aquéllos

19
Se podría agregar una cuarta evidencia, que tiene menos relación con el
argumento que estamos desarrollando en esta parte, y es la de los reiterados
encuentros de los padres de Julio con conocidos zamoranos que habían
regresado provisoria o definitivamente a España luego de haber vivido en
Argentina, sea que tales encuentros tuvieran lugar en la propia ciudad de
Zamora, en Sanabria, en Madrid o en Vigo, donde estuvieron parando los
últimos días antes de embarcar de nuevo hacia Buenos Aires. Esto demostraría
la fluidez de los contactos entre Zamora y Argentina que hacia 1929 había
generado la emigración.

256
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

estaban instalados en su destino. Así ocurrió con la familia


Fernández de la Iglesia, que decidió emigrar en 1923 desde Castillo
de Alba debido a que por un pleito judicial habían perdido una
parte sustancial de su patrimonio rústico. En principio, el destino
imaginado era Estados Unidos, pero la aplicación por parte de ese
país de las cuotas por colectividades impidió que concretaran su
propósito. Retomaron entonces el contacto con un primo hermano
del cabeza de la familia, que se había establecido en un pueblo de la
provincia de Buenos Aires, a unos 300 kilómetros de la capital. Las
dificultades para obtener trabajo en el lugar hicieron que a los pocos
meses volvieran a emigrar, 400 kilómetros más al sur, hasta Bahía
Blanca, donde vivían otros parientes, tanto por el lado paterno como
por el materno. Los Fernández de la Iglesia se instalaron en una
casa prestada por uno de ellos, que poseía un tambo en medio de
una colonia agrícola integrada por inmigrantes, combinando allí el
trabajo como albañil del jefe de familia con las labores de huerta y
ganadería menor por parte del grupo doméstico.
El hijo mayor de la familia, nacido en Zamora, cursó la
escuela primaria en Bahía Blanca, período que recuerda como
muy favorable por su interés en el estudio y por la mayor facilidad
que tenía para el mismo, respecto de sus compañeros italianos,
dado el idioma en común. La crisis económica de 1930 obligó a
que este niño comenzara a trabajar tempranamente, si bien lo hizo
en el ámbito familiar de la producción tambera. A los 18 años
uno de sus primos le consiguió un trabajo efectivo en un bazar
ubicado en el centro de Bahía Blanca, propiedad de un vasco. A
partir de allí sus contactos y acciones se fueron diversificando. A
través de un escribano que era cliente del bazar accedió en
condiciones favorables a la compra de una vieja casa que salió a
remate, operación en la que la familia invirtió sus ahorros
acumulados. Por otros conocidos del trabajo obtuvo una segunda
colocación, como secretario de una biblioteca, y luego cambió la
principal, empleándose en otro bazar propiedad de un comerciante
inglés y más tarde en la sucursal de una empresa porteña, hasta
que en 1956 se independizó e instaló su propia distribuidora

257
FERNÁNDEZ, A. • Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX

mayorista de artículos de menaje y ferretería. En todos estos


cambios ya no desempeñaron papel alguno los vínculos de familia
y paisanaje, a diferencia de lo que ocurrió en cuanto a la elección
de su esposa, una hija de zamorana y salmantino que conoció en
uno de los bailes anuales de la Sociedad Española de Socorros
Mutuos (FERNÁNDEZ DE LA IGLESIA, 2009a, p. 301-329.
Una vez establecidos los contactos entre punto de origen y
de destino, éstos podían activarse en ciertas coyunturas, incluso
muchos años después. Tal el caso de Estanislao Alfaraz Romero,
natural del pueblo de Zamayón, en el límite con Salamanca, quien
emigró luego de la guerra civil española gracias a un pasaje de
llamada pagado por uno de sus tíos, establecido como empleado
del ferrocarril en la localidad de Punta Alta, 600 kilómetros al sur
de la capital federal. El tío, a su vez, había emigrado junto con su
padre al país en una fecha tan lejana como 1893, es decir medio
siglo antes (ALFARAZ ROMERO, 2009a, p. 205-212). Las redes
propiciaron incluso la especialización de inmigrantes en el
alojamiento de los nuevos paisanos que iban arribando, como
muestra el grupo familiar encabezado por Francisco Martínez
Ballesteros, de Villalpando (Tierra de Campos), quien se estableció
en Buenos Aires en 1912. Un hermano de Francisco les dio trabajo
como encargados de un conventillo de su propiedad, pero luego
la nueva familia se independizó e instaló su propio inquilinato,
en el que vivían rotativamente unos quince zamoranos. Con los
años, tres de las hijas del matrimonio se casaron con algunos de
sus inquilinos (PRIETO MARTÍNEZ, 2009, p.161-167).
Por lo que se refiere a la participación femenina e infantil en
la emigración, varios de los textos nos muestran lo habitual que era
el tipo familiar diferido, es decir aquel en que el jefe de familia
emigraba en un primer momento, mientras que su esposa e hijos lo
hacían tiempo más tarde.20 Sin embargo, la expansión de las redes
sociales zamoranas en la Argentina hizo posible que en el período
de entreguerras no fuera extraño otro tipo de emigración femenina,

20
Véase por ejemplo Poyo García (2009a, p.129-138 y 239-260).

258
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

la de las mujeres solas que no llegaban al país receptor para reunirse


con sus maridos, sino que lo hacían por su cuenta, gracias a la
abundancia de información existente acerca del mercado de trabajo.
Tal es el caso de las cinco hermanas Prieto Díez, de Bermillo
(Sayago), sucesivamente emigradas entre 1919 y 1929 y casadas
bastante más tarde con hombres zamoranos, excepto una de ellas
que permaneció soltera (SIMÓN PRIETO, 2009a, p. 387-389).
La diversificación de los vínculos que podía advenir una
vez establecido el emigrante en destino alcanzaba a todos los
niveles socio-económicos, incluso los más bajos, como muestra la
historia de Prudencio Crespo. Este zamorano de Muya, en la
comarca de Sayago, llegó a la Argentina en 1919 proviniendo
también de una familia campesina, cuyo ciclo vital tendió a
expulsarlo: el padre había muerto siendo él pequeño, la madre
volvió a casarse y a tener hijos y Prudencio, al llegar a los 18 años,
entendió que era mejor emigrar. Eligió Merlo, en la provincia de
Buenos Aires, porque había conocidos del pueblo que ya estaban
viviendo allí, empleándose en un reparto de productos de almacén
y verdulería. En sus recuerdos, “de tanto ir y venir con esas canastas
de mimbre, fui conociendo lugares, vecinos, y empecé a formar
mi propio gusto por las cosas. A ampliar mi abanico de
conocimientos”. Esto le permitió un modesto ascenso hasta ser
propietario de un pequeño almacén, pero siempre mantuvo los
vínculos con sus paisanos, lo que lo llevó en 1941 a presidir la
Sociedad Española de Socorros Mutuos del lugar. Además,
financió la emigración de cinco de sus sobrinos desde Zamora.21
La movilidad geográfica de los integrantes de una misma
familia podía continuar de manera paralela u oblicua, a veces
durante décadas, en España y en Argentina. Los vínculos con
Zamora alternativamente se afianzaban o debilitaban durante esas
trayectorias. Un ejemplo lo brinda la familia encabezada por el
alicantino Francisco Navarro López, maestro de obras al que su

21
“Don Crespo, historia de un zamorano de Muga de Sayago”, en Blanco
Rodríguez (2012, p. 291-312, 296-302).

259
FERNÁNDEZ, A. • Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX

trabajo condujo primeramente a Ponferrada (León), donde se casó


con una nativa en 1905, y luego a Trabazos (Zamora), sobre la
frontera con Portugal, donde nacerían sus dos hijos mayores: José
en 1906 y Magdalena en 1907. El matrimonio volvió a Ponferrada
y luego se trasladó sucesivamente a Periana (Málaga) y a Altea
(Alicante), siempre siguiendo las demandas de la construcción.
En esos lugares fueron naciendo los restantes quince hijos de la
pareja. En 1923 Francisco decidió enviar a José a Argentina, para
evitar que fuese enrolado para la guerra de Marruecos. José se
radicó en Coronel Dorrego, en el sur de la provincia de Buenos
Aires, donde vivían unos primos y donde se dedicó a la albañilería
y a trabajos estacionales en la agricultura.
Dos años más tarde Francisco, junto con otro hijo de su
mismo nombre, nacido en 1914, viajó a la Argentina y, luego de
intentar en vano que José lo acompañara, continuó su propio periplo
emigratorio hasta Cinco Saltos (Río Negro), donde obtuvo trabajo
en la construcción de bodegas y acequias. En 1929 los dos Franciscos
retornaron a Altea, luego de que el jefe de la familia enviara remesas
a España durante los cuatro años transcurridos en Argentina.
Ambos cayeron prisioneros al final de la guerra civil, pero mientras
el padre moriría en 1943, el hijo se trasladó a Barcelona, donde se
casó en 1947 con una catalana. A su vez, Magdalena se había casado
años antes con un castellano que emigró junto con ella a la
Argentina, donde se reunirían con José en Coronel Dorrego. Éste,
por su parte, había formado pareja con Antonia, una argentina cuyos
padres eran nativos de Altea. En 1952 Francisco (hijo) con su familia
y uno de sus hermanos, Manuel, nacido en 1928, emigraron a la
Argentina, luego de recibir una carta de llamada de Jaime, el esposo
de Magdalena. También ellos fueron a vivir a Coronel Dorrego,
donde todos los varones siguieron desempeñándose como
constructores (NAVARRO PÉREZ, 2009a, p.105-134).
El caso de Pedro Delgado, radicado finalmente en Tres
Arroyos, también en el sur de la provincia, presenta varios puntos
de contacto con el anterior. Su padre Miguel, zamorano de la
localidad de Morales del Vino, emigró siendo soltero, junto con

260
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

otros jóvenes del pueblo, en 1908. Se estableció en Buenos Aires,


donde permaneció trabajando durante aproximadamente dos
años, en diversos oficios vinculados con la construcción. Luego
retornó a Zamora, donde se casó con una prima segunda. En 1920,
habiendo ya nacido sus dos hijos mayores, volvió a trasladarse
solo a la Argentina, pero esta vez se radicó en el sur de la provincia,
en ocupaciones del campo. Tres años más tarde, luego de un breve
regreso a su pueblo, emigró definitivamente junto con la familia,
a la que se incorporaron tres hijos más nacidos en el país. Pedro,
el mayor de los cinco, recuerda que vivieron en Balcarce y en
Coronel Pringles, antes de establecerse como arrendatarios en Tres
Arroyos, cuando él ya tenía unos veinte años de edad y formaba
parte del grupo familiar que trabajaba en las labores del trigo. A
lo largo del tiempo, Miguel y sus hijos financiaron la emigración
de dos hermanos del primero, uno de los cuales a su vez se
estableció en Tres Arroyos como arrendatario.22
Otras trayectorias que combinaron retorno y re-emigración
dentro de la Argentina fueron las de Mariano Fradejas y Andrés
Moreno, de las localidades de Benegiles (Tierra del Pan) y
Peleagonzalo (Tierra del Vino). En el primer caso, dos experiencias
migratorias sucesivas, la primera de ellas centrada en la ciudad de
Buenos Aires y la segunda abarcando a localidades de las
provincias de Santa Fe, Córdoba y Entre Ríos, más una breve
estancia en Montevideo, fueron al parecer suficientes para cumplir
el objetivo del emigrante de maximizar sus ingresos y ahorrar para
el retorno, que se produjo de manera definitiva a la localidad de
origen en 1933.23 En el segundo, en cambio, la inserción del

22
Entrevista con Pedro Delgado, Buenos Aires, 11 de agosto de 2003.
23
Entrevista con Paula Fradejas, Benegiles, 6 de junio de 2005. En esa trayectoria
Mariano alternaba trabajos agrícolas estacionales con otros más permanentes
como albañil y alfarero en centros urbanos. Una trayectoria similar, si bien no
rematada por el retorno, es la de Miguel Rodríguez, de Fonfría (Aliste). Entre
1904, año de arribo a la Argentina, y 1914, en que Miguel, recién casado, logra
un trabajo estable como cochero en Mar del Plata, alternó la ocupación de
jornalero agrícola y varias otras urbanas, incluso en Paraguay (RODRÍGUEZ,
2009a, p. 335-341).

261
FERNÁNDEZ, A. • Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX

emigrante en una cadena parental y paisana le permitió acceder a


un empleo seguro, aunque no muy bien pago, en un comercio del
barrio de San Cristóbal (Buenos Aires) entre 1913 y 1919
aproximadamente. Luego retornó fugazmente a la aldea zamorana
y volvió a emigrar acompañado de una hermana menor, iniciando
allí una trayectoria más ascendente que le permitiría convertirse
en apoderado y luego en socio de una empresa textil.24

Conclusiones
Zamora es un ejemplo de la gran difusión que alcanzó la
emigración a Argentina dentro de la península ibérica a comienzos
del siglo XX, cuando la economía del país receptor vivía su fase de
crecimiento más rápido y la del país emisor afrontaba serias
dificultades, sobre todo para su sector agropecuario. De hecho, se
trata de la provincia en la que el índice emigratorio respecto de la
población pre-existente más se incrementó entre finales de la década
de 1880 y comienzos de la de 1910. Según hemos comprobado,
alrededor del sesenta por ciento de los pueblos zamoranos figuran
en las listas de emigrantes contenidas en los partes consulares
confeccionados en la Argentina entre 1910 y 1912. Semejante
situación, que según la teoría normalmente corresponde a ejemplos
de emigración con una tradición mucho más prolongada,
determinó que en un puñado de años Zamora quedara más
asociada a la Argentina a través de la emigración que, en términos
relativos, casi cualquier otra provincia del reino.
El grupo social más característico que participó de este
proceso emigratorio fue el de los pequeños propietarios, sobre todo
si se dedicaban a la vitivinicultura como actividad principal,
aunque también quienes se especializaban en los cereales y en la
ganadería vacuna se vieron muy involucrados. En cambio, al igual
que lo que ocurrió en otras regiones españolas, los braceros sin
tierras quedaron excluidos, alcanzando por el contrario el

24
Entrevista con Juan José Moreno, Buenos Aires, 12 de marzo de 2007.

262
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

protagonismo central en las migraciones internas, sobre todo


estacionales, vinculadas con las faenas agrícolas. Una vez
desencadenado el movimiento de población hacia la Argentina,
éste abarcó en una etapa posterior a otros grupos sociales, incluso
de origen urbano, y sobre todo se incrementó el papel de la mujer
como participante en las migraciones.
La familia y el grupo de paisanaje fueron decisivos para poner
en marcha la corriente y asegurar su continuidad. La forma más
habitual fue la de la emigración familiar diferida, que podía seguir
a la del grupo de hombres del mismo pueblo que cumplían la función
de pioneros. El proceso se vio facilitado por los difundidos contactos
con Buenos Aires y otras ciudades y pueblos de la Argentina,
especialmente del sur de la provincia del mismo nombre, en el que
se produjo la asociación ideal entre una corriente en plena expansión
y un territorio en el que abundaban las ofertas de empleo, debido a
su incorporación reciente a la economía nacional, y donde se
establecieron, casi desde comienzos de esa incorporación, los
inmigrantes castellanos y leoneses. Las diferencias que en ese sentido
se pueden advertir entre esas zonas y las de antigua colonización,
como las de Santa Fe, sur de Córdoba o norte de Buenos Aires, en
las que el predominio de los italianos o de otras colectividades más
antiguas era abrumador, son muy evidentes.
Visto en la perspectiva de las historias de vida, los vínculos
familiares y de paisanaje pre-migratorios en general mantuvieron
su vigencia durante cierto tiempo, pero a menudo iban perdiendo
eficacia a medida que se prolongaba la radicación en el país de
destino y se ampliaba el abanico de contactos. Esto último facilitó
la integración, incluso cuando la emigración transatlántica suponía
también una transición desde la vida campesina a las ocupaciones
urbanas, como se advierte en la mayoría de los casos considerados.
En principio, dichas ocupaciones favorecían la estrategia de
maximizar los ingresos en un mínimo de tiempo, a fin de retornar,
pero también podían resultar una atractiva opción en el país
receptor, llevando a un cambio profundo en dicha estrategia y al
llamado de la porción de la familia que permanecía en Zamora.

263
FERNÁNDEZ, A. • Parentela y paisanaje en la emigración zamorana
a la Argentina a comienzos del siglo XX

Asimismo, el recuerdo reciente de las penurias sufridas en la vida


rural del lugar de origen podía actuar como un disuasivo de su
reiteración en el de destino.

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268
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Inmigración y familia. Una mirada


desde las redes de inmigrantes
italianos en la Argentina
Mariela Ceva

Introducción

En este artículo nos proponemos repensar algunos tópicos


que durante los últimos años se han encontrado en el centro de
los estudios migratorios argentinos, sobre todo de la migración
trasatlántica. Entre los cambios producidos uno sumamente
importante ha sido un acercamiento interdisciplinar al fenómeno
migratorio. Ese cambio estuvo vinculado a la crisis de los
modelos macro-sociales y en el caso específico de los estudios
migratorios en un replanteo sobre los esquemas basados en la
mirada pull-push. Dichas tendencias, junto a otras sobre las que
aquí no profundizaremos, contribuyeron al desarrollo de las
aproximaciones micro-analíticas. Desde esta perspectiva la
historia interactúa con la antropología y la sociología y el
inmigrante se convierte en agente activo en el proceso migratorio.
En ese esquema las redes sociales ocuparon un papel central.
Como ha sido señalado numerosas veces desde el enfoque
micro analítico se permitía cuestionar los grandes esquemas
interpretativos al mismo tiempo que la construcción de modelos
más o menos complejos permitían revalorizar nuevos núcleos
conceptuales.
Asimismo, este enfoque hacía visible un problema más
general que es sobre cómo se relacionan las palabras, (conceptos
manejadas por los actores), y las categorías analíticas de los

269
CEVA, M. • Inmigración y familia. Una mirada desde las redes
de inmigrantes italianos em la Argentina

historiadores. Es decir, evidenciaba la necesidad de encontrar


instrumentos de análisis de la sociedad que permitieran formar
una gama de conceptos más diversa de la naturaleza móvil y
diferenciada de toda la sociedad (COTTEREAU; GRIBAUDI,
1999). En ese sentido, es evidente que es necesario recurrir a los
mismos conceptos o elementos que los contemporáneos utilizaban
para pensarse y mirarse, es una vuelta a ese mundo y no una venida
de ese mundo al nuestro. Ya desde los años cincuenta diversas
experiencias vinculadas a la micro-sociología y a la sociometría
han mostrado como pueden diferir las respuestas que sobre ciertas
imágenes realizan los niños respecto a la que pueden brindar los
adultos y en todos esos casos, se arriba a la conclusión de que la
divergencia en las contestaciones obedecen no a error en los niños
sino a que las mismas se encuentran organizadas sobre las normas
y los procedimientos de la construcción de la realidad adulta.
Considerar las relaciones sociales y la mirada sobre ellas con esa
premisa permite, como señala Maurizio Gribaudi, visualizar a la
sociedad como “…un problema abierto e insoluble y considerar
que las formas sociales son la emanación de los individuos, son
problemáticas y que los sistemas de verdades son discutibles...”.
Es decir, se trata de buscar los sentidos en el microcosmo
individual, personal a través de las percepciones que los hombres
tienen en su vida diaria, intentar mostrar cómo actúan en diversos
contextos y sus estrategias (GRIBAUDI, 1989, p. 1215).
Para ingresar a ese mundo es preciso aprehender como se
configura la experiencia biográfica. Esa trayectoria de vida no
puede ser una simple compilación de hechos sino debe tender a
reconstruir como el individuo logro o no compatibilizar deseos,
aspiraciones con el contexto en el que debió desarrollar su
experiencia diaria. Asimismo, esa cotidianeidad está conformada
no por el inmigrante aislado y desprotegido sino la misma se
encuentra inmersa en un conjunto de relaciones de diferente
intensidad y diverso grado de afinidad y cercanía. En ese sentido,
la experiencia personal individual resulta estrictamente conexa a
la dimensión macro de la estructura social. Como señala Leclerc-

270
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Olive (1997, p. 11), al ingresar al interior de esas historias


individuales es posible observar los modos propios de articulación
de lo privado y lo social. Es justamente, esa articulación entre lo
individual y lo social lo que termina dibujando una trama, como
si fuera una tela de araña, sobre la que es posible ingresar y analizar
la familia de origen y también la memoria que sobre la historia
familiar sus miembros fueron construyendo.
En ese acercamiento un rol fundamental lo desempeñan
las sensaciones y las emociones, fuertes y precisas, que permiten
delinear lo que algunos autores han identificado como “una
comunidad emocional” (ZARAGOZA BERNAL, 2013, p. 6).
Rosenwein define el concepto de “comunidad emocional” como:
[…] groups in which people adhere to the same norms of
emotional expression and value - or devalue - the same or related
emotions. More than one emotional community may exist -
indeed normally does exist- contemporaneously, and these
communities may change over time (ROSENWEIN, 2006, p. 2).

El análisis desde esta mirada implica por un lado,


identificar quiénes son los miembros de la comunidad emocional,
es decir, quiénes comparten estas normas y valoran emociones
similares1 (ZARAGOZA BERNAL, 2013, p. 7). En nuestro caso,
consideramos que es posible identificar a través del caso que
presentamos un grupo que además de estar vinculados por
relaciones concretas de consanguineidad, parentesco o amistad
establecen durante el proceso migratorio un vínculo emocional entre
los diversos miembros que participaron de la migración.

1
Ciertamente, existe toda una discusión en torno al tema de comunidades
emocionales, por ejemplo si una persona puede pertenecer a más de una
comunidad, cómo se analiza el intercambio o la pertenencia a diferentes
comunidades, si existe una excesiva identificación entre “comunidades
emocionales” y “comunidades sociales” (familias, monasterios, cortes principescas).
Pero como ha señalado Zaragoza el gran mérito de la aproximación de
Rosenwein, donde las comunidades son pequeñas, cerradas y homogéneas en
su composición, consiste en resaltar el papel social de las emociones como
creadoras de comunidades. En nuestro caso contribuye a reforzar la idea de
relación íntima y afectiva y no sólo corporal entre los migrantes.

271
CEVA, M. • Inmigración y familia. Una mirada desde las redes
de inmigrantes italianos em la Argentina

Pero para poder profundizar en esos mínimos mecanismos


que están en la base de la articulación de lo social es necesario
reconstruir los lazos o los vínculos que se dibujan en un contexto
social determinado. En nuestro caso hemos seleccionado un
grupo de inmigrantes italianos, provenientes del Piamonte y
arribados a la Argentina entre 1919-1928. En parte los miembros
de esta historia terminan conformando, como para otros casos
sugiere D. Hoerder, “… selective mental maps registered only
the segments of the world relevant to the particular user…”
(HOERDER, 1999, p. 76).
En la actualidad, numerosos son los estudios que se han
concentrado en mostrar la importancia de las redes sociales
familiares y amicales en los procesos migratorios. Simultáneamente
han demostrado como esas mismas redes permitían y facilitaban el
acceso a mercados de trabajo, cercanos o remotos. En otros trabajos
hemos señalado que el proceso migratorio de italianos hacia
Argentina no sólo exponía la existencia de una diversificación
espacial de los inmigrantes en distintos lugares sino que podría
percibirse como un proceso de diversificación familiar producto de
una clara estrategia de los grupos familiares. Pero cómo se producía
la migración?, quién decidía que miembro emigraba?, dónde y
cuándo se emigraba? Y con quién se emigraba?. Son cuestiones
que los estudios migratorios han analizado extensamente en las
últimas décadas para el caso argentino2 y son preguntas que pueden
ser abordadas desde las reconstrucciones de las historias
migratorias familiares.
En nuestro caso buscamos realizar una reconstrucción de
esos procesos a través de la combinación de las escalas macro y
micro analítica y de una utilización muy vasta de las fuentes
existentes en los países de origen y de destino de un grupo de bielleses
del Piamonte italiano, emigrados entre 1919-1930. El repertorio de
material utilizado consiste en: foglio matricolare, certificados de

2
Una síntesis de los avances registrados en Devoto (2005); también la revista
Estudios Migratorios Latinoamericanos.

272
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

nacimiento, casamiento, censos, correspondencia3, fotografía,


entrevistas, listas de pasajeros, y fotografías. Básicamente, el corpus
documental remite a la correspondencia privada de los miembros
de una misma familia originaria de Biella. En total se contabilizan
ochenta cartas intercambiadas entre los años 1923 y 1962 por un
mismo grupo, escritas la mayoría en idioma italiano y algunas en
dialecto piamontés. La particularidad del conjunto es que incluye
las cartas enviadas y recibidas dentro del mismo grupo familiar,
incluso en muchos casos es posible identificar las preguntas y
comentarios en unas y las respuestas en otras cartas. Asimismo,
se cuenta con sus fotografías. En este caso, suman doscientas
cuarenta imágenes tomadas entre 1895 y 1975. Los formatos
difieren claramente según las épocas y los lugares de la toma. Para
la mayoría de ellas se ha logrado establecer la fecha exacta y la
identidad de los fotografiados.4
Una reconstrucción de esta naturaleza nos permitió en
diversos artículos previos comparar los diferentes patrones de
asentamiento migratorio y visualizar las potencialidades de las
redes sociales durante el proceso. En esta oportunidad
profundizaremos en una parte de lo que denominamos “red social
total” puntualmente nos concentraremos en la familia de Emilio.

Inmigración, familia y redes sociales

Como bien es sabido el contingente de italianos arribados


a la Argentina se encuentra entre los más numerosos. Según los
ciclos o los momentos históricos ellos han representado el primer
o segundo lugar sobre el total de inmigrantes llegados a ese país.
Asimismo, su origen regional también ha sido muy variado, en

3
Sobre estudios desde la correspodencia de los inmigrantes para el caso argentino,
Baily y F. Ramella (1988), E. Franzina (1979); E. Ciafardo (1991); M. Ceva
(2005); H. Otero (2006).
4
Sobre la metodología utilizada para la selección e identificación del grupo Cfr.
M. Ceva (2005).

