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NO DIA 28 DE JUNHO DE 2012, a Suprema Corte dos Estados Unidos tomou sua decisão sobre a
obrigatoriedade de contratação de plano de saúde privado por todo cidadão do país – prevista na
chamada Affordable Care Act, a lei da reforma da saúde norte-americana. Em pleno ano de elei-
ções, e diante da possibilidade de que um pilar da legislação proposta pelo presidente fosse jul-
gado inconstitucional, a decisão já não tinha impacto só para o setor de saúde. Virara também um
grande fato político.
Nos dias que antecederam a decisão, todo veículo das pressões comerciais e protocolares típicas do ofí-
importante de comunicação cobriu o caso. O veredic- cio. Em um mundo que o professor norte-americano de
to foi anunciado às 10h07 do dia 28. A CNN anunciou jornalismo Jeff Jarvis descreve com o mote “do what
que o dispositivo fora rejeitado. Já o blog SCOTUSblog you do best and link to the rest” (literalmente, “faça o
informou que a obrigatoriedade fora mantida. que é seu forte e ponha links para o resto”), o modelo
O vexame que a emissora de TV a cabo deu ao levar do SCOTUSblog traz a cobertura mais consistente da
ao ar uma informação incorreta só perdeu, em dimen- Suprema Corte – cobertura que, se honrada sua meta,
são, para a projeção conquistada naquele instante pelo também deve ser a melhor. O SCOTUSblog não vai des-
SCOTUSblog, até ali um pequeno site desconhecido cuja pachar 25 jornalistas para o Haiti caso haja um terre-
única missão era cobrir a Suprema Corte. Naquele dia, moto (nem mandar alguém ir cobrir outra audiência da
o SCOTUSblog virou a grande fonte dos últimos des- atriz Lindsay Lohan por dirigir embrigada). Não está
dobramentos sobre o caso e de análises indispensáveis substituindo a CNN – e nem precisa. O SCOTUSblog
sobre o parecer do tribunal. Mais tarde, ao esmiuçar a achou seu nicho e sabe qual é seu papel.
cobertura do blog no dia 28, a revista The Atlantic infor- Se há jornalistas, é porque o público precisa saber o
mava que às 10h22 – 15 minutos depois de anunciada a que aconteceu, e os motivos. A maneira mais eficaz e
decisão – o site registrava perto de um milhão de visi- confiável de transmitir uma notícia é por meio de gen-
tantes (foi preciso instalar mais servidores para acomo- te com profundo conhecimento do assunto e capacida-
dar o salto no tráfego). de de levar a informação ao público na hora certa. No
O SCOTUSblog foi criado em 2003 por Tom Goldstein episódio acima, o SCOTUSblog cumpriu os dois requi-
e Amy Howe, marido e mulher. Nenhum dos dois era jor- sitos. Embora tenha corrigido a “barriga” em questão
nalista: eram, ambos, sócios de um escritório de advoca- de minutos (críticos, é verdade), a CNN a princípio dei-
cia e professores nas faculdades de direito de Harvard e xou a desejar no quesito mais básico: informar o que o
Stanford. Na manhã da decisão, Goldstein cobriu o pro- tribunal de fato decidira.
cedimento todo ao vivo; o material que foi postando no A goleada do SCOTUSblog é só um exemplo de como
blog serviu de base para a cobertura do canal público o velho território de jornalistas tradicionais está sen-
de TV C-SPAN 3. Segundo Goldstein, o episódio foi o do invadido. Um mapeamento do novo ecossistema
“Superbowl” do site – site cuja meta seria levar ao público jornalístico revela exemplos muito mais radicais do
a melhor análise da decisão no momento mais pertinente. que o desse blog (que, além dos advogados que o fun-
O SCOTUSblog é prova de que o jornalismo pode ser daram, até emprega jornalistas). Em certos casos, gen-
exercido fora de uma redação tradicional por gente livre te que nem é jornalista se mostrou capaz de exercer o
ofício com tanta tarimba quanto profissionais da área Science já produz textinhos com resultados financei-
– às vezes, até mais. Especialistas – seja o economis- ros de empresas para o site Forbes.com. Outro projeto, o
ta Nouriel Roubini discorrendo sobre a bolha imobili- Journatic, desperta tanto interesse como angústia com
ária, o sociólogo Zeynep Tufekci falando de conflitos sua cobertura a distância de fatos “locais”. Quando pra-
no Oriente Médio, a analista financeira Susan Webber ças em países do Oriente Médio são alvo de artilharia, a
no site Naked Capitalism – estão produzindo um con- confirmação do estrago é feita por redes de testemunhas
teúdo contextualizado melhor do que muito material munidas de celular e especialistas em assuntos milita-
criado por jornalistas tradicionais. E não é só questão res no Twitter – que garantem um testemunho em pri-
de um indivíduo qualquer poder publicar sua opinião meira mão e análise em tempo real dos fatos.
