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Viver numa democracia

continua sendo preferível à submissão a


um Estado totalitário, a uma ditadura militar ou
a um regime feudal obscurantista. Mas, corroída assim
por seus inimigos íntimos, engendrados por ela mesma, a
democracia já não está à altura de suas promessas. Seus inimigos
têm uma aparência menos assustadora do que os de ontem, que a
atacavam de fora; não projetam instaurar a ditadura do proletariado,
não preparam um golpe de Estado militar, não cometem atentados
suicidas em nome de um deus impiedoso. Eles usam trajes da
democracia, e por essa razão podem passar despercebidos.
Nem por isso deixam de representar um verdadeiro perigo:
se não lhes for oposta nenhuma resistência, um dia eles
acabarão por esvaziar esse regime político de sua substância.
Conduzirão a um desapossamento dos seres e a uma
desumanização de suas vidas.”

Tzvetan Todorov
Conselho Adriano Sant´Ana Pedra Jovacy Peter Filho
Caleb Salomão Nelson Camatta Moreira
Editorial Daury César Fabriz Olívia Cerdoura Garjaka Baptista
Eliana Junqueira Munhós Ferreira Paulo Ferreira Da Cunha
Ézio Carlos S. Baptista Samuel Meira Brasil Júnior Organizadores
Gilsilene Passon Picoretti Francischetto Tárek Moysés Moussalem Paulo Roberto Ulhoa • Julio Pinheiro Faro • Daury Cesar Fabriz
João Maurício Adeodato Willis Santiago Guerra Filho Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes • Heleno Florindo da Silva

Organizadores Paulo Roberto Ulhoa


Julio Pinheiro Faro
Daury Cesar Fabriz
Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes
Heleno Florindo da Silva

Direitos
Capa Concepção: Paulo Ulhoa e Maria Helena Fabriz
Execução: Link Editoração
Foto: Weverson Rocio (RPPN Fazenda Bulcão sede do
Instituto Terra em Aimorés - MG) 2012

Produção Revisão: Executada pelos próprios autores


Diagramação: Link Editoração
humanos e
Impressão: Grafitusa
meio ambiente
Obra dedicada ao
Editora Editora Cognorama
Rua Aleixo Neto, 454 - Sala 503

Instituto Terra
Praia do Canto - Vitória/ES - CEP 29057-200

Agradecimento Especial à jornalista Maria Helena Fabriz

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Direitos humanos e meio ambiente / Paulo Roberto


Ulhoa, Júlio Pinheiro Faro, (coordenadores).
Vitória : Cognorama, 2014.

Vários autores.

1. Direito ambiental - Brasil 2. Direitos


humanos 3. Instituto Terra 4. Meio ambiente -
Brasil 5. Proteção ambiental - Brasil I. Gomes,
Carla Amado. II. Faro, Júlio Pinheiro. III. Ulhoa,
Paulo Roberto.

14-06081CDU-34:502.7(81)

Índices para catálogo sistemático:


1. Brasil : Meio ambiente : Direito ambiental
34:502.7(81)
Sumário
M Apresentação 9. 
Função socioambiental das contratações públicas:
o Estado como ator da sustentabilidade
Daury Cesar Fabriz_______________________________________________8 Elizabeth de Mello Rezende Colnago ____________________________________ 185
M Nota dos organizadores 10. 
Gestão democrática das águas no Brasil:
Academia Brasileira de Direitos Humanos_________________________11 um caminho rumo ao desenvolvimento sustentável
Mariana de Siqueira __________________________________________________ 207
M Prefácio______________________________________________________12
11. 
O controle das áreas contaminadas:
M Mensagem dos homenageados___________________________________18 o respeito ao direito de se viver em um ambiente saudável
Vanessa de Fátima Terrade _____________________________________________ 219
M O Instituto Terra_____________________________________________20
12. 
Saneamento básico: direito do cidadão que a Defensoria
M Introdução Pública tem o dever legal de garantir
Gilmar Alves Batista __________________________________________________ 233
Julio Pinheiro Faro_______________________________________________25
13. 
Os tempos estão a mudar: alterações climáticas,
ordenamento do território e protecção da orla costeira
Carla Amado Gomes __________________________________________________ 245
1. 
A patrimonialização do meio ambiente e o novo constitucionalismo
latino-americano: a Pachamama e a busca pelo buen vivir 14. 
O uso de herbicidas e a violação de direitos humanos
Heleno Florindo da Silva _______________________________________________ 31 por impactos ambientais: o que o Brasil pode aprender a
partir da experiência jurisdicional internacional?
2.  rojeto do novo Código Florestal brasileiro:
P Orlindo Francisco Borges ______________________________________________ 267
um estado de exceção permanente destrutivo do meio ambiente
Luísa Cortat Simonetti Gonçalves e Daury Cesar Fabriz ______________________ 51 15. 
Em defesa da igualdade de responsabilização penal entre
pessoas jurídicas de Direito público e de Direito privado
3. 
O binômio direito-dever fundamental ao meio ambiente Renata Machado Saraiva _______________________________________________ 291
ecologicamente equilibrado e seu alicerce na solidariedade
Ivy de Souza Abreu ____________________________________________________ 65 16. 
Causas excludentes de nexo causal: aplicabilidade
no Direito ambiental brasileiro
4. 
Direito como integridade e integridade do meio ambiente: o dever Camila Pedroni Ribeiro
fundamental de proteção do meio ambiente e a proposta interpretativa Cristina Grobério Pazó ________________________________________________ 321
de Dworkin a partir da jurisprudência do STF e do STJ
Ludmila Lais Costa Lacerda e Julio Pinheiro Faro ____________________________ 79 17. 
Tutela do meio ambiente do trabalho nos planos internacional e interno
Lívia Gaigher Bósio Campello
5. 
A educação em meio ambiente como um dos pilares para a cidadania Carlos Walter Marinho Campos Neto ____________________________________ 341
Jackelline Fraga Pessanha
Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes _______________________________________ 107 18. 
Ensaio sobre a função de garantia dos juízes
e tribunais em matéria ambiental
6. 
Educação ambiental como instrumento de posse de direitos e cidadania Hermes Zaneti Jr. ____________________________________________________ 361
Margareth Santos Schayder ____________________________________________ 123
19. 
 efinição do modelo brasileiro de legitimidade ativa ad causam
D
7. 
As Tecnologias da Informação e Comunicação e a nas demandas coletivas ambientais: substituição processual
Educação Ambiental no Cotidiano Escolar Márcia Vitor de Magalhães e Guerra _____________________________________ 391
Wagner Scopel Falcão
Ítalo Severo Sans Inglez _______________________________________________ 145 20. 
 proteção do meio ambiente ecologicamente
A
equilibrado na Constituição Federal de 1988
8. 
A teoria da injustiça ambiental como ocultamento da Fernando Carlos Dilen da Silva
ocorrência do racismo ambiental na sociedade brasileira Paulo Roberto Ulhôa __________________________________________________ 413
Helena Carvalho Coelho
Lorena Ferreira Carpes ________________________________________________ 165
HApresentação

I
niciativa de alunos e professores do estudo do Direito, a Academia Estabelecido na cidade mineira de Aimorés, o Instituto Terra desenvolve
Brasileira de Direitos Humanos - ABDH está perto de completar 10 um trabalho de reflorestamento de Mata Atlântica, educação ambiental e pro-
anos de fundação atuando na promoção dos Direitos Humanos por moção do desenvolvimento sustentável em uma região conhecida como Vale
meio da difusão de conhecimento sobre os caminhos legais para sua do Rio Doce, e que enfrenta um grave quadro de degradação ambiental provo-
efetivação no Brasil e no mundo. Durante todo este período foi possível cada pela ação do homem.
perceber o terreno fértil para o debate do tema, principalmente no meio aca- O Instituto Terra desenvolve um trabalho provocador e inspirador, sob to-
dêmico, nacional e internacional, abrindo novas perspectivas para a sua conse- dos os aspectos, principalmente pelo ponto de vista de mostrar que se as nações
cução em esfera mundial. do globo quiserem, efetivamente, elas podem resgatar boa parte do equilíbrio
Com a realização de simpósios, congressos e colóquios, o trabalho da ambiental necessário para garantir a sobrevivência do ser humano na Terra.
ABDH permitiu o intercâmbio de ideias e estudos sobre os Direitos Humanos É neste sentido, na busca da transformação por um mundo mais digno que
entre juristas, estudantes, pesquisadores e sociedade, reunindo nomes de des- nossos objetivos se convergem. Não se trata apenas de plantar uma semente,
taque internacional na área, como o jurista Dalmo de Abreu Dallari; o juiz mas de transformar a sociedade por meio de uma cultura, de uma educação
da Corte Européia de Direitos Humanos Paulo Pinto de Albuquerque; o ca- plural e participativa.
8 tedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa professor Jorge A ABDH tem muito a comemorar com o lançamento desta publicação – 9
Miranda; e a professora Carla Amado Gomes, referência na área do Direito “Direitos Humanos e Meio Ambiente - Obra dedicada ao Instituto Terra”. A ques-
Ambiental, dentre tantos outros, a quem devemos um muito obrigado pelo tão ambiental é urgente e não se pode mais adiar as ações necessárias para
apoio concedido. frear o perverso processo de degradação do globo terrestre. Ações como a do
Com o lançamento da primeira obra da ABDH, O Tempo e Os Direitos Instituto Terra são ao mesmo tempo exemplo e referência. Desejamos uma
Humanos, no ano de 2011, foi possível perceber uma densa produção cientí- proveitosa leitura a todos e a todas, na esperança de que o conteúdo que ora se
fica na área. Neste sentido, artigos de mais de 50 autores do Brasil e de países publica, possa merecer uma reflexão.
como Alemanha, Portugal, Espanha, França, Itália, Irlanda e Uzbequistão per-
mitiram criar uma obra audaciosa, sem a pretensão comercial, que ainda hoje Novembro de 2014.
se mostra atual pela abrangência e pluralidade das abordagens.
A humanidade avança no Século XXI tendo ainda grandes desafios para a Daury Cesar Fabriz
efetivação dos Direitos Humanos. Sob esta ótica, a ABDH lançou sua segunda Presidente da ABDH
publicação, efetivada sob o título de “Direito das Futuras Gerações”, reunindo
artigos de 23 autores em abordagens sobre temas como eutanásia, bullying, ho-
moafetividade, avanços científicos e tecnológicos, genética, democracia partici-
pativa, constitucionalismo, identidade cultural, sustentabilidade, entre outros.
É neste mesmo caminho da parceria de ideias e ideais, que a ABDH ago-
ra apresenta esta importante obra dedicada à temática do Meio Ambiente.
Importância que se eleva pelo exemplo do Instituto Terra, ONG ambiental
fundada por Lélia Deluiz Wanick Salgado e Sebastião Salgado.
HNota dos Organizadores
É
com grande satisfação que a Academia Brasileira de Direitos
Humanos - ABDH lança esta importante obra, Direitos Humanos e
Meio Ambiente, em um momento em que o debate das questões re-
lativas ao meio ambiente e à sustentabilidade, encontram-se em evi-
dência em nossa sociedade, muitas delas impondo mudanças urgentes
na maneira como o homem vem se relacionando com a natureza e os seus recursos.
No entanto, mais que a discussão em busca de soluções para os proble-
mas e obstáculos jurídicos que impedem esse equilíbrio, resolveu-se, também,
apresentar um caso de sucesso na esfera da recuperação ambiental no Brasil,
que vem a ser a história de sucesso realizada pelo Instituto Terra, fundado por
Lélia Deluiz Wanick Salgado e Sebastião Salgado. Atuando entre os Estados
do Espírito Santo e de Minas Gerais, em uma região conhecida como Vale do
Rio Doce, o Instituto Terra está ajudando a mudar o cenário de devastação em
que se encontra a região, a partir do reflorestamento de Mata Atlântica, da pro-
teção de nascentes, da assistência técnica a produtores rurais e da educação
ambiental para diferentes públicos, entre muitas outras ações.
10 11
Com a publicação desta obra, a ABDH reúne importantes pensadores do
Direito no sentido de fomentar a pesquisa jurídica em relação à questão am-
biental, uma pauta urgente para todas as nações do globo. O legislador na-
cional, seja em âmbito constitucional ou infraconstitucional, tem estabelecido
uma série de restrições e garantias, com o escopo de preservar esse patrimônio.
São iniciativas que se mostram necessárias no sentido de criar meios de coibir
determinados atos que geram enormes impactos ambientais, com prejuízos di-
retos para a qualidade de vida e mesmo a sobrevivência do homem na Terra.
Ainda assim, mesmo com todo esse arcabouço legislativo, há um longo ca-
minho a se percorrer para que tenhamos medidas mais eficazes de controle com
foco na preservação ambiental em nosso País. O próprio estilo de vida do ho-
mem moderno, por si só, já gera uma sobrecarga brutal sobre os recursos na-
turais existentes. Para restabelecer certo equilíbrio entre a oferta e a demanda
será preciso bem mais que exaustivos debates. Motivo pelo qual conhecer mais
sobre exemplos concretos de ação, como o do Instituto Terra, pode nos sina-
lizar caminhos possíveis para a um verdadeiro desenvolvimento sustentável.

