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Zona Curva

Mídia livre em política e cultura

Jornalismo e imprensa não são


sinônimos
Carlos Castilho novembro 9th, 202109/02/2021013690

Para a maioria dos jornalistas, uma afirmação como esta soa como um
paradoxo ou, no mínimo, uma heresia. Mas agora, na era do jornalismo
digitalizado, ela corresponde a uma realidade que aos poucos começa a se
tornar mais clara. A principal consequência da diferenciação entre
jornalismo e imprensa está na separação entre produção de notícias (uma
profissão) e a comercialização da notícia (um negócio chamado imprensa),
duas atividades com natureza e objetivos distintos.
Até agora, a produção e o negócio se confundiam porque a veiculação de
notícias dependia de estruturas, tecnologias e organizações cuja existência e
desenvolvimento apoiava-se em investimentos financeiros. As empresas se
apropriaram do conceito de jornalismo logrando com isto minimizar o lado
comercial da sua atividade. Com isto surgiu um discurso corporativo que
usa valores jornalísticos como objetividade, independência, imparcialidade,
isenção e liberdade de informação para encobrir a elitização informativa e o
atrelamento do noticiário aos interesses empresariais. O direito à liberdade
de informação acabou se confundindo com o conceito de liberdade
empresarial, embora ambos sejam conceitualmente distintos.
O jornalismo na era digital deu aos profissionais e praticantes de atos
jornalísticos (também conhecidos como jornalistas amadores) a
possibilidade de publicar notícias sem necessidade de grandes
investimentos, como mostram fenômenos como blogs pessoais, redes
sociais virtuais e mais recentemente as newsletters independentes
disponibilizadas através de assinaturas pagas. É uma revolução editorial
ainda em desenvolvimento e que tem um pé no passado e outro no futuro
da produção noticiosa. Mas seu principal mérito atual é o de permitir
clarear a confusão entre o que é produzir notícias e o que é
comercializá-las.
A produção de notícias jornalísticas tem como objetivo primário fornecer
às pessoas dados, fatos, eventos e ideias devidamente contextualizados por
meio da agregação de significados como relevância, pertinência, exatidão,
confiabilidade e atualidade, visando contribuir para o desenvolvimento
integral de pessoas e comunidades de pessoas. O jornalismo, obviamente,
necessita de meios para materializar este objetivo como imprimir em papel,
transmitir por áudio ou imagens, ou ainda por meio da digitalização.
A mimetização jornalismo/imprensa
As empresas jornalísticas têm como objetivo gerar receitas financeiras
capazes de cobrir as despesas operacionais, pagamento de salários e
remuneração de investidores através de um sistema de produção industrial
que usa como matéria prima as notícias produzidas por jornalistas
profissionais e amadores. Fica claro, portanto, que jornalistas e empresários
dependem um do outro para atingir seus objetivos específicos. Mas o que
se perdeu com o tempo, é a diferença fundamental entre ambos. O
jornalismo tem um objetivo social, enquanto as empresas visam um lucro
repartido individualmente.
Os jornalistas precisam resgatar a caracterização fundamental de sua
atividade para evitar que ela seja contaminada pela crise no modelo de
negócios das empresas
Os jornalistas precisam estabelecer uma clara diferenciação entre a
produção de notícias socialmente relevantes e a função empresarial para
evitar serem atropelados pela crise que afeta o modelo de negócios das
corporações jornalísticas. Os jornais, por exemplo, sofreram uma forte
perda de publicidade para a internet, o que gerou enormes desequilíbrios na
receita empresarial. Já o exercício do jornalismo enfrenta um dilema
diferente, o desenvolvimento de uma nova monetização da produção de
noticias, algo totalmente diferente a queda da lucratividade nas
organizações da imprensa.
A crise das empresas é estrutural, ou seja, elas terão que achar outro
modelo de negócios para sobreviver, enquanto a crise do jornalismo é
conjuntural, pois trata-se da adaptação de um modo analógico de produzir
notícias para um modo digital. O jornalismo continua o mesmo, só com
novos procedimentos, regras e valores. Na medida em que ambas as partes
logrem resolver os problemas criados pela digitalização informativa,
surgirá um novo tipo de relacionamento que inevitavelmente terá como
norma básica o o fim do mimetismo entre o jornalismo e a imprensa.
Publicado originalmente no Medium de Carlos Castilho.
Era pós Trump põe a imprensa diante
de novos desafios editoriais
Carlos Castilho novembro 9th, 202130/08/202105030

