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Letícia Nedel
Depois dessas duas visitas, vieram outras (até 1969, data da última), pre-
enchidas, nos intervalos, por prefácios e recepções ocasionais oferecidas no
solar de Apipucos a autodenominados discípulos e admiradores do sul. Mas
de todos os encontros, os dois primeiros é que, talvez pelo caráter inaugural
e de mútuo reconhecimento que tiveram, acabaram se tornando lendários
entre os membros do chamado “grupo da Livraria do Globo” com quem Freyre
travou contatos na ocasião. Daquelas visitas ficaram amizades, anedotas e um
repertório escrito (menos copioso, é verdade, do que o anedotário), no qual
o recifense, conhecido por decifrar as diferentes formas de inclusão das re-
giões brasileiras na “civilização lusitana erguida nos trópicos”, ocupava-se da
menos tropical delas e da mais tardiamente incorporada ao império colonial
português. Uma área conhecida, para desgosto de seus representantes, como
o limite daquela civilização2, o estado mais “estrangeiro” do Brasil; aquele que
em 1967, em um artigo de Vianna Moog, ainda era descrito como um desco-
nhecido dos brasileiros.3 E talvez tenha sido esta a maior revelação trazida a
Freyre pelos gaúchos que conheceu: a decisão de se fazerem representar,
a qualquer preço, dentro de limites luso-brasileiros.
A eles, o cientista ofereceu uma espécie de saída metodológica em Con-
tinente e Ilha. Na conferência, o autor procurou dar conta do que chamou
de “heterodoxia cronológica” (e, por que não dizer, étnica) do Rio Grande,
descrevendo a forma particular pela qual o Império Colonial Português teria
sabido estender sua influência de norte a sul do continente americano: no
norte, pelos primeiros portugueses; no sul, pelos luso-brasileiros e açorianos.
A idéia-mestra do trabalho era a de que, ao lado do sentido continental do
esforço colonizador na América, a “civilização atlântica” teria se forjado não
só da forma comum — baseada na expansão de um centro dispersor para
as áreas periféricas — mas através de “ilhas sociológicas” “de coagulação
da energia lusitana em [...] áreas economicamente estratégicas, que depois
se acentuariam em regiões mais amplamente culturais” (Freyre 1943:18;
grifado no original). A sustentação da unidade de um império continental
e submetido a precárias condições de povoamento seria devida, então, a
terem os luso-brasileiros unido “o sentido de arquipélago [...] ao de ilha.
O sentido de ilha ao de continente” (Freyre 1943:21); “um sentido comple-
tando, retificando, corrigindo o outro”. (Freyre 1943:24). Na ponta meridional
do Brasil, a colonização açoriana, feita a partir de casais, seria um fator de
estabilização da conquista portuguesa sobre uma área conflituosa (Freyre
1943:25-26). A densidade adquirida por essa herança ilhoa, suficiente para
deter as influências castelhanas, serviria à assimilação de futuras correntes
migratórias que, uma vez aculturadas, prestariam serviço ao adensamento
do “espírito nacional”.
A RECEPÇÃO DA OBRA DE GILBERTO FREYRE NO RIO GRANDE DO SUL 87
A análise irá deter-se então sobre os dois aspectos menos visíveis desse
processo, à época conhecido como “o advento do gauchismo”: primeiro,
a especificidade do momento em que as interpretações de Freyre sobre o
ethos nacional passam a servir de modelo para a compreensão do passado e
da cultura sul-rio-grandenses; segundo, as escolhas e os constrangimentos
implícitos à adoção de postulados culturalistas por membros da comunidade
intelectual gaúcha.
De fato, essas questões não mereceram até agora uma análise especí-
fica, a despeito de se fazerem candentes na documentação bibliográfica da
década de 50. Os estudos de referência sobre a historiografia sulina ainda
ignoram quaisquer tentativas de inovação conceitual ou temática levadas
a efeito no período indicado, privilegiando uma cronologia que se estende,
sem qualquer ponto de inflexão, dos anos 20 aos 70 (Gutfreind 1989, 1995;
Almeida 1983; Torres 1997). Ressaltam-se, nessas análises, o interesse qua-
se exclusivo pela hagiografia política, o “ecletismo teórico” de intelectuais
polígrafos e autodidatas, a fusão e o aproveitamento dos determinismos de
Ratzel e de Spencer com a famosa tríade taineana baseada no meio-raça-
momento. No entanto, passa em branco o impacto das interlocuções travadas
com intelectuais de outros estados e de diferentes áreas do conhecimento
sobre a pesquisa por eles produzida.