sem intermediários; no caso de doping do ciclista Lance A lista daquilo que um jornalista pode fazer cresce dia-
Armstrong, o blog NY Velocity, especializado em ciclis- riamente, pois a plasticidade de tecnologias de comunica-
mo, saiu muito à frente da imprensa esportiva profis- ção muda tanto recursos de apuração de fatos como a con-
sional (que, no episódio, foi de uma credulidade absur- duta do público. Jonathan Stray, repórter da Associated
da). E sua cobertura foi muito melhor. Press e inovador da mídia, observou em um post:
Uma questão interessante sobre o acesso direto de
especialistas ao público surgiu quando a pirâmide de Cada uma das atividades que compõem o jornalis-
Ponzi erguida por Bernard Madoff foi desmascarada. O mo pode ser conduzida melhor dentro ou fora de
detalhe mais curioso do escândalo foi a Securities and uma redação, por profissionais ou amadores, por
Exchange Commission (a SEC, a comissão de valores parceiros ou especialistas. Tudo depende da mate-
mobiliários norte-americana) não ter dado ouvidos aos mática do ecossistema e, em última instância, de
alertas certeiros e detalhados da fraude disparados pelo necessidades de usuários.
investidor Harry Markopolos. No blog de investimentos
Seeking Alpha, Ray Pellecchia perguntou: “Se Markopolos Entender a reviravolta na produção de notícias e no
tivesse um blog, [a fraude] de Madoff teria sido conti- jornalismo, e decidir qual a maneira mais eficaz de apli-
da?”. Será que a SEC teria ignorado o alerta se, em vez car o esforço humano, será crucial para todo e qualquer
de procurar a agência, Markopolos tivesse usado um jornalista. Para determinar qual o papel mais útil que o
blog para apontar publicamente a improbabilidade das jornalista pode desempenhar no novo ecossistema jor-
operações de Madoff? Obviamente, é impossível saber. nalístico é preciso responder a duas perguntas correla-
É fácil imaginar, contudo, que uma análise pública das tas: nesse novo ecossistema, o que novos atores podem
maracutaias de Madoff teria tido mais impacto do que fazer, hoje, melhor do que jornalistas no velho mode-
teve a cobertura do assunto por profissionais da mídia. lo? E que papel o jornalista pode desempenhar melhor
Também chegamos a um ponto no qual a “multidão” do que ninguém?
lá fora está disseminando a própria informação em tem-
po real para outros indivíduos e para o mundo. Hoje, é
mais barato do que nunca reunir dados sobre qualquer Quando mídias sociais são melhores: amadores
mudança mensurável – e surgem algoritmos capazes de
reordenar essa informação em frações de segundo e pro- O valor jornalístico de mídias sociais ocupa um espec-
duzir relatos de acontecimentos que já passam no tes- tro que vai do indivíduo munido de uma informação
te de Turing: ou seja, nada os distingue de textos redi- importante – a testemunha em primeira mão, o “insi-
gidos por gente de carne e osso. E isso sem nenhuma der” – até a coletividade. Bradley Manning, o solda-
intervenção de um jornalista. do do braço de inteligência do Exército norte-ame-
Mas o retrato pintado pelas mudanças no ecossistema ricano acusado de vazar milhares de documentos do
do jornalismo não é só de perda. Se de um lado velhos Departamento de Estado para o site WikiLeaks, ocu-
monopólios desaparecem, há, de outro, um volume cada pava um posto de importância singular; já o registro
vez maior de trabalho jornalisticamente útil a ser feito do rastro de detritos deixado pela explosão do ônibus
pela colaboração de amadores, multidões e máquinas. espacial Columbia pela BBC exigiu vários observado-
Uma corretora de commodities, por exemplo, não pre- res independentes. Um projeto do Huffington Post em
cisa de um repórter plantado em uma lavoura de trigo 2008, o Off the Bus, ocupou um espectro similar: o rela-
para entrevistar o agricultor: satélites podem produzir to de um discurso de Barack Obama em São Francisco,
imagens em tempo real da cultura, interpretar essa infor- quando o presidente norte-americano aludiu a gente
mação visual e, num piscar de olhos, transformar tudo que se “aferra a armas e à religião”, veio de uma úni-
em dados úteis. A empresa norte-americana Narrative ca fonte, a blogueira Mayhill Fowler; já a cobertura de
Plataformas para partilha de dados em tempo real, No setor de tecnologia, projetos novos como Palantir,
como a Cosm, contam com grupos militantes de empre- Kaggle e Narrative Science estão eletrizando investido-
sas, ou simplesmente cidadãos comuns, para recolher res com as possibilidades infinitas abertas pela coleta
informações de seu interesse – sobre qualidade do ar, de dados e o uso de algoritmos para organizá-los.
