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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

O ACONTECIMENTO:
Inferências reflexivas no campo midiático1

Linda BULIK 2 F

Resumo: Ao se debruçar sobre a “acontecimentalização” Michel Foucault refere-se a uma


dupla instância: o acontecimento arqueológico, pensado como uma ruptura (histórica) inerente
ao alto grau de novidade que traz em seu bojo; o acontecimento discursivo, que instaura a
regularidade (histórica). No âmbito do enunciativo trata-se de considerar os enunciados
enquanto acontecimento e de mostrar como eles se articulam com outros de natureza não-
discursiva, que podem ser de ordem técnica, prática, econômica, social, política, comunicacional,
etc. Procura-se, neste artigo, examinar a noção foucaultiana de acontecimento e de atualidade de
modo a permitir que se façam inferências reflexivas no campo midiático. Propõe-se distinguir
acontecimento de acontecido, de atualidade, de fato e de informação levando em conta as
contribuições de Maurice Mouillaud, Pierre Nora e Muniz Sodré. Pretende-se problematizar o
acontecimento em função do sentido que é chamado a tomar na sua recepção e nas
representações que dele resultam quando se torna presente na mídia, com o objetivo de
compreender o surgimento e funcionamento de práticas discursivas dos meios de comunicação.

Palavras-Chave: acontecimento; acontecimento midiático; dispositivo midiático;


Michel Foucault; estudos de mídia.

1. Preâmbulo

Em filosofia, a noção de acontecimento é dada por um conjunto de filósofos europeus


influenciados, de certo modo, pela obra de Martin Heidegger entre os quais Michel Foucault,
Gilles Deleuze, Jacques Derrida. Heidegger empregou a palavra Ereignis cujo sentido é
‘presentificar’, ou ainda ‘aquilo que se apresenta’ e que em português e francês pode-se
traduzir como acontecimento-apropriação.

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “Práticas Interacionais e Linguagens na Comunicação”, do XX
Encontro da Compós, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, de 14 a 17 de junho de
2011.
2
Linda Bulik é Doutora pela Universidade de Paris II (Sorbonne) com Pós-Doutorado na França e na
Dinamarca (Paris VIII e Nordisk Theatre Laboratorium) e Jornalista (Ecole des Hautes Etudes Sociales /
section Ecole Supérieure de Journalisme). Autora dos livros Doutrinas da Informação no Mundo de Hoje e
Comunicação e Teatro. Professora do Curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação
da Universidade de Marília – UNIMAR – Marília / SP - Brasil.
E-Mail: bulik@sercomtel.com.br

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Pode-se destacar dois significados centrais do termo. Primeiro: acontecimento é tudo o


que já tendo ocorrido mantém, todavia, uma certa “atualidade” nas coordenadas do tempo
presente. Diremos então que “este acontecimento nos faz refletir e constitui uma provocação
ao pensamento, porque todo o acontecimento rompe com alguma coisa anterior, surgindo
desta ruptura uma ‘novidade radical’, um certo começo”. Segundo: todo acontecimento é o
que se passa ‘aqui’ e ‘agora’ (hic et nunc), o que faz irrupção e de modo inesperado numa
situação particular. É o que se faz presente, o que emerge fendendo o presente, nele
introduzindo uma certa descontinuidade (relativamente ao passado e ao futuro).
É por esta razão que é necessário distinguir entre ‘fato’ e ‘acontecimento’. Eis alguns
traços destacados pelos filósofos que trataram do assunto: Diferentemente do primeiro, os
acontecimentos introduzem uma fratura; fazem irrupção inesperada; sendo impossível prever
sua aparição surpreendente, eles marcam um ‘antes’ e um ‘após’; nada volta a ser mais como
antes de sua aparição fulgurante. Tais são os casos do 11 de setembro 2001 nos Estados
Unidos, do tsunami3 na Indonésia em 2004, do terremoto no Haiti em 2010. Se um ‘fato’
pode ser arquivado, dito, explicado, se fazer conhecer, os acontecimentos são indizíveis,
inimagináveis, inenarráveis, ou simplesmente, inefáveis.
A questão trazida à tona por Michel Foucault a propósito da atualidade permite
inicialmente extrair uma noção central de acontecimento enquanto novidade ou diferença e o
acontecimento enquanto prática histórica. No primeiro sentido, o filósofo está falando de
“acontecimento arqueológico”; no segundo, ele está se referindo a “acontecimento
discursivo”.
Existe claramente uma relação entre estes dois sentidos; as novidades instauram novas
formas de regularidades. Assim, por exemplo, em As palavras e as coisas, o acontecimento
da passagem de uma episteme à outra, instaura novos acontecimentos discursivos. É
necessário clarear que, a propósito desta relação, entre novidade e regularidade, entre
aparição e funcionamento das práticas, pode-se distinguir duas posições de Foucault. Em As
palavras e as coisas, de um lado, o acontecimento arqueológico é pensado como se verá em
seguida, enquanto uma ruptura radical, somente manifesta por seus efeitos. A regularidade
que esta ruptura instaura, por outro lado, é pensada, aqui, em termos apenas discursivos. À
medida em que Foucault estende o domínio da análise ao não discursivo (dispositivos
práticos em geral), a aparição de outras práticas (acontecimentos no segundo sentido não
3
Onda oceânica provocada por um seismo ou uma erupção vulcânica.