Curiosamente, o desejo manifesto de atualização profissional, entendido
como meio de superar o isolamento dos debates paroquiais, atravessa de
ponta a ponta os projetos intelectuais sustentados por autores gaúchos dos
anos 1940-1960. Tais projetos foram abordados em dois momentos de minha
trajetória acadêmica. Por isso, antes de avançar no assunto propriamente
dito, parece interessante recuperar um pouco do itinerário de pesquisa que
conduziu ao tema do texto. A oportunidade vale para sistematizar alguns
pontos que se encontram dispersos nos estudos anteriores, retirar dali o
essencial e com ele fazer uma espécie de balanço da participação de Freyre
em uma controvérsia durável na historiografia local: refiro-me às formas de
inclusão do Rio Grande no arcabouço cultural brasileiro.
***
Nação e região
[...] o romance regionalista do Nordeste torna-se, a partir dos anos 30, o símbolo
do romance tipicamente nacional. São os lugares de origem dos romancistas
mais reconhecidos que se deslocam — de Rio e São Paulo para esta região, e
são os assuntos tratados, o quadro da ação, a linguagem e o estilo que passam
do romance urbano, do fim do séc. XIX, a um romance que retrata a decadência
das plantações tradicionais (Garcia Jr. 1993:31).
[...] despreza-se tudo o que a história política e militar nos oferece de empolgante
por uma quase rotina de vida. [...] dentro dessa rotina é que melhor se sente o
caráter de um povo. Estudando a vida doméstica dos antepassados sentimo-
nos aos poucos nos completar: é outro meio de nos sentirmos nos outros — nos
que viveram antes de nós; e em cuja vida se antecipou a nossa. É um passado
que se estuda tocando em nervos; um passado que emenda com a vida de cada
A RECEPÇÃO DA OBRA DE GILBERTO FREYRE NO RIO GRANDE DO SUL 99
Toda vez que recebíamos um original versando sobre a história do Rio Grande do
Sul ou uma biografia de seus homens ilustres, eu ficava um tanto desanimado —
um livro relatando as proezas dos valentes gaúchos que por séculos a fio ha-
viam defendido as nossas fronteiras, ou dos políticos que haviam conseguido
consolidar o prestígio do Rio Grande do Sul no cenário nacional despertava um
interesse minguado. Para falar a verdade, um minguadíssimo interesse, que se
restringia tão-somente às fronteiras do estado. [...] as tiragens [...] eram de 2 mil
exemplares e em média levavam cinco anos para se esgotar quando vendidas
nas livrarias (Bertaso 1993:142).
Tudo indicava que aos olhos dos consumidores de livros o gaúcho detinha
um poder menor de evocação das qualidades essenciais ao brasileiro, sobretu-
do em comparação à figura do sertanejo. Como elemento folk, ele se prendia
a uma história particular, e não raro acusada de ser culturalmente deficiente
pelos próprios conterrâneos. Assim é que, tentando encaminhar nos anos 70
A RECEPÇÃO DA OBRA DE GILBERTO FREYRE NO RIO GRANDE DO SUL 101
Por que o leitor carioca, mineiro, paulista — falo grosso modo — prefere um José
Lins do Rego a um Cyro Martins? [...] Denúncia social por denúncia social, ela
é muito mais cortante, para dar um exemplo, em Sem Rumo (1937) do que em
A Bagaceira ou Capitães de Areia, ambos editados na mesma data. [...] (César
1994:170-171).
