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PARTE 1

Jornalistas

NO DIA 28 DE JUNHO DE 2012, a Suprema Corte dos Estados Unidos tomou sua decisão sobre a
obrigatoriedade de contratação de plano de saúde privado por todo cidadão do país – prevista na
chamada Affordable Care Act, a lei da reforma da saúde norte-americana. Em pleno ano de elei-
ções, e diante da possibilidade de que um pilar da legislação proposta pelo presidente fosse jul-
gado inconstitucional, a decisão já não tinha impacto só para o setor de saúde. Virara também um
grande fato político.

Nos dias que antecederam a decisão, todo veículo das pressões comerciais e protocolares típicas do ofí-
importante de comunicação cobriu o caso. O veredic- cio. Em um mundo que o professor norte-americano de
to foi anunciado às 10h07 do dia 28. A CNN anunciou jornalismo Jeff Jarvis descreve com o mote “do what
que o dispositivo fora rejeitado. Já o blog SCOTUSblog you do best and link to the rest” (literalmente, “faça o
informou que a obrigatoriedade fora mantida. que é seu forte e ponha links para o resto”), o modelo
O vexame que a emissora de TV a cabo deu ao levar do SCOTUSblog traz a cobertura mais consistente da
ao ar uma informação incorreta só perdeu, em dimen- Suprema Corte – cobertura que, se honrada sua meta,
são, para a projeção conquistada naquele instante pelo também deve ser a melhor. O SCOTUSblog não vai des-
SCOTUSblog, até ali um pequeno site desconhecido cuja pachar 25 jornalistas para o Haiti caso haja um terre-
única missão era cobrir a Suprema Corte. Naquele dia, moto (nem mandar alguém ir cobrir outra audiência da
o SCOTUSblog virou a grande fonte dos últimos des- atriz Lindsay Lohan por dirigir embrigada). Não está
dobramentos sobre o caso e de análises indispensáveis substituindo a CNN – e nem precisa. O SCOTUSblog
sobre o parecer do tribunal. Mais tarde, ao esmiuçar a achou seu nicho e sabe qual é seu papel.
cobertura do blog no dia 28, a revista The Atlantic infor- Se há jornalistas, é porque o público precisa saber o
mava que às 10h22 – 15 minutos depois de anunciada a que aconteceu, e os motivos. A maneira mais eficaz e
decisão – o site registrava perto de um milhão de visi- confiável de transmitir uma notícia é por meio de gen-
tantes (foi preciso instalar mais servidores para acomo- te com profundo conhecimento do assunto e capacida-
dar o salto no tráfego). de de levar a informação ao público na hora certa. No
O SCOTUSblog foi criado em 2003 por Tom Goldstein episódio acima, o SCOTUSblog cumpriu os dois requi-
e Amy Howe, marido e mulher. Nenhum dos dois era jor- sitos. Embora tenha corrigido a “barriga” em questão
nalista: eram, ambos, sócios de um escritório de advoca- de minutos (críticos, é verdade), a CNN a princípio dei-
cia e professores nas faculdades de direito de Harvard e xou a desejar no quesito mais básico: informar o que o
Stanford. Na manhã da decisão, Goldstein cobriu o pro- tribunal de fato decidira.
cedimento todo ao vivo; o material que foi postando no A goleada do SCOTUSblog é só um exemplo de como
blog serviu de base para a cobertura do canal público o velho território de jornalistas tradicionais está sen-
de TV C-SPAN 3. Segundo Goldstein, o episódio foi o do invadido. Um mapeamento do novo ecossistema
“Superbowl” do site – site cuja meta seria levar ao público jornalístico revela exemplos muito mais radicais do
a melhor análise da decisão no momento mais pertinente. que o desse blog (que, além dos advogados que o fun-
O SCOTUSblog é prova de que o jornalismo pode ser daram, até emprega jornalistas). Em certos casos, gen-
exercido fora de uma redação tradicional por gente livre te que nem é jornalista se mostrou capaz de exercer o

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ofício com tanta tarimba quanto profissionais da área Science já produz textinhos com resultados financei-
– às vezes, até mais. Especialistas – seja o economis- ros de empresas para o site Forbes.com. Outro projeto, o
ta Nouriel Roubini discorrendo sobre a bolha imobili- Journatic, desperta tanto interesse como angústia com
ária, o sociólogo Zeynep Tufekci falando de conflitos sua cobertura a distância de fatos “locais”. Quando pra-
no Oriente Médio, a analista financeira Susan Webber ças em países do Oriente Médio são alvo de artilharia, a
no site Naked Capitalism – estão produzindo um con- confirmação do estrago é feita por redes de testemunhas
teúdo contextualizado melhor do que muito material munidas de celular e especialistas em assuntos milita-
criado por jornalistas tradicionais. E não é só questão res no Twitter – que garantem um testemunho em pri-
de um indivíduo qualquer poder publicar sua opinião meira mão e análise em tempo real dos fatos.
sem intermediários; no caso de doping do ciclista Lance A lista daquilo que um jornalista pode fazer cresce dia-
Armstrong, o blog NY Velocity, especializado em ciclis- riamente, pois a plasticidade de tecnologias de comunica-
mo, saiu muito à frente da imprensa esportiva profis- ção muda tanto recursos de apuração de fatos como a con-
sional (que, no episódio, foi de uma credulidade absur- duta do público. Jonathan Stray, repórter da Associated
da). E sua cobertura foi muito melhor. Press e inovador da mídia, observou em um post:
Uma questão interessante sobre o acesso direto de
especialistas ao público surgiu quando a pirâmide de Cada uma das atividades que compõem o jornalis-
Ponzi erguida por Bernard Madoff foi desmascarada. O mo pode ser conduzida melhor dentro ou fora de
detalhe mais curioso do escândalo foi a Securities and uma redação, por profissionais ou amadores, por
Exchange Commission (a SEC, a comissão de valores parceiros ou especialistas. Tudo depende da mate-
mobiliários norte-americana) não ter dado ouvidos aos mática do ecossistema e, em última instância, de
alertas certeiros e detalhados da fraude disparados pelo necessidades de usuários.
investidor Harry Markopolos. No blog de investimentos
Seeking Alpha, Ray Pellecchia perguntou: “Se Markopolos Entender a reviravolta na produção de notícias e no
tivesse um blog, [a fraude] de Madoff teria sido conti- jornalismo, e decidir qual a maneira mais eficaz de apli-
da?”. Será que a SEC teria ignorado o alerta se, em vez car o esforço humano, será crucial para todo e qualquer
de procurar a agência, Markopolos tivesse usado um jornalista. Para determinar qual o papel mais útil que o
blog para apontar publicamente a improbabilidade das jornalista pode desempenhar no novo ecossistema jor-
operações de Madoff? Obviamente, é impossível saber. nalístico é preciso responder a duas perguntas correla-
É fácil imaginar, contudo, que uma análise pública das tas: nesse novo ecossistema, o que novos atores podem
maracutaias de Madoff teria tido mais impacto do que fazer, hoje, melhor do que jornalistas no velho mode-
teve a cobertura do assunto por profissionais da mídia. lo? E que papel o jornalista pode desempenhar melhor
Também chegamos a um ponto no qual a “multidão” do que ninguém?
lá fora está disseminando a própria informação em tem-
po real para outros indivíduos e para o mundo. Hoje, é
mais barato do que nunca reunir dados sobre qualquer Quando mídias sociais são melhores: amadores
mudança mensurável – e surgem algoritmos capazes de
reordenar essa informação em frações de segundo e pro- O valor jornalístico de mídias sociais ocupa um espec-
duzir relatos de acontecimentos que já passam no tes- tro que vai do indivíduo munido de uma informação
te de Turing: ou seja, nada os distingue de textos redi- importante – a testemunha em primeira mão, o “insi-
gidos por gente de carne e osso. E isso sem nenhuma der” – até a coletividade. Bradley Manning, o solda-
intervenção de um jornalista. do do braço de inteligência do Exército norte-ame-
Mas o retrato pintado pelas mudanças no ecossistema ricano acusado de vazar milhares de documentos do
do jornalismo não é só de perda. Se de um lado velhos Departamento de Estado para o site WikiLeaks, ocu-
monopólios desaparecem, há, de outro, um volume cada pava um posto de importância singular; já o registro
vez maior de trabalho jornalisticamente útil a ser feito do rastro de detritos deixado pela explosão do ônibus
pela colaboração de amadores, multidões e máquinas. espacial Columbia pela BBC exigiu vários observado-
Uma corretora de commodities, por exemplo, não pre- res independentes. Um projeto do Huffington Post em
cisa de um repórter plantado em uma lavoura de trigo 2008, o Off the Bus, ocupou um espectro similar: o rela-
para entrevistar o agricultor: satélites podem produzir to de um discurso de Barack Obama em São Francisco,
imagens em tempo real da cultura, interpretar essa infor- quando o presidente norte-americano aludiu a gente
mação visual e, num piscar de olhos, transformar tudo que se “aferra a armas e à religião”, veio de uma úni-
em dados úteis. A empresa norte-americana Narrative ca fonte, a blogueira Mayhill Fowler; já a cobertura de

