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OMISSÄO, SONEGAGÄO E SUBMISSÄO
DA INFORMAGÄO

s tres conceitos devem ser entendidos como diferentes

niveis e razöes que determinam lacunas de informagäo


em coberturas jornalfsticas ou lacunas de compreensäo no con-
sumidor de informagäo.

Pode-se chamar omissio a auséncia de informaqäo, de qual-

quer natureza, causada por falta de condigöes de 6rgäo de im-


prensa de obté-la. Isso significa entäo omitir por que ela näo foi

acessfvel aos profissionais envolvidos no processo de produgäo


do 6rgäo (jornal, rådio, telejornal, revista ou o que seja) dentro
do prazo industrial de produgäo da edigäo, mas pöde ser de co-
nhecimento de espectadores de outros vefculos ou meios. Quer
dizer: o fato existiu e sua existéncia se propagou, mas näo che-

gou a um 6rgäo especffico ao menos em tempo håbil para sua


inclusäo. Mesmo os chamados "meios em tempo real" padecem
das mesmas categorias, mas seu "horårio de fechamento" ou
deadline se då a qualquer ou todo momento. Assim, em seu
caso, a omissäo pode ser corrigida logo — ou tornar-se uma so-
negagäo.

Säo casos de omissäo, por exemplo, a informaqäo


divulgada amplamente mas que näo pöde ser inclufda no noti-

ciårio porque algum problema interno da empresa impediu o


acesso a ela; casos em que a infra-estrutura de comunicagäo
66 Leäo Serva Jornal ismo e desinformagäo

interna da empresa näo permite o acesso å informagäo (pode-se exemplo, a revelagäo de um caso de corrupgäo para o qual a

supor um correspondente que tem acesso a uma informagäo no edifäo näo confere o destaque merecido diante da importåncia

fronte de guerra mas näo tem como transmiti-la ao jornal, ou hist6rica ou politica do fato; ou o seqüestro de um empresårio
um telefone quebrado na Redaqäo que impede a certa fonte dar que se desvenda no dia de uma eleiqäo presidencial: um dos

ao jornal a informagäo que passou a outros jornais); os furos fatos ou ambos teräo uma ediqäo menos impactante do que
tomados simplesmente por auséncia de representantes do pro- teriam em outra oportunidade, pois väo dividir espaqo nas edi-
duto no local de ocorréncia ou divulgagäo de certa informagäo Göes e na atengäo do espectador. A submissäo pode também
(suponha um comunicado da Prefeitura de Nova York divulga- colocar os dois temas sob um mesmo paradigma para o leitor,
do em local e horårio onde näo hå rep6rteres do New York Ti- confundindo noticias que nada tém em comum, submetendo
mes, por exemplo), etc. um fato ao enredo do outro.
Por sonegaqäo entende-se aquela informagäo que, sendo Quando se trata de acontecimentos reais, do cotidiano de
de conhecimento do 6rgäo de imprensa, näo foi colocada na fato, as trés categorias podem se misturar e também ser alteradas
edifäo por alguma razäo. Säo casos de sonegagäo: informagöes em fungäo da historicidade dos fatos.
perdidas por entropia na cadeia interna de comunicagäo (um Assim, um fato descrito sem seu contexto (um caso de
papel se perdeu no fluxo interno da Redagäo; o rep6rter fez a submissäo) pode se caracterizar também como omissäo da essén-
reportagem, mas näo deixou Claro o local onde a arquivou; o cia da noticia: 0 6rgäo de imprensa näo tem conhecimento de
rep6rter fez a reportagem, mas seu relat6rio näo permitiu uma que certa explosäo em Nova York foi causada por atentado a
avaliaqäo correta do fato pelo editor; informaqöes guardadas para bomba, e por isso a notfcia é publicada em tom corriqueiro,
uma outra oportunidade, como a edifäo de domingo em jor- entre outras sobre acidentes em cidades do mundo. Outro exem-
nais que fecham na sexta-feira å noite; para uma pr6xima data plo mais atual no Brasil: os 6rgäos de imprensa näo investigam
qualquer; para um momento em que o editor-chefe esteja mais elou näo divulgam as intengöes escusas ou mesmo criminosas
seguro da qualidade da informagäo; etc.); informaqöes descarta- que movem certa seita religiosa; entäo o noticiårio sobre ela é

das (porque o rep6rter näo ouviu todos os lados envolvidos; publicado sempre como questäo religiosa, e a seita, assim, torna-
porque o editor näo gostou da reportagem; ou ainda quando a se ainda mais eficiente no mimetismo de outras religiöes.

diresäo da empresa considera que a informagäo näo é do interes-


Da mesma forma, um caso de submissäo pode se caracte-
se de seu leitor ou fere seus interesses corporativos; etc.).
rizar como sonegagäo: um aspecto fundamental de certa notf-
Por submissio entende-se o fato que, embora noticiado, cia, embora conhecido por jornalistas, näo é publicado, e isso
tem uma edigäo que näo permite ao receptor compreender e altera o sentido do fato para o leitor. Um exemplo possivel: a
deter a sua real importåncia ou mesmo o seu significado. Por convocaqäo de um jogador para a Selegäo de futebol contraria a
Leäo Serva Jornalismo e desinformagäo 69

vontade do técnico, mas agrada ao patrocinador, o que näo é Clore por quem o conhece: a introduqäo de önibus intermuni-
noticiado; uma informaqäo sobre o governo é "vazada" por mem- cipais na Bahia foi saudada como uma "chegada do futuro" ao

bro do principal partido de oposigäo, e isso näo é divulgado (a estado na mesma época da visita ao Brasil do poeta futurista

noticia aparece como fruto da investigaqäo genuina do rep6rter, italiano Filippo Tommaso Marinetti — o que levou o påblico

escondendo parte do sentido da reportagem, que seria "a quem local a chamar os önibus de "marinete".
interessa sua publicagäo").

Ou ainda, no mesmo sentido, a omissäo ou sonegagäo de Deformagäo da informaqäo: casos extremos


fatos ou aspectos da noticia pode provocar uma submissäo: no de submissäo
momento da publicagäo de uma notfcia de importåncia hist6ri-
ca, um fato ou aspecto proporcionalmente menor se impöe como Quando a desinformaqäo gerada por alguns casos de sub-
missäo é täo grande que chega a provocar a compreensäo errada
mais atraente para o jornalista e é destacado na ediqäo, omitindo
da informagäo, isso poderia ser chamado de deformaqäo da in-
o aspecto mais importante ou relegando-o a segundo Plano. Na
eleiqäo de Margaret Thatcher ao cargo de premié britånica em fonnaqäo.

1979, por exemplo, ressaltou-se no noticiårio internacional o Alguns casos podem ser considerados exemplares dessa

fato de ela ser a primeira mulher a assumir a chefia de governo ocorréncia. Por exemplo, a Guerra do Futebol entre Honduras

do pafs, quando em verdade iniciava-se provavelmente uma das e El Salvador, em 1969, que passou å hist6ria como uma excen-
mais importantes mudanqas dos åltimos cem anos no seu siste- tricidade, quando a esséncia do fato näo era compreensfvel, pela

ma politico-econömico, e o påblico britånico, bem como os coincidéncia entre o conflito e a violéncia nos jogos das elimina-

analistas, tinham todas as informagöes necessårias para perceber t6rias da Copa do Mundo de 1970. Havia uma tensäo no

claramente essa dimensäo mais fecunda do fato. establishment militar de cada pafs, por outras razöes. Eles procu-

ravam formas de mobilizar a opiniäo påblica em favor da guer-


A possfvel confusäo de notfcias provocada pela submissäo
ra. As ocorréncias nos jogos de futebol foram usadas para tornar
estå comumente associada a casos do que podemos chamar de
"desinformagäo informada": embora tendo tido acesso ås infor-
popular o conflito. Por isso, até mesmo para a populaqäo de El
Salvador e Honduras, naquele ano de 1969, o estopim do con-
magöes, o consumidor näo consegue compreender claramente
flito foi a violéncia das torcidas nas duas partidas eliminat6rias.
o fato. Normalmente essa desinformagäo se då porque um dos
fatos se submete ao paradigma do outro — e esse deslocamento
No resto do mundo também a excentricidade de uma guerra
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causada pelo futebol é que se tornou a noticia.
retira da noticia o sentido necessårio å compreensäo do fato —
ou ambos se confundem em um outro paradigma. Um exem-
Sobre o assunto, ler "The Soccer War", cm R. Kapucinski, The Best of Granta Reportage
plo brasileiro de submissäo desinformante é tratado como fol- (Londres: Granta, 1993), pp. 3-25.
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Leäo Serva 71
Jornalismo e desinformasäo

Outro caso conhecido de submissäo, menos folc16rico, foi cional, um fenÖmeno semelhante ao que acontece em casos de
a associaqäo no noticiårio entre o fim do seqüestro do empresårio
alfabetizaqäo ineficiente — quando a pessoa que estå sendo alfa-
Abilio Diniz e a primeira eleiqäo presidencial direta no pafs depois
betizada aprende apenas a juntar letras ou mesmo frases inteiras,
do regime militar, no final de 1989. O espaqo dedicado pelos
mas näo consegue apreender o significado do que lé (chamado
noticiårios å eleiqäo foi reduzido em fungäo do seqüestro. A aten-
de analfabetismofuncional).
$0 dos consumidores foi deslocada do fato de maior importån-
A desinformagäo funcional, entäo, corresponde a um fe-
cia da hist6ria recente do pafs. Simultaneamente, um seqüestro
nömeno definido pelo fato de que as pessoas consomem infor-
ainda pouco esclarecido (aparente banditismo de ex-militantes
maqöes através de um ou mais meios de comunicaqäo, mas näo
politicos) se confundiu no noticiårio e na atengäo dos eleitores-
conseguem compor com tais informagöes uma compreensäo
espectadores com as notfcias da eleigäo. Os efeitos dessa confusäo
do mundo ou dos fatos narrados nas notfcias que consumiram.
sobre a votagäo ainda näo foram inteiramente avaliados. Em um
Ao relacionarmos esse fenömeno ao noticiårio sobre a realidade
momento posterior, LuizAntönio Fleury Filho, secretårio de Se-
do Leste europeu, mais especificamente da lugoslåvia, ressoa
guranqa do Estado de Säo Paulo, forjou sua imagem de "paladino
novamente o pensamento deJancs6, que ressalta a dificul-
da seguranga" e, um ano depois, elegeu-se governador do Estado,
dade de integrå-lo [o fato] numa construqäo 16gica da realidade
em grande medida gragas ao destaque obtido pela cobertura do
que é condigäo para, cada qual, poder pensar o seu estar no
desfecho do seqüestro. Fleury é acusado de ter forgado essa sub-
mundo e na Hist6r1a .