 Boa leitura!

Academia Brasileira de Direitos Humanos


Diretoria Executiva 2013-2017
HPrefácio
José Luiz Quadros de Magalhães1 tro considerado mais diferente, no caso os mouros (muçulmanos) da península
UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais Ibérica (com a derrota de Granada) e, ainda, a construção da primeira gramá-
tica normativa, a do Castelhano, que marca a presença do Estado uniformiza-
Prefaciar um livro, com tantos artigos com reflexões pertinentes sobre o meio dor. A própria ideia de modernidade já é uma pretensão uniformizadora e li-
ambiente e natureza, é uma excelente oportunidade para refletirmos sobre as mitadora da história, a partir de uma perspectiva europeia. Leia-se “perspectiva
profundas transformações que começam a ocorrer, especialmente com o novo europeia” como a perspectiva dos grupos e etnias que se tornaram hegemônicas
constitucionalismo latino-americano, anunciando a construção de um novo nos novos estados nacionais inventados na Europa, neste período, e impostos
paradigma de conhecimento, de direito, de estado, de economia e de política. para todo o mundo como modelo de organização ideal, até hoje.
A palavra modernidade, significante para um período da história segun- Este período da história chamada de modernidade, encobre muitos fatos,
do a historiografia ocidental, tem diversos significados e períodos tempo- perspectivas, compreensões, enfim, encobre diversas outras histórias e estórias.
rais, para autores distintos em diferentes áreas do conhecimento, áreas estas Precisamos entender a estrutura de poder “moderno” para que possamos su-
construídas a partir da mesma perspectiva moderna ocidental de fragmen- perar este projeto uniformizador e violento, assim como, desocultar a enorme
12 tação e especialização do saber, que se tornou hegemônica nestes últimos diversidade de formas de ser, ver, sentir, compreender, viver; as diversas epis- 13
quinhentos anos. Nestes últimos quinhentos anos construiu-se todo um sis- temologias e filosofias que foram ocultadas pelo projeto “moderno ocidental”,
tema de compreensão do mundo que justificou (e ainda procura justificar) a ainda hoje, fortemente hegemônico.
hegemonia de algumas pessoas, grupos, classes e etnias, de forma sofistica- Este projeto moderno de colonização do mundo por grupos hegemônicos
da, sistêmica e naturalizante. europeus, é marcado por mecanismos de dominação cada vez mais sofisticados.
Como referência simbólica para esta “modernidade” utilizamos a referência Um órgão da Organização das Nações Unidas ilustra muito bem a pre-
do ano de 1492, utilizada por vários autores descoloniais, entre eles, Enrique tensão hegemônica uniformizadora das potências: o Conselho de Tutela.
Dussel em seu livro “1492, o encobrimento do outro”2. Neste ano ocorrem três Hoje o Conselho de Tutela é constituído pelos cinco membros permanentes
acontecimentos que nos ajudam a entender este período da história: o início da do Conselho de Segurança – China, Estados Unidos da América, Federação
invasão do continente, chamado pelo invasor de “América”; a expulsão do ou- Russa, França e Reino Unido. Com a independência do Palau, o último
território sob tutela das Nações Unidas, o Conselho suspendeu formalmente as
suas atividades a 1 de Novembro de 1994.Entretanto o Conselho ainda existe.
1) Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1986) e em Lín- O seu regimento foi alterado para eliminar a obrigação de reuniões anuais. Foi
gua e Literatura Francesa pela Universidade Nancy II (1983). Mestrado (1991) e Doutorado resolvido que as reuniões ocorrerão quando as situações o exigissem, por deci-
e (1996) em Direito (1991) pela UFMG. Professor titular da Pontifícia Universidade Cató-
lica de Minas Gerais. Professor associado da UFMG. Professor do programa de mestrado da são do Conselho, do seu Presidente, ou a pedido de uma maioria de membros
Faculdade de Direito do Sul de Minas. Professor visitante no mestrado em filosofia da Uni- da Assembleia Geral ou do Conselho de Segurança. O Conselho de Tutela é
versidad Libre de Bogotá. Professor do doutorado da Faculdade de Direito da Universidad de um exemplo da arrogância “ocidental”, entendendo ocidente como um concei-
Buenos Aires. Foi professor visitante na Universidad de la Habana (Cuba) e pesquisador na
Universidad Nacional Autónoma de México. Coordenador regional (região sudeste - Brasil) to criado para marcar a separação do mundo civilizado e um outro nem tanto
da Rede pelo Constitucionalismo Democrático Latino Americano. assim. Os que se julgam “civilizados” entendem poder impor sua “civilização”
2) DUSSEL, Henrique, El encobrimiente del outro – hacia el origen del mito de la moderni- aos outros não “civilizados” ou com civilizações superadas ou inferiores. 
dade, Conferências de Frankfurt, Octubre de 1992, Plural editores, La Paz, 1994. Embora, hoje, não existam mais “colônias” como eram formalmente com-
preendidas, novas formas de dominação e colonização foram criadas. Podemos assimilação do diferente: a uniformização é necessária para o reconhecimento
dizer ainda mais: estes quinhentos anos de dominação e violência deixaram como do poder centralizado e hierarquizado do estado moderno e logo sua princi-
herança a colonialidade. A palavra colonialidade expressa o que permanece nas pal tarefa; b) “linearidade histórica” significa reduzir a “história” a um único ca-
relações sociais, culturais, econômicas para além do processo colonial formal de minho possível, onde as diversas civilizações estariam em estágios distintos de
presença militar e exploração de recursos econômicos de forma direta (embora evolução, e onde a civilização norte europeia seria o auge e logo modelo para
isto também ainda exista). A colonialidade permanece nas relações sociais, nos todas as outras civilizações e sociedades perseguirem: a partir desta percepção
comportamentos, nas relações econômicas, na maneira de se perceber e com- surgem palavras como desenvolvimento, evolução e progresso, que sustentam
preender o mundo. A perversa herança colonial chega até a “colonialidade” do ser. este mito moderno; c) a criação de um falso “universalismo”, que não é “uni-
Nas palavras de Walter Mignolo3:“A ‘ciencia’ (conhecimento e sabedoria) versal” e sim europeu: este mito transforma a filosofia e cultura europeia como
não poder ser separada da linguagem; as línguas não são apenas fenômenos universal e imprescindível para qualquer sociedade, sustentando ainda outro
‘culturais’ em que as pessoas encontram sua ‘identidade’; elas também são o lu- mito, o da ciência como certeza infalível; d) a lógica “binária subalterna” que
gar onde se inscreve o conhecimento. E, dado que as línguas não são algo que reafirma permanentemente a inferioridade e subalternidade do outro diferen-
os seres humanos têm, mas algo de que os seres humanos são, a colonialidade te, fora do padrão, e reduz o mundo a uma simplificação binária simplificada;
do poder e a colonialidade do conhecimento engendraram a colonialidade do e) a invenção do “individuo” e a naturalização deste conceito, separando o “ho-
ser (colonialidad del ser). mem” da natureza e de todo o resto: aí reside toda a depressão e desespero do
O novo constitucionalismo latino-americano pode representar uma ruptu- “homem” solitário moderno; f ) e finalmente, decorrente deste último, a per-
ra com a colonialidade, a partir do desocultamento dos outros com a afirmação cepção da natureza como algo selvagem e separado do homem (racional) que
e construção de espaços de diversidade. Esta modernidade se fundamenta em tem a tarefa de domá-la e explorá-la, e aí reside toda a explicação para sua sis-
14 alguns eixos como a lógica binária subalterna; a linearidade histórica; a unifor- temática e interminável exploração. 15
mização; a invenção do indivíduo; o falso universalismo europeu e a natureza É justamente deste último eixo que trata este livro: como resolver os pro-
enquanto recurso a ser explorado por este “individuo racional”. blemas decorrentes da percepção da natureza como separada do homem e que
Assim, quando falamos em uma ruptura com a modernidade por parte do deve ser domada e explorada por este homem racional. São terríveis as conse-
novo constitucionalismo, como um movimento descolonial, especialmente nos quências do tratamento moderno da natureza, o que pode levar ao fim as ci-
casos das constituições do Equador e da Bolívia, não estamos em nenhum mo- vilizações humanas, e não, é claro, a natureza. Não nos será possível destruir a
mento querendo afirmar que trata-se de uma ruptura com 500 anos de histó- natureza mas claro, a nós mesmos, ou nossas civilizações. Isto não ocorrerá se
ria e tudo o que foi vivido, produzido e transformado neste período, no mundo, formos capazes de superar a “modernidade”, e as civilizações que sustentam este
em cada lugar e claro, também na Europa. Procuramos sim entender, o movi- “homem” (Indivíduo) percebido como vida unitária, fora da vida complexa, que,
mento descolonial e o novo constitucionalismo, como uma ruptura com este inclusive, nós somos: seres formados e dependentes de incontáveis outros se-
conceito de modernidade e sua essência hegemônica e colonial representada res vivos, desde as bactérias que nos mantém vivos até aquelas que nos matam.
pelos eixos essenciais acima mencionados. Neste excelente livro, vamos encontrar farto material para reflexão. Desde
Os eixos mencionados podem ser resumidamente explicados da seguinte uma perspectiva do novo constitucionalismo até compreensões distintas sobre
maneira4: a) “uniformização” como rejeição da diversidade e subordinação ou a relação entre natureza, direitos humanos, desenvolvimento e sustentabilida-
de. O direito ambiental tem sido, tanto no nível interno (constitucional e infra
constitucional) como no direito internacional, subordinado aos falsos “impera-
3) MIGNOLO, Walter. “Os esplendores e as Misérias da ‘Ciencia’: colonialidade, geopolítica tivos” econômicos. Quem detém o poder político e econômico no planeta, in-
do conhecimento e pluriversalidade espistêmica” in: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.).
Conhecimento Prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. siste em um modelo de “desenvolvimento” (quantitativo). Muitos ainda tentam
São Paulo Cortez, 2004, p. 667-709. tornar este modelo de desenvolvimento (um alucinante sistema de ultra consu-
4) MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Estado Plurinacional e Direito Internacional, mo) em sustentável, ou em outras palavras, buscam sustentar e criar formas de
Editora Juruá, Curitiba, 2013. como continuar ignorando a natureza como um todo sistêmico; como conti-
nuar mantendo o eixo da separação da pessoa da natureza; como continuar ex-
plorando e percebendo a natureza como algo separado de nós; como continuar
insistindo na depressão solitária do individualismo moderno; como continuar
convivendo com uma economia de exploração da vida, das pessoas, da natureza.
Como o novo constitucionalismo latino americano e o movimento desco-
lonial (em muitos lugares pelo mundo), começamos a perceber que muitos ou-
tros mundos são possíveis e que não estamos condenados a este sistema sócio,
cultural, jurídico e econômico hegemônicos modernos. Percebemos que não
estamos condenados a viver o que vivemos, que a economia capitalista não é a
única possível, e o que pensamos ser natural não é, e está em nossas mãos mu-
dar. E mais, que o mundo já está mudando, e que para que percebamos estas
mudanças em curso, precisamos sair das armadilhas epistemológicas moder-
nas, precisamos abandonar as mesmas referências hegemônicas do coloniza-
dor, e pensar de outro lugar, do nosso lugar. Enfim, percebemos que a história
não acabou, que podemos construir nossos caminhos, e que diversos caminhos
são possíveis, e ainda, que não precisamos insistir em um sistema que gera vio-
lência e destruição da vida, nas suas mais variadas formas. Outros mundos são
possíveis, existem e são necessários.
16   17
HMdosensagem
homenageados