Região periférica distante do Centro, zona de formação mais nova que o Nordes-
te, cujas linhas de força, no processo social, foram deitadas no espaço brasileiro
desde os primeiros dias da Colonização, o Rio Grande do Sul tinha a seu desfavor,
como elemento oferecido ao exercício do sentimentalismo do leitor, a ausência
da seca. [...] O cambiteiro, a virar cana e bagaço de cana diante das moendas,
naquele ambiente que Nabuco, usando a palavra justa, chamou de microcosmo,
é um ser complexo. Tem interesse como homem sofrido e como homem produtor
de... Folclore. É versátil, sabe cantar, dançar, rezar; ri; [...] Ora, o gaúcho, na
solidão da Campanha [...] Produz menos “fatos” de cultura (César 1994:171).
Apoiemo-nos mais uma vez no autor de Casa Grande & Senzala: “Simplicidade
de expressão, simpatia humana pelos assuntos cotidianos e pelo mais próximo
de todos nós — o nosso passado íntimo”. Isto significa que devíamos substituir
a romântica perspectiva do conjunto da história, do lendário, dos costumes e
da paisagem, pelo enfoque realista, no sentido do aproveitamento crítico, com
finalidade criadora, das próprias vivências e da dramática social. E para que não
houvesse uma discordância entre o método e a técnica, precisávamos começar
pela ampliação do material a explorar. Até bem pouco o nosso regionalismo
estava limitado à campanha. E nesta, à estância. E nesta, no galpão.24
Toda. Todos nós sofremos a influência dele. [...] Ele foi um dos primeiros a
estudar a história brasileira sob o ponto de vista social. A sociologia brasileira
nasceu com Gilberto Freyre. Foi muito bonito, porque ele mostrou que devia-
se interpretar a história, e não só revelar datas. [Seus ensinamentos foram]
Primeiro: voltarmos pros assuntos brasileiros, foi o primeiro passo. Segundo:
os assuntos locais. E terceiro: só estudar a história da terra da gente. Se tem
uma história da França, é da França e acabou-se. E nós, do Rio Grande? Quem
é que vai estudar? (Laytano 1998).
A RECEPÇÃO DA OBRA DE GILBERTO FREYRE NO RIO GRANDE DO SUL 105
em que tudo parece acontecer por obra e graça de uma Divina Providência
Gaúcha. [...] (Meyer 2002 [1960]:40; grifos meus).
Outro dos críticos de primeira hora foi Dante de Laytano, secretário re-
gional da Comissão Nacional de Folclore. Para ele, a relevância dos estudos
sobre o contingente de afro-descendentes significou, ao lado da ênfase aço-
riana sobre o luso-brasileirismo rio-grandense, uma causa constantemente
defendida na carreira como historiador e folclorista. Em diversos escritos27 o
historiador volta à carga na defesa desse objeto. Na monografia sem data de
publicação, lançada pelos cadernos da Comissão Gaúcha de Folclore com o
título a “A Igreja e os Orixás”, a conclusão é francamente polemista:
[As] “Casas de Batuque” de Porto Alegre são uma resposta franca aos pes-
quisadores de superfície que negam, com desprezo, a realística presença do
negro na própria História do Rio Grande do Sul. Não apenas na etonografia
[sic] religiosa. Nas curiosidade[s] das práticas africanas transmitidas intactas
através de gerações. [...] Os Batuques foram, no sentimento possível, refúgios
espirituais da raça negra massacrada (Laytano s/d:60).
Ao passo que entre os gaúchos era a indumentária masculina que brilhava, entre
os negros entrados [...] como bichos, era exatamente a indumentária feminina,
a vestimenta das pretas, que dava o tom, oferecendo, pela sua composição e
colorido, um interesse folclórico que o traje do crioulo não oferecia, como não
oferecia por seu turno o da escorrida chinoca pampeana com sua saia de chita
tão vulgar quanto o vulgaríssimo calção do mísero escravo lanhado, do tempo
do carimbo e do palanque (Ferreira 1954:93).
Notas
1
(IHGRS 1940:CCCXXV). Estavam presentes, além dos demais sócios do Ins-
tituto, de Gilberto Freyre e de Getúlio Vargas, os interventores do Rio Grande do Sul,
de São Paulo, de Santa Catarina, representantes dos interventores de Minas Gerais e
Paraná, do governo de Pernambuco, o comandante da III Região Militar, secretários
da Educação, Fazenda e Agricultura do RS, representantes dos secretários de Obras
Públicas e Interior e o historiador Moysés Vellinho, na condição de vice-presidente
do Departamento Administrativo.