missäo pela aqäo de funcionårios da Secretaria, que teriam feito


Exemplo conhecido de desinformagäo funcional é o uso
seqüestradores vestirem camisetas com sfmbolos eleitorais do PT,
dos meios de comunicaqäo nas ditaduras comunistas, especial-
o partido de esquerda que concorria å eleifäo naquele momento
mente nos paises do BIOCO Soviético sob Stålin. Jå naquela épo-
(os seqüestradores negam que as camisetas fossem suas). Nos anos
ca, o escritor Armand Robin descrevia o sistema de informagäo
seguintes, os criminosos passaram a receber da Justiga, do
na Råssia soviética å época de Stålin:
establishment politico e de grande parte da opiniäo påblica um
tratamento mais severo em relagäo a outros crimes semelhantes —
certamente uma conseqüéncia da importåncia que o fato adqui- A nogäo de informagäo é täo estrangeira ås rådios

comunistas que é até incorreto dizer, como se faz habi-


riu por sua associaqäo com o noticiårio da eleiqäo.
tualmente, que essas rådios mentem. Isso se torna ime-
diatamente inteligivel se aceitamos examinar até as tilti-

Desinformagäo funcional
mas conseqüéncias o principio segundo o qual o objetivo
da fala näo é dar conta da realidade, mas mudå-la, alterå-la
Quando ocorre em caråter sistémico (e näo epis6dico), a

"desinformagäo-informada" pode gerar uma desinformaqäofun- 46


l. Jancs6, op. cit., p. 190.
72 Leäo Serva Jornalismo e desinformagäo 73

no sentido mais extremo da expressäo. Chega- Ele ordenou uma profunda depuragäo nos quadros das
mos, entäo, å constatagäo de que näo estå longe de ser duas organizaqöes, que foi realizada no seu primeiro
uma verdadeira revelagäo: enquanto o mentiroso de- ano de comando dos comunistas sérvios. De uma for-

seja que sua mentira seja acreditada, aqui tem-se a ma interessante, ele näo destruiu toda a mfdia sérvia,

sensagäo de que muitos discursos difundidos pelas rå- mas apenas aquela que poderia servir para fazer com
dios internas russas säo exatamente escolhidos na me- que os reduzidos quadros politicos da era comunista se

didaem que se sabe que näo seräo levados a sério. expandissem em um movimento de massas. Politika e a
Quem näo enxerga que nos encontramos num plano RTV Belgrado se tornaram vasos que a burocracia de
superior ao engano?47 Milosevic encheu, com o objetivo de alimentar o povo
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sérvio com uma dieta de suspeigäo e intoleråncia.

Até a queda do regime neocomunista de Slobodan


Milosevic, no segundo semestre de 2000, os meios de comuni- Na mesma época, ao analisar a televisäo como meio, o
cagäo oficiais vinham sendo usados na atual lugoslåvia (Sérvia e fi16sofo Karl Popper cita com preocupaqäo o caso especffico da
Montenegro) sistematicamente de forma a criar uma desinfor- lugoslåvia:

magäo funcional com a qual Slobo incendiou o nacionalismo

sérvio. Usados inicialmente para mobilizar a populagäo sérvia å Nenhuma democracia pode sobreviver se näo se
causa nacionalista, mais recentemente serviram para sobrepujar puser cobro a esta omnipoténcia. E é certo que se abu-

com uma minoria silenciosa do campo a barulhenta oposigäo sa deste poder hoje em dia, nomeadamente naJugoslåvia,
mas esses abusos podem ocorrer em qualquer sftio. O
urbana. O uso politico dos meios de informagäo na ex-lugoslå- uso que se faz da televisäo na Råssia é igualmente
via durante o regime de Milosevic é tema constante de estudos abusivo. A televisäo näo existia no tempo de Hitler [...J

de mfdia e politica internacional. Misha Glenny, corresponden- Com ela, um novo Hitler disporia de um poder sem

te da BBC no Leste da Europa, descreve o nascimento desse limites.

processo:

No caso da lugoslåvia, a TV serviu para sustentar o regi-


Täo logo chegou ao poder, Milosevic identificou dois me e também para derrubå-lo. Foi a conquista da sede da TV
alvos principais entre os meios de comunicagäo sérvios:
Belgrado (chamada pela oposiqäo local de "TV Bastilha") que
o primeiro foi o Politika [o maior jornal da lugoslåvia
marcou a queda de Milosevic, em 5 de outubro de 2000. Quando
åquele tempo], o segundo, a Rådio e Televisäo Belgrado.

A. Robin, "Um lugar me tem e outros textos", trad, de Laymert Garcia dos Santos, M. Glenny, The Fall of Yugoslavia (Londres: Penguin, 1992), p. 14.
material didåtico para curso na Faculdade de Comunicasäo e Filosofia da PUC, Säo o K. Popper e J. Condry, Televi$äo: tzm perigo para a democracia (Lisboa: Gradiva, 1995),
Paulo, 1981, pp. 11-12. p. 30.
Leäo Serva

o candidato de oposigäo, Vojislav Kostunica, apareceu no ar na CAPiTULO 5


TV estatal gritando "Boa noite, Sérvia liberada" para uma massa
de manifestantes de oposigäo que jå tinha pouco antes tomado SATURAGÄO E NEUTRALIZAGÄO
o prédio do Parlamento, aquela foi a senha para que o mundo
todo e o establishment iugoslavo entendessem que o poder ti-

nha mudado de mäos.

O articulista Timothy Garton Ash descreve os aconteci- asos de submissäo, deformagäo e desinformagäo funcio-
mentos: nal säo muito comuns hoje, em um mundo em que no-
vos meios de informagäo nascem a cada momento e os veiculos
Esses acontecimentos exigem uma reflexäo sobre as jå implantados divulgam freneticamente milhares ou milhöes
relagöes entre imagem e realidade. Aqueles que invadi- de informagöes por dia. Tem-se uma ténue idéia ao saber que,
ram o Parlamento criaram uma imagem inesquecivel
em média, um grande jornal brasileiro publica, a cada dia, cerca
de libertagäo — uma imagem que a CNN e a BBC envia-
de quatrocentas Unidades Informativas,51 considerados apenas
ram para todo o mundo. Essa imagem entäo se tornou
realidade. Tomar posse da TV estatal foi em si uma ou-
os textos jornalfsticos, näo os anåncios nem as muitas informa-
tra imagem televisiva mobilizadora: a TV Bastilha em göes embutidas dentro de cada um dos textos. Trata-se de jor-
chamas. Mas ela também significava que a oposigäo nal, o mais antigo entre os meios de massa, hoje concorrendo
agora controlava o lugar que produz as imagens, e que
com revistas, rådio, televisäo (convencional, a cabo e satélite),
näo säo o exército e a policia o coragäo do poder na
50 computagäo, etc. É virtualmgnte impossivel medir quantas in-
politica moderna.
formagöes säo publicadas por dia pela soma dos atuais meios de

Conceito de Unidadcs Informativas foi introduzido na Folha de S. Paulo cm meados


dos anos 80 pelo jornalista e professor de Jornalismo Carlos Eduardo Lins da Silva,
incumbido de implantar urn Plano dc Metas que envolvia, entre outros objetivos de
curto, médio e longo prazo, diminuir o ndmero de crros de informasäo e de portugués
e aumentar a capacidade informativa do jornal. Uma Unidade Informativa é qualquer
noticia jornalistica publicada sob um titulo pr6prio, independentemcnte de seu tama-
nho ou do nåmero de informagöes que ela contenha sob o mesmo titulo o que deixa
Clara sua imprecisäo, ao mesmo tempo que sua eficiéncia para uma medifäo råpida e
diåria do jornal e de seus concorrentes. O conceito é hoje adotado, com esse nome ou

outro, em vårias redasöes do pais, para mediföes comparadas do dcsempenho dos


jornais. Para que se tenha uma idéia ainda mais precisa do nåmero de informagöes
publicado por uma edifäo de jornal, seria necessårio medir ainda o nåmero de infor-

maqöes publicadas dcntro dc um mesmo texto c as informasöes publicadas nos antin-

