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HISTÓRIA G HISTORY

História da Electrotecnia

Manuel Vaz Guedes

F E U P — Faculdade de Engenharia
Universidade do Porto

Quem pretende estudar um qualquer assuntos de índole cultural, desde que


assunto no domínio da Engenharia devidamente valorizados, não será difícil
Electrotécnica acaba por se interrogar sobre a conservar as máquinas, os aparelhos, e os
origem e a evolução das ideias ou das teorias documentos que atestam o desenvolvimento de
que procura desenvolver, e dos métodos ou dos uma tecnologia que, aplicada inicialmente com
processos que costumam ser aplicados. Surge muitas dificuldades, acabou por contribuir
sempre a interrogação: “desde quando e como fortemente para a evolução económica e social
foi utilizado em Portugal?…”. Por isso, do País.
periodicamente, no âmbito da Electrotecnia é Regista-se o aparecimento de pequenos museus
salientada a importância dos estudos de tecnológicos — de carros eléctricos, de pequenos
História, [1]. aproveitamentos hidroeléctricos, etc… — no âmbito
No estudo do comportamento das redes eléctricas de empresas [4] ou de autarquias [5].
têm interesse as avarias consequentes dos efeitos de Mas se nos últimos anos há um aumento do
ressonância. Esta preocupação já existia em 1910, respeito pelo muitos elementos que poderão
conforme consta de um contrato de fornecimento de constituir as fontes de uma História da
energia eléctrica sob a forma de corrente alternada Electrotecnia, também há um aumento de
trifásica, que previa a ligação da Estação Central exigência na aplicação de uma Metodologia e
Geradora de Massarelos da Companhia Carris de de uma Crítica próprias da História no
Ferro com a Central do Ouro da Sociedade de tratamento dos assuntos: uma descrição, uma
Energia Eléctrica, na cidade do Porto, [2]. explicação, uma relacionação que permita criar
Embora esta revista Electricidade tenha sido uma sistematização do conhecimento, [6].
no passado o meio difusor de vários ensaios de Já não existe justificação para a escrita, nem
História da Electrotecnia, como a série de local para a publicação, de artigos com opiniões vagas
artigos do Eng. Ilídio Mariz Simões — e infundadas, salientando o anedótico e exprimindo
“Pioneiros da Electricidade em Portugal” — e apenas um pinturesco aliteratado.
muitos dos artigos publicados constituam uma Actualmente, um estudo envolvendo o
fonte histórica recheada de elementos passado da Electrotecnia pode enquadrar-se no
originais, há ainda muito trabalho para fazer, âmbito da Arqueologia Industrial, ou da
aproveitando um conjunto vasto de História dos Transportes ou dos
documentos disperso por muitos locais e que Equipamentos Colectivos, ou, ainda, no
regista os factos relevantes das diversas épocas domínio mais vasto tanto da História
da electrificação do País; já que os testemunhos Económico-Social [7] como da História das
pessoais da altura não foram recolhidos, nem
Ideias Científicas. A localização dos estudos,
deles quiseram deixar registo…
neste domínio específico, não pode ser nítida
Desde 1890 que faz parte da formação devido à elevada interdependência mundial
académica dos engenheiros a realização de missões, dos princípios, dos métodos e das utilizações
ou estágios, que eram apresentados à Escola na de uma técnica tão difundida como a que visa
forma de um relatório, [3]. Se ainda existirem, são os efeitos e as aplicações da Electricidade.
uma preciosa fonte de informação técnica!… No fim dos anos vinte abandonou-se a utilização
No momento em que se vê renascer u m da comutatriz como unidade rectificadora
aumento do respeito pelo “património electromecânica, para se utilizar o rectificador de
cultural” e as novas gerações se interessam por vapor de mercúrio. O princípio de funcionamento

