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iTIJL0
OMISSÄO, SONEGAGÄO E SUBMISSÄO
DA INFORMAGÄO
interna da empresa näo permite o acesso å informagäo (pode-se exemplo, a revelagäo de um caso de corrupgäo para o qual a
supor um correspondente que tem acesso a uma informagäo no edifäo näo confere o destaque merecido diante da importåncia
fronte de guerra mas näo tem como transmiti-la ao jornal, ou hist6rica ou politica do fato; ou o seqüestro de um empresårio
um telefone quebrado na Redaqäo que impede a certa fonte dar que se desvenda no dia de uma eleiqäo presidencial: um dos
ao jornal a informagäo que passou a outros jornais); os furos fatos ou ambos teräo uma ediqäo menos impactante do que
tomados simplesmente por auséncia de representantes do pro- teriam em outra oportunidade, pois väo dividir espaqo nas edi-
duto no local de ocorréncia ou divulgagäo de certa informagäo Göes e na atengäo do espectador. A submissäo pode também
(suponha um comunicado da Prefeitura de Nova York divulga- colocar os dois temas sob um mesmo paradigma para o leitor,
do em local e horårio onde näo hå rep6rteres do New York Ti- confundindo noticias que nada tém em comum, submetendo
mes, por exemplo), etc. um fato ao enredo do outro.
Por sonegaqäo entende-se aquela informagäo que, sendo Quando se trata de acontecimentos reais, do cotidiano de
de conhecimento do 6rgäo de imprensa, näo foi colocada na fato, as trés categorias podem se misturar e também ser alteradas
edifäo por alguma razäo. Säo casos de sonegagäo: informagöes em fungäo da historicidade dos fatos.
perdidas por entropia na cadeia interna de comunicagäo (um Assim, um fato descrito sem seu contexto (um caso de
papel se perdeu no fluxo interno da Redagäo; o rep6rter fez a submissäo) pode se caracterizar também como omissäo da essén-
reportagem, mas näo deixou Claro o local onde a arquivou; o cia da noticia: 0 6rgäo de imprensa näo tem conhecimento de
rep6rter fez a reportagem, mas seu relat6rio näo permitiu uma que certa explosäo em Nova York foi causada por atentado a
avaliaqäo correta do fato pelo editor; informaqöes guardadas para bomba, e por isso a notfcia é publicada em tom corriqueiro,
uma outra oportunidade, como a edifäo de domingo em jor- entre outras sobre acidentes em cidades do mundo. Outro exem-
nais que fecham na sexta-feira å noite; para uma pr6xima data plo mais atual no Brasil: os 6rgäos de imprensa näo investigam
qualquer; para um momento em que o editor-chefe esteja mais elou näo divulgam as intengöes escusas ou mesmo criminosas
seguro da qualidade da informagäo; etc.); informaqöes descarta- que movem certa seita religiosa; entäo o noticiårio sobre ela é
das (porque o rep6rter näo ouviu todos os lados envolvidos; publicado sempre como questäo religiosa, e a seita, assim, torna-
porque o editor näo gostou da reportagem; ou ainda quando a se ainda mais eficiente no mimetismo de outras religiöes.
vontade do técnico, mas agrada ao patrocinador, o que näo é Clore por quem o conhece: a introduqäo de önibus intermuni-
noticiado; uma informaqäo sobre o governo é "vazada" por mem- cipais na Bahia foi saudada como uma "chegada do futuro" ao
bro do principal partido de oposigäo, e isso näo é divulgado (a estado na mesma época da visita ao Brasil do poeta futurista
noticia aparece como fruto da investigaqäo genuina do rep6rter, italiano Filippo Tommaso Marinetti — o que levou o påblico
escondendo parte do sentido da reportagem, que seria "a quem local a chamar os önibus de "marinete".
interessa sua publicagäo").
1979, por exemplo, ressaltou-se no noticiårio internacional o Alguns casos podem ser considerados exemplares dessa
fato de ela ser a primeira mulher a assumir a chefia de governo ocorréncia. Por exemplo, a Guerra do Futebol entre Honduras
do pafs, quando em verdade iniciava-se provavelmente uma das e El Salvador, em 1969, que passou å hist6ria como uma excen-
mais importantes mudanqas dos åltimos cem anos no seu siste- tricidade, quando a esséncia do fato näo era compreensfvel, pela
ma politico-econömico, e o påblico britånico, bem como os coincidéncia entre o conflito e a violéncia nos jogos das elimina-
analistas, tinham todas as informagöes necessårias para perceber t6rias da Copa do Mundo de 1970. Havia uma tensäo no
claramente essa dimensäo mais fecunda do fato. establishment militar de cada pafs, por outras razöes. Eles procu-
Outro caso conhecido de submissäo, menos folc16rico, foi cional, um fenÖmeno semelhante ao que acontece em casos de
a associaqäo no noticiårio entre o fim do seqüestro do empresårio
alfabetizaqäo ineficiente — quando a pessoa que estå sendo alfa-
Abilio Diniz e a primeira eleiqäo presidencial direta no pafs depois
betizada aprende apenas a juntar letras ou mesmo frases inteiras,
do regime militar, no final de 1989. O espaqo dedicado pelos
mas näo consegue apreender o significado do que lé (chamado
noticiårios å eleiqäo foi reduzido em fungäo do seqüestro. A aten-
de analfabetismofuncional).