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convenções de eleitores (“caucuses”) no Estado do Iowa e idiossincrasias de complexas organizações modernas
foi feita por levas de indivíduos. é uma empreitada intelectual nada banal – e, de que-
Quando uma força de operações especiais da Marinha bra, um serviço público. Em muitos casos, os aspectos
norte-americana (os SEALs) matou Osama bin Laden, mais importantes do trabalho jornalístico individu-
quem primeiro tornou pública a notícia foi Sohaib Athar al seguem sendo o que sempre foram em sua melhor
(cujo Twitter é @reallyvirtual). Ou, nas palavras do pró- encarnação: entrevistar, observar em primeira mão,
prio, “o cara que blogou ao vivo o ataque a [bin Laden] sem analisar documentos.
sequer saber”. Sohaib Athar não é jornalista (é consul- Não obstante, muitas das estratégias que defende-
tor de TI em Abbottabad, no Paquistão, onde bin Laden mos não espelham diretamente o paradigma da repor-
foi encontrado) e talvez nem soubesse que estava fazen- tagem tradicional. A maioria dos jornalistas, e das ins-
do jornalismo. Mas, como observou Steve Myers, à épo- tituições jornalísticas, foi incapaz de tirar proveito da
ca no Poynter Institute, o rapaz “agiu como um jorna- explosão de conteúdo de potencial interesse jornalísti-
lista”. No Twitter, Athar disse ter ouvido o barulho de co trazida pela expansão da comunicação digital. O fato
um helicóptero e uma explosão. Na sequência, respon- é que a maioria dos jornalistas, na maioria dos jornais,
deu a perguntas, acrescentou informações quando jul- não passa a maior parte do tempo realizando algo que
gou que havia fatos novos, seguiu o desenrolar da tra- possa ser considerado uma apuração empiricamente
ma e contextualizou o episódio. Athar virou um recurso robusta de fatos. Assim como a histórica falácia da “era
para jornalistas que tentavam reconstruir a cronologia de ouro” do jornalismo, a crença no valor do trabalho
dos eventos – uma parte do sistema de verificação que original de reportagem muitas vezes supera o volume
podia ser cotejada em tempo real com a versão oficial. real ao qual é produzido.
Em muitos acontecimentos de relevância jornalísti- Ainda há muito jornalista que se restringe a um rol
ca, é cada vez mais provável que a primeira descrição relativamente limitado de fontes na hora de colher infor-
dos fatos seja feita por um cidadão conectado, não por mações para matérias de grande relevância, com o oca-
um jornalista profissional. Em certas situações – desas- sional complemento de dados obtidos em comunicados
tres naturais, chacinas –, a transição já foi concluída. de imprensa e por observação direta. Essa concepção
Nesse caso, como no de tantas outras mudanças no do trabalho de reportagem centrado na fonte com auto-
jornalismo, a erosão de velhas formas de agir é acompa- ridade exclui mídias sociais, a explosão de dados digi-
nhada da expansão de novas oportunidades e de novas tais, fontes de informação geradas por algoritmos e mui-
necessidades de um trabalho jornalisticamente impor- tas das novas estratégias de coleta de informações que
tante. O jornalista não foi substituído – foi deslocado aqui destacamos.
para um ponto mais acima na cadeia editorial. Já não Devia haver mais trabalho de reportagem, e não menos,
produz observações iniciais, mas exerce uma função cuja e essa reportagem devia aprender a conviver com for-
ênfase é verificar, interpretar e dar sentido à enxurrada mas mais recentes de apuração de informações de inte-
de texto, áudio, fotos e vídeos produzida pelo público. resse jornalístico. Reconhecemos que o colapso econô-
A “apuração dos fatos” ocupa um lugar de destaque mico de jornais representa uma ameaça bastante real
na autoimagem do jornalismo: está no cerne daquilo que para o trabalho de reportagem; a solução desse dile-
o jornalista faz – algo, que, em sua concepção, ninguém ma exigirá uma nova atenção a instituições jornalísti-
mais pode fazer; é o aspecto da ocupação que requer a cas, algo que discutiremos em mais detalhe na próxi-
habilidade mais tácita; é a função que serve de forma ma seção, sobre instituições.
mais direta o interesse público. A importância desse
trabalho de reportagem se reflete em muitas das bata-
lhas mais perenes travadas em torno do jornalismo na Quando mídias sociais são melhores: multidões
última década e meia, da briga aparentemente intermi-
nável entre “blogueiros x jornalistas” ao conflito sobre Quando um número suficiente de atores é reunido, chega-
agregação de conteúdo x cobertura própria. -se a uma multidão. E algo que essa multidão faz melhor
Por ser considerado simplista ou metodologicamen- do que jornalistas é coletar dados. Quando o Japão foi
te ingênuo, o trabalho de reportagem costuma ser mal atingido por um terremoto em março de 2011, provo-
interpretado por gente de fora do meio. Obter informa- cando um vazamento na usina nuclear de Fukushima
ções descritivas cruciais de uma testemunha na cena Daiichi, a frustração devido à falta de informação atua-
dos fatos, questionar de forma incisiva respostas ver- lizada sobre níveis de radiação levou muita gente muni-
bais de altas autoridades públicas, saber exatamente da de contadores Geiger a filmar e transmitir a radiação
onde achar um documento crucial ou decifrar rotinas medida por esses aparelhos pelo site UStream.