Ressaca informativa – A surpreendente derrubada dos índices de


audiência dos telejornais norte-americanos depois da derrota do
ultraconservador Donald Trump, nas eleições do ano passado,
revelou uma espécie de ressaca informativa que está sendo
interpretada como sintoma de um divórcio entre o público e a
imprensa sobre o noticiário político.

Fonte: Nielsen / The Hill

O colunista Ben Smith, do jornal The New York Times, chegou a anunciar


bombasticamente que os canais de notícias na TV paga norte-americana
como CNN, Fox e MSNBC “entraram em fase terminal”, depois de
perderem entre 10% (caso da Fox) e 51% (CNN) da audiência nos
noticiários políticos. Nos jornais impressos, há informações de que houve
um declínio de aproximadamente 22% nas vendas e no acesso às versões
online.
O fato levou Alice Hutton, analista política do jornal britânico The
Guardian, a afirmar que “a derrota de Trump desorientou a imprensa
norte-americana, ao colocá-la diante da escolha entre continuar apostando
na linha do espetáculo político/eleitoral ou voltar ao tradicional discurso do
compromisso com a objetividade jornalística”. O extremismo
político/ideológico de Trump aparentemente afetou a imprensa muito mais
do que ela própria imaginava.
Segundo o respeitado Nieman Lab, citado num texto de Plinio Góes Filho,
na Folha de São Paulo, enquanto a maioria das redações jornalísticas
acreditam estar ajudando o público a tomar decisões por meio de notícias
sérias, os leitores, ouvintes e telespectadores parecem estar mais
interessados no bate-boca entre políticos. As audiências estariam preferindo
o espetáculo à reflexão.
Outros pesquisadores, como Mike Ananny, da Universidade da California,
afirmam que o populismo ultraconservador de Trump (e também o de
Bolsonaro aqui no Brasil), desestabilizou as estratégias de cobertura
política da grande imprensa, que se mostrou despreparada para enfrentar a
frenética sucessão de factoides, fatos de veracidade duvidosa lançados para
a opinião pública com o objetivo de gerar dúvidas e insegurança. Mike
acha que Trump conseguiu manter a imprensa refém de suas postagens pelo
Twitter.

A metralhadora de factoides
A produção de factoides passou a ser uma estratégia de comunicação dos
extremistas de direita, com o objetivo de ocupar a agenda de notícias da
mídia e condicionar a formação de opiniões a partir do fato de que a
maioria das pessoas só tem tempo para ler manchetes de jornais, telejornais
e postagens na internet. Esta é a razão pela qual Trump, no seu tempo, e
Bolsonaro, agora, transformaram as redes sociais em verdadeiras
metralhadoras de factoides.
Para justificar a falta de lógica, veracidade e relevância da maioria dos
factoides, Trump lançou a teoria dos “fatos alternativos”, cujo principal
objetivo é dar uma aparência de coerência à profusão de dados, ideias e
fatos jogados nas redes sociais. A teoria não tem base cientifica, embora
possa ser associada longinquamente à ideia da diversidade de percepções
da realidade (a famosa imagem do copo meio cheio ou meio vazio), mas foi
usada para confundir os adversários do agora ex-presidente
norte-americano.
A reação da imprensa liberal liderada pela rede CNN e pelos jornais The
New York Times e The Washington Post foi apostar na checagem de fatos e
dados, com o objetivo de denunciar mentiras disseminadas por Donald
Trump. A batalha midiática em torno da credibilidade dos “fatos
alternativos” deixou evidente dois tipos diferentes de reação pública. Para
os adeptos de Trump, não há mentiras, e sim uma visão diferente garantida
pela liberdade de expressão, enquanto a imprensa liberal, tanto nos EUA
como aqui, enfrenta dificuldades para conferir a autenticidade da frenética
produção de factoides ultradireitistas.