2
Não casualmente, José Lins do Rego, ao comentar aquela primeira viagem no
prefácio à Região e tradição, retratou o estado como uma espécie de campo de provas
para as teses lusitanistas do amigo: “Na nossa viagem ao Rio Grande, dezesseis anos
após o Congresso Regionalista do Recife, as idéias todas de Gilberto Freyre foram se
encontrando com ele na realidade. Todas elas confirmadas no contato com a gente e a
terra que mais cultivavam as suas particularidades e eram, no entanto, tão irmãos dos
nordestinos, dos baianos, dos mineiros, de todo o Brasil. O Rio Grande foi um campo
prodigioso para o sociólogo confirmar e sentir a força da colonização portuguesa.
O que ele sustentara em Casa Grande e Senzala víamos ali ao nosso contato. Casas,
móveis, jeitos de falar, de andar, de sentir, de comer, de rezar e por tudo isto bem à
mostra a marca lusitana, o açoriano de cara comprida de Rio Pardo vivo e bulindo
ainda por toda a parte. O Brasil era o mesmo, era a grande unidade que nem meio
século do estadualismo pudera corromper” (Lins do Rego 1941:20).
3
O artigo “O Rio Grande, esse desconhecido” integrava a reportagem intitulada
“O deslumbrante Rio Grande do Sul”, publicada pela revista Manchete. A referência
consta do depoimento prestado por Viana Moog em Simpósio realizado na UFRGS,
alusivo aos 50 anos da Revolução de 1930. Vide Moog 1983:614-627, 621.
4
“O Regionalismo no Sul”. Folha da Manhã, Recife. Reproduzido na revista
Província de São Pedro, 1(2):172-173, set. 1945.
110 A RECEPÇÃO DA OBRA DE GILBERTO FREYRE NO RIO GRANDE DO SUL
5
Neste quadro, “tanto mais [as entidades locais] não podem ser pensadas como
conflitantes entre si, quanto mais mantenham trocas econômicas e demográficas
desiguais” (Thiesse 1997:5).
6
Carta a Manuel Bandeira, SP, 2/6/1928.
7
Ao analisar os conteúdos trabalhados pelo Almanach Litterário de São Paulo, Antô-
nio Celso Ferreira comenta que já nos vinte anos anteriores à proclamação da República,
a elite política e intelectual paulista travava intensas discussões sobre a necessidade de
conferir ao estado um papel político e cultural compatível com o surto progressista que
acompanhou a expansão da lavoura cafeeira. Nesse contexto, “O progresso recente da
província mal começara a ser assimilado no conjunto do país [...]. Os heróis paulistas ainda
não figuravam nas narrativas históricas nacionalistas: eles viriam num futuro próximo,
como resultado de uma construção textual que apenas se iniciava” (Ferreira 2002:44).
8
“Entre 1925 e 1926, os verde-amarelos rompem com os grupos Terra Roxa e
Pau-Brasil. Desencadeia-se a partir de então uma verdadeira polêmica que tem como
pano de fundo a questão da relação regionalismo-nacionalismo. Para os verde-ama-
relos, as demais correntes modernistas cometem um erro fundamental: encaram o
regionalismo como motivo de vergonha e de atraso. Isto acontece, segundo seu ponto
de vista, porque esses intelectuais teimam em ver o Brasil ‘com olhos parisienses’, o
que leva, em decorrência, a que qualquer manifestação de brasilidade seja reduzida
a regionalismo” (Velloso 1993:98).
9
As particulares refrações do Modernismo no Rio Grande do Sul foram exami-
nadas aprofundadamente por Lígia Chiapini de Moraes Leite. Analisando a prosa
literária dos anos 20 e 30, a autora conclui que “os gaúchos receberam um Moder-
nismo já diluído, o verde-amarelo, ao qual foram especialmente sensíveis porque
lhes fornecia modelos para o canto apoteótico da terra e da raça”. A mesma autora
destaca que “o Modernismo foi responsável em grande parte por um clima propício
à incrementação do Regionalismo e por uma releitura da tradição [na qual] contos
tinham uma função de propagandear os valores gaúchos, como auxiliar na projeção
política e econômica do Rio Grande, junto ao Poder Central” (Leite 1978:19-21). Sobre
as tematizações do regionalismo paulista, ver Ferreira 2002 e Velloso 1993:123-ss.