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Plataformas para partilha de dados em tempo real, No setor de tecnologia, projetos novos como Palantir,
como a Cosm, contam com grupos militantes de empre- Kaggle e Narrative Science estão eletrizando investido-
sas, ou simplesmente cidadãos comuns, para recolher res com as possibilidades infinitas abertas pela coleta
informações de seu interesse – sobre qualidade do ar, de dados e o uso de algoritmos para organizá-los.
condições de trânsito, eficiência energética, o que seja Com uma equipe de 30 pessoas – dois terços enge-
– e compartilhá-las por meio de sensores bem baratos. nheiros, um terço editorial –, a Narrative Science “pro-
Dados em um site desses têm um alcance, uma profun- duz narrativas completas a partir de dados numéricos
didade e uma precisão que simplesmente não podem brutos”, como diz o próprio diretor de tecnologia da
ser garantidos por um jornalista sozinho. empresa, Kris Hammond. Hammond e sua equipe de
Hoje, o cidadão também fotografa e filma fatos de cientistas da computação buscam identificar elemen-
interesse jornalístico – e, às vezes, como no projeto tos cruciais de um texto jornalístico e de que forma
Off the Bus do Huffington Post em 2008, dá verdadei- poderiam variar, seja para o resumo de uma partida de
ros furos políticos. Plataformas sociais como Facebook beisebol ou o anúncio dos resultados de uma empre-
e Twitter reconhecem que reunir e interpretar toda a sa. Em seguida, programam um código que permite
informação hoje disponível é uma tarefa que extrapo- a conversão de dados em estado bruto em palavras.
la a capacidade humana. Daí toda plataforma social e Esse conteúdo de baixo custo já está sendo vendido
todo mecanismo de busca contar com algoritmos que a empresas e veículos de comunicação tradicionais,
ajudam a analisar que conteúdo está sendo comparti- entre outros.
lhado, que temas são mais discutidos (e por quem) e A proposta da Narrative Science é automatizar a pro-
como surge e circula a informação. dução de textos padronizados como resultados finan-
A disponibilidade de recursos, como fotos tiradas pelo ceiros de empresas e resultados de competições espor-
cidadão comum, não elimina a necessidade do jorna- tivas. Isso reduz a necessidade de intervenção humana
lismo nem de jornalistas, mas altera sua função. O pro- em atividades repetitivas: em vez de ficar redigindo tex-
fissional deixa de ser o responsável por registrar a pri- tos elementares, essa mão de obra é liberada para coisas
meira imagem ou fazer uma observação inicial e passa mais complexas ou que exijam interpretação.
a ser aquele que solicita a informação e, em seguida, fil- E, como sempre, essa comoditização permite a par-
tra e contextualiza o que recebe. Um termo hoje mui- ticipação até de quem não pertence aos quadros tra-
to usado, “crowdsourcing”, implica por si só uma rela- dicionais da profissão. Se uma criança está disputan-
ção de “um com vários” para o jornalista, que lança do uma partida de beisebol pela liga infantil e o pai usa
uma pergunta a um grande grupo de pessoas ou recor- um aplicativo para iPhone chamado GameChanger para
re a esse exército de gente para achar respostas. Mas registrar os resultados, a Narrative Science vai proces-
essa multidão também pode ser uma série de indivídu- sar esses dados instantaneamente e produzir um texto
os atuando por meio de redes – multidão que pode ser com a descrição do jogo. Mais de um milhão de peque-
interrogada e utilizada para uma versão mais comple- nos textos do gênero serão gerados só este ano.
ta dos fatos ou para a descoberta de coisas que seriam Em entrevista à revista Wired, Hammond disse espe-
difíceis ou demoradas de apurar com o modelo tradi- rar que, no futuro, algo como 80% a 90% das matérias
cional de reportagem. sejam geradas por algum algoritmo. Quando pedimos
que desenvolvesse o pensamento, ele explicou que vai
haver uma expansão do tipo de “matéria” que poderá
Quando a máquina é melhor ser produzida por máquinas à medida que mais dados
de caráter local e pessoal forem sendo coletados e lan-
Se há algo que a máquina faz melhor do que o homem çados na internet. Esses 90% implicam, portanto, não
é garimpar com rapidez grandes volumes de dados. A só dados em estado mais “granular”, mas um univer-
automação de processos e conteúdo é o território mais so muito maior de matérias ou conteúdo sendo publi-
subaproveitado para derrubar o custo do jornalismo e cados, por um conjunto muito maior de repórteres, a
melhorar a produção editorial. No prazo de cinco a dez maioria amadores. Esse tipo de reportagem será viável
anos, teremos informações produzidas a baixo custo e sempre e quando houver dados disponíveis nesse for-
monitoradas em redes de aparelhos sem fio. Vão servir mato digital. E sempre e quando não houver dados nes-
para várias coisas – informar às pessoas qual o melhor se formato, como em uma audiência pública realizada
momento para usar a água para evitar a poluição dos por algum poder da União, será preciso um repórter
rios, por exemplo, ou quando atravessar a rua – e levan- para registrar os dados.
tam questões de ética, posse e uso da informação. Segundo Hammond, as máquinas que sua equipe

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cria devem “pensar como um jornalista”; sua inten- Prestação de contas
ção é esmiuçar o que o jornalista faz e, em seguida,
reproduzir a atividade com a programação. “Queremos Uma pergunta que a sociedade está sempre fazen-
que a máquina se aproxime das pessoas, [queremos] do, e para a qual exige resposta (em geral, quando algo
humanizar a máquina e produzir lampejos humanos dá errado), é “quem é o responsável?”. Se o jornalis-
em escala gigantesca.” mo tem um impacto, e se parte de sua função é obrigar
Repórteres e editores consideram esse cenário hor- outras instituições a prestar contas de seus atos, o pró-
ripilante. Jornalistas e programadores (ou jornalistas prio jornalismo deve ser capaz de justificar os seus. Os
com formação em ciência da computação) raramente três inquéritos (um deles policial) envolvendo o tabloi-
trabalham com esse processo de replicação. “Falta uma de britânico News of the World, acusado de apelar para
boa compreensão da questão, no momento ainda são grampos telefônicos, demonstram de forma bastan-
poucas as organizações jornalísticas com essa capaci- te vívida que, embora deva ter liberdade de expressão,
dade”, explicou Reg Chua, diretor de dados e inovação o jornalista também precisa responder pessoalmente
na Thomson Reuters. por seus atos.
Se a resposta à pergunta “em que situações um algo- Determinar de quem é o risco da publicação de conte-
ritmo é melhor?” for “para produzir textos a partir de údo é legalmente importante (e se tornará ainda mais),
dados estruturados”, e se o universo de dados estrutu- tanto no terreno da imputação de responsabilidade como
rados de natureza pessoal, local, nacional e internacio- no da defesa de direitos.
nal estiver crescendo de forma exponencial, prever a A criação de programas e algoritmos que substituem
automatização de 90% do conjunto de “matérias” não o trabalho humano de reportagem envolve uma série de
soa tão absurdo. decisões que devem ser passíveis de explicação e res-
ponsabilização para todos os afetados. Na Narrative
Science, jornalistas criam algoritmos; no Google News,
Quando o jornalista é melhor engenheiros precisam entender o que torna uma maté-
ria “melhor” para poder melhorar um algoritmo. Dados
Antes da chegada da máquina a vapor, todo produto e algoritmos são tão políticos quanto charges e textos de
têxtil era “artesanal” – no sentido de que era feito por opinião, mas raramente possuem a mesma transparência.
artesãos. Não era, no entanto, muito bem feito; o homem Novas áreas de responsabilização vão surgindo.
não fabricava têxteis porque tinha alguma habilidade Jornalistas e instituições jornalísticas terão de res-
superior, mas por falta de alternativa. A máquina a vapor ponder à seguinte pergunta: “O que vocês estão fazen-
transformou a indústria têxtil, encerrando a participa- do com meus dados?”. Talvez não importe saber quem
ção humana no grosso da produção básica de tecidos – é jornalista – exceto para a pessoa que está revelando
mas criou uma leva de novas ocupações para artesãos informações a um jornalista.
sofisticados, bem como para criadores de estampas e Na mesma linha, salvaguardas e defesas garantidas
gerentes de fábricas. a jornalistas devem ser estendidas a todo aquele que
A nosso ver, algo parecido ocorre hoje no jornalis- dissemina alguma informação de interesse público. Se
mo. A ascensão daquilo que conhecemos por “impren- um jornalista ou organização jornalística está de posse
sa” coincidiu com a industrialização da reprodução e da de seus dados, é razoável esperar que não sejam entre-
distribuição de material impresso. Quando o custo de gues à polícia.
levar uma coluna de texto a milhares de pessoas come- Sabemos o que acontece quando informações delica-
çou a cair, organizações jornalísticas puderam canali- das, como a correspondência diplomática vazada para o
zar mais recursos para a produção diária de conteúdo. WikiLeaks, são hospedadas em uma plataforma ineren-
Agora, estamos testemunhando uma mudança correlata: temente comercial mas não inerentemente jornalística:
a automatização da coleta e da disseminação de fatos, e o serviço pode ser suspenso. Tanto um braço da Amazon
até de análise básica. Isso obviamente mexe com ativi- que prestava serviços de internet para o WikiLeaks como
dades que empregavam jornalistas não como artesãos, o PayPal, um mecanismo de pagamentos na rede, ces-
mas como meros braços – gente que desempenhava a saram a relação com a organização. Em geral, é mais
função porque não havia máquina capaz disso. Mas tam- difícil detectar plataformas que praticam censura por
bém permite que meios de comunicação, tradicionais motivos comerciais. Rebecca MacKinnon, pesquisado-
e novos, dediquem uma parcela maior de recursos ao ra do centro de estudos norte-americano New America
trabalho de investigação e interpretação que nenhum Foundation e autora de Consent of the Networked, obser-
algoritmo pode fazer – só o homem. va que, na Apple, o processo de aprovação de produtos