É com grande satisfação que recebemos esta homenagem da Academia pecífico do ambiente biofísico, além do conhecimento dos ambientes socioe-
Brasileira de Direitos Humanos com o lançamento de uma obra de Direito conômico e cultural da região. O projeto inicial veio respaldado na recuperação
Ambiental dedicada ao Instituto Terra. A luta pela proteção do meio ambiente e na preservação da Mata Atlântica, objetivando as conseqüências em curto e
passa inevitavelmente pela educação e por questões jurídicas, e neste sentido, médio prazo, como a recuperação do solo e, principalmente, da água.
ainda temos muito a construir. Mas buscamos, em verdade, desenvolver um processo de longo prazo de
A sobrevivência dos seres humanos na Terra depende de ações urgen- “reconhecimento de valores”, por meio de uma aprendizagem ambiental com-
tes e concretas partilhada com a sociedade, associada a uma intervenção efetiva no meio am-
em favor da preservação e da recuperação ambiental. No entanto, para pro- biente da região do Vale do Rio Doce, visando o desenvolvimento e a produti-
mover ações que propiciem um resultado mais efetivo para o planeta e para a vidade de forma ecologicamente equilibrada.
sociedade são necessários planejamento, sistematização, parcerias e uma cons- Depois de 16 anos das primeiras mudas plantadas, depois de vários projetos
tante reflexão sobre o papel da educação como meio transformador do indiví- de recuperação florestal realizados ou em execução, e de mais de 76 mil pessoas
duo e da coletividade. atendidas com cursos de capacitação e treinamento na área ambiental, chega-
Ao longo de sua trajetória, o Instituto Terra tem editado diferentes publica- mos a um modelo de atuação que envolve sociedade, meio ambiente e educa-
18 19
ções voltadas para difundir o conhecimento adquirido na recuperação da Mata ção, e que julgamos poder propiciar o pleno exercício da cidadania e a efetiva-
Atlântica e nos caminhos possíveis para promover o desenvolvimento susten- ção dos direitos humanos.
tável. São livros e cartilhas orientadas para diferentes públicos, entre estudan- Este convite da Academia Brasileira de Direitos Humanos nos dá a opor-
tes, professores, técnicos agrícolas e ambientais, além de produtores rurais, lí- tunidade de contar mais detalhadamente esta história para um público dife-
deres comunitários e agentes de governo. Agora, com este convite para integrar renciado, ligado às áreas jurídicas e especialmente a alunos e profissionais que
uma obra jurídica, temos a oportunidade de ampliar o debate e disseminar a tem a oportunidade de atuar diretamente com temas de grande relevância en-
semente da educação ambiental dentro da perspectiva dos direitos humanos. volvendo a questão ambiental.
Vivemos momento significativo da história da humanidade, quando temas como A obra coletiva que se apresenta, com artigos de vários autores que expres-
proteção ambiental, direitos humanos, desenvolvimento, inclusão social e susten- sam suas análises diante do ordenamento jurídico, ganha ainda mais destaque
tabilidade entram na ordem do dia e passam a ser tratados de forma mais ampla. pela oportunidade que abre para as manifestações sobre a temática ambiental
Ao conhecer diferentes países, por conta das inúmeras expedições fotográ- frente ao novo constitucionalismo latino-americano, o papel e a responsabili-
ficas que já realizamos, observamos que a degradação ambiental é um proble- dade do Estado, a gestão democrática das águas, a responsabilização penal e a
ma planetário, e o grande desafio que a humanidade terá que vencer se quiser proteção ambiental à luz da Constituição brasileira.
continuar usufruindo da vida na Terra. Para isto, será preciso criar alternativas Ficamos felizes em saber que o exemplo do Instituto Terra tem espelhado
de desenvolvimento, que passam necessariamente por ações que unam ques- e incentivado outras ações ligadas à questão ambiental, inclusive numa pers-
tões educativas e participação da coletividade na promoção de um modo de pectiva jurídica, tendo como objetivo a construção de um mundo com valores
vida mais responsável no uso dos recursos naturais. voltados, verdadeiramente, para a justiça social.
No caso do Instituto Terra, nossa iniciativa foi a de transformar uma antiga
fazenda de gado em um sonho de recuperação ambiental. Sabíamos que para Lélia Deluiz Wanick Salgado e Sebastião Salgado
reflorestar uma área totalmente degradada seria necessário o conhecimento es- Presidenta e Vice-presidente do Instituto Terra
HO Instituto Terra
A história do Brasil tem forte ligação com a Mata Atlântica, uma das formações de área contínua. Ano após ano, com o apoio de importantes parceiros – tan-
vegetais mais ricas em biodiversidade do planeta e também uma das áreas mais to da esfera governamental como da iniciativa privada, bem como de doadores
ameaçadas de extinção pela ação do ser humano. Outra riqueza natural, a bacia individuais de vários países e de outras instituições do Terceiro Setor –, já foi
hidrográfica do Rio Doce, que abastece mais de quatro milhões de habitantes possível viabilizar o plantio de cerca de dois milhões de mudas de árvores na
entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo, vive um avançado estágio RPPN Fazenda Bulcão.
de degradação ambiental, com a conseqüente escassez dos recursos hídricos. Junto com o verde, veio o resgate da água, restabelecendo o fluxo hídrico
É neste cenário que atua o Instituto Terra, associação civil sem fins das nascentes que brotam na RPPN e que antes corriam o risco de secar. Os
lucrativos estabelecida no município de Aimorés, no Leste de Minas Gerais, animais também não demoraram a aparecer. A área reflorestada é hoje refúgio
Brasil. A ONG ambiental é fruto da iniciativa do casal Lélia Deluiz Wanick seguro para várias espécies ameaçadas da fauna brasileira.
Salgado e Sebastião Salgado que, no início dos anos noventa, ao adquirir a Registros do monitoramento anual comprovam a presença desde peque-
Fazenda Bulcão, tomaram como desafio refazer o que décadas de exploração nos invertebrados, como formigas, besouros e borboletas, até uma família de
predatória havia desfeito. jaguatiricas (Leopardus pardalis), numa marcante demonstração de que o ciclo
Na antiga fazenda de gado que pertencia ao pai de Sebastião Salgado, a ero- da cadeia alimentar foi restabelecido. A jaguatirica é uma das 30 espécies de
são era tão visível que dava a impressão de uma terra morta, cortada por esque- mamíferos já avistados na RPPN, assim como mais de 170 espécies de aves, 16
letos de córregos mortos. Além disso, a paisagem na fazenda repetia o cenário espécies de répteis e 15 de anfíbios.
20 preocupante em que se encontrava toda a região do Vale do Rio Doce, origi- Além da restauração florestal, o Instituto Terra realiza um trabalho de pesqui- 21
nalmente coberto por exuberantes florestas da Mata Atlântica. sa científica aplicada para desenvolvimento de técnicas de recuperação de áreas
Partindo para a ação, Lélia e Sebastião mobilizaram parceiros, captaram degradadas, e que podem ser replicadas em outras regiões da Mata Atlântica.
recursos e fundaram, em abril de 1998, a associação civil dedicada ao reflo- A partir do conhecimento adquirido na prática, está ajudando a promover a
restamento de áreas degradadas de Mata Atlântica, pesquisa científica e a recuperação florestal em outros 7,5 mil hectares de áreas degradadas de Mata
projetos de educação ambiental voltados para promover o desenvolvimento Atlântica no Vale do Rio Doce, em municípios do Espírito Santo e Minas Gerais.
sustentável do Vale do Rio Doce. Todas as mudas usadas nos projetos de reflorestamento que realiza saem
Com o projeto de reflorestamento em mãos, o próximo passo foi tornar a área integralmente do viveiro de nativas construído em sua sede, cuja produção foi
da antiga fazenda numa Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). O iniciada em 2002 e chegou ao ano de 2014 com capacidade para fornecer até
título foi obtido em outubro de 1998, por meio da portaria IEF/MG nº 081, e mil mudas por ano.
guarda um ineditismo: foi a primeira RPPN constituída em área degradada do Com uma área equivalente à de um país como Portugal, o Vale do Rio Doce
Brasil, com o compromisso de vir a ser recuperada. Hoje, a área total da Fazenda apresenta níveis preocupantes de destruição da Mata Atlântica, tendo registro de
Bulcão é de 709,84 hectares, sendo que 608,69 hectares integram a RPPN. apenas 0,3% da cobertura original, o que afeta sobremaneira o ciclo hidrológico.
O primeiro plantio foi planejado para o ano seguinte, novembro de 1999. Com A partir da experiência de sucesso obtida na RPPN Fazenda Bulcão, que com-
o solo altamente desgastado, não foi tarefa fácil preparar a terra para receber as prova que junto com a recuperação do verde as nascentes voltam a jorrar água,
primeiras mudas de espécies de Mata Atlântica. Mas com persistência, e vários o Instituto Terra criou o “Programa Olhos D’Água”, que tem uma meta auda-
plantios depois, a natureza começou a dar sua resposta. O que antes era domi- ciosa: proteger todas as nascentes da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, estima-
nado pelo pasto e erosão, hoje abriga uma floresta rica em diversidade – são mais das em aproximadamente 375 mil olhos d’água, tendo como referência levan-
de 293 espécies florestais arbóreas e arbustivas originárias de Mata Atlântica. tamentos preliminares realizados pelo programa.
Passados 16 anos, o Instituto Terra está perto de concluir um projeto de re- Desenvolvido desde 2010, o “Olhos D`Água” já atende oito municípios ba-
cuperação de Mata Atlântica que está entre os maiores do Brasil em termos nhados pela bacia, localizada entre os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo,
e foi escolhido pela ONU-Água como uma das 70 melhores práticas para a re-
cuperação e conservação dos recursos hídricos em nosso planeta.
A essência do “Programa Olhos D’Água” também passa pelo viés da educa-
ção ambiental, mobilizando as comunidades rurais e envolvendo o poder públi-
co e o Comitê da Bacia nos municípios atendidos. O programa exige um longo
processo de conscientização dos pequenos produtores rurais – tendo em vista
que a maioria das nascentes localiza-se dentro dessas pequenas propriedades.
É preciso que os produtores cadastrem as nascentes e assinem um termo de
compromisso tornando-se parceiros do projeto.
Ao se comprometer com a proteção das nascentes, os produtores rurais são es-
timulados, por meio de capacitação, a adotar técnicas sustentáveis no uso do solo,
diminuindo o impacto das atividades agrárias e de pecuária nas nascentes dos rios.
De Paris, onde moram há décadas, Lélia e Sebastião participam diretamen-
te da condução de todos os projetos do Instituto Terra, que pouco a pouco vem
ajudando a mudar o quadro de degradação na região. Esse era um dos objetivos
estabelecidos desde o início de sua fundação – torná-lo um polo irradiador de
uma nova consciência ambiental, baseada na recuperação e conservação flores-
tal, aumento da produção agrícola e melhoria da qualidade vida no meio rural.
22 Até o momento, mais de 750 projetos educacionais já foram desenvolvidos 23
para um público superior a 76 mil pessoas, de 176 municípios do Vale do Rio
Doce, entre os Estados do Espírito Santo e Minas Gerais, alcançando também
os Estados da Bahia e Rio de Janeiro.
Um dos programas permanentes de educação ambiental, por exemplo, é o que
visa transformar técnicos agrícolas em agentes de desenvolvimento rural susten-
tável com foco na recuperação de áreas degradadas. Essa é a essência do curso de
formação pós-técnica mantido pelo Instituto Terra, voltado para técnicos agro-
pecuários, florestais e de meio ambiente recém-formados. Com esta iniciativa, o
Instituto Terra visa tornar acessível aos pequenos produtores rurais o conhecimento
adquirido na recuperação da Mata Atlântica, incentivando um modelo de agricul-
tura sustentável na região. Hoje, mais de 90% dos técnicos formados estão atuando
na área de formação, em pequenas propriedades de região, principalmente a partir
de projetos dos Governos de Minas Gerais e do Espírito Santo na área ambiental.
Ao reflorestar áreas degradadas, restabelecer e proteger fontes de água e com-
partilhar conhecimento ambiental com as comunidades envolvidas, o Instituto
RPPN Fazenda Bulcão, sede do Instituto Terra em Aimorés-MG,
Terra cumpre sua vocação de promover a restauração da riqueza natural do Vale
antes e depois do projeto de reflorestamento de Mata Atlântica.
do Rio Doce. Ao mesmo tempo, ao alinhar parcerias com governos, empresas
Fotos de Sebastião Salgado (2000 - 2013)
e outras instituições do terceiro setor para desenvolver os projetos que idealiza,
aponta um modelo de cooperação que sinaliza importante caminho para ga-
rantir um mundo mais sustentável para as gerações futuras.
H Introdução à Obra Coletiva
“Direitos Humanos e Meio Ambiente:
Obra Dedicada Ao Instituto Terra”

