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Escravidão e hierarquias sociais na fronteira sul do Rio Grande de São

Pedro nas primeiras décadas do século XIX: notas iniciais de pesquisa

Gabriel Aladrén
Doutorando UFF / Prof. Substituto UFRJ

O objetivo deste trabalho é apresentar reflexões sobre a escravidão e as hierarquias


sociais na fronteira sul do Rio Grande de São Pedro, nas primeiras décadas do século XIX.
Trata-se de apontar alguns resultados iniciais de pesquisa, que pretendem caracterizar a
importância da escravidão na fronteira do Rio Grande de São Pedro com a Banda Oriental,
bem como afirmar sua centralidade na estruturação hierárquica daquela sociedade.
Durante largo espaço de tempo, a historiografia considerou a escravidão praticamente
irrelevante para a economia e a sociedade rio-grandenses. A partir da década de 1960, há uma
mudança generalizada de perspectiva, quando se advoga o caráter fundamental do escravismo
no Rio Grande do Sul oitocentista.1 Entretanto, ainda que esses estudos tenham sido
essenciais para a revitalização da historiografia da escravidão no Rio Grande, tendia-se a
interpretar o trabalho escravo como fundamental e estruturante somente nas atividades
econômicas da produção do charque.
Na década de 1990 ocorreu nova mudança de perspectiva. Pesquisadas baseadas na
análise de inventários post-mortem e outras fontes tratadas com uma metodologia quantitativa
revelaram a disseminação da posse de escravos e sua utilização nas mais diversas atividades
produtivas rio-grandenses, nos séculos XVIII e XIX.2
A partir destas constatações, pode-se avançar na tentativa de caracterizar as formas
que a escravidão assumiu na fronteira do Rio Grande com a Banda Oriental. Em primeiro
lugar, deve-se destacar que, não apenas na economia charqueadora e nas atividades agrícolas
o trabalho escravo era fundamental. A produção pecuária – que dominava, embora não de
forma exclusiva, a paisagem fronteiriça no século XIX – era realizada com o concurso da
mão-de-obra cativa, não apenas no Rio Grande.

1
Cardoso, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003 [1962]; Maestri Filho,
Mário José. O escravo no Rio Grande do Sul. A charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre:
EST, 1984; Corsetti, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. Dissertação de
mestrado. Niterói: PPGH/UFF, 1983.
2
Zarth, Paulo A. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Unijuí, 2002;
Osório, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2007.

1
Analisando de forma pormenorizada uma estância em Entre Ríos (província localizada
na atual Argentina) em fins do período colonial, Julio Djenderedjian constatou a ampla
utilização de escravos na criação do gado, tanto nas tarefas permanentes quanto nas sazonais.
O autor observa que a posse de cativos, longe de significar um investimento que imobilizava
o capital e consequentemente desprovia o estancieiro de recursos para se proteger das
oscilações de preços do couro no mercado internacional – a estância analisada voltava-se
predominantemente para a exportação de couros – consistia em uma garantia incontestável de
força de trabalho. Em princípios do século XIX, os preços dos salários dos peões livres
aumentaram, sobretudo nos períodos de colheita do trigo – quando eles preferiam retornar às
suas casas para auxiliar seus familiares – de modo que ficava muito dispendioso para o
estancieiro contratar trabalhadores para dar conta das tarefas envolvidas na criação de gado,
em especial nos momentos de pico. Por outro lado, Djenderedjian sugere que os escravos
também faziam parte das milícias particulares dos estancieiros que, em uma região de
fronteira constantemente atribulada por conflitos militares e atividades de grupos de guerrilha,
era um fator fundamental para a proteção das propriedades e dos rebanhos.3
Na fronteira do Uruguai com o Brasil, verificou-se inclusive a realização de contratos
de peonagem, ao longo do processo de abolição da escravatura no país, que estabeleciam
relações de trabalho semelhantes às escravistas – com contratos de trabalho que duravam
freqüentemente 25 anos –, o que demonstra o vigor de relações sociais de produção análogas
à escravidão na Banda Oriental durante o século XIX.4 No Rio Grande de São Pedro, a
situação não era muito diferente. Vejamos alguns dados populacionais:

3
Djenderedjian, Julio. “¿Peones libres o esclavos? Producción rural, tasas de ganancias y alternativas de
utilización de mano de obra en dos grandes estancias del sur del litoral a fines de la colonia”. In: Terceras
Jornadas de Historia Económica. Montevidéu: Asociación Uruguaya de Historia Econômica, 2003.
4
Borucki, Alex; Chagas, Karla e Stalla, Natalia. Esclavitud y trabajo: un estudio sobre los afrodescendientes en
la frontera uruguaya (1835-1855). Montevidéu: Pulmón Ediciones, 2004, pp. 138-147; 174-198.