10
Houve pelo menos três tentativas anteriores à criação definitiva do IHGRS,
em 1920. A primeira, em 1845, a segunda, em 1860 e uma terceira, em 1917. Refe-
rências a esses ensaios encontram-se às páginas 118, 119, 121, 122 e 123 do primeiro
número da revista do Instituto, publicado em 1921. Os oradores chamados ao púlpito
na sessão inaugural do IHGRS são unânimes em lamentar o atraso com que o Rio
Grande, “possuindo elementos intelectuais em nada inferiores aos coirmãos”, funda
sua própria academia histórica, “atestado da cultura e do civismo dos povos” quando
“em quase todos os Estados da república existiam sociedades, institutos, revistas
histórico-geográficas, etc.” (Revista IHGRS, n.1, p.119). Na ocasião da inauguração,
o então tenente Souza Doca estende-se em considerações sobre as motivações e as
responsabilidades dos sócios, “sobretudo agora, que se aproxima o primeiro cente-
nário de nossa emancipação política”, desejando “que o Rio Grande do Sul possa
A RECEPÇÃO DA OBRA DE GILBERTO FREYRE NO RIO GRANDE DO SUL 111
apresentar-se condignamente na magna data; que sejam por uma vez desfeitos os
erros, as inverdades, as falsas apreciações que correm o mundo em livros de autores
estrangeiros sobre o Rio Grande” (Revista IHGRS, n.1, p.120).
11
Como marcaram Marlene Medaglia (1983) e Ieda Gutfreind (1989; 1995), os
jovens e instruídos propagandistas da República foram os primeiros a manifestar uma
linha de interpretação do passado que enfatizava o isolamento geográfico da região, a
tardia ocupação do estado pela Coroa portuguesa, a insignificância de indígenas e negros
para sua configuração étnica, o separatismo farroupilha, a proximidade física e cultural
do Rio Grande com os países platinos (correspondente à presumida falta de afinidade
com o Brasil), além da preeminência de um “regime democrático” de relações sociais
entre patrões e empregados, “irmanados” pela vida rústica da campanha. Essa ênfase
particularista permaneceria dominante na historiografia até o final da revolução de 1923,
em consonância com o discurso político-ideológico perrepista. O patrulhamento a essas
teses autonomistas inicia-se com a criação do IHGRS e se fortalece ao longo dos anos
30, quando os sócios do Instituto se aliam à cruzada política aliancista. A partir daí, os
memorialistas trataram de legitimar documentalmente a oposição ingênita das duas
variedades do gênero gaúcho — platina e brasileira — em teses que tomavam as relações
entre o que viria a ser o Rio Grande do Sul e o Prata como a história da resistência dos
brasileiros aos invasores espanhóis. A realização do Primeiro Congresso de História e
Geografia Sul-rio-grandense como parte do calendário festivo do Centenário Farroupi-
lha, em 1935, representa o momento de consolidação desta tendência enquanto evento
aglutinador dos profissionais encarregados do reenquadramento da memória regional.
12
Um dos efeitos mais imediatos do Modernismo sobre o cenário literário gaúcho
foi a retomada dos autores fundadores do regionalismo. Em alguns casos, como a
obra de Alcides Maya, essa retomada é crítica; em outros, como a de Simões Lopes
Neto, que em 1926 inicia sua carreira póstuma, é entusiasmada. Em casos como o
de Antônio Chimango, a popularidade vinha em uma linha de continuidade desde
a publicação. Guilhermino César informa que a movimentação modernista rebenta
exatamente no auge dessa popularidade (1994:51).