$0 dos consumidores foi deslocada do fato de maior importån-
A desinformagäo funcional, entäo, corresponde a um fe-
cia da hist6ria recente do pafs. Simultaneamente, um seqüestro
nömeno definido pelo fato de que as pessoas consomem infor-
ainda pouco esclarecido (aparente banditismo de ex-militantes
maqöes através de um ou mais meios de comunicaqäo, mas näo
politicos) se confundiu no noticiårio e na atengäo dos eleitores-
conseguem compor com tais informagöes uma compreensäo
espectadores com as notfcias da eleigäo. Os efeitos dessa confusäo
do mundo ou dos fatos narrados nas notfcias que consumiram.
sobre a votagäo ainda näo foram inteiramente avaliados. Em um
Ao relacionarmos esse fenömeno ao noticiårio sobre a realidade
momento posterior, LuizAntönio Fleury Filho, secretårio de Se-
do Leste europeu, mais especificamente da lugoslåvia, ressoa
guranqa do Estado de Säo Paulo, forjou sua imagem de "paladino
novamente o pensamento deJancs6, que ressalta a dificul-
da seguranga" e, um ano depois, elegeu-se governador do Estado,
dade de integrå-lo [o fato] numa construqäo 16gica da realidade
em grande medida gragas ao destaque obtido pela cobertura do
que é condigäo para, cada qual, poder pensar o seu estar no
desfecho do seqüestro. Fleury é acusado de ter forgado essa sub-
mundo e na Hist6r1a .
Desinformagäo funcional
mas conseqüéncias o principio segundo o qual o objetivo
da fala näo é dar conta da realidade, mas mudå-la, alterå-la
Quando ocorre em caråter sistémico (e näo epis6dico), a
no sentido mais extremo da expressäo. Chega- Ele ordenou uma profunda depuragäo nos quadros das
mos, entäo, å constatagäo de que näo estå longe de ser duas organizaqöes, que foi realizada no seu primeiro
uma verdadeira revelagäo: enquanto o mentiroso de- ano de comando dos comunistas sérvios. De uma for-
seja que sua mentira seja acreditada, aqui tem-se a ma interessante, ele näo destruiu toda a mfdia sérvia,
sensagäo de que muitos discursos difundidos pelas rå- mas apenas aquela que poderia servir para fazer com
dios internas russas säo exatamente escolhidos na me- que os reduzidos quadros politicos da era comunista se
didaem que se sabe que näo seräo levados a sério. expandissem em um movimento de massas. Politika e a
Quem näo enxerga que nos encontramos num plano RTV Belgrado se tornaram vasos que a burocracia de
superior ao engano?47 Milosevic encheu, com o objetivo de alimentar o povo
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sérvio com uma dieta de suspeigäo e intoleråncia.
sérvio. Usados inicialmente para mobilizar a populagäo sérvia å Nenhuma democracia pode sobreviver se näo se
causa nacionalista, mais recentemente serviram para sobrepujar puser cobro a esta omnipoténcia. E é certo que se abu-
com uma minoria silenciosa do campo a barulhenta oposigäo sa deste poder hoje em dia, nomeadamente naJugoslåvia,
mas esses abusos podem ocorrer em qualquer sftio. O
urbana. O uso politico dos meios de informagäo na ex-lugoslå- uso que se faz da televisäo na Råssia é igualmente
via durante o regime de Milosevic é tema constante de estudos abusivo. A televisäo näo existia no tempo de Hitler [...J
de mfdia e politica internacional. Misha Glenny, corresponden- Com ela, um novo Hitler disporia de um poder sem
processo:
A. Robin, "Um lugar me tem e outros textos", trad, de Laymert Garcia dos Santos, M. Glenny, The Fall of Yugoslavia (Londres: Penguin, 1992), p. 14.
material didåtico para curso na Faculdade de Comunicasäo e Filosofia da PUC, Säo o K. Popper e J. Condry, Televi$äo: tzm perigo para a democracia (Lisboa: Gradiva, 1995),
Paulo, 1981, pp. 11-12. p. 30.
Leäo Serva
O articulista Timothy Garton Ash descreve os aconteci- asos de submissäo, deformagäo e desinformagäo funcio-
mentos: nal säo muito comuns hoje, em um mundo em que no-
vos meios de informagäo nascem a cada momento e os veiculos
Esses acontecimentos exigem uma reflexäo sobre as jå implantados divulgam freneticamente milhares ou milhöes
relagöes entre imagem e realidade. Aqueles que invadi- de informagöes por dia. Tem-se uma ténue idéia ao saber que,
ram o Parlamento criaram uma imagem inesquecivel
em média, um grande jornal brasileiro publica, a cada dia, cerca
de libertagäo — uma imagem que a CNN e a BBC envia-
de quatrocentas Unidades Informativas,51 considerados apenas
ram para todo o mundo. Essa imagem entäo se tornou
realidade. Tomar posse da TV estatal foi em si uma ou-
os textos jornalfsticos, näo os anåncios nem as muitas informa-
tra imagem televisiva mobilizadora: a TV Bastilha em göes embutidas dentro de cada um dos textos. Trata-se de jor-
chamas. Mas ela também significava que a oposigäo nal, o mais antigo entre os meios de massa, hoje concorrendo
agora controlava o lugar que produz as imagens, e que
com revistas, rådio, televisäo (convencional, a cabo e satélite),
näo säo o exército e a policia o coragäo do poder na
50 computagäo, etc. É virtualmgnte impossivel medir quantas in-
politica moderna.
formagöes säo publicadas por dia pela soma dos atuais meios de
T. G. Ash, "The Last Rcvolution", cm The New York Review ofBooks, XLVII (1 8), Nova cios de diversos tipos (e que para muitos leitores säo informasöes mais interessantes e
York, 16-11-2000, pp. 11-12. åteis do que os tcxtos dos mais prestigiosos colunistas ou rep6rteres).