condições de trânsito, eficiência energética, o que seja Com uma equipe de 30 pessoas – dois terços enge-
– e compartilhá-las por meio de sensores bem baratos. nheiros, um terço editorial –, a Narrative Science “pro-
Dados em um site desses têm um alcance, uma profun- duz narrativas completas a partir de dados numéricos
didade e uma precisão que simplesmente não podem brutos”, como diz o próprio diretor de tecnologia da
ser garantidos por um jornalista sozinho. empresa, Kris Hammond. Hammond e sua equipe de
Hoje, o cidadão também fotografa e filma fatos de cientistas da computação buscam identificar elemen-
interesse jornalístico – e, às vezes, como no projeto tos cruciais de um texto jornalístico e de que forma
Off the Bus do Huffington Post em 2008, dá verdadei- poderiam variar, seja para o resumo de uma partida de
ros furos políticos. Plataformas sociais como Facebook beisebol ou o anúncio dos resultados de uma empre-
e Twitter reconhecem que reunir e interpretar toda a sa. Em seguida, programam um código que permite
informação hoje disponível é uma tarefa que extrapo- a conversão de dados em estado bruto em palavras.
la a capacidade humana. Daí toda plataforma social e Esse conteúdo de baixo custo já está sendo vendido
todo mecanismo de busca contar com algoritmos que a empresas e veículos de comunicação tradicionais,
ajudam a analisar que conteúdo está sendo comparti- entre outros.
lhado, que temas são mais discutidos (e por quem) e A proposta da Narrative Science é automatizar a pro-
como surge e circula a informação. dução de textos padronizados como resultados finan-
A disponibilidade de recursos, como fotos tiradas pelo ceiros de empresas e resultados de competições espor-
cidadão comum, não elimina a necessidade do jorna- tivas. Isso reduz a necessidade de intervenção humana
lismo nem de jornalistas, mas altera sua função. O pro- em atividades repetitivas: em vez de ficar redigindo tex-
fissional deixa de ser o responsável por registrar a pri- tos elementares, essa mão de obra é liberada para coisas
meira imagem ou fazer uma observação inicial e passa mais complexas ou que exijam interpretação.
a ser aquele que solicita a informação e, em seguida, fil- E, como sempre, essa comoditização permite a par-
tra e contextualiza o que recebe. Um termo hoje mui- ticipação até de quem não pertence aos quadros tra-
to usado, “crowdsourcing”, implica por si só uma rela- dicionais da profissão. Se uma criança está disputan-
ção de “um com vários” para o jornalista, que lança do uma partida de beisebol pela liga infantil e o pai usa
uma pergunta a um grande grupo de pessoas ou recor- um aplicativo para iPhone chamado GameChanger para
re a esse exército de gente para achar respostas. Mas registrar os resultados, a Narrative Science vai proces-
essa multidão também pode ser uma série de indivídu- sar esses dados instantaneamente e produzir um texto
os atuando por meio de redes – multidão que pode ser com a descrição do jogo. Mais de um milhão de peque-
interrogada e utilizada para uma versão mais comple- nos textos do gênero serão gerados só este ano.