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para a popular loja de aplicativos é turvo e arbitrário, e seguidores?”. É fato, no entanto, que a atividade indi-
que o rechaço de certas contribuições equivale a censu- vidual do jornalista – seus recursos e sua liberdade –
ra (como na decisão, notoriamente opaca, de rejeitar o está crescendo, e já não se restringe à marca do veícu-
mapa interativo de ataques com “drones” feito pelo pro- lo e ao público deste.
gramador Joshua Begley). Com a simples decisão de usar No ecossistema da informação, o jornalista pode exer-
um produto da Apple, portanto, o jornalista toma parte cer o maior impacto no trabalho entre as massas, de
na criação de um futuro com censura para a internet. um lado, e o algoritmo, do outro – no papel de investi-
gador, tradutor, narrador. Sem explorar as possibilida-
Eficiência des da multidão ou de algoritmos, certas modalidades
de jornalismo se tornam insustentáveis, incapazes de
É evidente que o jornalista pode ser muito mais efi- acompanhar o mundo de redes e dados em tempo real
ciente do que a máquina na apuração e disseminação de que chegam ao público de todas as partes – de sensores
certas informações. É entrevistando gente que o profis- instalados na lata de lixo a “trending topics” no Twitter.
sional tem acesso aos fatos e se “apodera” de um assun- O lugar ocupado pelo jornalismo no ecossistema tem a
to, às vezes com exclusividade. Ligar para o palácio do ver, portanto, com a humanização dos dados, não com
governo ou para a Secretaria de Educação, comparecer o processo de mecanização.
a reuniões e assimilar o que é dito ali, dar ideias e ques- A adaptação a esse mundo é um desafio para o jorna-
tionar – tudo isso aproxima a notícia da ideia de “dra- lista que aprendeu a trabalhar em redações cujo pro-
ma” que o teórico da comunicação James Carey julgava duto exigia, antes de tudo, exatidão e certeza, e onde
central para o conceito do jornal. Pessoais e humanas, havia unidade e clareza em torno de um pequeno con-
essas atividades convertem o jornalismo em uma espé- junto de processos: apuração, redação, edição. A capa-
cie de performance da informação, e não mera divul- cidade de reconhecer, localizar e narrar um fato rele-
gação de fatos. vante no formato mais condizente para um público
específico segue sendo necessária, mas o número de
Originalidade formatos e a variabilidade da audiência aumentaram.
E mais: técnicas do ofício que ajudarão o jornalista a
Para ter ideias, criar algoritmos, formar movimentos definir e redefinir seu papel futuro e o setor no qual
e inovar em práticas é preciso originalidade de raciocí- atua estão mudando.
nio. Um jornalista deve provocar mudanças, promover
a experimentação e incitar à ação. Ainda é difícil criar
e manter máquinas capazes de entender a realidade O que um jornalista precisa saber?
com a complexidade exigida para reconhecer o que há
de importante em uma história como a de swaps de cré- Quando Laura e Chris Amico trocaram a Califórnia pela
dito ou por que é preciso investigar a situação fiscal de capital norte-americana, Washington – onde Chris foi
Mitt Romney. Essa bagagem cultural distingue repór- trabalhar como desenvolvedor no site da rádio NPR –,
teres, editores, designers e demais jornalistas de outros o casal não conhecia o lugar, não conhecia a comuni-
sistemas de coleta e disseminação de dados. dade e não sabia onde Laura, que é repórter policial,
iria achar trabalho.
Carisma “Não havia ninguém contratando”, diz Laura. O tédio
do desemprego e o interesse dos dois pelo jornalis-
Gente segue gente. Pelo mero fato de ser “humano”, mo cívico levou o casal a cogitar possíveis projetos na
portanto, o jornalista cria para si um papel mais for- área. “Pensamos muito sobre o que ‘não’ vinha sendo
te. É um trunfo que a televisão, movida que é a perso- coberto”, diz Laura, que mantém um pequeno apare-
nalidades, há muito explora, mas sempre numa via de lho para escutar a rádio da polícia onde a maioria exi-
mão única. Já num mundo de redes, a capacidade de be um despertador.
informar, entreter e responder a feedback de forma E o que não estava sendo coberto nas páginas poli-
inteligente é uma habilidade jornalística. É como dis- ciais dos jornais locais e até do Washington Post, per-
se Paulo Berry, ex-diretor de tecnologia do Huffington ceberam, era todo homicídio ocorrido na cidade. Para
Post: “Hoje em dia, quando um jornalista é entrevista- tapar esse buraco na cobertura, o casal criou o site
do, só há uma pergunta a fazer: quantos seguidores?”. Homicide Watch D.C. “Buscamos deliberadamente fazer
Já que influência é um critério melhor do que mera algo que ninguém mais estivesse fazendo”, diz Chris.
quantidade, uma versão burilada seria “Quem são seus Com efeito, a decisão mais radical da dupla foi jogar na