T. G. Ash, "The Last Rcvolution", cm The New York Review ofBooks, XLVII (1 8), Nova cios de diversos tipos (e que para muitos leitores säo informasöes mais interessantes e
York, 16-11-2000, pp. 11-12. åteis do que os tcxtos dos mais prestigiosos colunistas ou rep6rteres).
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revistas, assistido a 2.463 horas de ouvido


comunicaqäo. Um estudo publicado por um jornalista francés televisäo,

730 horas de rådio, comprado 20 discos, falado ao tele-


em 1991 aponta um dado revelador dessa quantidade de infor-
fone quase 61 horas, lido 3 livros e gasto incontåveis
magöes inconcebfvel no passado: "Gragas a uma rede muito densa horas trocando informagöes em conversas.
55

de correspondentes, as agéncias de notfcias freqüentemente säo as

primeiras a repercutir a informagäo. As doze maiores agéncias


Esse conjunto de informaqöes provoca uma espécie de
mundiais enviam, cada uma, de 6 mil a 8 mil despachos por dia" .52
paroxismo da desinformagäo-informada e da deformagäo, no
Alguns estudiosos tém tentado medir o impacto dessa
qual milhares de informagöes diariamente se sobrepöem umas
profusäo de informagöes. Na apresentagäo de trabalho produzi- ås outras no suporte da comunicagäo, no meio em si e também
do para o conglomerado ingles Reuters, que controla a agéncia
ou mais gravemente na mente do receptor, em sua compreensäo
noticiosa de mesmo nome, uma das maiores do mundo, o psi-
do mundo. Trata-se de uma saturaqäo•.56 os fatos se submetem
c610go e consultor de empresas David Lewis cita um dado que uns ao paradigma dos outros, sem distingäo. Os efeitos dessa
tem aparecido freqüentemente em estudos sobre comunicagöes:
saturaqäo para a compreensäo e a memorizagäo do noticiårio

ainda näo estäo devidamente estudados, mas um efeito estuda-


Mais informagöes tém Sido produzidas nos åltimos do no campo da publicidade pode ser uma referéncia titil:
30 anos do que nos 5.000 anos anteriores. Uma edifäo 5

de dia de semana do New York Times contém mais in-

formagöes do que tudo aquilo que um homem médio Pesquisas mostraram que a forga de impregnagäo

do século XV ficou sabendo em toda a sua vida.53 publicitåria era menor do que se pensava. A injunsäo
e persuasäo levantam todas as espécies de contra-motiva-

Göes e de resisiéncias (racionais ou irracionais: reagäo å

O The New York Times, a que se refere Lewis, chega a ter aos passividade, para näo ser possufdo; reagäo å énfase, å

domingos 1.500 påginas, cerca de 2 milhöes de linhas tipogråficas, repetigäo do discurso, etc.), em suma, a publicidade dis-

suade ao mesmo tempo em que persuade [...]57


mais de 12 milhöes de palavras e 5,5 quilos de papel, segundo
dados apresentados por Wurman.54 Outro dado citado por ele:
Ibid., p. 219.
56
O termo tem Sido usado de forma regular na imprensa, ao lado de "explosäo de
Em um ano, o americano médio terå lido ou preen- informagöcs", "excesso de informasöes", "explosäo de noticias" ou "poluifäo de dados",
sempre significando uma alta quantidade de informaqöes — a conotasäo negativa
chido 3 mil avisos e formulårios, lido 100 jornais e 36
surge como resultado da quantidade ou da falta de hierarquia entre as muitas informasöes,
como na declaraqäo de Andrew Heyward, presidente da emissora CBS News, å revista
52
Y. Mamou, A culpa é da imprensa! (Säo Paulo: Marco Zero, 1992), p. 13. Tone. "N6s parcccmos ter perdido o senso de proporqäo". Ver R. Zoglin, "The News
D. Lewis et al., apresentafäo e texto "Dying for information?" , pesquisa conduzida por Wars", ern Time Magazine, Nova York, 21-10-1996, pp. 44-50.

Benchmark Research para a Reuters (Londres: Firefly Communications, 1996), p. 2. J. Baudrillard, "Significasäo da publicidade", em Luiz Costa Lima (org.), Teoria da
cultura de massa (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978), p, 273.
R. S. Wurman, op. cit., pp. 36-37.
Leäo Serva Jornalismo c desinformagäo

Quando incide sobre a informagäo, esse efeito de antila- mente anula a sua capacidade de produzir signos interpretantes

f,äo, ou neutralizaqäo, pode ser visto como talvez o mais Claro e necessårios para o acompanhamento de todas as noticias. A agäo
reconhecfvel componente da saturaqäo e agente causador da de acåmulo é seguida por uma reagäo de passividade diante do
desinformagäo funcional. Assim, um politico acusado de cor- meio, que impede a transitividade. É o que acontece na metra-

rupgäo, por exemplo, pode simplesmente acusar o acusador de Ihadora de palavras" do rådio, em que o espectador näo tem

corrupqäo também (falsa ou verdadeiramente), anulando o im- sequer tempo para intuir a possibilidade de que o vefculo pode-

pacto da denåncia. Da mesma forma, o efeito provocado pelo ria ter "duas mäos", mas é exercido com uma s6 jå que a

fato de os programas politicos se aglutinarem em um mesmo interatividade que marcou o nascimento do rådio foi eliminada

horårio (o que vigorou como imposigäo legal até a eleigäo de


em beneffcio da emissäo em um s6 sentido.
1994) consiste na anulagäo de todas as propostas, umas pelas

outras, e de todas as diferenqas programåticas para afirmaqäo Metralhadora de signos


apenas de diferengas estéticas ou casuais — definfveis como dife-
A atual saturaqäo de informagöes nos meios de comuni-
rengas meramente sensoriais (cor, sons, edifäo de imagens, etc.).
cagäo näo é em si algo novo, mas passa por uma nova etapa —
A visäo de mundo resultante dessa saturagäo pode ser
mais radical de fato, pela quantidade de meios —, de um proces-
metaforizada pelo célebre "Samba do crioulo doido", de
so iniciado com a exploragäo comercial dos meios de comuni-
Stanislaw Ponte Preta, mas certamente tem efeitos dramåticos,
cagäo de massa, no infcio do século XX. A exploragäo monopolista
que jå vém sendo sentidos em vårios nfveis pelos profissionais
do rådio, que em alguns pafses se dava através de empresas esta-
envolvidos com informaqäo. A perspectiva é temeråria, segun-
tais e em outros por empresas capitalistas (no Brasil, por um
do o estudioso de comunicaqäo alemäo Harry Pross: ' 'Se toda-
modelo hfbrido de concessäo estatal para instituigöes diversas e
via o Manifesto Comunista afirmava que a facilidade das co-
empresas privadas), impös a supressäo da dimensäo interativa
municagöes arrasta å civilizaqäo as nagöes mais bårbaras, hoje se
que caracterizava o meio em seu surgimento (quando ainda era
pode ouvir com freqüéncia que, ao contrårio, elas arrastam
chamado "telégrafo sem fio", ou simplesmente "sem fio") .59 E o
å barbårie as nagöes civilizadas".58
meio usado de forma univoca impös um condicionamento do
O consumidor de informagöes hoje se vé enredado em receptor que se expressa a cada momento da programagäo atra-
um cipoal de noticias e meios (todos trabalhando sob o concei- vés do sistema pelo qual se organizam as emissöes. O rådio or-
to de que notfcias tém que ser novidades) que tira a sua capaci-
ganiza sua comunicagäo como uma metralhadora de palavras",
dade de avaliagäo e compreensäo das informagöes e possivel-

Sobre o surgimcnto do rådio, ler "Rådio: o tambor tribal", em M. McLuhan, Os meios


H. Pross, Estructura $imbålica de poder (Barcelona: Gustavo Gili, 1980), p. 64 (tradu-
fäo minha).
de como extensäes do homem (6a ed. Säo Paulo: Cultrix, 1992), pp. 334 ss.
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Leäo Serva Jornalismo e desinformasäo

que tem o momento mais tfpico nas transmissöes de futebol, Internet), em 1998, esse processo avanqa a passos largos, mas

mas de forma suave se då o tempo todo uma profusäo de ainda näo acabou: as fusöes ou aquisiqöes de grupos emissores

signos emitidos constantemente, como para näo permitir ne- säo constantes, assim como os casos de "alianqas estratégicas
nhum "vazio", å imagem do locutor de futebol, que preenche os Em pouco tempo, a julgar pela evolugäo dos outros meios
espagos sonoros disparando palavras sem parar (como se o silén- de comunicaqäo, a atual interatividade da Internet poderå ser res-

Cio pudesse despertar o ouvinte da letargia). Essa disposigäo, re- trita ao uso do e-mail, a correspondéncia eletrönica, e näo mais

petida diariamente a cada minuto, condiciona o consumidor a caracterizar o comportamento da rede até na distribuigäo de con-

seu papel, ensina-o a "saber o seu lugar", para usar a expressäo teådos, como sucede hoje. Cada vez mais, grandes oligop61ios
popular, o lugar de eterno receptor. procuram atribuir uma natureza de broadcast å Internet, tornan-
A vocagäo monopolista dos meios impöe uma "metra-
do o seu uso semelhante ao que caracteriza a televisäo: ampla li-
berdade de escolha — mas de canais cujo conteådo estå pronto e
Ihadora de palavras" (hoje jå transformada numa "metralhadora
de signos"), näo s6 para usar seu poder de fogo, mas também dado: ao receptor cabe apenas captar um deles.
para impedir que do outro lado o consumidor se proponha a Na sociedade democråtica näo é possfvel retirar do receptor
usar o seu. Nesse sentido, a desinformagäo funcional causada o poder de emissäo, de produgäo de voz, por decreto, como em

pela saturagäo näo pode ser vista como mera e indesejada conse- regimes autoritårios. Entäo, esse processo é feito através de uma

qüéncia da proliferagäo de meios, mas uma imposigäo do siste- saturagäo dos canais de emissäo — deixando ao consumidor, do

ma econömico que organiza a economia da informagäo, indås- outro lado, apenas o papel de receptor, ou, no måximo, de pro-

tria e comércio de signos. É necessidade das grandes empresas dutor de signos para uma distribuiqäo täo desigual que receberå
que exploram de forma altamente concentrada os meios de co- sempre uma atenqäo marginal (o que é ironicamente chamado de

municagäo em todo o mundo eliminar a capacidade de produ- "mfdia confidencial", ou seja, o produto que, embora distribua

gäo de voz do cidadäo e de microorganismos sociais. conteådos, tem um nåmero inexpressivo de receptores).
Esse processo de retirada de poder do indivfduo corresponde,
Na apresentaqäo da pesquisa "Dying for Information? ,