273
CEVA, M. • Inmigración y familia. Una mirada desde las redes
de inmigrantes italianos em la Argentina

este caso el grupo sobre el que profundizaremos provenía del


Piamonte italiano, de la ciudad de Biella. Una zona reconocida
por la presencia de una fuerte industria textil y por la existencia
de una larga trayectoria migratoria de sus habitantes hacia los
países vecinos, sobre todo hacia Francia y Suiza.
En nuestro caso hemos identificado un grupo de
inmigrantes provenientes de Sandigliano, una localidad ubicada
a 5 km. de la ciudad de Biella, los cuales arribaron a la Argentina
entre 1922-1927. El grupo ascendía a veintidos inmigrantes. A
ese grupo original y sus relaciones personales hemos denominado
“red total” (véase gráfico N o 1). Uno de estos inmigrantes:
Eugenio, había posibilitado la llegada de otros bielleses a Valentín
Alsina, al conocido barrio de las catorce provincia, en Argentina
(véase gráfico No 2). El barrio era muy popular en la década del
veinte en Argentina por concentrar a un número importante de
pequeñas empresas textiles.
Posteriormente, ese grupo inicial de inmigrantes se dividió:
algunos de ellos se trasladaron en 1932 a la localidad de San Justo,
provincia de Buenos Aires; otros a Jaúregui, provincia de Buenos
Aires, en 1929 para trabajar en la Algodonera Flandria. En la
configuración presentada en el gráfico No 3 se observa que la
misma está atravesada por un semicírculo que indica claramente
los dos sectores: uno hace referencia a residentes en Jáuregui y
otro hace referencia a residentes en San Justo. Sobre una de las
familias –la de Giovanni- identificado en el primero de los semi-
círculos hemos profundizado extensamente en otros artículos. En
esta oportunidad nos centraremos en otra familia de este amplio
grupo de bielleses – la de Emilio– que se radicó en San Justo. En
ese caso, si bien mantuvieron estrechos contactos con los residentes
en Jáuregui, al llegar a Argentina y luego de dos años observan
una trayectoria familiar diferente aunque siempre vinculados
emocionalmente, incluso hasta la actualidad. Así en esta
oportunidad, el ejercicio consistió en profundizar en un sector de
la red que tiene la característica de establecerse en un área
netamente urbana, como era la ciudad de San Justo, provincia de

274
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Buenos Aires, Argentina y en un inmigrante que desarrolló una


trayectoria ocupacional y social diferente al resto de los integrantes
de la red pero que permaneció íntimamente ligado al grupo de
origen por vínculos afectivos.
Pero para comprender mejor las relaciones entre ambos
grupos y espacios retomaremos primeramente algunos datos sobre
Giovanni y su grupo en Jaúregui. Giovanni había migrado a la
Argentina en 1924 a través de amigos que ya estaban en Buenos
Aires, con él había llegado un primo de Marietta, Gepatti, con
quien se encontraba asiduamente, y otros dos amigos, Quinto y
Emilio. En Italia Giovanni había trabajado como costurero al
llegar a la Argentina lo hará en diferentes industrias textiles:
Hilanderías y Fábrica de Tejidos: Ugolino y Juan Giardino S.A el
2 de febrero de 1924 y permaneció como preparador hasta el 15
de julio de 1924. Desde el 17 de junio de 1924 hasta el 5 de julio
de 1925 se desempeñó en el frigorífico Swift. Estuvo dos meses
sin trabajo. Después ingresó a empresa Lanzani desde setiembre
de 1925 hasta marzo de 1926, y por otros dos meses trabajo en
Campomar y Soulas. En junio de 1926 ingreso a Algodonera
Flandria hasta el 4 de abril de 1929 y desde el 17 de abril de 1929
hasta el 5 de noviembre de 1929 se desempeñó como tejedor en
Cia Comercial e industrial: Linage- Petrocelli – Antin.S.A, en la
calle Vieytes 1690, Capital Federal retirándose por cierre del
establecimiento. El 1 de diciembre de 1929 reingreso a
Algodonera Flandria y se retiró en 1955 para su jubilación
(CEVA, 2010, p. 171).
Su historia es muy similar a la de los otros paisanos que se
establecieron en Jaúregui. Todos ellos una vez en Jáuregui y ya
en la empresa textil comenzaron, como otros de los primeros
arribados con Eugenio, a ocupar una posición de privilegio
producto, en parte, de su temprana inserción en la industria. En
el interior de la empresa su grupo fue uno de los que mejor
posicionado quedó pero, también, estas mismas redes fueron las
que se mantenían fuera del ámbito laboral. A través de ellas les
era posible reproducir las pautas culturales de su aldea de origen

275
CEVA, M. • Inmigración y familia. Una mirada desde las redes
de inmigrantes italianos em la Argentina

y les permitía también la contención afectiva necesaria en los


momentos más importantes de su vida: el casamiento, el
nacimiento de sus hijos y la muerte. Las tensiones que provocaba
la vida alejada de la familia no eran pocas y precisamente estas
conexiones eran las que actuaban como un soporte para canalizar
las ansiedades (CEVA, 2010, p. 175). Por ejemplo, cuando
Giovanni, uno de los integrantes de la red, llegó a Flandria se
alojó junto a la familia de su amigo Quinto hasta el momento en
que contrajo matrimonio.
Por su parte, Quinto había llegado a la Argentina en 1924,
en Biella su ocupación era operario. Luego de cinco años había
logrado reunir el capital necesario para que su esposa e hijos se
reunieran con él Quinto y María se habían casado en 1922 en
Sandigliano. María ingresó al país en febrero de 1927 junto a un
primo y comenzó a trabajar en Giardino como tejedora, también
se encargaba de la atención a su esposo y a los amigos, y
especialmente quedaba a cargo de la casa cuando ellos se mudaban
al Meridiano Quinto, para alternar su trabajo en la industria con
el levantamiento de la cosecha de trigo. Para María la migración
tampoco era ajena, María tenía tres hermanas y un hermano. Una
de ellas, Pelagia se había mudado a Torino, otra Ersilia vivía en
Sandigliano junto a su hermano Pietro y Francesca con su marido
Anchin Emile vivían en París. En 1924 Quinto comenzó a trabajar
en Algodonera Flandria también por intermedio de Eugenio
(BARBERO; CEVA, 1999, p. 148).
Es decir, que Eugenio, Giovanni y Quinto estuvieron juntos
en su primer destino en Argentina (Valentín Alsina) y también en
su segundo destino, (Jáuregui). Ellos observan una trayectoria
laboral en el mismo ámbito de trabajo y en las mismas localidades.
Pero como ya indicamos la red social a la que pertenecían era
más extensa y densa. Ella incluía a otro amigo: Emilio, quien por
algún motivo no continuó su mismo itinerario espacial como
tampoco social.
Veamos la trayectoria de Emilio: había nacido en Biella,
era hijo de un campesino (Emilio) y de Caterina donde tenían

276
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

una pequeña parcela de tierra5. Emilio (hijo) tenía 4 hermanos:


Angelo, Malvina, Eugenio y Solferina. Tres hermanos, un varón
y dos de las hermanas mujeres nunca salieron de Italia.
Angelo, el hermano mayor, emigró varias veces. Su primer
destino fue París en el año 1923. A los escasos dos años regresó a
Biella y volvió a emigrar en 1926 pero esa vez hacia Londres,
permaneciendo hasta el año 1950 cuando retornó finalmente a
Biella para establecerse como comerciante. La migración desde
Italia hacia Londres era muy importante (KING, 1978, p. 180).
De hecho su amigo Giovanni, también había hecho una estancia
en Londres, aunque en su caso sin éxito. El caso de Angelo parece
ser diferente porque logra instalarse y permanecer en Londres por
veinticuatro años. Allí nació su hijo (Lidio) quien se esposó con
una inmigrante española de Cataluñia, Maria Angeles. Ellos
también regresaron a Biella y se establecieron en Gaglianico,
localidad vecina a Biella, allí tenía un negocio de alimentos,
“…bien ubicado y bien surtido…”6 vivieron en Italia 40 años, tuvieron
3 hijos, Roberto, Marco y Nadia. Pero durante el año 2012 se
mudaron a España y se establecieron en Manresa, localidad
cercana a Barcelona. Lidio falleció en el año 2014, Mariángeles
quedó sola en Manresa. Algunos de sus hijos también continuaron
migrando: Roberto, el mayor, habita actualmente en Brasil, Marco
quedó en Italia en la casa de Angelo (que amplió y modernizó en
Sandigliano) y Nadia se fue con los padres a España y allí se casó
en el año 2015.
En el caso de Emilio, su primera partida fue hacia París en
el año 1924 para encontrarse con su hermano Angelo, quien ya se
encontraba en esa ciudad, allí permaneció hasta fines de 1926,
cuando retorno a Biella. En Paris trabajo de albañil durante tres
años. En febrero de 1927 contrajo matrimonio con Julia, de
Cavagliá. Los padres de Julia, eran Giussepe y Teresa, ellos nunca

5
A través de las entrevistas no logramos identificar a que se refieren con “pequeña
parcela de tierra”.
6
Entrevista a Liliana G., Buenos Aires, febrero 2016.

277
CEVA, M. • Inmigración y familia. Una mirada desde las redes
de inmigrantes italianos em la Argentina

migraron y tenían una hacienda agrícola, grande. Una vez


esposados el matrimonio pensaba re-emigrar hacia Paris pero por
problemas en el ingreso, desistieron y partieron durante ese mismo
año (1927) hacia Argentina.
El primer lugar al que llegaron fue junto a su amigo
Giovanni en Valentín Alsina, y sólo permanecieron allí un breve
tiempo trasladándose a un barrio cercano llamado Barracas. A
pesar de contar con los mismos vínculos que Giovanni, Emilio
realizó sus primeros trabajos en el país en la albañilería. A los
pocos meses se mudó a otra localidad cercana, Versalles, para
ingresar a una empresa textil Ezra Teubal. La compañía “Ezra
Teubal y hnos.” fue fundada en 1911 por los Teubal migrantes
provenientes de Alepo. Primero eran vendedores ambulantes,
luego fueron revendedores de tejidos importados y finalmente en
1922 adquirieron una fábrica de tejidos en Barracas y en 1928 se
trasladaron a Versalles instalando primero el depósito, luego la
tejeduría y finalmente conformando la sede principal de la empresa
con la Fabrica La Unión - agregando la manufactura de tejidos
propios. La Unión fue una de las primeras fábricas instaladas en
la zona de Versalles, y atrajo a numerosos trabajadores a radicarse
en el barrio. El lugar traía sin dudas ventajas respecto a los niveles
de vida del área central (CORRAL, 2013, p. 497). Emilio,
permaneció en la “Teubal” hasta el año 1941, en que finalmente
se mudó a Morón, en la provincia de Buenos Aires.
Ciertamente, Emilio podría haber elegido trasladarse a
Jáuregui, pero no lo hizo. Posiblemente, porque cuando estaba
en Argentina se encontró alentado a partir para otro sitio.
Obviamente, el arribar a través de un vínculo y luego desplazarse
a través de otros, no es excepcional, es más común de lo que
estamos acostumbrados a pensar. Asimismo, el elegir un destino
diferente no implica que el afecto fraterno no disminuyó. No es
un problema de afecto, es un problema de estrategia de vida y son
estrategias que son elaboradas conjuntamente a la elección de la
amistad. Quizás por ello el grupo continúa siendo un grupo unido
emocionalmente. Sobre la base de un análisis así se pueden explicar

278
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

muchas cuestiones sobre las diversas experiencias migratorias. La


naturaleza del vínculo nos dice mucho sobre sus horizontes y
expectativas de vida pero también es una influencia determinante
sobre aquello que sucederá después.
En nuestro caso, Emilio, a su llegada a Argentina, como
todos los inmigrantes, tuvo que reorganizar su propia red social y
en este punto el vínculo con el que partió es sumamente importante
porque ese lazo es el puente que lo condujo a otros nuevos vínculos
en el nuevo espacio y ello también afectó su movilidad socio-
ocupacional. Así observamos que la movilidad espacial y socio-
ocupacional de Emilio difiere claramente de la de Giovanni. Ya
para la década del 1940 Emilio había logrado instalarse por su
cuenta, montando su propia empresa textil. En realidad era un
pequeño taller con dos telares y accesorios y trabajaban para
terceros (faconiers) y según los momentos de mayor o menor
demanda contaba con algún empleado que trabajaba como
“canillero”. Asimismo, en ese mismo año había retornado “de
visita” a Italia, y había construido él mismo numerosas propiedades
que posteriormente alquilaría. Si bien, ninguno de sus hermanos
llegó a la Argentina, el que sí lo hizo fue el hermano de Julia (su
esposa) y familia en 1947 quienes después de algún tiempo se
instalaron en una granja que pertenecía a las hermanas de la
escuela María Mazzarello, en San Justo.7
Está claro, que Emilio no permaneció inserto dentro de la
red de relaciones laborales de los piamonteses de Jáuregui, -donde
se encontraba la mayoría de sus amigos de la infancia-como
tampoco en la de Eugenio, -que era quien le había posibilitado su
llegada al país- quizás fueron estos hechos los que le facilitaron
su ascenso socio-ocupacional.
Sin embargo, queda otro punto a reflexionar y que es el
siguiente: la trayectoria social exitosa de Emilio lo fue porque no
estuvo condicionada de su red “étnica” o lo fue por la nueva

7
La casa lleva el nombre de María Mazzarello como homenaje a la cofundadora
del Instituto, originaria de Mornés, en la campiña italiana.

279
CEVA, M. • Inmigración y familia. Una mirada desde las redes
de inmigrantes italianos em la Argentina

composición social y profesional de su red? Está claro que los


bielleses que llegaban a la Argentina en el momento que lo hacían
estos migrantes eran muchos, pero también es cierto que muchos
se encontraban insertos en diferentes nichos económicos y también
en diversos lugares de la estructura social. Seguramente, en el caso
de Emilio encontró en su camino otras conexiones con otras
oportunidades diversas además de la del trabajador fabril,
oportunidades que él supo aprovechar, quizás por eso su trayectoria
fue diversa a la de sus amigos. En ese sentido la pregunta sería:
quiénes son aquellos con los que Emilio entra en diálogo en el
nuevo contexto argentino, quiénes son sus nuevos vínculos, cuáles
sus nuevos puentes? Quizás el hecho que durante sus primeros
meses Emilio fue un peón de construcción puede haberlo puesto
en contacto con otro grupo en esos primeros meses, o también su
paso por una textil en la que sus dueños tenían una trayectoria
laboral exitosa de manera independiente. Por ello, quizás el acento
debe ser puesto más sobre la composición social y profesional de
su red a su llegada (sobre todo en Valentín Alsina) que sobre el
carácter étnico de la misma.
Ciertamente, en el caso de Emilio, pueden observarse dos
niveles diferenciados, por un lado, aquel laboral y por otro lado el
familiar afectivo. Así durante toda su vida siguió manteniendo
estrechos contactos con la red de bielleses radicados en Jáuregui.
Los encuentros se realizaban todos los fines de semana cuando
Emilio, en su automóvil, llegaba a Jáuregui junto a su familia y
conformaban en un sentido amplio una “comunidad emocional”.
Este elemento creemos es sumamente interesante ya que permitiría
profundizar sobre la idea de la existencia de comunidades
emocionales que le permitieron a los migrantes seguir siendo parte
de un grupo de referencia de origen. Es decir, la migración, el
asentamiento y el ingreso al mercado de trabajo implicaban la
elaboración de verdaderos proyectos migratorios orientados bajo
“sentiers invisibles”, construidos y jalonados por la familia8, en ese

8
La utilización de “sentiers invisibles” es desarrollada por Rosental (1999).

280
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

transcurso a veces, como desde los inicios de la migración, el


alejarse implicaba nuevas separaciones y esas lejanías y ausencias
se suplían con diversos soportes.
Esta memoria 9 familiar se “construía”, como ya fuera
señalado, a través de diversos mecanismos y anclajes. Para este grupo
de migrantes los principales soportes eran la correspondencia y la
fotografía. Quizás la importancia de esta última para los migrantes
pueda ser contemplada en el hecho de que la máquina fotográfica
era uno de los primeros objetos que pretendían adquirir en el nuevo
contexto. En la dispersión geográfica la fotografía permitía reafirmar
de manera simbólica la continuidad familiar. En ese caso, el envío
entre los diversos integrantes del grupo migrante permitía elaborar
una memoria familiar común (CEVA, 2005, p. 529).
En nuestro caso, seleccionamos tres fotografías: la primera
al momento de la llegada en la que se encuentra el grupo de
bielleses en Valentín Alsina; la segunda los amigos en Jáuregui;
la tercera en la que solo una parte de la red se encuentra en Jáuregui
y la cuarta en un encuentro más íntimo en el que aparece solo
uno de los bielleses de Jáuregui y el resto de San Justo.
La primera de ellas es una imagen que será enviada a sus
familiares en Italia, muestra la unión entre los “paisanos”, el nuevo
contexto, sin espacios, solo una puerta, sin pórtico, en un lugar
que no puede identificarse. La segunda fotografía: la fiesta, quizás
aparece como una “re-presentación”, es decir presentaba de nuevo
a este integrante familiar ante los otros miembros en los diversos
destinos. Con él están sus amigos bielleses, varios de ellos
compañeros de trabajo. La foto no respondía a ningún evento
familiar, -bautismos, casamientos- por el contrario transmite un
estilo de vida. Asimismo, la imagen también muestra, como ya lo
hemos señalado en otros trabajos la complejidad de la época:

9
Numerosos son los trabajos que buscan analizar los complejos procesos que se
generan en torno a la memoria familiar, la mayoría de ellos bregan en los estudios
pioneros de M. Halbwachs (1994) sobre como pensar lo social en los procesos
de memoria. Una excelente síntesis la ofrece J. Olick y J. Robbins (1998).

281
CEVA, M. • Inmigración y familia. Una mirada desde las redes
de inmigrantes italianos em la Argentina

“obreros industriales en ámbitos rurales”. Su forma de vestir es


representativa de los primeros, el campo detrás de lo segundo. La
tercera fotografía: solo están presentes tres amigos: Emilio,
Giovanni, y Eugenio junto a sus esposas. Todas ellas biellesas
menos una. Es una foto que todas las familias conservan al día de
hoy y mantienen estrechos vínculos de familiaridad.

A modo de conclusión

Está claro que la relación entre inmigración y familia se


encuentra cruzada por diversos elementos. El primero de ellos es
la diferencia entre lo que los investigadores asignan al término
familia y el que los propios migrantes entendían. En ese sentido,
esta presentación muestra cómo la divergencia es notable. Para
los integrantes de nuestra historia su familia son los miembros de
su red social, aunque no toda, pero más amplio que el sentido
estricto de familia podría representar. En esa identificación la
percepción de la importancia de los vínculos que conforman la
red social son fundamentales. Y allí también no solo es importante
visualizar la existencia de un vínculo establecido entre los
diferentes miembros de un grupo sino identificar cómo y por qué
se estableció y que características tenían el mismo.
La historia presentada muestra como los principales
destinos que aparecen para el conjunto de la inmigración biellesa,
en muchos casos, representaban lugares que simultáneamente eran
elegidos por un conjunto familiar o amical. Asimismo, si bien es
cierto que la movilidad espacial permite una reorganización de
las relaciones, por ejemplo en la frecuencia de las interacciones,
también es claro que éstas pueden ser sustituidas por otro tipo de
soporte de la relación como es a través de la fotografía. En ese
sentido, es importante destacar que un elemento fundamental en
ese aspecto es cuál fotografía se remite a los familiares que se
encuentran en otros espacios. Por qué se envía una fotografía y
no otra imagen. En función de qué se selecciona? Se lo hace por

282
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

una idea de los debe transmitirse o por una nueva mirada de la


historia familiar? Todas preguntas que permanecen abiertas a
nuevas investigaciones.

Referências
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283
CEVA, M. • Inmigración y familia. Una mirada desde las redes
de inmigrantes italianos em la Argentina

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http://dx.doi.org/10.3989/asclepio.2013.12).

284
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Gráfico Nº 1: Red total y red parcial de una familia biellesa.

Fuente: Correspondencias vs.; legajos de personal de A.F.; Entrevistas


personales.
Referencia: la distancia entre los diversos puntos no representa la distancia
social entre los individuos.

285
CEVA, M. • Inmigración y familia. Una mirada desde las redes
de inmigrantes italianos em la Argentina

Gráfico Nº 2: Red de relaciones en la migración (1924-1950)

286
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Gráfico Nº 3: Relaciones establecidas entre inmigrantes bielleses


en Argentina

Fuente: Correspondencias vs.; legajos de personal de A.F.; Entrevistas


personales. Referencia: la distancia entre los diversos puntos no representa
la distancia social entre los individuos.

287
CEVA, M. • Inmigración y familia. Una mirada desde las redes
de inmigrantes italianos em la Argentina

Foto Nº 1: Bielleses en Valentín Alsina (Aprox. 1928)

288
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Foto Nº 2: Bielleses en Argentina en el Jáuregui (aprox. 1930-


1932)

Referencia: Tomada en Flandria entre 1930 y 1932. Arriba de derecha a


izquierda: Basilio (hermano de Rina, esposa de Eugenio B.); Eugenio B. con
su hijo Victor (nacido en 1928),Giovanni; María; Aldo R. (primo de María);
Quinto B.; no sé pudo identificar.
Abajo: de derecha a izquierda: Julia; no se pudo identificar; Rina (esposa de
Eugenio); atrás María (esposa de Quinto) con su hijo Pieraldo en brazos.
MEDIDAS: 14 cm de ancho por 9 cm de alto. Detrás dice: TARJETA
POSTAL. UNION UNIVERSAL DE CORREOS (CARTE POSTALE-
UNION POSTALE UNIVERSELLE).

289
CEVA, M. • Inmigración y familia. Una mirada desde las redes
de inmigrantes italianos em la Argentina

Foto Nº 3: Bielleses en Argentina (aprox. 1937)

Referencias: Tomada en Flandria en 1937 aproximadamente.


Sentados: Eugenio y su esposa Rina. Arriba de izquierda a derecha: Quinto,
Ana (esposa de Giovanni) Giovanni, Julia (esposa de Emilio), María (esposa
de Quinto), Emilio.
MEDIDAS: 9 cm de ancho por 6 cm de alto. Bordes recortados.

290
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Parte IV
Ensaios de Micro-História

291
Redes mercantis e familiares
na Porto Alegre do século XIX
Gabriel Santos Berute

Introdução

Nesta investigação1 procura-se estabelecer um diálogo com


a demografia histórica, chamando a atenção para a potencialida-
de de seus referenciais teóricos e metodológicos no tratamento de
fontes eclesiásticas para os estudos de grupos socioeconômicos
no campo da história econômica e social2. No mesmo sentido, os
referenciais da micro-história são incontornáveis, especialmente
no que diz respeito à redução do foco da análise para um grupo
de negociantes atuantes estabelecidos no extremo sul da América
portuguesa e que permite refletir a respeito das rotas de comércio
da primeira metade do século XIX3.
Na investigação realizada para a tese de doutoramento (BE-
RUTE, 2011), analisei o funcionamento do comércio rio-gran-
dense a partir das praças de Porto Alegre e de Rio Grande: mer-

1
Esta pesquisa fez parte do projeto “Província do Rio Grande de São Pedro,
século XIX: luso-brasileiros, redes mercantis e sociabilidade na Praça de Porto
Alegre”, supervisionado pelo Prof. Dr. Paulo Roberto Staudt Moreira (PPG-
História/UNISINOS); financiamento: bolsa Edital DOCFIX (CAPES-FAPER-
GS); Ano: 2015. Etapas anteriores da investigação foram realizadas como par-
te dos projetos “Gentes das Ilhas: trajetórias transatlânticas dos Açores ao Rio
Grande de São Pedro entre as décadas de 1740 a 1790.” e “Família e Sociedade
no Brasil Meridional (1772-1872) – Fase 2”, supervisionados pela Profª. Drª.
Ana Silvia Volpi Scott (NEPO/Unicamp); financiamento: PDJ-CNPq; Ano:
2012-2015.
2
Para uma síntese a respeito do diálogo entre história e demografia e uma análi-
se sobre as novas perspectivas da história econômica, ver respectivamente NA-
DALIN, 2004; FRAGOSO, 2002.

292
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

cadorias, concentração dos negócios, rotas e a caracterização dos


agentes mercantis envolvidos. Tendo em vista as características
da documentação consultada naquela ocasião, questões como as
estratégias de ascensão social por meio das alianças matrimoni-
ais e das relações de compadrio estabelecidas pelos agentes envol-
vidos foram abordadas de forma pouco aprofundada.
O objetivo, portanto, é demonstrar como o cruzamento
onomástico (GINZBURG et al., 1989) com os registros de batis-
mo, casamento e óbito, permite conhecer informações ausentes
em outros tipos de fontes e que podem contribuir para investigar a
atuação de um determinado grupo socioeconômico. Para fins de
exposição, destaquei a família do comendador Manoel José de Frei-
tas Travassos para investigar as relações estabelecidas entre os co-
merciantes que atuavam a partir de Porto Alegre nas primeiras dé-
cadas do século XIX, por meio dos seus negócios e dos vínculos
por eles estabelecidos por meio do casamento e do compadrio4.
No que diz respeito às fontes, a documentação consultada
sobre o comércio foi a mesma coletada e utilizada na minha tese
de doutoramento (em destaque, duas listagens de comerciantes e es-
crituras públicas de venda, crédito e sociedade), enquanto os assentos
eclesiásticos foram consultados a partir do banco de dados (NA-
CAOB) que está sendo abastecido pela equipe de pesquisadores
coordenada pela professora Ana Silvia Volpi Scott (NEPO-UNI-
CAMP)5. Além destas, foi consultada uma amostra de Autos de
habilitações matrimoniais (Arquivo Histórico da Cúria Metropoli-
tana de Porto Alegre) que permitiram conhecer detalhes importan-
tes a respeito de comerciantes ligados a família Freitas Travassos.

3
A respeito da micro história, ver: GINZBURG et al., 1989; LEVI, 1992; LEVI,
1998; LEVI 2000; LIMA FILHO, 2006;
4
Versões deste trabalho foram apresentadas no XXVII Simpósio Nacional de
História da ANPUH (Natal, 2013) e no V Simpósio Nacional de História da
População ABEP/UEG (Caldas Novas, 2013) e na I Jornada e Infância, Juven-
tude e Família (Porto Alegre, 2015).
5
Sobre o NACAOB e suas potencialidades, ver SCOTT; SCOTT, 2012.

293
BERUTE, G. S. • Redes mercantis e familiares na Porto Alegre do século XIX

A partir da década de 1790, a capitania do Rio Grande de


São Pedro incorporou-se definitivamente aos circuitos mercantis
da América portuguesa por meio da produção e comercialização
principalmente de trigo, charque e couros, além do gado muar
utilizado no transporte e de outros derivados do gado vacum (PRA-
DO JÚNIOR, p. 181-207; SANTOS, p. 85-87; 105-106; OSÓ-
RIO, p. 183-191)6. O complexo portuário da vila de Rio Grande
era o único porto marítimo da capitania rio-grandense e, conse-
quentemente, passagem obrigatória das embarcações que nele
entravam e saíam carregadas de mercadorias e se escoava a pro-
dução da capitania/província. Junto com os portos de Rio de Ja-
neiro e Salvador, compunha a principal rota do comércio de ca-
botagem nas primeiras décadas do século XIX, com intenso fluxo
mercantil que interligava as regiões litorâneas e o interior. Rio
Grande exercia ainda um importante papel no comércio com os
vizinhos do Rio da Prata: Montevidéu e Buenos Aires (PRADO;
LUIZETTO, 1980/1981, p. 158-196).
Enquanto o porto de Rio Grande era indispensável para o
acesso ao oceano e para o escoamento da produção do charque e
dos couros, Porto Alegre fazia a conexão do centro com o norte do
Rio Grande de São Pedro. Localidades como Santo Antônio da
Patrulha, Aldeia dos Anjos e Viamão despachavam seus produ-
tos até a cidade e retornavam com mercadorias disponíveis na
capital. Pelas vias fluviais e lacustres chegava-se até Santo Ama-
ro, Triunfo, Rio Pardo e Taquari. Por via terrestre, a partir de Rio
Pardo (outro importante centro comercial), eram abastecidas as
localidades de Cachoeira, Santa Maria, a fronteira oeste e Mis-
sões. Em meados do século XIX, a estruturação de uma ampla
área produtora de gêneros agrícolas em torno de Porto Alegre
(com destaque para a expansão da produção nas colônias alemãs
do vale do Rio dos Sinos), ampliou o movimento de seu porto e

6
Para abordagem recente a respeito das charqueadas e o comércio de carnes e de
couros no século XIX, ver VARGAS 2013.

294
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

consolidou a capital como um centro comercial de fundamental


importância como intermediária no escoamento da produção rio-
grandense (FRANCO, 1983, p. 9-37)7.
Quando Porto Alegre passou a sediar o governo e a Câma-
ra da capitania, em 17738, uma série de medidas foram tomadas
para deixá-la em condições de abrigar a administração do Rio
Grande de São Pedro. De acordo com Riopardense de Macedo
(1968, p. 59-73), foram realizadas modificações nos traçados das
ruas e novas vias foram abertas, fontes públicas foram construí-
das para garantir o suprimento de água da capital e iniciou-se a
edificação dos prédios necessários para a administração recém-
instalada. As ruas mais importantes localizavam-se na frente da
Rua da Praia (atual Rua dos Andradas), onde estavam concentra-
das as atividades comerciais ligadas à navegação fluvial9. Apesar
de restrita, a área urbana crescia e se adensava10. Fora dos muros

7
Portanto, os dois portos não concorriam entre si, pois neles eram executadas
atividades mercantis complementares, ainda que existisse uma hierarquia entre
eles devido à maior vinculação de Rio Grande com o comércio marítimo. A
relação entre os portos de Lisboa, Porto e Viana foi caracterizada nestes termos
por Leonor Freire Costa (2002, p. 81-111) em sua investigação a respeito do
comércio entre Portugal e Brasil nos séculos XVI e XVII. Segundo a autora,
neste período, o porto de Lisboa exercia uma função de centro em relação aos
demais, não de monopólio sobre o comércio. Em termos gerais, o comércio en-
tre os portos de Buenos Aires, Montevidéu e da Colônia do Sacramento no sécu-
lo XVIII também foi assim definido por Fabrício Prado (2002, p. 31-185).
8
Com a ocupação espanhola da vila de Rio Grande (1763-1776), as sedes do
governo sul-rio-grandense e da Câmara foram transferidas para os Campos de
Viamão em 1763, onde permaneceram até 1773, quando foram transferidas
para Porto Alegre por ordem do Governador José Marcelino de Figueiredo.
(CESAR, 1970: 168-185; QUEIROZ, 1987, p. 107-145).
9
Aspecto este salientado nas anotações do botânico francês Auguste de Saint-
Hilaire (2000, p.67-68), por ocasião de sua passagem pela cidade no início da
década de 1820. Sobre a alfândega de Porto Alegre, ver EZEQUIEL, 2007.
10
Durante a Guerra dos Farrapos (1835-45), a capital foi sitiada pelas forças
farroupilhas durante três períodos nos primeiros anos do conflito (entre junho
de 1836 e dezembro de 1840). Os cercos prejudicaram as atividades econômi-
cas da capital (interrupção do transporte e das comunicações entre Porto Ale-
gre e Rio Grande, redução do numerário em circulação e a presença de grande
volume de moedas falsas) e limitaram a expansão urbana da capital (FRAN-
CO, 1983, p. 29-31; FRANCO, 1998).