Emoção X Reflexão
Quem melhor interpretou esta situação foi o professor Daniel Kreiss, da
Universidade da Carolina do Norte, autor do capítulo The Media Are About
Identity, not Information (As Mídias Tratam de Identidades e não de
Informação), no livro Trump and the Media (*). A tese de Kreiss parece
ilógica, mas quando interpretada a partir de realidades políticas como a
norte-americana e a brasileira, ela mostra que a ultradireita usa informações
(em sua maioria falsas) para identificar-se com as emoções das pessoas,
enquanto a grande imprensa tenta convencer seu público da veracidade de
suas notícias. É mais fácil lidar com emoções como a idealização de uma
volta à segurança do passado, do que propor alternativas complexas e
incertas, explica o professor norte-americano.
Aqui no Brasil, os absurdos disseminados pelo clã Bolsonaro são aceitos
como propostas sérias pelos segmentos sociais contaminados pelo
antipetismo e pela ideia de que o presidente combate a corrupção. Mas a
imagem de líder honesto já foi severamente abalada e a estratégia
bolsonarista se resume, agora, a manipular dois fantasmas políticos: o de
um golpe militar e o da volta de Lula ao poder.
Os fatos parecem indicar que, tanto nos Estados Unidos como aqui no
Brasil, a grande imprensa terá que rever suas estratégias de cobertura
política, diante de uma fadiga da opinião pública em relação à batalha
midiática entre ultradireitistas e liberais. A atenção despertada pela
agressividade de políticos como Trump e Bolsonaro já não é mais a mesma
nas medições de audiências. Com isto, os conglomerados jornalísticos terão
que encontrar novas estratégias para lidar com a ressaca informativa de
leitores, ouvintes e telespectadores.
(*) O livro Trump and the Media reúne contribuições de vários
pesquisadores, editados por Pablo J. Boczkowski e Zizi Papacharissi .
Ainda é possível acreditar na isenção
do jornalismo?
Carlos Castilho novembro 10th, 202108/01/2020031490