M
uito se tem falado em crise ambiental. Os debates são di-
versos e abrangem temas de várias ordens. Não se trata de
uma questão simplesmente política, cultural ou econômi-
ca, dentre outras. O que se tem é uma crise que envolve to-
dos os setores de toda a comunidade global. Pode-se dizer
que a crise ambiental de que tanto se fala é de escala global. Exemplo disso é o
derretimento das calotas polares, decorrência de alterações climáticas promo-
vidas por emissões de gases que têm promovido, há anos, o efeito estufa. Tais
emissões são feitas por diversos países, como se pode depreender do Protocolo 25
de Quioto, que almejava um planejamento para as reduzir. O derretimento de
gelo nos polos tem levado especialistas a falar na elevação do nível dos oceanos,
podendo levar ao desaparecimento sociedades insulares, por exemplo.
Embora, tecnicamente, o derretimento das calotas gere a evaporação de
água que deveria precipitar em algum lugar, o que se tem visto são ou en-
chentes violentas ou secas prolongadas. Essas duas consequências foram
sentidas, por exemplo, no Brasil, em menos de um ano. No fim de 2013,
graves enchentes deixaram desabrigadas centenas de famílias no Estado do
Espírito Santo, e no início de 2014 o mesmo ocorreu no Estado do Acre,
que ficou praticamente isolado, por terra, do resto do país. Também no iní-
cio de 2014, o Estado de São Paulo passou por um grave período de es-
tiagem, em que os reservatórios das represas atingiram níveis baixíssimos.
Também no final de 2013, os Estados Unidos da América, que não ratifi-
caram o Protocolo de Quioto para redução de emissões de gases na atmos-
fera, experimentaram uma onda de frio dantes nunca vista, que, ainda que
não tenha relação com o efeito estufa, alertou a população mundial para a
força da natureza; basta recordar o congelamento das Cataratas do Niágara.
Pela amplitude da crise, a conclusão óbvia é de que, além do envolvimento
dos políticos e governantes, também é necessário o comprometimento de toda
a coletividade, já que não se tratam de problemas pontuais com consequências
H Introdução à Obra Coletiva
“Direitos Humanos e Meio Ambiente:
Obra Dedicada Ao Instituto Terra”

restritas, mas, sim, de problemas que atingem a todos, indiscriminadamente.1 tais proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Superior Tribunal
Em outros termos, pode-se dizer que a crise ambiental é resultado de um risco de Justiça (STJ) partem de um consenso mínimo, ainda que não declarado ex-
globalmente disseminado, que se insere na propalada crise da modernidade, em pressamente, de que há certa precedência do dever de proteção do ambiente
que um de seus aspectos, talvez o mais preocupante, é exatamente aquele re- sobre o direito ao ambiente protegido, muito embora sejam faces complemen-
presentado pela possibilidade de desastres e catástrofes ambientais generaliza- tares do mesmo objeto.
das,2 experimentadas nas mais diversas regiões do planeta, ainda que elas não Em seguida, no quinto ensaio, Jackelline Fraga Pessanha e Marcelo
tenham contribuído, direta ou indiretamente, para as causar. Sant’Anna Vieira Gomes trabalham com a questão da educação em meio am-
Os vinte ensaios que compõem o livro Direitos humanos e meio ambiente: biente para a promoção da cidadania, e destacam o papel fundamental a ser
obra dedicada ao Instituto Terra retratam um pouco dessa crise da modernidade. desempenhado pelas escolas sobre a visão que as pessoas têm da importância
O livro começa com um ensaio de Heleno Florindo da Silva, que discute as do meio ambiente e dos direitos da coletividade. Também Margareth Santos
ideias e pressupostos da patrimonialização do meio ambiente decorrente do Schayder discorre sobre educação ambiental e cidadania e sua importância no
constitucionalismo moderno. O autor contrapõe essa instrumentalização com desenvolvimento de novos conhecimentos e habilidades, valores e atitudes,
a concepção formada pelo constitucionalismo dos povos latino-americanos, para resgatar a cidadania e a preocupação da sociedade com as gerações fu-
26 27
que consideram o ambiente sagrado e proporcionador do bem viver. Na sequ- turas e o futuro do planeta. No próximo ensaio, de autoria de Wagner Scopel
ência, Luísa Cortat Simonetti Gonçalves e Daury Cesar Fabriz discutem como a Falcão e Ítalo Severo Sans Inglez, também sobre educação ambiental, são fei-
instrumentalização do ambiente determinou a implantação de um estado de tas reflexões sobre o uso, em práticas docentes, das tecnologias da informação
exceção permanente que o destrói aos poucos, mas de maneira contínua, espe- e comunicação para as discussões sobre a importância do meio ambiente na
cialmente a partir de legislações que determinam retrocessos socioambientais. proteção dos direitos humanos.
O terceiro ensaio é assinado por Ivy de Souza Abreu, que discute a rela- Helena Carvalho Coelho e Lorena Ferreira Carpes assinam o oitavo ensaio e
ção do princípio da solidariedade com a defesa do meio ambiente. A auto- discutem a relação entre desigualdade social e racismo ambiental. Para as au-
ra analisa a questão do direito-dever fundamental de proteção do ambiente toras, a forma como as políticas públicas ambientais são formuladas no Brasil
como obrigação do Estado e cidadãos, que têm a responsabilidade de torná visa ocultar desigualdades sociais, o que cria injustiça ambiental, e, assim, fala-
-lo um meio sadio e de qualidade, a fim de que todos possam usufruir de um se em racismo ambiental. Também sobre o papel do Estado na promoção de
ambiente salubre, visto então como direito. No mesmo trilho, Ludmila Lais políticas públicas ambientais e justiça ambiental, o ensaio de Elizabeth de Mello
Costa Lacerda e Julio Pinheiro Faro analisam o dever fundamental de prote- Rezende Colnago parte de uma visão contemporânea do Estado e sua função
ção do meio ambiente a partir da proposta interpretativa de Ronald Dworkin socioambiental enquanto ator da sustentabilidade para reduzir os impactos
(Direito como integridade), e verificam que as decisões em questões ambien- ambientais enquanto satisfaz as necessidades públicas e atividades socialmente
desejáveis, promovendo justiça social.
1 )  N
 esse sentido, dentre outros: CAMPONOGARA, Silvimar et al. Visão de profissionais e Guardando relação com o ensaio anterior, Mariana de Siqueira discorre so-
estudantes da área de saúde sobre a interface saúde e meio ambiente. Trabalho, Educação e bre políticas de gestão democrática das águas para o desenvolvimento susten-
Saúde, Rio de Janeiro, vol. 11, n. 1, p. 93-111, jan./abr. 2013, p. 94. tável. A autora, com base na relevância da água e de sua gestão e a partir de
2 )  M
 ARTINS, Clitia Helena Backx. A sociedade de risco: visões sobre a iminência da crise considerações a respeito da educação ambiental, vislumbra que a participação
ambiental global na teoria social contemporânea. Ensaios FEE, Porto Alegre, vol. 25, n. 1, cidadã viabiliza o desenvolvimento sustentável. No mesmo sentido sobre a ne-
p. 234-235, 2004.
H Introdução à Obra Coletiva
“Direitos Humanos e Meio Ambiente:
Obra Dedicada Ao Instituto Terra”

cessidade de gestão controlada, Vanessa de Fátima Terrade desenvolve o argu- substituição processual. Por fim, Fernando Carlos Dilen da Silva e Paulo Roberto
mento pela necessidade de políticas pela gestão sustentável dos solos. Gilmar Ulhoa abordam as diversas formas de proteção do patrimônio ambiental brasi-
Alves Batista, no duodécimo ensaio, destaca a função da Defensoria Pública na leiro, em especial diante do Poder Judiciário.
promoção do direito ao ambiente e a relaciona com o exercício da cidadania, o Trata-se, pois, de um livro que traz algumas das diversas questões sobre
usufruto do saneamento básico e a garantia da justiça social. o meio ambiente. O fio condutor é a proteção ao meio ambiente. Aliás, toda
No tredécimo ensaio, Carla Amado Gomes destaca a responsabilidade do obra coletiva, por suposto, deve ter um tema central acerca do qual os trabalhos
Poder Público em realizar o planejamento territorial para gerir e prevenir o tratem, o que permite certa unidade, ainda que haja uma pluralidade de pers-
risco ambiental decorrente das alterações climáticas e seus resultados sobre a pectivas adotadas pelos autores, os quais podem partir, e é salutar que o façam,
orla costeira portuguesa. No mesmo sentido está o ensaio assinado por Orlindo de abordagens e metodologias diferentes, e que podem ser até divergentes. A
Francisco Borges, em que trata sobre a responsabilidade pelo uso de herbicidas riqueza de uma obra coletiva reside exatamente na riqueza de manifestações
e seus impactos ambientais, a partir da análise de jurisprudência internacional. sobre um mesmo tema. Por isso vale a leitura das dezoito interessantes contri-
Também Renata Machado Saraiva trata sobre a responsabilidade. Em seu buições que o presente livro oferece sobre questões ambientais.
ensaio a autora denuncia a diferença de tratamento no que tange à respon- Os ensaios que compõem o livro confirmam a força que a Academia
28 29
sabilidade por danos ao meio ambiente provocados por pessoas jurídicas de Brasileira de Direitos Humanos (ABDH) vem adquirindo em seus já quase dez
Direito público daqueles provocados por pessoas jurídicas de Direito pri- anos de existência no campo acadêmico que se compromete com o desenvol-
vado, isto é, como a norma penal é aplicada aos dois tipos genéricos de ca- vimento de pesquisas sobre direitos humanos. Trata-se já do terceiro livro. O
sos. Na sequência, Camila Pedroni Ribeiro e Cristina Grobério Pazó tratam segundo foi Direito das futuras gerações, publicado em 2013, com 23 ensaios de
sobre causas excludentes de nexo causal na responsabilidade civil por danos autores de diversas nacionalidades (Alemanha, Brasil, Espanha, França, Itália,
ao meio ambiente, a partir da procura de uma compatibilização entre as le- Portugal e Romênia). E, antes, O tempo e os direitos humanos, publicado em
gislações civil e ambiental. No décimo sétimo ensaio, Lívia Gaigher Bósio 2011, com 47 ensaios sobre o reconhecimento e concretização dos direitos,
Campello e Carlos Walter Marinho Campos Neto tratam sobre a responsabili- sob as mais variadas perspectivas, em razão da diversidade de nacionalida-
dade de pessoas jurídicas de Direito privado na promoção de um ambiente des dos autores (Alemanha, Brasil, Espanha, França, Irlanda, Itália, Portugal
de trabalho sadio para garantir condições dignas e justas de trabalho para o e Uzbequistão). Vê-se que já com os dois primeiros livros a ABDH já possui
bem-estar do trabalhador. certa inserção não apenas nacional, como também internacional. O terceiro li-
Finalizando o livro, há três ensaios sobre questões judiciárias e processuais vro, que agora se introduz, é o primeiro exclusivamente composto por ensaios
que guardam relação com o meio ambiente. Na sequência, o primeiro (décimo em língua portuguesa, os quais lidam, basicamente, com as seguintes temáticas
oitavo no livro) é assinado por Hermes Zaneti Jr., que discute o problema da gerais: a construção da concepção de proteção ao meio ambiente; educação e
abertura do ordenamento jurídico aos princípios como fonte de interpretação meio ambiente como exercício da cidadania; justiça social; políticas de prote-
dos direitos fundamentais, inclusive o direito ao meio ambiente. O autor apon- ção ao meio ambiente; responsabilidade por danos ao meio ambiente; questões
ta a importância das decisões judiciais para a garantia dos direitos relaciona- judiciárias e processuais.
dos ao meio ambiente. O segundo (penúltimo no livro) é da autoria de Márcia
Vitor de Magalhães e Guerra e aborda a questão de uma adequada representa- Julio Pinheiro Faro
ção e legitimação nos processos coletivos ambientais a partir do instituto da Secretário-Geral da Abdh
1
A Patrimonialização do Meio Ambiente e o
Novo Constitucionalismo Latino-Americano:
A Pachamama e a Busca pelo Buen Vivir

Heleno Florindo da Silva1


Faculdade São Geraldo

Sumário: Introdução. 1 O Direito Ambiental Pátrio e a Constituição


Federal de 1988: A Instrumentalização do Meio Ambiente para a Vida
Humana Como Mecanismo de sua Patrimonialização.
2 A Pachamama e o Novo Constitucionalismo Latino-Americano:
31
Uma Revolução Ecológica Parae Pelobem Viver. Conclusão

1 )  M
 embro do Grupo de Pesquisa Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fundamen-
tais da Faculdade de Direito de Vitória. Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela
Faculdade de Direito de Vitória (CAPES 4). Pós Graduado em Direito Público e Bacharel
em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. Membro Diretor da Academia Bra-
sileira de Direitos Humanos (ABDH). Professor do Curso de Direito da Faculdade São
Geraldo (FSG). Professor de Direito Administrativo do Centro de Evolução Profissional
(CEP). Advogado.
A Patrimonialização do Meio Ambiente e o Novo Constitucionalismo
Latino-Americano: A Pachamama e a Busca pelo Buen Vivir Heleno Florindo da Silva M Faculdade São Geraldo