295
BERUTE, G. S. • Redes mercantis e familiares na Porto Alegre do século XIX

que delimitavam sua reduzida área urbanizada, terras ocupadas


por numerosas chácaras eram dedicadas às atividades agrícolas,
com destaque para o cultivo do trigo e a produção da farinha.
Com a transferência da capital e a intensificação da ativi-
dade comercial, Porto Alegre passou a concentrar parte dos mais
importantes homens de negócio da capitania. Devido às caracterís-
ticas das transações comerciais realizadas no seu porto, o seu grupo
mercantil distinguia-se daquele estabelecido na vila do Rio Gran-
de. Comparando os investimentos econômicos e a atuação dos
respectivos grupos mercantis, percebe-se que uma pequena parte
deles atuava concomitantemente nas duas praças. Os comercian-
tes de Porto Alegre, mesmo os mais destacados, tinham pouca
inserção nos espaços de representação do corpo mercantil de Rio
Grande – Sociedade Promotora da Indústria Rio-Grandense e Associa-
ção Comercial de Rio Grande11 –, o que corrobora os indícios de que
os comerciantes da capital estavam voltados para o comércio com
o seu entorno e com o interior da província por meio do Rio Ja-
cuí. Os negociantes de grosso trato da capital, por sua vez, distingui-
ram-se dentro do grupo dos agentes mercantis. Embora menos
representativos em relação aos seus pares presentes nas escrituras
de Rio Grande, os de Porto Alegre também concentraram parce-
las significativas do valor investido, com destaque para as transa-
ções envolvendo embarcações e o fornecimento de crédito12.

As estratégias familiares da
comunidade mercantil de Porto Alegre

Estas eram, portanto, as atividades econômicas e mercan-


tis na quais estavam inseridos os comerciantes estabelecidos em
Porto Alegre na primeira metade do século XIX. Para realizar o
cruzamento onomástico com as fontes eclesiásticas, foram selecio-

11
A este respeito de ambas as instituições, ver respectivamente KLAFKE, 2006
e MUNHOZ, 2003.
12
Para uma análise detalhada destes aspectos, ver BERUTE, 2011, p. 165-214.

296
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

nados inicialmente os agentes mercantis presentes nas escrituras


públicas de venda, crédito e sociedade, registradas em Porto Ale-
gre entre os anos de 1808 e 185013 e que foram identificados entre
os “Negociantes de grosso trato” (NGT) matriculados na Real
Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação do Rio de
Janeiro (Arquivo Nacional)14, ou entre os comerciantes de Porto
Alegre relacionados por Manuel Antônio de Magalhães no Al-
manaque da Vila de Porto Alegre, em 180815. De tal modo, foi
definido um grupo inicial de 65, mas dois deles foram descarta-
dos por não estarem presentes em nenhum dos registros eclesiás-
ticos de Porto Alegre cadastrados no NACAOB. Outros dez co-
merciantes foram excluídos por haver homônimos e não ter sido
possível determinar qual deles era o agente mercantil identificado
nas escrituras. Por conseguinte, a análise ficou delimitada aos 53
agentes mercantis apresentados no Quadro 1.

13
APERS. 1º Transmissões e Notas, Porto Alegre, Livro 32-60, 1808-1850.
14
A matrícula foi instituída a partir da transferência da Corte para o Rio de
Janeiro em 1808 e a criação da Junta do Comércio no Rio de Janeiro e repre-
sentava uma diferenciação entre os grandes negociantes e os demais agentes
atuantes na América portuguesa. Constam na lista um total de 1.320 matricu-
las de negociantes de grosso trato. Os estabelecidos na província sul-rio-gran-
dense somavam 137 matriculados (atrás apenas do Rio de Janeiro e da Bahia)
e estavam estabelecidos nas seguintes praças mercantis: Cachoeira (2); Cangu-
çu (1); Pelotas (6); Porto Alegre (52); Rio Grande (62); Rio Pardo (4); São José
do Norte (5) e Rio Grande do Sul (5) (ANRJ. Junta do Comércio, Códice 170,
Volume 1-3, 1809-1850). Pontualmente consultei ainda o “Livro das justifica-
ções de matrículas” (ANRJ. Junta do Comércio, Códice 171, Volume 1 e 2, 1809-
1826). No geral, o livro repete as matrículas presentes no Códice 170. Sobre a
matrícula e Junta do Comércio de Lisboa e do Rio de Janeiro, ver entre outros
(PEDREIRA, 1995, p. 70-74; GUIMARÃES, 2008, p. 88-290; GORENSTEIN,
1993, p. 43; LOPES, 2009).
15
Magalhães afirma ter relacionado todos os comerciantes atuantes no Rio
Grande de São Pedro em 1808. Além dos residentes em Porto Alegre (57),
foram listados comerciantes residentes em Rio Grande (43); Rio Pardo (36);
Ilha de Santa Catarina (14) e Laguna (6), totalizando 156 agentes mercantis.
Utilizei a transcrição mais recente do também chamado “Almanack de 1808”,
elaborada pelo professor Fábio Kühn (UFRGS) (MAGALHÃES, 2008, p.
131-133), que elaborou ainda um estudo analítico do documento (KÜHN,
2008, p. 105-117).

297
BERUTE, G. S. • Redes mercantis e familiares na Porto Alegre do século XIX

Quadro 1: Relação dos negociantes da praça mercantil de Porto


Alegre selecionados

AGENTES MERCANTIS NGT1 “Almanack, Ano do Filhos 3 Afi


1808”2 casamento3 lhados3
1. André Alves Pereira Viana Porto Alegre 7 9
2. Antônio Fernandes Teixeira 1811 1821 7 2
3. Antônio Gomes de Amorim 1826 0 3
4. Antônio José de Almeida Bastos Porto Alegre 7 3
5. Antônio José de Oliveira Guimarães Porto Alegre 1826 2 50
6. Antônio José Rodrigues Ferreira 1815 8 9
7. Antônio José Teixeira de Macedo 1816 1812 0 8
8. Antônio Monteiro de Barros Porto Alegre 1787 11 2
9. Antônio Peixoto do Prado Porto Alegre 1803 10 16
10. Bernardino José de Sena Porto Alegre 1808 0 13
11. Bernardo José Rodrigues Porto Alegre 4 25
12. Custódio de Almeida e Castro Porto Alegre 1817 4 12
13. Custódio Gonçalves Lopes Porto Alegre 1803/1833 9 17
14. Domingos de Almeida Lemos Peixoto Porto Alegre 1790 6 33
15. Domingos José Afonso Alves 1816 1813 2 7
16. Domingos José de Araújo Bastos 1816 Porto Alegre ?/1822 6 9
17. Domingos Martins Barboza 1829 1825 6 1
18. Domingos Martins dos Reis Porto Alegre 1 5
19. Francisco de Lemos Pinto 1815 11 14
20. Francisco de Sá e Brito Porto Alegre ?/1805/1828/ 10 4
1831
21. Francisco Gonçalves Carneiro 1816 0 18
22. Francisco José da Cunha 1825 1834 0 6
23. Gaspar Fróes da Silva 1825 6 9
24. João Afonso Vieira de Amorim 1824 1825 2 13
25. João Batista da Silva Pereira 1823 1823 5 8
26. João Coelho Neves 1817 Porto Alegre 1806 7 25
27. João da Silva Lisboa Júnior 1818 2 6
28. João Inácio Teixeira Porto Alegre 1 44
29. João José de Carvalho e Freitas Porto Alegre 1804 4 4
30. João José de Oliveira Guimarães Porto Alegre 0 35
31. João Marinho de Freitas 1814 8 21
32. João Tomás de Menezes Porto Alegre 9 27
33. Joaquim José Ferreira Barboza 1823 1838 1 2
34. Joaquim Ribeiro de Faria 1825 1 1
35. José Antônio da Silva Neves Porto Alegre 1795 0 1
36. José Antônio da Silveira Casado Porto Alegre 3 14

298
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

37. José Antônio de Araújo Ribeiro 1825 7 10


38. José Antônio de Azevedo Porto Alegre 0 39
39. José Apolinário Pereira de Moraes Porto Alegre 10 4
40. José da Costa Santos 1816 Porto Alegre 1801/1808 4 10
41. José Luís de Azevedo 1836 1828 1 7
42. José Manuel Afonso Porto Alegre 1808 2 6
43. José Ribeiro dos Santos Porto Alegre ?/1802 2 2
44. Leonel Coelho da Silva 1830 1831 3 1
45. Lopo Gonçalves Bastos 1829 1828 1 7
46. Lourenço Antônio Pinto de Miranda Porto Alegre 5 4
47. Luís Manuel Gonçalves Lages Porto Alegre 0 3
48. Manuel Antônio de Magalhães Porto Alegre 1 8
49. Manuel José de Campos Porto 1815 1815 4 7
50. Manuel José de Freitas Travassos 1811 ?/1841 17 43
51. Manuel José Vieira de Lima 1826 ?/1826 4 3
52. Silvestre de Souza Teles 1823 1807 0 19
53. Zeferino Vieira Rodrigues 1820 0 12

Fontes: (1) ANRJ. Códice 170, Volume 1 e 2, 1809-1843); (ANRJ. Junta do


Comércio, Códice 171, Volume 1 e 2, 1809-1826; (2) MAGALHÃES, 2008:
131-133; (3) AHCMPA. Livros de registro de batismo e casamento da Freguesia de
Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1848). Banco de dados
NACAOB: extração de 13/09/2015.

Nos livros de casamento de Porto Alegre foram registrados


um total de 4.163 assentos de matrimônio de pessoas livres, liber-
tas e escravas entre os anos de 1772 e 1848. Ao confrontá-los com
a relação dos agentes mercantis selecionados, observou-se que 30
deles casaram-se na capital (Quadro 2).
Nestas uniões matrimoniais, houve significativa ocorrên-
cia de segundas núpcias, conforme demonstra parte dos comer-
ciantes (7) e das noivas (6) arrolados no quadro16. Faltam infor-
mações mais detalhadas e não se sabe qual era a ocupação os fale-
cidos maridos destas nubentes, mas é reconhecido na historiogra-
fia que uma trajetória comum era iniciar a carreira mercantil muito
jovem como caixeiro na casa mercantil de um tio ou de outros

16
Nos 4.163 assentos de casamentos de Porto Alegre (1772 e 1848) cadastrados
no NACAOB, em 731 matrimônios um ou ambos os nubentes, eram viúvos.

299
BERUTE, G. S. • Redes mercantis e familiares na Porto Alegre do século XIX

negociantes. Muitas vezes, após o falecimento destes, o caixeiro


acabava por assumir os negócios e até mesmo acabavam por se
casar com a viúva do seu patrão (SILVA, 1975, p. 93-105; MAR-
TINHO, 1993, p. 21-124; PEDREIRA, 1995, p. 209; OSÓRIO,
2007, p. 257-326).
Quatro destes matrimônios merecem maior atenção por-
que envolvem filhas e uma irmã de comerciantes presentes no
grupo selecionado para esta investigação e permitem demonstrar
bem as possibilidades do cruzamento com as fontes eclesiásticas
(Quadro 1). Domingos Martins Barboza e João Afonso Vieira de
Amorim tinham como sogro, o negociante de grosso trato Manoel
José de Freitas Travassos, enquanto a esposa de Manoel José Vieira
de Lima era filha do comerciante relacionado no “Almanack de
1808”, Lourenço Antônio Pinto de Miranda. O negociante e verea-
dor da Câmara de Porto Alegre Francisco de Sá e Brito17, por sua
vez, também estava no almanaque e casou-se em segundas núp-
cias com Maria Angélica Freitas, irmã de Freitas Travassos (que
consta como uma das testemunhas no assento de matrimônio),
de quem era sócio e parceiro de atividades políticas (COMISSO-
LI, 2011, p. 300-301; passim). Neste momento a comparação está
restrita ao grupo específico de agentes mercantis, definido con-
forme os critérios expostos acima. Se o universo de análise fosse
ampliado para o conjunto dos agentes mercantis presentes nas
escrituras analisadas, é possível que outros casos semelhantes fos-
sem encontrados.
A existência de laços de parentesco envolvendo o grupo
mercantil rio-grandense já havia sido observada por Helen Osó-
rio (2007, p. 96). Segundo a autora, aproximadamente um terço
dos comerciantes listados por Manoel Antônio de Magalhães

17
Sá e Brito teve quatro casamentos, três deles em Porto Alegre: Felícia Maria de
Oliveira; Ana Maria Joaquina de Oliveira (1805); Maurícia Joaquina de Oli-
veira (1829) e Maria Angélica de Freitas (1831) (NACAOB, ver também Ge-
nealogia [parcial] da família Sá e Brito: http://mitoblogos.blogspot.com.br/
2009/07/genealogia-422-familia-sa-brito.html).

300
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

possuía vínculos de parentesco entre si, ou com outros negocian-


tes. Álvaro Klafke (2006, p. 23-31), constatou que esta caracterís-
tica persistia no período posterior ao abordado por Osório. Se-
gundo ele, ao menos seis dos trinta e seis membros fundadores da
Sociedade Promotora da Indústria Rio-grandense (1832)18 eram filhos
de comerciantes listados no almanaque de 1808. Portanto, as
alianças matrimoniais e familiares, além dos laços de compadrio
que se estabeleciam em busca de posições privilegiadas na socie-
dade, permaneceram durante as primeiras décadas do século XIX
como parte das estratégias de atuação dos grandes negociantes e
demais envolvidos na atividade mercantil no Rio Grande de São
Pedro.

18
Fundada em Rio Grande no ano de 1832, tratava-se de espaço de representa-
ção da elite local no qual os associados ligados ao comércio tinham grande
influência.

301
Quadro 2: Agentes mercantis casados em Porto Alegre (1787-1838)
Cônjuge
Agente mercantil 1ª núpcia 2ª núpcia Ano

302
1. Antônio Fernandes Teixeira Inácia Rodrigues Vale 1821
(PT, São Miguel de Arcozelo, Bispado do Porto) viúva de Francisco José Afonso Alves
2. Antônio José de Oliveira Guimarães Francisca Cândida de Souza 1826
(PT, Portugal) (BR, RS, Porto Alegre)
3. Antônio José Teixeira de Macedo Francisca Antônia Viana 1812
(PT, Santiago de Figueiró, Arcebispado de Braga) viúva de Francisco José Araújo
4. Antônio Monteiro de Barros Ana Maurícia da Silva 1787
(PT, São Bartolomeu de Barqueiros, Bispado do Porto) (BR, RS, Viamão)
5. Antônio Peixoto do Prado(BR, RJ, Sé do Rio de Janeiro) Eufrásia Antônia Oliveira Rego 1803
6. Bernardino José de Sena(BR, PE, Pernambuco) Antônia Leonor de Jesus [ou Lima] 1808
viúva de Manuel Silva Gradil
7. Custódio de Almeida e Castro Leocádia Úrsula Nascimento 1817
(PT, Nossa Senhora de Oliveira, Bispado do Porto) viúva de Severino José Santos
8. Custódio Gonçalves Lopes Maria Francisca Viana Maria Gonçalves Santos 1803/
(PT, Vila do Conde, Bispado do Porto) (BR, RS, Viamão) (BR, RS, Aldeia dos Anjos) 1833
9. Domingos de Almeida Lemos Peixoto(PT, Porto) Luísa Joaquina Silveira 1790
10. Domingos José Afonso Alves Inácia Rodrigues Vale 1813
(PT, Lugar de Paravelha, Arcebispado de Braga) (BR, RS, Porto Alegre)
11. Domingos José Araújo Bastos Mariana Antônia Jesus Joaquina Pereira Azevedo ?/1822
(PT, São Miguel de Refojos de Basto, Arcebispado de Braga) Souza (BR, RS, Osório)
12. Domingos Martins Barboza Ana Joaquina Justiniana de Freitas 1825
(PT, Porto) (BR, RS, Porto Alegre)
13. Francisco de Sá e Brito Felícia Maria de Oliveira Ana Maria Joaquina de Oliveira ?/1805/
(BR, RJ, Magé) (BR, RS, Porto Alegre) 1828/1831
Maurícia Joaquina da Silva
(BR, RS, Porto Alegre)
Maria Angélica Freitas
(BR, RJ, Magé)
14. Francisco José da Cunha Teodora Felícia Conceição 1834
(BR, SC, Laguna) viúva de Hermógenes Antônio Reis
BERUTE, G. S. • Redes mercantis e familiares na Porto Alegre do século XIX

15. João Afonso Vieira de Amorim Joaquina Justiniana Freitas 1825


(PT, Porto) (BR, RJ, São José do Rio de Janeiro)
16. João Batista da Silva Pereira Maria Emília Menezes 1823
(PT, São Vitor, Braga) (BR, RS, Rio Pardo)
17. João Coelho Neves Engrácia Raquel Pereira Pinto 1806
(BR, RJ, Rio de Janeiro)
18. João José de Carvalho e Freitas Maria Bernarda Valença 1804
(PT, Arcebispado de Guimarães)
19. Joaquim José Ferreira Barboza Joana Joaquina da Silva viúva de 1838
(PT, Guimarães, Freguesia de São Lourenço) Manoel Antônio Sampaio Guimarães
20. José Antônio da Silva Neves Inocência Martins de Oliveira 1795
(PT, Porto) (BR, RS, Santo Antônio da Patrulha)
21. José da Costa Santos Maria Fortunata Perpétua Ana Joaquina da Silva 1801/1808
(BR, RJ, Rio de Janeiro) (BR, RS, Porto Alegre) (BR, RS, Triunfo)
22. José Luís de Azevedo Teresa Antônia de Azevedo 1828
(BR, MG, Santo Antônio do Vale) (BR, RS, Porto Alegre)
23. José Manuel Afonso Raquel Álvares Eufrásia 1808
(PT, Vila de Valadares, Arcebispado de Braga) (BR, RS, Porto Alegre)
24. José Ribeiro dos Santos Inácia Xavier de Jesus Ana Joaquina de Azevedo ?/1802
(PT, São Martinho, Bispado do Porto) (BR, RS, Osório)
25. Leonel Coelho da Silva (BR, RS, Triunfo) Ninfa Joaquina Araújo 1831
26. Lopo Gonçalves Bastos Francisca Teixeira Rodrigues dos 1828
(PT, São Miguel de Gêmeos de Bastos, Arcebispado de Braga) Prazeres (BR, RS, Porto Alegre)
27. Manuel José de Campos Porto Ana Rodrigues Vale 1815
(PT, São Pedro de Miraguaia, Arcebispado de Braga) (BR, RS, Porto Alegre)
28. Manuel José de Freitas Travassos Luísa Justiniana de Freitas [ou de Maurícia Cândida da Fontoura ?/1841
(BR, RJ, Rio de Janeiro) Mascarenhas] (BR, RJ, Rio de Janeiro)
29. Manuel José Vieira de Lima Maria Antônia de Jesus19 Balbina Antônia de Miranda ?/1826
(PT, Porto) (BR, RS, Porto Alegre)
30. Silvestre de Souza Teles Leocádia Maria de Jesus 1807
(BR, BA, São Pedro Velho, Salvador) (BR, RS, Porto Alegre)
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Fonte: AHCMPA. Livros de registro de casamento da Freguesia de Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1848). Banco
de dados NACAOB: extração de 13/09/2015.

19

303
AHCMPA. Autos de habilitações matrimoniais: Manuel José Vieira de Lima e Balbina Antônia de Miranda, nº 157, cx. 180 (1826).
BERUTE, G. S. • Redes mercantis e familiares na Porto Alegre do século XIX

No caso das filhas de Manoel José de Freitas Travassos, as


alianças estabelecidas com seus genros comerciantes parecem ter
sido permanentemente reforçadas pelo compadrio entre os mem-
bros do mesmo grupo familiar20 e contribuíram para a manuten-
ção dos vínculos da família com a atividade mercantil.
Nascido no Rio de Janeiro (1782), filho legítimo de Miguel
José de Freitas e Ana Rosa de Jesus, Manoel José de Freitas Tra-
vassos encontrava-se entre os que acumularam parcelas significa-
tivas das escrituras registradas no 1º Tabelionato de Porto Alegre,
entre 1808 e 1850: foram 13 escrituras no valor total equivalente a
4.977,12 libras esterlinas (BERUTE, 2011, p. 213). Em parte de-
las foi qualificado como “comendador”21. Conforme Adriano
Comissoli (2011, p. 232), além da comanda recebida em 1845, ele
também havia sido agraciado com o Hábito da Ordem de Cristo
no ano de 1815. Negociante de grosso trato matriculado na Junta
do Comércio desde 181122, em 1824 estava entre os nove agentes
mercantis nomeados como representantes das três principais pra-
ças da província (Porto Alegre, Rio Grande e Rio Pardo) na “Co-
missão do Comércio”. Esta foi encarregada de apresentar ao go-
verno provincial um projeto para fomentar setores como o comér-
cio e a indústria (CESAR, 1978, p. 13)23. Quanto a sua atuação
política, foi procurador da Câmara de Porto Alegre em 1812, onde
exerceu diversas vereanças na Câmara de Porto Alegre (FRAN-
CO; ROZANO, 2010, p. 205); deputado do Conselho Geral da
Província em 1828, 1829 e 1833, deputado da Assembleia Legisla-
tiva provincial em 1837, 1846, 1847, 1848 e 1849 (COMISSOLI,
2011, p. 273).

20
A esposa do negociante de grosso trato, Manuel José Vieira de Lima, Balbina
Antonia de Miranda, também era filha de um dos comerciantes apresentados
no Quadro 1: o comerciante do “Almanack de 1808”, Lourenço Antônio Pin-
to de Miranda.
21
APERS. 1º Transmissões e Notas, Porto Alegre, L58, fl. 9v; L60, fls. 235, 274.
22
ANRJ. Junta do Comércio, Códice 170, v.1, fl. 26v.
23
A nominata completa encontra-se em (AHRS. Assembleia Legislativa, Conselho
Geral, A9.001, Comissão de Comércio, 15 set. 1824). Agradeço ao Gabriel
Aladrén pela indicação da fonte.

304
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

O comendador Travassos era casado com dona Luísa Justi-


niana de Freitas, sobrinha do também vereador Boaventura da Costa
Torres, e com ela teve oito filhos, sete deles registrados em Porto
Alegre. Após o falecimento da esposa, por “chaga interior (sic)”
em 1820 – possivelmente relacionado ao parto da sua última filha
(Francisca, 03/08/1820) –, contraiu segundas núpcias com Mau-
rícia Cândida da Fontoura, em 184124. Eles mantinham uma união
consensual anterior a 1834, ano do nascimento do primeiro filho
do casal (Tristão), que assim como Benjamim (1836) e Amália (1838)
foram batizados como filhos naturais. Tristão, Amália e Margarida,
nascida em 1840 e batizada no mesmo dia do casamento dos seus
pais (15/01/1841), foram legitimados na ocasião (NACAOB). Não
localizei o registro, mas Benjamim deve ter falecido neste interva-
lo, pois não foi legitimado com seus irmãos. Adriano Comissoli
(2011, p. 299-300) constatou que o casal teve oito filhos.
Segundo o mesmo autor (COMISSOLI, 2011, p. 300),
Manoel José de Freitas Travassos reconheceu ainda um filho na-
tural que teve com dona Bernardina Cândida dos Anjos, chamado
João de Freitas Travassos25 que foi plenamente incorporado à famí-
lia, sendo inclusive batizado pelo seu avô paterno e, posterior-
mente, nomeado como um dos testamenteiros de seu próprio pai26.

24
Em quatro escrituras registradas entre os anos de 1843 e 1850, Maurícia Cân-
dida da Fontoura consta como “sua mulher” (APERS. 1º Transmissões e Notas,
Porto Alegre, L52, fl. 231; L53, fl. 26v; L58, fl. 9v; L60, fl. 274).
25
Travassos é um dos comerciantes selecionados com a prole mais numerosa,
conforme se observa no Quadro 1: oito filhos de cada casamento, além do
filho teve a filiação reconhecida (COMISSOLI, 2011, p. 300). Na base de da-
dos (NACAOB, registro 25.313) consta que em 10/08/1829, Bernardina Cân-
dida dos Anjos batizou um filho legítimo (Albino), nascido em 27/06/1829,
cujo nome do pai não foi anotado!
26
Comissoli (2011, p. 272; 299-302), afirma que o testamento foi feito em 1848 e
o inventário aberto em 1851, mas encerrado somente em 1877 (APERS. Inven-
tário de Manuel José de Freitas Travassos, 2° COPOA, processo 1809ª, maço
86, ano 1877). Indicando que não houve “consenso entre os herdeiros após a
morte do líder do grupo parental” (p. 301). O autor destaca que o testamento
do comendador Manoel José de Freitas Travassos é extremamente detalhado e
cuidadoso no que diz respeito à administração e transmissão dos bens da famí-
lia, que incluía também a execução do inventário de seu próprio pai, Miguel

305
BERUTE, G. S. • Redes mercantis e familiares na Porto Alegre do século XIX

A este respeito, Denize Freitas (2014) chama atenção para o fato


do comendador Travassos ter utilizado toda sua influência e pres-
tígio de “homem bom” (COMISSOLI, 2008) para obrigar o páro-
co a alterar o assento original de seu filho, que passou a constar
como legítimo, apesar das evidências contrárias e em flagrante
desobediência ao previsto nas normas que orientavam a realiza-
ção dos assentos de batismo (BASSANEZI, 2009).
O primeiro filho homem do comendador, Manoel José de
Freitas Travassos Filho, nasceu no ano de 1812 e teve uma carreira
jurídica bem sucedida. Não foi localizado o seu assento de casa-
mento, mas em uma escritura referende à venda que fez junto ao
seu pai27, de parte de um sobrado na rua da Graça, em Porto Ale-
gre, para “Antônio Gonçalves Carneiro Negociante desta Praça”,
consta como casado com dona Francisca Machado de Freitas (com
quem teve ao menos dois filhos registrados na capital). No mes-
mo documento também foi informado que, naquela ocasião
(1840), “o Doutor Manuel José de Freitas Travassos Filho, [era o]
atual Juiz de Direito da Comarca de Rio Grande”28.
Segundo Franco e Rozano (2010, p. 205)29, Travassos Filho
diplomou-se em Direito na Faculdade de São Paulo em 1834 e
também foi juiz em Rio Pardo e Porto Alegre. Foi deputado pro-

de Freitas Travassos. “O fluxo de bens, os empréstimos e auxílios concedidos


aos filhos e genros foram registrados de modo tão cuidadoso como os negócios
e sociedades estabelecidos com outrem” (p. 299). Ainda que tenha respeitado
às normas de divisão igualitária. Também se preocupou em atender as deman-
das individuais de sua extensa prole.
27
No testamento/inventário de Manuel José de Freitas Travassos constam indi-
cações de outros negócios existentes entre pai e filho: “Com o filho Manuel
havia muitos acertos a se realizar resultantes do uso de propriedades rurais,
dentre elas 28 braças de terra numa chácara nas quais o filho construiu uma
casa (...). O comendador devia ainda ao filho um valor referente a aluguéis de
casas e para tanto enviava-lhe “várias encomendas que me tem pedido cons-
tante dos meus assentos” além de “pedra da minha pedreira que por nossa
conta vendeu e recebeu” (COMISSOLI, 2011, p. 300).
28
APERS. 1º Transmissões e Notas, Porto Alegre, L51, fl. 141.
29
Informações complementares foram encontradas na nota biográfica publicada
no sítio do Supremo Tribunal Federal do Brasil, ver http://www.stf.jus.br/por-
tal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stj&id=323.