13
“A década de trinta assinala o decréscimo da participação do conto na litera-
tura gaúcha, após dois decênios de uma produção significativa do gênero [...]. Com
a ascensão do romance, o conto é relegado a um segundo plano, passando por uma
fase intervalar de cerca de três décadas, caracterizada pela convivência do regio-
nalismo com um incipiente conto urbano [...] enquanto o romance diferenciou-se a
partir de 30, o conto persistiu na matriz regionalista tradicional até os anos cinqüenta”
(Bittencourt 1999:31-32).
14
Com a criação da Frente Única Gaúcha (FUG), em 1929. A frente era integrada
pelos partidos Republicano Rio-grandense (PRR) e Libertador (PL), coligados para
darem apoio à Candidatura de Vargas pela Aliança Liberal.
15
Trata-se do tópico final do IV capítulo da obra A Província de São Pedro.
Interpretação histórica do Rio Grande, publicada pela Editora Globo em 1930. O texto
integra a antologia compilada por Chaves (1979:78-81).
112 A RECEPÇÃO DA OBRA DE GILBERTO FREYRE NO RIO GRANDE DO SUL
16
Carta a Rui Cirne Lima, 25/6/28. Citada por Zilberman (1998), como epígrafe
do livro Roteiro de uma literatura singular.
17
Os dois renomados membros da Academia Brasileira de Letras denunciaram
a penúria “positivóide” vivida por um estado passível de ser definido como “corpo
estranho na Federação Brasileira”, uma região economicamente “atrasadíssima”,
“lugar onde somente poderia vicejar um caudilho do estilo hispanoamericano (como
Castilhos) — um ambiente de nômades ‘semibárbaros’” (apud Love 1975:111).
A mesma estranheza expressou Simão de Mântua (pseudônimo do jornalista João
Lage), referindo-se, na Revista do Brasil, à fantástica “Comtelândia” do sul, ao sono
profundo em que mergulhara ao término do primeiro parágrafo de um panfleto posi-
tivista (idem:112). Mais indiretamente essa crítica aparece em Alcântara Machado,
que na “primeira dentição” da Revista de Antropofagia, em 1928, atribuiu “quase
todas as tolices iniciais da República” aos “austeros namorados póstumos de dona
Clotilde” (Machado 1976 [1928-1929]:s/p).
18
Segundo Gilberto Freyre, o Manifesto Regionalista teria sido escrito em 1926
para ser apresentado no I Congresso Regionalista, realizado em Recife e promovido
pelo Centro Regional, do qual o poeta regionalista Odilon Nestor viria a ser presi-
dente. Publicado pela primeira vez em 1952 pela editora Região, em versão, como
de hábito, retocada, e sem que Gilberto Freyre assumisse essa alteração, o manifesto
causou estardalhaço na imprensa. Wilson Chagas desconfiou da afirmativa de Freyre,
e Joaquim Inojosa, crítico do tradicional Jornal do Comercio (onde também Freyre e
Nestor escreveram regularmente), acusou-o de fraude. No livro O Movimento Mo-
dernista em Pernambuco, publicado em 1968, enumera documentos comprobatórios
de sua precedência, em relação a Freyre, na introdução e na divulgação do Moder-
nismo no Recife. A versão aqui utilizada está disponível na internet: http://www.
ufrgs.br/cdrom/freyre/comentario.html (consulta em março de 2004), sem paginação.
As informações expostas acima constam do comentário de Antônio Dimas, que
acompanha o texto na rede.
19
As mais importantes coleções voltadas para revelar os aspectos marcantes
da realidade nacional, nas décadas de 30, 40 e 50, foram A Brasiliana (criada em
1931 pela Companhia Editora Nacional e dirigida por Fernando de Azevedo), a
Documentos Brasileiros (criada em 1936 pela José Olympio e dirigida, entre 1936-
1939, por Gilberto Freyre; entre 1939-1959, por Otávio Tarquínio de Souza e, final-
mente, a partir de 1962, por Afonso Arinos de Mello Franco) e a Biblioteca Histórica
Nacional, editada pela Martins e criada pelo fundador José de Barros Martins, em
1940. Segundo Pontes, a diferença entre as duas primeiras coleções é “sobretudo
regional, enquanto a primeira é mais ligada ao campo intelectual carioca e nordes-
tino — que parece atribuir maior distinção ao exercício da literatura e da crítica —
a segunda acompanha mais de perto o movimento intelectual e cultural de São Paulo,
o que explica [em razão do aparecimento da USP e à ascensão da sociologia como
disciplina] o aumento do peso dos trabalhos sociológicos, estrito senso, ao longo de
sua trajetória” (Pontes 1988:74). Nos anos 60, esse modelo das coleções já estava
superado em favor de novos paradigmas explicativos; as análises sociológicas teriam
primazia em relação à literatura e à produção ensaísta histórico-biográfica (Pontes
A RECEPÇÃO DA OBRA DE GILBERTO FREYRE NO RIO GRANDE DO SUL 113
1988:79). Sobre a concorrência da José Olympio com as outras editoras, ver Sorá, 1998.