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formagöes do que tudo aquilo que um homem médio Pesquisas mostraram que a forga de impregnagäo
do século XV ficou sabendo em toda a sua vida.53 publicitåria era menor do que se pensava. A injunsäo
e persuasäo levantam todas as espécies de contra-motiva-
O The New York Times, a que se refere Lewis, chega a ter aos passividade, para näo ser possufdo; reagäo å énfase, å
domingos 1.500 påginas, cerca de 2 milhöes de linhas tipogråficas, repetigäo do discurso, etc.), em suma, a publicidade dis-
Benchmark Research para a Reuters (Londres: Firefly Communications, 1996), p. 2. J. Baudrillard, "Significasäo da publicidade", em Luiz Costa Lima (org.), Teoria da
cultura de massa (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978), p, 273.
R. S. Wurman, op. cit., pp. 36-37.
Leäo Serva Jornalismo c desinformagäo
Quando incide sobre a informagäo, esse efeito de antila- mente anula a sua capacidade de produzir signos interpretantes
f,äo, ou neutralizaqäo, pode ser visto como talvez o mais Claro e necessårios para o acompanhamento de todas as noticias. A agäo
reconhecfvel componente da saturaqäo e agente causador da de acåmulo é seguida por uma reagäo de passividade diante do
desinformagäo funcional. Assim, um politico acusado de cor- meio, que impede a transitividade. É o que acontece na metra-
rupgäo, por exemplo, pode simplesmente acusar o acusador de Ihadora de palavras" do rådio, em que o espectador näo tem
corrupqäo também (falsa ou verdadeiramente), anulando o im- sequer tempo para intuir a possibilidade de que o vefculo pode-
pacto da denåncia. Da mesma forma, o efeito provocado pelo ria ter "duas mäos", mas é exercido com uma s6 jå que a
fato de os programas politicos se aglutinarem em um mesmo interatividade que marcou o nascimento do rådio foi eliminada
que tem o momento mais tfpico nas transmissöes de futebol, Internet), em 1998, esse processo avanqa a passos largos, mas
mas de forma suave se då o tempo todo uma profusäo de ainda näo acabou: as fusöes ou aquisiqöes de grupos emissores
signos emitidos constantemente, como para näo permitir ne- säo constantes, assim como os casos de "alianqas estratégicas
nhum "vazio", å imagem do locutor de futebol, que preenche os Em pouco tempo, a julgar pela evolugäo dos outros meios
espagos sonoros disparando palavras sem parar (como se o silén- de comunicaqäo, a atual interatividade da Internet poderå ser res-
Cio pudesse despertar o ouvinte da letargia). Essa disposigäo, re- trita ao uso do e-mail, a correspondéncia eletrönica, e näo mais
petida diariamente a cada minuto, condiciona o consumidor a caracterizar o comportamento da rede até na distribuigäo de con-
seu papel, ensina-o a "saber o seu lugar", para usar a expressäo teådos, como sucede hoje. Cada vez mais, grandes oligop61ios
popular, o lugar de eterno receptor. procuram atribuir uma natureza de broadcast å Internet, tornan-
A vocagäo monopolista dos meios impöe uma "metra-
do o seu uso semelhante ao que caracteriza a televisäo: ampla li-
berdade de escolha — mas de canais cujo conteådo estå pronto e
Ihadora de palavras" (hoje jå transformada numa "metralhadora
de signos"), näo s6 para usar seu poder de fogo, mas também dado: ao receptor cabe apenas captar um deles.
para impedir que do outro lado o consumidor se proponha a Na sociedade democråtica näo é possfvel retirar do receptor
usar o seu. Nesse sentido, a desinformagäo funcional causada o poder de emissäo, de produgäo de voz, por decreto, como em
pela saturagäo näo pode ser vista como mera e indesejada conse- regimes autoritårios. Entäo, esse processo é feito através de uma
qüéncia da proliferagäo de meios, mas uma imposigäo do siste- saturagäo dos canais de emissäo — deixando ao consumidor, do
ma econömico que organiza a economia da informagäo, indås- outro lado, apenas o papel de receptor, ou, no måximo, de pro-
tria e comércio de signos. É necessidade das grandes empresas dutor de signos para uma distribuiqäo täo desigual que receberå
que exploram de forma altamente concentrada os meios de co- sempre uma atenqäo marginal (o que é ironicamente chamado de
municagäo em todo o mundo eliminar a capacidade de produ- "mfdia confidencial", ou seja, o produto que, embora distribua
gäo de voz do cidadäo e de microorganismos sociais. conteådos, tem um nåmero inexpressivo de receptores).
Esse processo de retirada de poder do indivfduo corresponde,
Na apresentaqäo da pesquisa "Dying for Information? ,
foi concentrado antes, no caso dos new media (por exemplo, a D. Lewis et al., "Dying for Information?" , cit., p. 2 (tradusäo minha).