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somente discursivos) deixará de ser pensada em termos de ruptura radical de um


acontecimento em certo sentido oculto.
Nesta perspectiva, há uma certa preeminência do acontecimento como regularidade. A
novidade não é mais pensada como um acontecimento oculto cujas práticas seriam as
manifestações; as práticas definem agora o campo das transformações da novidade.
Como pensar a relação novidade e regularidade? Como pensar ao mesmo tempo as
transformações e a descontinuidade? Foucault deve encontrar um equilíbrio entre o
acontecimento como novidade e o acontecimento como regularidade que não seja uma
recaída nem nos velhos conceitos da “tradição” nem no novo conceito de “estrutura”, sem
reintroduzir nenhuma instância da ordem transcendental, conforme Edgardo Castro (2009).
O termo “acontecimento” adquire, então, um terceiro sentido: melhor, o conceito de
acontecimento se entrelaça com o de atualidade. Na Arqueologia do Saber, a noção de
atualidade se distancia daquela de presente e aparece como a “borda do tempo que envolve
nosso presente, que o domina e que o indica em sua alteridade” (Foucault, 1972, p. 162-163).
Num texto posterior (2001, p. 1383), Foucault constata que se pode também interrogar o
presente para tentar decifrar nele os signos anunciadores de um acontecimento próximo ou
então analisar o presente como um ponto de transição para a aurora de um mundo novo.
Assim é que o Iluminismo nos é anunciado como “a Europa brilhante de uma incomparável
civilização”, um signo portador “de todos os bens que compõem a felicidade da vida
humana”. Foucault então se dá conta de que a maneira entretanto como Kant descreve a
Aufklärung é totalmente diferente: nem uma idade do mundo ao qual pertencemos, nem um
acontecimento do qual percebem-se os signos, nem a aurora de uma nova era.

Kant definia a Aufklãrung de um modo quase inteiramente negativo, como uma


Ausgang, uma “saída”, uma “passagem”. Em outros textos (...) acontecia de Kant
formular questões de origem ou que ele definisse a finalidade interior de um
processo histórico. No texto sobre a Aufklärung, a questão diz respeito à pura
atualidade. Ele não procura compreender o presente a partir de uma totalidade ou de
um acabamento futuro. Ele busca uma diferença: qual diferença hoje introduz em
relação a ontem?
(...)
A questão que me parece surgir pela primeira vez neste texto de Kant – é a questão
do presente, a questão da atualidade: Que é que se passa hoje? Que é que se passa
agora? O que é este ‘agora’? O que é este ‘agora’ no interior do qual nós estamos
todos; e quem define o momento que eu escrevo?
(FOUCAULT, DE II , 2001 , p. 1383)

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Para Irene de Arruda Ribeiro Cardoso, a atualidade é atualização e devir, mas é


também a desatualização do hoje.

Há uma distinção portanto entre o presente e o atual, entre o hoje e o agora. O atual
é construído a partir de um “certo elemento do presente que se trata de reconhecer”,
como “diferença histórica”. Este reconhecimento, que é o da crítica, da
problematização, desatualiza o presente, desatualiza o hoje, no movimento de uma
interpelação. Nesse sentido o presente não é dado, nem enquadrado numa
linearidade entre o passado e o futuro.
(CARDOSO, 1995, p. 56)