O jornalismo nunca foi e nem pode ser 100% isento ao produzir uma
notícia. A afirmação pode chocar muita gente, inclusive profissionais do
jornalismo, mas ela espelha uma realidade que raramente é levada em conta
no julgamento de uma informação. Isto porque o uso de processos digitais
no jornalismo relativizou o conceito de isenção permitindo uma maior
diversificação nas notícias, o que ampliou muito o universo informativo das
pessoas.
 A ideia de que o jornalismo é, por princípio, isento foi construída a partir
de uma motivação financeira que nada tem a ver com o exercício da
profissão. No final do século XVIII os grandes barões da imprensa
norte-americana, Joseph Pullitzer e Randolph Hearst distorciam e
falsificavam notícias com o objetivo de conquistar leitores numa guerra
feroz por audiências e por faturamento em publicidade. Foi o período áureo
da chamada “imprensa marrom” ou sensacionalista, que após 20 anos
deixou como saldo uma desconfiança generalizada de parte do público
norte-americano em relação aos grandes jornais.
A queda dos índices de leitura assustou tanto Pullitzer como Hearst, bem
como os donos de outros jornais e até mesmo os políticos, o que levou a
imprensa a tentar reverter a situação ao levantar a bandeira da
imparcialidade nas coberturas jornalísticas. Foi um maciço esforço de
marketing corporativo apoiado pelas elites políticas e empresariais,
iniciativa que acabou levando a incorporar o tema da isenção nos manuais
jornalísticos usados até hoje.
Mas com a generalização do uso das tecnologias digitais na produção de
informações, surgiu a avalanche noticiosa e com ela a multiplicação de
versões diferentes de um mesmo dado, fato ou evento, produzidas por
jornalistas e não jornalistas, através de redes sociais. O fato de jornalistas,
supostamente isentos, estarem publicando notícias diferentes sobre um
mesmo evento tornou evidente algo que os pesquisadores do conhecimento
já conheciam há muito tempo.
Todo indivíduo capta dados, fatos e eventos da realidade que o cerca
através dos seus cinco sentidos. Estes dados são depois inseridos na
memória individual onde cada pessoa desenvolve percepções e opiniões,
que variam de indivíduo para indivíduo dependendo do seu nível cultural,
experiência de vida, grau de informação e situação econômica para citar só
os fatores mais importantes. Assim, qualquer notícia é o resultado da
recombinação mental de vários dados captados pelo jornalista, dando
origem a um conteúdo que incorpora a visão de mundo do profissional.
O conceito tradicional de isenção ou imparcialidade no jornalismo foi
alterado também por mudanças provocadas pela digitalização no processo
de produção das notícias. Até agora, elas resultavam basicamente do
trabalho de um grupo restrito de profissionais, mas na era digital o
tradicional muro separando o jornalismo da publicidade está começando a
cair. Trata-se de uma alteração de rotinas que ainda prevalece nos grandes
veículos, mas que aos poucos começa a ganhar espaço na imprensa local e
regional.
Engajamento, a nova palavra mágica no jornalismo
O jornalismo na era digital está incorporando às suas rotinas a preocupação
com o engajamento social, ou seja, desenvolver uma crescente relação de
interatividade entre jornalistas e o público. Os profissionais já não
assumem mais a postura de quem sabe o que as pessoas precisam saber,
mas buscam nelas os temas e a orientação sobre o que deve ser noticiado e
como. O engajamento é cada vez mais visto como uma ferramenta
indispensável na produção de notícias que incorporem diferentes versões e,
até mesmo, no desenvolvimento da sustentabilidade financeira de um
veículo digital.
Este mesmo princípio começa a ser aplicado no relacionamento das
redações com um tipo especial de público formado por possíveis
anunciantes. No Canadá, Suécia e Austrália já existem jornais locais online
que mantêm uma relação permanente de troca de informações com
empresários locais, anunciantes ou não. As experiências ainda não
permitem avaliações definitivas, mas artigos publicados por revistas
acadêmicas revelam que os empresários que aceitaram um diálogo com as
redações passaram a contribuir com dados e fatos para conteúdos
jornalísticos.
Já os jornalistas envolvidos nestas experiências, adotaram a transparência total nos
contatos e informações fornecidas por eventuais anunciantes como forma de manter a
autonomia editorial sem comprometer a credibilidade junto ao público. É o caso
do Sopris Sun, da cidade de Carbondale, no estado norte-americano do Colorado, cuja
associação comercial local mantém reuniões mensais com a redação para troca de ideias
sobre problemas da cidade e sobre a responsabilidade dos empresários na
sustentabilidade do jornal.
Na nova realidade digital, a imparcialidade passa claramente a ser vista como uma meta
e não mais como um atributo intrínseco de uma notícia. As ciências da cognição, sobre
as quais se baseia o contato do jornalista com a realidade, atestam que a busca da
isenção e da objetividade são objetivos permanentes, mas inalcançáveis em sua
plenitude. Isto muda muita coisa no jornalismo atual. A maior delas é a necessidade de
ter que abandonar dogmas como o da isenção no exercício da profissão.

