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Introdução
Quantas vezes já não ouvimos algum relato ou mesmo vivenciamos
uma situação na qual um sujeito adulto encontra dificuldades para operar
um aparelho tecnológico qualquer – seja um celular, computador, televisão
etc. – e uma criança ou jovem de pouca idade rápida, fácil e habilidosa-
mente realiza a tarefa, deixando todos à volta perplexos? Situações como
essa se tornam mais e mais frequentes, imersas em um cenário no qual a
categoria “juventude” parece estar mais do que nunca atrelada ao conceito
de “tecnologia”.
Vivemos – principalmente nas sociedades de consumo ocidentais – a
época das redes sociais on-line, dos games, das mídias locativas, da inte-
ratividade, da convergência e da visibilidade, para citar apenas alguns dos
objetos e conceitos que nos rondam diariamente e que têm os jovens como
seus principais atores.1
Assim, observamos desde o início dos anos 2000 um conjunto de
discursos que ganham representações nos meios de comunicação e que pro-
1
Como se sabe, a categoria “juventude” pode ser entendida enquanto estilo de vida, faixa
etária, ethos da contemporaneidade, slogan publicitário, para citar algumas acepções
possíveis, passando desde abordagens de caráter mais biológico àquelas relacionadas
a abordagens socioculturais. Dessa forma, para evitar maiores problemas conceituais
e tendo em vista os objetivos imediatos deste artigo, iremos nos referir aos jovens
principalmente a partir de sua categorização etária, ou seja, sujeitos que possuem entre 16
e 29 anos de idade, seguindo a proposição da PEC (Proposta de Emenda à Constituição)
da Juventude aprovada pelo Congresso Nacional em setembro de 2010. Disponível em:
<http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=1&id_noticia=134106>. Último
acesso em 15.jun.2011.
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movem, claramente, uma “identificação da ‘cultura tecnológica’ como uma
‘cultura juvenil’” (Freire Filho e Lemos, 2008, p. 18).
A relação “natural” entre jovens e tecnologias, salientada tão enfati-
camente pelos veículos de comunicação de massa, talvez possa ser melhor
compreendida se buscarmos identificar que tecnologias são essas às quais
os jovens de hoje se sentem tão afeitos. Dizendo de outro modo, aposta-
mos que há uma especificidade no conjunto tecnológico que se articula de
modo tão corriqueiro à juventude na contemporaneidade que se distingue
de outros conjuntos tecnológicos do passado, com os quais não se deu essa
mesma relação de afinidade.
As perguntas a serem feitas, então, poderiam ser: quais são as tec-
nologias com as quais os jovens se envolvem e se sentem tão à vontade
hoje? O que tais tecnologias teriam de específico e o que as distinguiriam
de outros conjuntos tecnológicos, seja de outras épocas, seja mesmo na
contemporaneidade?
Não é necessário um estudo muito aprofundado para identificar as
tecnologias juvenis de hoje como sendo, na grande maioria dos casos,
dispositivos e aparelhos midiáticos digitais: TVs, celulares, smartphones,
computadores, players de música, laptops, tablets etc. Mais ainda, trata-se,
na maioria das vezes, de tecnologias usadas especificamente para a comu-
nicação, o consumo de entretenimento e de informação. E quando obser-
vamos que destreza é essa que qualificaria os jovens como experts em
tecnologias, constatamos que se trata, basicamente, da capacidade de lidar
funcionalmente com essas mesmas tecnologias, ou seja, realizar operações
sobre interfaces gráficas de sites, de programas ou de aplicativos, ope-
rações que lidam, quase que exclusivamente, com os chamados softwares
e quase nunca com os hardwares.
Em uma primeira constatação podemos afirmar, assim, que os jovens
de hoje sabem operar as tecnologias a partir das suas expressões gráficas
(interfaces), mas poucos desses jovens saberiam produzir, reproduzir ou
consertar essas mesmas tecnologias, se necessário, o que permite que a
genérica e natural relação de proximidade entre tecnologia e jovens seja,
em parte, questionada.