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rede toda e qualquer informação apurada – aproveitar “Soft skills” do jornalismo
“o porco inteiro”, por assim dizer. O Homicide Watch
D.C. é organizado por “objetos” – ocorrência, vítima, Mentalidade
suspeito, processo – e usa informações estruturadas
sobre local do crime, idade e raça dos envolvidos para O que Laura e Chris Amico têm além da bagagem pro-
compor um retrato detalhadíssimo desse tipo de ocor- fissional – ela como repórter de polícia, ele como progra-
rência em uma única cidade. O próprio caráter por- mador de sites – é o espírito de melhorar o jornalismo
menorizado do site ajuda no trabalho de apuração: se em vez de simplesmente repetir o que já se faz ou tentar
alguém entra na página e dá uma busca por um nome resgatar o ofício. “Precisamos mostrar a jovens jorna-
desconhecido, é uma deixa para Laura investigar se o listas que está em seu poder mudar uma organização”,
alvo da pesquisa é uma vítima. Graças a isso, o site já diz Shazna Nessa, chefe de redação do braço interativo
conseguiu dar a notícia de um assassinato e descobrir da Associated Press. “Aliás, a esperança de que as coisas
a identidade da vítima antes que a polícia tivesse con- mudem em geral é depositada sobre esses jovens”, diz.
firmado a ocorrência. Para quem possui essa mentalidade, o apelo de uma
Não há “voz” autoral no site: é tudo escrito no esti- instituição é reduzido. Pouquíssimas empresas seguem
lo de agência de notícias. E, enquanto o relato de cada o exemplo de John Paton, da Digital First Media, um
homicídio é factualíssimo, comentários de parentes das chefe que incentiva a ruptura, espera mudanças e con-
vítimas ou de outros membros da comunidade recebem sidera que nada está gravado em pedra.
bastante destaque. Ao registrar e tornar visível cada Logo, gente talentosa como o casal Amico – e Leela
homicídio no Distrito de Colúmbia, onde fica a capital Kretser, da DNAinfo, Lissa Harris, da Watershed Post,
norte-americana, o site cumpre uma função jornalística Burt Herman, da Storify, Pete Cashmore, da Mashable,
bem clara e específica: com uma corrida de olhos pela e centenas de outros como eles – opta por uma trilha
página, é possível deduzir que o homicídio na região aberta por Nick Denton, Arianna Huffington e Josh
envolve, em sua maioria, homens, negros, jovens. Com Marshall e tenta fazer algo melhor com a criação de
um punhado de cliques, é possível conferir estatísticas uma nova instituição.
detalhadas que confirmam essa impressão. Ter desejo e motivação para exercer influência pes-
O Homicide Watch é um exemplo daquilo que Chris soal sobre o jornalismo, tanto no plano da notícia como
e Laura tinham certeza de que não poderiam fazer em no da instituição, requer uma combinação de consciên-
uma redação. A conversão da informação em estatísti- cia, confiança, imaginação e habilidade.
cas e um site que prioriza vítimas e ocorrências, em vez Ainda que nem todas essas qualidades possam ser
da velha reportagem, estão em conflito com as priori- ensinadas, o fato é que não são opcionais. É importante
dades de muita redação. recrutar e formar jornalistas (nas redações ou em facul-
Embora a reportagem seja o pilar do jornalismo, o dades de jornalismo) que saibam lidar com um estado
Homicide Watch mostra que ferramentas de reporta- permanente de mudança. Em algumas dessas institui-
gem podem ser usadas das mais variadas formas. Um ções, que pela própria natureza representam estabili-
banco de dados que converte cada detalhe apurado pelo dade, será preciso considerável reajuste.
repórter em informação estruturada com o intuito de A ideia do jornalista “empreendedor” vem ganhando
produzir mais conteúdo é um bom exemplo disso. Um força e é cada vez mais estimulada tanto em cursos de
sistema de comentários que permite ao usuário desta- jornalismo como em certos veículos de comunicação.
car e filtrar observações úteis é outro exemplo. Nem Só que julgar a qualidade da inovação pelo lucro gerado
todo jornalista terá domínio de toda área de trabalho. – algo associado a essa ideia – nem sempre é útil, pois
Por reconhecer a centralidade da reportagem, nossa a busca do lucro deve ser precedida da criação de rele-
atenção aqui se concentra em recursos novos que já são vância. Seja qual for sua área de especialização, todo
exigidos para um trabalho melhor de reportagem, mas jornalista deve encarar a experimentação voltada à ino-
que ainda são escassos. vação como algo a praticar, e não simplesmente tolerar.
Não há dúvida de que a bagagem técnica que Laura e
Chris possuem (suas “hard skills”) são a base do suces- Redes
so do site. Laura é repórter policial, Chris é programa-
dor. A grande lição a tirar do caso, no entanto, não é só Todo jornalista tem – aliás, sempre teve – uma rede.
que esse conhecimento “concreto” tornou viável o site, Pode ser uma rede de fontes e contatos, uma rede de
mas sim que habilidades menos tangíveis (“soft skills”) gente com bagagem profissional parecida, uma rede
permitiram a sua utilização. constituída de uma comunidade que o segue e o ajuda.

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À medida que cada integrante da rede vai ficando ain- do jornalista levaram a um resultado que pode ser visto
da mais conectado, um jornalista com bom trânsito por como o símbolo do accountability journalism.
essas redes pode obter mais ajuda ou ser mais eficien-
te. Edição, pauta e apuração viram atividades total ou Persona
parcialmente delegadas à rede.
Criar e manter uma rede eficaz requer tato (uma “soft Presença, acessibilidade e responsabilização são coi-
skill”), mas também a imposição de limites bem con- sas importantes no jornalismo. E o mesmo pode ser
cretos. Exige tempo, reflexão e processo. Exige crité- dito da habilidade narrativa. Qualquer um de nós pode
rio, até porque uma rede implica proximidade e o jor- constatar, em cifras, o declínio da imprensa. Mas qual-
nalismo exige distância. Logo, garantir ambas é difícil. quer um de nós também pode ler um David Carr no New
No documento “The AOL Way”, uma diretriz estraté- York Times para saber que fatores são importantes na
gica do portal que vazou para o público em 2011, a tese opinião do jornalista. Aliás, queremos ler Carr porque
explícita da AOL era que jornalistas com redes maiores sua prosa é um primor. Quanto mais um jornalista nos
ou mais seguidores valiam mais. Embora boa parte do envolve com sua persona, mais queremos ouvir o que
material tenha sido considerada pura besteira, o impacto tem a dizer sobre o mundo.
de um exército grande e visível de seguidores na carrei- Antigamente, ter uma persona pública era prerroga-
ra de um jornalista é inegável. Quando o site Daily Beast tiva de colunistas festejados. Hoje, é parte do trabalho
tira um jornalista como Andrew Sullivan da revista The de todo jornalista. Todo mundo – editores e repórteres,
Atlantic, a expectativa é que seus leitores migrem tam- profissionais da arte, fotógrafos, “videomakers”, cien-
bém. A credibilidade, a confiabilidade e a tarimba de um tistas de dados, especialistas em mídias sociais – tem
jornalista já são julgadas pela composição de sua rede. um ângulo próprio e responsabilidade na narração dos
Todo indivíduo, assunto ou lugar tem o potencial de fatos. Para isso, é preciso ter critério e aplicá-lo de for-
contar com uma rede visível a seu redor. Diariamente, ma pública e reiterada. Qualquer que seja o meio de dis-
serviços como Facebook, YouTube, Twitter, Orkut e seminação, a informação hoje é instantaneamente com-
Weibo publicam muito mais conteúdo do que a pro- partilhada, discutida, comentada, criticada e louvada
dução somada da mídia profissional no mundo todo. – ao vivo, sem possibilidade de controle.
Logo, garimpar relacionamentos, conversas e histórias Integridade e critério são qualidades que um jorna-
será cada vez mais importante para a coleta de infor- lista arrasta consigo como parte de sua persona pública.
mações. A ferramenta de agregação Storify e o projeto Estão mais para valores do que para “soft skills”. Devido
irlandês de jornalismo Storyful, que vasculha a ativida- à natureza da busca e à publicação contínua, estabelecer
de em redes sociais para buscar notícias e checar fatos, um atributo desses ficou mais fácil. Mas, uma vez perdi-
são como agências de notícias sociais: garantem mais do, é difícil recuperá-lo. Plágio, desonestidade e inten-
proteção e filtro jornalístico do que as plataformas em ções ocultas são mais difíceis de esconder; já erros fac-
sua base, sempre tentando imprimir algum sentido a tuais, material requentado e falta de civilidade podem
informações dispersas e não raro confusas. abalar uma reputação de forma rápida e irreparável.
Um repórter do The Guardian, Paul Lewis, se valeu Por outro lado, um bom jornalismo em qualquer esfe-
de técnicas viabilizadas por redes para produzir uma ra pode conquistar autoridade sem apoio institucional.
série de matérias importantes, incluindo uma na qual O processo pelo qual o jornalista conquista uma boa
analisou imagens registradas por indivíduos na cena reputação – mantendo a integridade, agregando valor
de protestos durante a reunião do G20 em Londres, em à informação para determinado público, demonstrando
2009. Ian Tomlinson, um manifestante que já tinha pro- conhecimento, revelando fontes e explicando metodo-
blemas de saúde, caiu ao chão e morreu durante a mar- logias – hoje se dá em público, em tempo real. O velho
cha, mas a versão da polícia sobre o incidente não soava modelo de proteção de fontes – na prática, um acordo
correta para Lewis, que continuou a entrevistar gente de cavalheiros – já não basta. Hoje, o jornalista que qui-
que participara do protesto para tentar determinar a ser ter acesso a fontes sigilosas deve ser capaz de prote-
ordem dos fatos. Dias após a morte de Tomlinson, um ger a informação o suficiente para impedir que as ditas
vídeo feito por um espectador com o celular foi envia- fontes sejam identificadas por ferrenhos inimigos, do
do ao The Guardian, que preconiza a “abertura” como poder público ou não.
princípio central de seu jornalismo. O vídeo mostrava, Instituições jornalísticas precisam buscar um equilí-
de modo irrefutável, que a polícia entrara em confron- brio entre necessidades de cada jornalista e mecanismos
to com Tomlinson antes de sua morte. A importância instituídos para salvaguardar a reputação institucional.
da reportagem, o impulso da testemunha e as técnicas Embora tais mecanismos não impeçam, necessariamente,