306
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

vincial em diversas legislaturas, entre 1846-185730; foi eleito, mas


não assumiu a vaga de deputado geral da 9ª legislatura (1853 a
1856). Foi Procurador-Fiscal da Tesouraria de Fazenda da pro-
víncia do Rio Grande do Sul em 1835, Chefe de Polícia da pro-
víncia em 1837 e 1844. Foi nomeado 3º Vice-Presidente da pro-
víncia do Rio Grande do Sul em 1841. A partir de 1859, estabele-
ceu-se na Corte do Rio de Janeiro, onde foi nomeado como de-
sembargador da Relação do Rio de Janeiro, 1º Vice-Presidente
(1870) e Presidente (1873-74) da província do Rio de Janeiro, in-
tegrando mais tarde o Supremo Tribunal de Justiça (1878-79) e
recebendo o título honorário de Conselheiro do Império (1875).
Foi agraciado também com o hábito da Ordem da Rosa; hábito
do Cruzeiro (1841); comenda de Cristo (1845); foro de Moço da
Imperial Câmara (1845); Guarda-Roupa (1861) e Veador (1878).
Por fim, foi Provedor Santa Casa da Misericórdia do Rio de Ja-
neiro, nos biênios 1877-1878 e 1878-1879, e Provedor do Asilo de
Santa Leopoldina, em Niterói. Travassos Filho foi longevo e fale-
ceu em Niterói no ano de 1885, aos setenta e três anos de idade.
Ana Joaquina Justiniana de Freitas, nascida em 1810, teve seis
filhos nascidos até 1836, do seu casamento com o negociante de
grosso trato Domingos Martins Barboza. No processo de habili-
tação matrimonial do casal, o nubente declarou que saiu “da sua
Pátria” para o Rio de Janeiro menor de 14 anos, seguindo poste-
riormente para a cidade de Porto Alegre31.
Nascida em vinte e sete de junho de 1808 no Rio de Janei-
ro, Joaquina Justiniana de Freitas era a filha mais velha do comen-
dador e teve ao menos dois filhos com o negociante João Afonso
Vieira de Amorim que foram registrados na capital. Na certidão
do seu assento de batismo (18/07/1808), inclusa na sua habilita-
ção matrimonial, consta que foi inicialmente registrada como “fi-

30
Segundo Comissoli (2011, p. 273), Manuel José de Freitas Travassos Filho foi
deputado provincial em 1850, 1851, 1854, 1855, 1856 e 1857.
31
AHCMPA. Autos de habilitações matrimoniais: Domingos Martins Barboza e
Ana Joaquina Justiniana de Freitas, nº 25, cx. 172 (1825).

307
BERUTE, G. S. • Redes mercantis e familiares na Porto Alegre do século XIX

lha natural de Manuel José de Freitas Travassos e Luísa Justinia-


na de Fretes, e que mais por estarem já recebidos queriam legiti-
mar [e aparentemente conseguiram] a dita sua filha Joaquina”32.
Ou seja, talvez aqui se tenha um indício que a ação relatada por
Denize Freitas (2013) já havia sido acionada pelo comendador
Travassos.
Outras filhas de Manoel José de Freitas Travassos que se
casaram e tiveram filhos foram: Maria Justiniana de Freitas, casada
com Antônio José da Costa Barboza em 1832 (três filhos); Luiza
Justiniana de Freitas, que se casou em 1827 com Manoel Antônio
da Rocha Farias e tiveram duas crianças batizadas na capital; e
um menino de Donaciana Justiniana de Freitas Vale, casada com
Manuel Gomes Coelho Vale (1835).
Sublinha-se a variação da grafia dos nomes, principalmen-
te das mulheres, nos registros eclesiásticos da família Freitas Tra-
vassos. Uma das filhas, Luísa Justiniana de Freitas, por exemplo,
também aparece em alguns registros como “Luísa Justiniana de
Freitas Rocha Farias”. No seu próprio assento de matrimônio, teve
o nome grafado de forma exatamente igual ao da sua mãe (“Luísa
Justiniana de Freitas”), que também aparece em algumas ocasiões
como “Luísa Justiniana de Mascarenhas”. No conjunto dos assen-
tos observa-se que, na grafia dos nomes das mulheres, os sobreno-
mes da família de origem alternavam-se com o acréscimo eventual
dos sobrenomes de seus cônjuges, mas sem regularidade33. Desta-

32
Meu grifo. AHCMPA. Autos de habilitações matrimoniais: João Afonso Vieira
de Amorim e Joaquina Justiniana de Freitas, nº 109, cx. 174 (1825).
33
Não se trata de uma característica peculiar das fontes eclesiásticas, pois é um
problema comum enfrentado pelos pesquisadores que adotam a metodologia
onomástica em suas investigações sobre populações luso-brasileiras. A grande
presença de homônimos e a ausência de uma regra de transmissão de nome
contribuíam para a existência de inversões e alterações de sobrenomes. Em
especial entre as mulheres, era frequente a ausência dos sobrenomes de família
e a repetições de nomes com evocações religiosas (tais como, “de Jesus” ou
“do Espírito Santo”) (SCOTT; SCOTT, 2001). Para diferentes perspectivas a
respeito das práticas de nomeação, ver; WEIMER, 2008, p. 237-332; HAMAIS-
TER, 2006, p. 78-141; CAMILO, 2016.

308
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

ca-se, especialmente, a repetição da partícula “Justiniana”, pre-


sente no nome de sua esposa e das filhas do casal.
Mesmo entre os homens também ocorriam variações. De
acordo com Adriano Comissoli (2011, p. 272-273), após a morte
de seu pai, Manoel José de Freitas Travassos abandonou a partí-
cula “Filho” de seu nome, tornando-se herdeiro não somente dos
bens materiais, mas também da herança política do falecido Co-
mendador Travassos. Nas escrituras e nos registros eclesiásticos
consultados, pude perceber também certa variação e confusão
entre os nomes de pai e filho.
No que diz respeito às relações de compadrio, quando ob-
servados os assentos envolvendo membros da família 34do casal
Freitas Travassos e Luísa Justiniana, chama a atenção que prati-
camente todas as crianças eram afilhadas de suas tias maternas e
de seu avô ou tios35.
Além disso, parece razoável considerar que a transmissão
de parcela do nome da mãe para as filhas, ou o batismo de netos
com o nome do avô, também representava uma homenagem e
um reforço dos laços afetivos (WEIMER, 2008; NADALIN,
2012). Portanto, poderia tratar-se não apenas uma estratégia para
beneficiar-se com o prestígio de um familiar destacado na socie-
dade rio-grandense em busca de ascensão social. Acrescenta-se,
neste sentido, que dona Luísa Justiniana faleceu quando as filhas
ainda eram pequenas e que elas casaram-se jovens.
Os negociantes e concunhados Domingos Martins Bar-
boza e João Afonso Vieira de Amorim também eram compa-
dres, uma vez que João e Joaquina foram padrinhos de “João”,
nascido em 1830, filho de Domingos e Ana Joaquina. Nota-se
que as relações familiares e de negócios se entrelaçavam neste

34
Travassos Filho e Vieira Amorim tiveram filhos batizados como Manuel e que
tiveram o comendador como padrinho (NACAOB).
35
No caso do primeiro filho de Ana Joaquina e Domingos Martins, por exem-
plo, a criança recebeu o mesmo nome de seu pai e teve como padrinhos uma
de suas tias, Donaciana, e Miguel José de Freitas, seu bisavô materno.

309
BERUTE, G. S. • Redes mercantis e familiares na Porto Alegre do século XIX

caso36. Em 1830, por exemplo, Domingos Martins Barboza re-


gistrou a venda que fez para seu compadre de uma casa térrea
na Rua do Paraíso em Porto Alegre, pela quantia de 243,3 li-
bras37.
Foi possível constatar que a relação entre os dois negocian-
tes era mais antiga. Domingos Martins Barboza foi uma das tes-
temunhas apresentadas por João Afonso Vieira de Amorim no
processo de justificação de solteiro, incluso na habilitação matri-
monial, e “Disse que conhecia perfeitamente o Justificante João Afonso
Vieira de Amorim desde pequeno, e de [Vista os seus Pais] (...) natural da
Pátria nela declarada, donde saiu rapaz cá para o Brasil, por onde tem
vivido, e há anos nesta Cidade de caixeiro do Capitão Francisco Gonçal-
ves Carneiro [negociante de grosso trato de Porto Alegre]38, vivendo
agora de seu negócio (...)”39. Além de apresentar elementos que cor-
roboram uma característica conhecida da carreira mercantil (o
início prematuro na condição de caixeiro de um comerciante já
estabelecido), o excerto vem reforçar a suspeita que o casamento
destes dois agentes mercantis com as irmãs Freitas Travassos, não
se dava totalmente por acaso e atendia aos interesses deles em se
ligar a uma importante família da região e de seu sogro, preocu-
pado com a ampliação e sucessão dos negócios da família no tra-
to mercantil.
Ainda a respeito dos apadrinhamentos, observando todos
os negociantes e comerciantes selecionados, constata-se que al-

36
Comissoli (2011: 301-302) registra no seu testamento, Freitas Travassos desti-
nou para o casal de sua filha Ana Joaquina de Freitas e Domingos Martins
Barbosa “moradas de casa e um valor em dinheiro que serviu para comprar
um brigue. Ainda assim, constou haver pendente um “ajuste de contas particular”
entre genro e sogro além de um abono pago por uma letra de que o comendador era
fiador ao marido da filha” [meus grifos].
37
APERS. 1º Transmissões e Notas , Porto Alegre, L49, fl. 134.
38
Matriculado na Junta do Comércio (29/01/1816): ANRJ. Junta do Comércio,
Códice 171, Volume 1, fl. 160v; ANRJ. Junta do Comércio. Pedidos de matrículas
de comerciantes, Cx. 393, pct 02.
39
AHCMPA. Autos de habilitações matrimoniais: João Afonso Vieira de Amorim e
Joaquina Justiniana de Freitas, nº 109, cx. 174 (1825).

310
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

guns acumularam um grande número de afilhados (Quadro 1),


inclusive filhos de seus pares. Contando com os seus próprios
netos, Manuel José de Freitas Travassos apadrinhou quarenta e
três crianças durante o período selecionado e era um dos seis co-
merciantes com mais de trinta afilhados (Quadro 3).

Quadro 3: Padrinhos comerciantes e seus afilhados (1772-1839)

Faixa de afilhados # Padrinhos # Afilhados


1 4 4
2 4 8
3 4 12
4 4 16
5 1 5
6-10 16 126
11-30 14 246
31-50 6 244
Total 53 661
Fontes: AHCMPA. Livros de registro de batismo da Freguesia de Nossa Senhora
Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1839). Banco de dados NACAOB: extra-
ção de 13/09/2015.

Outros que também apadrinharam um grande número de


crianças foram os irmãos Antônio José de Oliveira Guimarães
(50) e João José de Oliveira Guimarães (35), ambos com o título
de Guarda-mor, e o capitão e comendador José Antônio de Azeve-
do, com trinta e nove afilhados.
Entre os afilhados do guarda-mor Antônio José de Oliveira
Guimarães, chama a atenção os casos em que apadrinhou mais de
uma criança da mesma família. Batizou três filhos do casal Do-
mingos Gonçalves do Espírito Santo e Laureana Rosa; e duas
filhas e um filho de Joaquim Lopes Barros (pai) e Francisca Perei-
ra de Souza. Também foi padrinho de “José”, um dos oito filhos

311
BERUTE, G. S. • Redes mercantis e familiares na Porto Alegre do século XIX

do também comerciante Francisco de Sá e Brito com Ana Joaqui-


na de Oliveira. Comerciante de intensa e diversificada atuação no
comércio rio-grandense, o guarda-mor Antônio José estava en-
volvido com o comércio de mercadorias como algodão de Minas,
algodão americano, peças de lona da Rússia, vinho, aguardente
do Reino e louça da Índia; comércio de couros; tinha procurado-
res nomeados em diferentes praças: RS, SC, RJ, BA, PE e Portu-
gal (15). No seu inventário forma declarados bens no total de
12.485,66 libras esterlinas que incluía casas térreas, sobrados, ter-
renos urbanos, parte de um armazém e uma chácara, escravos
(41) e uma lista de 66 dívidas ativas40.
O guarda-mor João José de Oliveira Guimarães, por sua vez,
era irmão e compadre de Antônio José de Oliveira Guimarães e
batizou um dos filhos deste. Também batizou mais de uma crian-
ça dos casais Antônio José de Oliveira e Perpétua Teresa de Jesus
(ou de São José), e Antônio José Pereira e Inácia Joaquina do
Nascimento.
Quanto ao comendador José Antônio de Azevedo, não se ob-
servou batismos recorrentes na mesma família, mas foi o agente
mercantil selecionado que mais estabeleceu vínculos de compa-
drio com seus pares: Antônio José de Almeida Bastos, Antônio
Peixoto do Prado, João José de Carvalho e Freitas e João Tomás
de Menezes, todos listados no “Almanack de 1808”, eram seus
compadres, corroborando a mencionada constatação de Helen
Osório a respeito dos vínculos de parentesco entre os comercian-
tes nele relacionados. Zeferino Vieira Rodrigues destaca-se por ter
entre seus doze afilhados, quatro expostos e quatro crianças ilegí-
timas (naturais), três das quais eram escravas41.

40
APERS. Inventário e testamento anexo de Antônio José de Oliveira Guimarães,
1º COPA, processo nº 1.013, Ano: 1830; APERS. 1º Transmissões e Notas. Porto
Alegre, Livro 32-60 (1808-1850). Ver também, BERUTE, 2011.
41
Sobre os expostos em Porto Alegre, ver SILVA, 2014.

312
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Considerações finais

Embora a documentação relativa às atividades econômi-


cas e comerciais dos agentes mercantis atuantes em Porto Alegre
venha sendo analisada há mais tempo e foi objeto de investigação
anterior, o cruzamento destas fontes com os registros eclesiásti-
cos ainda precisa ser aprofundado42. Ao longo desta exposição
procurei apontar algumas possibilidades de análise e refletir a res-
peito das estreitas vinculações entre a atividade mercantil e as
relações familiares.
A abordagem a partir da família do comendador Travassos
permitiu observar que os vínculos de parentesco estabelecidos
eram permanentemente reelaborados por meio do compadrio entre
os membros da família. O casamento de duas das filhas e uma
irmã do negociante Manoel José de Freitas Travassos com agen-
tes mercantis atuantes na praça de Porto Alegre, parece compor
um estratégia de ascensão social e de sucessão da fortuna da fa-
mília e de manutenção dos vínculos com o trato mercantil, da
qual fazia parte ainda o encaminhamento do seu filho mais velho
para uma carreira jurídica e política bastante exitosa.
Quanto aos aspectos metodológicos, foi possível avaliar
algumas das dificuldades impostas pela ausência de regras de trans-
missão de nomes, como é bem conhecido para as populações luso-
brasileiras. Apesar disso, fica evidenciado que o cruzamento en-
tre estes registros pode se constituir em um instrumento funda-
mental para a identificação de agentes mercantis e suas relações
familiares.
Ainda é necessário avançar na identificação de laços mais
amplos entre os agentes mercantis identificados com outros gru-
pos sociais, tais como os grandes proprietários de terras ou mem-
bros da burocracia governamental. O avanço no cadastramento
dos registros eclesiásticos da freguesia da Madre de Deus e a in-

42
Para uma contribuição recente a respeito da utilização destes dois tipos de
fontes para a análise de grupos mercantis, ver SAMPAIO, 2014, p. 187-208.

313
BERUTE, G. S. • Redes mercantis e familiares na Porto Alegre do século XIX

corporação de outras fontes, como inventários post-mortem e testa-


mentos, processos de cobranças de dívidas, entre outros, serão fun-
damentais para o esclarecimento deste e de outros aspectos refe-
rentes às estratégias de ascensão social e econômica dos agentes
mercantis da capital do Rio Grande de São Pedro nos oitocentos.

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Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

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318
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Vozes da Ordem: proprietários,


trabalhadores livres e escravos
na fronteira meridional do Brasil
(Alegrete 1827-1850)1
Luís Augusto Farinatti

O território que hoje forma a metade oeste do Rio Grande


do Sul foi conquistado e ocupado de modo estável, pelos luso-
brasileiros, nas primeiras décadas do século XIX. Aquela região
converteu-se em palco de uma grande expansão pecuária que abas-
tecia a produção charqueadora do leste da província. Esta, como
é sabido, conectava-se aos mercados das regiões de plantations,
através de portos como o do Rio de Janeiro, Recife e Salvador,
além de comercializar couro com portos europeus e da América
do Norte. A grande criação de gado desenvolveu-se, especialmen-
te, em uma ampla zona fronteiriça que ia desde o rio Ibicuí, até os
rios Arapey ou mesmo além, já dentro do que viria a ser o territó-
rio do Estado Oriental do Uruguai.
Em trabalho anterior, realizei um estudo sobre a estrutura
agrária da região, bem como sobre as estratégias de sua elite eco-
nômica (FARINATTI, 2010). Na esteira de obras de história agrá-
ria do sudeste brasileiro e do Prata, além de outras obras sobre o
Rio Grande do Sul (ZARTH, 1997 e 2002; OSÓRIO, 2007), pro-
curei me valer de uma metodologia serial e me centrei em fontes
massivas e reiterativas, como os inventários post mortem e as escri-

1
Este trabalho foi apresentado como comunicação no 6º Encontro Escravidão e
Liberdade no Brasil Meridional (Florianópolis, 2013) e constou nos anais ele-
trônicos do mesmo evento.

319
FARINATTI, L. A. • Vozes da Ordem: proprietários, trabalhadores livres e
escravos na fronteira meridional do Brasil (Alegrete 1827-1850)

turas públicas. Porém, procurei também agregar técnicas inspira-


das na micro-história italiana, visando problematizar as conclu-
sões a que havia chegado a partir de categorias homogêneas e,
assim, alcançar uma visão mais complexa de meu objeto de estu-
do (LEVI, 2000; ESPADA LIMA, 2006).
As conclusões apontaram para um universo agrário dife-
rente dos estereótipos persistentes que viam naqueles campos uma
rígida dicotomia entre grandes estancieiros x peões livres proletariza-
dos. Ao lado de uma pequena elite de grandes senhores de terras e
gado, havia uma série de médios e pequenos produtores agrários,
para os quais o trabalho familiar era essencial, que levavam adi-
ante suas unidades produtivas nem sempre detendo a proprieda-
de jurídica da terra. Por outro lado, a escravidão mostrava-se cen-
tral na reprodução da grande pecuária, com escravos campeiros
dividindo as tarefas de costeio do gado com peões livres. Mesmo
nos estabelecimentos menores, o trabalho cativo mostrava-se ex-
tremamente difundido.
Esse primeiro estudo forneceu um modelo de uma das for-
mas de estratificação social pela qual se organizava aquela socieda-
de (FARINATTI, 2010). A partir dele, tenho procurado agregar
novas fontes, indagando tanto a lógica de sua produção quanto
outros dois fatores. De um lado, essas fontes expressam visões so-
bre outros modos de hierarquização social presentes naquele mun-
do. É o caso, por exemplo, das formas como são grifados os nomes
de pais e padrinhos nos assentos de batismo. Apelativos como
“dona”, “coronel”, “capitão” ou referências à cor ou classificação
social dos sujeitos “preto, pardo, índio, forro, etc” não precisariam
constar daqueles documentos, segundo as determinações eclesiás-
ticas. O fato de que, muitas vezes, eles acompanham o nome das
pessoas nos registros, dando notícia sobre formas de perceber e pro-
duzir hierarquias (FRAGOSO, 2009). Esse trabalho com os regis-
tros paroquiais está sendo realizado no momento e seus resultados
parciais têm sido publicados em eventos e revistas científicas.
De outra parte, para além das lógicas expressas na própria
fonte, também tenho buscado alimentar um banco de dados no-

320
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

minal, que permite o cruzamento de registros diversos sobre o mes-


mo sujeito, de modo a realizar estudos de trajetórias e contextuali-
zações sociais mais sólidas, quando se trata de analisar casos com
grande potencial analítico, como os presentes em alguns proces-
sos-crime, inventários post mortem, processos de tutela, etc. Trata-se
de um experimento de longo prazo baseado na ampliação de fon-
tes e na reiteração de testes e experimentação tendo por base um
espaço territorial circunscrito. No caso os espaços (nem sempre
coincidentes) da capela e do município de Alegrete, especialmente
na primeira metade do século XIX, no extremo oeste da província
do Rio Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai e a Argentina.
Neste ponto da pesquisa, também alargo a investigação para
as correspondências de autoridades civis e militares. O que trago
para este evento é um primeiro exercício de reflexão sobre um
destes documentos em específico. Trata-se de uma correspondên-
cia enviada pelo juiz de paz de um distrito de Alegrete, Manoel
Alves dos Santos, provavelmente enviada ao Juiz de Direito da
Comarca de Missões, em 1834. Ao tratar de explicar sua dificul-
dade em recrutar 30 homens para o patrulhamento da fronteira
com o Uruguai, o juiz de paz acaba por expressar toda uma for-
ma de ver a estratificação social que vale a pena explorar. Este
trabalho consiste em uma primeira reflexão sobre as ideias ex-
pressas neste documento. Todavia, antes de nos determos neste
objeto específico, é necessária uma rápida contextualização dos
movimentos que iam gerando aquela sociedade de fronteira.

Nos confins

Ao longo do século XVIII, as áreas ao sul do rio Ibicuí


faziam parte das estâncias dos Povos das Missões Guaraníticas
que abrigavam postos, currais, casas de trabalhadores, capelas e
caminhos. Não se tratava apenas de arrebanhar gado bravio, mas
de verdadeiras atividades de pastoreio levadas a cabo pelos missio-
neiros (MORAES, 2006). Foi somente nas últimas décadas do
Setecentos, após a passagem para uma administração laica dos

321
FARINATTI, L. A. • Vozes da Ordem: proprietários, trabalhadores livres e
escravos na fronteira meridional do Brasil (Alegrete 1827-1850)

Povos, que houve uma desorganização dessa produção, permitin-


do o crescimento importante da preia de gado, em busca do cou-
ro, efetuada por grupos volantes de luso-brasileiros, hispano-pla-
tinos, indígenas, escravos e mestiços. O mais decidido avanço bé-
lico e migratório dos súditos de Portugal sobre aquele território
ocorreu nas primeiras décadas do Oitocentos, no contexto das
intervenções portuguesas junto aos conflitos da era das indepen-
dências no antigo Vice-Reinado do Prata. Esse movimento não
se deu sobre uma terra vazia. Grupos de guaranis missioneiros se
reposicionavam após os abalos das guerras reiteradas e da insta-
bilidade institucional que se instalou. Ao mesmo tempo, charru-
as e minuanos seguiam existindo ao sul do território, e também
negociavam alianças ou entravam em atrito com os diferentes gru-
pos em disputa. Migrantes de fala espanhola, vindos de diferen-
tes províncias do espaço platino, mas especialmente da Banda
Oriental do Uruguai, também se faziam presentes.
Foi naquela região que os luso-brasileiros ergueram uma
capela para servir de referência religiosa e política aos conquista-
dores. Ela foi queimada em um ataque das forças artiguistas e,
alguns anos depois, em 1817, reerguida em local próximo, sob o
nome de Nossa Senhora da Conceição Aparecida de Alegrete. A
capela fazia o atendimento espiritual dos moradores de um vasto
território, ocupando boa parte do que é hoje o quadrante sudoes-
te do estado do Rio Grande do Sul. Uma análise das pessoas ali
batizadas, e dos pais desses batizandos, ajuda a visualizar a varie-
dade daquela população.
Entre o primeiro batismo registrado, em 1816 e 1835, ano
de início da Revolução Farroupilha, foram realizados 2.628 as-
sentos de batismo nos livros da capela de Alegrete. Nesse contin-
gente, 81% dos batizandos eram livres, 1% libertos e 18% eram
escravos. Cerca de 36% dos cativos batizados eram africanos che-
gados a partir do tráfico, enquanto que o restante era de crioulos,
quase todos crianças. Quanto à atribuição de cor da pele feita
pelos pároco, entre os batizandos livres, 45% foram considerados
“índios” ou “chinas”, 38% foram apontados como “brancos”, 11%

322
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

sem referência de cor e os outros 5 % se dividiam entre “pardos”,


“pretos” e “mestiços”. Uma maioria de população “não-branca”,
portanto, com marcante presença de índios, sendo que a maior
parte foi apontado expressamente como “guarani” ou como na-
tural dos Povos das Missões.
Essas atribuições de cor apontam para uma população et-
nicamente variada e encontram correspondência na diversidade
de locais de nascimento e movimentos migratórios que os próprios
registros permitem perceber. Na maioria das vezes, os padres ano-
tavam o local de nascimento do pai e da mãe do batizando, o que
possibilita uma reconstrução abrangente daqueles fatores. Havia
gente vinda do Rio Grande de São Pedro em um movimento que
continuou desde o início do século até as décadas de 1820 e 1830.
Daquela região migraram muitos homens e mulheres, por vezes
famílias inteiras. Havia também pessoas, sobretudo homens, de
outras regiões americanas de fala portuguesa, com destaque para a
capitania, depois província de São Paulo. Entre toda essa gente, a
maioria foi considerada como “branca” pelos párocos da capela de
Alegrete. Mas também estavam lá pardos e pretos livres.
Porém, existia outra frente de povoamento, englobando
guaranis missioneiros nascidos nos diversos Povos, mas principal-
mente nos de São Borja e Japejú. Não por acaso, as estâncias da-
queles Povos ficavam nas terras onde os portugueses ergueram a
capela. É possível pensar que as práticas tradicionais de ocupação
produtiva daquele território tenham influenciado nos movimentos
e na busca de sobrevivência dessas populações. Também se faziam
presentes migrantes das áreas platinas de fala hispânica, especial-
mente da Banda Oriental do Uruguai, ainda que correntinos e en-
trerrianos também aparecessem por ali. Outros documentos, como
as correspondências de autoridades civis e militares, informam a
presença de charruas e minuanos percorrendo aqueles terras e, por
vezes, entrando em conflito com os novos povoadores.
Dentro desse contexto de intensa movimentação de povos,
algo mais mudava profundamente na região. As antigas formas
de relação com os meios de produção davam lugar a outras. Du-

323
FARINATTI, L. A. • Vozes da Ordem: proprietários, trabalhadores livres e
escravos na fronteira meridional do Brasil (Alegrete 1827-1850)

rante muito tempo, construiu-se ali uma paisagem pastoril missio-


neira2, baseada na propriedade coletiva e na redistribuição do gado
entre a vasta área sob administração das Missões, ainda que a
especialização pecuária fosse mais forte nos povos meridionais
que, depois, formariam o Departamento de Japejú.3 Como já foi
dito, no final do século XVIII, ampliaram-se as atividades de ban-
dos de changadores e contrabandistas que preavam o gado alçado
ou selvagem para obtenção do couro, ou de grandes arrebanha-
mentos, por vezes em flagrantes saques às estâncias missioneiras,
para compor o patrimônio dos fazendeiros luso-brasileiros ou his-
pano-platinos. Nesse mesmo período e, com mais vigor, nas pri-
meiras décadas do século XIX, com a instalação dos conquista-
dores luso-brasileiros, outras formas de relação com a terra e com
o gado foram ganhando espaço e buscando institucionalidade. A
história agrária desse período é a história da construção e solidifi-
cação da propriedade privada da terra e da produção agrária em
unidades produtivas estáveis, na região. Isso ocorreu de par com
a presença de outros tipos de relação com a terra e também na
reiteração de formas tradicionais, inspiradas nos antigos modos
de uso dos meios de produção e das práticas de trabalho.
Tudo isso se deu em meio a uma enorme instabilidade ins-
titucional. Diferentes projetos de soberania, alternativos e, por
vezes, sobrepostos, disputavam aquelas terras e a lealdade daque-
les homens: Império Português, Império Espanhol, Império do
Brasil, Estado Oriental do Uruguai, República Riograndense, di-
ferentes tipos de federação ou confederação baseados em grupos
das antigas províncias do Rio da Prata. O município de Alegrete
fora criado em 1831, no coração das áreas conquistadas décadas
antes. Desmembrara-se do de Cachoeira, localizado bem mais a
leste. Sua câmara de vereadores, porém, somente foi instalada no
ano de 1834. Os juízes de paz, porém, estavam ali desde fins da

2
Conceito desenvolvido em MORAES, 2006.
3
Povos situados às margens do rio Uruguai, os mais meridionais de todo o comple-
xo missioneiro: eram os de Japejú, San Francisco de Borja, La Cruz, Santo Tomé.