A constatação acima é importante, na medida em que nos orienta a
recortar de modo mais preciso o objeto “tecnologia midiática” com o qual
os jovens seriam afeitos, o que propomos fazer investigando, especifica-
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mente, aspectos materiais das tecnologias em questão, manifestos no con-
junto de interfaces gráficas através das quais se opera com as mídias atuais.
Assim, o presente estudo propõe explorar a hipótese que se traduz
na ideia comum de que jovens lidam melhor do que os mais velhos com
as tecnologias midiáticas contemporâneas, buscando compreender alguns
fatores sociais e materiais que envolvem as tecnologias em questão e que
podem colaborar para a validação da referida hipótese. Isso poderá alargar,
apostamos, questões correlatas e caras ao mercado e à antropologia do
consumo, como, por exemplo, de que maneira esse mesmo público jovem
consome mídias – entendidas como os aparelhos e dispositivos tecnoló-
gicos, os meios – e conteúdos midiáticos – música, games, filmes, textos,
imagens, informação, publicidade etc.
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que tem como matriz conceitual todo um conjunto de referências típicas
do grande campo das ciências sociais e, particularmente, dos estudos cul-
turais e dos estudos de recepção. Nessa perspectiva os sistemas simbólicos
são tomados como a matéria-prima a ser analisada, por excelência, e com-
preender as dinâmicas culturais de um grupo implica, fundamentalmente,
em decifrar os significados de práticas, leis e imaginário do grupo em
questão, em uma espécie de recorrência sistemática e comparativa entre
diferentes sistemas, todos simbólicos.
Em uma proposta que não exclui a dimensão simbólica-social, a
perspectiva materialista-cognitiva, que se inspira em um heterogêneo con-
junto de autores e de estudos – partindo de Marshall McLuhan (1964), pas-
sando por estudiosos de campos distintos, mas correlatamente implicados,
como as neurociências (Small e Vorgan, 2008; Green e Bavalier, 2003;
Riesenhuber, 2004) e os estudos literários (Gumbrecht e Pfeiffer, 1994;
Gumbrecht; 2004), chegando até o recente campo da neurofenomenologia
(Boivin, 2008); Lakoff e Johnson, 1999; Jackson, 2002; Bloch, 2004) –,
aposta que para além das ordenações sociais, eminentemente simbólicas,
podem-se pensar produções de sentidos e de comportamentos individuais e
grupais a partir das afetações de corpos e mentes por dimensões materiais
dos objetos e das tecnologias com os quais se lida, ou seja, pela dimensão
material da própria cultura em que cada um se inscreve e da qual participa.
Mas o fundamental quando apresentamos as duas perspectivas é
compreender que ambas devem ser sempre postas em posições contíguas
e complementares, não sendo possível demarcar rígidas fronteiras que as
separem. Trata-se de perspectivas que devem ser assumidas em momentos
distintos, passando de uma a outra, de modo sempre complementar, quando
o conjunto de elementos conceituais, teóricos e discursivos de uma não der
conta da complexidade do fenômeno ou processo a ser explorado.
É exatamente isso que propomos a seguir. Iniciando uma análise
do entretenimento através de uma perspectiva simbólica-social, através
da qual procuramos compreendê-lo como uma prática social com uma
história específica, procuraremos apontar – através de uma perspectiva
materialista-cognitiva – como aos poucos algumas características dessa
prática social ganham expressões materiais capazes de afetar um conjunto
específico de sujeitos, a saber, o público jovem, no que toca aos hábitos e
formas de lidar com as tecnologias atuais.
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2. Os três tempos do entretenimento
O entretenimento, como qualquer outra prática social, tem uma his-
tória e ao explorá-la podemos entrever momentos distintos que revelam
modulações importantes nas suas expressões.2
Podemos destacar, fundamentalmente, três fases na história do
entretenimento (Pereira e Coelho, 2008). Em um primeiro momento, que
remonta à antiguidade e vai até meados do século XIX, o entretenimento,
fazendo referência direta à palavra latina da qual se deriva, intertenere,
revela-se como algo que se fazia no intervalo entre atividades e ocupações
“sérias”, como uma prática fundamentalmente privada, restrita aos ciclos
familiares e grupais: jogos, declamações poéticas, música, brincadeiras
diversas, passatempos como quebra-cabeça etc.