A partir daqui, aparece um quarto sentido do termo acontecimento, o que se encontra


no verbo “acontecimentalizar” e na instância da “acontecimentalização” como método de
trabalho histórico. Esta análise, Foucault a caracteriza, num primeiro tempo, por uma ruptura
de modo a fazer surgir a singularidade lá onde o analista está se reportando a uma constante
histórica, a um caráter antropológico ou a uma evidência que se impõe mais ou menos a todo
o mundo. Mostrar, por exemplo, que não se deve tomar como evidente que os loucos sejam
reconhecidos como doentes mentais. Num segundo tempo, ela se distingue também por
estabelecer as conexões, os encontros, os achados, os apoios, as boicotagens, os jogos de
força, as estratégias que permitem formar, em um dado momento, o que se apresentará depois
como evidente4.
Pode-se distinguir, no total, quatro sentidos do termo “acontecimento”: 1) ruptura
histórica; 2) regularidade histórica; 3) atualidade; 4) trabalho de acontecimentalização.
Descobrimos também um outro sentido do termo “acontecimento” nos textos de Foucault e
que se encontra em relação com o que Kant5 considera um signo “rememorativum”
“demonstrativum”, “prognosticum”, isto é, um signo que mostra o valor moral do
acontecimento. Uma disposição de reagir ao que acontece e que permanece na memória e na
lembrança – dois outros aspectos cruciais que é necessário levar em conta nos estudos das
mídias.

4
No Vocabulário de Foucault (2009), Edgardo Castro, amparado nos Ditos e Escritos, assinala que para Michel
Foucault isto implica uma multiplicidade causal : 1) analisar os acontecimentos segundo os processos múltiplos
que os constituem (por exemplo, no caso da prisão, os processos de penalização, encerramento, a constituição
dos espaços pedagógicos fechados, o funcionamento da recompensa e da punição); 2) analisar o acontecimento
como um polígono de inteligibilidade sem que se possa definir antecipadamente o número de lados; 3) um
polimorfismo crescente dos elementos que entram em relação, relações descritas, domínios de referência.
5
Was ist Aufklarung ? – pergunta-se, mais tarde Kant. O Iluminismo – responde o filósofo alemão - « é o
momento em que o homem sai de uma minoridade imputável a sua própria culpa”» , conf. Bulik, 1991, p. 64.

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Encontram-se aí também o acontecimento arqueológico; o acontecimento discursivo;


o acontecimento não discursivo. Na instância do acontecimento enunciativo trata-se de
considerar os enunciados enquanto acontecimento e de mostrar como eles se articulam com
outros acontecimentos de natureza não-discursiva, que podem ser de ordem técnica, prática,
econômica, social, política, midiática, etc.

2. O acontecimento midiático

Procuramos aqui revisitar a noção de acontecimento e de atualidade no domínio da


Comunicação fazendo a confrontação com os conceitos de fato e de informação. Nossa
hipótese ou ponto de partida é que as mídias, sobretudo a televisão – pelo caminho da
linguagem – confundem acontecimento, fato e informação e que uma demarcação permanece
ainda problemática. É preciso estabelecer as distinções necessárias, analisar mais finamente.
No que tange ao jornalismo, a cobertura dos acontecimentos é tratada como fato
jornalístico; as notícias sendo em si mesmas a expressão do fato jornalístico.

A lógica jornalística consiste talvez em interpretar todos os objetos (fatos


singulares) sob um mesmo entendimento. O que modifica é o lugar, o espaço e os
nomes dos protagonistas. O infanticídio, é o mesmo. O kidnapping, é o mesmo. O
assassinato do Presidente, é o mesmo. Todos os fatos “jornalísticos” sempre
existiram, pois são fatos humanos ou que encontram sua existência em relação ao
homem. Todos esses fatos já são conhecidos – “a priori”
(SILVA, 1999, p. 111)

Um aspecto mencionado pelos pesquisadores refere-se ao que Wittgenstein (1975:43)


já havia observado como “o objeto de nosso pensamento não é o fato; é uma sombra do fato”.
Esta sombra recebe vários nomes tais como ‘proposição, ‘figuras do fato’, ‘sentido das
palavras’, casus facti et casus ficti , entre outros. A imagem da sombra associa-se à idéia de
sistema porque a linguagem jornalística se vale de paradigmas, modelos, imagens, palavras,
comportamentos extralingüísticos, jogos de linguagem e formas de vida, de tal modo que
Silva (1999, p. 117) considera que “o relato não se refere mais ao objeto em pauta tal como o
imaginamos. (...) O conceito de símbolo substitui o conceito de realidade. Isto é, onde se
procura ver a realidade, só se encontram signos”.
E, entretanto, o leitor, mas também o telespectador,