2
Quadro 1
População do Rio Grande de São Pedro no ano de 1807
Qtde. %
Brancos 27.107 61,1
Índios 1.008 2,3
Pardos Libertos 1.688 3,8
Pretos Libertos 1.070 2,4
Pardos Cativos 1.113 2,5
Pretos Cativos 12.356 27,9
Total 44.342 100
Fonte: Mappa geral de toda a População existente na Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul no anno de
1807. Códice 808, vol. 03. Arquivo Nacional – Rio de Janeiro.

No conjunto da capitania, os escravos correspondiam a 30,4% da população. Os


libertos, por sua vez, perfaziam 6,2%, enquanto brancos e índios somados chegavam a 63,4%.
Entretanto, se analisarmos de forma separada a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da
Cachoeira, um município que compreendia territórios das fronteiras sul e oeste da capitania, a
situação modifica-se:

Quadro 2
População da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira
no ano de 1807
Qtde. %
Brancos 1.545 51,22
Índios 133 4,40
Libertos 149 4,94
Cativos 1.189 39,42
Total 3.016 99,98
Fonte: Mappa geral de toda a População existente na Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul no anno de
1807. Códice 808, vol. 03. Arquivo Nacional – Rio de Janeiro.

Note-se que havia uma proporção de escravos realmente significativa, nos moldes das
regiões escravistas voltadas para a agroexportação. Não possuo dados que me permitam
caracterizar de forma precisa a alocação desses escravos no conjunto das atividades
econômicas da região. Mas, à semelhança do que ocorria no conjunto da capitania,

3
possivelmente eles desempenhavam as mais variadas tarefas: agricultura, criação de gado,
trabalho doméstico e atividades manuais com diversos graus de especialização.
Nesse contexto, de uma sociedade de fronteira profundamente ancorada – tanto
economicamente como do ponto de vista das relações sociais – na escravidão, não deve causar
assombro um episódio ocorrido poucos anos após a Independência do Brasil. No dia 1º de
outubro de 1824, os vereadores da Câmara de Cachoeira receberam um ofício remetido pelo
Conselho da Província com dois artigos relativos “ao bom tratamento dos escravos, e sua
lenta emancipação”.5 Não consegui localizar esses artigos, mas a partir dos pareceres dos
vereadores pude inferir que tratavam de: 1) estabelecer uma multa pecuniária para aqueles
senhores que castigassem severamente seus escravos; 2) encaminhar um projeto com o fito de
acabar com o tráfico atlântico de escravos e promover meios mais eficazes de libertar, de
forma lenta e gradual, os cativos que já viviam no Brasil.
A reação não se fez demorar. Foram elaborados cinco pareceres, de autoria dos
vereadores José Francisco Duarte, Inácio Francisco Xavier dos Santos, José Custódio Coelho
Leal, Bernardo Moreira Lírio e Manoel Antônio de Oliveira.6
O primeiro é da lavra de José Francisco Duarte. A propósito do “bom tratamento dos
escravos”, Duarte lembra que “são tão antigas como reconhecidas as providências que a lei
estabeleceu para esse fim”. Os juízes territoriais, como encarregados da polícia, seriam os
responsáveis por essa questão, e deveriam olhar “com a devida atenção para os referidos
escravos fazendo-os tratar por seus senhores com aquele amor, e caridade que nos é
recomendada tanto pela Lei Divina como pela Humana”. Seguindo seu argumento, Duarte
afirma que caso algum juiz seja informado de que há senhores “que com notória falta de
caridade, e esquecidos da Religião maltratam seus escravos com pesados castigos, que lhes
não dão o sustento, e que os não curam nas suas enfermidades” deve corrigi-los na primeira e
na segunda vez e, na terceira, até “lhe será lícito” castigá-los. O vereador não especifica
exatamente o que seria a correção e o castigo mas, de qualquer modo, ainda que essas ações
do juiz atendam “à boa ordem, não deve ser tão público, quanto seja bastante para que o dito
escravo o venha a conhecer, porque a ser assim, em vez de regime, e polícia, se tornaria tudo
a uma contínua desordem”. Dito em outras palavras, para o vereador os ajustes no tratamento
dos escravos que porventura fossem necessários deveriam circunscrever-se ao círculo da

5
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Correspondência da Câmara de Cachoeira do Sul. Documento n. 76,
1824.
6
A análise a seguir baseia-se nestes cinco pareceres, catalogados na Correspondência da Câmara de Cachoeira
do Sul com os números 76A, 76B, 76C, 76D e 76E.