324
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

década de 1820. A correspondência dessas autoridades locais tem


um rico potencial para a investigação, tanto da visão das elites
locais sobre a sociedade que ali se formava, quando de suas rela-
ções com o Império do Brasil.

Proprietários, homens de sua fiança


e indivíduos volantes

Em uma correspondência datada de 29 de abril de 1834, o


Juiz de Paz do distrito de Caiboaté, Manoel Alves dos Santos,
escreveu uma resposta a uma demanda de outra autoridade que é
difícil saber ao certo de quem se tratava, se do Juiz de Direito da
Comarca de Missões, Francisco de Sá Brito, ou de uma autorida-
de provincial. Não tenho certeza das atividades a que se dedicava
Manoel Alves dos Santos em 1834. Contudo, na década seguinte,
estava instalado como comerciante e fazendeiro no município.
Por uma ação judicial do final daquele decênio, também sabemos
que, no período farroupilha, ele arrendara uma fazenda que os
revoltosos tomaram a um proprietário legalista. Para tanto, con-
tara com a intercessão do general republicano David Canabarro
(FARINATTI, 2010).
Na correspondência em estudo, o juiz de paz busca expli-
car as razões pelas quais tem encontrado dificuldades em reunir 30
homens para a patrulha da fronteira. Ao fazê-lo, contudo, o juiz foi
além, e expressou toda uma concepção de hierarquização social e
dos problemas que julgava atingir aquele município. Seu estudo
permite acessar o modo como um notável local entendia as dife-
renças sociais. Não estou afirmando, com isso, que a análise deste
documento nos permite afirmar como a sociedade se via, nem mes-
mo como era a visão toda uma classe ou grupo. Esse tipo de homo-
geneidade não pode ser deduzida do discurso emitido por um úni-
co indivíduo. Por outro lado, também é certo que Manoel Alves
dos Santos não era um estranho àquele lugar e, ainda que tenha
opiniões e formulações próprias, os conceitos empregados com ele
faziam parte de um léxico comum e corrente.

325
FARINATTI, L. A. • Vozes da Ordem: proprietários, trabalhadores livres e
escravos na fronteira meridional do Brasil (Alegrete 1827-1850)

O Juiz de Paz principia por informar que realizou as dili-


gências solicitadas, enviando ofícios aos inspetores de quarteirão,
para que o coadjuvassem no serviço de conseguir os 30 homens
em armas para o cuidado da fronteira com o Estado Oriental do
Uruguai. Contudo, revela que não logrou seu intento. Diz que
isso ocorreu em virtude “das circunstâncias deste Distrito”, que
constituem um “estado critico dos moradores sem a menor segu-
rança Individual e de propriedade e mui principalmente em cri-
zes taes de reunião.” Aqui aparecem cinco elementos, relaciona-
dos, e que consistem em eixos estruturantes do texto. Refere aos
moradores, que devem ter sua segurança individual e de propriedade
preservadas, o que, como veremos, é entendido como uma obriga-
ção do Estado, sendo este o quarto elemento, oculto, na frase. Como
quinto aspecto, finalmente, é introduzido aquele que deveria ser
o objeto da correspondência, as reuniões (convocações, recruta-
mento) de gente para o serviço policial ou bélico. O juiz aponta
que é justamente nos momentos em que se fazem as ditas reuniões
que o problema da insegurança aumenta. Retomarei esses ele-
mentos ao longo da análise.
Manoel Alves dos Santos avisa, então, que passará a rela-
tar tais condições, para que a autoridade a quem se dirige possa
avaliar, com conhecimento, as dificuldades que ali ocorrem.
A extenção de terreno fronteiriço com os Est.os vezinhos Rep-
bublica Oriental, e de Correntes se acha descuberto sem menor
resp.to m.mo ao Decoro Nacional, lugares estes onde abundão
Individuos de toda a clace volantes, e sem domicilio certo as
moradas são todas distantes de hua, duas, e três léguas, estas
moradas são dos Fazendr.os q. a maior p.te deles proprietários
achão-se em suas casas com suas enumerozas Fam.as; Escra-
vos, Piaens, da q.lor clace volantes q. a urgência do costeio das
Fazendas permite atraillos e sem eles nada se pode fazer...4

Nesta passagem, Manoel Alves dos Santos deixa claro a


quem ele se referiu quando usou o termo “moradores” daquela

4
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Fundo Justiça. Alegrete,
Juiz de Paz, 1834.

326
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

fronteira, a gente que deveria receber a atenção e proteção do


Império. São “fazendeiros”, a maior parte deles proprietários, que
se acham nas fazendas com suas numerosas famílias, escravos e
peões. Ao restringir essa verdadeira cidadania aos fazendeiros, o
juiz de paz não a está restringindo àqueles que possuíam os meios
de produção, em contraposição a uma massa de despossuídos,
como pode parecer. Ao contrário, na sociedade complexa da épo-
ca, sua restrição é muito mais forte. A propriedade aparece como
um elemento de clivagem, pois ele afirma que poucos eram os
“fazendeiros” não-proprietários.
Em trabalho anterior, analisando os inventários post mor-
tem das décadas de 1830 e 1840, verifiquei que cerca de 2/3 dos
criadores que tinham até 500 reses de gado vacum não eram pro-
prietários de terras. Ao contrário, a minoria que detinha mais de
2.000 cabeças era composta toda por fazendeiros-proprietários.
Considerando-se que os estratos mais pobres da população estão
sub-representados nos inventários post mortem, a proporção de
pequenos criadores não-proprietários de terras deveria ser ainda
maior. Por sua vez, ainda que pudesse haver grandes criadores
sem a propriedade da terra, eles parecem ter sido poucos. Ou seja,
o acesso estável a bens de produção (pequenos e médios reba-
nhos, lavouras) não era privilégio de uma pequena elite, mas a
propriedade da terra sim. Como já referiram trabalhos anteriores
(GARCIA, 2005; FARINATTI, 2010), a estrutura agrária de Ale-
grete, nas décadas de 1830 e 1840 apresentava uma elite de gran-
des estancieiros que tinham mais de 2.000 reses, eram proprietá-
rios de terra e possuíam importantes escravarias, onde se congre-
gava o trabalho livre e o cativo. Abaixo deles, uma vasta propor-
ção de médios e pequenos produtores, a maioria deles sem a pro-
priedade jurídica da terra, produzindo a partir de arranjos variá-
veis que envolviam mão-de-obra familiar e escrava.
Assim, quando o juiz de paz assinala o perigo que correm
os moradores da fronteira, é aos fazendeiros, em maioria proprie-
tários, ou seja, apenas aos mais potentes criadores de gado que
ele está se referindo. É interessante o fato de que um dos elemen-

327
FARINATTI, L. A. • Vozes da Ordem: proprietários, trabalhadores livres e
escravos na fronteira meridional do Brasil (Alegrete 1827-1850)

tos utilizados para caracterizas esta gente seja a propriedade. Ao


contrário do que se pode ler em correspondências de autoridades
milicianas, apenas alguns anos antes, naquele mesmo lugar, não
há, aqui, referência aos serviços prestados por esses povoadores
na conquista e manutenção daqueles territórios (FARINATTI,
2010). No documento em análise, o atestado que referenda a va-
lência social daquelas pessoas é sua condição de proprietário. Uma
autoridade dos confins meridionais aparece manejando ideias co-
muns a diversos outras regiões do Império. Nas primeiras décadas
do Império, ganhava força o papel da propriedade como um dife-
renciador entre os homens livres, ao lado e, muitas vezes, em opo-
sição às hierarquias naturalizadas vindas do Antigo Regime. Am-
bas permaneceram como referentes importantes, mas a primeira
estava em expansão e adquiria legitimidade, sobretudo no pensa-
mento liberal. Como lembrou Hebe Mattos, o próprio Antônio
Pereira Rebouças, ao lutar em favor dos direitos dos homens livres
de cor, defendia que “renda e propriedade podiam ser adquiridas
com ‘talentos e virtudes’, consistindo, portanto, na única medida
legítima desses talentos e virtudes, necessários ao exercício das res-
ponsabilidades mais elevadas da cidadania política” (MATTOS,
2009, p. 376). Segundo essa posição, estes seriam os únicos critéri-
os legítimos para a cidadania ativa, para a condição eleitor, de ele-
gível e para os postos superiores da Guarda Nacional.
Como sabemos hoje, a partir de estudos diversos, as for-
mas de relação com a terra e de aquisição de direitos sobre ela
eram variadas no período colonial e seguiram sendo ao menos
até a Lei de Terras (1850), mesmo com a extinção do regime de
sesmarias em 1822 (MOTTA, 2011). O mesmo ocorreu na ex-
pansão para oeste e sul a partir do Rio Grande de São Pedro (OSÓ-
RIO, 1990; GARCIA, 2005). Tratou-se de um processo confliti-
vo, que abarcou uma miríade de formas de acesso e reivindicação
de direitos sobre a terra, muito longe da imagem de que todas as
terras conquistadas foram doadas por sesmarias a uma elite guer-
reira. A confirmação e estabilidade dos direitos construídos ali
passavam, na primeira metade do Oitocentos, muito pelo poder

328
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

social dos pretendentes. Se a propriedade plena e absoluta da ter-


ra não era uma novidade do início do século XIX, o que, sim, era
novo e importante era o papel político que o instituto da proprie-
dade foi assumindo, como referência de diferenciação social legi-
timada. Essa importância era expressa em leis, instituições, no
pensamento dos eruditos e nas correspondências dos notáveis de
província. Ela também influenciava, por sua vez, ajudando na
ampliação da legitimidade da propriedade como a forma por ex-
celência de acesso aos bens e, sobretudo, à terra, em uma contro-
vérsia que duraria, pelo menos, por mais algumas décadas.
Por sua vez, o alerta sobre o perigo que existia para o “De-
coro Nacional”, pelo fato do terreno fronteiriço estar sem prote-
ção, parece uma estratégia no sentido de chamar a atenção das
autoridades do Estado Imperial e lembrar-lhes que devem ter in-
teresse na defesa da fronteira. Como já foi dito, a região vivia
notória instabilidade institucional. Se a consolidação do Impé-
rio, nas décadas de 1820 e 1830, enfrentava graves estremecimen-
tos internos, isso era também verdade para os terrenos limítrofes,
especialmente no sul, onde os nascentes Estados e províncias ori-
ginárias do antigo Vice-Reinado do Prata disputavam-lhe os es-
paços conquistados no período anterior. Contudo, quando se es-
pera que o juiz passe a referir o perigo representado pelos exérci-
tos estrangeiros, tal não ocorre e somos apresentados a outra
ameaça para a ordem. A fronteira aparece sim como local de pe-
rigo, mas não se menciona eventuais desejos expansionistas por
parte dos Estados limítrofes e sim o fato dela favorecer a presença
de “Individuos de toda a clace volantes, e sem domicilio certo”.
Segundo o juiz, os fazendeiros se veem na necessidade de empre-
gar esses indivíduos como peões, pela necessidade do costeio de
suas fazendas, para onde vão junto com escravos e com os familia-
res do proprietário.
Na passagem seguinte, o autor da correspondência deixa
claro o modo como vê a essa população, dona de “hum espirito
sem religião, sem Leÿ que tão pronto propendem p.a o bem, como
para o mal”.

329
FARINATTI, L. A. • Vozes da Ordem: proprietários, trabalhadores livres e
escravos na fronteira meridional do Brasil (Alegrete 1827-1850)

O único resp.to dos proprietários faz conter a hum espirito


sem religião, sem Leÿ que tão pronto propendem p.a o bem,
como para o mal, que todos os dias se achão os proprietários
expostos com suas Familias victimas da própria tenção de
seus m.mos fâmulos e pionagem. Outras Fazd.as achão-se
som.es os Capatazes p.r auz.ca de seus propretarios a cuber-
to para o centro igoalm.e com taes pionagem, e Escravos; e
todos ao cuid.o de um laboriozo Serv.o de principal ramo do
comercio, indústria da Prova...”

Os proprietários (e, aqui, o termo empregado é exatamente


este) e suas famílias estariam sempre em perigo iminente, em ra-
zão mesmo das tensões que brotam no seio daquelas populações.
Aqui, como anteriormente, veem-se os escravos associados aos
peões e, talvez, ao perigo e tensões que eles, em conjunto, repre-
sentam. A referência à existência de fazendas pertencentes a pro-
prietários absenteístas parece indicar um agravamento da situa-
ção, uma vez que o “principal ramo do comercio, indústria” da
Província, serviço que demanda muita labuta, ou seja, a pecuá-
ria, estaria na mão de capatazes, escravos e peões.
Várias foram as obras que destacaram as características da
ampla zona de fronteira que envolvia as regiões ao sul do rio Ibi-
cuí, no Brasil, e ao norte do rio Negro, no Uruguai, e ainda por-
ções orientais das províncias argentinas de Entre-Rios e Corrien-
tes como uma área de contato, de trânsito de pessoas, mercadorias,
exércitos e ideias (REICHEL; 1996 SOUZA e PRADO; 2004).
Além disso, é preciso notar que os diferentes grupos sociais con-
ceptualizavam diferentemente aquele espaço e a existência de di-
ferentes soberanias que se instalavam ao cruzar os incipientes li-
mites nacionais. Se muitos fazendeiros possuíam propriedades no
Rio Grande do Sul e no norte do Uruguai, também é verdade a
população livre desenvolvia diferentes estratégias evolvendo esse
amplo território e o mesmo se dava com os escravos (THOMP-
SON FLORES e FARINATTI, 2008). No que se refere aos sujei-
tos tidos como ameaça, na correspondência em estudo, note-se
sua qualidade de “indivíduos volantes”. Eles não têm domicílio
certo, não poder ser reconhecidos pelo vizindário, circulam pela

330
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

fronteira dificultando seu controle. Ao mesmo tempo, não se ar-


rancham nas terras dos proprietários, o que diminui a possibilida-
de de serem controlados.
Nesse momento, outra categoria aparecerá, a partir de en-
tão, no documento, como intermediária entre os fazendeiros e
seus trabalhadores.
[...] os m.mos proprietários em taes circonstancias p.r amiza-
des, outros p.r Parentesco atraem a suas fazendas alguns In-
dividuos do centro da Provincia q. p.r adquirirem meios de
sua subsistência correm a estas fazendas a chamados ou p.r
amiz.e ali se conservam trabalhando em boa Paz e armonia e
o m.mo proprietário saptisfeito inda com maior despeza p.r
ver sua propriedade.e respeitada p.r maior numero de homens
de sua fiança contavão sempre com taes indivíduos p.a res-
guardo de sua casa e fam.a, que suas circonstancias pormi-
tem vellas expor em taes frontr.as e com m.s séquito os Quar-
teirões p.la frequencia de homens vive em mais socego e tran-
quilide...5

As fazendas de grandes extensões, em geral, continham


menos gado do que poderiam e abrigavam uma população que ia
muito além da família dos proprietários, dos escravos e dos traba-
lhadores livres. São raros os contratos de arrendamento de parce-
las de terra nas escrituras públicas de Alegrete, na primeira meta-
de do século XIX. Quando eles aparecem, se tratam de fazendas
inteiras. Ainda que haja a possibilidade de haver contratos por
instrumento privado, ou mesmo apenas orais, parece que a maior
parte destas famílias moradoras das grandes fazendas era forma-
da por agregados. Este termo, utilizado pelo autor do documento
em trecho posterior, abrigava uma diversidade de sujeitos, como
o próprio extrato transcrito acima permite perceber: parentes do
proprietário, famílias pobres arranchadas a favor naquelas terras
e, acrescentamos, algum ex-escravo que permanecia nas terras com
sua família ou antigos posseiros que podem ter aceitado a condi-

5
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Fundo Justiça. Alegrete,
Juiz de Paz, 1834.

331
FARINATTI, L. A. • Vozes da Ordem: proprietários, trabalhadores livres e
escravos na fronteira meridional do Brasil (Alegrete 1827-1850)

ção de agregado, reconhecendo (talvez não sem conflito) a pre-


tensão de propriedade daqueles que eram mais fortes socialmente
(FARINATTI, 2010).
A presença dos agregados já se fazia intuir nos dados, dan-
tes referidos, dos inventários post mortem e fica ainda mais elo-
quente quando observamos uma lista de moradores do segundo
distrito de Alegrete, em 1846. Dos 197 chefes de fogos listados,
apenas 25% foram indicados como proprietários, enquanto 74%
foram apontados expressamente como agregados. É preciso cha-
mar atenção, aí, para o fato de que, para a grande maioria das
famílias, o acesso a recursos produtivos se dava por intermédio de
uma negociação desigual com o proprietário, fora das regras de
mercado. Era a reiteração de pactos verticais de reciprocidade e
não os contratos mercantis que regia o acesso à terra para essa
população, sendo esse um traço tradicional no agro brasileiro, em
diversas regiões (FRAGOSO, 2009).
De qualquer maneira, o juiz de paz enfatiza que essa gente,
ao contrário dos indivíduos volantes e dos escravos, era confiá-
vel. Desenvolvia com os proprietários uma condição de amizade
que, aqui, deve ser entendida no sentido tradicional de amizade
dentro de uma ordem hierárquica, de uma relação contínua de
deveres recíprocos e diversos, assumida por sujeitos posicionados
em lugares diferentes da escala social.
De fato, os agregados eram presumidos como potenciais
aliados dos proprietários das terras onde viviam, tanto que esse
fator era utilizado para desqualificar os testemunhos que eles da-
vam em processos criminais onde os fazendeiros fossem parte
envolvida. Em alguns processos criminais abertos na comarca de
Alegrete, em meados e na segunda metade do século XIX, vemos
agregados ajudando em emboscadas contra ladrões de gado do
fazendeiro e sendo chamados para ajudar na captura de escravos
fugidos. Contudo, é preciso abandonar a tentação de ver uma re-
lação demasiadamente esquemática neste ponto. Esta era uma
entre outras fontes de relações de reciprocidade vertical, naquela
sociedade. Outras, como compadrio e atuação as guerras tinham,

332
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

também, a sua importância. Os fios que ligavam uma a outras,


por relações de reciprocidade, eram variados e sua efetividade
dependia de muitos fatores (FARINATTI, 2010). Além disso, sabe-
se que as relações entre agregados e proprietários estavam longe
de ser isentas de conflitos (GARCIA, 2005).
O debate entre autonomia e/ou dependência dos homens
livres pobres no Brasil rural é antigo e não é meu objetivo abordá-
lo, aqui, em profundidade. Neste texto, quero apenas assinalar
que o documento em análise constrói a imagem dos agregados
como aliados dos proprietários, que ajudavam a manter a ordem
contra as tendências caóticas trazidas por peões e escravos. Pode
não consistir em uma realidade em todos os casos, mas um letra-
do, pertencente à elite local, expôs essa situação na hora de expor
sua visão da estratificação social.
Segundo o juiz de paz, o problema surgia exatamente quan-
do se buscavam fazer “reuniões” visando o recrutamento para a
patrulha da fronteira ou para atividades bélicas. Nessas ocasiões,
os indivíduos mais visados eram os agregados, que então se eva-
diam, escondiam-se, ausentavam-se por algum tempo buscando
evitar o recrutamento, deixando os fazendeiros e capatazes sozi-
nhos com os escravos e peões. Corriam, assim, grande perigos, ou
por tensões com seus fâmulos, ou então podendo ser atacados pe-
los grupos de “facciosos” que promoviam roubos e assassinatos.
[...] acontece então que correndo huma voz de tal reniao
Aqu.les Agreg.os se auzentão ficão os proprietários e Capa-
tazes no centro da Escravtura, Pionagem que a Providencia
os livra e alguns de Odio deste ou daq.le p.s ql. sempre a reva-
lidade reina em tal Canalha as m.mas dist.cas das moradas
sem apoio de vizindario p.r q. cada hum se acha na sua casa
diste. Fazendo da constância e sofrim.to força para repelir q.l
q.r tentado quando não sejão de seus fâmulos de grupo de
faciozos q. abundão nesta fronteira de roubos e assacignos
que todos os dias estão acontecendo, sem q. se possa prevenir
q.to m.s perceguillos p.r que não há força...6

6
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Fundo Justiça. Alegrete,
Juiz de Paz, 1834.

333
FARINATTI, L. A. • Vozes da Ordem: proprietários, trabalhadores livres e
escravos na fronteira meridional do Brasil (Alegrete 1827-1850)

É de se notar que, novamente, aqui, o juiz de paz destaca a


dificuldade que a própria distribuição do povoamento traz para a
manutenção da ordem. Fazendas grandes implicavam em casas
muito distantes umas das outras, não podendo as famílias dos
proprietários se apoiarem mutuamente contra as ameaças. A par-
tir de então, o autor encaminha a conclusão do texto. Insistirá
que, naquelas circunstâncias, por mais que deseje, uma autorida-
de terá muita dificuldade para fazer cumprir a lei pela falta de
efetivos, de cavalgaduras para cruzar o extenso território a patru-
lhar e também de munições. Aqui, o texto volta a sugerir que a
administração provincial ou a própria Coroa não cumpria o seu
dever e não favorecia a que as autoridades locais pudessem de-
sempenhar o seu papel. Insiste que tentará preencher os 30 ho-
mens requeridos – uma quantidade, acrescento, que não parece
tão grande, tendo em vista as “levas” e “reuniões” de centenas de
pessoas realizadas naquela fronteiram em tempo de guerra. Po-
rém, afirma que, dadas as circunstâncias expostas, não pode exi-
gir dos proprietários que desatendam suas famílias e se coloquem,
eles mesmos, em serviço. Veja-se a passagem a seguir.
[...] a Leÿ he bem esplicita e terminante porem hera percizo
q. lhes não ocorrecem as sirconstancias ponderadas para po-
der obrigalos adezamparar suas moradas o q. eles dizem so
em ultimo extremo, erespondem q. há Tropas no centro da
Prov.ca, que todos eles pagão grde. Dir.tos eq. Estes direitos
devem em p.te serem aplicados p.a a segur.ca da frontr.a...7

É importante notar a referência de que os proprietários to-


dos pagam “grandes direitos” e que esses recursos deveriam ser
aplicados na segurança da fronteira. Ou seja, o que está expresso
aqui não é uma lógica de Antigo Regime, onde os súditos colo-
cam suas vidas e haveres a serviço do Rei, postulando, em contra-
partida uma graça ou mercê. O que se diz é que os tributos pagos
ao Estado devem ser utilizados na manutenção da segurança da

7
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Fundo Justiça. Alegrete,
Juiz de Paz, 1834.

334
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

fronteira. Ou seja, ao invés de terem que abandonar seus interes-


ses para cuidar do serviço de manutenção da ordem, mesmo que
isso pudesse reverter em benesses futuras, o juiz de paz afirma
que os fazendeiros preferiam que o Estado tomasse a cargo essa
função. O propalado desejo de autonomia extrema das elites lo-
cais, de participação cidadã na administração durante o período
regencial, parece encontrar um contraponto aqui, onde o que se
está pedindo é que o Estado, por sua conta, cuide destes aspectos.
De fato, são inúmeros os casos em que se vê dificuldades para
prover cargos tanto na administração civil quanto na Guarda
Nacional no Rio Grande do Sul, neste período (RIBEIRO, 2005).

Considerações finais

A forma como o juiz de paz “organiza” a sociedade em seu


discurso está orientada pelo eixo que repousa na propriedade como
esteio da ordem e da possibilidade de permanência brasileira na-
queles territórios conquistados, de seu proveito econômico, da
necessidade de manutenção da segurança dos proprietários e de
suas fazendas. Nessa questão, os agregados são vistos como alia-
dos e as relações de reciprocidade vertical, portanto, como pon-
tos de solidez de toda aquela organização social. De outra parte,
os escravos e, sobretudo, os peões são vistos como potenciais cau-
sadores de desordens, de tensão, de ameaça para a segurança dos
indivíduos e da propriedade, quase como “classes perigosas”, ain-
da que não se utilize este termo. Se a ênfase na propriedade como
pilar da ordem social está em sintonia com a difusão do pensa-
mento liberal na primeira metade do século XIX, a referência às
relações pessoais de respeito e aliança entre pessoas diferentemente
posicionadas na escala social é, por sua vez, uma recriação a par-
tir de traços de Antigo Regime. Essa convivência não deve espan-
tar e nos ensina sobre as questões a fazer quando se quer investi-
gar a primeira metade do século XIX.
Por sua vez, a referência, no final do texto, a que os proprie-
tários se negavam a desatender sua propriedade para servir a Co-

335
FARINATTI, L. A. • Vozes da Ordem: proprietários, trabalhadores livres e
escravos na fronteira meridional do Brasil (Alegrete 1827-1850)

roa significaria que a lógica da troca de serviço por mercês teria


sido substituída por um paradigma mais “racionalizado” das fun-
ções e deveres do Estado? É possível que, nesta região específica,
o fim das doações de sesmarias no início da década de 1820, e a
diminuição da legitimidade das arreadas de gado pertencente aos
“inimigos” estivesse influenciando essa questão. Porém, pela aná-
lise de outras correspondências, especialmente referentes aos as-
suntos de guerra, nota-se que havia uma convivência entre uma
lógica que trazia traços de Antigo Regime e outra, mais marcada-
mente liberal ou “iluminista”. No caso da correspondência anali-
sada, o autor que propugna pela necessidade de que o Estado tome
conta da questão da segurança, já que os cidadãos pagam os seus
impostos e isto basta, é o mesmo que elogia o fato de que, quando
os agregados são muitos e estáveis, a paz local é mantida pelos
“séquitos” formados por eles e os proprietários.
Por fim, resta anotar que, de fato, alguns meses depois que
esta correspondência foi escrita, uma guerra generalizada e longa
desorganizou a economia, pôs a perder muitos recursos e empo-
breceu a maioria dos habitantes da fronteira, ainda que alguns
possam ter obtido ganhos não desprezíveis. Contudo, diferente-
mente do que se poderia supor ao ler a carta do juiz de paz, os
líderes dessa desordem não foram nem os indivíduos volantes,
nem os peões ou os escravos. Ela partiu de uma facção das elites
proprietárias.

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336
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

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337
“Entre o local e o global”:
imigração, relações sociais e
perfil ocupacional dos estrangeiros
na cidade de Pelotas (1850-1890)1
Jonas M. Vargas

Introdução

Tradicional objeto de estudo na historiografia gaúcha, a


imigração europeia para o Rio Grande do Sul tem recebido im-
portantes análises nos últimos anos. Neste sentido, a micro-histó-
ria italiana tem auxiliado os pesquisadores na compreensão deste
fenômeno histórico, possibilitando uma maior aproximação do
comportamento dos diversos agentes, famílias e grupos sociais
envolvidos em tais contextos sociais (VENDRAME, 2016). As-
sim sendo, a análise dessas relações socioculturais entre estran-
geiros e luso-brasileiros com famílias originárias na província,
numa escala mais micro analítica, parece ser algo ainda aberto a
novas investigações. O presente texto busca oferecer dados quan-
titativos a respeito do fluxo de estrangeiros para uma única cida-
de da época (Pelotas) e tem como finalidade contribuir com o
tema, oferecendo possibilidades de análise e comparações.
Pelotas era muito mais do que um núcleo charqueador e
não estava polarizada entre os senhores da carne e seus escravos.
No final dos anos 1870, o município possuía quase 30 mil habi-

1
As ideias desenvolvidas neste texto são fruto de minha Tese de Doutorado e
foram parcialmente publicadas em VARGAS (2016).