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que o profissional construa sua reputação, a necessidade Dados e estatísticas
de transmitir informações de forma segura, rigorosa e
coerente, dentro de prazos ou nos limites de um deter- Para que o jornalismo mantenha sua relevância, gen-
minado produto, pode estar em conflito com o modo te que trabalha na área terá de melhorar seu traquejo
mais eficiente de trabalhar para o jornalista. no uso de dados. À medida que indivíduos, empresas e
Veremos essa questão em mais detalhe no trecho governos vão criando e soltando dados em volumes cada
dedicado a processos. vez maiores, vemos que disponibilidade e acessibilida-
de, no caso de dados, são coisas distintas. Entender a
natureza daquilo que conjuntos imensos de dados ofe-
Bagagem concreta, ou “hard skills” recem, saber compor narrativas e tirar conclusões que
deem sentido a informações talvez falhas ou parciais, é
Conhecimento especializado um trabalho importante. Assim como precisa de gente
com um conhecimento maior de tecnologias da comu-
Hoje em dia, o jornalista precisa, cada vez mais, exi- nicação e ciência da informação, o jornalismo precisa
bir um conhecimento profundo de algo além do ofício converter cientistas de dados e estatísticos em compe-
jornalístico em si. Diante da maior disponibilidade e da tências centrais dentro de seu campo de atuação.
maior qualidade de conhecimentos e comentários de Há uma relação estreita e simbiótica entre redes de
especialistas, a relativa ignorância do jornalismo pro- usuários, jornalistas e dados. Todo jornalista deve ser
fissional fica ainda mais patente. Em áreas como econo- capaz de analisar dados e indicadores que acompanham
mia, ciência, relações internacionais e negócios, a com- seu trabalho e estar ciente de que toda cifra represen-
plexidade da informação e a velocidade à qual o público ta uma atividade humana. Além disso, deve ser capaz
deseja recebê-la, já explicada e contextualizada, deixa de entender feedbacks e interpretá-los de forma corre-
pouco espaço para o típico generalista. ta, para poder melhorar o alcance e o conteúdo daqui-
O custo da contratação de especialistas com profundo lo que produz.
domínio de uma determinada área significa que, cada Em 1979, a especialista em segurança Susan Landau
vez mais, a cobertura jornalística especializada virá de estabeleceu uma distinção entre segredos e mistérios. Ao
gente para quem o jornalismo é só uma atividade a mais tentar entender por que a Revolução Iraniana pegara os
– como os criadores do SCOTUSblog, com seu escritó- Estados Unidos totalmente de surpresa, Landau obser-
rio de advocacia, ou os economistas Nouriel Roubini e vou que a comunidade de inteligência estava focada em
Brad DeLong, com seu trabalho acadêmico e de consul- segredos (buscava entender aquilo que o regime do xá
toria. O conhecimento pode ser geográfico, linguístico vinha ocultando), não em mistérios (aquilo que ocorria
ou em certa disciplina ou área de estudo. com diversos grupos fiéis ao aiatolá Ruhollah Khomeini
O valor da especialização pode estar em técnicas ou que, embora públicos, não eram muito visíveis).
habilidades de comunicação e apresentação. Profissionais Em termos jornalísticos, a cobertura mais famosa
destacados – jornalistas e fotógrafos, especialistas em presente na memória dos Estados Unidos – Watergate
áudio ou vídeo, editores de mídias sociais – vão criar – foi baseada na descoberta de segredos. Alto funcioná-
público para seu trabalho graças à capacidade de iden- rio do FBI, Mark Felt abriu a boca para o repórter Bob
tificar um mercado e de se comunicar com ele. Woodward, do Washington Post – entregou informa-
Meg Pickard, diretora de interação digital do jornal ções cruciais para a cobertura que Woodward e o cole-
britânico The Guardian, descreve o fenômeno da cria- ga Carl Bernstein faziam do governo Nixon. O peso de
ção, pelo indivíduo, de comunidades de nicho em tor- Watergate para a autoimagem da imprensa norte-ame-
no de áreas específicas do conhecimento como geração ricana tradicional segue sendo importante, ainda que
de “microfama contextualizada”. Todo jornalista pre- muitas das grandes coberturas da última década tenham
cisa saber como criar comunidades de conhecimento e girado em torno de mistérios, não de segredos. As fal-
interesses que casem com sua especialização. catruas da Enron e de Bernard Madoff, e a manipula-
A jornalista Sara Ganin – que recebeu um Pulitzer ção da Libor pelo Barclay’s, foram expostas por gente
pela reportagem sobre o abuso sexual de menores pra- de outra área; aliás, a primeira a escrever sobre as frau-
ticado por Jerry Sandusky, ex-técnico de futebol ameri- des da Enron, a repórter da Fortune Bethany McLean,
cano em uma universidade na Pensilvânia – conseguiu não foi endeusada em parte porque aplaudi-la por ter
tal proeza devido a seu traquejo jornalístico, reforça- interpretado e escarafunchado dados de caráter públi-
do em muito pelo conhecimento que tinha do universo co significaria reconhecer que pouquíssimos membros
acadêmico que estava investigando. da imprensa de negócios faziam o mesmo.