4
classe senhorial. Os escravos não poderiam saber que existiam limites ao uso do castigo físico
por parte dos senhores, pois isto acarretaria não na manutenção do “regime” e da “polícia”, e
sim na subversão da ordem.7
Sobre a “lenta emancipação da escravatura”, a reação contrária de José Francisco
Duarte é ainda mais peremptória. Segundo o vereador, a agricultura, que era o ramo mais
poderoso do Império, não poderia se sustentar sem a utilização da mão-de-obra escrava.
Igualmente, o comércio negreiro era considerado por Duarte como uma das atividades que
mais contribuíam para os rendimentos fiscais do Império brasileiro. Acaso fosse abolido,
recairia sobre o “Corpo da Nação” uma carga pesada de “Direitos, Fintas e Impostos”, dos
quais a população já estaria sobrecarregada. O vereador ainda afirma que não seria possível
manter a agricultura e outros setores econômicos através da utilização de mão-de-obra
assalariada, pois não seria possível – em um sistema de trabalho livre – coagir pessoas a
trabalhar por preços razoáveis. Assim:

[...] uma vez que não temos esse direito nos veríamos na precisão de
lhes pagarmos, não só conforme pesadíssimo trabalho, mas também
conforme a sua vontade, de sorte que tudo se largaria de mão; vendo-se
que tudo quanto se trabalhasse seria pouco para satisfazer salários.8

Além de todas estas razões econômicas, havia uma questão política essencial.
Emancipar a escravatura, ainda que de forma lenta e gradual, acarretaria a subversão das
hierarquias e da ordem social:

Acresce mais a todas essas razões, que se os escravos debaixo do jugo


da escravidão querem por muitas vezes tomar resoluções absolutas,
armando-se, e levantando-se contra seus senhores, e até dando-lhes
infelizmente a morte, como por repetidas vezes temos visto em todas as
Vilas e Povoações desta Província, e mais partes do Império; quão
freqüente não seria neles este procedimento, revestidos de sua
Liberdade, a qual trás a par de si Direitos tão sagrados que se não
podem, nem devem, violar? Era de esperar uma confusão contínua,

7
O vereador Duarte estava expressando uma concepção bastante enraizada na América portuguesa acerca do
modo como deveriam ser governados os escravos. Essa concepção tinha como parâmetro o ideal clássico do
senhor patriarcal e cristão, que marcava a autoridade e o domínio senhorial sobre os dependentes (escravos e
agregados, mas também mulher e filhos). Ver Marquese, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da
mente. Senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004. Ver também, especialmente para uma discussão acerca da aplicação do castigo físico no governo
dos escravos: Lara, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro,
1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
8
Parecer de José Francisco Duarte.

5
facções por todas as partes, e a todos os instantes, e um precipício
irreparável; os primeiros libertados pela influência, e entusiasmo que
desde logo adquiriam, e os vindouros pela má educação que lhes dariam
seus pais.9

O vereador Inácio Francisco Xavier dos Santos expressa esse temor de forma ainda
mais explícita:

Sendo o conhecimento, que os escravos tem de sua condição servil, e de


sua escravidão, sendo o temor, que lhes acompanha dos rigorosos
castigos as rédeas mais poderosas, para os fazer conter no equilíbrio de
sua humildade, e sujeição, contudo nós estamos vendo, que
ambicionando eles aquele seu nato princípio de liberdade [...] quebram
estas mesmas rédeas, desprezam o temor do castigo, e fulminam todos
os dias as facções contra nós, de quem por natureza são inimigos. Já
vimos levantada esta facção na Cidade da Bahia, já na Corte do Rio de
Janeiro, há poucos dias na Capital desta Província em Porto Alegre, e
suprimida ela quis brotar na Freguesia de Santo Amaro, e Capela da
Encruzilhada desta mesma Província, o que motivou ao Excelentíssimo
Comandante da Fronteira expedir ofícios na data de fevereiro da Era
que nos rege aos Comandantes Subalternos, encarregando-lhes uma
assídua vigilância sobre o comportamento dos mesmos escravos a fim
de não fumegar esta facção em outra povoação [...]. E devemos nos
esquecer-nos de um para outro dia destes males, que nos ameaçam?
Não devemos nós tomar todas as medidas convenientes e necessárias
para nos livrarmos deles? Os meios pois mais poderosos, apesar das
mencionadas facções, é a conservação do mesmo cativeiro; porque se
estes escravos assim sujeitos pela escravidão, e pelo castigo assim se
tem comportado, o que se pode esperar deles emancipados? Porque
abundando o Brasil, seguramente se pode dizer, mais de escravos, do
que de brancos, quem lhes poderá reprimir? Será uma desgraça para
todo o Império, poderá o Brasil esperar a mesma infeliz sorte, que teve
a Ilha de São Domingos, e Malvinas, ficará enfim o Brasil reduzido a
um novo sertão da África, onde só podem e dominam os homens
pretos.10