Em um segundo momento, na virada dos séculos XIX e XX, o entre-
tenimento ganha destaque como fenômeno social variado, relacionando-
se diretamente a formas de diversão comerciais, normalmente baratas,
superficiais, de apelo popular e comumente sensacionalistas – circo de
horrores, espetáculos nos quais os artistas arriscavam a vida, feiras de tec-
nologias, cinema, a emergente música popular americana, especialmente
com as melodias e fraseados fáceis e envolventes do Dixieland3, seriam
alguns exemplos. Observamos que nesse contexto o entretenimento permi-
te e encoraja a emergência de um mercado e, posteriormente, verdadeiras
indústrias do entretenimento, como o cinema de Hollywood, as grandes
gravadoras de discos, os canais de TV e, já na virada dos séculos XX para o
XXI, a mais rentável das indústrias do entretenimento, os jogos eletrônicos,
ou games4.
2
Sobre a periodização do entretenimento, tal como apresentada, seguiremos Pereira
e Coelho, no texto “Porque o entretenimento deverá ser objeto de estudo e de ensino
nas escolas de Comunicação e de Negócios”, 2008. Disponível on-line em http://
meioslinguagens.blogspot.com/2008/05/texto-sobre-cultura-do-entretenimento.html
Último acesso: 28/07/2011.
3
Estilo tradicional de música Jazz que teria surgido em Nova Orleans, nos Estados Unidos,
no começo do século XX.
4
A esse respeito vale lembrar que o jogo GTA IV entrou para o Guinness Book como o
produto de entretenimento mais lucrativo da história. Em um período de 24hs o jogo faturou
em torno de US$ 310 milhões. Disponível em: http://geeksofdoom.com/2008/05/13/gta-
iv-thieves-guinness-world-records/. Último acesso em: 17.jun.2011.
80
Finalmente, podemos observar que depois de várias décadas em
que diferentes gerações consumiram produtos de entretenimento os mais
diversos, o entretenimento começa, nas últimas décadas do século passado
e nas primeiras deste, um terceiro estágio no qual se apresentará como uma
linguagem, compondo a maioria dos discursos e expressões midiáticas
contemporâneas.
Agora, não mais identificado exclusivamente a commodities, da
segunda fase da sua história, o entretenimento se torna híbrido junto a pro-
dutos e serviços, como um bem agregado que facilita, promove e incrementa
o comércio em geral. Trabalhando em favor de um abrandamento das fron-
teiras entre mundo do trabalho e diversão, o entretenimento passou a ser um
componente importante para atrair consumo e oportunidades de negócios.
As empresas e marcas se deram conta de que agora, quando a maioria de
consumidores nutridos pela cultura de massa demanda o entretenimento
como uma expressão permanente nas práticas comunicacionais e sociais,
não basta oferecer produtos ou serviços de qualidade, é preciso informar e
divertir, gerar experiências que ativem diferentes sentidos, de forma lúdica
e alegre. Como se todos estivessem viciados e demandassem cada vez mais
diversão e prazer, quase todas as esferas da sociedade recorrem ao entrete-
nimento de diferentes modos para compor seus discursos.5
5
É notável como a percepção do entretenimento como linguagem ganhou esferas sociais
que antes pareciam radicalmente opostas a esta prática, como a esfera religiosa. Nesse
sentido, é, no mínimo, curioso apelos como aquele que se apresenta no manifesto
“12 razões para eliminar o entretenimento em sua Igreja”, escrito pelo pastor Alan
Capriles, que se posiciona energicamente contra o excesso de entretenimento nas
igrejas evangélicas. Disponível em: http://www.eleitosdedeus.org/igreja/12-razoes-para-
eliminar-entretenimento-igreja-alan-capriles.html#axzz1SqgoMBJ9. Último acesso em
21.jun.2011.