338
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

tantes e a cidade havia se tornado o cenário de um grande núme-


ro de profissionais de diferentes áreas, atingindo um notável grau
de desenvolvimento econômico e cultural para os padrões da pro-
víncia sul-rio-grandense. Tal incremento socioeconômico atraiu
muitas pessoas para a localidade e, dentre elas, imigrantes vindos
de diferentes partes do mundo atlântico. O notável fluxo de es-
trangeiros no espaço urbano da cidade contribuiu com a própria
formação social da mesma, influindo no ethos da sua principal
elite: os charqueadores e suas famílias. Contudo, seria equivoca-
do pensar tal processo sem a complexidade que o mesmo exige.
Ao mesmo tempo em que as elites pelotenses valorizavam a cul-
tura europeia e interagiam com lideranças estrangeiras com fins
de capitalizar os bens materiais e imateriais decorrentes de tais
relações, estes, enquanto outsiders em tal contexto, também tinham
nas possíveis relações sociais com a elite pelotense estabelecida
uma forma de ascender e ocupar espaços sociais cuja entrada era
mais dificultada. Em suma, estratégias sociais permeadas por uma
racionalidade limitada e seletiva, colocavam em contato os diver-
sos agentes naquele contexto e, jogando com os recursos disponí-
veis, num emaranhado de relações que podiam ser tanto amisto-
sas como conflituosas, os imigrantes distribuíram-se nos muitos
estratos que compunham aquela sociedade afetando-a de manei-
ra determinante.

A cidade de Pelotas na rota das


migrações atlânticas do oitocentos

Apesar das já conhecidas limitações que envolvem o Censo


Geral de 1872 (BOTELHO, 1998; MONASTÉRIO, 2004), ele é o
documento mais abrangente no que diz respeito ao total da popu-
lação da época, já que, comparado a outras fontes, os seus indica-
dores não excluem escravos, mulheres, crianças e idosos.2 No en-

2
Censo Geral de 1872 (disponível em: http//www.ibge.gov.br).

339
VARGAS, J. M. • “Entre o local e o global”: imigração, relações sociais e
perfil ocupacional dos estrangeiros na cidade de Pelotas (1850-1890)

tanto, Pelotas constitui-se num caso diverso da maioria dos mu-


nicípios rio-grandenses recenseados na época, uma vez que uma
de suas quatro paróquias não teve os seus dados populacionais
arrolados. Por conta disto, e de sub-registros ocorridos no recen-
seamento, a população escrava do município foi bastante subesti-
mada.3 Somando as estatísticas das três paróquias recenseadas
tem-se um total de 21.258 habitantes, sendo que a de São Francis-
co de Paula, com 14.762 almas, era responsável por mais de 2/3
deste total. Contudo, apesar dos problemas desta fonte, creio que
os dados contidos no censo são bastante favoráveis para o estudo
da mencionada paróquia – que era a que concentrava todos os
habitantes da cidade e de seus subúrbios próximos. Além do mais,
como o presente texto busca investigar o fluxo da população es-
trangeira livre na cidade, tais problemas não afetam drasticamen-
te a análise.
De acordo com o Censo, a paróquia de São Francisco de
Paula possuía 12.376 habitantes livres, sendo 6.799 homens e 5.577
mulheres. Deste grupo, 9.021 foram classificados como brancos,
1.347 como pardos, 1.848 como pretos e 160 como caboclos.4
Comparando estes dados com os do recenseamento realizado no
1º distrito de Pelotas cerca de 40 anos antes, percebe-se que a sua
paróquia mais urbana alterou significativamente o seu perfil social.
Entre 1833 e 1872, a população total (livre e escrava) residente na
localidade mais urbana de Pelotas aumentou de 4.707 para 14.762
pessoas. Se os dados referentes aos escravos estiverem corretos, o
número de cativos teria aumentado de 2.202 para 2.386. No en-
tanto, como a população livre cresceu bastante, o percentual de

3
De acordo com o Censo de 1872, as três paróquias recenseadas somariam 3.590
escravos. No entanto, o registro de matriculas de escravos para o ano de 1873
marcou 8.141 cativos, ou seja, mais do que o dobro recenseado. Para maiores
detalhes destes dados, ver VARGAS (2012).
4
Somados os livres com os escravos, a população classificada como preta era de
3.167 e parda de 2.404. Entretanto, como o número de escravos da paróquia
parece estar sub-representado, é possível que a população de cor ultrapassasse
os 6 mil habitantes. Novos estudos podem iluminar melhor estes dados.

340
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

escravos teria caído de 46,8% para 16,2%, mas é provável que a


queda tenha sido um pouco menor, visto o já comentado sub-
registro de escravos no censo.
No que diz respeito à cor dos seus habitantes, se em 1833 o
percentual da população classificada como branca e residente na
vila era de 43,3%, em 1872, conforme o indicado acima, ela sal-
tou para 72,7%. Apesar do número de escravos ter continuado
crescendo no município de Pelotas até meados da década de 1870
é notável que a população branca aumentou em taxas maiores.
Um dos motivos deste fenômeno, comum em todo o Brasil, foi a
extinção do tráfico atlântico em 1850. No entanto, este branquea-
mento urbano, ao menos na cidade de Pelotas, também se explica
pela expressiva entrada de imigrantes na urbe.5 O desenvolvimen-
to econômico da região atraiu pessoas de diversas partes da pro-
víncia, de outras regiões do Império, mas, sobretudo, de outros
países. Se em 1833 somente 6,3% dos moradores da vila foram
identificados como estrangeiros, em 1872 a paróquia urbana con-
tava com 20,4% do total da população formada pelos mesmos.
Calculando estes dados somente entre a população livre, os mes-
mos índices teriam aumentado de 11,9% para 24,4%.
Em números absolutos, foi um salto de 299 para 3.009 pes-
soas estrangeiras em menos de 40 anos e num intervalo de tempo
que ainda contou com uma longa guerra civil (1835-1845), oca-
sião em que muitas pessoas retiraram-se da localidade. Contudo,
destes 3.009 estrangeiros, 361 eram africanos livres, diminuindo
um pouco a presença dos europeus e americanos brancos no es-
paço urbano. Mesmo assim, para uma pequena cidade como Pe-
lotas, o aumento do número de estrangeiros em cerca de 9 vezes
num intervalo de 4 décadas deve ter resultado num impacto signi-

5
Embora a população escrava e a população livre de Pelotas tenham crescido
entre os anos 1830 e 1870, o percentual dos cativos em relação ao total caiu
bastante. Em 1833, 51% da população pelotense era cativa, enquanto que, em
1858, este índice já havia caído para 37,1% e, em 1872, é provável que tenha
ficado entre 30% e 33%.

341
VARGAS, J. M. • “Entre o local e o global”: imigração, relações sociais e
perfil ocupacional dos estrangeiros na cidade de Pelotas (1850-1890)

ficativo naquele espaço urbano. Excetuando as regiões de coloni-


zação alemã da Província, o percentual de estrangeiros entre os
habitantes livres da cidade de Pelotas só era inferior à Rio Grande
(28,8%) e Itaqui (25,6%) – ambas cidades mercantis, o que expli-
ca esta concentração de estrangeiros.6 Na cidade do Rio de Janei-
ro, em 1890, cerca de 30% da população era estrangeira, sendo
que 70% destes eram portugueses (CARVALHO, 2009, p. 79).
Nesta época, em outras capitais de província e grandes cidades
do Império o índice de estrangeiros era bem menor.7 Mesmo que
em proporções populacionais muito menores, Pelotas parecia-se
mais com a Corte – no que diz respeito à população estrangeira
da cidade – do que com as principais capitais do Império.
Portanto, por volta do meado do século, do ponto de vista
das migrações em escala global, Pelotas havia se tornado uma
das inúmeras localidades das Américas que receberam europeus
em seu território. Conforme René Remond, a emigração de euro-
peus no século XIX foi um dos “grandes fatos demográficos do
mundo”. Entre 1815 e 1914, a população da Europa cresceu em
altos índices, ultrapassando o seu dobro. Em 1800, por exemplo,
ela possuía 187 milhões de pessoas e, em 1900, tinha ultrapassa-
do os 400 milhões. As consequências sociais deste crescimento
demográfico associado a momentos de crise econômica e política
foram o pauperismo, o desemprego crônico e a baixa dos salários,
levando parte de sua população a migrar para terras que prometi-
am uma vida melhor. O grosso da emigração europeia, portanto,
foi constituído principalmente “de camponeses sem terra, de ope-
rários sem trabalho e de burgueses arruinados” e os países que

6
Embora Rio Grande possuísse o único porto marítimo da Província, Itaqui, no
outro extremo da província, também possuía uma importante comunidade de
comerciantes estrangeiros que, por meio do rio Uruguai, movimentava amplos
negócios com os países do Prata (VOLKMER, 2013).
7
Nas paróquias urbanas de São Paulo (Sé, Santa Efigênia e Consolação) este
índice era de 11,8% entre os habitantes livres. Em Recife, era de 6%, em São
Luis, no Maranhão, era de 6,8%, em Salvador, era 5,8% e em Ouro Preto era
3,3% (Censo geral de 1872. Disponível em: http//www.ibge.gov.br).

342
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

contribuíram mais com este fluxo foram os mais atingidos pela


falta de trabalho e pela miséria. Calcula-se em cerca de 13 mi-
lhões o número de europeus que se expatriaram entre 1840 e 1880.
A mesma cifra voltou a emigrar num intervalo de tempo menor
(1880 a 1900). A partir de 1900, o índice era de 1 milhão de pessoas
por ano dos que partiam somente para os Estados Unidos. No
total, não é exagero afirmar que cerca de 60 milhões deixaram a
Europa para estabelecer-se em outros continentes além-mar. Mais
da metade foi para os Estados Unidos e cerca de 8 milhões migra-
ram para a América do Sul (REMOND, 1990, p. 197-199).
Segundo David Eltis, a partir de 1820, as migrações por to-
das as partes do mundo tomaram um perfil cada vez mais voluntá-
rio, substituindo a era das migrações forçadas (ELTIS, 2003). No
Brasil, ao mesmo tempo em que se intensificava o processo de imi-
gração europeia, sob incentivo das autoridades imperiais e provin-
ciais, a longa história da entrada de cativos africanos estava com
seus dias contados. Tratavam-se de dois ciclos migratórios distin-
tos (o primeiro voluntário e o segundo forçado) que caracterizaram
a formação do mundo atlântico entre os séculos XVI e XIX. Pelo-
tas participou de ambos os fluxos migratórios, recebendo um gran-
de número de africanos na primeira metade do século XIX e um
significativo contingente de europeus (portugueses e não portugue-
ses) em todo o oitocentos, mas, sobretudo, a partir dos anos 1850.
Portanto, estudar a imigração para Pelotas é estudar os fluxos mi-
gratórios que caracterizaram o período em diferentes partes do
mundo Atlântico, oferecendo um exemplo de como se deu a inte-
ração social entre pelotenses (ou pessoas estabelecidos há bastante
tempo no município) e estrangeiros numa escala microanalítica.

Considerações sobre a imigração e


o fluxo de estrangeiros em Pelotas

Para se ter uma maior dimensão da circulação e entrada de


estrangeiros em Pelotas seria necessário saber qual o perfil desta
população flutuante que chegava anualmente na cidade, vindo a

343
VARGAS, J. M. • “Entre o local e o global”: imigração, relações sociais e
perfil ocupacional dos estrangeiros na cidade de Pelotas (1850-1890)

estabelecer-se nela ou não. Uma das documentações mais elo-


quentes com relação à tal fenômeno são os passaportes policiais
emitidos aos estrangeiros entrados na cidade. A lista mais com-
pleta que localizei com relação aos mesmos reúne todos os que
entraram na cidade ao longo do ano de 1855. Este documento
apresenta o nome de 481 pessoas e arrola a sua nacionalidade,
idade, estado civil, profissão e local de procedência.8 Entretanto,
esta fonte apresenta uma sub-representação do fluxo de pessoas,
pois entre os listados não há nenhuma mulher (apesar de 18,2%
dos indivíduos fichados serem casados). Outro problema do do-
cumento é que ele não revela o motivo pelo qual os recém-chega-
dos estavam na cidade, não sendo possível saber se vinham provi-
soriamente, se estavam de passagem para outro município ou se
desejavam estabelecer-se em Pelotas. É provável que todos estes,
além de outros, fizessem parte do repertório de motivações do
grupo listado.
Analisando os dados do documento, percebe-se que cerca
de 59% dos indivíduos listados eram portugueses. Entre eles é
possível verificar um número diversificado de profissionais. Cai-
xeiros, sapateiros, alfaiates, chapeleiros, mascates, comerciantes,
trabalhadores, barbeiros, marceneiros, carpinteiros, ferreiros, ta-
noeiros, pedreiros, oleiros, entre outros. Pelos seus ofícios não é
difícil perceber que se tratavam de indivíduos de poucas posses. A
migração de portugueses para o Brasil manteve altos e baixos e
foi constante até o século XX. A facilidade da língua e a presença
de parentes nestas terras encorajava a travessia dos migrantes (CA-
VAZZANI, 2014; SCOTT, 2001). Além de Portugal, mais 22 lu-
gares formavam os outros 41%.9 Os franceses são os segundos
mais numerosos (8,5%), seguidos pelos espanhóis (8%), alemães

8
Lista de estrangeiros que receberam passaporte policial. Fundo Polícia, Pelotas,
Maço 15, AHRS.
9
Para alguns lugares como Espanha e Uruguai são citadas as cidades de onde o
listado nasceu e não o país. O mesmo é percebido para Alemanha e Itália, que
ainda não possuíam um estado nacional unificado.

344
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

(6,5%), uruguaios (6%) e italianos (5,2%). O restante reunia in-


gleses, norte-americanos, irlandeses, dinamarqueses, suíços, sue-
cos, argentinos, paraguaios e austríacos.
Outro item importante é o que se refere à procedência dos
indivíduos. A grande maioria destes estrangeiros (77,5%) vinha
de Rio Grande, o que não causa surpresa, pois o porto marítimo
que concentrava a entrada de pessoas vindas do além-mar locali-
zava-se nesta cidade. O interessante talvez seja que 22,5% vinham
para Pelotas partindo de outras localidades, o que evidencia que
este deslocamento não se dava somente por vias marítimas, mas
também pela navegação fluvial e pelas precárias estradas que le-
vavam até o polo charqueador. Assim, encontram-se entre os lo-
cais de procedência o Uruguai (8,5%) e a Argentina (0,5%), além
de estrangeiros vindos da região da campanha (4,2%), da vizinha
Jaguarão (3,8%), de outros municípios próximos como Piratini,
Canguçu e Camaquã, e dos próprios distritos rurais de Pelotas. A
diversidade destes estrangeiros que vinham do interior da provín-
cia era grande. De Bagé, por exemplo, temos um saboneiro alemão
de 48 anos; de Camaquã, um lavrador da Galiza, 46 anos; de Li-
vramento um austríaco que era afilador; de Jaguarão um italiano
vitrificador, casado e com 33 anos; da “Campanha”, um francês
curtidor, casado e com 30 anos, além de um menino espanhol de
14 anos, que era carreteiro, entre tantos outros. Portanto, quando
se estuda a imigração é importante ter em mente que muitos indiví-
duos continuavam praticando um deslocamento interno, de cidade
para cidade, em busca de meios de sobrevivência, não vinculando-
se, necessariamente, à localidade de desembarque.
Com relação às profissões foram localizados 60 ofícios di-
versos. O grupo mais expressivo era formado pelos caixeiros (23%),
seguido pelos trabalhadores (12,8%) e comerciantes (9,3%). Estes
números revelam que muitos vinham vender e comprar mercado-
rias, além de pagar e cobrar parceiros de negócios ou mandavam
seus caixeiros realizar tais tarefas. Outros vinham buscar traba-
lhos eventuais podendo então fixar-se na região. Entretanto, uma
boa parte dos estrangeiros exercia ofícios mecânicos e artesanais

345
VARGAS, J. M. • “Entre o local e o global”: imigração, relações sociais e
perfil ocupacional dos estrangeiros na cidade de Pelotas (1850-1890)

diversos. A lista é longa e reunia trabalhadores ligados ao ramo


das navegações [armeiro (1), calafate (1), marinheiro (2), veleiro
(2)), aos ofícios artesanais envolvendo couro, madeira, metais e
outros materiais (abridor (2), alfaiate (22), cadeireiro (2), carpin-
teiro (22), chapeleiro (6), charuteiro (3), correeiro (4), ferreiro (19),
marceneiro (13), ourives (12), afiador (1), curtidor (3), saboneiro
(4), penteeiro (1), sapateiro (25), tanoeiro (6)), aos serviços nas
charqueadas ou estâncias (campeiro (3), capataz (1), descarnador
(1), graxeiro (2), peão (4)), aos serviços na lavoura (lavrador (14),
roceiro (2), chacareiro (1), serrador (2)), aos ofícios ligados à cons-
trução civil (oleiro (2), pedreiro (6), pintor (1), vitrificador (1)), ao
setor de transportes de cargas (carreteiro (9), carretilheiro (1)), às
profissões liberais (cirurgião (1), música (3), violeiro (1), escritor
(1)) e à prestação de serviços diversos (açougueiro (3), aguadeiro
(1), barbeiro (4), cozinheiro (6), figurista (1), padeiro (5), taber-
neiro (1)], entre outros. Relacionando a nacionalidade com o tipo
de ofício listado é possível verificar algumas especializações. Os
cadeireiros eram italianos e os barbeiros, chapeleiros e charuteiros
portugueses. Praticamente todos os alfaiates eram portugueses,
metade do grupo dos 19 ferreiros era composto por franceses e a
maioria dos saboneiros eram formada por alemães. Todos os cam-
peiros eram uruguaios e a maioria dos carreteiros e peões também
era do Estado Oriental. Tais dados além de revelarem uma interes-
sante relação entre profissão e nacionalidade, convergem com o
informado por Joel Serrão, ou seja, o grosso da emigração portu-
guesa para o Brasil na segunda metade do século XIX era formada
por pobres trabalhadores rurais e urbanos (SERRÃO, 1970).
A faixa etária dos estrangeiros variava, abarcando crianças
de 10 anos até idosos na casa dos 60 anos. Cerca de 58,5% dos
estrangeiros possuía entre 16 e 30 anos, demonstrando que este
fluxo era majoritariamente de pessoas jovens. O grupo mais re-
presentativo era formado pelos caixeiros portugueses entre 10 e
20 anos, provenientes de Rio Grande. Eles perfaziam 14% dos
listados. Conforme Ana Sílvia Scott, ao analisar a emigração por-
tuguesa para o Brasil, foi comum a vinda de caixeiros integrados

346
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

a redes mercantis e de parentesco transatlântica (SCOTT, 2001,


p. 3; ROWLAND, 1998). Além disso, os dados da lista de 1855
combinam com o perfil da população estrangeira recenseada em
1872. Ou seja, descontados os 361 africanos que foram classifica-
dos como estrangeiros livres – sem dúvida um número expressivo
– os 2.648 restantes estavam divididos em: 1.495 portugueses, 323
alemães, 256 uruguaios, 201 franceses, 115 espanhóis, 84 italia-
nos e 68 ingleses, apenas para ficar entre os grupos mais represen-
tativos.10 É importante lembrar que estes eram os que residiam no
espaço mais urbano de Pelotas. Os distritos rurais do município
também concentravam significativos contingentes de estrangei-
ros, sobretudo, europeus.
Tendo em vista que a imigração que marcou o meado do
oitocentos reunia principalmente homens jovens e adultos, como
demonstram os passaportes policiais de 1855, o índice de estran-
geiros entre a população adulta da cidade de Pelotas devia ser
ainda maior. De acordo com os dados relativos à paróquia de São
Francisco de Paula em 1872, a população masculina e livre clas-
sificada como branca e com idade entre 11 e 70 anos somava 4.252
pessoas. Ora, se o número de estrangeiros do sexo masculino era
de 2.443 e praticamente todos estavam nesta mesma faixa etária,
é provável que mais da metade dos homens adultos livres residen-
tes no espaço urbano pelotense fosse formada por estrangeiros!
Trazendo ofícios e conhecimentos de outras partes do mundo,
estes homens moviam-se pela cidade contribuindo com serviços
cotidianos indispensáveis para a população local, envolvendo-se
com todas as camadas sociais da localidade, além de ocuparem-
se de grande parte da indústria, comércio e artesanato da urbe.
Através do censo de 1872 pode-se verificar como os habi-
tantes da paróquia de São Francisco de Paula foram classificados
no que diz respeito as suas atividades econômicas. Dos 12.376

10
O restante era formado por paraguaios (62), argentinos (16), suíços (9), austría-
cos (7), gregos (3), dinamarqueses (2), holandeses (2), norte-americanos (2),
suecos (2) e boliviano (1).

347
VARGAS, J. M. • “Entre o local e o global”: imigração, relações sociais e
perfil ocupacional dos estrangeiros na cidade de Pelotas (1850-1890)

habitantes livres da paróquia, 6.063 foram qualificados como


“sem profissão”. Monastério e Zell esclareceram que o alto nú-
mero destes “sem profissão” deve-se ao fato das crianças terem
sido incluídas neste grupo (MONASTÉRIO; ZELL, 2004). No
caso de Pelotas, a população com 15 anos ou menos somava
3.513 habitantes. Talvez uma parte dos indivíduos entre 16 e 20
anos, e que somavam 1.299 moradores, também tenha sido qua-
lificada no grupo citado por não exercer funções que se enqua-
drassem nas outras categorias do censo. Contudo, entre os “sem
profissão” estão 1.136 pessoas casadas ou viúvas, o que indica
que eram adultas. Destas, 994 eram mulheres. Portanto, é possí-
vel que muitas delas deviam ser “donas de casa”, o que aos olhos
dos censores poderia fazer parte do grupo “sem profissão”. A
parcela restante dos “sem profissão” parecia incluir os conside-
rados “inválidos”, os muito pobres e uma parte dos que viviam
de suas agências.
A análise que se segue inclui, portanto, os 6.313 habitantes
livres e adultos que possuíam alguma profissão reconhecida pelo
censo (4.435 homens e 1.878 mulheres). As mulheres pelotenses
exerciam um número bem menor de atividades econômicas e pro-
fissionais se comparadas aos homens. As principais ocupações
femininas eram a de “serviço doméstico”, que contava com 882
mulheres, e a de “costureira”, que reunia 668 delas. Portanto, cer-
ca de 82,5% das mulheres livres com profissão foram classifica-
das como costureiras ou serviços domésticos. Destas, ¾ eram sol-
teiras. Desconheço se outras atividades foram condensadas na
categoria “costureira” (visto o seu alto índice de 35,5% das mu-
lheres com profissão). É um contingente enorme de trabalhado-
ras que permanece invisível esperando por algum estudo específi-
co. As outras mulheres foram classificadas como capitalistas e
proprietárias (91), comerciantes (70), artistas (34) e professoras
(14). A única categoria em que as mulheres estrangeiras conse-
guiram superar as brasileiras foi na de “artistas”.
Entre os homens, a categoria “comerciantes, guarda-livros
e caixeiros” apresentava 1.255 indivíduos ou 28,3% dos homens

348
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

livres com profissão.11 Dos homens deste grupo, 59% eram es-
trangeiros. Outro grupo com representação significativa eram os
operários das “produções manuais ou mecânicas” que reunia 1.000
homens. Eram 156 operários em metais, 398 em madeiras, 84 em
couros e peles, 36 em chapéus, 5 em mineração e 321 em calçados.
Nestas profissões, 67% dos homens eram estrangeiros. Os artistas
reuniam 530 homens livres, sendo 61% de estrangeiros. Penso que
a diferença deste grupo de operários para com os “artistas” é que
aqueles eram assalariados e, portanto, não trabalhavam por conta
própria. O grupo dos “manufatores e fabricantes” compunha 250
homens. A grande maioria, ou 87,3% deles, eram estrangeiros. É
possível que muitos fossem patrões dos operários citados.
A descrição de algumas indústrias existentes em Pelotas
neste período ajuda a colorir os números apresentados. Confor-
me Fernando Osório, entre 1835 e 1912, podia-se contar em tor-
no de 6 mil firmas que apareceram e giraram na cidade. Em 1910,
existiam 188 fábricas, 278 oficinas e 822 casas de negócio diver-
sas. Entretanto, até a década de 1870, não existiam muitas. Em
1845, o francês Carlos Ruelle fundou a primeira fábrica de seges e
carros, que, em 1865, recebeu a visita do Imperador D. Pedro II.
Também em 1845, João Barcellos fundou uma chapelaria e 3 anos
depois, Antônio Lopes dos Santos abriu sua Loja de Ourivesaria.
Em 1855, Diogo Higgins fundou uma oficina para consertar ins-
trumentos musicais. Em 1860, José Gonçalves estabeleceu uma
Latoaria na cidade e em 1864, Frederico Lang fundou uma fábri-
ca de sabão. O autor ainda cita outros estabelecimentos como
olarias, fábricas de anil, de papel, de louças e carnes em conserva
(OSÓRIO, 1997, p. 141-142).
No entanto, foi a partir dos anos 1870 que as indústrias e
companhias fabris começaram a se proliferar por Pelotas. Marcos
dos Anjos verificou um grande número de novas fábricas de fumo,

11
Este índice converge com o encontrado para o total da categoria “comércio”
na lista dos estrangeiros entrados na cidade de Pelotas em 1855 (28%) e da lista
de qualificação de votantes de Pelotas de 1865 (23%).

349
VARGAS, J. M. • “Entre o local e o global”: imigração, relações sociais e
perfil ocupacional dos estrangeiros na cidade de Pelotas (1850-1890)

de sabão e velas, de cerveja, de chapéus, de curtição e de massas,


entre outras. Das 38 que foram registradas na Junta Comercial,
mais de 52% pertenciam a estrangeiros e 26% possuíam um dos
sócios estrangeiro. Estes dados vão ao encontro dos percentuais
do Censo de 1872, uma vez que entre os fabricantes, os operários
especializados, os manufatores e os artistas, a maior parte era com-
posta por estrangeiros. Somados aos índices dos comerciantes, é
possível inferir que estas eram as ocupações econômicas mais aces-
sadas pelos mesmos. Estes estrangeiros eram na sua maioria ho-
mens de setores médios e subalternos, destacando-se socialmente
pela sua inventividade e iniciativa nestes setores econômicos. Uma
pequena parte deles chegou a possuir riqueza e prestígio social
considerável (ANJOS, 1996; VARGAS, 2016).
Conforme Anjos, que realizou uma rigorosa pesquisa nos pe-
riódicos pelotenses da época, estes estrangeiros, sobretudo os euro-
peus, colaboraram profundamente com a modernização da cidade
de Pelotas. Entre os mesmos, uma série de engenheiros e arquitetos
contribuíram com projetos na área da urbanização, iluminação, re-
des de esgoto e abastecimento de água, entre outros. Datam do iní-
cio dos anos 1870, a formação da Companhia Hidráulica Peloten-
se, o início do trânsito de carros de passageiros realizado pela Com-
panhia Ferro Carril e Cais de Pelotas e a construção da estação fér-
rea. Além disso, um outro grande número de europeus também
formava um contingente que permanecia por algumas tempora-
das atuando em diferentes áreas, para depois seguir viagem por
outras cidades da América. Na área cultural e artística, por exem-
plo, diversas companhias teatrais, pintores e fotógrafos estrangei-
ros enchiam as páginas dos jornais da cidade de anúncios e arreba-
tavam importante clientela. Professores de piano, de línguas, de
etiquetas e empregados em escolas particulares também tinham um
importante espaço (ANJOS, 1996, p. 36-37; 84-95; 102-103).12

12
Os italianos dominavam o ramo da hotelaria e, na Santa Casa e em clínicas
particulares, vários médicos europeus exerceram a sua profissão. Para uma
análise da imigração italiana em Pelotas ver POMATTI (2011).