David Lewis diz: "'Conhecimento é poder', escreveu Sir Francis


no mundo atual, ao processo de monopolizaqäo da violéncia que
marcou a implantagäo do Estado moderno ao final da Idade Média. Bacon no século XVII. Hoje estamos em uma corrida frenética
para adquirir cada vez mais informagöes, firmes na fé de que
Trata-se de um processo de concentraqäo de poder de comunica-
quanto mais tivermos, mais poderosos seremos. Infelizmente,
$0 que implica eliminar o poder pulverizado. Hoje, esse proces-
so persiste mesmo em segmentos jå altamente concentrados, como exatamente o oposto estå-se revelando" .60

a televisäo. Se nos meios chamados "convencionais" esse poder jå

foi concentrado antes, no caso dos new media (por exemplo, a D. Lewis et al., "Dying for Information?" , cit., p. 2 (tradusäo minha).
82
Leäo Serva

O excesso de informagäo, ao contrårio do que dizia Francis C,AVfTULO 6


Bacon, é hoje causa de perda de poder individual. E o primeiro
poder é o de manipular informagöes: o poder de emitir e tam- A REDUCÄO DO FATO IMPEDE SUA
bém o de compreender o que é recebido. O excesso de informa- COMPREENSÄO
$0 ameaga criar a definitiva submissäo do consumidor ao capi-
tal, pois, ao preencher inteiramente sua Vida como alvo de uma
metralhadora de signos, o consumidor se submete a um Grande

Irmäo, mais ou menos como imaginado por George Orwell,


m procedimento essencial ao jornalismo que necessaria-
mas com o nervo 6ptico invertido: ele näo nos olha, mas nos mente induz å incompreensäo dos fatos que narra é a re-
obriga a olhar para ele permanentemente.
dug,äo das noticias a paradigmas que lhes säo alheios, mas que
É nesse sistema informativo, disposto para necessariamente permitem um certo nivel imediato de compreensäo pelo autor
impedir a compreensäo do mundo pelo consumidor de infor- ou por aquele que ele supöe ser o seu leitor. Através desse proce-
magöes, que säo distribufdas as informagöes sobre a guerra da dimento, noticiårios confusos apareceräo simplificados para o
ex-lugoslåvia, assunto exemplar neste estudo, ou qualquer outra leitor, reduzindo conseqüentemente sua capacidade real de com-
notfcia importante —- que no entanto näo serå compreendida ou preensäo da totalidade do significado da notfcia.

cairå imediatamente no esquecimento. A dificuldade que mui- Um caso clåssico de redugäo na politica internacional re-
tos leitores tém para entender a lugoslåvia é semelhante å que cente foi a exploragäo, durante a campanha eleitoral peruana de
tém em relagäo a todos os outros temas que conhecem apenas
1990, das supostas semelhangas entre o entäo recém-empossado
pelo consumo de informaqöes através dos meios de comunica- presidente Fernando Collor, no Brasil, e o entäo candidato libe-
$0 atuais.
ral å presidéncia do Peru, Mario Vargas Llosa. A comparagäo se

dava apenas nos aspectos mais superficiais (dois "bonitöes", com


discurso liberal, propondo abertura de seus pafses ao exterior,

contrårios ao modelo de desenvolvimento adotado por seus


paises, fortemente alicergado em investimentos estatais), eclip-
sando as diferengas entre esses dois politicos e as semelhangas
mais intensas entre Fernando Collor e Alberto Fujimori, o can-

didato que enfrentou Vargas Llosa no segundo turno. Por de-

corréncia da exploraqäo dessas supostas semelhangas, o seqüestro

das contas bancårias no Brasil, logo ap6s a posse de Collor, em

I
84 85
Leäo Serva Jornalismo e desinformagäo

marp de 1990, teve forte impacto negativo sobre a candidatura ria ser avaliada criticamente (para bem ou para mal) pelo eleito-
de Vargas Llosa. No entanto, as semelhangas essenciais entre radosomem com facilidade e, como em um show, podem pes-
Fujimori e Collor, perceptiveis a analistas politicos com forma- soalmente trocar de maquiagem no intervalo — ou a mfdia mu-

gäo em populismo, näo apareciam na imprenga: o arrivismo dos darå a "luz" em uma cobertura inteiramente nova para um velho
dois; o desprezo pelas estruturas partidårias; a falta de um pa- conhecido. Hå, em nossa hist6ria recente, um caso exemplar: jå
dräo de comportamento politico consolidado; a falta de bases sexagenårio, ex-presidente da Repåblica, protagonista de uma
de sustentagäo nas instituigöes democråticas o que poderia das mais inusitadas tragédias da politica brasileira nos anos 60,

levå-los a tentar safdas näo convencionais para os embates polf- Jånio Quadros se candidatou ao governo do Estado em 1982
ticos convencionais; a critica de estilo fascista a todo o sistema para ser recebido com uma cobertura des-historicizada, que ter-
politico, etc., eram semelhanqas perceptfveis que se revelaram minou por ungi-lo como uma "novidade", ao ressaltar mais uma
determinantes para as diferentes tragédias que marcaram cada vez seu comportamento ex6tico, jå exaustivamente desmascara-
uma das duas administragöes uma pelo fracasso do modelo e do duas décadas antes. Jånio apareceu como uma novidade
a outra pelo sucesso da afirmagäo de uma ditadura civil por uma imprevisfvel em sua candidatura contra Franco Montoro, um
década inteira. politico atuante contra o regime militar em anos anteriores e

A eleigäo dos dois é apontada como fruto do uso da mfdia, que por isso tinha uma imagem mais conhecida. Jånio perdeu

no sentido de obter colaboraqäo dos individuos que operam os essa eleigäo, mas trés anos depois venceu Fernando Henrique

meios. Em boa medida isso que parece ser uma verdade cristali- Cardoso, que se candidatava pela primeira vez a um cargo exe-
na se deve näo å capacidade dos candidatos de "usar a mfdia" (o cutivo, a Prefeitura de Säo Paulo. Naquela cobertura, Jånio apa-

que seria uma critica profunda ao conjunto dos profissionais receu de novo como novidade", um outsider contra o que mui-
dos meios "de informagäo", que afinal se deixam usar sem con- tos chamavam de "ditadura do PMDB", o partido de oposigäo
trapor a esses usuårios nenhum criticismo), mas a caracteristicas ao regime militar que agora, com a queda dos militares, vencia a
sistémicas essenciais imanentes ao jornalismo. maioria das eleigöes. Tudo se dava como se a mfdia näo tivesse

em suas instalagöes os arquivos e as colegöes de velhas edigöes,


A necessidade de surpreender contendo a cobertura minuciosa da "tragédia" de Jånio nos anos
60, que permitiria revelar a "farsa" do Jånio dos anos 80.

A necessidade de criar surpresas pela imprensa torna todo Depois do Jånio de 1982 e 1985, e talvez pela observagäo
politico uma espécie de arrivista. Para apresentar novidades, os de sua experiéncia, um outro politico populista usou o mesmo
jornais ofuscam ou escondem os fatos sobre o que é jå conheci- método de apresentar-se sempre de novo ao eleitorado, usando
do. Assim, mesmo politicos conhecidos e cuja trajet6ria pode- a natureza da imprensa para provocar o esquecimento do passa-
Leäo Serva Jornalismo e desinformagäo
86

bando" o Muro de Berlim foram amplamente divulgadas e


do: Paulo Maluf, que entre suas bases ironicamente conta com
amplamente utilizadas, explicita e implicitamente, por Fernando
politicos oriundos do janismo, mas também do adversårio tra-
Collor contra Lula da Silva na eleigäo presidencial de 1989, em
dicional de Jånio, Ademar de Barros.
uma tentativa de caracterizar o candidato como "comunista
Malufgovernou o Estado de Säo Paulo entre 1979 e 1982,
(quando a hist6ria politica do lfder petista era a de um sindica-
viu-se envolvido em uma série de denåncias de corrupgäo e saiu
lista näo-comunista, mas tampouco servil ao regime ditatorial)
cavalgando indices elevados de impopularidade. Mas ap6s uma
e polarizar a eleiqäo entre "comunismo" e näo-comunismo". O
sucessäo de campanhas eleitorais, com ampla cobertura da im-
efeito dessa estratégia sobre o resultado final da eleigäo ainda é
prensa, dez anos depois foi eleito prefeito da capital do Estado.
pouco analisado, mas certamente existiu (näo fosse assim, Collor,
Mais quatro anos, fez seu sucessor (Celso Pitta), para entäo dei-
que dirigiu sua campanha usando intensamente pesquisas de
xar Claro que todos os escåndalos do passado voltavam em ima-
opiniäo, näo teria insistido tanto em sua exploraqäo).
gem e semelhanga. Dezoito anos depois, ele amargaria novo os-
tracismo. Provavelmente s6 até que uma nova cobertura da
A Queda do Muro se tornou um "fato" brasileiro, sola-
pando a candidatura de Lula da Silva. Da mesma forma, num
imprensa, prenhe de esquecimento, venha a tratå-lo como novi-
contexto latino-americano e no ano seguinte, o Plano Collor se
dade.
tornou uma "verdade" peruana, solapando a candidatura Vargas
Por essa condigäo peculiar da imprensa, torna-se natural
Llosa e colaborando para a eleigäo de quem tinha mais seme-
que o eleitor tenha um comportamento simpåtico com politi-
Ihangas com o Collor "verdadeiro".
cos arrivistas que, no entanto, podem ser de fato "novos" ou näo
— "velhos" politicos renovados pelafalta de historicidade tfpica
O caso jå citado da Guerra do Futebol pode ser explicado
como uma forma de reducionismo, comum na imprensa, por
dos meios de informagäo.
buscar paralelismos locais, supostamente mais conhecidos do