O discurso jornalístico e as fake news


Carlos Castilho setembro 16th, 202228/08/2019231930
Desde 2016, a discussão sobre as notícias falsas (fake news) monopolizou,
em todo mundo, a atenção dos profissionais da imprensa e do público, mas
agora começamos a nos dar conta que elas não são o maior problema
enfrentado pelo jornalismo. As fake news são apenas um componente do
chamado discurso, ou narrativa jornalística, que é o principal responsável
pela formação da opinião pública.
O discurso pode ser convincente mesmo baseado em notícias falsas, desde
que o autor, ou autores, o construa usando fatos, dados, ideias e eventos
organizados e publicados, tendo em vista dar a eles um significado
especifico. Isto é inevitável em qualquer discurso jornalístico, pois ele é
sempre construído e moldado conforme a experiência, cultura,
conhecimento e condicionamentos empregatícios do profissional da
comunicação.
A identificação dos significados embutidos numa notícia, reportagem ou
comentário é uma das principais funções do jornalismo investigativo, cuja
missão é desconstruir discursos para verificar também a exatidão,
relevância, confiabilidade e pertinência dos dados, fatos, eventos e ideias
incluídos na narrativa.
Acontece que o jornalismo contemporâneo está muito mais preocupado em
flagrar mentiras e meias verdades do que na analise do discurso. A
denúncia de falsidades tem um efeito muito mais impactante do que a
identificação de significados embutidos numa notícia, em geral um trabalho
mais teórico e sujeito a interpretações polêmicas.
A checagem de fatos, dados e eventos é uma obrigação do jornalismo, mas
ela por si só não garante a credibilidade do discurso. É necessária uma
integração entre as duas atividades, fato que não vem acontecendo na nossa
cobertura diária, especialmente em setores como política, economia e até
nos esportes.
O discurso jornalístico que permite identificar o contexto dos fatos
mencionados e consequentemente o tipo de mensagem (significado) que é
transmitido ao leitor, ouvinte ou telespectador. Sem uma definição de
contexto, um mesmo fato, dado ou evento pode ter diferentes leituras,
dependendo o nível intelectual, grau de informação e experiências prévias
de quem acessa um texto, áudio ou imagem.
As modernas teorias da cognição garantem que não há fato ou dado puro,
isento de significado, porque eles são sempre percebidos pelos nossos
sentidos humanos e ao serem incorporados à nossa memoria são
condicionados pelas informações nela armazenadas. Assim, a identificação
de significados passa a ser tão importante quanto a verificação da
veracidade de um dado ou evento.
O fenômeno das notícias falsas aumentou a importância da desconstrução
de um discurso adotado por autoridades governamentais diante da
complexidade crescente de quase todos os temas incluídos na agenda
pública. A desconstrução de um discurso é bem mais complicada,
demorada e sujeita a muitas controvérsias, razão pela qual a maioria dos
jornais confere à atividade uma baixa prioridade para evitar conflitos com
autoridades públicas e privadas, deixando o público sem condições de
entender uma notícia ou reportagem.
Goebells revisitado