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Leäo Serva
cairå imediatamente no esquecimento. A dificuldade que mui- Um caso clåssico de redugäo na politica internacional re-
tos leitores tém para entender a lugoslåvia é semelhante å que cente foi a exploragäo, durante a campanha eleitoral peruana de
tém em relagäo a todos os outros temas que conhecem apenas
1990, das supostas semelhangas entre o entäo recém-empossado
pelo consumo de informaqöes através dos meios de comunica- presidente Fernando Collor, no Brasil, e o entäo candidato libe-
$0 atuais.
ral å presidéncia do Peru, Mario Vargas Llosa. A comparagäo se
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Leäo Serva Jornalismo e desinformagäo
marp de 1990, teve forte impacto negativo sobre a candidatura ria ser avaliada criticamente (para bem ou para mal) pelo eleito-
de Vargas Llosa. No entanto, as semelhangas essenciais entre radosomem com facilidade e, como em um show, podem pes-
Fujimori e Collor, perceptiveis a analistas politicos com forma- soalmente trocar de maquiagem no intervalo — ou a mfdia mu-
gäo em populismo, näo apareciam na imprenga: o arrivismo dos darå a "luz" em uma cobertura inteiramente nova para um velho
dois; o desprezo pelas estruturas partidårias; a falta de um pa- conhecido. Hå, em nossa hist6ria recente, um caso exemplar: jå
dräo de comportamento politico consolidado; a falta de bases sexagenårio, ex-presidente da Repåblica, protagonista de uma
de sustentagäo nas instituigöes democråticas o que poderia das mais inusitadas tragédias da politica brasileira nos anos 60,
levå-los a tentar safdas näo convencionais para os embates polf- Jånio Quadros se candidatou ao governo do Estado em 1982
ticos convencionais; a critica de estilo fascista a todo o sistema para ser recebido com uma cobertura des-historicizada, que ter-
politico, etc., eram semelhanqas perceptfveis que se revelaram minou por ungi-lo como uma "novidade", ao ressaltar mais uma
determinantes para as diferentes tragédias que marcaram cada vez seu comportamento ex6tico, jå exaustivamente desmascara-
uma das duas administragöes uma pelo fracasso do modelo e do duas décadas antes. Jånio apareceu como uma novidade
a outra pelo sucesso da afirmagäo de uma ditadura civil por uma imprevisfvel em sua candidatura contra Franco Montoro, um
década inteira. politico atuante contra o regime militar em anos anteriores e
A eleigäo dos dois é apontada como fruto do uso da mfdia, que por isso tinha uma imagem mais conhecida. Jånio perdeu
no sentido de obter colaboraqäo dos individuos que operam os essa eleigäo, mas trés anos depois venceu Fernando Henrique
meios. Em boa medida isso que parece ser uma verdade cristali- Cardoso, que se candidatava pela primeira vez a um cargo exe-
na se deve näo å capacidade dos candidatos de "usar a mfdia" (o cutivo, a Prefeitura de Säo Paulo. Naquela cobertura, Jånio apa-
que seria uma critica profunda ao conjunto dos profissionais receu de novo como novidade", um outsider contra o que mui-
dos meios "de informagäo", que afinal se deixam usar sem con- tos chamavam de "ditadura do PMDB", o partido de oposigäo
trapor a esses usuårios nenhum criticismo), mas a caracteristicas ao regime militar que agora, com a queda dos militares, vencia a
sistémicas essenciais imanentes ao jornalismo. maioria das eleigöes. Tudo se dava como se a mfdia näo tivesse
A necessidade de criar surpresas pela imprensa torna todo Depois do Jånio de 1982 e 1985, e talvez pela observagäo
politico uma espécie de arrivista. Para apresentar novidades, os de sua experiéncia, um outro politico populista usou o mesmo
jornais ofuscam ou escondem os fatos sobre o que é jå conheci- método de apresentar-se sempre de novo ao eleitorado, usando
do. Assim, mesmo politicos conhecidos e cuja trajet6ria pode- a natureza da imprensa para provocar o esquecimento do passa-
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Fatos longfnquos, como a eleigäo de um presidente de apenas coincidéncias epis6dicas, aspectos imagéticos, acidentais,
outro pafs, sobrepöem-se aos fatos do noticiårio local e, deslo- de seu conteådo, chamo redilfäo.
cados, caem em um outro paradigma. O fato distante passa a É determinante para a ocorréncia de reduqäo o processo
fazer parte do enredo local, como um ET na pequena Vila ame- de edigäo no jornalismo, que trabalha todos os fatos de um dia
ricana do filme de Steven Spielberg. E os fatos mais chamativos no mundo submetendo-os a algo como sete ou oito paradigmas
(deslocados de contexto e portanto de real compreensibilidade) as editorias tradicionais da imprensa: Politica; Economia; In-
ganham sentidos locais. Assim, as imagens dos alemäes "derru- ternacional; Geral; Esportes; Variedades/Cultura; e mais algo
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redugäo impede o conhecimento da integridade dos fatos foi a descentralizagäo, Belgrado continua sendo o poder cen-
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tral politico e econömico
conferéncia de paz da lugoslåvia, em Londres, em agosto de 1992, .
Naquela época, as atengöes se voltavam para a guerra civil seus mais ou menos como se Franjo Tudj man, o ex-comunis-
da B6snia, apresentada pela imprensa como um problema entre ta que liderou a independéncia da Croåcia em 1991, se transfor-
sérvios, de um lado, e croatas e mugulmanos, de outro. O noti- masseem dom Pedro I na cabega de um leitor brasileiro; ou em
ciårio procurava tratar os acontecimentos mais ou menos como George Washington na de um americano; ou em Patrice
o fim deum colonialismo em que as colönias se separavam da Lumumba, na de um congolés. Quando o conflito surge em
metr6pole um paradigma para o qual praticamente todos os toda a sua dimensäo de confusäo, o leitor se vé como o observa-
leitores do mundo, inclusive os brasileiros, tinham referéncias, dor de um caleidosc6pio de mapas, bandeiras e etnias:
mem6rias pessoais ou conhecimentos hist6ricos. Assim, a guer-
ra civil primeiro apareceu como uma guerra da lugoslåvia contra De fato, os sérvios tinham razöes para apoiar as fron-
as repåblicas separatistas da Eslovénia e da Croåcia, e depois como teiras internas da lugoslåvia. Se a lugoslåvia come-
gasse a se esfacelar, a adesäo ås fronteiras de Tito conti-
uma guerra de sérvios contra as demais nacionalidades.