Redugäo•. notfcias fora do lugar


leitor, para explicar fatos. A esse deslocamento do contexto his-
t6rico das notfcias e sua migragäo para outro contexto, levando

Fatos longfnquos, como a eleigäo de um presidente de apenas coincidéncias epis6dicas, aspectos imagéticos, acidentais,

outro pafs, sobrepöem-se aos fatos do noticiårio local e, deslo- de seu conteådo, chamo redilfäo.

cados, caem em um outro paradigma. O fato distante passa a É determinante para a ocorréncia de reduqäo o processo
fazer parte do enredo local, como um ET na pequena Vila ame- de edigäo no jornalismo, que trabalha todos os fatos de um dia
ricana do filme de Steven Spielberg. E os fatos mais chamativos no mundo submetendo-os a algo como sete ou oito paradigmas
(deslocados de contexto e portanto de real compreensibilidade) as editorias tradicionais da imprensa: Politica; Economia; In-

ganham sentidos locais. Assim, as imagens dos alemäes "derru- ternacional; Geral; Esportes; Variedades/Cultura; e mais algo
Leäo Serva Jornalismo e desinformagäo 89
88

como uma dåzia de subeditorias segmentadas, como Ciéncia;


Em 1965, as pressöes para que se desse a descen-
tralizagäo tinham crescido tanto que foi posto em mo-
Crianqas; Adolescentes (ou Teens); Mulher; Lazer; Turismo;
vimento um processo de reforma econÖmica. Isso foi
Autom6veis; Im6veis e, mais recentemente, Computadores (ou visto como uma vit6ria dos "liberais" da Croåcia e da
Eslovénia contra o centralismo conservador da Sérvia e
Informåtica).
de Montenegro. [...J No entanto, näo foi suficiente, na
No caso dos conflitos na lugoslåvia, essa redugäo fica cla-
visäo dos croatas: "As velhas forgas centralizadoras: exér-
ra na forma como as notfcias procuram sempre simplificar os
cito, veteranos de guerra, policia, burocracia federal e
fatos, facilitando-lhes a compreensäo. Um exemplo de como a bancåria, permanecem intactas e continuam a resistir å

redugäo impede o conhecimento da integridade dos fatos foi a descentralizagäo, Belgrado continua sendo o poder cen-
61
tral politico e econömico
conferéncia de paz da lugoslåvia, em Londres, em agosto de 1992, .

poucos meses ap6s o inicio da guerra civil da B6snia-Herze-


g6vina. Procurando forgar uma soluqäo global para o conflito, Por outro lado, do ponto de vista das minorias especifi-
os paises da Comunidade Européia impuseram a presenga de cas, essa leitura é simplificadora, e em vez de dar alguma com-
representantes de todos os grupos que em alguma medida po- preensäo do conflito, retira do leitor a capacidade de compreendé-
deriam ser focos de problemas na regiäo. 10, pois convida-o a vé-lo através de paradigmas que näo säo

Naquela época, as atengöes se voltavam para a guerra civil seus mais ou menos como se Franjo Tudj man, o ex-comunis-

da B6snia, apresentada pela imprensa como um problema entre ta que liderou a independéncia da Croåcia em 1991, se transfor-

sérvios, de um lado, e croatas e mugulmanos, de outro. O noti- masseem dom Pedro I na cabega de um leitor brasileiro; ou em
ciårio procurava tratar os acontecimentos mais ou menos como George Washington na de um americano; ou em Patrice

o fim deum colonialismo em que as colönias se separavam da Lumumba, na de um congolés. Quando o conflito surge em
metr6pole um paradigma para o qual praticamente todos os toda a sua dimensäo de confusäo, o leitor se vé como o observa-
leitores do mundo, inclusive os brasileiros, tinham referéncias, dor de um caleidosc6pio de mapas, bandeiras e etnias:
mem6rias pessoais ou conhecimentos hist6ricos. Assim, a guer-

ra civil primeiro apareceu como uma guerra da lugoslåvia contra De fato, os sérvios tinham razöes para apoiar as fron-

as repåblicas separatistas da Eslovénia e da Croåcia, e depois como teiras internas da lugoslåvia. Se a lugoslåvia come-
gasse a se esfacelar, a adesäo ås fronteiras de Tito conti-
uma guerra de sérvios contra as demais nacionalidades.
nuaria a desestabilizar o status de nagöes do lado errado
Essa leitura reflete de fato a visäo dos nacionalismos iu-
delas. Isso é verdade especialmente para os sérvios, os
goslavos predominantes, digamos, como o croata, para quem as
aberturas do regime comunista centralizado å autonomia das J. Zametica, The Yugoslav Conflict, Adelphi Paper 270 (Londres: 11SS/Brassey's, 1992),
p. 9 (tradusäo minha).
repåblicas näo foram jamais suficientes.
Leäo Serva Jornalismo e desinformagäo 91
90

mais espalhados pela lugoslåvia. [ ...J Se croatas ou mu- alega ter Sido usurpado no infcio do século, na Segun-
gulmanos tinham o direito de lutar por autodetermina- da Guerra dos Bålcäs;
fäo, por que näo os sérvios? Se os croatas e mugulma-
4) o aparente "separatismo croata contra sérvios", que dava
nos podiam se separar da lugoslåvia, por que negar aos
sérvios o direito de se separarem da Croåcia ou da o tom ao noticiårio sobre a lugoslåvia, na descrigäo da

B6snia-Herzeg6vina? Por que deveriam [...J ser forga- guerra de 1991, "esquecia" o separatismo dos sérvios
dos ao papel de minorias dentro de Estados que eles das regiöes de maioria sérvia encravadas secularmente
véem como hostis ou potencialmente hostis?62
em territ6rio da Croåcia (casos de Krajina e das duas

Eslavönias, cujos habitantes terminaram expulsos de

Näo foram s6 as minorias sérvias da Croåcia e da B6snia suas åreas em dois casos de "limpeza étnica" täo dra-

que surgiram para desafinar o coro da cobertura da imprensa måticos quanto todos os provocados pelos sérvios, mas
internacional. A Conferéncia de Londres, em agosto de 1992, que näo tiveram o mesmo tratamento indignado da
revelou de fato um verdadeiro caleidosc6pio étnico que näo ca- imprensa internacional);
bia na camisa-de-forga dos modelos simplificados vendidos pe- 5) a minoria sérvia de Kossovo comunicou as persegui-

las agéncias de noticias e pela imprensa internacional como um qöes que sofria dos albaneses majoritårios na regiäo;
todo:
6) a minoria albanesa da Sérvia, concentrada como maio-
1) onde se ouviam representantes do poder central da ria da populagäo de Kossovo, denunciou perseguigöes
Macedönia apresentar a exigéncia do reconhecimento do poder central sérvio, que reprimiu o movimento
de seu pais contra o jugo da federaqäo iugoslava, surgi- autonomista na provincia;
ram representantes dos albaneses da Macedonia para
7) lfderes de um partido croata, o Conselho de Defesa
reivindicar autonomia dentro da nova nagäo, pois sua
Croata (HVO), se apresentaram para defender a auto-
populagäo é discriminada e sua nacionalidade näo es-
nomia da regiäo chamada Herzeg6vina (extremo oeste
tava representada na Constituigäo do pais;
da B6snia) em relagäo ao governo central majoritaria-
2) representantes dos bålgaros da Macedönia reivindica- mente mugulmano e a criagäo da Repåblica Herceg-
vam a incorporagäo de {rea desse pais å vizinha Bulgåria; Bosna, com apoio tåcito do governo da vizinha Croåcia;
3) a Bulgåria, através de porta-vozes de seu governo, re- 8) as Forsas Croatas de Defesa (o fascista HOS), da
novou extra-oficialmente a reivindicagäo tradicional de B6snia, contestaram essa decisäo. O atrito entre as duas
seu pais sobre todo o territ6rio macedönio, que ela partes iria gerar combates entre croatas dentro da

Herceg-Bosna;
62 Ibid, p. 23 (tradusäo minha).
92 l..eäo Serva Jornalismo e desinformagäo 93

9) o governo central da B6snia, de maioria mugulmana, Verdade — Tradicionalmente a primeira vftima da guer-
ra, na B6snia de hoje ela sofre algo mais parecido com
rejeitou os movimentos autonomistas de croatas da
a morte por milhares de cortes. Em seu lugar, existem
Herzeg6vina. O atrito levaria å intervengäo do exér- graus de probabilidade, possibilidades crescentes ou
cito do governo central de Sarajevo e a atritos na re- decrescentes, informagöes confiåveis ou näo, versöes
giäo, que resultariam em uma guerra civil aberta en- conflitantes. [...J "Alija Izetbegovic é o presidente da

tre croatas e mugulmanos em vårias regiöes da B6snia" parece inconteståvel até que vocé påra para
63
pensar o que é "B6snia .

ex-repåblica iugoslava, a partir do final de 1992;