As estratégias de comunicação adotadas por presidentes como Donald


Trump e Jair Bolsonaro enfatizam o discurso e minimizam a preocupação
com a veracidade de fatos, dados e ideias. Para ambos e também para seus
seguidores, as notícias falsas são toleráveis desde que se enquadrem nos
objetivos pretendidos. Atitude que passou a ser tratada nos meios
acadêmicos pelo neologismo de “pós-verdade”, ou seja, uma “verdade”
condicionada por interesses e não pela realidade. Na política da chamada
era da pós-verdade, os fins ( discurso e objetivos políticos) justificam os
meios (fake news).
O discurso público produzido por presidentes como Donald Trump e Jair
Bolsonaro, por exemplo, usa intensamente as meias verdades e as fake
news, repetidas dezenas de vezes através dos meios de comunicação sem a
devida contextualização, até que leitores, ouvintes e telespectadores passem
a considera-las “normais”. É a versão moderna da famosa frase de Joseph
Goebells, o marqueteiro mor de Adolf Hitler, para quem “uma mentira
repetida mil vezes se torna uma verdade”.
O público dos meios de comunicação vai aos poucos se dando conta de que
a chamada “guerra da informação”, não envolve mais apenas um confronto
entre o verdadeiro e o falso em matéria de notícias, mas uma batalha pela
supremacia no discurso, na narrativa. É claro que a denúncia do uso de
dados, fatos e eventos falsificados pode desacreditar um discurso, mas
como este, geralmente envolve elementos muito complexos, é improvável
que as pessoas comuns consigam separar, sozinhas, o joio do trigo
informativo.
Com isto muitos leitores, ouvintes e telespectadores assumem um ceticismo
diante do noticiário da imprensa e acabam buscando outras fontes de
informação. A migração dos desiludidos é o preço pago por jornais,
revistas, telejornais e páginas jornalísticas na web por falhar na
identificação dos interesses ocultos na fala de políticos, empresários e
formadores de opinião.
https://medium.com/@ccastilho/o-discurso-jorna%C3%ADstico-e-as-fake-
news-e5de06ab61fa
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O discurso jornalístico e as fake news


Description
Desde 2016, a discussão sobre as notícias falsas (fake news)
monopolizou, em todo mundo, a atenção dos profissionais da
imprensa e do público, mas agora começamos a nos dar conta
que elas não são o maior problema enfrentado pelo jornalismo.
As fake news são apenas um componente do chamado discurso,
ou narrativa jornalística, que é o principal responsável pela
formação da opinião pública. O discurso pode ser convincente
mesmo baseado em notícias falsas, desde que o autor, ou
autores, o construa usando fatos, dados, ideias e eventos
organizados e publicados, tendo em vista dar a eles um
significado especifico. Isto é inevitável em qualquer discurso
jornalístico, pois ele é sempre construído e moldado conforme a
experiência, cultura, conhecimento e condicionamentos
empregatícios do profissional da comunicação.
Author
Carlos Castilho
Publisher Name
Blog Zonacurva
O jornalismo atual usa rótulos velhos
para uma nova realidade
Carlos Castilho novembro 21st, 202219/01/202206800

O jornalismo brasileiro precisa se dar conta de que está usando


rótulos velhos para tentar identificar ou descrever novas
situações e personagens políticos. Trata-se de uma prática que
se automatizou na rotina diária do jornalismo e que começa
agora a esbarrar na complexidade do nosso cotidiano neste
início da era digital.

A lista de exemplos é grande, mas alguns rótulos aparecem com


mais frequência na cobertura diária, como as dicotomias
direita/esquerda, capitalismo/comunismo e estado/sociedade
civil. São categorias surgidas no século passado, cujo significado
está associado a situações e personagens que já viraram
história, mas que apesar disto ainda continuam sendo usadas
mesmo tendo perdido sua base na realidade atual.
O caso da classificação esquerda, centro ou direita ainda é
padrão na maioria dos jornais, revistas e programas jornalísticos
em rádios e TVs, na cobertura de eventos políticos nacionais e
internacionais. É uma classificação surgida durante a Revolução
Francesa, no século XVIII quando os parlamentares se
agrupavam à direita ou à esquerda do plenário, conforme sua
posição sobre a realeza. Na época, a política era extremamente
simples e os fluxos informativos limitadíssimos se comparados
com a situação atual.
Mas hoje a situação mudou e os rótulos esquerdista, direitista ou
centrista já não conseguem dizer muita coisa sobre as situações
e personagens mencionados em reportagens e entrevistas. Os
termos esquerda/centro/direita usados atualmente remetem
aos tempos da Guerra Fria, quando a direita virou sinônimo de
anticomunismo e a esquerda passou a ser vista como simpática
ao comunismo, categorias que hoje perderam boa parte de sua
consistência conceitual, devido ao surgimento de uma realidade
digital muito mais complexa.