Recorrendo ao fantasma da revolução no Haiti, às revoltas na Bahia e no Rio de Janeiro e às


agitações de escravos em várias localidades da Província do Rio Grande de São Pedro, Xavier
dos Santos procurava alertar para o perigo que a ordem social fundada na escravidão correria
caso fosse aprovada a proposta da “lenta emancipação da escravatura”.11

9
Idem.
10
Parecer do vereador Inácio Francisco Xavier dos Santos.
11
Durante o conturbado período da Independência do Brasil, agitações políticas de escravos e homens livres “de
cor” perturbaram a tranqüilidade dos proprietários de escravos. O exemplo do Haiti serviu, muitas vezes, como
parâmetro para avaliar os perigos que a desordem e a participação efetiva de pretos e pardos no processo de

6
Os outros vereadores também utilizaram argumentos semelhantes para contestar os
projetos propostos pelo Conselho da Província. Posição um pouco diferente é a de José
Custódio Coelho Leal, que também ocupava o cargo de Juiz de Órfãos da Vila de Cachoeira.
Embora refutasse, junto com seus colegas, ambas as propostas, Leal afirmava que:

No que respeita à segunda proposição, relativamente à lenta


emancipação da escravatura, tão justa, como necessária, parece-me não
ter lugar na presente conjuntura, por se acharem em contraposição às
urgências do Estado, com a virtude da Lei; devendo ceder esta enquanto
existir aquela: porém quando melhoradas as circunstâncias imperiosas
do Estado, se ponha de uma vez termo a semelhante comércio, para que
morta a causa, lentamente vá cessando o efeito.12

Note-se que, apesar de definir-se a favor do fim do tráfico de escravos – e, deste modo, ao fim
gradual da escravidão –, o vereador considerava precipitado aprovar o projeto naquele
momento conturbado de afirmação do Estado Imperial.
Um dos argumentos utilizados para refutar o projeto de emancipação que mais chama
a atenção é o de que os escravos seriam mais numerosos que os homens brancos. Estariam os
vereadores de Cachoeira simplesmente emulando argumentos utilizados em outras regiões do
Brasil, que contavam com uma quantidade mais expressiva de escravos e livres de
ascendência africana ou estariam refletindo a partir de uma experiência particular, derivada de
sua condição de elite – e muito provavelmente proprietária de cativos – na fronteira
meridional?
Um caminho interessante para entender a importância e pertinência desse argumento é
refinar a análise do quadro populacional anteriormente reproduzido. Um pouco mais de 51%
da população de Cachoeira era constituída de brancos, sendo o restante de escravos, libertos e
índios. Nota-se, portanto, um equilíbrio entre os brancos – de onde se origina a maior parte
dos proprietários de escravos – e os setores subalternos na hierarquia social.
Entretanto, deve-se atentar para o fato de que nem todos estes brancos faziam parte da
elite fronteiriça. Provavelmente, uma parte deles – algo dificílimo de ser verificado com

independência poderia acarretar para o futuro do Império do Brasil. Ver, entre outros: Reis, João J. “O jogo duro
do Dois de Julho: o “Partido Negro” na Independência da Bahia”. In: Reis, João J. e Silva, Eduardo (orgs.).
Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005
[1989], pp. 79-98.
12
Parecer do vereador José Custódio Coelho Leal.