81
• Envolvimento emocional
Em primeiro lugar, considerando narrativas de diferentes naturezas
– sejam discursos políticos, sejam mensagens mercadológicas, sejam dis-
cursos religiosos, educacionais etc. –, observamos que quase sempre tais
narrativas irão trabalhar de modo a promover uma espécie de envolvi-
mento emocional. Ou seja, em cada mensagem devem estar presentes ele-
mentos narrativos capazes de promover emoção e, assim, envolvimento
afetivo e imaginário. Isso, em parte, seria a antítese da neutralidade, da
imparcialidade e da transparência, como apregoam certas práticas como o
jornalismo e a política que, paradoxalmente, não só não estão imunes, como
frequentemente recorrem ao entretenimento como linguagem.
• Elementos lúdicos
Em segundo lugar, sempre devem comparecer elementos lúdicos.
Isso significa que as narrativas devem encantar pelos seus aspectos estéti-
cos e formais, promovendo experiências de deleite, afetação, prazer, estra-
nhamento, enfim, algo que evoque o extraordinário, como uma espécie de
transe ou passe de mágica, em que a natureza do que se percebe se trans-
forma e parece desafiar os próprios sentidos.
• Expressões multissensoriais
Em quarto lugar, a narrativa deve recorrer a expressões que demandem
e excitem a maior quantidade de sentidos possíveis. Não bastam, agora,
expressões apenas audiovisuais. O tato e, sempre que possível, o olfato
devem estar envolvidos e, se possível, de maneira integrada e harmoniosa,
de modo a evocar uma experiência não mediada tecnologicamente. Esse
ponto nos permite ver a valorização das linguagens tridimensionais (3D)
82
como expressões audiovisuais que, hoje, podem ser atualizadas como lin-
guagens visuaudiomotoras, típicas de mídias propioceptivas.6
6
Como linguagem visuaudiomotora entendemos o mais recente estágio das linguagens
audiovisuais, que a partir das suas expressões nos games e em filmes 3D requerem o
tato e o sentido da propiocepção como elementos constitutivos das suas gramáticas.
Em conformidade a essas gramáticas, as mídias propioceptivas seriam aquelas que são
sensíveis aos movimentos do corpo na execução de suas narrativas ou funções como
meios (para um aprofundamento dessas ideias, ver Pereira, 2008).
83
Figura 1: Interface gráfica do Word
84
Figura 3: Processo de criação de fan page no Facebook
85
• Visualidade tridimensional e tátil por excelência
Os recursos e informações visuais que se apresentam em quase todas
as interfaces expressam linguagens tridimensionais, mesmo se ocorrendo
em superfícies bidimensionais como a maioria das telas de computado-
res, celulares ou tablets. Nesses casos, a evocação à tridimensionalidade
se dá nas formas de composições visuais em perspectiva, em definições
hiperrealistas7, em angulações específicas, em movimentos de 360 graus
que apresentam objetos e tomadas de câmera em diferentes profundidades,
de modo que se tenha a impressão nítida de uma visualidade tridimensional
e, assim, tátil. Como exemplo dessa visualidade, pode-se citar a abertura da
novela Sete Pecados, exibida pela Rede Globo de junho de 2007 a fevereiro
de 2008, criada por Hans Donner, e que se utiliza da técnica da rotoscopia
de fotos cobrindo todos os ângulos de cada cena, aliada ao congelamento
das imagens em movimentos, causando uma visualidade tridimensional e,
portanto, tátil (ver fig. 5).
7
Essa expressão se refere à ideia de hiper-realismo, proposta em outro momento,
quando escrevemos: “O hiper-realismo deve ser entendido (...) como o conjunto
de experiências audiovisuais que é possível simular, da forma mais próxima
possível de um acontecimento do mundo — seja uma corrida de carros, um
jogo de basquete, ou uma batalha (...). Usamos essa expressão inspirados no
movimento de arte hiper-realista, do final dos anos 60, início dos anos 70,
especialmente nos EUA e na Inglaterra, também chamado de fotorrealismo, ou
realismo fotográfico, que consistia em pinturas e/ou esculturas tão detalhistas
nas suas expressões que causavam a sensação paradoxal de serem realistas de
mais para serem reais. Na pintura teve representantes como Duane Hanson,
Chuck Close, Richard Estes, George Segal, e na escultura, nomes como De
Andrea, David Hanson, Ron Mueck e Jorge Felício” (Pereira, 2008).