É o caso do presidente eleito do Chile, Gabriel Boric, rotulado de


esquerdista, adjetivo que o associa a uma posição radical,
quando na verdade todo o seu discurso eleitoral e a sua
plataforma política podem ser classificados como de centro
esquerda. Trata-se de um caso típico de uso distorcido de um
rótulo muito comum nas manchetes da imprensa nos anos 60 e
70 do século passado.

Aqui no Brasil, sucede o mesmo, com o ex-presidente Lula. A


imagem construída pela grande imprensa nacional ainda o
associa ao radicalismo político/ideológico dos anos 80, quando
na verdade o discurso atual do provável candidato presidencial
do Partido dos Trabalhadores poderia ser classificado de centro
esquerda. Tanto no caso chileno como no brasileiro, o discurso
político mudou, mas a imprensa não atualizou o seu vocabulário.

(fos de jornais impressos) Velha mídia e novos paradigmas


(Reprodução)

A empedernida herança da Guerra Fria

No caso dos rótulos comunismo versus capitalismo, a situação é


semelhante. Quando alguém ou algo é classificado como
comunista, o leitor ou telespectador médio é levado a associar o
conceito à imagem do regime soviético existente na Guerra Fria.
Hoje, a China herdou o rótulo “comunista” mas numa realidade
totalmente diferente pois o gigante asiático incorporou várias
práticas capitalistas em seu modelo econômico e social.
Paralelamente, o capitalismo dos “nerds” digitais
norte-americanos e europeus está mais próximo do socialismo
do que gostariam os ideólogos de Wall Street.

E se formos analisar a velha polêmica entre estado e sociedade


civil, é cada vez mais evidente que a fronteira entre ambos os
conceitos é cada vez mais nebulosa. Quanto mais a sociedade
civil aumenta a sua visibilidade pública e se diversifica, mais ela
reclama uma ação estatal para normatizar o caos gerado pela
avalanche informativa, por exemplo. Em compensação, os
seguidores de um estado forte admitem que a complexidade dos
processos sociais aumentou de tal maneira que se tornou
inevitável a descentralização administrativa e financeira das
questões públicas, como por exemplo, nas áreas da segurança,
educação e saúde.

Estes três casos, que representam uma minoria dentro de toda a


complexidade do noticiário nacional e internacional, mostram
como a maior parte da imprensa mundial acabou prisioneira de
um vocabulário condicionado por uma realidade passada e com
isto acaba distorcendo as percepções do público em relação aos
fatos e fenômenos contemporâneos.

O leitor, ouvinte ou telespectador comum passa batido pela


desatualização da narrativa política na grande imprensa, mas
como a realidade dos fatos aponta noutra direção, o resultado é
um distanciamento em relação às fontes de informação
usualmente consultadas pela maioria das pessoas. Esta é uma
das razões da migração das audiências para a diversidade
informativa na internet.

A atualização do vocabulário político no jornalismo é um


processo inevitável, mas ao mesmo tempo complicado, porque
torna compulsória a adoção de uma nova maneira de
repórteres, editores e comentaristas perceberem o contexto
político contemporâneo. Grosso modo, significa abandonar o
simplismo e dicotomia nas categorias usadas até agora para
mergulhar na complexidade dos fenômenos atuais, onde cada
personagem e situação tem características especificas e que
muitas vezes são contraditórias e paradoxais.

É normal que ideias e conceitos complexos ou abstratos sejam


associados, na imprensa, a expressões simplificadas,
principalmente quando incorporados à linguagem corrente. É
uma forma usual de comunicação. Acontece que estamos na
transição do analógico para o digital, o que implica mudança de
contextos e, consequentemente, dos significados atribuídos a
palavras e conceitos. A tarefa do jornalismo é, nestas
circunstâncias, detalhar os novos contextos para evitar que
velhos rótulos acabem distorcendo nossa percepção de uma
realidade que muda cada vez mais rápido.

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