ta dos fatos ou para a descoberta de coisas que seriam Em entrevista à revista Wired, Hammond disse espe-
difíceis ou demoradas de apurar com o modelo tradi- rar que, no futuro, algo como 80% a 90% das matérias
cional de reportagem. sejam geradas por algum algoritmo. Quando pedimos
que desenvolvesse o pensamento, ele explicou que vai
haver uma expansão do tipo de “matéria” que poderá
Quando a máquina é melhor ser produzida por máquinas à medida que mais dados
de caráter local e pessoal forem sendo coletados e lan-
Se há algo que a máquina faz melhor do que o homem çados na internet. Esses 90% implicam, portanto, não
é garimpar com rapidez grandes volumes de dados. A só dados em estado mais “granular”, mas um univer-
automação de processos e conteúdo é o território mais so muito maior de matérias ou conteúdo sendo publi-
subaproveitado para derrubar o custo do jornalismo e cados, por um conjunto muito maior de repórteres, a
melhorar a produção editorial. No prazo de cinco a dez maioria amadores. Esse tipo de reportagem será viável
anos, teremos informações produzidas a baixo custo e sempre e quando houver dados disponíveis nesse for-
monitoradas em redes de aparelhos sem fio. Vão servir mato digital. E sempre e quando não houver dados nes-
para várias coisas – informar às pessoas qual o melhor se formato, como em uma audiência pública realizada
momento para usar a água para evitar a poluição dos por algum poder da União, será preciso um repórter
rios, por exemplo, ou quando atravessar a rua – e levan- para registrar os dados.
tam questões de ética, posse e uso da informação. Segundo Hammond, as máquinas que sua equipe
para a popular loja de aplicativos é turvo e arbitrário, e seguidores?”. É fato, no entanto, que a atividade indi-
que o rechaço de certas contribuições equivale a censu- vidual do jornalista – seus recursos e sua liberdade –
ra (como na decisão, notoriamente opaca, de rejeitar o está crescendo, e já não se restringe à marca do veícu-
mapa interativo de ataques com “drones” feito pelo pro- lo e ao público deste.
gramador Joshua Begley). Com a simples decisão de usar No ecossistema da informação, o jornalista pode exer-
um produto da Apple, portanto, o jornalista toma parte cer o maior impacto no trabalho entre as massas, de
na criação de um futuro com censura para a internet. um lado, e o algoritmo, do outro – no papel de investi-
gador, tradutor, narrador. Sem explorar as possibilida-
Eficiência des da multidão ou de algoritmos, certas modalidades
de jornalismo se tornam insustentáveis, incapazes de
É evidente que o jornalista pode ser muito mais efi- acompanhar o mundo de redes e dados em tempo real
ciente do que a máquina na apuração e disseminação de que chegam ao público de todas as partes – de sensores
certas informações. É entrevistando gente que o profis- instalados na lata de lixo a “trending topics” no Twitter.
sional tem acesso aos fatos e se “apodera” de um assun- O lugar ocupado pelo jornalismo no ecossistema tem a
to, às vezes com exclusividade. Ligar para o palácio do ver, portanto, com a humanização dos dados, não com
governo ou para a Secretaria de Educação, comparecer o processo de mecanização.
a reuniões e assimilar o que é dito ali, dar ideias e ques- A adaptação a esse mundo é um desafio para o jorna-
tionar – tudo isso aproxima a notícia da ideia de “dra- lista que aprendeu a trabalhar em redações cujo pro-
ma” que o teórico da comunicação James Carey julgava duto exigia, antes de tudo, exatidão e certeza, e onde
central para o conceito do jornal. Pessoais e humanas, havia unidade e clareza em torno de um pequeno con-
essas atividades convertem o jornalismo em uma espé- junto de processos: apuração, redação, edição. A capa-
cie de performance da informação, e não mera divul- cidade de reconhecer, localizar e narrar um fato rele-
gação de fatos. vante no formato mais condizente para um público
específico segue sendo necessária, mas o número de
Originalidade formatos e a variabilidade da audiência aumentaram.
E mais: técnicas do ofício que ajudarão o jornalista a
Para ter ideias, criar algoritmos, formar movimentos definir e redefinir seu papel futuro e o setor no qual
e inovar em práticas é preciso originalidade de raciocí- atua estão mudando.
nio. Um jornalista deve provocar mudanças, promover
a experimentação e incitar à ação. Ainda é difícil criar
e manter máquinas capazes de entender a realidade O que um jornalista precisa saber?
com a complexidade exigida para reconhecer o que há
de importante em uma história como a de swaps de cré- Quando Laura e Chris Amico trocaram a Califórnia pela
dito ou por que é preciso investigar a situação fiscal de capital norte-americana, Washington – onde Chris foi
Mitt Romney. Essa bagagem cultural distingue repór- trabalhar como desenvolvedor no site da rádio NPR –,
teres, editores, designers e demais jornalistas de outros o casal não conhecia o lugar, não conhecia a comuni-
sistemas de coleta e disseminação de dados. dade e não sabia onde Laura, que é repórter policial,
iria achar trabalho.