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Com a concepção bastante arraigada de que cada nome corresponde a um objeto,


segundo a teoria da linguagem de Santo Agostinho, o leitor, e aparentemente
também o jornalismo, acreditam que a proposição jornalística corresponde à
realidade. Aí reside a fascinação: o leitor emociona-se com o relato noticioso e
acredita estar conhecendo a realidade social, política, econômica..., mas na verdade
ele só comparou, talvez, sua dor ou tragédias pessoais com imagens de dor ou de
tragédias dentro de um discurso de um jogo de linguagem que talvez desconheça. O
leitor pensa estar em contato direto com os fatos, mas fica apenas com as sombras
dos fatos. E delas não pode fugir. É levado a não acreditar numa outra realidade.
(SILVA, 1999, p. 115)

Na sua « Crítica do acontecimento ou o fato em questão », publicada no Brasil6,


Maurice Mouillaud descreve o acontecimento como a sombra projetada de um conceito
construído pelo sistema de informação, o conceito de “fato”. O acontecimento seria para ele a
« matéria prima », a substância que alimenta, de fora, o ecossistema das mídias. Pode-se
conceber o dispositivo da informação (Mouillaud se refere às redes de agências de imprensa)
sob a forma de capturadores que se apossam dos “fatos” in situ e os encaminham para um
centro. Quando o mesmo dispositivo difunde os despachos de agência de um centro em
direção à periferia, trata-se de informação ou de notícias (news). “A montante, o
acontecimento; a jusante, a informação. De um a outro, a caixa preta da mídia em que se faz
um trabalho de seleção e de transformação da matéria do acontecimento. (MOUILLAUD,
2002, p. 52-53) O realismo – diz ele – é uma ideologia de face dupla, que, afirmando a
dualidade do acontecimento e da informação, faz da mimese seu ideal (a fidelidade aos fatos
é ainda hoje o carro-chefe da imprensa anglo-saxônica).
Para Mouillaud (idem, ibidem, p. 54), o problema continua sendo o do coroamento do
acontecimento no espaço da informação: trata-se da questão do quid (o que é que constitui
um acontecimento?) e do quale (quais são seus traços pertinentes?) ; sobre quais terrenos
aparecem o acontecimento ? quais são as operações (práticas e mentais) que lhe servem de
fundamento?
Max Fishman descreve como os jornalistas recebem os “fatos” e como esses
profissionais não se encontram em face de um real em estado bruto, mas de resumos
(accounts), isto é, de descrições das quais, na maioria das vezes, não têm a possibilidade, de
retornar à fonte.

6
In: PORTO, Sérgio Dayrell (org.) O JORNAL – Da forma ao sentido. Brasília: Ed. UnB, 2002. [Col.
Comunicação, 2]

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Além da distinção entre acontecimento e fato jornalístico, é preciso discernir aquela


entre acontecimento e informação. Peirce dizia que o signo é auto-corretivo e F. Recanati
mostrou que o signo não pode se fechar sobre si mesmo sob pena de perder o que pertence à
sua própria natureza, a saber “um objeto munido de retorno”.

Chamaremos acontecimento a modalidade transparente da informação; aquilo que,


então, aparece como figura é seu objeto: os acontecimentos aos quais se refere a
informação formam o mundo que se supõe real. Eis porque falamos de um status
“realista” do acontecimento. A informação, mantida discretamente, atrás do
acontecimento, permanece nele presente como uma filigrana.
(MOUILLAUD, 2002, p. 56)

Para Mouillaud, o acontecimento possui sempre a forma de informação. Ele descarta a


representação, suposta evidente, de um acontecimento que existiria para si mesmo e ao qual
se aplicaria, num segundo momento, a informação.
Por outro lado, Muniz Sodré (2009, p. 134) relembra que “a informação do
acontecimento é substituída pelo acontecimento da informação”. Para ele, o acontecimento
jornalístico é um « fato marcado”, isto é, sujeito a um código de produção. Essa “marca”
relativa que o acontecimento carrega é o que diferencia o que tem valor de “noticiabilidade”
do que não o tem. Segundo Sodré, essa marcação é determinada pela possibilidade de
instaurar uma narrativa a partir dos acontecimentos, o que significa que esse fato pode
desencadear uma boa notícia. Para isto é preciso contar com alguns elementos que aí
intervém tais como novidade, imprevisibilidade, peso social, proximidade, hierarquia dos
envolvidos, magnitude, impacto e perspectivas de desdobramento dos fatos noticiados.
A “marcação” que os eventos carregam supera fatores objetivos como esses valores da
notícia, pois dependem do envolvimento do público com uma história narrada pelo jornalista
a partir dos fatos. Essa “marcação” que os eventos “noticiáveis” carregam também deixa
outra “marca” nos modos como a sociedade se vê e representa seus eventos, pois ela
apresenta dispositivos de controle dos fenômenos sociais. Esse controle – diz Muniz Sodré –
é garantido pela domesticação e previsão dos fatos, “como se o fato de ontem fosse hoje
noticiado para se saber o que se pode esperar do amanhã” (idem, ibidem: 98). Não só isso:
com o advento das novas tecnologias, alteram-se também os códigos de leitura e instauram-se
novos critérios de pontuação rítmica interferindo na ordem temporal e, por conseguinte, na
flecha do tempo.