7
precisão numérica – tinha ascendência africana ou indígena.13 Por outro lado, e mais
importante, ainda que majoritariamente fossem de origem européia, é lógico supor que boa
parte deles era desprovida de riqueza de maior monta. Para aferir com acuidade essa
suposição, seria necessário pesquisar de forma sistemática inventários post-mortem e outras
fontes que possam informar sobre o patrimônio e a distribuição de riqueza na região. Mas,
ainda que com certo grau de imprecisão, pode-se sugerir que havia estratificações
significativas no interior da categoria “brancos”, de modo que apenas uma parte deles
constituía o grupo de grandes e médios proprietários escravistas.14
Com efeito, suponho que o argumento utilizado pelos vereadores de Cachoeira foi
construído com base em uma experiência própria, partilhada pelos senhores de escravos
fronteiriços e, sobretudo, por aqueles que faziam parte da elite política – o que se pode inferir
por sua participação na Câmara.15 Sua percepção de que os escravos eram mais numerosos
que os brancos não deixava de estar correta, embora a população cativa não ultrapassasse 40%
do total. Isto porque os vereadores argumentavam do ponto de vista da classe senhorial16, que
reiterava sua posição social e econômica com a exploração do trabalho escravo. Não estavam

13
Uma análise das hierarquias raciais e dos significados das categorias de cor no Rio Grande do Sul pode ser
encontrada em: Aladrén, Gabriel. Liberdades negras nas paragens do sul: alforria e inserção social de libertos
em Porto Alegre, 1800-1835. Dissertação de mestrado. Niterói: PPGH/UFF, 2008, pp. 106-137.
14
Utilizo os termos “grandes” e “médios” levando em consideração a realidade rio-grandense de então. Com
exceção dos charqueadores, eram raros os senhores que possuíam escravarias numerosas, típicas das regiões de
plantation. Entre 1765 e 1825, 87% dos inventariados no Rio Grande de São Pedro possuíam escravos. No
entanto, 79% deles possuíam no máximo 9 e 48% até 4 cativos. Ver Osório, Helen. “Para além das charqueadas:
estudo do padrão de posse de escravos no Rio Grande do Sul, segunda metade do século XVIII”. In: III Encontro
Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Florianópolis: 2007.
15
As câmaras municipais constituíam o pilar da organização administrativa local no Império português, tanto no
Reino quanto nas possessões ultramarinas. Participavam das câmaras, normalmente, apenas os “homens bons”
de determinada localidade, isto é, aqueles que, teoricamente, estavam aptos a participar do governo político do
Império. Apesar da composição das câmaras variar ao longo do tempo e mesmo não sendo possível caracterizar
os vereadores como um grupo homogêneo, é possível argumentar com certa segurança que eles faziam parte da
elite política local – entendida de forma ampla. Para uma análise das câmaras ultramarinas no Império português
ver: Bicalho, Maria Fernanda. “As câmaras ultramarinas e o governo do Império”. In: Fragoso; Bicalho; Gouvêa
(orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001, pp. 189-221. Para um estudo do funcionamento da câmara do Rio de Janeiro ao
longo do século XVIII, ver: Bicalho, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Ao longo das primeiras décadas do século XIX foram criadas novas
câmaras municipais no Rio Grande de São Pedro – entre elas a de Cachoeira – em um processo de proliferação e
afirmação dos controles administrativos na Capitania sulina. Após a Independência, as câmaras foram mantidas,
embora com funções e amplitude de ação diferentes. Pode-se dizer que elas mantiveram o papel de principal
instituição política local das elites até a lei de outubro de 1828, quando as câmaras passaram a estar ligadas aos
governos provinciais e desligadas do monarca. A partir de então perderam uma série de atribuições, materiais e
simbólicas. Sobre esse processo ver: Schiavinatto, Iara Lis. “Questões de poder na fundação do Brasil: o governo
dos homens e de si (c. 1780-1830)”. In: Malerba, Jurandir (org.). A independência brasileira: novas dimensões.
Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2006, pp. 209-240.
16
Para uma obra notável que pressupõe a construção do Estado Imperial no Brasil como um processo
intimamente ligado à formação de uma classe senhorial, ver: Mattos, Ilmar R de. O Tempo Saquarema. 5ª ed.
São Paulo: Hucitec, 2004 [1987].