350
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Neste sentido, Pelotas apenas acompanhava uma tendên-


cia das principais cidades do mundo ocidental. Com o maior de-
senvolvimento do capitalismo, a vida das pessoas foi gradualmente
sendo deslocada para as cidades. No início do século XIX, gigan-
tes como Londres e Paris possuíam respectivamente 1 milhão e
500 mil habitantes. Contudo, estas eram dimensões excepcionais
para a época, pois, na Europa, somente estas duas cidades ultra-
passavam os 500 mil habitantes. No entanto, cerca de cem anos
depois, em 1913, este número já havia chegado a 149. Esta maior
urbanização colaborou com a disseminação do estilo de vida bur-
guês, a ampliação dos meios de comunicação e transportes, a cir-
culação de novas ideias de ciência e progresso e tudo isso afetou
consideravelmente a vida nas grandes cidades europeias e ameri-
canas. Mas apesar deste novo protagonismo das cidades, a gran-
de maioria da população mundial ainda era rural. Na própria
Europa, em 1913, somente 15% dos europeus moravam em cida-
des (REMOND, 1990, p. 137). Neste contexto, se Pelotas possuía
uma população urbana importante se comparada à grande maio-
ria das cidades do Império, chegando a 15 mil nos anos 1870,
diante das grandes capitais ela era uma pequena vila, pois nesta
época a cidade do Rio de Janeiro possuía 275 mil habitantes, Sal-
vador 130 mil e Recife mais de 115 mil. Num patamar inferior,
apresentavam-se, entre outras, São Paulo com pouco mais de 30
mil e Porto Alegre com cerca de 25 mil.
Na medida em que as cidades cresciam juntamente com a
sua população, a demanda por gêneros alimentícios também au-
mentava. A partir da segunda metade do século, os distritos ru-
rais de Pelotas foram alvo de intensa especulação e mais de 60
colônias agrícolas foram fundadas entre os anos 1860 e 1890. As
elites possuidoras de terras na Serra dos Tapes foram as que mais
investiram nestes negócios e os charqueadores e seus familiares
tiveram um papel de destaque neste processo. Em 1869, por exem-
plo, Custódio Gonçalves Belchior, fundou a colônia Santa Silva-
na e, em 1889, Heleodoro de Azevedo e Souza deu o nome de
Santa Eulália à colônia que criou. Os colonos possuíam origens

351
VARGAS, J. M. • “Entre o local e o global”: imigração, relações sociais e
perfil ocupacional dos estrangeiros na cidade de Pelotas (1850-1890)

diversas. Em 1848, a colônia D. Pedro II, cujo maior acionista era


o charqueador Antônio Rafael dos Anjos, era formada por irlan-
deses e ingleses. Anos mais tarde, a colônia São Feliciano, teve
nos franceses os seus primeiros imigrantes. A colônia São Lou-
renço, a mais conhecida de todas, era formada por famílias ger-
mânicas (ANJOS, 1996, p. 44-49; 60).13
No entanto, uma parte da elite pelotense entendia que a
vinda de colonos para o trabalho agrícola não era suficiente para
o desenvolvimento da cidade. Em 1861, um charqueador escre-
veu ao presidente da Província, esboçando que desejava também
a “vinda de outros colonos senão científicos, inteligentes, como
até com capitais, na certeza de que na Pátria a adotarem depara-
riam com meios infalíveis de felicitarem suas proles”.14 Neste sen-
tido, conforme Anjos, alguns pelotenses defendiam, por intermé-
dio da imprensa, a ideia de que os europeus deveriam trazer a sua
inteligência para além do trabalho agrícola, exercendo os seus
ofícios e saberes como se estivessem nos seus países de origem.
Para isso, era preciso criar indústrias e oferecer o suporte necessá-
rio para que eles executassem as suas atividades (ANJOS, 1996,
p. 52-53). E, de fato, aproveitando-se deste estímulo local, os es-
trangeiros passaram a participar cada vez mais da vida urbana
pelotense, onde pareciam sentir-se muito à vontade, visto que não
eram poucos:
Determinados meses do ano caracterizavam-se por uma ex-
pressiva atuação das sociedades estrangeiras radicadas em
Pelotas, em especial as italianas, francesas e portuguesas. Nos
meses de setembro, os italianos comemoravam a unificação
italiana, nos meses de julho, o dia 14 não passava desaperce-
bido pelos franceses e, no 1º de dezembro, os portugueses

13
Outros investidores seguiram o exemplo, como os herdeiros do charqueador
Domingos de Castro Antiqueira (Colônia São Domingos, 1875), José Bento
de Campos (Colônia Santo Bento, 1899), Manoel Batista Teixeira (Colônia
Santa Áurea, 1893), Pedro Nunes Batista (Colônia São Pedro), Epaminondas
Piratinino de Almeida (Colônia Santa Bernardina e Colônia São Domingos).
14
Carta de Domingos José de Almeida ao presidente da Província do Rio Grande
do Sul. Pelotas, 04.10.1861. Anais do Arquivo Histórico do RS, CV-686, p. 154.

352
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

festejavam a restauração monárquica. Os jornais noticiavam


as festividades, que variavam de seletas e íntimas reuniões a
grandes desfiles pelas ruas, com direito a fogos de artifício,
batismo de estandartes e calorosos discursos, onde o orador
estrangeiro enaltecia a pátria natal e bendizia o país hospe-
deiro (ANJOS, 1996, p. 89).

Portanto, os europeus formavam comunidades reconheci-


das localmente, onde seus costumes, festas e identidades coleti-
vas eram mantidos a partir da organização de associações e socie-
dades diversas. Conforme Anjos, “as associações de elementos
de uma mesma nacionalidade se materializavam, em especial,
através da criação de sociedades beneficentes e de auxílio mútuo,
mas também esportivas, literárias e educacionais”. Nelas, “o es-
trangeiro, além de labutar por objetivos concretos, participava da
elaboração de uma identidade cultural ímpar”. Neste sentido, seus
laços com sua terra natal jamais eram desfeitos e os acontecimen-
tos políticos do velho continente eram acompanhados mesmo do
outro lado do Atlântico.15
No mencionado contexto, não demorou muito, também
surgiram jornais em sua própria língua, como o italiano “Il Venti
Setembro”, de Carlos Cantaluppi, e o alemão “Deutsche Presse”
(ANJOS, 1996, p. 89; 112). Isto também ajuda a explicar a gran-
de importância que os jornalistas pelotenses davam à cultura,

15
“Apesar de distantes de seus países de origem, os estrangeiros continuavam
ligados a eles por fortes laços de subordinação, veneração e por afetos familia-
res. Através das entidades coletivas organizadas, o contato com a pátria mãe e a
atuação frente a episódios de repercussão internacional tornava-se mais fácil,
propiciando, àqueles estrangeiros envolvidos, um reforço positivo no íntimo de
suas cidadanias enfraquecidas. Assim, em 1878, a comunidade francesa compa-
deceu-se pela morte de Thiers; em 1883, a comunidade alemã da cidade uniu-se
na tentativa de amenizar o sofrimento das vítimas das inundações e do inverno
cruel que abalara a Alemanha naqueles anos; em 1890, os portugueses em Pelo-
tas fizeram subscrições e angariaram fundos para serem remetidos a Portugal,
caso houvesse um conflito com a Inglaterra (questão da Zambesia); e, durante o
ano de 1898, a ‘colônia espanhola’ mobilizou-se na formação de uma ‘Liga Pa-
triótica’ para angariar donativos a serem enviados ao governo da Espanha, que
se encontrava em guerra com os Estados Unidos” (ANJOS, 1996, p. 90).

353
VARGAS, J. M. • “Entre o local e o global”: imigração, relações sociais e
perfil ocupacional dos estrangeiros na cidade de Pelotas (1850-1890)

economia e política internacional nas primeiras páginas de seus


periódicos. Não é difícil imaginar que a elite pelotense devia com-
partilhar de parte destas informações e debates com os estrangei-
ros mais notáveis nos clubes, bailes, cafés, jantares e nas praças
da cidade.
Se a população de Pelotas e as dimensões de sua cidade
eram bem menores que as demais capitais brasileiras citadas an-
teriormente, mas a proporção de estrangeiros era maior que a das
mesmas cidades (com exceção do Rio de Janeiro), é provável que,
no seu cotidiano, os pelotenses que circulavam pelas ruas da urbe
mantinham um contato muito mais próximo com os europeus
que compartilhavam deste mesmo espaço.16 Além do mais, esta-
belecendo vínculos afetivos com os pelotenses, muitos deles inse-
riam-se nas famílias locais por meio de matrimônios e laços di-
versos. Eram estrangeiros que interagiam com a população pelo-
tense, unindo-se às mulheres da terra e, ao se misturarem com os
brasileiros, contribuíram para dar uma nova cara à cidade.17
No entanto, apesar da considerável importância dos estran-
geiros na vida social e na sua economia, algumas atividades esta-
vam mais restritas a sua participação. Os “capitalistas e proprie-
tários” contidos no Censo de 1872 reuniam 97 homens, mas so-
mente 20% eram estrangeiros. Outro exemplo pode ser dado no

16
A grande presença de estrangeiros era reconhecida pela própria população.
Na edição de 20 de julho de 1884, o Correio Mercantil de Pelotas iniciava uma
matéria sobre as Sociedades de Socorros Mútuos da seguinte forma: “Em to-
das as cidades populosas como a nossa, onde avulta o elemento estrangeiro,
este deve congregar-se […]” (ANJOS, 1996, p. 89).
17
É possível que muitos tenham deixado suas esposas em seus países, mas como
se trata de uma população fixa e não flutuante, estes casos não devem ser
muitos. Os dados do Censo de 1872 contribuem novamente para esta questão.
Se entre os brasileiros o número de mulheres era maior que o de homens, entre
os estrangeiros, para cada mulher havia 4 homens. Dos 2.443 estrangeiros do
sexo masculino, 935 eram casados, e das 566 mulheres estrangeiras, 187 eram
casadas. Portanto, havia um grande número de estrangeiros casados para um
pequeno número de mulheres estrangeiras casadas. Estes dados além de reve-
larem que os homens migravam muito mais, demonstram que vários deles
tendiam a contrair matrimônio com as mulheres da terra.

354
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

grupo dos criadores e lavradores dos subúrbios da cidade, que


somavam 216 pessoas e também apresentavam 80% de brasilei-
ros. Portanto, ainda era possível vislumbrar um grupo de “estabe-
lecidos” na cidade, notadamente, uma parte significativa de sua
elite escravista. Os estrangeiros, com exceção dos portugueses na
primeira metade do século, praticamente não tiveram acesso ao
restrito círculo das fábricas de charque. Cada vez mais a elite char-
queadora fechava-se diante de investidores vindos de fora – algo
completamente distinto do que ocorria no Rio da Prata na mes-
ma época, onde ingleses e franceses possuíam entrada franca na
indústria da carne, no comércio e na pecuária, já em moldes capi-
talistas.18
Contudo, o gosto que as elites pelotenses, sobretudo os char-
queadores, nutriam pela novidade e pela cultura europeia não
poderia deixá-los separados da comunidade imigrante que resi-
dia na cidade. Embora o lugar social dos estrangeiros estivesse
bem definido, havia possibilidades dos mesmos ascenderem social-
mente a partir das relações costuradas com as famílias de elite
estabelecidas e foi nas atividades culturais da urbe que muitos
deles conseguiram estreitar relações com as mesmas. Segundo
Anjos, a alta presença de estrangeiros em todos os setores da po-
pulação pelotense, na área educacional, nos meios artísticos e
profissionais diversos, influenciou a transformação dos valores
vigentes e as próprias concepções de vida da elite local (ANJOS,
1996, p. 61). Esta interação social ajudou a favorecer a pretensa
europeização dos costumes entre as elites pelotenses. Conforme
César e Cerqueira, para alguns setores da elite local esta europei-
zação nada mais era do que uma forma de superar o estereótipo
rural, de rusticidade e escravismo que poderiam ser expostos di-
ante do olhar estrangeiro (CERQUEIRA; CESAR, 1994). De acor-
do com Magalhães, a civilidade e a urbanidade também contri-
buiram para que a elite local de Pelotas respirasse um culto exage-

18
Para uma consideração a cerca dessa diferença, ver BELL (1993).

355
VARGAS, J. M. • “Entre o local e o global”: imigração, relações sociais e
perfil ocupacional dos estrangeiros na cidade de Pelotas (1850-1890)

rado às letras. E a este mesmo culto “pode-se creditar uma das


fortes manifestações do bairrismo pelotense” (MAGALHÃES,
1993, p. 263). Eles se viam diferentes dos demais habitantes do
interior da província criando uma tradição de superioridade de
suas elites em comparação com a de outros municípios. Tal com-
portamento provocou reações adversas como a do viajante W.
Haernisch que declarou o seguinte sobre Pelotas e sua elite: “a
aristocracia que nela se fundou foi exclusivista. Ser pelotense vale
para o mesmo pelotense como uma especialidade; sua terra, ou
melhor, sua cidade, é o centro de todo o seu ser” (HAERNISCH,
1952, p. 85).
Diante deste exclusivismo, o mercado matrimomial visado
pelas poucas famílias charqueadoras ricas tornava-se cada vez mais
exigente. As alianças endogâmicas no interior da elite rio-gran-
dense já não eram mais suficientes, pois as mesmas famílias pas-
saram a buscar casamentos com elites de outras províncias e foi
nesse espaço aberto pelas pretensões europeizantes das mencio-
nadas famílias que os genros estrangeiros penetraram. Na primei-
ra metade do oitocentos, o casamento do comerciante inglês Ro-
bert Barker com uma filha do charqueador Gonçalves Chaves já
anunciava esta tendência. Entre os Simões Lopes, por exemplo, o
comendador João S. Lopes casou o seu filho Ildefonso com a fi-
lha de Joaquim de Castro Souza Medronho, coronel no municí-
pio cafeicultor de Bananal (SP). A filha de Ildefonso casou-se com
o filho dos Viscondes da Penha. Na mesma família, um dos filhos
do Visconde da Graça casou-se com a filha de Juan Saez de La
Mazza, nobre capitalista espanhol pertencente à família do Con-
de de La Mazza. Os Antunes Maciel tiveram uma das mulheres
da família casada com o comerciante inglês João Diogo Hartley e
outra com o político cearense José Júlio Alburque Barros, o Ba-
rão de Sobral. Entre os Silva Tavares, o Dr. Francisco contraiu
matrimônio com a filha de uma família paulista. A neta do Barão
de Jarau, filha do Dr. Joaquim Assumpção, por sua vez, casou-se
com a D. Haydée Bordagorri. O Barão de Correntes teve dois gen-
ros de famílias espanholas, o proprietário Ramon Trapaga e o

356
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

capitão Guilherme Echenique, além de de uma filha que foi mo-


rar com o marido no Rio de Janeiro (VARGAS, 2016).
As festas, os saraus e os bailes nas casas dos charqueadores
e nas associações e clubes aos quais os mesmos frequentavam
constituíam-se no cenário perfeito para a ostentação não apenas
das jóias, das carruagens, da criadagem e do seu vestuário, sem-
pre na moda, como das boas maneiras, hábitos e cultura letrada
dos membros de suas famílias, incluindo genros de outras partes
do Brasil e até da Europa. A suposta prática do mecenato e a
promoção do progresso e da educação não era compartilhada por
todos, mas, principalmente, por algumas das mesmas famílias dos
charqueadores mais ricos de Pelotas, como os Simões Lopes, os
Antunes Maciel, os Moreira, os Tavares, os Cunha, entre outros.
Portanto, ocupando posições distintas nos espaços filantrópicos,
educacionais, artísticos esta elite reforçava a sua dominação social
sobre os demais legitimando-se, por meio de uma relação extre-
mamente complexa, como os mais aptos a governarem a sua socie-
dade e a representá-la em outros espaços de poder (VARGAS,
2016).
Como os artistas não possuíam uma segurança mais pro-
fissional para exercerem as suas atividades, geralmente as elites
pelotenses, entre as quais estavam muitos charqueadores, aco-
lhiam seus projetos e realizações. Neste sentido, ao mesmo tem-
po em que recebiam pintores, poetas, escultores, professores e mú-
sicos em suas casas e sob a sua proteção, os charqueadores ofere-
ciam um espaço de convivência para que seus filhos e filhas se
sentissem atraídos pelos mesmos caminhos da arte. Conforme
Cândida Rocha, os concertistas eram recebidos nas casas dos ri-
cos e muitas vezes ensinavam suas filhas a tocarem piano, harpa e
a cantar, sendo que muitos deles eram europeus. Não demorou
muito e do seio destas mesmas famílias surgiram importantes ar-
tistas com renome regional e até internacional. Alice Ramos, que
descendia das famílias Silveira Martins e Antunes Maciel, apre-
sentou-se várias vezes no Teatro 7 de Abril e tinha em Chopin,
Mozart e Schumann seus compositores favoritos. Maria Francis-

357
VARGAS, J. M. • “Entre o local e o global”: imigração, relações sociais e
perfil ocupacional dos estrangeiros na cidade de Pelotas (1850-1890)

ca da Costa Silva, neta do coronel Anibal Antunes Maciel, tam-


bém teve destaque neste meio artístico. Acostumada ao protago-
nismo nos saraus e salões da pequena Pelotas, também apresen-
tou-se na Corte, onde cantou para o Imperador acompanhada do
maestro Carlos Gomes. Maria Francisca foi uma das senhoras da
elite rio-grandense que esteve no último Baile da Ilha Fiscal, em
1889. Contudo, Zola Amaro foi a mais famosa de todas. Neta do
Visconde da Graça, tornou-se uma grande cantora de ópera, ten-
do se apresentado nas principais cidades da América e da Euro-
pa ao lado de grandes tenores e sob a regência dos principais
maestros da época. A inserção dos familiares dos charqueado-
res neste espaço artístico e cultural permaneceu forte nas pri-
meiras décadas do século XX. Em 1918, por exemplo, estavam
entre os líderes da fundação e presidência do 1º Conservatório
de Música de Pelotas, os senhores Dr. Francisco Simões Lopes,
Francisco Gomes da Costa, Alfredo da Silva Tavares e Francis-
co Moreira, revelando que estes sobrenomes eram quase que
onipresentes em todos os espaços sociais da cidade (ROCHA,
1979, p. 95-99; 123-134).
Neste mesmo sentido, este grupo de charqueadores não
demorou a contratar pintores europeus para retratarem a si mes-
mo e a seus familiares. Conforme Magalhães, foi comum os mem-
bros da elite pelotense solicitarem os serviços destes artistas e al-
guns deles tiveram certo renome na localidade. Mariza Souza e
Neiva Bohns analisaram como o prestigiado pintor Frederico Tre-
bbi retratou os familiares dos charqueadores Barão de Butuí e
Barão do Jarau, por exemplo (SOUZA; BOHNS, 2011). Confor-
me Magalhães, as pinturas e retratos à óleo haviam virado moda
e era conveniente que os cidadãos mais respeitáveis se fizessem
retratar não apenas a si mesmos como também a seus ancestrais e
parentes próximos. Em janeiro de 1875, um anúncio de jornal
estimulava a prática: “O retrato é hoje uma necessidade por todos
reconhecida. O filho não pode negar-se a fazer retratar os seus
pais, porque nada pode trazer-lhe a memória uma recordação mais
agradável do que a imagem daqueles a quem deve amor e grati-

358
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

dão”.19 Como consequência disso, os charqueadores acavam pro-


porcionando um espaço de aprendizagem para suas filhas e ne-
tas. Nas exposições de arte locais era possível apreciar o talento
das moças e as técnicas que as mesmas haviam aprendido com
seus professores europeus. Entre as pintoras que expunham seus
trabalhos é possível verificar que pertenciam às famílias dos prin-
cipais charqueadores da cidade, dos seus parentes e de outros
membros da elite local, como as alunas Maria Francisca da Cos-
ta, Ambrosina Campello, Belarmina Sá de Araújo, Leocádia Ta-
vares, Maria Marques de Souza e Alice Cunha, por exemplo (MA-
GALHÃES, 1993, p. 192; 207-213). Além disso, alguns destes
ricos charqueadores também contrataram arquitetos italianos para
projetarem os seus casarões na cidade, como Felisberto Braga,
Francisco e Leopoldo Antunes Maciel (ANJOS, 1996, p. 75-76).

Considerações finais

Por mais de duas gerações, algumas famílias da elite pelo-


tense viram a cidade transformar-se e alterar o seu perfil social
diante dos seus próprios olhos. Se nas primeiras décadas do sécu-
lo XIX, Pelotas consituía-se numa cidade “negra”, visto a peque-
na proporção de habitantes brancos (1/3), a maciça entrada de
imigrantes europeus ao longo do século XIX e as pretensões aris-
tocráticas de sua elite branca alteraram bastante o perfil da popu-
lação, influindo na própria visão de mundo e no ethos desta mes-
ma elite. Neste duplo movimento, Pelotas jamais deixou de ser
uma cidade atlântica, recebendo um grande número de migran-
tes forçados e voluntários, das mais diversas regiões da Europa,
da América e da África, desde o início da sua história. Neste sen-
tido, as transformações ocorridas no mundo atlântico oitocentis-
ta podiam ser observadas nas próprias ruas da cidade, perante
uma diversidade de línguas, de cores, de culturas.

19
Jornal do Comércio, 14 de janeiro de 1875 (Biblioteca Pública Pelotense).

359
VARGAS, J. M. • “Entre o local e o global”: imigração, relações sociais e
perfil ocupacional dos estrangeiros na cidade de Pelotas (1850-1890)

Contudo, esta elite sofria de uma existência profundamente


paradoxal, pois aos olhos de muitos europeus, Pelotas não repre-
sentava somente luxo e dinheiro, mas também a barbárie. A ori-
gem de suas fortunas, ou seja, da mencionada riqueza que assegu-
rava o luxo, a educação e o lazer de suas famílias era fruto de um
espetáculo “horrendo”, nas palavras do inglês Herbert Smith. Nes-
te sentido, a escravização de milhares de trabalhadores negros e a
matança desenfreada de milhões de cabeças de gado contrastava
com a pretensa civilidade demonstrada pelos mesmos nos espaços
urbanos de sociabilidade. No mencionado contexto, a já dita pre-
tensa civilidade era sinônimo de”cultura europeia”, a qual as elites
buscavam compartilhar, vindo abrir espaços para estrangeiros que
pudessem transmitir tais conhecimentos por meio de seus ofícios
ou profissões. No final do período aqui estudado, os estrangeiros
ocuparam principalmente os estratos intermédios da sociedade pe-
lotense. Tal constatação pode indicar que as mencionadas alianças
matrimoniais com os charqueadores não interessavam somente aos
primeiros, que teriam acesso às famílias europeias, distinguindo-se
socialmente em uma cidade que valorizava bastante a cultura es-
trangeira. Elas possuíam um duplo interesse, uma vez que inserir-
se numa família da elite estabelecida oferecia um leque de possibili-
dades aos candidatos a genro estranhos àquela localidade.

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Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

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VARGAS, J. M. • “Entre o local e o global”: imigração, relações sociais e
perfil ocupacional dos estrangeiros na cidade de Pelotas (1850-1890)

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362
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

RESENHA CRÍTICA
WADI, Yonissa. A história de Pierina: subjetividade, crime
e loucura. Uberlândia: EDUFU, 2009. 464p.

Maíra Ines Vendrame

O livro A história de Pierina: subjetividade, crime e loucura é o


resultado da pesquisa de doutorado de Yonissa Wadi, defendida
no Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Univer-
sidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em 2002. Justifico a re-
senha desta obra pela importância que tem para os estudos da
sociedade camponesa italiana no Brasil, mas, também, pela abor-
dagem microanalítica utilizada pela autora. Partindo de fatos es-
pecíficos e seguindo a trajetória de uma mulher de 28 anos, mora-
dora de uma região de colonização italiana no sul do Brasil, a
autora propõem novas interpretações sobre a condição feminina,
revelando as tensões da vida familiar numa comunidade rural e
as relações entre subjetividade, sociedade e saber médico psiquiá-
trico no Rio Grande do Sul na primeira década do século XX.
Em julho de 1909, Pierina, com então 28 anos, é encami-
nhada às autoridades policiais por ter cometido um crime. Filha
de imigrantes italianos, mãe de uma menina de nove meses, resi-
dente no munícipio de Garibaldi, antigo núcleo colonial de Con-
de D’Eu, Pierina Cechini foi acusada de ter afogado a filha pe-
quena num recipiente com água no porão da casa onde residia.
Depois de ter sido indiciada pelo crime de infanticídio foi enca-
minhada para o Hospício São Pedro, na capital Porto Alegre, sob
a suspeita de sofrer das faculdades mentais. Entre julho de 1909 e
maio de 1911, período em que esteve internada no hospício, es-
creveu diversas cartas para os familiares e para os médicos legis-

363
VENDRAME, M. I. • Resenha crítica – A história de Pierina

tas. Nos documentos explicava as motivações que a levaram a


matar a própria filha, os temores e as dificuldades vividas por ela
no contexto familiar.
As cartas de Pierina, localizadas junto ao seu prontuário
médico, bem como a documentação judicial em que foi indiciada
por infanticídio, são as fontes através das quais Yonissa Wadi de-
senvolveu a pesquisa. Assim, através dos escritos pessoais da per-
sonagem, a autora pôde analisar variados temas como: conflitos
familiares, modos de viver no contexto rural, organização do tra-
balho, relação com a terra, o papel da mulher nas colônias de
imigrantes, concepções de doença e formas de tratar os males cor-
póreos e psicológicos. O trabalho foi dividido em três capítulos.
No capítulo intitulado “Caminhos”, Wadi reconstrói as diferen-
tes experiências vividas por Pierina no contexto familiar e comu-
nitário antes de ter cometido o crime. O sofrimento, a pobreza, a
obediência às decisões paternas e o trabalho marcaram a vida da
personagem, segundo a mesma ressalta em seus escritos. O na-
moro, a escolha do noivo, o casamento e a decisão de morar na
casa paterna são alguns dos eventos que a autora busca contextua-
lizar tendo por base os costumes e práticas vivenciados pelas fa-
mílias de imigrantes italianos e descendentes nas regiões colo-
niais do Rio Grande do Sul.
Com a idade de 24 anos, Pierina casou-se sem saber o que
“significava uma vida de casada”. Indicando não ter recebido
educação sexual, e ignorando ter conhecimento sobre certos as-
suntos, ela afirmou ter se casado com a intenção de permanecer
ao lado do marido até o dia de sua morte, pois acreditava que
teria uma vida feliz, mas era a “mais infeliz de todas as [...] ir-
mãs” (WADI, 2009, p. 104). Essa infelicidade era atribuída ao
trabalho na roça, as dívidas que o casal possuía, ao costume de
beber do marido e, especialmente, ao fato do pai disponibilizar
pouco dinheiro para eles. Por viverem na casa paterna, o casal
tinha o compromisso de dar o dinheiro que adquiriam com traba-
lhos agrícolas e serviços nas estradas de ferro, e esse foi um dos
motivos que causava tensões e descontentamentos por parte de

364
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Pierina. As despesas do parto consumiram a única reserva de di-


nheiro que o casal possuía. Nesse sentido, depois do nascimento
da primeira filha, algumas preocupações parecem ter ficado mais
intensas para a jovem mãe.
Atenta às indicações fornecidas nas cartas, Wadi vai cons-
truindo a narrativa de forma a mostrar tanto as tensões ocorridas
no âmbito familiar quanto às angústias, descontentamentos e de-
sejos sentidos pela personagem analisada. Pierina vive em cons-
tante conflito, entre as demandas de sobrevivência, reprodução
social familiar e a vontade de ter uma vida diferente daquela que
estava experimentando. Mesmo cercada pelos atritos do âmbito
familiar e pela “rotina doméstica”, parece ter acontecido momen-
tos de “compartilhamento, congraçamento e lazer”, já que a filha
de Pierina e Giacomo deu seus primeiros “balbucios, engatinhou,
ensaiou os primeiros passos, brincou, riu e chorou...” (WADI,
2009, p. 142-143). Já nos primeiros meses de vida, a pequena El-
vira foi afastada da mãe como forma de interromper a amamen-
tação, ato esse visto como responsável pelo enfraquecimento de
Pierina e sua piora mental.
No segundo capítulo, chamado “Loucuras”, Wadi con-
textualiza as escolhas tomadas pelos familiares e por Pierina,
relacionando com as preocupações e caminhos comuns das famí-
lias camponesas que viviam nas comunidades de colonização ita-
liana nas primeiras décadas do século XX. O recurso da reza, da
benção, da intervenção de padres e benzedeiras, bem como de
curandeiros, práticos e médicos eram possibilidades seguidas pela
população colonial. Após ser afastada da filha, os problemas exis-
tentes ganharam outra dimensão. Ao ser considerada incapaz de
realizar atividades domésticas, Pierina recebeu assistência médi-
ca e também religiosa. Apesar de nenhuma doença ter sido diag-
nosticada, a vizinhança começou a comentar que ela era “louca”.
Preocupada e alarmada com os falatórios, Pierina passou a acre-
ditar no próprio “estado de loucura”. Os familiares não parecem
ter aceitado o veredito da vizinhança, tanto que, num primeiro
momento, não concordaram em levar Pierina para tratamento.