nuaria a desestabilizar o status de nagöes do lado errado
Essa leitura reflete de fato a visäo dos nacionalismos iu-
delas. Isso é verdade especialmente para os sérvios, os
goslavos predominantes, digamos, como o croata, para quem as
aberturas do regime comunista centralizado å autonomia das J. Zametica, The Yugoslav Conflict, Adelphi Paper 270 (Londres: 11SS/Brassey's, 1992),
p. 9 (tradusäo minha).
repåblicas näo foram jamais suficientes.
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mais espalhados pela lugoslåvia. [ ...J Se croatas ou mu- alega ter Sido usurpado no infcio do século, na Segun-
gulmanos tinham o direito de lutar por autodetermina- da Guerra dos Bålcäs;
fäo, por que näo os sérvios? Se os croatas e mugulma-
4) o aparente "separatismo croata contra sérvios", que dava
nos podiam se separar da lugoslåvia, por que negar aos
sérvios o direito de se separarem da Croåcia ou da o tom ao noticiårio sobre a lugoslåvia, na descrigäo da
B6snia-Herzeg6vina? Por que deveriam [...J ser forga- guerra de 1991, "esquecia" o separatismo dos sérvios
dos ao papel de minorias dentro de Estados que eles das regiöes de maioria sérvia encravadas secularmente
véem como hostis ou potencialmente hostis?62
em territ6rio da Croåcia (casos de Krajina e das duas
Näo foram s6 as minorias sérvias da Croåcia e da B6snia suas åreas em dois casos de "limpeza étnica" täo dra-
que surgiram para desafinar o coro da cobertura da imprensa måticos quanto todos os provocados pelos sérvios, mas
internacional. A Conferéncia de Londres, em agosto de 1992, que näo tiveram o mesmo tratamento indignado da
revelou de fato um verdadeiro caleidosc6pio étnico que näo ca- imprensa internacional);
bia na camisa-de-forga dos modelos simplificados vendidos pe- 5) a minoria sérvia de Kossovo comunicou as persegui-
las agéncias de noticias e pela imprensa internacional como um qöes que sofria dos albaneses majoritårios na regiäo;
todo:
6) a minoria albanesa da Sérvia, concentrada como maio-
1) onde se ouviam representantes do poder central da ria da populagäo de Kossovo, denunciou perseguigöes
Macedönia apresentar a exigéncia do reconhecimento do poder central sérvio, que reprimiu o movimento
de seu pais contra o jugo da federaqäo iugoslava, surgi- autonomista na provincia;
ram representantes dos albaneses da Macedonia para
7) lfderes de um partido croata, o Conselho de Defesa
reivindicar autonomia dentro da nova nagäo, pois sua
Croata (HVO), se apresentaram para defender a auto-
populagäo é discriminada e sua nacionalidade näo es-
nomia da regiäo chamada Herzeg6vina (extremo oeste
tava representada na Constituigäo do pais;
da B6snia) em relagäo ao governo central majoritaria-
2) representantes dos bålgaros da Macedönia reivindica- mente mugulmano e a criagäo da Repåblica Herceg-
vam a incorporagäo de {rea desse pais å vizinha Bulgåria; Bosna, com apoio tåcito do governo da vizinha Croåcia;
3) a Bulgåria, através de porta-vozes de seu governo, re- 8) as Forsas Croatas de Defesa (o fascista HOS), da
novou extra-oficialmente a reivindicagäo tradicional de B6snia, contestaram essa decisäo. O atrito entre as duas
seu pais sobre todo o territ6rio macedönio, que ela partes iria gerar combates entre croatas dentro da
Herceg-Bosna;
62 Ibid, p. 23 (tradusäo minha).
92 l..eäo Serva Jornalismo e desinformagäo 93
9) o governo central da B6snia, de maioria mugulmana, Verdade — Tradicionalmente a primeira vftima da guer-
ra, na B6snia de hoje ela sofre algo mais parecido com
rejeitou os movimentos autonomistas de croatas da
a morte por milhares de cortes. Em seu lugar, existem
Herzeg6vina. O atrito levaria å intervengäo do exér- graus de probabilidade, possibilidades crescentes ou
cito do governo central de Sarajevo e a atritos na re- decrescentes, informagöes confiåveis ou näo, versöes
giäo, que resultariam em uma guerra civil aberta en- conflitantes. [...J "Alija Izetbegovic é o presidente da
tre croatas e mugulmanos em vårias regiöes da B6snia" parece inconteståvel até que vocé påra para
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pensar o que é "B6snia .
antes de 1990 (obrigando sérvios, croatas e mugulmanos a uma Reclugäo em busca da uniformidade:
reconciliagäo formal expressa na composigäo virtual de um go- o diferente näo cabe
verno central tripartite). Isso tudo ocorreu sem que estivesse real-
mente esclarecida uma questäo ainda mais complicada: "O que A redugäo de fatos multifacetados para uma digestäo mais
é um b6snio? .