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Bom, é claro que em meio a todas essas expressões do entretenimento
como linguagem há, ainda, textos e elementos alfanuméricos que compõem
boa parte dos processos e operações em questão. Mas, mesmo nesses casos,
observamos que os textos procuram ser curtos, bem-humorados, claros e,
considerando seus aspectos formais, revelam boa parte dos elementos esté-
ticos mencionados acima. Ou seja, sempre que possível, ainda que na forma
geral de um texto, este procurará refletir aspectos como uma visualidade
tridimensional, lúdica e prazerosa, como pode ser exemplificado pelo
Prezi8, ferramenta on-line que permite a criação de apresentações não em
slides sequenciais – como no caso do Power Point –, mas sim em quadros
que compõem um mapa visual não linear e no qual se pode aproximar-se
(zoom in) e afastar-se (zoom out) das imagens e textos, configurando assim
modos de se apresentar conteúdos textuais (e não textuais) mais lúdicos e
dinâmicos.
Considerando, então, os modos como diferentes interfaces gráficas
das mídias digitais incorporam o entretenimento nas suas expressões, de-
vemos nos perguntar o quanto isso facilitaria para os jovens, especifica-
mente, o manuseio dessas tecnologias. De outro modo, poderíamos inda-
gar se todo o conjunto de características apresentado não facilitaria para
todos, incluindo públicos acima dos 30 anos, o manuseio das tecnologias
hodiernas. Por que, então, relacioná-las especificamente aos jovens?
8
http://prezi.com/.
87
dos mercados de massa (1880 até final da II Guerra Mundial); 2) o da eco-
nomia fordista, “revolução comercial” (1950 até 1970); e 3) o da sociedade
de hiperconsumo (desde fins de 1970 até hoje). Ainda que a tendência das
sociedades de consumo atualmente seja a desse mercado da sociedade de
hiperconsumo orientado mais pela procura do que pela oferta, pela globali-
zação dos mercados, pela economia de serviço (não mais centrada nos bens)
e pela individualização e personalização no consumo, não se pode negar a
importância da cultura de massa – surgida no primeiro ciclo apontado por
Lipovetsky – tanto em seus primórdios quanto ainda hoje como a criadora
de toda uma indústria cultural, marcada pela homogeneização da produção
e do consumo, que teve (e tem) como dominante o público juvenil.
A figura do jovem passa, principalmente após os anos 1950, a ser
central tanto enquanto os grandes consumidores dessa indústria cultural
como também como seu próprio “tema” principal, tendo em vista uma
série de fatores, tais como a dizimação de uma grande parcela da popu-
lação adulta masculina após as duas guerras mundiais (o que forçou de
certa forma que jovens e mulheres passassem a ocupar mais posições no
mercado de trabalho e assim também passassem a ter mais poder aqui-
sitivo e de autonomia de decisão); o crescimento econômico dos Estados
Unidos; relações de trabalho mais flexíveis (como empregos temporários,
que atraíam em grande medida o público adolescente); o aumento subs-
tancial da força produtiva relacionado a avanços tecnológicos; o boom do
consumismo; dentre tantos outros fatores que não nos caberá explorar aqui
(Freire, 2007; Lipovetsky, 2007; Vianna, 1992).
Assistia-se a um período no qual ideais de liberdade e esperança,
atrelados à constituição de sociedades de consumo avançadas que necessi-
tavam escoar suas produções para um novo (ou mais ampliado) mercado,
foram fundamentais para configurar essa ideia de uma juventude hedonista,
com poder de escolha, revolucionária, libertária, inovadora – ao mesmo
tempo em que muitas vezes indisciplinada, transgressora, rebelde ou até
mesmo infantil. E é nesse sentido que a cultura de massa foi central para
a construção dessa juventude, através da criação de produtos-signos como
estilos musicais, gêneros cinematográficos, ídolos etc., que não apenas têm
os jovens como seu grande público-alvo, mas principalmente a juventude e
suas questões como sua temática principal, atrelando a ideia de juventude
à de entretenimento.