H Introdução Assim, através de um diálogo múltiplo dialético se buscará resposta ao


seguinte questionamento: é possível perceber no cenário inaugurado pelo
A atualidade dos seres humanos os obriga a identificar e realizar atos, das mais novo constitucionalismo latino-americano uma nova racionalidade para o
variadas espécies e naturezas, sempre ao mesmo tempo, instantaneamente, pois meio ambiente, capaz de romper com a racionalidade constitucional oci-
o Homem de hoje – o aceito social, cultural e politicamente pela sociedade em dental da modernidade?
que vive – é aquele que consegue acompanhar todo o cenário de virtualização
das relações humanas, de patrimonialização dos padrões sociais e de confli-
to entre os papeis sociais desenvolvidos individual e coletivamente por todos.
1) O Direito Ambiental Pátrio e a Constituição Federal de
É a partir desse contexto que o presente trabalho buscará analisar os problemas
inerentes ao debate acerca do meio ambiente2, principalmente, aquelas discussões 1988: A Instrumentalização do Meio Ambiente para a Vida
oriundas de uma premissa patrimonializante desse meio ambiente, que se des-
Humana como Mecanismo de sua Patrimonialização
dobra, como veremos, na construção constitucional e infraconstitucional de uma
ideia, patrimonial para o meio ambiente.
A preocupação com o Meio Ambiente no ordenamento jurídico brasileiro
Para tanto, num primeiro momento, será abordado acepções básicas sobre a
data de muito antes do Brasil existir como um país independente, ou seja,
ideia de meio ambiente dispostas pelo direito brasileiro, principalmente, pelo di-
as Ordenações Filipinas, já previam em seu Livro Quinto, Título LXXV,
reito ambiental, concluindo ao final do capítulo, a partir de uma análise geral, pela
uma pena gravíssima àquele que cortasse, indevidamente, árvore ou fruto,
existência, a partir do ordenamento jurídico pátrio, inerente às discussões sobre o
estando o sujeito às penas de açoite e ao degredo para a África pelo prazo
meio ambiente, pela existência de uma instrumentalização desse meio ambiente,
de quatro anos, nos casos de danos mínimos, ou perpetuamente, se o dano
32 vista, pela racionalidade constitucional da modernidade ocidental, como requisito 33
fosse de natureza grave3.
essencial para a Vida Humana.
Contudo, em que pesem as primeiras preocupações em nosso território da-
Já no capítulo dois, busca-se trazer às discussões uma nova visão cons-
tarem do período colonial, foi só com a Constituição de 1988 que o Meio
titucional, ou seja, um novo modelo para as Teorias da Constituição e do
Ambiente passou a ser disposto, constitucionalmente, em capítulo próprio
Estado, um modelo que se convencionou chamar de novo constitucionalis-
dentro das normas constitucionais do Texto Maior.
mo latino-americano, e que, dentre outras, possui grande importância para
A respeito desse ponto, Milaré aponta que a Constituição Federal de
(re)discutirmos as questões ambientais do modelo atual de sociedade – so-
1988 pode ser visto como “(...) marco histórico de inegável valor, dado que as
bretudo das sociedades ocidentais.
Constituições que precederam a de 1988 jamais se preocuparam da proteção
É aqui que serão abordadas as principais características desse novo cená-
do meio ambiente de forma específica e global. Nelas sequer uma vez foi em-
rio a fim de concluir ao final, que nesse novo cenário o meio ambiente passa a
pregada a expressão ‘meio ambiente’, a revelar total despreocupação com o pró-
ser visto não mais como um patrimônio da humanidade, mas, por outro lado,
prio espaço em que vivemos4”.
como algo maior, algo que os povos indígenas campesinos andinos denomi-
A Carta Constitucional de 1988, portanto, surge a partir de um mo-
nam como Pachamama.
mento em que os países, regra geral, começam a discutir as questões am-
A busca pelo bem viver, que embasa essa pesquisa e esse trabalho, à luz do novo
bientais com maior seriedade, percebendo, a partir de dados climáticos de
constitucionalismo latino-americano, como se perceberá abaixo, surge como um
pesquisas científicas sobre as mudanças do clima, um futuro preocupante
caminho possível para a rediscussão da ideia patrimonialista inerente ao meio am-
biente – premissa imposta pela racionalidade constitucional ocidental moderna.
3 ) FEDERAL, Supremo Tribunal. Inquérito n. 870-2/RJ. 1996. p. 11-462 apud MORAES,
Alexandre de. Direito Constitucional. 21ª ed. ampl. até EC/53 de 19 de Dezembro de
2 )  T
 odas as discussões sobre o meio ambiente desenvolvidas no presente trabalho giram en- 2006. São Paulo: Atlas, 2007. p. 795.
torno do meio ambiente natural, ou seja, não se discute neste trabalho, os meio ambientes
artificiais, culturais e do trabalho. 4 )  MILARÉ, Édis. Legislação Ambiental do Brasil. São Paulo: APMP, 1991. p. 3.

Direitos Humanos e Meio Ambiente Obra dedicada ao Instituto Terra


A Patrimonialização do Meio Ambiente e o Novo Constitucionalismo
Latino-Americano: A Pachamama e a Busca pelo Buen Vivir Heleno Florindo da Silva M Faculdade São Geraldo

para as próximas gerações que nada fosse feito. O art. 225, caput, do citado Texto Constitucional de 1988, neste sentido,
Nos termos da Declaração sobre o Ambiente Humano, concretizada duran- assevera que todos têm direito ao meio ambiente, sendo esse, um ambiente
te a Conferência das Nações Unidas em Estocolmo na Suécia em 1972, quando ecologicamente equilibrado, algo essencial à sadia qualidade de vida. Para tan-
os países, ali reunidos, dentre os quais o Brasil, proclamaram “O homem tem o to, impõe ao “(...) Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e pre-
direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida servá-lo para as presentes e futuras gerações”.
adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permite levar uma Para conseguir analisar a ideia por traz de um meio ambiente ecologica-
vida digna, gozar de bem-estar e é portador solene de obrigação de proteger e mente equilibrado, o Direito necessita aliar conhecimentos de outras áreas, tais
melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras. A esse respeito, como: a Ecologia, a Biologia, a Geografia, dentre outras.
as políticas que promovem ou perpetuam o ‘apartheid’, a segregação racial, a dis- É a Ecologia, por exemplo, a responsável por conceituar biosfera como sen-
criminação, a opressão colonial e outras formas de opressão e de dominação es- do o conjunto do solo, da água e do ar existentes no Planeta Terra, elementos
trangeira permanecem condenadas e devem ser eliminadas. Os recursos naturais indispensáveis à vida, principalmente, a do Homem.
da Terra, incluídos o ar, a água, o solo, a flora e a fauna e, especialmente, parcelas Mas, mesmo no Direito, há uma distribuição entre os vários ramos de seu
representativas dos ecossistemas naturais, devem ser preservados em benefício das conhecimento para debater sobre o meio ambiente. A proteção, portanto,
gerações atuais e futuras, mediante um cuidadoso planejamento ou administra- nos termos postos na Constituição de 1988, é uma simbiose entre o Direito
ção adequados. Deve ser mantida e, sempre que possível, restaurada ou melhora- Constitucional, o Direito Ambiental, o Direito Internacional, o Direito Civil,
da a capacidade da Terra de produzir recursos renováveis vitais. O homem tem a o Direito Administrativo, entre outros.
responsabilidade especial de preservar e administrar judiciosamente o patrimônio Essa é a característica que possibilita visualizarmos uma evolução em con-
representado pela fauna e flora silvestres, bem assim o seu habitat, que se encon- ceitos tradicionais como a soberania, o direito de propriedade, o interesse pú-
34 tram atualmente em grave perigo, por uma combinação de fatores adversos. Em blico e privado, sendo que, para Guido Fernando Silva Soares “(...) no fundo, o 35
conseqüência, ao planificar o desenvolvimento econômico, dever ser atribuída im- meio ambiente é um conceito que desconhece os fenômenos das fronteiras, re-
portância à conservação da natureza, incluídas a flora e a fauna silvestres5”. alidades essas que foram determinadas por critérios históricos e políticos, e que
Dessas premissas, é possível detectar um dado que serviu de base para todas se expressam em definições jurídicas de delimitações dos espaços do Universo,
as concepções de proteção ao meio ambiente desde então, qual seja, a ideia de denominadas fronteiras. Na verdade, ventos e correntes marítimas não respei-
que o meio ambiente e seus recursos compõem-se de patrimônio disponível à tam linhas divisórias fixadas em terra ou nos espaços aquáticos ou aéreos, por
humanidade, um patrimônio, inclusive, comum da humanidade, devendo sua critérios humanos, nem as aves migratórias ou os habitantes dos mares e ocea-
proteção integral ser posta em prática, especialmente, para que as gerações fu- nos necessitam de passaportes para atravessar fronteiras, as quais foram delimi-
turas também possam desfrutar desse patrimônio. tadas, em função dos homens6”.
Conforme se debaterá no tópico abaixo, os povos indígenas latino-ameri- Os estudos sobre o meio ambiente, a partir das bases do constitucionalis-
canos, especialmente, aqueles de origem andina, percebem o meio ambiente de mo ocidental da modernidade, que o fixa como um patrimônio difuso, algo
uma forma diversa. Percebem-no através da designação Pachamama, que será que vai além das divisas de uma propriedade, estão, portanto, conforme deba-
melhor trabalhada a seguir. tido, fincados em premissas patrimonializantes.
A Constituição Federal de 1988, a partir dessa visão sobre o meio ambiente, Jimenez traduz muito bem essa ideia quando discute o fato de que os
consubstanciada por documentos internacionais que foram surgindo, principal- últimos, e maiores, acidentes ambientais das três décadas anteriores, nos
mente, a partir da segunda metade do século passado, determinou a proteção do possibilitam perceber como o direito fundamental ao meio ambiente equi-
meio ambiente, um direito fundamental de todos os brasileiros, como um dever do librado deve ser uma preocupação para além das fronteiras criadas pelo
Poder Público, da sociedade e de cada um do povo.

6 )  S
 OARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente. São Paulo:
5 )  ONU, Declaração Sobre Ambiente Humano, 1972, Preâmbulo – Tradução Nossa. Atlas, 2001. p. 298 e 299.

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A Patrimonialização do Meio Ambiente e o Novo Constitucionalismo
Latino-Americano: A Pachamama e a Busca pelo Buen Vivir Heleno Florindo da Silva M Faculdade São Geraldo

homem em suas convenções sociais, políticas e culturais7. bem como sustentar todo um ramo da Ciência Jurídica como o direito ambiental.
Acerca desse contexto o direito ambiental subsumido, primeira e principal- A necessidade de estabelecer um tratamento sistematizado e associado aos
mente, pelas determinações do art. 225, da Constituição Federal de 1988, deve temas da proteção ambiental e humana, que pode ser visto a partir da análise
ser interpretado sempre em consonância com o art. 1º, III, do mesmo diplo- do direito fundamental a proteção ao meio ambiente para as gerações presen-
ma legal, que determina a dignidade humana como um dos fundamentos da tes e futuras, foi exposta por Cançado Trindade, ao considerar que “Embora
República do Brasil, o art. 3º, II, que determina um dos objetivos fundamentais tenham os domínios da proteção do ser humano e da proteção ambiental sido
da república o desenvolvimento nacional, pautado sempre pelos ideais de sus- tratados até o presente separadamente, é necessário buscar maior aproximação
tentabilidade inerentes ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. entre eles, porquanto correspondem aos principais desafios de nosso tempo, a
A efetivação dos direitos humanos, portanto, tão necessária para a melho- afetarem em última análise os rumos e destinos do gênero humano9”.
ria da vida em sociedade, principalmente do direito à vida em um ambiente Realizando uma análise do comportamento humano a partir dessas discus-
ecologicamente equilibrado e do direito ao desenvolvimento sustentável daí sões sobre o meio ambiente que desabrocharam, como visto, com maior regu-
decorrente, também representa uma das maiores buscas da humanidade8 do laridade na segunda metade do século passado, Lipovetsky conclui que “(...) a
pós Segunda Guerra Mundial. ideia de que a Terra está em perigo de morte, impôs uma nova dimensão de
Essa relação está centrada, em resumo, em dois importantes aspectos, quais responsabilidade, uma concepção inédita das obrigações humanas que ultra-
sejam: a) na proteção do meio ambiente como uma das formas da humanidade passa a ética tradicional, circunscrita às relações inter-humanas imediatas10”.
e, no caso do Brasil, de seu povo conseguir a efetivação dos direitos humanos Diante desse novo contexto ético-ecológico de necessidade de discussão e
garantidos pela Constituição de 1988, vez que o meio ambiente, caso seja le- proteção do meio ambiente, os direitos humanos também são trazidos ao ce-
sado, reflete uma contribuição direta para a infração de direitos reconhecidos nário do debate como verdadeiros alicerces de entendimento e salvaguarda
36 internacionalmente, tais como: à vida, à saúde, o bem-estar, o desenvolvimento desse novo contexto ambiental. 37
sustentável, entre outros. O meio ambiente, através das construções modernas do constitucionalis-
E, b) os direitos ambientais dependem da concretização dos direitos humanos mo ocidental, é visto como um patrimônio da humanidade, um patrimônio
para, também, se efetivarem, pois é através do direito à informação, da liberdade de comum, um bem necessário para a manutenção e o desenvolvimento da vida
expressão, da tutela judicial inafastável, da participação política no Estado nos as- humana, de modo que “A sucessão de catástrofes ecológicas (...) deram lugar a
suntos da vida civil de seu povo, ou seja, na busca pelo exercício da cidadania, que uma conscientização de massa no que toca aos danos do progresso, bem como a
será possível, consequentemente, reivindicar direitos relativos ao meio ambiente, um largo consenso em torno da urgência de salvaguardar o ‘patrimônio comum
da humanidade’. Multiplicação das associações de proteção da natureza, ‘dia da
Terra’, sucessos eleitorais dos Verdes – a nossa época assiste ao triunfo dos valores
7 )  JIMENEZ, Martha Lucia Olivar. O Estabelecimento de Uma Política Comum de Pro- ecológicos, a hora é do ‘contrato natural’ e da cidadania mundial, o ‘nosso país é o
teção ao Meio Ambiente: sua necessidade num mercado comum. Estudos de Integração. Planeta’. (...) Os nossos deveres superiores já não são para com a nação: a defesa
Brasília: Associação Brasileira de Estudos de Integração do Senado Federal, 1994, v. 7. p. 15.
do ambiente tornou-se um objetivo de massas (...)11”.
8 )  S
 obre tais apontamentos Cançado Trindade destacar ser importante que se considere “para A Lei 6.938/81, responsável pela instituição da Política Nacional do Meio
os desenvolvimentos futuros dos mecanismos de proteção internacional da pessoa humana
e do meio ambiente a questão de sua proteção erga omnes. Os distintos instrumentos de
proteção internacional dos direitos humanos e do meio ambiente incorporam obrigações de
conteúdo e alcance variáveis: algumas normas são suscetíveis de aplicabilidade direta, outras 9 ) TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio Ambiente: para-
afiguram-se antes como programáticas. Há, pois, que prestar atenção à natureza jurídica das lelo dos sistemas de proteção internacional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor,
obrigações. A esse respeito surge precisamente a questão da proteção erga omnes de determi- 1993. p. 23.
nados direitos garantidos, quelevanta o ponto da aplicabilidade a terceiros – simples particu- 10 )  L
 IPOVETSKY, Gilles. O Crepúsculo do Dever: a ética indolor dos novos tempos demo-
lares ou grupos de particulares – de disposições convencionais (denominado “Drittwirkung” cráticos. Trad. GASPAR, Fátima e GASPAR Carlos. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
na bibliografia jurídica alemã)” (TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos Hu- 1994. p. 244.
manos e Meio Ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris Editor, 1993. p. 145). 11 )  Idem. Ibidem. p. 243-245.