fåcil pelo consumidor (leitor, no caso dos jornais; eleitor, no
caso dos politicos) ocorre näo s6 em relagäo ao contexto dos
O presidente do pais, Alija Izetbegovic, é sempre apon-
fatos, mas também em relagäo å pr6pria narragäo de ocorréncias
tado como "b6snio-mugulmano". No entanto, o conceito de
ditas "objetivas". As agéncias noticiosas internacionais costu-
nagäo mugulmana" é relativamente novo (mais novo do que
mam simplificar as descrigöes de fatos concedidas por suas fon-
o pr6prio presidente, nascido em 1925). A "nagäo mugulma-
tes, reduzindo-as a um "denominador comum", de forma a näo
na" foi reconhecida pelo comité central do Partido Comunista
se tornarem elas mesmas, pelas diferengas entre os dados, foco
da Bdsnia em 1969 e sancionada pela Constituigäo outorgada
pelo governo central iugoslavo em 1974 como uma concessäo
de atengäo. O procedimento retira dos fatos a diversidade de
versöes, para tornå-los algo "simples, Claro e objetivo", o que na
ao crescente nacionalismo dos mugulmanos. Até ali eles eram
verdade näo säo. Dessa forma, mais uma vez, a ' primeira vitima
reconhecidos como membros de familias sérvias ou croatas
quando comesa a guerra é a verdade", como afirmou o senador
que adotaram a religiäo mugulmana. O pr6prio Izetbegovic
norte-americano Hiram Johnson, em frase usada como epfgrafe
apresentava-se como "sérvio de religiäo mugulmana" nos cen-
e inspiraqäo do tftulo do livro de Phillip Knightley, Aprimeira
sos populacionais do pafs até a década de 1960. A criagäo da
"nacionalidade mugulmana" foi uma medida "reducionista" dos
vitima, um clåssico dos estudos sobre jornalismo de guerra. Mas
o que vitima a verdade näo é um assassinato puro e simples, mas
åltimos anos de Tito, resolvendo por decreto uma questäo
uma intervengäo cirårgica que a mata mas mantém sua aparén-
complicada.
cia, como a uma måmia.
Ao mesmo tempo, para Izetbegovic, reivindicar a nacio-
Cobrindo a Guerra da B6snia, ou a das Malvinas, ou qual-
nalidade mugulmana é uma agäo de marketing em grande me-
quer outra, os correspondentes assistem a um tiroteio de infor-
dida: ele cria uma comunidade maior, formada näo s6 pelos
magöes conflitantes. Muitas vezes a reagäo é procurar o denomi-
eslavos mugulmanos, mas também pelos albaneses, turcos,
nador comum. Foi o que ocorreu na cobertura de uma ofensiva
montenegrinos e representantes de outras etnias, mas de mesma
do governo mugulmano de Sarajevo ao tentar romper o cerco å
religiäo, que quisessem aumentar a forga de sua gente. Trata-se
cidade, em agosto de 1992. No cipoal de nåmeros de mortos
também de uma redugäo: diminuir o repert6rio (de caracterfsti-
divulgados por fontes diferentes e apurados pelas diversas agén-
cas) para aumentar a bitola do filtro, incluindo no novo grupo
cias de reportagens, os escrit6rios dessas empresas optaram por
resultante dessa operaqäo um universo maior de pessoas.
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combinar um nåmero comum. "Ao final daquele dia o governo Embora näo seja invengäo recente, o uso de informagöes
b6snio noticiou a morte de 22 de seus soldados durante o fim de segunda mäo tampouco esgota os recursos usados pelo jor-
64 Serva, A batalha de Sarajevo (Säo Paulo: Scritta, 1994), pp. 177-179. J. Bosnitch, Holiday in Bosnia, publicado em pågina da Internet: http://www.conspire.com/
bos.htm (tradusäo minha).
('s L. Norfolk, "ABC da B6snia", cit., p. 248.
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A existéncia de sérvios dentro da cidade, no papel de viti- mfnimo por ser a mais longa deste fim de século — mas ainda
mas de uma "limpeza étnica" mugulmana, näo cabia no enredo assim aquela que encarna melhor os problemas da comunicagäo
da imprensa internacional ocidental -— por redugäo. humana no tempo em que proliferam meios de massa, em que
O reducionismo jornalfstico acaba funcionando como o a capacidade de transmitir dados em grande velocidade näo re-
pr6prio reducionismo nacionalista — recusando informaqöes mais sultou em aumento da capacidade de compreensäo dos fatos.
"complicadas", digamos, do que conceitos excludentes como raga, Exemplos dramåticos de reducionismo na guerra da Iu-
nagäo, påtria, etc. E na descrigäo de fatos pelo jornalismo, uma goslåvia säo os casamentos interétnicos, a prova cabal de que os
alteragäo de paradigma pode inverter o Sinal de uma hist6ria, de nacionalistas de todos os lados, que impuseram a guerra civil,
um papel, um her6i pode facilmente aparecer como viläo, um näo säo hegemönicos, ou mesmo de que sua ideologia näo foi,
caso complexo virar uma hist6ria simples (um caso de legitima antes, homogénea em todas as nacionalidades. O nåmero de
defesa virar um assassinato simples), etc. Uma declaraqäo ironica casamentos interétnicos é sempre proporcional å abertura de cada
de Albert Einstein é reveladora de como simples redugöes comunidade ås outras etnias. No caso iugoslavo ele é o Sinal de
jornalfsticas podem tirar uma hist6ria de seu contexto e alterar uma boa dose de harmonia interétnica. No entanto, para os
completamente seu conteådo: "Se minha teoria da relatividade nacionalistas de hoje, näo hå lugar para casamentos entre etnias
estiver correta, a Alemanha dirå que eu sou alemäo e a Fransa dirå diferentes ou para filhos mestigos. Todos tém que optar por um
que eu sou um cidadäo do mundo. Caso ela esteja errada, a Fran- lado ou outro da guerra. E para o jornalismo tampouco hå de
ga dirå que eu sou alemäo, e a Alemanha, que eu sou judeu".67 fato lugar para essas hist6rias pouco duais: esses casos säo apenas
A auséncia de conhecimento de uma informagäo pelo re- um tempero ex6tico para a cobertura, temas de reportagens s6
ceptor, por omissäo, submissäo, sonegagäo, saturagäo ou ainda de tempos em tempos.