10) hångaros da Vojvodina (provincia ao norte da Sérvia)

reclamaram da falta de liberdade para apresentarem


A verdade morre por milhares de ferimentos, näo porque
sua situagäo å conferéncia, em face da repressäo do
um corpo ånico tenha sofrido muitos cortes, mas porque diver-
sas verdades väo sendo estabelecidas e em seguida mortas, em
governo da Rep(lblica;
måltiplos conflitos. Se para um editor de jornal pode parecer
11) o governo da Hungria insistia em reclamar mais di-
diffcil explicar aos leitores o conflito entre sérvios, croatas e
reitos para os hångaros da Vojvodina, o que era visto
mugulmanos, explicar um conflito composto por onze elemen-
pelo governo sérvio como ingeréncia em seus neg6-
tos, pelo menos, deve ter parecido impossfvel: a imprensa do
cios internos e uma tentativa de capturar parte do
mundo todo decidiu arquivar a informaqäo sobre essa multi-
territ6rio sérvio, cedido pela Hungria ap6s a derrota
plicidade de atritos.
na Primeira Guerra Mundial;
Com isso, os "olhos do mundo" mantiveram o foco ape-
12) mugulmanos da regiäo de Sandzak, dentro da Sérvia,
nas na B6snia-Herzeg6vina, como se as {reas ao redor dela fos-
anunciaram sua reivindicagäo de autonomia em rela-
sem mais harmonicas, ou no mfnimo mais controladas. Isso
gäo ao poder central de Belgrado e apoiaram a inte-
ofuscou conflitos como o de Kossovo, que alguns anos antes
gragäo da regiäo å B6snia-Herzeg6vina.
parecia aos iugoslavos e aos analistas internacionais ser o verda-

deiro barril de p61vora da lugoslåvia —- e que s6 veio a estourar


Assim, enquanto o noticiårio internacional apresentava a em 1998. Mas se, como diz Lawrence Norfolk, normalmente
guerra civil da lugoslåvia como um conflito simples entre dois näo se pergunta "o que é a B6snia?", as instituigöes internacio-
lados, surgiam aos olhos de alguns leitores diversos conflitos
nais acabaram em 1995-1996 por estabelecer um pafs com esse
internos em regiöes que antes pareciam ser homogéneas. Essa nome, definindo como suas fronteiras aquelas que vigoravam
mirfade de conflitos e microconflitos foi definida pelo escritor

Lawrence Norfolk em um verbete de seu "ABC da B6snia":


L. Norfolk, "ABC da B6snia", cit., p. 249.
Leäo Serva Jornalismo e desinformasäo
94

antes de 1990 (obrigando sérvios, croatas e mugulmanos a uma Reclugäo em busca da uniformidade:
reconciliagäo formal expressa na composigäo virtual de um go- o diferente näo cabe
verno central tripartite). Isso tudo ocorreu sem que estivesse real-

mente esclarecida uma questäo ainda mais complicada: "O que A redugäo de fatos multifacetados para uma digestäo mais
é um b6snio? .
fåcil pelo consumidor (leitor, no caso dos jornais; eleitor, no
caso dos politicos) ocorre näo s6 em relagäo ao contexto dos
O presidente do pais, Alija Izetbegovic, é sempre apon-
fatos, mas também em relagäo å pr6pria narragäo de ocorréncias
tado como "b6snio-mugulmano". No entanto, o conceito de
ditas "objetivas". As agéncias noticiosas internacionais costu-
nagäo mugulmana" é relativamente novo (mais novo do que
mam simplificar as descrigöes de fatos concedidas por suas fon-
o pr6prio presidente, nascido em 1925). A "nagäo mugulma-
tes, reduzindo-as a um "denominador comum", de forma a näo
na" foi reconhecida pelo comité central do Partido Comunista
se tornarem elas mesmas, pelas diferengas entre os dados, foco
da Bdsnia em 1969 e sancionada pela Constituigäo outorgada
pelo governo central iugoslavo em 1974 como uma concessäo
de atengäo. O procedimento retira dos fatos a diversidade de
versöes, para tornå-los algo "simples, Claro e objetivo", o que na
ao crescente nacionalismo dos mugulmanos. Até ali eles eram
verdade näo säo. Dessa forma, mais uma vez, a ' primeira vitima
reconhecidos como membros de familias sérvias ou croatas
quando comesa a guerra é a verdade", como afirmou o senador
que adotaram a religiäo mugulmana. O pr6prio Izetbegovic
norte-americano Hiram Johnson, em frase usada como epfgrafe
apresentava-se como "sérvio de religiäo mugulmana" nos cen-
e inspiraqäo do tftulo do livro de Phillip Knightley, Aprimeira
sos populacionais do pafs até a década de 1960. A criagäo da
"nacionalidade mugulmana" foi uma medida "reducionista" dos
vitima, um clåssico dos estudos sobre jornalismo de guerra. Mas
o que vitima a verdade näo é um assassinato puro e simples, mas
åltimos anos de Tito, resolvendo por decreto uma questäo
uma intervengäo cirårgica que a mata mas mantém sua aparén-
complicada.
cia, como a uma måmia.
Ao mesmo tempo, para Izetbegovic, reivindicar a nacio-
Cobrindo a Guerra da B6snia, ou a das Malvinas, ou qual-
nalidade mugulmana é uma agäo de marketing em grande me-
quer outra, os correspondentes assistem a um tiroteio de infor-
dida: ele cria uma comunidade maior, formada näo s6 pelos
magöes conflitantes. Muitas vezes a reagäo é procurar o denomi-
eslavos mugulmanos, mas também pelos albaneses, turcos,
nador comum. Foi o que ocorreu na cobertura de uma ofensiva
montenegrinos e representantes de outras etnias, mas de mesma
do governo mugulmano de Sarajevo ao tentar romper o cerco å
religiäo, que quisessem aumentar a forga de sua gente. Trata-se
cidade, em agosto de 1992. No cipoal de nåmeros de mortos
também de uma redugäo: diminuir o repert6rio (de caracterfsti-
divulgados por fontes diferentes e apurados pelas diversas agén-
cas) para aumentar a bitola do filtro, incluindo no novo grupo
cias de reportagens, os escrit6rios dessas empresas optaram por
resultante dessa operaqäo um universo maior de pessoas.
Leäo Serva Jornalismo e desinformagäo
96

combinar um nåmero comum. "Ao final daquele dia o governo Embora näo seja invengäo recente, o uso de informagöes
b6snio noticiou a morte de 22 de seus soldados durante o fim de segunda mäo tampouco esgota os recursos usados pelo jor-

nalismo atual para reduqäo da diversidade natural dos fatos, de


de semana de ofensiva. O nåmero foi citado pelas agéncias no-
suas causas, de sua hist6ria e dos vårios ångulos possiveis de vi-
ticiosas internacionais, e passou a ser 'verdade'."64 0 caso narra-

do näo é uma excegäo. O texto de um rep6rter canadense que


säo. A conseqüéncia dessa reclugäo é semelhante ao efeito do
cobriu a Guerra da B6snia para vefculos japoneses descreve um pr6prio nacionalismo sobre a mentalidade politica de um pafs:
o diferente näo cabe.
"acerto" igual entre correspondentes dos jornais britånicos The
Times e Guardian, bem como a descriqäo, por um, de fatos
Reclugäo: casos de parcialidade
presenciados ou apurados por outro.
Se na escolha dos fatos o caos é a matéria-prima funda-
Reportagens feitas a partir de relatos de segunda mäo, sem
mental, nos relatos jornalfsticos, o confuso, o ininteligivel é su-
o testemunho do autor, näo säo novidade criada pelas agéncias
primido, seja na intensäo de que o leitor entenda melhor a his-
internacionais ou pelos correspondentes dos jornais citados nas
t6ria, seja por uma adesäo a um dos lados. Neste caso, a redugäo
guerras dos anos 90. Säo mais antigas, como mostra Lawrence
vai procurar operar a adesäo do leitor a essa causa. O mesmo
Norfolk:
jornalista John Bosnitch, ao descrever as posiqöes ocupadas pe-
las forgas inimigas dentro da cidade de Sarajevo, revela sua sur-
Segunda mäo — Corpos sem cabega outra vez: as repor-
presa ao constatar a existéncia de sérvios dentro da cidade, quan-
tagens do Daily Universal Register citadas acima teriam
Sido compiladas a partir de relatos de segunda mäo, do a informagäo divulgada pela imprensa ocidental durante todo
originados em entrevistas dos embaixadores do impe- o conflito, de 1992 a 1995, era a de que a cidade estava domina-
rador em Londres e Bruxelas. As informagöes dos em- da pelos mugulmanos e sitiada por sérvios, que a bombardea-
baixadores vieram do Escrit6rio de Correspondéncia
vam das montanhas da periferia.
em Viena (essencialmente um 6rgäo de censura, por-
tanto näo de fabricagäo), que as retirava de despachos Fiquei surpreso quando pude andar sem problemas
enviados pelo exército. A proveniéncia dessa informa- em diresäo ao rio que divide a cidade, a algumas cente-
gäo näo inspira confianga, e eu suspeito que a hist6ria nas de metros do conhecido hotel Holiday Inn. Tive
inteira tenha Sido reciclada de algum incidente anterior, que tomar cuidado ao andar em diresäo ao centro da
65
possivelmente pertencente a alguma outra guerra. cidade, porque atrås de mim, no Debelo Brdo, o "Mor-
ro Gordo", atiradores mugulmanos disparavam contra
66
civis no lado sérvio de Sarajevo.