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O código de produção dos acontecimentos resulta de um pacto implícito na


comunidade do saber logotécnico (o campo profissional) sobre a natureza da
pauta jornalística, portanto, sobre os fatos que podem ser semioticamente
marcados para a sua transformação em acontecimentos. Pode muito bem se dar que
o acontecimento, movido pela exclusiva sensibilidade positivista, aproveite do fato
apenas o variável ou o contingente, deixando de apreender a estrutura de relações
necessárias. É o que normalmente acontece com a prática comum da corporação
jornalística, que “marca” o mundo apenas como o visível imediato, quando dele
faz parte, no entanto, o invisível que caracteriza os desejos e as esperanças.
(MUNIZ SODRÉ, 2009, p. 98-99)

A verdadeira contribuição de Sodré a este debate de idéias encontra-se nos seus


argumentos de base. Uma imprensa de qualidade, para ele, busca o equilíbrio entre os dois
pólos descritos acima e veicula informações socialmente relevantes a partir de um ponto de
vista próprio, isto é, independente do Estado e de outros constrangimentos políticos e
econômicos; capaz ao mesmo tempo de influir na agenda pública pelo peso de seu público e
de seu valor simbólico (idem, ibidem: 114).
Pierre Nora (1976) refere-se a uma produção do acontecimento e atribui aos mass-
media o seu monopólio. Nesta perspectiva, o jornalista ocupa uma função social mediadora
da opinião de massa. Trata-se de uma percepção algo diferente daquela posta por Michel
Foucault, que, conforme assinalado, mais acima, descrevia o acontecimento como sendo
aquilo que advém do par de opostos novidade / regularidade, transformação /
descontinuidade. Nada penetrava na História sem o seu consentimento. Se para Foucault,
acontecimento não é algo que se encontra no limiar do acontecido, porém aquilo que vem
para instaurar a ruptura e com esta o advento de uma nova ordem, para Nora os meios de
comunicação “fizeram da história uma agressão e tornaram o acontecimento monstruoso”.
Não se trata mais de remeter à realidade, porém de dissipá-la por meio do imaginário. O
acontecimento perde o privilégio de sua função na História e é lançado na vida privada,
oferecido sob a forma de espetáculo.
Nós pensamos, de nossa parte, que um outro aspecto que deve ser levado em
consideração pelo pesquisador ao abordar o acontecimento é a abordagem semiótica de seu
enquadramento. O que está em jogo é sua pontuação semântica. Trata-se do ponto de vista
sob o qual o texto é decifrado. A pontuação entra também no campo da semântica e dos
afetos. Às vezes é impossível, na ausência de índices tangíveis, decidir onde e como pontuar
uma cadeia de palavras; pode acontecer de se lhe atribuir vários sentidos diferentes. Esta
espécie de ambigüidade é encontrada nos títulos dos jornais e nas chamadas televisivas.

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Posto que a cena do acontecimento é capturada por uma série de enquadramentos


interiores, o enquadramento, por sua vez, reproduz-se em abismo no interior da
cena do acontecimento. (...) Os acontecimentos aparecem em “atualidades” e a
Atualidade nada mais é que a superfície que lhes é comum. Se os acontecimentos
perderam a atração gravitacional que os ligava à experiência histórica, e se não
formam entre si nem narrativa nem discurso, donde retiram seu fundamento? A
Atualidade é, de fato, o reino do efêmero; dizer que só existe informação atual é
lembrar a lei da informação, que é de ser, e apenas ser, uma diferença (ela não tem
outra essência senão a de ser uma probabilidade) (...) Condenada a destruir-se,
nutre-se de si mesma, reproduzindo-se. A lei do jornal quotidiano é de apagar-se e
reproduzir-sede um número a outro, não produzindo nada além de uma coleção (que
é uma tarefa sem fim).
Esta lei é a lei do presente (...) Os presentes não se articulam para formar uma
narrativa, fundem-se sobre um assunto cuja presença os sustenta. Ele é, dizem os
gramáticos, “aquilo que é contemporâneo à instância do discurso”.
(MOUILLAUD, 2002, p. 62-72)