8
argumentando a partir de uma identidade que incorporava o conjunto dos “brancos” presentes
no mapa de população – não obstante, sua retórica pretendia falar em nome dos interesses dos
brancos e também do Estado – e sim com base em uma experiência particular de sua posição
cimeira, que seria ameaçada caso fosse aprovada a lei de “lenta emancipação da escravatura”.
As conclusões provisórias a que cheguei até o momento sugerem duas balizas teóricas
para a compreensão da sociedade fronteiriça rio-grandense: 1) a fronteira sul do Rio Grande
de São Pedro constituía-se em região de larga utilização do trabalho cativo, podendo ser
caracterizada como uma sociedade escravista; 2) as hierarquias sociais na região definiam-se,
portanto, a partir de uma estrutura em que a escravidão era um fator – econômico, político e
social – crucial.
Embora se possa, de forma preliminar, caracterizar a fronteira sul do Rio Grande como
uma sociedade escravista, não significa que suas hierarquias resumiam-se a uma polarização
entre senhores e cativos. A presença de brancos pobres, indígenas e libertos torna mais
nebulosa e tênue a estratificação social na região. Soma-se a isso o fato de que, em cada uma
das categorias existentes nos mapas de população havia uma heterogeneidade e uma
complexa articulação de identidades sociais variadas. Por outro lado, havia ainda um outro
fator estrutural na conformação daquela sociedade: os conflitos militares.
A análise do caso de um crime cometido na fronteira sul do Rio Grande pode
contribuir para a compreensão da intrincada confluência de fatores que conferia uma feição
particular às relações sociais na região. Entrecruzam-se nesse caso, situações como a do
escravo fiel que queria obter sua alforria, dos soldados das guerrilhas da fronteira que, no
interregno dos conflitos, encontraram nas atividades criminosas uma forma de obter proventos
e da crioula forra que se articulava com indivíduos de diversos estratos sociais e alcançou uma
situação econômica razoável, mas seguia tendo uma posição social instável.17
No mês de outubro de 1822, “no lugar chamado Serrito” na freguesia de Jaguarão,
extremo sul da Província do Rio Grande do Sul, foi assassinado o Capitão Domingos de
Freitas, alcunhado de “Capitão Velho”. Foram acusados do crime quatro pessoas: Ana Maria
da Conceição, crioula forra natural de Pernambuco, conhecida como Dona Ana
Pernambucana; seu amásio Antonio Rodrigues, homem pardo, soldado da guerrilha do
Sargento Mor Bento Gonçalves; o preto Jorge Cabinda, escravo do falecido; e, por fim, o
português Manoel Joaquim, que desertara em Montevidéu da Divisão dos Voluntários Reais
17
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Sumários. Porto Alegre. Cartório do Júri. Maço
10, n. 260, 1828. A descrição e análise do crime terá como base este processo criminal, que teve início no ano de
1822 e foi encerrado em 1828.

9
d’El Rey e então se engajara como soldado na guerrilha de Diogo Feijó. Todos eram
moradores na Guarda do Serrito.
Nota-se, inicialmente, a profunda influência da vida militar naquelas paragens.
Jaguarão fora, desde o século XVIII uma localidade em litígio entre os impérios espanhol e
português. Em fins dos setecentos, já haviam sido concedidas sesmarias e datas de terras pelo
governo português na região. Logo após a Guerra de 1801, foi fundada às margens do rio a
Guarda do Serrito, que deu um razoável suporte ao povoamento no local. Mas foi a partir das
campanhas de 1811 e 1812 que ocorreu um forte desenvolvimento, a partir do afluxo de
militares e da formação de companhias de guerrilhas, sendo a mais destacada a sob comando
de Bento Gonçalves.18 Não é difícil notar, igualmente, a importância da escravidão na região.
Com a economia voltada para a pecuária, em 1833 os escravos perfaziam cerca de 45% da
população da localidade.19
Em Jaguarão, Ana Pernambucana logrou tornar-se proprietária de um terreno com
casas de morada e de uma escrava crioula de nome Tereza. Pôde alugar outra escrava, a preta
Maria Conga, como ama de leite de um enjeitado que haviam dado para ela cuidar. Por fim, e
não menos importante, desfrutava de um prestígio incomum para uma crioula liberta, sendo
reconhecida e designada por “Dona”, qualificativo normalmente reservado a senhoras de
estrato hierárquico superior.
O pardo Antonio Rodrigues, que sempre fora liberto, também encontrou oportunidades
para se inserir socialmente. Era soldado da guerrilha de Bento Gonçalves, o que deve ter-lhe
conferido uma situação de razoável estabilidade enquanto corriam os conflitos militares da
década de 1810, onde frequentemente as tropas luso-brasileiras ganhavam batalhas,
incorporavam terras e obtinham recompensas, com a divisão do butim, normalmente na forma
de gado vacum e cavalhadas. As guerrilhas rio-grandenses nas primeiras décadas do XIX
eram corpos militares informais, arregimentados comumente por estancieiros, e não faziam
parte, formalmente, do sistema militar estatal. Em determinadas situações, as guerrilhas
poderiam ser integradas aos corpos de milícia, passando seus integrantes a receber soldos e
patentes.
O exército no Brasil colonial, com exceção das tropas de primeira linha e dos dragões,
não era permanente e nem centralizado. Era constituído de uma série de unidades dispersas,
formadas localmente, que eram desmobilizadas em tempos de paz. Eram as milícias e as
18
Franco, Sérgio da Costa. Origens de Jaguarão – 1790-1833. Caxias do Sul: IECL/UCS, 1980; Wiederspahn,
Henrique Oscar. Bento Gonçalves e as Guerras de Artigas. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1979.
19
Franco (1980), op. cit., p. 95.