64 Serva, A batalha de Sarajevo (Säo Paulo: Scritta, 1994), pp. 177-179. J. Bosnitch, Holiday in Bosnia, publicado em pågina da Internet: http://www.conspire.com/
bos.htm (tradusäo minha).
('s L. Norfolk, "ABC da B6snia", cit., p. 248.
98 Leäo Serva Jornalismo e desinformagäo 99

A existéncia de sérvios dentro da cidade, no papel de viti- mfnimo por ser a mais longa deste fim de século — mas ainda

mas de uma "limpeza étnica" mugulmana, näo cabia no enredo assim aquela que encarna melhor os problemas da comunicagäo

da imprensa internacional ocidental -— por redugäo. humana no tempo em que proliferam meios de massa, em que
O reducionismo jornalfstico acaba funcionando como o a capacidade de transmitir dados em grande velocidade näo re-
pr6prio reducionismo nacionalista — recusando informaqöes mais sultou em aumento da capacidade de compreensäo dos fatos.
"complicadas", digamos, do que conceitos excludentes como raga, Exemplos dramåticos de reducionismo na guerra da Iu-

nagäo, påtria, etc. E na descrigäo de fatos pelo jornalismo, uma goslåvia säo os casamentos interétnicos, a prova cabal de que os

alteragäo de paradigma pode inverter o Sinal de uma hist6ria, de nacionalistas de todos os lados, que impuseram a guerra civil,

um papel, um her6i pode facilmente aparecer como viläo, um näo säo hegemönicos, ou mesmo de que sua ideologia näo foi,

caso complexo virar uma hist6ria simples (um caso de legitima antes, homogénea em todas as nacionalidades. O nåmero de
defesa virar um assassinato simples), etc. Uma declaraqäo ironica casamentos interétnicos é sempre proporcional å abertura de cada

de Albert Einstein é reveladora de como simples redugöes comunidade ås outras etnias. No caso iugoslavo ele é o Sinal de
jornalfsticas podem tirar uma hist6ria de seu contexto e alterar uma boa dose de harmonia interétnica. No entanto, para os

completamente seu conteådo: "Se minha teoria da relatividade nacionalistas de hoje, näo hå lugar para casamentos entre etnias

estiver correta, a Alemanha dirå que eu sou alemäo e a Fransa dirå diferentes ou para filhos mestigos. Todos tém que optar por um
que eu sou um cidadäo do mundo. Caso ela esteja errada, a Fran- lado ou outro da guerra. E para o jornalismo tampouco hå de
ga dirå que eu sou alemäo, e a Alemanha, que eu sou judeu".67 fato lugar para essas hist6rias pouco duais: esses casos säo apenas

A auséncia de conhecimento de uma informagäo pelo re- um tempero ex6tico para a cobertura, temas de reportagens s6
ceptor, por omissäo, submissäo, sonegagäo, saturagäo ou ainda de tempos em tempos.

por redugäo pode fazer com que uma hist6ria complexa se tor- Os casamentos interétnicos säo exemplos de como a sim-
ne um caso de maniquefsmo. É provavelmente o que acontece plificagäo jornalfstica opera paralelamente, mas no mesmo sen-
em todas as guerras — mas como as do passado s6 conhecemos tido do nacionalismo, que näo tem espago para que os relacio-

por fontes restritas, torna-se diffcil saber exatamente o que ocor- namentos entre diferentes etnias se afirmem como padräo de

reu. O mesmo pode estar acontecendo neste momento com o comportamento — jå que a 16gica nacionalista é de exclusäo. Em
legado que deixaremos para os historiadores do futuro sobre as um pais cultural e etnicamente democråtico, casamentos ou re-
guerras deste tempo. A guerra civil da lugoslåvia talvez seja a lacionamentos entre pessoas oriundas de diferentes comunida-

mais tfpica, aquela sobre a qual temos mais informagöes, no des deveriam ser normais. Sob regimes nacionalistas, o cidadäo
näo-xen6fobo se torna um "esquizofrénico", conforme a defini-
67 Apud R. S. Wurman, op. cit., p. 199. $0 de muitos deles mesmos, uma pessoa que deve optar entre
100 Lcäo Serva Jornalismo e desinformasäo 101

um lado e outro, embora sabendo que toda escolha implicarå a "desconfortåveis". Em uma guerra nacionalista näo hå lugar para
exclusäo do outro o modelo pluralista näo voltarå mais, e o meios tons" — e, portanto, um sérvio tem que ir para o lado dos

estabelecimento de fronteiras comega pela eliminaqäo de casos sérvios. Mais ou menos como no procedimento jornalfstico de

"atfpicos", exatamente aqueles que säo täo complicados quanto edifäo,em que noticias sobre a Sérvia tém que ser juntadas em
a Vida real. um lugar, noticias sobre a Turquia em outro, noticias sobre cul-
Bihac e Sarajevo, cidades b6snias que durance a guerra fi-
tura lå, noticias de politica aqui. Essas divisöes, ou "grades", re-

produzem involuntariamente, em seu universo, o reducionismo


caram sob controle do governo mugulmano, mas cercadas por
nacionalista.
sérvios de todos os lados, tém Sido citadas constantemente como

exemplos da convivéncia harmonica entre as etnias, mesmo du- Além do aparente desejo de reduzir as facetas de uma no-

rante o conflito. Essa fraternidade gerou casamentos mistos e ticia para tornå-la virtualmente mais compreensivel, a redugäo

uma grande populagäo sérvia que continuou dentro das cidades do fato no jornalismo contemporåneo muitas vezes reflete

inadvertidamente adesöes hist6ricas que superam o papel de cada


quando comegaram os combates, alguns por serem mestigos,

muitos por temerem o radicalismo dos nacionalistas do outro


rep6rter e remetem para hist6rias longfnquas de cada pais. A
adesäo européia å independéncia da Croåcia e da B6snia — preci-
lado da "fronteira", e outros tantos simplesmente por näo que-
pitada pela necessidade de a Uniäo Européia manter uma posi-
rerem deixar o lugar onde tém familia, trabalho e propriedades.
$0 conjunta, depois que a Alemanha, unilateralmente, reco-
Em uma cidade como Bihac, no norte da B6snia, a guerra dei-
nheceu a independéncia — reproduziu a vinculaqäo tradicional
xou os filhos de casamentos interétnicos como que esquizo-
dos pafses germånicos ås nagöes cat61icas entre os eslavos do sul.
frénicos: "Os nacionalistas sérvios querem me cortar ao meio.
O noticiårio internacional de 1991 em diante refletiu as
Gostam de um lado, mas näo gostam do outro", brinca um
vinculagöes da geopolitica tradicional da regiäo: a imprensa rus-
mero esloveno, meio sérvio.
sa geralmente cobria e retratava as agruras das minorias sérvias
A sensaqäo de divisäo da personalidade que ele expressa é sob perseguigäo dos croatas, enquanto a ocidental quase unani-
encontrada comumente em mestigos depois que comegou a memente retratava uma cena inversa.
guerra civil iugoslava, muitas vezes assumidamente, com o uso
Esse comportamento pode ser involuntårio da parte de
da expressäo psiquiåtrica "esquizofrenia". cada rep6rter isoladamente, mas revela que nas operagöes de re-
Esses casos de gente que estå "do lado errado da fronteira" duqäo também operam elementos culturais e ide016gicos arrai-

foram causa de crescimento do nacionalismo sérvio no infcio da gados, e näo s6 a observagäo de campo. "Quando eu me vi nessa
década de 1990 — e, de fato, o estabelecimento de fronteiras "de ponte no centro de Sarajevo, reconheci as imagens de prédios
Estados" posterior ao rompimento da federaqäo gerou tais casos destrufdos do lado mugulmano da cidade, mas nunca tinha vis-
102 Leäo Serva

to uma finica foto dos prédios ainda mais destruidos do lado

sérvio da ponte.

Rep6rteres que cobrem esse conflito, assim como outros,


reclamam da dificuldade de locomogäo por regiöes em guerra e
retratam o que podem apurar. Provavelmente boa parte deles

näo reconhece em seu trabalho uma adesäo a simpatias dos

governantes de seus ancestrais. Essas lacunas — como a cobertura

desequilibrada, que omite sofrimentos de um dos lados em luta —


tenham Sido elas criadas por omissöes ou por sonegagöes, pro-
duziram um noticiårio que reduziu os fatos contemporåneos
aos arquétipos hist6ricos. Assim, da mesma forma como a ma-
nipulaqäo de mitos arcaicos dos nacionalismos locais serviu para

mobilizar as populaqöes de cada etnia, no resto do mundo o

apelo a arquétipos antigos serviu para "mobilizar" os leitores de

cada canto do mundo numa adesäo a uma ou a outra parte em


conflito. Entäo novamente vem å tona a imagem de um sérvio
que, nos anos 90, vé qualquer alemäo como um soldado nazis-

ta, qualquer austrfaco como se fosse um espiäo da monarquia

dos Habsburgos, qualquer mugulmano como um agente dos


turcos que venceram a Batalha de Kossovo do século XIV, e

assim por diante — o que acontece de fato no discurso naciona-

lista, na cobertura jornalfstica e também nos enredos dos filmes,

como o irönico Underground, produzido por Emir Kusturica,

ou o trågico Antes da chuva, de Milcho Manchevski.

J. Bosnitch, op. cite (tradusäo minha).


CAI)fTUL0 8

A FORMA QUE DESINFORMA

sistema de construgäo da noticia jornalfstica se då através

de procedimentos técnicos, denominados "edigäo", que


visam explicitamente a satisfazer a necessidade de informagäo

do consumidor. Ao mesmo tempo, tais procedimentos estabe-


lecem essa necessidade uma vez que se voltam principalmente

para a publicagäo de "notfcias", definidas como narragäo de fatos


novos. Na auséncia de noticias genuinamente novas, o jornalis-
mo veste como novos muitos fatos que em verdade näo o säo.
Esse foco exclusivo nos fatos novos se deve, de acordo

com a ldgica do meio, å convicgäo de que a curiosidade do lei-

tor se då por novidades, näo por textos que descrevam o desen-


volvimento de noticias publicadas nos dias anteriores.

Procurando apresentar apenas novidades, o jornalismo


acentua ou mesmo amplia o desconhecimento do fato noticia-

do. Ele deve apresentar a noticia como absolutamente inusita-


da, deve fazer com que mesmo o leitor informado sinta desco-
nhecer o fato descrito, se surpreenda com ele, ainda quando tudo

poderia ser previsto com base nas informagöes anteriores. Fatos

paradigmåticos do passado devem ser esquecidos, o acompa-


nhamento do desenrolar de uma hist6ria é descontinuado para
que o seu desfecho seja novamente täo surpreendente quanto o

fato gerador.
124 Leäo Serva
Jornalismo e desinformagäo 125

Esses processos desinformantes säo essenciais ao trabalho informagäo. Esse processo necessariamente vai lapidar a noticia,
jornalistico. Omissäo, sonegaqäo, submissäo, deformaqäo, sa- retirå-la de seu contexto, da complexidade de suas circunstån-
turagäo, neutralizagäo e redugäo säo conseqüéncias do processo cias, impondo assim uma redugäo de seu conteådo. Isolada de
de edigäo que, embora "naturais", invertem a vocaqäo expressa seu ambiente original, a notfcia se torna mais compreensfvel por
do jornalismo: a missäo de informar. autor e consumidor — mas distancia-se da sua esséncia.