Maurice Mouillaud considera que a Atualidade se situando no nível de nosso presente é


sempre atual. A informação trata do futuro e não simplesmente do passado que ocorreu. A
Atualidade nos põe em face do acontecimento.
Conforme Abraham Moles, a informação é da ordem da “paixão”. O acontecimento
vem de alhures (no espaço e no tempo): tão logo seja territorializado, deixa de tornar-se
acontecimento.
Cada jornal – e cada tipo de jornal televisado – pode ser considerado como uma
expectativa de acontecimentos.

A Atualidade parece sem memória porque é feita de presentes que se apagam uns
aos outros. O jornal não faz memória, e a coleção de um jornal não tem existência
para seu leitor. O fundamento da Atualidade é o próprio leitor. É a seu presente que
ela é ligada e é nele que ela encontra sua evidência. Desta forma, a História e a
Atualidade parecem cruzar sem se reconhecer: uma funda uma dimensão profunda
no tempo, a outra extrai uma sincronia na superfície. A primeira enraíza os
acontecimentos numa cronologia, a segunda costura acontecimentos diversos como
uma pele que envolve o planeta (uma pele que se renovaria todos os dias. Uma tem
como símbolo o passado hegeliano que vem depois do acontecido, no entardecer; a
outra, a fênix que renasce das cinzas todas as manhãs. A relação das mesmas no
espaço também está invertida; a História é talhada em uma área homogênea (“O
Mediterrâneo no tempo de Felipe II”), a Atualidade é um patchwork cosmopolita. A
ideologia de ambas recebe cores opostas; a História é da terra, e de bom grado
chauvinista; a Atualidade é estrangeira e, com freqüência, suspeita. Uma atenuação,
todavia, deve ser feita nesta opção: Se a coleção não se constitui memória para o
leitor, ela pode se constituir arquivo para o historiador.
(MOUILLAUD, 2002, p. 77)

Neste contexto, Maurice Mouillaud considera que o acontecimento ocupa um local privilegiado
que é a região dos títulos. É no nível dos títulos que o leitor se depara com o acontecimento no estado
puro.

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“Desabou” e nada mais restou a dizer sobre a derrota do Brasil por 1 X 0 na Copa do Mundo
de 2006.

3. Considerações Finais

Neste trabalho examinamos o campo conceitual do acontecimento primeiramente em


Michel Foucault e, em seguida, entre os teóricos das mídias.
Primeira consideração: o acontecimento é uma construção permanente, que ultrapassa
o simples fato ou o anúncio desta. É necessário pensar e definir o acontecimento em ciências
da comunicação para além das análises sobre as atualidades midiáticas.. Novos tempos,
novos signos. Os acontecimentos com a ajuda das novas tecnologias da informação e
comunicação – contrariamente a seu movimento alucinatório sobre as telas – são fixados em
imagens que não se parecem com o modelo porque este já está moldado pelas convenções.

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Além do mais, as Atualidades não se referem ao sentido filosófico de lançar um novo olhar
portador de veridicidade sobre os fatos. Assim sendo, as Atualidades correspondem às
informações, notícias do momento (na imprensa e sobretudo em imagens) cuja legitimidade é
expressa pela evidência do momento e não pela verdade ou mesmo objetividade.
Segunda consideração: Pensar quer dizer experimentar, “problematizar” – como queria
Deleuze – o acontecimento em função do sentido que é chamado a tomar na sua recepção e
nas representações que dele resultam sobretudo quando se torna midiático.
Terceira consideração: O acontecimento requer uma abordagem das situações e dos
atores sociais. O paradigma é a condição de leitura do acontecimento. É ele que a cada
movimento aparece sob a forma de um projeto “político”, “social”, “econômico”,
“financeiro”, “estético”...
Quarta e última consideração: Os grandes acontecimentos nas mídias produzem efeitos
de sentido. Estaríamos nós à deriva de uma semiose da acontecimentalidade? Memória e
esquecimento são dois aspectos cruciais a levar em conta na nossa cultura contemporânea
obcecada pelos traumas políticos e sociais.

Referências

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