10
ordenanças, tropas de segunda linha.20 Essas tropas compunham-se principalmente de homens
brancos de cada região, mas a elas se associavam companhias de homens pretos e pardos,
formadas por libertos e livres de ascendência africana, que tinham seus próprios oficiais.21 A
distinção por cores, embora tenham sido feitas tentativas para aboli-la, manteve-se vigente até
a criação da Guarda Nacional em 1831.22
Não existem informações precisas sobre a organização efetiva do exército no Rio
Grande de São Pedro, nem sobre a quantidade de homens mobilizados. Sabe-se que havia
mais unidades milicianas do que efetivas. Em 1825, a 1ª linha do exército sul-rio-grandense
resumia-se a um batalhão de caçadores, dois regimentos de cavalaria e um de artilharia. As
milícias dividiam-se em várias unidades: em Porto Alegre, estavam sediados o comando
militar, o 20º regimento de cavalaria miliciana, e duas companhias do 46º batalhão de
caçadores. Existiam ainda quatro companhias de caçadores em Rio Grande, Rio Pardo, Santo
Antônio da Patrulha e Pelotas. Em Rio Grande e em Rio Pardo ainda estavam estacionados
dois regimentos de cavalaria miliciana, mais um em Alegrete e dois em São Borja. Segundo
José Iran Ribeiro havia duas companhias de libertos em Rio Grande, uma de pretos e outra de
pardos.23
Entretanto, em 1822, quando ocorreu o crime em Jaguarão, o pardo Antonio
Rodrigues não estava alistado em nenhuma milícia. Em um período em que não estavam
ocorrendo conflitos militares, ele teve de encontrar outros meios para prover a sua
subsistência. Já foi notado que uma das possibilidades que os soldados negros e mulatos
encontravam para sobreviver após os conflitos militares era transitar na fronteira do crime
com a legalidade.24 Esse parece ser o caso de Antonio Rodrigues. As testemunhas no processo
afirmaram que ele vivia amasiado com a crioula Ana Pernambucana e teria com ela planejado
o assassinato do “Capitão Velho”, para roubar-lhe cerca de 400 mil réis em doblas de ouro

20
Sodré, Nelson Werneck. A história militar do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979
[1965].
21
Russell-Wood, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, pp.
134-136.
22
Kraay, Hendrik. “Identidade racial na política. Bahia, 1790-1840: o caso dos henriques”. In: Jancsó, István
(org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec/Ed. Unijuí/Fapesp, 2003, pp. 536-546. Sobre
a Guarda Nacional ver: Castro, Jeanne Berrance de. A milícia cidadã: a Guarda Nacional de 1831 a 1850. São
Paulo: Nacional, 1977; Uricoechea, Fernando. O minotauro imperial: a burocratização do Estado patrimonial
brasileiro no século XIX. Rio de Janeiro: Difel, 1978.
23
Ribeiro, José Iran. Quando o serviço nos chama: os Milicianos e os Guardas Nacionais gaúchos (1825-1845).
Dissertação de mestrado. Porto Alegre: PPGH/PUC-RS, 2001, pp. 37-39.
24
Carvalho, Marcus J. M. “Os negros armados pelos brancos e suas independências no nordeste (1817-1848)”.
In: Jancsó, Istvan (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2005, pp. 881-
914.