Carisma “Não havia ninguém contratando”, diz Laura. O tédio
do desemprego e o interesse dos dois pelo jornalis-
Gente segue gente. Pelo mero fato de ser “humano”, mo cívico levou o casal a cogitar possíveis projetos na
portanto, o jornalista cria para si um papel mais for- área. “Pensamos muito sobre o que ‘não’ vinha sendo
te. É um trunfo que a televisão, movida que é a perso- coberto”, diz Laura, que mantém um pequeno apare-
nalidades, há muito explora, mas sempre numa via de lho para escutar a rádio da polícia onde a maioria exi-
mão única. Já num mundo de redes, a capacidade de be um despertador.
informar, entreter e responder a feedback de forma E o que não estava sendo coberto nas páginas poli-
inteligente é uma habilidade jornalística. É como dis- ciais dos jornais locais e até do Washington Post, per-
se Paulo Berry, ex-diretor de tecnologia do Huffington ceberam, era todo homicídio ocorrido na cidade. Para
Post: “Hoje em dia, quando um jornalista é entrevista- tapar esse buraco na cobertura, o casal criou o site
do, só há uma pergunta a fazer: quantos seguidores?”. Homicide Watch D.C. “Buscamos deliberadamente fazer
Já que influência é um critério melhor do que mera algo que ninguém mais estivesse fazendo”, diz Chris.
quantidade, uma versão burilada seria “Quem são seus Com efeito, a decisão mais radical da dupla foi jogar na
À medida que cada integrante da rede vai ficando ain- do jornalista levaram a um resultado que pode ser visto
da mais conectado, um jornalista com bom trânsito por como o símbolo do accountability journalism.
essas redes pode obter mais ajuda ou ser mais eficien-
te. Edição, pauta e apuração viram atividades total ou Persona
parcialmente delegadas à rede.
Criar e manter uma rede eficaz requer tato (uma “soft Presença, acessibilidade e responsabilização são coi-
skill”), mas também a imposição de limites bem con- sas importantes no jornalismo. E o mesmo pode ser
cretos. Exige tempo, reflexão e processo. Exige crité- dito da habilidade narrativa. Qualquer um de nós pode
rio, até porque uma rede implica proximidade e o jor- constatar, em cifras, o declínio da imprensa. Mas qual-
nalismo exige distância. Logo, garantir ambas é difícil. quer um de nós também pode ler um David Carr no New
No documento “The AOL Way”, uma diretriz estraté- York Times para saber que fatores são importantes na
gica do portal que vazou para o público em 2011, a tese opinião do jornalista. Aliás, queremos ler Carr porque
explícita da AOL era que jornalistas com redes maiores sua prosa é um primor. Quanto mais um jornalista nos
ou mais seguidores valiam mais. Embora boa parte do envolve com sua persona, mais queremos ouvir o que
material tenha sido considerada pura besteira, o impacto tem a dizer sobre o mundo.
de um exército grande e visível de seguidores na carrei- Antigamente, ter uma persona pública era prerroga-
ra de um jornalista é inegável. Quando o site Daily Beast tiva de colunistas festejados. Hoje, é parte do trabalho
tira um jornalista como Andrew Sullivan da revista The de todo jornalista. Todo mundo – editores e repórteres,
Atlantic, a expectativa é que seus leitores migrem tam- profissionais da arte, fotógrafos, “videomakers”, cien-
bém. A credibilidade, a confiabilidade e a tarimba de um tistas de dados, especialistas em mídias sociais – tem
jornalista já são julgadas pela composição de sua rede. um ângulo próprio e responsabilidade na narração dos
Todo indivíduo, assunto ou lugar tem o potencial de fatos. Para isso, é preciso ter critério e aplicá-lo de for-
contar com uma rede visível a seu redor. Diariamente, ma pública e reiterada. Qualquer que seja o meio de dis-
serviços como Facebook, YouTube, Twitter, Orkut e seminação, a informação hoje é instantaneamente com-
Weibo publicam muito mais conteúdo do que a pro- partilhada, discutida, comentada, criticada e louvada
dução somada da mídia profissional no mundo todo. – ao vivo, sem possibilidade de controle.