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Ainda que o mundo em si tenha ficado mais comple- técnica – ou seja, o jornalista precisa aprender a escre-
xo, o volume de dados disponíveis sobre muitos atores ver código. É verdade que ter verdadeira fluência em
importantes – empresas, políticos, religiosos, crimino- muitas linguagens de programação exige estudo e expe-
sos – cresceu radicalmente. Um dos principais recur- riência, algo que nem todo jornalista vai poder – e nem
sos para a compreensão de mistérios é a capacidade de deveria – adquirir. Mas todo jornalista precisa entender,
esmiuçar dados em busca de padrões que possam estar ainda que num nível elementar, o que é um código, qual
escondidos debaixo do próprio nariz. sua função e como se comunicar com gente que enten-
de da coisa. John Keefe, chefe de uma pequena equipe
Compreensão de indicadores e públicos de programadores na redação da rádio norte-america-
na WNYC, observa que a admissão a escalões cada vez
Um número surpreendente de veículos de comuni- mais baixos já exige um domínio básico de ferramen-
cação que estudamos ainda não emprega ferramentas tas e aplicativos de programação.
de monitoramento em tempo real como Chartbeat ou Um jornalista ouvido por nós, que trabalha em um
Google Analytics – ou, o que é mais comum, não garan- ambiente mais técnico do que a maioria, apontou a fal-
te o acesso de todo jornalista a esses recursos. Entender ta de programadores como um entrave importante ao
como o conteúdo jornalístico é recebido, saber o que progresso de organizações jornalísticas. “Até na redação
torna algo viral e poder conferir o que é lido, ouvido ou com mais recursos a proporção de programadores e jor-
visto (e por quem) são coisas importantes para o jorna- nalistas não passa de um para dez, o que é muito pouco.
lismo. E podem, embora não necessariamente, levar à E a qualidade de muitos programadores nas redações
manipulação do conteúdo para aumentar o número de é bem inferior à de profissionais que trabalham para
pageviews ou de visitantes únicos (merece considera- empresas de tecnologia como Facebook e Twitter”, diz.
ção a decisão do site norte-americano Gawker, cujo edi- Na maioria das instituições, as altas esferas do coman-
tor, A.J. Daulerio, fez circular um memorando deixan- do dão importância a competências comerciais e edito-
do clara a decisão de botar o pessoal para trabalhar, em riais, não ao domínio tecnológico. É algo que preocu-
esquema de rodízio, em uma tática de geração de trá- pa, pois vemos a crescente utilização de plataformas
fego chamada “traffic whoring”) Identificar com fran- independentes que poderiam fornecer um excelente
queza alvos e metas, saber distinguir dados relevantes conjunto de ferramentas para jornalistas (para muitos,
de irrelevantes e reagir retorno recebido são parte do o Twitter seria a ferramenta mais útil para o jornalis-
jornalismo sustentável – e não sua ruína. mo desde o surgimento do telefone), mas que não são
O monitoramento de tendências técnicas e de tráfego inerentemente jornalísticas. Até para o jornalista que
conduz a práticas mecânicas – coisas como otimização nunca vai escrever uma linha de código para uso diá-
de sites (testar links e títulos distintos para garantir a rio, dominar o bê-a-bá da tecnologia é tão importante
melhor posição possível para um artigo em resultados quanto entender o básico da economia.
de buscas no Google) – que não contribuem necessa-
riamente para a imagem do jornalismo. Por outro lado, Narração
facilitar o acesso de um determinado público a um con-
teúdo jornalístico sujeito a filtros é prestar um serviço. Escrever, filmar, editar, gravar, entrevistar, diagramar
O fato de que o público chega a notícias cada vez mais e produzir seguem sendo a base do ofício jornalístico.
por meio de links compartilhados em redes sociais, e não Não falamos muito sobre esses dotes porque não espe-
por agregadores de notícias, tem implicações para repór- ramos que a capacidade elementar de saber identificar
teres e editores. A ignorância geral sobre o modo como e relatar uma história relevante vá mudar, e tudo isso
o público consumia a informação não era um problema segue sendo fundamental para o arsenal de um jornalis-
durante o reinado do modelo industrial. Já no mundo ta. Parte da “alfabetização” tecnológica de um jornalis-
fragmentado e solto de hoje, saber como o público con- ta significa entender como cada uma das competências
some a informação, e se o que você escreve, grava ou acima pode ser afetada por novidades no plano tecnoló-
fotografa chega a quem deveria chegar, é algo crucial. gico ou mudanças no comportamento humano. A narra-
tiva pode ser criada com novos recursos de agregação,
Programação o que implica a compreensão de fontes e a checagem
de material diverso. Um aspecto do trabalho com redes
O jornalismo tem duas grandes barreiras de lingua- e multidões é a capacidade jornalística de agregação.
gem a transpor. Uma é a da estatística e a da capacida- Embora muito jornalista vá torcer o nariz para o exem-
de de interpretar dados. A outra é a da competência plo a seguir, ao falar das fotos de “bichos decepcionados”

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que turbinam o tráfego de seu site, Jonah Peretti (do A síndrome do hamster e Flat Earth News
BuzzFeed) martela a tese de que é preciso muita habi-
lidade para determinar o que torna um conteúdo ape- O processo do jornalismo vem sofrendo uma transfor-
tecível para que outros o compartilhem. Exercícios de mação tão radical pelas mãos de forças tecnológicas e
curadoria e agregação mais sofisticados (como o Brain econômicas que já não há algo que possa ser descri-
Pickings, de Maria Popova) podem provar o mesmo de to como “uma indústria” na qual o jornalista atuaria.
forma mais cerebral ao exibir ensaios sobre a natureza da Nos Estados Unidos, já não há um plano comum de
beleza em vez de cães que são o focinho de líderes mun- carreira, um conjunto de ferramentas e modelos de pro-
diais – embora a competência subjacente seja análoga. dução ou uma categoria de trabalhadores estável e pre-
visível. Antigamente, um emprego no Washington Post
Gestão de projetos pressupunha uma determinada trajetória profissional
– igual a um posto na General Motors. O cargo mais
Com o surgimento de modelos mais eficazes de jor- baixo de redator ou repórter de uma editoria podia ser
nalismo a partir da reconstrução do processo existen- inserido numa trajetória que refletia o produto em si.
te, algo que muitos vêm observando é que o jornalista O que um jornalista fazia na era industrial era definido
está sendo obrigado a deixar o mundo no qual toda sua pelo produto: um redator de títulos, um repórter, um
atividade era focada nos assuntos que cobria. Agora, há editor, um colunista. Quando o fechamento passa a ser
muito mais coisas a considerar. Steve Buttry, que chefia constante, e quando a notícia como “unidade atômica
o programa de capacitação da Digital First Media e está do jornalismo” é questionada, o que o jornalista faz dia-
sempre falando de mudanças na redação em seu blog, riamente passa a depender mais do desenrolar dos acon-
chama isso de “capacidade de gestão de projetos”. Ele tecimentos e do público que consome essa informação.
mesmo explica: é a capacidade de “estar a par de todos Tanto em montadoras de veículos como em veículos
os aspectos do processo e de saber juntar isso tudo para de comunicação tradicionais, há bem menos ocupações
produzir algo que funcione”. do que antes, e em geral distintas. Embora compartilhe
Uma ideia editorial já não tem a primazia que um muitas das características de atividades que sofreram
dia teve num produto estático como um jornal ou bole- uma revolução, como a fabricação de veículos, o jorna-
tim de notícias. Agora, a ideia também precisa funcio- lismo passou por uma mudança muito mais profunda em
nar à luz de um grande número de variáveis, não raro sua constituição. A General Motors ainda fabrica car-
com subsídios de terceiros, e de um jeito tecnologica- ros – que por ora ainda têm quatro rodas, um motor e
mente viável e condizente com o que o público pede. um chassi. Já aquilo que o jornalismo pode ser e o pro-
No novo formato, uma matéria já não é uma unidade, duto do trabalho de um jornalista são muito mais flui-
mas sim um fluxo de atividades. Com a contínua redu- dos, pela própria natureza de tecnologias da informa-
ção dos quadros nas redações, planejar a evolução de ção e distribuição.
uma cobertura, saber por que um trecho de código está No processo de migração do jornalismo de uma ati-
sendo escrito ou imaginar qual será o resultado, objeti- vidade que exigia um maquinário industrial e produ-
vo ou impacto de um conteúdo jornalístico específico zia um produto estático para outra na qual liberdade e
passa a ser importante – bem como definir parâmetros recursos individuais crescem e respondem a necessida-
para monitorar essas metas internas. O corte de recur- des de usuários, a dúvida é saber como cada jornalista
sos nas redações, somado à intensificação da cobertura vai influenciar o próprio processo de trabalho. As prin-
de eventos já bem cobertos – como as primárias presi- cipais diferenças nesse processo são claras:
denciais nos Estados Unidos ou os Jogos Olímpicos –,
produz uma desproporção na cobertura e um desper- • Prazos e formatos de produção de conteúdo já
dício de dinheiro em atividades redundantes. não são delimitados.
Um tema central deste dossiê é mostrar como o jorna- •L  ocalização no mapa perde relevância na coleta
lista terá de cultivar a capacidade de colaboração – com de informações e na criação e consumo do con-
tecnologias, multidões e parceiros – para poder lidar teúdo jornalístico.
com a considerável e crescente tarefa de narrar aconte- •T  ransmissão de dados em tempo real e ativida-
cimentos. Esse trabalho multidisciplinar e colaborativo de em redes sociais produzem informações em
deve começar pela redação (de onde deve fluir o novo estado bruto.
conjunto de competências organizacionais). Para tan- • Feedback em tempo real influencia matérias.
to, o jornalista precisará de mais liberdade para refle- • I ndivíduos ganham mais importância do que
tir sobre processos gerais do jornalismo e aprimorá-los. marca.