Electrical Technology History Publicado na revista ELECTRICIDADE, nº 332, pp. 90–92, Abril 1996
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desta máquina eléctrica estática pertence ao domínio A primeira electrificação de uma linha de
da Física [8], e o seu desenvolvimento estendeu-se por caminho de ferro em Portugal ocorreu na linha da
várias décadas. Mas, a sua aplicação deve-se à Sociedade do Estoril — Cais do Sodré a Cascais —
necessidade de um aumento de potência das em Agosto de 1926. O material eléctrico fixo e
subestações, imposta pelo aumento de tráfego nos rolante desta electrificação foi importado e a
transportes públicos electrificados, como resultado de alimentação da linha em corrente contínua era feita
novas condições de trabalho criadas pelo fácil acesso pela subestação transformadora de Paço de Arcos,
das populações dos arredores ao centro da cidade — que era alimentada pela rede das CRGE –
no Porto e em muitas outras cidades por esse mundo Companhias Reunidas de Gaz e Electricidade. Dessa
fora [9]. instalação não existe uma descrição fiável (tinha três
É a possível inserção nas novas formas da grupos conversores rotativos), e pouco se conhece das
História que permite colocar ao dispor de u m condições de exploração económica (80 comboios por
investigador da História da Electrotecnia dia em 1932) ou das decisões de gestão para a
métodos de trabalho que ampliam o domínio Sociedade do Estoril, quando, conjuntamente com as
das fontes de informação. Não só os elementos CRGE, dependiam do mesmo grupo financeiro
originais constituem fonte histórica, mas estrangeiro (o grupo belga SOFINA)!…
também o são as referências a esses elementos Do aparecimento dos diversos tipos de
espalhadas por jornais ou revistas técnicas e estudos que são possíveis na História da
descritos em prosa ou em figura. Electrotecnia surgirá, certamente, um maior
Hoje é possível conhecer, através de um reclamo respeito pela Obra feita, e, também, pelas
ilustrado num jornal da época [10], o desenho dos qualidades humanas de tantos
dínamos utilizados em 1894 na primitiva central empreendedores, projectistas e técnicos que
hidroeléctrica, situada nas margens do rio Corgo, nela colaboraram. Acabará dessa forma a
produtora da energia para a instalação de luz reserva mental que, ao longo dos anos, apenas
eléctrica em Vila Real,[ 11]. criou um esquecimento institucionalizado dos
O desenvolvimento de estudos sobre a autores da realidade Electrotécnica nacional;
História da Electrotecnia em Portugal já tem a apesar dessa reserva ser assumida sempre como
sua sequência balizada pela publicação de um respeito estático pela sua memória.
livros com textos de âmbito geral [12], ou no Se é reconhecido o enorme desenvolvimento
âmbito da capital [13]. No entanto, devido ao tecnológico e a inovação que existiu na última década
carácter desses livros pode-se considerar que do século passado e nas duas primeiras décadas deste
ainda não foi feito o tratamento de factos século (1891 a 1920), é necessário não esquecer que
históricos relevantes para a electrificação do houve engenheiros ligados a obras de Electricidade,
País. Factos que, envolvidos numa profunda que, desde a licenciatura à reforma, tiveram de
discussão de ideias, ocorreram noutras cidades actuar ao longo dessa época, utilizando técnicas que
numa época em que se procuravam definir os ainda não existiam no tempo da sua formação. Mas
princípios da electrificação nacional [14]. continua desconhecida a sua biografia profissional!…
No âmbito das decisões passadas, falta analisar, Da realização dos muitos tipos de estudos
nas suas componentes técnica, económica e política, que em História da Electrotecnia é possível
a tremenda discussão havida nos anos vinte em torno efectuar há que esperar uma superação dos
da utilização dos carvões nacionais na produção de estados mentais típicos de uma certa visão
energia eléctrica, com o distanciamento que o tempo histórica e social — à Alexandre Herculano ou
permite e quando já acabou a exploração do carvão à Oliveira Martins — que traduzindo-se por
duriense. uma pessimismo sistemático em tudo o que diz
Mas na História da Electrotecnia já escrita respeito a Portugal são contrários do
outras faltas existem. Se para cada instalação optimismo construtivo, da capacidade de
se pode fazer um tratamento histórico desde as engenho e da pertinácia ligados à
decisões sobre o projecto, até às posteriores concretização de qualquer obra de
alterações, passando pelos princípios Electrotecnia.
tecnológicos utilizados, [15], então ainda é A linha de transporte de energia eléctrica entre a
possível efectuar uma recolha de elementos que central do Lindoso e a subestação transformadora do
esclareçam muitas obras que foram relevantes Freixo era em 1923 uma realização técnica precária
pelas implicações técnicas ou económicas. que cobria uma distância de 85 km (linha de cobre