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que guardava em casa. Para tanto, contaram com a ajuda de Jorge Cabinda, escravo do
falecido, que teria facilitado o acesso de Ana e Antonio deixando aberta a porta da cozinha.
Conforme os depoimentos nos autos, Jorge teria ajudado a perpetrar o crime em razão de seu
senhor ter lhe prometido a carta de alforria quando falecesse.
O plano montado pela crioula forra e pelo “pardo guerrilha” incluía ainda o soldado
português Manoel Joaquim. Após terem cometido o assassinato, Ana e Antonio Rodrigues
enterraram parte do dinheiro em uma chácara nas proximidades de sua casa. Tendo sido
presos, solicitaram a Manoel Joaquim, “parceiro de jogos” do pardo Antonio, que
desenterrasse o produto do roubo para escondê-lo em outro local. Mas neste ínterim, Manoel
foi detido e apanhado com 304$000 réis em seu poder.
Ao fim e ao cabo, os réus foram conduzidos para a cadeia da Vila de Porto Alegre,
passando antes um período em Rio Grande, de modo a serem julgados pela Junta de Justiça.
Ainda na cadeia em Rio Grande, o pardo Antonio faleceu. Ana Maria da Conceição e o preto
Jorge foram condenados “a que com embaraço e pregão sejam conduzidos pelas ruas públicas
desta Cidade [Porto Alegre] ao lugar da Forca e aí dêem três voltas, sendo degredada a
primeira Ré para toda a vida para o Rio Doce e em cem mil réis para as despesas da Junta; e o
preto Jorge para Galés desta Cidade por dez anos, em mil açoites e cinquenta mil réis para as
despesas da Junta”. Manoel foi condenado a cumprir cinco anos de degredo na Vila de São
Francisco do Sul e em vinte mil réis para as despesas da Junta.
Esse caso, ainda que em sua singularidade, é bastante sugestivo, pois demonstra as
complexas e intrincadas relações estabelecidas em uma sociedade escravista na fronteira sul
rio-grandense. Os pretos e pardos livres, em particular, experimentavam situações ambíguas e
instáveis. Como Antonio Rodrigues, poderiam se inserir, mediante serviço militar informal,
nas guerrilhas dos chefes fronteiriços. Entretanto, essa inserção estava longe de ser uma
garantia de ascensão social, uma vez que, assim que os conflitos terminavam, ficava difícil
encontrar meios de subsistência. Restava-lhes o trabalho como peões de estâncias – também
submetido a oscilações econômicas e sociais de toda a ordem – ou viver de atividades
criminosas, em associação com desertores, escravos e forros.
Tendo em vista que se trata de um trabalho de pesquisa incipiente, é possível apenas
formular algumas hipóteses preliminares acerca da sociedade fronteiriça rio-grandense. A
hipótese geral é de que a escravidão e a guerra condicionaram a formação das hierarquias
sociais na sociedade em questão. As atividades econômicas da fronteira sul, inclusive as

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estâncias, sustentavam-se parcialmente no trabalho escravo. É possível conceituar o Rio
Grande do Sul das primeiras décadas do oitocentos como uma sociedade escravista.
Em segundo lugar, é necessário considerar os vínculos que existiam entre a escravidão
e as Guerras Cisplatinas. O sucesso luso-brasileiro nas primeiras campanhas de 1811 a 1820,
foi fundamental para o fortalecimento do sistema escravista no sul do Brasil. Ao contrário dos
países do Prata, onde neste mesmo contexto a escravidão entrou em processo de
desintegração25, no Rio Grande verificou-se o contrário. A expansão das pastagens e a
apropriação do gado foram fatores de enriquecimento de muitos estancieiros, que atingiram
níveis de acumulação até então impensáveis. Ao mesmo tempo, com a desestabilização
política e econômica do Prata, a produção do charque gaúcho encontrou novos mercados.
Por outro lado, as Guerras Cisplatinas tiveram efeitos ambíguos sobre a vida de
escravos e “homens de cor” livres no Rio Grande do Sul. Novas oportunidades foram abertas
para os cativos conquistarem a liberdade, através das fugas para a fronteira. Alguns pretos e
pardos também tiveram possibilidades de engajamento nos exércitos, quer comandados por
luso-brasileiros, ou pelos caudilhos platinos.
Esses fatores, que vinculavam a guerra e a escravidão na fronteira sul do Brasil,
tornam o estudo da sociedade rio-grandense nas primeiras décadas do século XIX um campo
interessante para analisar as experiências de escravos e negros livres, as hierarquias sociais e
as formas de estruturação do sistema escravista em um contexto tão particular.

25
Ver Blackburn, Robin. A queda do escravismo colonial (1776-1848). Rio de Janeiro: Record, 2002.

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