por redugäo pode fazer com que uma hist6ria complexa se tor- Os casamentos interétnicos säo exemplos de como a sim-
ne um caso de maniquefsmo. É provavelmente o que acontece plificagäo jornalfstica opera paralelamente, mas no mesmo sen-
em todas as guerras — mas como as do passado s6 conhecemos tido do nacionalismo, que näo tem espago para que os relacio-
por fontes restritas, torna-se diffcil saber exatamente o que ocor- namentos entre diferentes etnias se afirmem como padräo de
reu. O mesmo pode estar acontecendo neste momento com o comportamento — jå que a 16gica nacionalista é de exclusäo. Em
legado que deixaremos para os historiadores do futuro sobre as um pais cultural e etnicamente democråtico, casamentos ou re-
guerras deste tempo. A guerra civil da lugoslåvia talvez seja a lacionamentos entre pessoas oriundas de diferentes comunida-
mais tfpica, aquela sobre a qual temos mais informagöes, no des deveriam ser normais. Sob regimes nacionalistas, o cidadäo
näo-xen6fobo se torna um "esquizofrénico", conforme a defini-
67 Apud R. S. Wurman, op. cit., p. 199. $0 de muitos deles mesmos, uma pessoa que deve optar entre
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um lado e outro, embora sabendo que toda escolha implicarå a "desconfortåveis". Em uma guerra nacionalista näo hå lugar para
exclusäo do outro o modelo pluralista näo voltarå mais, e o meios tons" — e, portanto, um sérvio tem que ir para o lado dos
estabelecimento de fronteiras comega pela eliminaqäo de casos sérvios. Mais ou menos como no procedimento jornalfstico de
"atfpicos", exatamente aqueles que säo täo complicados quanto edifäo,em que noticias sobre a Sérvia tém que ser juntadas em
a Vida real. um lugar, noticias sobre a Turquia em outro, noticias sobre cul-
Bihac e Sarajevo, cidades b6snias que durance a guerra fi-
tura lå, noticias de politica aqui. Essas divisöes, ou "grades", re-
exemplos da convivéncia harmonica entre as etnias, mesmo du- Além do aparente desejo de reduzir as facetas de uma no-
rante o conflito. Essa fraternidade gerou casamentos mistos e ticia para tornå-la virtualmente mais compreensivel, a redugäo
uma grande populagäo sérvia que continuou dentro das cidades do fato no jornalismo contemporåneo muitas vezes reflete
foram causa de crescimento do nacionalismo sérvio no infcio da gados, e näo s6 a observagäo de campo. "Quando eu me vi nessa
década de 1990 — e, de fato, o estabelecimento de fronteiras "de ponte no centro de Sarajevo, reconheci as imagens de prédios
Estados" posterior ao rompimento da federaqäo gerou tais casos destrufdos do lado mugulmano da cidade, mas nunca tinha vis-
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sérvio da ponte.
fato gerador.
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Esses processos desinformantes säo essenciais ao trabalho informagäo. Esse processo necessariamente vai lapidar a noticia,
jornalistico. Omissäo, sonegaqäo, submissäo, deformaqäo, sa- retirå-la de seu contexto, da complexidade de suas circunstån-
turagäo, neutralizagäo e redugäo säo conseqüéncias do processo cias, impondo assim uma redugäo de seu conteådo. Isolada de
de edigäo que, embora "naturais", invertem a vocaqäo expressa seu ambiente original, a notfcia se torna mais compreensfvel por
do jornalismo: a missäo de informar. autor e consumidor — mas distancia-se da sua esséncia.
A necessidade de destacar um fato sobre outros provoca a Por fim, o mecanismo de eleiqäo dos fatos mais e menos
submissäo de uma notfcia a outra. A conseqüéncia imediata dis- importantes, a pr6pria esséncia da técnica de edifäo, impöe
so é a contextualizagäo diferenciada de uma ou duas notfcias. distorgöes também ao desenvolver uma espécie de ritmo de ex-
No ambiente do jornal, como também na mem6ria do leitor,
pansäo e contragäo com a intengäo de provocar surpresa, segui-
um fato se agrega ao outro. Seus conteådos se imiscuem, suas da de paulatino esquecimento e posterior renovaqäo da surpre-
conformagöes se confundem. sa. Mesmo (e ainda mais) quando uma noticia tem um desen-
O crescimento da chamada indåstria da informaqäo tam- volvimento prolongado no tempo e seu desfecho terå necessa-
bém tende a provocar uma distorgäo: a saturaqäo do consumi- riamente um tratamento destacado quando ocorrer, ainda assim
dor diante de um universo de milhares de informagöes, muito ela tende a se reduzir paulatinamente até explodir novamente
maior do que o que ele pode processar. Conseqüéncia natural como uma surpresa. Esse procedimento näo se deve a uma
dessa emissäo excessiva de conteådos é a neutralizaqäo de infor- distorqäo do trabalho jornalfstico; como vimos, ele é mesmo
magöes: muitas notfcias se perdem devido å saturagäo dos con- prescrito pelas normas, explfcitas ou näo, que dirigem a atividade
sumidores e dos meios. jornalfstica.