A necessidade de destacar um fato sobre outros provoca a Por fim, o mecanismo de eleiqäo dos fatos mais e menos
submissäo de uma notfcia a outra. A conseqüéncia imediata dis- importantes, a pr6pria esséncia da técnica de edifäo, impöe
so é a contextualizagäo diferenciada de uma ou duas notfcias. distorgöes também ao desenvolver uma espécie de ritmo de ex-
No ambiente do jornal, como também na mem6ria do leitor,
pansäo e contragäo com a intengäo de provocar surpresa, segui-
um fato se agrega ao outro. Seus conteådos se imiscuem, suas da de paulatino esquecimento e posterior renovaqäo da surpre-
conformagöes se confundem. sa. Mesmo (e ainda mais) quando uma noticia tem um desen-

O crescimento da chamada indåstria da informaqäo tam- volvimento prolongado no tempo e seu desfecho terå necessa-

bém tende a provocar uma distorgäo: a saturaqäo do consumi- riamente um tratamento destacado quando ocorrer, ainda assim
dor diante de um universo de milhares de informagöes, muito ela tende a se reduzir paulatinamente até explodir novamente

maior do que o que ele pode processar. Conseqüéncia natural como uma surpresa. Esse procedimento näo se deve a uma
dessa emissäo excessiva de conteådos é a neutralizaqäo de infor- distorqäo do trabalho jornalfstico; como vimos, ele é mesmo
magöes: muitas notfcias se perdem devido å saturagäo dos con- prescrito pelas normas, explfcitas ou näo, que dirigem a atividade
sumidores e dos meios. jornalfstica.

A saturagäo pode tanto provocar o esquecimento, a perda Por tudo isso, o jornalismo, tal como estå disposto nos

da informagäo, como alterar a sua compreensäo de tal forma meios de comunicagäo atuais, pratica ao mesmo tempo técnicas
que se caracterizarå como deformaqäo da informagäo — e, se de informagäo e de desinformagäo. Satisfaz a demanda por in-
ocorrer sistematicamente, pode ser caracterizada como desin- formagäo, mas mantém elevada essa demanda. Satisfaz ao mes-

formaqäofuncional. mo tempo em que nega. Informa, mas necessariamente desin-


forma também.
Todo o processo de edigäo jornalfstica, a construqäo de

um "sistema modelizante", na expressäo de I. M. Lotman, 82 Em outras palavras, o jornalismo sistemåtica e necessaria-


baseia-se na necessidade de produzir signos que representam a mente produz relatos sobre os fatos que os retiram de sua
organicidade ou de seu lugar na sucessäo dos acontecimentos. E
82 1. M. Lotman, "Sobre a tipologia da cultura", em Boris Schnaiderman, Semidtica russa
por decorréncia, o noticiårio essencialmente nega ao leitor ferra-
(Säo Paulo: Perspectiva, 1979), pp. 31-41.
mentas importantes para uma eventual compreensäo deles.
126 Leäo Serva Jornalismo e desinformagäo 127

A conseqüéncia natural desse sistema é que, ao apresen- momento em que a imprensa internacional se volta para a re-

tar retratos dos fatos de forma isolada e descontextualizada, os giäo. Se na 16gica do sistema jornalfstico hå a cada vez um novo

meios informativos simultaneamente negam ao seu consumi- fato" ocorrendo ali, para os membros da cultura local, hå apenas
dor uma apreensäo mais completa da noticia e produzem uma a "hist6ria pulando ao redor e se movendo em circulos", na ex-

percepgäo alterada dos acontecimentos ao longo do tempo — e pressäo de Kaplan.

por decorréncia do fluxo da hist6ria —, ao gerar uma falsa su- Os meios de massa impöem aos fatos ritmo e roteiro

cessäo de fatos novos e independentes. No jargäo jornalfstico, evolutivo que näo säo necessariamente os que parecem naturais

seria dizer: a imprensa engana ao apresentar aos seus leitores ås testemunhas dos acontecimentos. Esse descompasso se deve a
uma mirfade de "notfcias quentes" onde em verdade existem necessidades intrfnsecas ao papel cultural do sistema de comuni-
apenas "suites". cagäo na sociedade contemporånea. Diz Norval Baitello Jr.: "A

Isso se torna particularmente visivel em um noticiårio sobre mfdia, nos seus rituais informacionais — o que näo exclui a in-

uma sociedade como a iugoslava, exemplar neste trabalho, cuja formagäo ficcional —, cria um pulsar rftmico reiterador do tem-
cultura se volta obsessivamente para o passado e ritualmente
po. Segundo Harry Pross, a fungäo primordial da midia é a de
sincronizadora de uma sociedade" .83
procura atualizå-lo, como que para tentar vencer agora a guerra
perdida hå seiscentos anos. A expressäo do tempo, tal como aparece nos meios de

comunicagäo de massa e no jornalismo, é uma representagäo

E preciso fazer o tempo andar, mesmo que especffica, que paga aos acontecimentos apenas o tributo da

ele queira parar verossimilhanga. Sua fungäo primordial näo é a de informar sobre

os temas que noticia, mas de sincronizar a sociedade, e para tan-


A versäo jornalistica dos fatos ocorridos nos Bålcäs, que to deve impor aos consumidores da mfdia a visäo do tempo
os retrata como que em evolugäo permanente, que descarta suas especffica dessa cultura. Se entre as culturas dos receptores da
rafzes e seu contexto hist6rico, revela-se distante da verdade. E mfdia, de um lado, e dos agentes dos acontecimentos, de outro,
torna-se ainda mais excéntrica quando comparada com a ima- hå diferentes relagöes com o tempo, os fatos em si väo parecer
gem dos fatos que se produz nos Bålcäs. Para os aut6ctones, os

fatos da guerra dos anos 90 säo ocorréncias renovadas de uma 83 0 conceito de sincronizasäo é seminal para a Semi6tica da Cultura, para quem "um dos
mesma hist6ria. Ou, como diz o letreiro no final de Under- mais import-antes portadores materiais do sistema simb61ico chamado tempo, um dos
seus suportes, é a atividade dc gcragäo, distribuisäo e conservasäo das informasöes.

ground, do bdsnio-mugulmano que se denomina iugoslavo Emir Nesse contexto desempenha papel de dcstaque em nossa contemporaneidade a atividade
da midia, os meios de comunicasäo de massas Estes suportes atuam invariavel-
Kusturica, no lugar do convencional "The End": "Esta hist6ria mente corno demarcadores do tempo de Vida dos individuos, sincronizando suas
atividades dentro de um todo maior". N. Baitello Jr., O animal queparou os relågios (Säo
näo tem fim". E portanto näo tem um novo comego a cada Paulo: AnnaBlume, 1997), p. 100.
128 I-.eäo Serva Jornalismo e desinformagäo
129

desajustados no papel que lhes é destinado pela mfdia "do ou- estå voltada para o texto "passado" e é de natureza her6ico-mftica,
tro". Escreve Baitello:
"fundada num tempo memoråvel dos deuses e her6is aos quais
Cada cultura pode definir o seu pr6prio padräo de devemos a nossa existéncia e o nosso saber".
tempo. Hå culturas voltadas para textos futuros. Hå
aquelas que se centram no presente e seus textos. Tam- Além de impor, por sua fungäo sincronizadora, um fluxo
bém existem culturas que se fundam na mem6ria e nos de permanente desenvolvimento para os fatos, uma nogäo
textos passados. A cultura voltada para o texto "futuro" evolutiva do tempo marcada pelo ritmo de surpresas constan-
é do tipo messiånico. Todo o seu passado e seu presente
tes, hå também uma razäo economica que explica o modo como
säo redimensionados em fungäo.da sociedade ideal que
opera o sistema da informagäo: é uma necessidade da mfdia de
vai acontecer no futuro. As culturas que se centram no
texto "presente" säo marcadas pelo descarte da infor- ser consumida. Uma impressäo de tempo "circular", de fatos

magäo hist6rica, tornada obsoleta pelas codificagöes con- que se repetem com regularidade, näo imporia a necessidade de
sagradas por um determinado momento. Os c6digos se consumo continuado interrompendo o sistema econömico
sucedem e se substituem com grande velocidade e de
que constitui a mfdia contemporånea.
maneira aparentemente pouco traumåtica. O novo jå

nasce condenado å obsolescéncia, programada e pre- Para sobreviver como tal, os meios precisam fazer o tem-

sente no seu åmago. As referéncias hist6ricas, po andar mesmo que ele se recuse.
construfdas no cadinho das experiéncias passadas, se
perdem, sonegando com isto o solo fértil para a Vida do

imaginårio. As técnicas ditam as normas, a tecnologia


se confunde com o saber. As culturas voltadas para o
texto "passado" säo aquelas her6ico-mfticas. Fundadas
num tempo memoråvel dos deuses e her6is aos quais

devemos nossa existéncia e o nosso saber.84

Pode-se discutir a caracterfstica de qualquer cultura, como


a brasileira, por exemplo — se ela é voltada para o texto "futuro"

(messiånica, com seu passado e presente focados na sociedade

ideal que virå) ou centrada no texto "presente", descartando a


informagäo hist6rica em prol de uma substituigäo frenética de
c6digos. Mas certamente ninguém nega que a cultura iugoslava

84 Ibid., pp. 101-102.

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