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Ambiente, o descreveu como um patrimônio público, ou seja, um patrimônio dos está no consumo desenfreado, na visão de um meio ambiente patrimo-
Homens de uso coletivo, verdadeiro princípio de direito ambiental que regerá as nializado, mas numa vida de plenitude – sumak kawsay 13–, ou seja, na-
relações entre os seres humanos e seus impactos no meio ambiente (art. 2º, I). quilo que se convencionou chamar de buen vivir.
O direito ambiental, desse modo, deve ser visto, principalmente a partir da Contudo, essa vida de plenitude não é possível de ser alcançada a partir
Constituição Federal de 1988, como verdadeiro instrumento de salvaguarda e ga- do sistema-mundo em que vivemos – pautado em competição, na busca de-
rantia ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, visto como verdadeiro patri- senfreada pelo acúmulo de capital, num sentimento de violência endêmica,
mônio do ser humano pela legislação ambiental brasileira, bem como pelo constitu- de medo do outro, do diferente, do diverso – de modo que há necessidade
cionalismo ocidental da modernidade, que vê esse meio ambiente como verdadeiro de mudarmos as estruturas do atual modelo de Estado.
instrumento nas mãos dos seres humanos. Devemos, assim, rediscutir os dogmas do constitucionalismo moder-
Por fim, no próximo tópico serão debatidos os fundamentos do novo cons- no, não a partir de visões europeias das mais incríveis e difíceis teorias do
titucionalismo latino-americano, bem como o novo modelo Plurinacional de Direito, do Estado ou da Constituição, mas sim, a partir de nós mesmos14,
Estado e, a partir dessas novas premissas constitucionais e éticas, como é pos- dos nossos conhecimentos, de nossa emancipação15.
sível identificar um tratamento ao meio ambiente que o identifique não mais A construção latino-americana, em relevo, promove a separação da ideia
como um patrimônio, mas sim, como um verdadeiro sujeito de direitos. de nação em duas frentes. Existe uma nacionalidade cívica, que nos identifica-
ria como brasileiros, argentinos, ingleses, espanhóis e assim por diante, e uma
nacionalidade étnico-cultural. É a partir disso que Santos aponta que “Não há
um conceito de nação, há dois conceitos de nação e não há necessariamente um
2) A Pachamama e o Novo Constitucionalismo Latino-
38 Americano: Uma Revolução Ecológica Parae Pelobem Viver 13 )  S
 egundo Macas Sumak Kawsay seria a vida em plenitude, “a vida em excelência material 39
e espiritual”. Segundo ele, essa ideia nasce da junção entre El Sumak – a plenitude, o su-
Todo esse cenário atual – de verdadeira crise civilizatória12 –, fruto daquilo que blime, excelente, magnífico, e etc. – e El Kawsay – que nada mais é do que a vida, o ser,
o estar, mas de forma dinâmica, ou seja, não como algo passivo, imposto por uma cultura
a modernidade impôs ao mundo como único padrão político, econômico, so- dominante, hegemônica (MACAS, Luis. Sumak Kawsay: la vida en plenitud. In.: Sumak
cial, cultural e ambiental possíveis, que necessariamente deveriam ser parti- Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecu-
lhados por todos, caminha para autodestruição. É o momento, portanto, de ador, febrero 2010).
pensarmos alternativas a esse modelo ideologizante, homogeneizante e uni- 14 )  A
 s principais formas de resistência ao modelo moderno e europeu de sociedade do capital
formizador de patrimonialização do meio ambiente. – um modelo cada vez mais depredador, seja da natureza, seja do próprio homem – se-
gundo Lander vêm do Sul, ou seja, dos países cujas culturas originárias foram encobertas
E é com essa perspectiva que uma nova racionalidade – que é milenar, pela europeia por mais de 500 anos. Assim, ele aponta que “as principais resistências a este
mas que estava encoberta pela racionalidade europeia moderna desde o modelo depredador, a este processo de acumulação por desapropriação, ocorre em povos e
“descobrimento das Américas” – começa a ser discutida e constituciona- comunidades campesinas e indígenas em todo o planeta, particularmente no Sul” (LAN-
DER, Edgardo. Estamos Viviendo Una Profunda Crisis Civilizatoria. In.: Sumak Kawsay:
lizada na América Latina, principalmente, nos países andinos. recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero
Uma racionalidade que está pautada em preceitos indígenas, em con- 2010. p. 2 – tradução nossa). Neste sentido, Boaventura também aponta como essas comu-
ceitos e modos de ver a vida, de viver a vida, sob um prisma totalmente nidades são amantes de seu país, como querem e lutam por seu país, participar e construir,
juntos, um novo modelo de sociedade, um novo Estado, ou seja, destaca que “não tinha
diverso da hiper competição dos dias atuais. A busca pela felicidade não visto ainda gente tão nacionalista como os indígenas, amantes de seu país. Lutaram por
seu país, morreram por seu país nas guerras da independência, nas lutas depois da indepen-
dência; são equatorianos, são peruanos, são colombianos, mas, também, são aymaras, são
12 )  N
 este sentido, Lander aponta que “para amplos movimentos sociais em todo o planeta quechuas, são shuar” (SANTOS, Boaventura de Sousa. “Hablamos Del Socialismo Del Buen
está cada vez mais claro que confrontamos uma profunda crise civilizatória, que estamos Vivir”. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II
diante da crise terminal de um padrão civilizatório baseado em guerras sistemáticas pelo época, Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 5 – tradução nossa).
controle e submissão/ destruição da natureza (LANDER, Edgardo. Estamos Viviendo Una
Profunda Crisis Civilizatoria. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 15 )  MACAS, Luis. Sumak Kawsay: la vida en plenitud. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sen-
452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 3 – tradução nossa). tido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 16.

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conflito entre eles. A concepção de nação cívica, de origem liberal, cidadã – to- onde a terra é vida em si, bem como o lugar de todos os seres vivos20”.
dos somos equatorianos, bolivianos, brasileiros, portugueses (este era o conceito Através dessas discussões é possível perceber que o modo como essas cultu-
liberal de cidadania e da nação cívica, geopolítica). Mas há um conceito étni- ras indígenas e campesinas latino-americanas – que se embasa na busca por um
co-cultural (...). Uma nacionalidade que tem raízes étnico-culturais e que não bem viver – constroem ou reconstroem sua racionalidade para a vida, se corro-
colide, não cria, necessariamente, conflito com o primeiro conceito de nação16”. bora na ideia de que cada cultura conserva em si, sua própria identidade, que
Toda essa busca, resgate, dos valores encobertos pela modernidade europeia no não pode ser relegada por um modelo, uma identidade nacional, homogênea,
contexto latino-americano, de enorme diversidade étnico-cultural, política, eco- desenvolvimentista e uniforme, do ser21, que o meio ambiente não guarda, por-
nômica e social, corrobora uma tentativa de se resgatar no passado – de culturas tanto, a característica patrimonialista que a modernidade ocidental lhe impôs.
milenares, tais como: as andinas, onde se destacam a Inca; a Asteca; a Maia; as Na cosmovisão dos povos originários latino-americanos, segundo
Amazônicas, entre outras – uma racionalidade para o futuro, que seja mais respei- Huanacuni, “não existe um estado anterior ou posterior de subdesenvolvi-
tosa com a diversidade cultural da América Latina, bem como com a natureza17. mento ou de desenvolvimento, como condição para se alcançar uma vida
Assim, a busca pelo bem viver que estampa este ponto do trabalho, ne- desejável, tal como ocorre no mundo ocidental”, europeu e norte americano,
cessariamente deve passar pelo desencobrimento dos conhecimentos que mas, ao contrário, há todo um esforço para se construir as condições mate-
foram encobertos ao longo dos séculos por aquilo que Dussel chama de riais e espirituais necessárias a criar e manter um bem viver, “que se define
“mito da modernidade18”. também como vida harmoniosa e em permanente construção22”.
Céspedes19 também analisará a necessidade de resgatar o outro, o diverso, o Antes de continuarmos a análise dessa nova visão latino-americana de pac-
diferente, encoberto pela hegemonia uniformizadora, homogeneizante e ide- to social, de um constitucionalismo da diversidade, de um Estado que não seja
ologizante do eu, para alcançarmos o bem viver, chegando a conclusão de que somente uni nacional, mas sim plurinacional, ou seja, de toda essa novidade
40 “Viver bem é recuperar a vivência de nossos povos, recuperar a cultura da vida que os constitucionalistas contemporâneos vêm chamando de novo consti- 41
e recuperar nossa vida em completa harmonia e respeito mútuo com a mãe na- tucionalismo latino-americano, é necessário explicar algumas ideias que las-
tureza, com a Pachamama, onde tudo é Vida, onde todos somos uywas, criados treiam toda essa racionalidade, tais como: o símbolo cultural Pachamama.
da natureza e do cosmos, onde todos somos parte da natureza e não há nada Para analisarmos essa ideia, muito importante para as culturas indígenas
separado, onde o vento, as estrelas, as plantas, as pedras (...) são nossos irmãos, andinas da América Latina, e que embasa todas as discussões constitucionais
mais recentes neste território, é preciso compreender a etimologia dessa pa-
lavra, ou seja, é necessário compreender, por exemplo, o que é Pacha.
16 )  S
 ANTOS, Boaventura de Sousa. “Hablamos Del Socialismo Del Buen Vivir”. In.: Sumak
Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecua- De um modo geral, para as culturas indígenas e campesinas andinas, Pacha
dor, febrero 2010. p. 5.
17 )  S
 obre a necessidade de frearmos a modernidade europeia capitalista, do consumo em 20 )  D
 iante disso, Céspedes conclui que essa racionalidade latino-americana discutida não bus-
competição cada vez mais acirrado e necessário para a manutenção do próprio sistema, cará, num primeiro momento, falar de justiça social, “porque quando falamos de construir
José Alberto Mujica Cordano, presidente da República Oriental do Uruguai, em discurso uma sociedade com justiça social, estamos falando unicamente das pessoas – humanos – e
proferido na ocasião da conferência da Organização das Nações Unidas para assuntos cli- isso é excludente” (CÉSPEDES, David Choquehuanca. Hacia La Reconstrucción Del Vivir
máticos (Rio+20), nos aponta o fato de que não restaria oxigênio a ser respirado no mundo, Bien. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II
se os “Indianos tivessem a mesma quantidade de carros por família que os Alemães”, e época, Quito, Ecuador, febrero 2010, p. 10 e 11).
conclui, que “não se trata de mudarmos e voltar às épocas dos homens das cavernas, nem de
termos um ‘monumento ao atraso’”, mas sim, que o desenvolvimento não pode ser contra a 21 )  E
 ssa ideia é percebida por Macas quando chega a conclusão de que “toda sociedade é o
felicidade do homem, ou seja, tem que ser a favor da felicidade humana. resultado de um processo social, econômico, político, cultural, histórico determinado. Os
povos ou as nações, (...). os seres humanos, são o produto da vida em sociedade” (MACAS,
18 )  DUSSEL, Enrique. 1492 El Encubrimiento Del Otro: hacia El origen del “mito de La Luis. Sumak Kawsay: la vida en plenitud. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida.
Modernidad. La Paz: Plural Editores, 1994. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 14 – tradução nossa).
19 )  C
 ÉSPEDES, David Choquehuanca. Hacia La Reconstrucción Del Vivir Bien. In.: Sumak 22 )  HUANACUNI, Fernando. Paradigma Occidental y Paradigma Indígena Originario. In.:
Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecu- Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito,
ador, febrero 2010. p. 10. Ecuador, febrero 2010. p. 19 – tradução nossa.