A saturagäo pode tanto provocar o esquecimento, a perda Por tudo isso, o jornalismo, tal como estå disposto nos
da informagäo, como alterar a sua compreensäo de tal forma meios de comunicagäo atuais, pratica ao mesmo tempo técnicas
que se caracterizarå como deformaqäo da informagäo — e, se de informagäo e de desinformagäo. Satisfaz a demanda por in-
ocorrer sistematicamente, pode ser caracterizada como desin- formagäo, mas mantém elevada essa demanda. Satisfaz ao mes-
A conseqüéncia natural desse sistema é que, ao apresen- momento em que a imprensa internacional se volta para a re-
tar retratos dos fatos de forma isolada e descontextualizada, os giäo. Se na 16gica do sistema jornalfstico hå a cada vez um novo
meios informativos simultaneamente negam ao seu consumi- fato" ocorrendo ali, para os membros da cultura local, hå apenas
dor uma apreensäo mais completa da noticia e produzem uma a "hist6ria pulando ao redor e se movendo em circulos", na ex-
por decorréncia do fluxo da hist6ria —, ao gerar uma falsa su- Os meios de massa impöem aos fatos ritmo e roteiro
cessäo de fatos novos e independentes. No jargäo jornalfstico, evolutivo que näo säo necessariamente os que parecem naturais
seria dizer: a imprensa engana ao apresentar aos seus leitores ås testemunhas dos acontecimentos. Esse descompasso se deve a
uma mirfade de "notfcias quentes" onde em verdade existem necessidades intrfnsecas ao papel cultural do sistema de comuni-
apenas "suites". cagäo na sociedade contemporånea. Diz Norval Baitello Jr.: "A
Isso se torna particularmente visivel em um noticiårio sobre mfdia, nos seus rituais informacionais — o que näo exclui a in-
uma sociedade como a iugoslava, exemplar neste trabalho, cuja formagäo ficcional —, cria um pulsar rftmico reiterador do tem-
cultura se volta obsessivamente para o passado e ritualmente
po. Segundo Harry Pross, a fungäo primordial da midia é a de
sincronizadora de uma sociedade" .83
procura atualizå-lo, como que para tentar vencer agora a guerra
perdida hå seiscentos anos. A expressäo do tempo, tal como aparece nos meios de
E preciso fazer o tempo andar, mesmo que especffica, que paga aos acontecimentos apenas o tributo da
ele queira parar verossimilhanga. Sua fungäo primordial näo é a de informar sobre
fatos da guerra dos anos 90 säo ocorréncias renovadas de uma 83 0 conceito de sincronizasäo é seminal para a Semi6tica da Cultura, para quem "um dos
mesma hist6ria. Ou, como diz o letreiro no final de Under- mais import-antes portadores materiais do sistema simb61ico chamado tempo, um dos
seus suportes, é a atividade dc gcragäo, distribuisäo e conservasäo das informasöes.
ground, do bdsnio-mugulmano que se denomina iugoslavo Emir Nesse contexto desempenha papel de dcstaque em nossa contemporaneidade a atividade
da midia, os meios de comunicasäo de massas Estes suportes atuam invariavel-
Kusturica, no lugar do convencional "The End": "Esta hist6ria mente corno demarcadores do tempo de Vida dos individuos, sincronizando suas
atividades dentro de um todo maior". N. Baitello Jr., O animal queparou os relågios (Säo
näo tem fim". E portanto näo tem um novo comego a cada Paulo: AnnaBlume, 1997), p. 100.
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desajustados no papel que lhes é destinado pela mfdia "do ou- estå voltada para o texto "passado" e é de natureza her6ico-mftica,
tro". Escreve Baitello:
"fundada num tempo memoråvel dos deuses e her6is aos quais
Cada cultura pode definir o seu pr6prio padräo de devemos a nossa existéncia e o nosso saber".
tempo. Hå culturas voltadas para textos futuros. Hå
aquelas que se centram no presente e seus textos. Tam- Além de impor, por sua fungäo sincronizadora, um fluxo
bém existem culturas que se fundam na mem6ria e nos de permanente desenvolvimento para os fatos, uma nogäo
textos passados. A cultura voltada para o texto "futuro" evolutiva do tempo marcada pelo ritmo de surpresas constan-
é do tipo messiånico. Todo o seu passado e seu presente
tes, hå também uma razäo economica que explica o modo como
säo redimensionados em fungäo.da sociedade ideal que
opera o sistema da informagäo: é uma necessidade da mfdia de
vai acontecer no futuro. As culturas que se centram no
texto "presente" säo marcadas pelo descarte da infor- ser consumida. Uma impressäo de tempo "circular", de fatos
magäo hist6rica, tornada obsoleta pelas codificagöes con- que se repetem com regularidade, näo imporia a necessidade de
sagradas por um determinado momento. Os c6digos se consumo continuado interrompendo o sistema econömico
sucedem e se substituem com grande velocidade e de
que constitui a mfdia contemporånea.
maneira aparentemente pouco traumåtica. O novo jå
nasce condenado å obsolescéncia, programada e pre- Para sobreviver como tal, os meios precisam fazer o tem-
sente no seu åmago. As referéncias hist6ricas, po andar mesmo que ele se recuse.
construfdas no cadinho das experiéncias passadas, se
perdem, sonegando com isto o solo fértil para a Vida do