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Não coincidentemente, vê-se surgir, principalmente após a Segunda
Guerra, uma série de ídolos e celebridades jovens em diversas esferas do
entretenimento, como música (Beatles, Rolling Stones, Elvis Presley etc.)
e cinema (James Dean, Marlyn Monroe, entre outros), além de conteúdos
criados e produzidos especialmente por e para os jovens, que passaram a
produzir e reproduzir os valores ligados à ideia da juventude com os quais
estamos lidando aqui (como o estilo musical rock n’ roll e o surgimento do
que se convencionou chamar de “cultura pop”, ainda nos anos 1950, e o
canal de televisão MTV já na década de 1980).9
Ora, se juventude e entretenimento formam um binômio decisivo
para compreendermos a cultura desde meados do século XX até a virada
para o XXI, podemos indagar se, mais uma vez, a manifestação do entre-
tenimento como linguagem não afetaria apenas os mais jovens hoje,
mas todas aquelas gerações nascidas depois da Segunda Grande Guerra.
Ou seja, sendo assim, dos babyboomers até a geração Y, todos se bene-
ficiariam e teriam as mesmas facilidades com as tecnologias midiáticas
contemporâneas.
Neste ponto devemos recorrer à segunda perspectiva que aventamos,
a materialista-cognitiva, pois, adiantamos, há sem dúvida um grupo bem
mais amplo de pessoas que lidam com tecnologias com desenvoltura, além
dos jovens. Mas um estudo mais detalhado das finas relações entre corpos
e mentes dos mais jovens e as atuais tecnologias pode nos revelar uma
mudança expressiva em marcha que, de fato, parece dar aos mais jovens
algumas vantagens no que tange ao manuseio das atuais tecnologias.
9
Para um aprofundamento sobre as culturas juvenis ver, por exemplo: BORELLI, Silvia
e FILHO, João Freire (orgs.). Culturas juvenis no século XIX. São Paulo: EDUC, 2008.
89
gerações que podem ter aspectos de seus sistemas perceptivos e cognitivos
já alterados e que podem, assim, responder de forma diferenciada – e mesmo
mais eficiente – ao uso de certas tecnologias midiáticas contemporâneas.
As bases conceituais e empíricas que podem sustentar a perspectiva
materialista-cognitiva se estendem por diversos e variados autores e estudos,
como notamos, mas, para efeitos dos objetivos deste artigo salientaremos
apenas o núcleo básico da sua proposta que encontra em Gerald Edelman
(1987) e sua teoria do Darwinismo Neural sua principal referência.
De modo muito resumido, a fim de respeitar os limites e proposições
do presente estudo, podemos dizer que a proposta fundamental da teoria
de Edelman defende a ideia da plasticidade cerebral através de dinâmicas
complexas que demonstram como os diferentes ambientes podem afetar
de modo contínuo e sistemático o conjunto neural humano. Isso significa,
basicamente, que em níveis diferenciados em relação às idades, o cérebro
humano pode sempre se transformar, em função dos desafios, problemas,
estímulos e afetações frente aos quais se depara. E, como já é conhecido
mesmo do grande público, isso pode ser observado de modo mais evidente
junto aos mais jovens.10
Small e Vorgan defendem, baseadas nas ideias da plasticidade
cerebral, que vivenciamos hoje o aparecimento de um gap geracional que
não mais se pode compreender à luz das mudanças de valores, gostos e
referências culturais, somente, mas a partir de profundas mudanças neurais
causadas pelas novas tecnologias digitais:
10
Para um aprofundamento das ideias aqui defendidas ver PEREIRA 2003 e 2008.
90
Esse processo evolucionário cerebral apareceu rapidamente sobre
uma geração e pode representar um dos mais inesperados e, ainda,
importantes avanços na história da humanidade. Talvez, desde que
os primeiros humanos descobriram como usar uma ferramenta
o cérebro humano não tenha sido afetado de modo tão rápido e
dramático (Small e Vorgan, 2008, p. 1-2).