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é um termo plurissignificativo e multidimensional, pois todas as formas de De outro lado, enquanto tempo26, Pacha é a junção das cinco formas de tempo
existência vêm a ser a síntese das forças que movem a vida, ou seja, das forças – segundo a racionalidade andina –, ou seja, o tempo que é presente (Jichapacha),
cósmicas e telúricas23, do tempo e do espaço e forças que vão além disso. o tempo que é passado (Nayrapacha), o tempo que é futuro (Jutirpacha), o tempo
Huanacuni destaca sobre esse termo que “A palavra Pacha tem essa concep- que é intenso (Sintipacha) e o tempo que é eterno (Wiñaypacha).
ção, pois representa a união de ambas as forças: Pa que vem de Paya – que sig- É a partir disso que Huanacuni chega à conclusão de que “É importante
nifica dois – y Cha que vem de Chama – que significa força. Duas forças cós- diferenciar as concepções a respeito da ideia de tempo entre o Ocidente e os
mico-telúricas que interatuam para poder expressar isto que chamamos vida, Andes. Para o Ocidente o tempo é linear, vem de um passado, passa por um
como a totalidade do visível (Pachamama) e do invisível (Pachakama)”24. presente produto desse passado e vai para um futuro. No mundo andino o tem-
A ideia por detrás do símbolo cultural Pacha não se restringe ao modelo po é circular; se assume um presente, no entanto, que é contínuo, de modo que
de espaço-tempo da racionalidade moderna europeia, de modo que há que ser passado e futuro acabam se fundindo em um só ao final27.
destacado que enquanto espaço, Pacha é a junção das forças cósmicas – repre- A racionalidade andina que fundamenta toda essa recente discussão consti-
sentadas pelo Alaxpacha e pelo Kawkipacha – e das forças telúricas – represen- tucional trazida à luz pelas recentes Constituições latino-americanas, não con-
tadas pelo Akapacha e pelo Manqhapacha25. cebe nada como estático, pois tudo está em um eterno movimento. Por isso,
buscam a ideia de bem viver, que é viver a vida com mais brilho, plenamente,
em um tempo que sempre será o presente.
23 ) Conforme analisado acima, para as culturas indígenas e campesinas dos Andes latino-ame-
ricanos, embasadas em seus ancestrais, existem duas forças que movem tudo o que existe, Esse bem viver vem romper com a estética moderna europeia de vida, de
uma força cósmica, divina, que vem do céu aos seres vivos, e uma força telúrica, que nasce realidade, de sociedade, de meio ambiente como patrimônio da humanidade
da terra, que formará aquilo que eles entendem ser a Pachamama. Desse modo, é possível e, principalmente, de Estado e de sistema econômico28, haja vista a “noção de
perceber que para essa cultura, essa racionalidade, essa cosmovisão andina, tudo o que existe
42 no mundo possui vida, seja algo orgânico, seja algo inorgânico. Portanto, é da conversão bem viver desprezar a acumulação como categoria central da economia, situ- 43
dessas forças no decorrer do processo da vida, que todas as diferentes formas dessa vida
surgem. Essas diferentes formas de vida passam a se relacionar com aquilo que nessa cos-
movisão se entende como Ayni, a complementaridade, o equilíbrio, pois é a diferença, a
diversidade, em equilíbrio, que completará o sentido da vida, do bem viver (HUANACU- do mundo de baixo, ou seja, se refere ao mundo de baixo, onde se acham as forças da mãe
NI, Fernando. Paradigma Occidental y Paradigma Indígena Originario. In.: Sumak Kawsay: terra. O mundo andino concebe vida ao interior da terra. Em relação aos seres humanos,
recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero manqhapacha é o mundo interior, e no espaço de percepção humana, significa o subcons-
2010. p. 21 e 22 – tradução nossa). ciente (HUANACUNI, Fernando. Paradigma Occidental y Paradigma Indígena Originario.
24 ) Portanto, conforme conclui Huanacuni “para o ser andino esta palavra vai mais além do In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época,
tempo e do espaço, implica uma forma de vida, uma forma de entender o universo que supe- Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 22 – tradução nossa).
ra o tempo-espaço (o aqui e o agora). Pacha não só é tempo e espaço, é também a capacidade 26 ) Uma análise crítica sobre as construções teóricas que narram o tempo inerente aos pro-
de participar ativamente do universo, submergir-se e estar nele” (HUANACUNI, Fernando. cessos sociais, sua duração, produção e reprodução, a partir de uma racionalidade ociden-
Paradigma Occidental y Paradigma Indígena Originario. In.: Sumak Kawsay: recuperar el tal, linear, causal e estrutural, ver TÀPIA, Luis. Tiempo, Poiesis y Modelos de Regularidad.
sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 21 In.:Pluralismo Epistemológico. La Paz: Muela del Diablo Editores, 2009, p. 177-192.
e 22 – tradução nossa).
27 ) HUANACUNI, Fernando. Paradigma Occidental y Paradigma Indígena Originario. In.: Su-
25 ) Alaxpacha representa a dimensão de um plano superior, ou seja, compreende o plano supe- mak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito,
rior tangível, visível, onde se olham as estrelas, o sol, a lua, o raio. No ser humano, alaxpacha Ecuador, febrero 2010. p. 22 – tradução nossa
compreende o corpo invisível, o emocional, o etéreo. Por outro lado, Kawkipacha, a dimen-
são de um plano indeterminado, representa o mundo desconhecido, indefinido, o mundo 28 ) Isso pode ser percebido mais claramente em Gargarella e Courtis, 2009, quando demons-
que existe mais além do que é visível. O mundo andino concebe que existe vida mais além tram como as recentes Constituições de Equador e Bolívia vêm romper com as tradições
do universo visível. Se nos referirmos aos seres humanos, kawkipacha é aquilo que está constitucionais da modernidade europeia – elitistas e individualistas (GARGARELLA, Ro-
mais além do corpo tangível, podemo-los chamar de ‘essência da vida’. Enquanto força berto e COURTIS, Christian. El Nuevo Constitucionalismo Latinoamericano: promesas
telúrica, Akapacha representa a dimensão, o espaço deste mundo em que vivemos, ou seja, e interrogantes. Santiago: CEPAL, 2009. p. 21) –, que são, sobretudo, conforme nos aponta
corresponde a este mundo, onde se desenvolve toda a forma de vida visível, seja ela humana, Magalhães pautadas na ideia da propriedade individualizada e uniformizada, bem como da
animal, vegetal ou mineral. Em relação aos seres humanos, akapacha corresponde ao corpo família como algo a seguir um único padrão – o europeu (MAGALHÃES, José Luiz Qua-
físico e ao espaço da percepção humana consciente. Por fim, Manqhapacha é a dimensão dros de. Estado Plurinacional e Direito Internacional. Curitiba: Juruá, 2012e, p. 13 e 14).

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ando a vida nesta centralidade29”, ou seja, o bem viver andino não é somen- tucionalismo multicultural (1982/1988), fruto das primeiras discussões acerca
te uma utopia para o futuro das próximas gerações, mas, ao contrário, é uma da insuficiência do modelo antigo em garantir direitos – de primeira, segunda
constante realidade presente. ou terceira dimensão – para aquelas pessoas que não representassem os ideais –
Tracejadas as principais características dessa nova racionalidade social, po- fosse com relação à cor da pele, a religião ou ao modo de viver – da cultura eu-
lítica, cultural e econômica, fruto de inúmeras revoluções nos países de origem ropeia, cristã e capitalista, imposta pelo colonizador – o que serviu para o reco-
indígena e campesina da América Latina, é necessário destacar como toda essa nhecimento de direitos indígenas específicos, bem como para a introdução, nos
busca se desenvolveu nas últimas décadas, apontando quais os principais textos textos das diversas Constituições da época, da noção de diversidade cultural.
constitucionais latino-americanos representam a formação dessas discussões. Em seguida, o autor destaca como segundo ciclo de formação desse consti-
As primeiras visualizações desse novo modelo constitucional – conforme tucionalismo latino-americano em discussão, a ascensão do que se denominou
as palavras de Vieira30– buscam as principais características das Constituições na época, de constitucionalismo pluricultural (1988/2005), que surge como
latino-americanas mais recentes, de modo a firmar a percepção de que essas instrumento para o reconhecimento da existência de sociedades multiétni-
Constituições inauguram um constitucionalismo a partir de toda a racionali- cas e de Estados Pluriculturais – um exemplo desse período é a Constituição
dade indígena e campesina descrita acima, o que dá azo a uma nova conforma- Pluricultural da Venezuela de 199933.
ção tanto para o Estado, quanto para o Direito e para a sociedade. Como último ciclo de desenvolvimento desse constitucionalismo lati-
O citado autor ainda apresenta como uma das principais características no americano, Baldi destacará o constitucionalismo plurinacional surgido em
desse cenário que surge, o fato de que nesse novo constitucionalismo o povo 2006 no contexto da Declaração das Nações Unidas sobre direitos indígenas,
ser visto como uma sociedade aberta de sujeitos constituintes, o que, via de bem como nos contextos das assembleias nacionais constituintes da Bolívia e
consequência, representa uma superação das noções de identidade nacional, do Equador, que concretizaram a formação dos primeiros modelos de consti-
44 construídas em torno de uma cultura hegemônica, verdadeira estética do cor- tuições e de Estados Plurinacionais34. 45
reto, do certo, do belo.
Baldi31 destaca a partir daí que esse constitucionalismo latino americano,
Tendências Contemporâneas do Constitucionalismo Latino-Americano: o estado plu-
possuiu três ciclos32, ou seja, esse modelo plural tem como origem um consti- rinacional e pluralismo jurídico. In: Revista Pensar. Fortaleza, jul./dez. v. 16. n.2. p. 2011.
p. 403)”.
33 ) E mais, neste contexto, há o surgimento, também, da Convenção 169 da Organização
29 ) LEÓN T., Magdalena. Reactivación Económica para El Buen Vivir: un acercamiento. In.: Mundial do Trabalho, reconhecendo um catálogo de direitos indígenas, afro e outros de
Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, cunho coletivo aos indivíduos e povos cujo Estado a ratificasse – essa Convenção foi ratifi-
Ecuador, febrero 2010. p. 24. cada pelo Brasil pelo Decreto nº 5.051, de 19 de Abril de 2004.
30 ) VIEIRA, José Ribas. Refundar o Estado: o novo constitucionalismo latino-america- 34 ) Sobre os ciclos de formação desse novo constitucionalismo latino-americano, é importante
no. In: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://pt. scribd.com/ destacar que todas as discussões acerca desse novo cenário constitucional latino não nascem
doc/24243799/UFRJ-Novo-Constitucionalismo-Latino-Americano>. Acessado em 15 de com o advento de uma única constituição. A história não é algo estanque, com data e hora
Agosto de 2012. para acontecer. O constitucionalismo da diversidade que emerge, portanto, é fruto, segundo
31 ) BALDI, César Augusto. Novo Constitucionalismo Latino-Americano. In: Jornal Estado Raquel I. Fajardo – de certo modo, corroborando as ideias de Baldi trazidas acima –, de
de Direito. 32ªed. Disponível em: <http://www.estadodedireito.com.br/2011/11/08/novo- vários ciclos de debates, cada qual representado por vários textos constitucionais, por onde
constitucionalismo-latino-americano/>. Acessado em: 14 de Agosto de 2012. se destaca que “o horizonte do constitucionalismo pluralista contemporâneo na América
Latina passa por três ciclos: a) o constitucionalismo multicultural (1982 a 1988): composto
32 ) Sobre os ciclos de formação do novo constitucionalismo latino-americano é importante pelas Constituições do Canadá de 1982, da Guatemala de 1985, Nicarágua de 1987 e do
ressaltar as palavras de Wolkmer e Fagundes para quem esse novo cenário foi construído Brasil de 1988. A Constituição do Canadá teria inaugurado o multiculturalismo, pois abre
em três momentos, ou seja, “(...) um primeiro ciclo social e descentralizador das Consti- um primeiro reconhecimento de sua herança multicultural e da incorporação dos direitos
tuições Brasileira (1988) e Colombiana (1991). (...) um segundo ciclo (...) participativo aborígines; b) o constitucionalismo pluricultural (1989 a 2005): inaugurado pelas Consti-
popular e pluralista, em que a representação nuclear desse processo constitucional passa tuições da Colômbia de 1991, México de 1992, Perú de 1993, Bolívia de 1994, Argentina
pela Constituição Venezuelana de 1999”. E um terceiro ciclo – plurinacional comunitário de 1994 e Venezuela de 1999; c) o constitucionalismo plurinacional (2006): inaugurado
– “passa a ser representado pelas recentes e vanguardistas Constituições do Equador (2008) com o surgimento das Constituições do Equador de 2008 e da Bolívia de 2009” (FAJAR-
e da Bolívia (2009) (WOLKMER, Antonio Carlos e FAGUNDES, Lucas Machado. DO, Raquel I. 2010, p. 25 apud. WOLKMER, Pluralismo Crítico e Perspectivas para um