365
VENDRAME, M. I. • Resenha crítica – A história de Pierina

A autora constrói uma narrativa em que compartilha com


o leitor as dúvidas que surgiram no decorrer da pesquisa, levan-
tando questões do tipo: qual era o peso que a denominação “estar
louca” tinha para a população colonial? Que imaginário era par-
tilhado entre a população sobre loucura e os loucos? Ser reconhe-
cida como louca pelos vizinhos e parentes tinha um peso muito
forte no grupo estudado. Isso permite entender as constantes pre-
ocupações de Pierina em relação aos comentários e avaliações
das pessoas da comunidade em relação ao seu estado. As especu-
lações sobre sua situação fizeram com que a família optasse por
afastar a mesma do local onde residia, recorrendo à assistência da
Santa Casa de Misericórdia. Escolha essa que poderia minimizar
o surgimento de mais comentários e avaliações negativas que cau-
sassem vergonha e prejudicasse de alguma forma a “boa fama”
do grupo familiar.
Tendo constatado um alto percentual de internados de na-
cionalidade italiana no Hospício São Pedro de Porto Alegre, Wadi
(2009, p. 208) sugere que esse fato poderia levar a supor que os
habitantes das regiões coloniais conviviam bem com a ideia de in-
ternar os “suspeitos de loucura”. No entanto, conforme verificou
através da experiência de Pierina, a decisão pela internação não era
facilmente aceita. Ao contrário do que os dados levam a supor, o
alto número de italianos e descendentes internados no hospício
indica para outras questões além das mais visíveis. A escolha pela
internação pode ser um sinal de que o afastamento da família e da
comunidade era necessário quando os indivíduos começavam a
perturbar demais, já que tal comportamento ocasionava instabili-
dade e prejuízos variados para o grupo familiar. Mais do que isso, o
alto percentual de italianos internados permite acessar uma deter-
minada racionalidade, bem como compreender os recursos prefe-
rencias quando alguém manifestava “estado de loucura”.
Assim, apesar de ter dedicado todo o segundo capítulo para
buscar entender o peso que tinha a denominação “louca”, uma
vez que a personagem estudada sentia vergonha de ser reconheci-
da como tal por seus vizinhos, acredito que o sentido de loucura

366
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

para a população colonial merece ainda novas investigações. As


escolhas da família e as explicações fornecidas pela jovem mãe
devem interessar o pesquisador para além da questão da subjeti-
vidade. Não é o pessoal pelo pessoal que merece ser analisado,
nem o particular pelo quanto ele pode contradizer o geral, pois
não é isso que torna o caso interessante. O específico e o subjetivo
devem interessar porque é através deles que é possível propor no-
vos questionamentos para se entender questões mais amplas, como
as formas de pensar e viver nas comunidades coloniais, as estraté-
gias cotidianas acionadas pelas famílias, os recursos existentes e
o peso do controle social exercido pela vizinhança.
Frente à vergonha sentida por Pierina de ser reconhecida
como “louca” pelos vizinhos e familiares, além da tentativa fra-
cassada de um primeiro internamento na Santa Casa de Miseri-
córdia, surgiram explicações de que ela poderia estar enfeitiçada.
O entendimento de que a doença que a acometia tinha origem
sobrenatural fez com que recebesse o tratamento das irmãs de
São José. Assim, entre os meses de dezembro de 1908 até o fim
de fevereiro de 1909, Pierina foi assistida pela pelas freiras em sua
própria residência.1 A doença, como fruta de um feitiço, conse-
quência de possessão demoníaca e castigo divino eram explica-
ções compartilhadas pelas irmãs e pela população colonial. Em
carta posterior, emitida para os médicos, Pierina afirmou que o
“diabo botou chifre na minha família [...], queria tomar minha
alma, ele me fez judiar de meu corpo” (WADI, 2009, p. 235).
Além do atendimento das irmãs, que possivelmente reforçaram a
crença na força do demônio, “dois feiticeiros” também frequen-
taram a casa da “louca”.
Diferentes alternativas foram buscadas para solucionar as
perturbações que atormentavam Pierina. Todas elas foram con-

1
A ordem das irmãs de São José de Moûtiers se instalou em Garibaldi em 1898,
a convite do bispo de Porto Alegre Dom Cláudio Ponce de Leão. Na região
colonial se dedicavam à educação dos jovens e aos cuidados ligados à saúde das
famílias imigrantes (WADI, 2009, p. 231).

367
VENDRAME, M. I. • Resenha crítica – A história de Pierina

textualizadas pela autora através do entendimento das crenças do


grupo imigrante, dos tratamentos recorrentes e das práticas médi-
cas utilizadas no período. E assim, procurando entender o signi-
ficado das palavras e explicações da “louca”, Wadi vai recons-
truindo os contextos que lhe dão sentido. Ela também comparti-
lha com o leitor suas hipóteses, quando se depara com as afirma-
ções da personagem: os “jejuns forçados ou consentidos”, as mar-
cas do sofrimento e “as analogias feitas por Pierina sobre seu cor-
po, comparando-o com um fantasma ou com alguém prestes a
morrer, fazem-me imaginá-la, por vezes, semelhante às descrições
e às imagens reais de mulheres anoréxicas...” (WADI, 2009, p.
230). Os sentimentos e as dúvidas que a leitura das cartas de Pie-
rina provocou na pesquisadora são compartilhados com o leitor
através de uma narrativa que garante a proximidade com a perso-
nagem estudada.
Ressalto aqui o quanto pode ser perigoso para o historia-
dor à análise de documentos pessoais. Deve-se estar atentos para
não ficarmos presos às emoções que os relatos despertam, pois é
nosso dever ir além das justificativas emotivas fornecidas pelos
indivíduos estudados. Nesse sentido, pensando no caso de Pieri-
na, não é somente o sofrimento, o peso do tratamento e os aspec-
tos do corpo que devem interessar o pesquisador, mas, também,
os motivos das escolhas em relação a determinados procedimen-
tos, já que é através deles que iremos adentrar no universo social e
cultural do grupo investigado.
No último capítulo do livro, intitulado “Labirintos”, é apre-
sentada a trajetória da protagonista após assassinar a filha por
afogamento numa bacia de água. Esse crime ocorreu poucos dias
depois do falecimento do pai de Pierina, em abril de 1909. Presa e
interrogada ainda em Garibaldi, logo após foi encaminhada para
o Hospício São Pedro, em Porto Alegre. A partir desse momento,
a autora irá apontar como as questões de gênero estarão presen-
tes na investigação policial. Um dos aspectos que indica para isso
é o fato de não ter sido solicitado depoimento das mulheres que
trataram de Pierina. Os atributos de gênero considerados positi-

368
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

vos foram rompidos pela personagem estudada a partir do mo-


mento em que ela mata a própria filha. Assim, se inicialmente
havia certa resistência dos familiares em encaminhá-la para o
hospício, tudo mudou rapidamente. A loucura de Pierina passou
a ser aceita assim que “ela enredou-se nas malhas da justiça”. No
momento em que começou a ocorrer à investigação sobre o infan-
ticídio passaram a serem construídas “verdades” discursivas so-
bre a ré. Religiosa, casada, trabalhadora e cumpridora dos papéis
de boa mãe e esposa, essas eram as imagens comunicadas pela
população colonial. Tais representações começaram a ser quebra-
das quando ela principiou a demonstrar insatisfação, manifestan-
do intenção de morrer por ser pobre e não ter o que vestir e querer
matar a filha para que não tivesse um destino semelhante ao seu.
Nesse sentido, as demonstrações de inconformidade com a situa-
ção vivida por ela fizeram com que os vizinhos passassem a julgá-
la como louca (WADI, 2009, p. 285).
Para os médicos, as dificuldades relatadas por Pierina em
relação ao casamento e à pobreza não eram motivos para desen-
cadear um quadro depressivo. As motivações do crime foram en-
contradas justamente naquela condição que a personagem nega-
va constantemente. O diagnóstico passava pela ideia de que ela
sofria de “perturbações da emotividade”, “da afetividade”, “da
vontade, da consciência moral, do carácter” (WADI, 2009, p. 377).
Logo, os médicos concluíram, depois de passados dois anos do
crime, que ela era uma doente mental e que sua loucura era mo-
ral. Tal constatação era fruto da observação dos legistas sobre as
conversas que tiveram com a internada e da avalição das cartas,
nas quais constataram a “instabilidade do psíquico”.
Pierina utilizou-se das cartas enquanto recurso para escla-
recer as motivações que a levaram a matar a própria filha e a con-
testar as explicações que vivia em “estado de loucura”. Apresen-
tou a sua narrativa para os médicos e juiz, na qual reforçava que
“eu não sou loca, eu sou criminosa” (WADI, 2009, p. 327). Antes
mesmo de cometer o crime, a personagem era descrita como lou-
ca pelos conhecidos no município de Garibaldi, motivo esse que

369
VENDRAME, M. I. • Resenha crítica – A história de Pierina

fazia aumentar o seu descontentamento com a vida que levava.


Pierina rejeitava a própria condição, negava os papéis sociais e
queria expor o conflito interno que enfrentava. Este seu compor-
tamento sustentava a opinião que os vizinhos faziam dela.
A lógica masculina que avaliou as explicações de Pierina
não permitiu que considerasse as queixas de infelicidade e pobre-
za apresentadas por ela. Eles entenderam através da “mística de
um amor materno inato à natureza feminina” o caráter distorci-
do com que a mesma avaliava a realidade (WADI, 2009, p. 370).
Levar em conta as justificativas da personagem implicaria em per-
ceber as razões do infanticídio como um crime praticado de for-
ma consciente e para evitar uma vida de miséria e infelicidade
para a filha. Os argumentos apresentados por Pierina foram in-
terpretados como um sinal de doença. Não havia dúvidas em re-
lação à acusada, e tanto o promotor quanto o juiz, depois de ana-
lisarem o relatório dos médicos legistas, concluíram que “a de-
nunciada do ato de praticar o crime era irresponsável”, determi-
nando que fosse passado o “alvará de soltura” em favor da acusa-
da (WADI, 2009, p. 416).
Pierina, em carta aos médicos, solicitou para que fosse con-
denada pela morte da filha. Também demonstrou forte oposição
à ideia de retornar para o município de Garibaldi junto aos seus
familiares:
[...] mas para eu sair daqui para ir com minha gente nem de-
pois de morta, não quero ir nem com o marido nem com os
parentes, eu não posso, mais, combinar [...]. Senhores douto-
res, eu lhes peço, por favor, eu tenho dois lugares, ou cadeia
por toda a vida, ou aqui, mas não famílias, não quero ir, não
desejo mais passar nenhum dia de vida na família [...] (WADI,
2009, p. 409).

Para a mãe, Pierina reforçou sua vontade: “Minha querida


mãe muitas saudades de toda a minha gente, mas eu, em Garibal-
di não desejo voltar mais” (WADI, 2009, p. 406). Apesar da recu-
sa, em maio de 1911, ela retornou para casa e para a companhia
do marido. Depois de quase dois anos internada no Hospício,

370
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Pierina voltou a viver uma vida de casada, tornando-se mãe de


outros seis filhos. Ela nunca mais seria internada, passando a cum-
prir com o papel esperado de mulher da região colonial: “um fi-
lho a cada ano, a dedicação à criação, ao lar e ao marido, o cum-
primento da rotina doméstica, das funções religiosas e sociais”,
conforme as demandas que se faziam ao sexo feminino “naquele
tempo e naquele lugar” (WADI, 2009, p. 421).
No livro “História de Pierina”, Wadi analisa contextos e
um universo de possibilidades sobre as experiências das mulheres
e homens que viviam no período histórico estudado. Usando de
termos como talvez e provavelmente, a autora, por meio de sua
narrativa envolvente, busca entender as escolhas da biografada.
Através da racionalidade e decisões de outros indivíduos que vi-
veram na região colonial, procura imaginar as reações da perso-
nagem central, o que pode ou deve ter sentido nos diferentes mo-
mentos da trajetória analisada. Nesse sentido, foi estudando as
ações de outros sujeitos para intuir sobre o mundo que Pierina
conheceu e “as maneiras de ser que encontrou para si” (WADI,
2009, p. 48).
Essa perspectiva metodológica e teórica encontra sustenta-
ção nos trabalhos de Carlo Ginzburg (1989) e Natalie Zemon Davis
(1987), aquele um dos expoentes do método da micro-história
italiana. Para que a vida de Pierina ganhasse densidade e fosse
possível a ligação entre o caso específico e seu contexto, Wadi
seguiu pistas, indícios, sinais e buscou informações significativas
nas entrelinhas dos documentos. Deste modo, procurou “esmiu-
çar o implícito” na pesquisa, utilizando-se de uma narrativa que
permitia imaginar as possibilidades da história vivida pela perso-
nagem (GINZBURG, 1989b, p. 150). A autora considerou Pieri-
na como uma “mulher singular”.
É certo afirmar que toda vida tem sua singularidade, con-
tudo, acredito que existiram outras “Pierinas” nos núcleos colo-
niais daquele período, mesmo que não tenham cometido crimes
como o dela. Neste caso, o excepcional não seria a personagem,
mas os documentos escritos por ela. Os documentos excepcio-

371
VENDRAME, M. I. • Resenha crítica – A história de Pierina

nais podem indicar para uma racionalidade, um costume e práti-


ca social comum no cotidiano (GRENDI, 2009).2 Se, normalmen-
te, as fontes silenciam ou distorcem a realidade das “classes su-
balternas, um documento que seja excepcional (e, portanto, esta-
ticamente não frequente) pode ser mais revelador do que mil do-
cumentos estereotipados” (GINZBURG, 1989a, p. 177). As car-
tas de Pierina indicam para a vida em família, as tensões internas,
as expectativas, as frustrações, o julgamento comunitário, etc., e
como uma mulher poderia reagir a isso vivendo em uma pequena
comunidade de colonização italiana. A maneira como cada uma
reage não é igual, e o que deve nos interessar é acessar o universo
de possibilidades e limites daquela realidade.
Para finalizar a presente resenha de A história de Pierina:
subjetividade, crime e loucura, saliento que o livro não esgota a
análise e compreensão sobre a vida de Pierina. Pelo contrário, as
experiências vivenciadas pela personagem permitem inferir sobre
outros contextos e possibilidades que não foram aprofundados.
Acredito que confrontar a trajetória da personagem estudada com
outras que viveram na época permitirá questionamentos amplos,
como o do controle social no interior da família e na vizinhança,
sobre os mecanismos para evitar prejuízos morais e restaurar o
equilíbrio familiar e comunitário em momentos de tensão.

Referências
DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987.
GINZBURG, Carlo. “Provas e possibilidades”. In: A micro-história e outros
ensaios. Lisboa: Difel. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 179-202.
_____; PONI, C. “O nome e o como: troca e mercado desigual e merca-
do historiográfico”. In: GINZBURG, C. Micro-história e outros ensaios. Rio
de Janeiro: Difel, 1989a, p. 169-178.

2
Edoardo Grendi (1977; 2009) foi quem primeiramente definiu o “excepcional/
normal” para os documentos.

372
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

______. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In: Mitos, emble-


mas, sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989b, p. 143-179.
GRENDI, Edoardo. “Microanalisi e storia sociale”. In: Quaderni Storici,
v. 12, n. 35, 1977, p. 506-520.
_____. “Microanálise e história social”. DE OLIVEIRA, Monica Ribei-
ro; AlMEIDA, Carla Maria Carvalho de (orgs.). Exercícios de micro-histó-
ria. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 19-38.
VENDRAME, Maíra. O poder na aldeia: redes sociais, honra familiar e
práticas de justiça entre os camponeses italianos (Brasil-Itália). São Leo-
poldo: OIKOS, 2016.
WADI, Yonissa. A história de Pierina: subjetividade, crime e loucura. Uber-
lândia: EDUFU, 2009.

373
374
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Sobre os autores e as autoras

Adriana Barreto de Souza


Mestre e doutora em História Social pela Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro (UFRJ, 2004), com estágio na École des Hautes
Études en Sciences Sociales (EHESS, 2001), e professora associada do
Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRuralRJ), com pós-doutorado na Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP, 2015). É pesquisadora do CNPq e Jovem
Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). Foi pesquisadora visitante no
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa – ICS/UL
(2011/2012 e 2014/2015) e na Universidade de Paris I – Panthéon
Sorbonne (2015/2016). Recebeu, em 1997, o Prêmio Arquivo Nacio-
nal de Pesquisa com a dissertação de mestrado intitulada: “O Exérci-
to na consolidação do Império: um estudo histórico sobre a política
militar conservadora”, publicada em 1999. Em 2008, sua tese de dou-
toramento foi publicada pela Civilização Brasileira com o título “Du-
que de Caxias: o homem por trás do monumento”.

Alejandro Fernández
Doutor en História pela Universidad de Barcelona e Mestre
em Ciências Sociais pela Faculdade Latinoamericana de Ciências
Sociais (FLACSO). Professor e investigador da Universidad Nacio-
nal de Luján, aonde dirige o mestrado em Ciências Sociais. Ex- pro-
fessor visitante em Universidades da Espanha, Itália e França. Co-
diretor da revista Estudios Migratorios Latinoamericanos. Autor de Un
mercado étnico en el Plata. Emigración y exportaciones españolas a la Argen-
tina, 1880-1935, Madrid, CSIC, 2004; Migraciones internacionales, acto-
res sociales y Estados, Madrid, Iberoamericana-Vervuert, 2014 (com
E.González Martínez); Las migraciones españolas a la Argentina. Varia-
ciones regionales (siglos XIX y XX), Buenos Aires, Biblos, 2008 (con N.De
Cristóforis) y La inmigración española en la Argentina, Buenos Aires,
Biblos, 1999 (com J.C. Moya).

375
Sobre os autores e as autoras

Alessandro Casellato
Pesquisador de História Contemporânea vinculado ao Dipar-
tamento di Studo Humanistici da Università Ca’Foscari, Veneza. Ensina
história contemporânea e história oral; têm estudado movimentos
sociais e políticos do século XIX e XX na Itália e no Vêneto e escrita
autobiográfica. Foi co-diretor do Istituto per la storia della Resistenza e
della società contemporanea di Treviso (1998-2013), membro diretivo da
Associazione Italiana di Storia Orale (2007-2013). Foi organizador de
diversos livros e autor vários artigos sobre história contemporânea da
Itália e os usos das fontes orais.

Alexandre Karsburg
Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). Autor de dois livros: “O Eremita das Américas”
(2014) e “Sobre as ruínas da velha matriz” (2007), ambos publicados
pela editora da Universidade Federal de Santa Maria. Possui gradua-
ção em História Licenciatura Plena pela Universidade Federal de Santa
Maria – UFSM – (2004) e Mestrado pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS – (2007). Participa do gru-
po de investigação sobre o movimento do Contestado, projeto vincu-
lado a Universidade Federal de Santa Catarina. Professor colabora-
dor e bolsista Capes de pós-doutorado (PNPD) no Programa de Pós-
Graduação em História da UNISINOS.

Ana Silvia Volpi Scott


Graduada em História pela Universidade de São Paulo (1981).
Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (1987) e
Doutora em História e Civilização pelo Istituto Universitario Euro-
peo/ Florença-Itália (1998). Professora vinculada ao Departamento
de Demografia e Núcleo de Estudos de População (NEPO), ambos
da UNICAMP. Foi docente do Programa de Pós-Graduação em His-
tória da UNISINOS (2005-2015) e Coordenadora do mesmo Progra-
ma entre março de 2014 e fevereiro de 2015. Coordenadora-adjunta
do Comitê Assessor da área de Ciências Humanas e Sociais da Fun-
dação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (2011-
2014). Foi contemplada com o Prêmio de História Alberto Sampaio
(Portugal) pela tese de doutorado “Família, formas de união e repro-
dução no noroeste português” (1999).

376
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Edianne dos Santos Nobre


Graduada em História pela Universidade Regional do Cariri
(2007). Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (2010). Doutora em História pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro com Estágio Doutoral (PDSE/CAPES) na Università
degli Studi di Roma La Sapienza (2014). É autora do livro “O Teatro
de Deus: as beatas do Padre Cícero e o espaço sagrado em Juazeiro
(Século XIX, Brasil)” publicado em 2011 e do livro “Incêndios da
Alma: A beata Maria de Araújo e o milagre de Juazeiro – Brasil,
Século XIX” publicado em 2016. Atualmente é Professora Adjunta
do Departamento de História da Universidade de Pernambuco – UPE.
É líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Festas e Religiosidades
(GEFRE – UPE). Sua tese de doutorado foi premiada com o Prêmio
de Teses Manoel Salgado Guimarães (2014) do Programa de Pós-
Graduação em História Social da UFRJ, ganhou o Prêmio de Teses
Capes 2015 na área de História e recebeu a menção honrosa do Prê-
mio Gilberto Velho em 2016.

Emilio Franzina
Professor emérito da Università degli Studi di Verona. Estudioso
da emigração italiana no mundo, do movimento católico e socialista
do Vêneto, tem pesquisado sobre temas referentes ao processo emi-
gratório dos séculos XIX e XX. É autor de vários livros sobre o tema
das migrações históricas internacionais, que foram publicados em di-
versas línguas. No Brasil: A Grande Emigração: o êxodo dos italianos
do Vêneto para o Brasil (2006).

Gabriel Santos Berute


Graduado em História pela Universidade Federal do Rio Gran-
de do Sul (2003). Mestre e doutor em História pela Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Sul (2006/2011). Realizou estágio de douto-
ramento na Universidade Técnica de Lisboa/ISEG – Setor de His-
tória (2010). Realizou estágio de pós-doutoramento no Programa
de Pós-graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos, entre 2012 e 2015, com financiamento CNPq (PDJ-CNPq),
CAPES e FAPERGS (DOCFIX-CAPES/Fapergs). Tem experiência

377
Sobre os autores e as autoras

na área de História, com ênfase em História do Brasil Colônia e Im-


pério, atuando principalmente nos seguintes temas: Tráfico de escra-
vos, Escravidão, Comércio & Comerciantes, Imigração açoriana.
Atualmente é professor na área de História do Instituto Federal do
Rio Grande do Sul (IFRS-Campus Ibirubá).

Giovanni Levi
Professor emérito História Moderna da Università di Ca’foscari
Venezia, Itália. Também trabalhou na Universidade de Turin, Viterbo
e numerosas universidades estrangeiras (França, Espanha, Argenti-
na, Estados Unidos). Dirigiu a coleção Microstorie (Einaudi) e a revista
“Quaderni storici”. É coordenador do doutorado “Europa, o Mundo
Mediterrâneo e sua Projeção Atlântica” do programa de estudos avan-
çados da Università Pablo de Olavide di Siviglia. Também é membro do
conselho didático do doutorado de História Social Europeia do Me-
dievo à Idade Moderna da Università di Ca’ Foscari. Escreveu os li-
vros: “A herança imaterial”, publicado no Brasil em 2001 pela Com-
panhia das Letras; Centro e periferia di uno stato assoluto, Torino, Rosen-
berg, 1985. Foi organizador, juntamente com Jean-Claude Schmitt, do
livro “História dos Jovens”, publicado pela companhia das letras, em
1996. É autor de vários artigos em livros lançados no Brasil.

Jonas Moreira Vargas


Graduado (2004) em História. Mestre em história pela Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul (2007) e Doutor pelo Programa
de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (2013). Foi Professor Substituto do Departamento de His-
tória da UFSM (2007-2009), Professor Colaborador do PPG-História
da UFRGS (2013-2015) e Investigador Visitante Júnior no Instituto
de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (2012). Possui expe-
riência na área de História econômica e História social da política no
século XIX. Recebeu menção honrosa no Prêmio de melhor Tese de
Doutorado (2013/2014) promovido pela Anpuh Nacional. Atualmen-
te é Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade
Federal de Pelotas.

378
Ensaios de micro-história, trajetórias e imigração

Luiz Augusto Farinatti


Professor do Departamento de História da Universidade Fede-
ral de Santa Maria (UFSM). Possui doutorado em história o social
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestrado em
história do Brasil pela PUCRS e graduação em História e em Direito
pela UFSM. Desenvolve pesquisas sobre a História do Brasil do sécu-
lo XIX, atuando principalmente nos seguintes temas: história agrá-
ria, hierarquias sociais, história da família, fronteira e construção do
estado no Brasil.

Maíra Ines Vendrame


Professora adjunta da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS). Graduou-se em História Licenciatura Plena pelo Cen-
tro Universitário Franciscano (2004). É mestre e doutora em histó-
ria pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC-RS (2013), com estágio doutoral (PDSE/CAPES) na Univer-
sità degli Studi di Genova (2012). Foi professora colaboradora no Pro-
grama de Pós-Graduação de História da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM) como bolsista PNPD/CAPES (2013-2015). Autora
dos livros: “Lá éramos servos, aqui somos senhores”: a organização
dos imigrantes italianos na ex-Colônia Silveira Martins (1878-1914)”,
pela editora da UFSM (2007) e “O poder na aldeia: redes sociais, hon-
ra familiar e práticas de justiça entre os camponeses italianos (Brasil-
Itália)”. Sua tese de doutorado foi vencedora do prêmio ANPUH-RS
(2015) de teses.

Mariela Ceva
Doutora em História, investigadora do CONICET (Consejo
Nacional de Ciencia y Técnica de la Argentina) e docente de História
Social da Argentina, na Universidade Nacional de Luján. Professora
em seminários de pós-graduação na Universidade Católica Argenti-
na e na Universidade de Luján. Especializou-se em história da imi-
gração e história de empresas na Argentina e na preservação do patri-
mônio histórico industrial. Publicou diversos livros, entre outros:
Empresas, Immigración y Trabajo e la Argentina: dos estúdios de caso (Fá-
brica Argentina de Alpargatas y Algodonera Flandria), na coleção La

379
Sobre os autores e as autoras

Argentina Plural, Biblos, Buenos Aires, 2010; em parceria com C. Tou-


ris e P. Fogelman publicou Los avatares de la nación católica. Cambios y
permanências en el campo religioso de la Argentina contemporânea, Buenos
Aires, Biblos, 2012.

Maurizio Gribaudi
Professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris.
Foi membro da comissão diretiva da revista Quaderni Storici (2008-
2011) e também diretor do Laboratoire de Démographie et Histoire Sociale
E.H.E.S.S. (http://www.ehess.fr/LaDéHiS/). Seu principal projeto
de pesquisa está ligado à análise das redes sociais e práticas culturais
do mundo operário, destacando-se a obra: Mondo operaio e mito
operaio. Spazi e percorsi sociali a Torino nel primo novecento, Torino, 1987.
Possuí artigos traduzidos para vários idiomas, tendo sido traduzido
para o português “Escala, pertinência, configuração”, publicado no
livro Jogos de Escalas, de Jacques Revel (1998).

Nikelen Acosta Witter


Professora do Departamento de História da Universidade Fe-
deral de Santa Maria. Graduada em História pela Universidade Fe-
deral de Santa Maria (1997). Mestre em História pela Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio Grande do Sul (1999) e doutora em Histó-
ria pela Universidade Federal Fluminense (2007). Possuí experiência
na área de História Contemporânea, com ênfase no século XIX. Suas
pesquisas de mestrado e doutorado centraram-se em História da Saúde
e das Práticas de Cura. Atualmente, ainda trabalhando no campo da
história cultural, dedica-se a investigações sobre História da Leitura.

Paulo Roberto Staudt Moreira


Professor adjunto da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível
2. Atual Presidente do Núcleo RS da Associação Nacional de Histó-
ria. Possui graduação em História pela Universidade do Vale do Rio
dos Sinos, mestrado em História pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (1993), doutorado em História pela Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Sul (2001) e pós-doutoramento na Universi-
dade Federal Fluminense.

380

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