A posição da Globo nesse mercado também foi abordada na tese de Sorá, na segunda
parte, intitulada “Gênesis de um pólo estrangeiro no espaço editorial”.
20
Of. 337, 28/6/54, de Dante de Laytano a José Honório Rodrigues. Museu Julio
de Castilhos, Correspondência Expedida 1954, v.1, AP 1031.
21
A observação teria sido feita, segundo Moysés Vellinho, por Afonso Arinos
de Melo Franco, ao contrastar a literatura do norte com a do Rio Grande do Sul em
Mar de sargaços. A resposta de Moysés Vellinho pode ser vista no editorial da re-
vista Província de São Pedro 2(6):5-6, set. 1946, e em “Evocação de Afonso Arinos”,
conferência proferida no Conselho Federal de Cultura e publicada no Caderno de
Sábado do Correio do Povo (P. Alegre, 9 nov. 1968). A questão da linguagem como
marca de expressão própria a uma literatura brasileira seguia sendo, passadas quase
três décadas do movimento modernista, um item primordial nas análises críticas de
autores e obras. Neste sentido, Afonso Arinos chegou a ser comparado com Gilberto
Freyre, “outro autor que também estuda o universal em função do nacional”, e que,
como Arinos, “jamais esquece sua carteira de identidade” (Correa 1948:48). A obra
crítica de Afonso Arinos consta dos livros Espelho de três faces (1937); Idéia e tempo
(1939); Mar de sargaços (1944); Portulano (1945), e O som do outro sino (1978).
22
Desde o primeiro lançamento de Prosa dos pagos, em 1943, mas sobretudo
a partir da década seguinte, com os estudos Guia do folclore gaúcho e cancioneiro
gaúcho, respectivamente lançados em 1951 e 1952, Meyer acumula às consabidas
qualidades de crítico e poeta, a autoridade do pesquisador social, preterindo a poe-
sia em prol de novas intenções que exploram o potencial documental da atividade
literária, em especial da literatura regionalista.
23
Martins, Cyro. “Introdução”. In: Sem rumo (romance). 6.ed. 1997. Porto Ale-
gre: Movimento. p.14-ss. (1.ed., 1937). Ensaio originalmente publicado em 1944.
A versão aqui utilizada encontra-se disponível na internet, sem dispor da paginação
original. Ver http://www.celpcyro.org.br/coluna_int.asp?codigo=24. Acesso em 21
de novembro de 2002.
24
Idem.
25
A aula foi enviada ao “mestre” um ano mais tarde: “As notícias do ilustre
amigo cessaram misteriosamente e não tive nunca mais nem ao menos um cartão
de tantas dessas suas viagens. Mando-lhe uma aula inaugural feita ano passado,
na qual lhe cito várias vezes [...] e entrei em diversas liberdades. Uma tentativa de
estudar um dos aspectos de sua bela obra, pedindo que me desculpe a intromissão,
mas nos meus cursos o exame de seus livros é um elogio obrigatório”. Carta de Dante
de Laytano a Gilberto Freyre, 31/03/54. Museu Julio de Castilhos, Correspondência
Expedida, v1-1954, AP 1031.