91
Conclusões
Voltando à nossa questão inicial – aquela que indagava sobre se
haveria, de fato, alguma relação de maior autonomia entre jovens e tec-
nologias midiáticas na contemporaneidade, como comumente apregoado
tanto pelos veículos de comunicação de massa, quanto pelo senso comum
–, diríamos que, sim, podemos entrever uma expressiva facilidade dos
mais jovens no que toca ao manuseio de certas tecnologias. Contudo, e
isso talvez seja o aspecto mais interessante de todo o processo cultural que
estamos explorando, a especificidade perceptual e cognitiva conquistada
pelos mais jovens, que os permitem lidar com extrema facilidade com as
mídias digitais, se deu diretamente através da cultura de massa. Ou seja,
foi a cultura de massa, através da promoção dos seus produtos de entreteni-
mento, principalmente, que acabou permitindo o espraiamento do entreteni-
mento como linguagem na contemporaneidade, inclusive como linguagem
das interfaces tecnológicas das mídias contemporâneas.
Por outro lado, todo um conjunto de elementos visuais que com-
parecem como elementos centrais nas gramáticas visuais das tecnologias
digitais (valorização de elementos iconográficos, ludicidade, tridimen-
sionalidade, multissensorialidade et.), por se afirmarem como um con-
junto coeso de expressões que tocam diretamente os mais jovens, parece
se voltar agora para as mídias ditas massivas (TV, cinema, jornais etc.),
fecundando-as com esses mesmos elementos. O que faz, por sua vez, que
essas mídias se aproximem, também, desse mesmo público jovem. Isso
pode ser visto através de inúmeros exemplos, como o crescimento de
filmes, mensagens e propaganda em diferentes meios, inclusive impressos,
em linguagens 3D, na expansão das gramáticas lúdicas para o jornalismo –
que são diretamente inspiradas em games (infográficos digitais), em movi-
mentos lúdicos e espaciais não lineares etc.11
11
A título de exemplo, tem-se o conjunto de experimentos apresentados no blog Tendências
Digitais – Jornalismo e Cultura Contemporânea, proposto por Vinicius A. Pereira para
treinamentos com profissionais da Infoglobo, através do marcador “Novas Linguagens em
Jornalismo Online”. Destacamos, em particular, os experimentos da Agência Magnum,
do MediaStorm, os infográficos do jornal El País e os projetos Spectra e Waterlife.
Disponível em: http://tenddigitais.blogspot.com/search/label/novas%20linguagens%20
em%20jornalismo%20on-line. Último acesso em: 21.jun.2011.
92
Por fim, diante do panorama considerado, podemos dizer que cami-
nhamos não para uma separação entre as chamadas culturas de massa e
digital, mas, ao contrário, para uma experiência cultural mais complexa,
na qual as distinções formais entre suas linguagens midiáticas tendem a se
reduzir cada vez mais.
É claro que sobre outros aspectos, como a lógica da exposição a
mensagens publicitárias, formas de acesso e pagamento por conteúdo, par-
ticipação e colaboração na produção de conteúdo, direitos autorais etc.,
podemos destacar diferenças significativas entre os dois modelos de culturas.
Talvez, ao final, o que os mais jovens nos ensinem de mais relevante
seja mais do que simplesmente as transformações em suas capacidades
e aptidões para lidarem com as tecnologias midiáticas contemporâneas.
Revelem, ainda, como essas mesmas transformações antecipam futuros
possíveis. Assim, os novos padrões sensoriais e cognitivos juvenis em pro-
cesso serão reconhecidos não apenas como idiossincrasias geracionais, mas
como marcas de uma complexa cultura midiática, que terá tornado híbridas
as culturas de massa e digital. É essa cultura que precisamos compreender
urgentemente, de forma cada vez mais clara, a fim de vislumbrar o que
significará nas próximas décadas não apenas o que é ser jovem, mas ser
humano.
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