Logo, garimpar relacionamentos, conversas e histórias Integridade e critério são qualidades que um jorna-
será cada vez mais importante para a coleta de infor- lista arrasta consigo como parte de sua persona pública.
mações. A ferramenta de agregação Storify e o projeto Estão mais para valores do que para “soft skills”. Devido
irlandês de jornalismo Storyful, que vasculha a ativida- à natureza da busca e à publicação contínua, estabelecer
de em redes sociais para buscar notícias e checar fatos, um atributo desses ficou mais fácil. Mas, uma vez perdi-
são como agências de notícias sociais: garantem mais do, é difícil recuperá-lo. Plágio, desonestidade e inten-
proteção e filtro jornalístico do que as plataformas em ções ocultas são mais difíceis de esconder; já erros fac-
sua base, sempre tentando imprimir algum sentido a tuais, material requentado e falta de civilidade podem
informações dispersas e não raro confusas. abalar uma reputação de forma rápida e irreparável.
Um repórter do The Guardian, Paul Lewis, se valeu Por outro lado, um bom jornalismo em qualquer esfe-
de técnicas viabilizadas por redes para produzir uma ra pode conquistar autoridade sem apoio institucional.
série de matérias importantes, incluindo uma na qual O processo pelo qual o jornalista conquista uma boa
analisou imagens registradas por indivíduos na cena reputação – mantendo a integridade, agregando valor
de protestos durante a reunião do G20 em Londres, em à informação para determinado público, demonstrando
2009. Ian Tomlinson, um manifestante que já tinha pro- conhecimento, revelando fontes e explicando metodo-
blemas de saúde, caiu ao chão e morreu durante a mar- logias – hoje se dá em público, em tempo real. O velho
cha, mas a versão da polícia sobre o incidente não soava modelo de proteção de fontes – na prática, um acordo
correta para Lewis, que continuou a entrevistar gente de cavalheiros – já não basta. Hoje, o jornalista que qui-
que participara do protesto para tentar determinar a ser ter acesso a fontes sigilosas deve ser capaz de prote-
ordem dos fatos. Dias após a morte de Tomlinson, um ger a informação o suficiente para impedir que as ditas
vídeo feito por um espectador com o celular foi envia- fontes sejam identificadas por ferrenhos inimigos, do
do ao The Guardian, que preconiza a “abertura” como poder público ou não.
princípio central de seu jornalismo. O vídeo mostrava, Instituições jornalísticas precisam buscar um equilí-
de modo irrefutável, que a polícia entrara em confron- brio entre necessidades de cada jornalista e mecanismos
to com Tomlinson antes de sua morte. A importância instituídos para salvaguardar a reputação institucional.
da reportagem, o impulso da testemunha e as técnicas Embora tais mecanismos não impeçam, necessariamente,
Ainda que o mundo em si tenha ficado mais comple- técnica – ou seja, o jornalista precisa aprender a escre-
xo, o volume de dados disponíveis sobre muitos atores ver código. É verdade que ter verdadeira fluência em
importantes – empresas, políticos, religiosos, crimino- muitas linguagens de programação exige estudo e expe-
sos – cresceu radicalmente. Um dos principais recur- riência, algo que nem todo jornalista vai poder – e nem
sos para a compreensão de mistérios é a capacidade de deveria – adquirir. Mas todo jornalista precisa entender,
esmiuçar dados em busca de padrões que possam estar ainda que num nível elementar, o que é um código, qual
escondidos debaixo do próprio nariz. sua função e como se comunicar com gente que enten-
de da coisa. John Keefe, chefe de uma pequena equipe
Compreensão de indicadores e públicos de programadores na redação da rádio norte-america-
na WNYC, observa que a admissão a escalões cada vez
Um número surpreendente de veículos de comuni- mais baixos já exige um domínio básico de ferramen-
cação que estudamos ainda não emprega ferramentas tas e aplicativos de programação.
de monitoramento em tempo real como Chartbeat ou Um jornalista ouvido por nós, que trabalha em um
Google Analytics – ou, o que é mais comum, não garan- ambiente mais técnico do que a maioria, apontou a fal-
te o acesso de todo jornalista a esses recursos. Entender ta de programadores como um entrave importante ao
como o conteúdo jornalístico é recebido, saber o que progresso de organizações jornalísticas. “Até na redação
torna algo viral e poder conferir o que é lido, ouvido ou com mais recursos a proporção de programadores e jor-
visto (e por quem) são coisas importantes para o jorna- nalistas não passa de um para dez, o que é muito pouco.
lismo. E podem, embora não necessariamente, levar à E a qualidade de muitos programadores nas redações
manipulação do conteúdo para aumentar o número de é bem inferior à de profissionais que trabalham para
pageviews ou de visitantes únicos (merece considera- empresas de tecnologia como Facebook e Twitter”, diz.