Manuel Vaz Guedes Publicado na revista ELECTRICIDADE, nº 332, pp. 90–92, Abril 1996
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montada sobre isoladores de suporte e, quase toda,
instalada em postes de madeira) integrada num [7] Armando de Castro; “Ensaios de História Económico-
sistema eléctrico que falhava muitas vezes. Era, no -Social”, Portugália Edit. 1967
entanto, uma linha pioneira da rede eléctrica de [8] Carlos Braga; “Estudo Físico dos Mutadores de Vapor
transporte de energia que cobre o território nacional. de Mercúrio”, Porto 1950
[9] ver “Liste des Références – redresseurs à grands débits,
Para além dos factos históricos ligados às Système Brown Boveri”, Abril 1927
realizações técnicas existe toda uma história do
[10] reclamo de Emilio-Biel no jornal “O Comércio do
ensino da Electrotecnia, já incluída na Porto” Ilustrado, Porto 1895
História [16], mas que ainda constitui um tema [11] ver Cabral de Moraes; “A luz eléctrica em Villa
pouco tratado. Não faltam nas Universidades e Real”, Revista de Obras Públicas e Minas, tomo
nas Bibliotecas factos e documentos… XXVIII, nº 327 e nº 328, 1897
Em 1893 Charles P. Steinmetz apresentou a [12] Mário Mariano; “História da Electricidade”, EDP
utilização dos números complexos no estudo dos 1993
circuitos eléctricos percorridos por correntes [13] Abílio Fernandes, Ilídio Mariz Simões, Mário
alternadas sinusoidais: o método simbólico. Apesar Mariano, Sara Silva; “Lisboa e a Electricidade”,
desse método, utilizado em 1927, ser normalmente EDP 1992
ensinado em 1933 [17], e dele ter sido apresentado [14] Ezequiel de Campos; “Electricidade para o Porto”,
Conferência na AIP, Porto 1944
um tratamento profundo e avançado em 1947 [18],
nunca se ultrapassou, mesmo no ensino, uma [15] ver J. Amado Mendes, “Construção Civil e
Património Industrial”, INGENIUM, série II, nº 1,
generalizada aplicação operacional. pp. 98–102, 1995
Perante um vasto campo de temas e de [16] Domingos Moura; “Notas sobre a Engenharia
assuntos e perante a quantidade de trabalho a Electrotécnica em Portugal no Domínio da Energia”, i n
executar, há que reunir vontades, há que “História e Desenvolvimento da Ciência em
mobilizar o interesse intelectual e a capacidade Portugal no Sec. XX”, Academia das Ciências de
Lisboa 1992
dos muitos que podem contribuir para o
desenvolvimento da História da Electrotecnia [17] Luís Couto dos Santos; “Correntes Alternadas”, Tip.
Sequeira, Porto 1933
como área do conhecimento; por isso, aqui
[18] Manuel Corrêa de Barros; “Método Simbólico para
relembramos a sua importância. Estudo das Máquinas de Corrente Alternada”, Porto
MVG 1947

Notas e Referências
[
1] ver Hermínio Duarte Ramos; “História da
Electricidade em Portugal”, ELECTRICIDADE, n º
214/215, pp. 227–228, 1985
[2] Arquivo Distrital do Porto – PO 4º LU824: Art.
14º de um contrato registado em notário em
1/Out/1910
[3] existiam instruções para os trabalhos de missões,
que decorriam no 5º e 6º anos dos cursos de
engenharia. Ver Regulamento dos Trabalhos de
Missões na Academia Politécnica do Porto,
Portaria de 31/Jan/1890
[4] como exemplo cita-se o Museu do Carro Eléctrico
da STCP — Sociedade de Transportes Colectivos
do Porto
[5] como exemplo cita-se o pequeno aproveitamento
hidroeléctrico de 1914, integrado no Museu
Hidroeléctrico de Santa Rita, pertença da Câmara
Municipal de Fafe
[6] A. da Silva Rego; “Lições de Metodologia e Crítica
Históricas”, Lisboa 1963

Manuel Vaz Guedes Publicado na revista ELECTRICIDADE, nº 332, pp. 90–92, Abril 1996

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