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Como todos sabemos, essas tecnologias também aba- deixou a Associated Press para criar o Storify. Ory
laram velhos modelos de negócios do jornalismo. As Okolloh montou a equipe que criou o Ushahidi e, mais
condições nesse meio levaram jornalistas a sentir impo- tarde, licenciou o software de mapeamento de multi-
tência, e não mais influência sobre a própria vida pro- dões para redações; é que seu weblog, o Kenyan Pundit,
fissional. O que Dean Starkman chama de giro inces- não funcionou bem como plataforma para denunciar
sante da “roda do hamster” (correr atrás do público ao mundo a violência étnica que vinha ocorrendo na
transitório com a rápida publicação de matérias cha- esteira das eleições de 2007 no Quênia.
mativas) e o que o jornalista britânico Nick Davies É interessante observar que em 2012, um ano de elei-
expõe no livro Flat Earth News são descrições de um ções presidenciais nos Estados Unidos, vários dos jor-
mesmo fenômeno. nalistas que mais geraram audiência nos veículos de
Reciclar comunicados de imprensa e produzir mais comunicação mais tradicionais do país não eram das
com menos sem nenhuma mudança fundamental em redações, mas sim gente que se projetou por rotas rela-
processos são, sabidamente, práticas inimigas do bom tivamente experimentais – e por conta própria. Nate
jornalismo. A nosso ver, no entanto, o jornalismo do Silver se dedicava à consultoria econômica e a montar
futuro dificilmente seguirá esse modelo, pois pagar modelos estatísticos para o beisebol.
jornalistas para produzir informações de baixo valor é O blog de política que criou – o FiveThirtyEight.com,
insustentável. Se há um espaço e um modelo de negó- incorporado em 2010 ao New York Times – era toca-
cios para a produção às pressas de conteúdo redun- do como um projeto de caráter basicamente anônimo,
dante, o mais provável é que tal modelo tenha suces- nas horas livres.
so nas mãos de empresas como Demand Media ou Há paralelos com a trajetória de Ezra Klein, comen-
Journatic, que se valem de algoritmos e de mão de tarista de economia e política que criou o primeiro
obra barata, terceirizada. blog aos 19 anos e levou sua plataforma (a Ezra Klein)
Um jornalista que produza conteúdo de qualida- primeiro para o American Prospect e, depois, para o
de, independentemente de como é bancado, terá mais Washington Post. Nos dois casos, o risco da inovação e
autonomia e controle sobre o próprio trabalho. E terá, o laborioso processo de angariar público e achar uma
a seu dispor, um público maior e mais diversificado, a posição singular no mercado ficaram a cargo de indiví-
custo baixo ou zero. duos que blogavam com software gratuito – e cujo pro-
Nos últimos tempos, o melhor exemplo de um jor- jeto acabou sendo encampado por veículos de comu-
nalista que soube explorar oportunidades abertas pela nicação que, mesmo dotados de recursos maiores e de
tecnologia fora dos processos da redação talvez seja o uma bela reputação, não tinham conseguido incubar
de Andy Carvin, da emissora norte-americana de rádio esse tipo de talento.
NPR. Instalado em Washington, Carvin tuitou a rit- A próxima fase da evolução verá surtos semelhan-
mo tão frenético sobre a Primavera Árabe em 2011 que tes de genialidade e empreendedorismo individuais
virou o centro de uma rede para o público nos Estados em novas áreas – como visualização, criação de dados,
Unidos e outros jornalistas que acompanhavam os fatos. partilha, agregação. As redações já não encaram blo-
Carvin não se limitou a repetir informações obtidas por gs, Twitter ou coberturas ao vivo com o mesmo receio
outros (como um repórter gerando conteúdo sem parar e incompreensão do passado (e “passado”, aqui, signi-
a partir de material de agências); o que fez, basicamen- fica cinco anos atrás).
te, foi tornar público um processo de bastidores similar Em cinco anos mais, receber dados em tempo real de
à intervenção de editores em uma matéria. Só que em vastas redes de sensores, criar conteúdo automatiza-
vez de permanecer restrita a editores e jornalistas da do, adquirir ou criar tecnologias que reflitam valores
NPR, e ao conteúdo produzido pela rádio, essa inter- jornalísticos, estabelecer parcerias com diversos espe-
venção foi publicada em tempo real no Twitter. Carvin cialistas e instituições e fazer experiências com agre-
acha que foi capaz de enveredar pelo novo caminho em gadores, animadores e performers renomados poderia
parte porque seu cargo oficial – diretor de estratégia ser tão corriqueiro quanto licenciar um blog.
em mídias sociais da rádio – não era visto como edito-
rial em primeiro lugar.
Embora haja muitos outros casos de gente que cha- Como vai mudar o trabalho do jornalista?
coalhou velhos processos do jornalismo, é raro que os
melhores expoentes dessa turma tenham tido liberdade É difícil saber exatamente como vai ser a redação mais
suficiente nas respectivas instituições para desenvolver enxuta, mas já dá para dizer que o trabalho do jor-
seu trabalho (como teve Andy Carvin). Burt Herman nalista típico sofrerá certas mudanças ao longo dos

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próximos anos. Mais uma vez, essa mudança terá gra- toda etapa do processo. Uma redação já não pode arcar
dações: o papel de um editor de textos na revista The com gente em altos cargos que não produza conteúdo.
New Yorker e o processo de produção ali dentro podem Todo editor devia, no mínimo, estar agregando conte-
mudar menos ao longo dos próximos anos do que o de údo e dando links para material produzido ou não pela
um gerente de comunidade ou repórter de dados no organização, fazendo uma meta-análise do processo e
site Nola.com. de fontes, dando continuidade à cobertura com o cul-
O jornalista seguirá atuando em um ambiente de alta tivo e a recomendação de fontes em público.
imersão, adaptando sua rotina de trabalho a um mundo
de conversação e informação contínuas, em tempo real
– o que pode causar tanto cansaço quanto dispersão.
A meta final desse envolvimento contínuo, no entan-
to, é a produção de jornalismo de qualidade, relevân-
cia e impacto elevados. A avaliação de metas e resul-
tados do jornalismo terá caráter rotineiro e público.
A presença de indicadores e dados, ligados tanto ao
mundo externo como à própria atividade do profissio-
nal, serão parte da realidade cotidiana. Feeds de infor-
mações entregues em tempo real – um Twitter de dados
– terão um papel maior em decisões editoriais e em
matérias. Caberá ao jornalista definir a quem perten-
cem esses dados, determinar o que pode ser terceiriza-
do para outras tecnologias comerciais e o que precisa
ser mantido. Programar algoritmos, também.
Jornalistas especializados – animadores, criadores
de charges interativas, redatores, “videomakers”, espe-
cialistas em análise estatística de eleições, especialistas
em interação – estarão sempre buscando entender as
mudanças tecnológicas em sua área e provando novas
ferramentas e técnicas. A evolução do meio editorial
se dará à velocidade da internet, não à velocidade de
redações digitais.
Um jornalista vai dedicar mais tempo a relações de
colaboração – relações que podem envolver tecnólo-
gos (para a criação de sistemas melhores), especialistas
ou acadêmicos em sua área e outros jornalistas (para
a cobertura de fatos, a criação de software e a edição e
agregação do trabalho de terceiros).
Embora todo jornalista já deva estar acompanhan-
do o desdobramento de fatos e tomando parte em dis-
cussões públicas em redes sociais ou seções de comen-
tários, sua capacidade de agregar valor para usuários
com essas técnicas será, cada vez mais, parte de seu
valor como profissional.
Hoje, todo jornalista pode publicar por conta própria.
Uma óbvia consequência da automação da redação é a
diminuição do valor e da utilidade do papel de edito-
res. Visionários no alto das organizações seguirão dan-
do o tom e ditando o rumo editorial de seus veículos,
e talvez cada assunto venha a ter um editor especiali-
zado. O tempo poupado com a organização e a edição
automatizadas de textos, no entanto, reduz drastica-
mente a necessidade de editores para supervisionar

ESPECIAL | REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR  53

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