ção a decisão do site norte-americano Gawker, cujo edi- Na maioria das instituições, as altas esferas do coman-
tor, A.J. Daulerio, fez circular um memorando deixan- do dão importância a competências comerciais e edito-
do clara a decisão de botar o pessoal para trabalhar, em riais, não ao domínio tecnológico. É algo que preocu-
esquema de rodízio, em uma tática de geração de trá- pa, pois vemos a crescente utilização de plataformas
fego chamada “traffic whoring”) Identificar com fran- independentes que poderiam fornecer um excelente
queza alvos e metas, saber distinguir dados relevantes conjunto de ferramentas para jornalistas (para muitos,
de irrelevantes e reagir retorno recebido são parte do o Twitter seria a ferramenta mais útil para o jornalis-
jornalismo sustentável – e não sua ruína. mo desde o surgimento do telefone), mas que não são
O monitoramento de tendências técnicas e de tráfego inerentemente jornalísticas. Até para o jornalista que
conduz a práticas mecânicas – coisas como otimização nunca vai escrever uma linha de código para uso diá-
de sites (testar links e títulos distintos para garantir a rio, dominar o bê-a-bá da tecnologia é tão importante
melhor posição possível para um artigo em resultados quanto entender o básico da economia.
de buscas no Google) – que não contribuem necessa-
riamente para a imagem do jornalismo. Por outro lado, Narração
facilitar o acesso de um determinado público a um con-
teúdo jornalístico sujeito a filtros é prestar um serviço. Escrever, filmar, editar, gravar, entrevistar, diagramar
O fato de que o público chega a notícias cada vez mais e produzir seguem sendo a base do ofício jornalístico.
por meio de links compartilhados em redes sociais, e não Não falamos muito sobre esses dotes porque não espe-
por agregadores de notícias, tem implicações para repór- ramos que a capacidade elementar de saber identificar
teres e editores. A ignorância geral sobre o modo como e relatar uma história relevante vá mudar, e tudo isso
o público consumia a informação não era um problema segue sendo fundamental para o arsenal de um jornalis-
durante o reinado do modelo industrial. Já no mundo ta. Parte da “alfabetização” tecnológica de um jornalis-
fragmentado e solto de hoje, saber como o público con- ta significa entender como cada uma das competências
some a informação, e se o que você escreve, grava ou acima pode ser afetada por novidades no plano tecnoló-
fotografa chega a quem deveria chegar, é algo crucial. gico ou mudanças no comportamento humano. A narra-
tiva pode ser criada com novos recursos de agregação,
Programação o que implica a compreensão de fontes e a checagem
de material diverso. Um aspecto do trabalho com redes
O jornalismo tem duas grandes barreiras de lingua- e multidões é a capacidade jornalística de agregação.
gem a transpor. Uma é a da estatística e a da capacida- Embora muito jornalista vá torcer o nariz para o exem-
de de interpretar dados. A outra é a da competência plo a seguir, ao falar das fotos de “bichos decepcionados”
Como todos sabemos, essas tecnologias também aba- deixou a Associated Press para criar o Storify. Ory
laram velhos modelos de negócios do jornalismo. As Okolloh montou a equipe que criou o Ushahidi e, mais
condições nesse meio levaram jornalistas a sentir impo- tarde, licenciou o software de mapeamento de multi-
tência, e não mais influência sobre a própria vida pro- dões para redações; é que seu weblog, o Kenyan Pundit,
fissional. O que Dean Starkman chama de giro inces- não funcionou bem como plataforma para denunciar
sante da “roda do hamster” (correr atrás do público ao mundo a violência étnica que vinha ocorrendo na
transitório com a rápida publicação de matérias cha- esteira das eleições de 2007 no Quênia.