26
Estas eram entendidas à época como um domínio temático preferencial da
“sociologia”, enquanto as “influências” étnicas subjacentes a tais manifestações per-
114 A RECEPÇÃO DA OBRA DE GILBERTO FREYRE NO RIO GRANDE DO SUL
27
Além de abordar a questão a partir do aspecto filológico — nos artigos com-
pilados em O linguajar do gaúcho brasileiro (1981) — e folclórico — em Folclore do
Rio Grande do Sul (1987), este também uma recompilação revisada dos trabalhos
apresentados em congressos de História e Folclore — nas memórias de 1986 são
muitas as passagens dedicadas ao tema. Nelas, o autor não deixa de confirmar a
tese da escassez demográfica da população negra, mas contrapõe a ela sua relevân-
cia cultural, confirmada pela presença nas expressões de religiosidade popular, na
linguagem e nos costumes (Laytano 1986:89).
28
Contrariamente aos ditames historiográficos segundo os quais o regime de
trabalho escravo no Rio Grande ter-se-ia limitado à indústria do charque, a narrativa
construída pelo autor destaca: “Com a escravidão, muito estancieiro chegaria mes-
mo a dispensar o assalariado. Comprava os quinze ou vinte anos que podia dar-lhe
o trabalho de um negro escravo por quantia correspondente à quadragésima parte
do total empenhado em pagamento de um peão, no mesmo período. O peão pobre,
o proletário rural, aprendia portanto bem cedo esta dura experiência: de nada lhe
servia a aptidão para o trabalho” (Meyer 2002 [1960]:26).
29
Segundo Guilhermino César, a crítica local imediatamente identificou na nove-
la uma metáfora urbana da lenda do Negrinho do pastoreio (César 1994:139-140).
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O trabalho, publicado com fotos ilustrativas, foi republicado no livro Proble-
mas brasileiros de antropologia, editado pela Casa do Estudante do Brasil, em 1943.
Em 1946, foi incluído na revista Província de São Pedro, 2(7):10-15. Também se en-
contra disponível na web:http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos/su-
gestoes_estudos.htm. Já o estudo de Athos Damasceno Ferreira, intitulado “Sacadas
e sacadinhas porto-alegrenses”, saiu na Província de São Pedro, 1(2): 63-76, Porto
Alegre, set. 1945. Acompanham-no ilustrações em bico de pena feitas pelo próprio
autor, que também era desenhista de ocasião.
A RECEPÇÃO DA OBRA DE GILBERTO FREYRE NO RIO GRANDE DO SUL 115
Referências bibliográficas
Resumo Abstract
É no contexto do pós-Estado Novo, quan- The period in the wake of the Novo Es-
do o revisionismo toma conta da produ- tado (New State), when revisionism took
ção historiográfica sul-rio-grandense, hold of historiographic production in Rio
que os escritos de Gilberto Freyre obtêm Grande do Sul, provided the context for
maior repercussão entre a intelectualida- the writings of Gilberto Freyre to acquire
de sulina. O artigo detém-se sobre as mo- a greater influence among the southern
tivações desse alinhamento tardio com intelligentsia. The article investigates
as opções analíticas do autor recifense. the reasons for this delayed alignment
Em um momento marcado pela ascen- with the analytic model of the Recife
são das ciências sociais e pela perda de author. At a time marked by the rise of the
autoridade das narrativas históricas até social sciences and the loss in authority
então centradas no papel integrador dos of historical narratives centred on the
heróis militares, historiadores e críticos integrating role of military heroes, local
locais atuam conjuntamente em favor historians and critics combined forces to
da reversão dos motivos que apartavam reverse the motivating factors that had
a produção textual da “província” dos previously separated the textual produc-
temas em voga no centro do país. Nesse tion of the ‘province’ from the themes in
passo, fez-se mister a aproximação da fashion in the intellectual ‘centre’ of Bra-
História com o Folclore, este apreendido zil (Rio de Janeiro and São Paulo). This
não mais como um ramo da filologia ou step required closing the gap between
do regionalismo literário, mas sob um History and Folklore, meaning the latter
viés “sociológico”. was no longer apprehended as a branch
Palavras-chave: Pensamento Social of philology or literary regionalism, but
Brasileiro, Rio Grande do Sul, Folclore, as an area of study to be approached from
Historiografia, Regionalismo a ‘sociological’ angle.
Key words: Brazilian Social Thought,
Rio Grande do Sul, Folklore, Historiog-
raphy, Regionalism