mativas) e o que o jornalista britânico Nick Davies É interessante observar que em 2012, um ano de elei-
expõe no livro Flat Earth News são descrições de um ções presidenciais nos Estados Unidos, vários dos jor-
mesmo fenômeno. nalistas que mais geraram audiência nos veículos de
Reciclar comunicados de imprensa e produzir mais comunicação mais tradicionais do país não eram das
com menos sem nenhuma mudança fundamental em redações, mas sim gente que se projetou por rotas rela-
processos são, sabidamente, práticas inimigas do bom tivamente experimentais – e por conta própria. Nate
jornalismo. A nosso ver, no entanto, o jornalismo do Silver se dedicava à consultoria econômica e a montar
futuro dificilmente seguirá esse modelo, pois pagar modelos estatísticos para o beisebol.
jornalistas para produzir informações de baixo valor é O blog de política que criou – o FiveThirtyEight.com,
insustentável. Se há um espaço e um modelo de negó- incorporado em 2010 ao New York Times – era toca-
cios para a produção às pressas de conteúdo redun- do como um projeto de caráter basicamente anônimo,
dante, o mais provável é que tal modelo tenha suces- nas horas livres.
so nas mãos de empresas como Demand Media ou Há paralelos com a trajetória de Ezra Klein, comen-
Journatic, que se valem de algoritmos e de mão de tarista de economia e política que criou o primeiro
obra barata, terceirizada. blog aos 19 anos e levou sua plataforma (a Ezra Klein)
Um jornalista que produza conteúdo de qualida- primeiro para o American Prospect e, depois, para o
de, independentemente de como é bancado, terá mais Washington Post. Nos dois casos, o risco da inovação e
autonomia e controle sobre o próprio trabalho. E terá, o laborioso processo de angariar público e achar uma
a seu dispor, um público maior e mais diversificado, a posição singular no mercado ficaram a cargo de indiví-
custo baixo ou zero. duos que blogavam com software gratuito – e cujo pro-
Nos últimos tempos, o melhor exemplo de um jor- jeto acabou sendo encampado por veículos de comu-
nalista que soube explorar oportunidades abertas pela nicação que, mesmo dotados de recursos maiores e de
tecnologia fora dos processos da redação talvez seja o uma bela reputação, não tinham conseguido incubar
de Andy Carvin, da emissora norte-americana de rádio esse tipo de talento.
NPR. Instalado em Washington, Carvin tuitou a rit- A próxima fase da evolução verá surtos semelhan-
mo tão frenético sobre a Primavera Árabe em 2011 que tes de genialidade e empreendedorismo individuais
virou o centro de uma rede para o público nos Estados em novas áreas – como visualização, criação de dados,
Unidos e outros jornalistas que acompanhavam os fatos. partilha, agregação. As redações já não encaram blo-
Carvin não se limitou a repetir informações obtidas por gs, Twitter ou coberturas ao vivo com o mesmo receio
outros (como um repórter gerando conteúdo sem parar e incompreensão do passado (e “passado”, aqui, signi-
a partir de material de agências); o que fez, basicamen- fica cinco anos atrás).
te, foi tornar público um processo de bastidores similar Em cinco anos mais, receber dados em tempo real de
à intervenção de editores em uma matéria. Só que em vastas redes de sensores, criar conteúdo automatiza-
vez de permanecer restrita a editores e jornalistas da do, adquirir ou criar tecnologias que reflitam valores
NPR, e ao conteúdo produzido pela rádio, essa inter- jornalísticos, estabelecer parcerias com diversos espe-
venção foi publicada em tempo real no Twitter. Carvin cialistas e instituições e fazer experiências com agre-
acha que foi capaz de enveredar pelo novo caminho em gadores, animadores e performers renomados poderia
parte porque seu cargo oficial – diretor de estratégia ser tão corriqueiro quanto licenciar um blog.
em mídias sociais da rádio – não era visto como edito-
rial em primeiro lugar.
Embora haja muitos outros casos de gente que cha- Como vai mudar o trabalho do jornalista?
coalhou velhos processos do jornalismo, é raro que os
melhores expoentes dessa turma tenham tido liberdade É difícil saber exatamente como vai ser a redação mais
suficiente nas respectivas instituições para desenvolver enxuta, mas já dá para dizer que o trabalho do jor-
seu trabalho (como teve Andy Carvin). Burt Herman nalista típico sofrerá certas mudanças ao longo dos