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Em que pese Baldi (2008) destacar a construção do modelo constitu- Constituição da Venezuela de 1999 possui extrema importância para a ponte
cional latino-americano em discussão através de uma evolução iniciada no entre o reconhecimento da diferença trazido pelo multiculturalismo canadense
constitucionalismo multicultural da década de 1980 – pois as constituições e a plurinacionalidade boliviana.
dessa época são exemplos de reconhecimento e proteção cultural (o que pode E mais, é a partir da Constituição da Venezuela de 1999 que o novo cons-
ser visto pelos arts. 231 e 232, da Constituição da República Federativa do titucionalismo latino americano começa a tracejar aquilo que Santos38 cha-
Brasil de 1988) – existem entendimentos diversos, que ligam essa nova vi- mará de “reinvenção da democracia39”. Tal constatação pode ser vista pela
são constitucional, originariamente, à Constituição Colombiana de 199135. ampliação da participação popular nas decisões tomadas pelo Estado a par-
É o que destaca Fernándes-Noguera e Diego36, ao afirmarem que “Na tir das recentes constituições latino-americanas representantes desse cenário
Constituição colombiana aparecem, mesmo que imperfeitamente, mas clara- constitucional em discussão40.
mente reconhecível, alguns elementos inovadores e diferenciados em relação Todo esse movimento constituinte latino-americano, principalmente nos
ao constitucionalismo clássico, que mais tarde permearão e serão desenvolvi- países de ancestralidade indígena e campesina andina, vem demonstrar que as
dos nos processos constituintes equatoriano em 1998, venezuelano em 1999, novas Constituições neste contexto trazem um catálogo de direitos constitu-
e boliviano em 2006-2009 e, de novo, no Equador em 2007-2008. (...). A cionais que rompe com o paradigma geracional eurocêntrico.
Constituição colombiana de 1991 é, por conseguinte, o ponto de partida do São textos construídos a partir do (re)surgimento do indígena, do campesi-
novo constitucionalismo no continente37”. no, efetivamente, como um sujeito de direitos, com vez e vós no cenário políti-
Apesar dessa forma de se pensar o constitucionalismo latino em discus- co das decisões políticas, sociais e econômicas do Estado.
são, ou seja, desse resgate do valor da constituição na promoção de uma socie- O constitucionalismo que se pretende e se defende nessa nova perspectiva
dade mais justa, poder ser dissecada a partir desses ciclos, entendemos que a
46 47
Novo Constitucionalismo na América Latina. In: MELO, Milena Petters e WOLKMER, 38 ) SANTOS, Boaventura de Sousa. Reinventar a Democracia. 2ª ed. Lisboa: Gradiva, 1998
Antonio Carlos (orgs.). Constitucionalismo Latino-Americano: tendências contempo- e SANTOS, Boaventura de Sousa. Reinventar a Democracia: entre o pré-contratualismo
râneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 30). e o pós-contratualismo. Oficina do Centro de Estudos Sociais. nº 107. Coimbra, 1998a.

35 ) Sobre a formação do que hoje se discute como novo constitucionalismo latino-americano, 39 ) Sobre esse ponto em especial, é importante ressaltar que o novo constitucionalismo latino
bem como de Estado Plurinacional – que será trabalhado mais detidamente abaixo – Ma- -americano advém desse objetivo – uma reformulação de conceitos formados na moder-
galhães percebe a construção desse cenário de discussões fervilhantes, distintamente dos nidade, tal como a ideia de democracia representativa – que aparece estampado nos textos
citados autores acima, ou seja, para ele “embora possamos encontrar traços importantes de constitucionais mais recentes do continente, qual seja: o de legitimar, bem como, expandir
transformação do cosntitucionalismo moderno já presentes nas constituições da Colôm- a democracia, surgindo ao contexto constitucional como resultado de lutas e de reivindi-
bia de 1991 e da Venezuela de 1999, são as constituições do Equador (2008) e da Bolívia cações populares por um novo modelo de organização do Estado e do direito (MORAES,
(2009) que efetivamente apontam para uma mudança radical que pode representar, inclu- Germana de Oliveira e FREITAS, Raquel Coelho. O Novo Constitucionalismo Latino-A-
sive, uma ruptura paradigmática não só com o constitucionalismo moderno mas, também, mericano e o Giro Ecocêntrico da Constituição do Equador de 2008: os direitos de pachamama e
com a própria modernidade” (MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Estado Plurinacio- o bem viver (sumak kawsay). In: MELO, Milena Petters e WOLKMER, Antonio Carlos
nal e Direito Internacional. Curitiba: Juruá, 2012e, p. 12). (orgs.). Constitucionalismo Latino-Americano: tendências contemporâneas. Curitiba:
Juruá, 2013. p. 106 e 107).
36 ) FERNÁNDEZ-NOGUERA, Albert e DIEGO, Marcos Criado. La Constitución Co-
lombiana de 1991 como Punto de Inicio Del Nuevo Constitucionalismo en América 40 ) Acerca da importância da Constituição da Venezuela para a conformação desse constitu-
Latina. In.: Revista Estudos Socio-Jurídicos, Bogotá (Colombia), n. 13 (1), enero-junio de cionalismo latino, Wolkmer ressalta as inovações do constitucionalismo venezuelano trazi-
2011. p. 18 – tradução nossa. das em sua Constituição de 1999, demarcando-as como verdadeiros marcos na participação
do povo em relação a formação, execução e controle da gestão pública. É o que determina
37 ) Corroborando esse entendimento Pastor e Dalmáu concluem que “os novos processos o art. 6º, da Constituição da Venezuela de 1999, para quem “O Governo da República Bo-
constituintes latino-americanos tiveram início na Colômbia, no princípio da década de livariana da Venezuela e das entidades políticas que a compõem sempre será democrático,
1990, como fruto de reivindicações sociais anteriores” (PASTOR, Roberto Viciano e participativo, eletivo, descentralizado, alternativo, responsável e pluralista, com mandatos
MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Aspectos Generales Del Nuevo Constitucionalismo Lati- revogáveis” (WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Crítico e Perspectivas para um Novo
noamericano. In.: El Nuevo Constitucionalismo en América Latina: memorias del en- Constitucionalismo na América Latina. In: MELO, Milena Petters e WOLKMER, Antonio
cuentro internacional el nuevo constitucionalismo (desafios y retos para el siglo XXI). Carlos (orgs.). Constitucionalismo Latino-Americano: tendências contemporâneas.
Quito: Corte Constitucional Del Ecuador, 2010. p. 9 – tradução nossa). Curitiba: Juruá, 2013, p. 31 e 32 – tradução nossa).

Direitos Humanos e Meio Ambiente Obra dedicada ao Instituto Terra


A Patrimonialização do Meio Ambiente e o Novo Constitucionalismo
Latino-Americano: A Pachamama e a Busca pelo Buen Vivir Heleno Florindo da Silva M Faculdade São Geraldo

latino-americana, nos permite superar as leituras liberais, procedimentais ou ins- É desse contexto, também, que nasce a ideia de que esse cenário constitucional
trumentais da modernidade41, abrindo espaço para que, por exemplo, a democra- não possui um progenitor, um pai, ou seja, o novo constitucionalismo latino-ame-
cia não se restrinja a um devaneio social de um momento de luta contra os mo- ricano “(...) é um constitucionalismo sem pais. Ninguém, exceto o povo44, pode se
nopólios burgueses, ou contra a falta de concretização dos direitos fundamentais sentir progenitor da Constituição, haja vista a genuína dinâmica participativa e legi-
ou, ainda, contra as restrições impostas pela cultura globalizante do capital42. timadora que acompanha os processos constituintes45” recentes na América Latina.
Em que pesem as discussões trazidas acima sobre qual instrumento norma- O bem viver do homem, portanto, não pode estar dissociado dos direitos,
tivo, efetivamente, deu o “ponta-pé-inicial” para o surgimento do novo constitu- segundo as bases do novo constitucionalismo plurinacional latino-americano,
cionalismo latino-americano, o que nos interessa aqui é o fato desse novo modelo da “mãe” terra, pois a partir da construção constitucional do Equador em 2008
paradigmático representar uma novidade capaz de romper com a lógica moderna e da Bolívia em 2009, por exemplo, é possível percebermos que todos os seres
de Estado, de sociedade, onde o meio ambiente é visto a partir de um prisma pa- fazem parte de um organismo vivo, a Pachamama, que passa, a partir de então,
trimonial, exploratório, vigente nos últimos 500 anos da história humana43. a ser reconhecida como sujeito de direitos46, e não mais como um patrimônio
do qual a humanidade pode, livremente, dispor.
41 ) É dessa constatação que podemos retirar um fato comum, qual seja, de que todas as defici-
ências apontadas ao marco do constitucionalismo moderno nacional convergem para uma
origem comum, ou seja, às primeiras teorias do nacionalismo de cunho liberal, haja vista Doctrinal Sistematizada?. 2013, p. 8 – tradução nossa. Disponível em: < http://www.juri-
esse modelo se concretizar pela desconsideração do caráter político, não meramente étnico- dicas.unam.mx/wccl/ponencias/13/245.pdf>. Acessado em 01 de Agosto de 2013). Sobre a
cultural, de modo que os governos, as organizações, as instituições de poder, em seus dis- ideia de que as primeiras Constituições latino-americanas não demonstraram uma ruptura
cursos nacionalistas, não refletiam – e como o novo constitucionalismo latino-americano total com o sistema até então em vigor – colonialismo – Wolkmer e Fagundes apontam
irá discutir – e ainda não refletem, o povo que lhe é subjacente, que lhe é “súdito” (MAÍZ, que “a independência das colônias na América Latina não representou, no início do século
Ramón. Nacionalismo y Multiculturalismo. Disponível em <http://red.pucp.edu.pe/ri- XIX, uma mudança total e definitiva com relação à Espanha e a Portugal, mas tão somente
48 dei/wp-content/uploads/biblioteca/081116.pdf>. Acessado em: 17 de Agosto de 2012. p. 49
uma reestruturação, sem uma ruptura significativa na ordem social, econômica e político-
18). Diante desse fato, Tápia expôs uma série de crises que essa noção clássica – moderna e constitucional” (2011, p. 375).
nacional – de Estado, vem cotejando nos últimos anos, sendo que, segundo ele, uma dessas
crises é a de correspondência entre os cidadãos e seu governo, ou seja, os membros do poder 44 ) Corroborando essa ideia, Wolkmer e Fagundes destacam a marca dos movimentos so-
de um Estado não são ligados às várias culturas de uma sociedade, “se trata de uma crise ciais que dão origem ao novo constitucionalismo latino-americano, demonstrando que “os
de correspondência entre o Estado boliviano, a configuração de seus poderes, o conteúdo movimentos pela refundação do Estado latino-americano surgem da exisgência histórica
de suas políticas, por um lado, e, por outro, o tipo de diversidade cultural desenvolvida de por espaço democrático, congregam interesses a partir do abandono da posição de sujeitos
maneira auto organizada, tanto ao nível da sociedade civil, quanto da assembleia de povos passivos na relação social com os poderes instituídos” (WOLKMER, Antonio Carlos e
indígenas e outros espaços de exercício da autoridade política que não formam parte do FAGUNDES, Lucas Machado. Tendências Contemporâneas do Constitucionalismo
Estado boliviano, senão de outras matrizes culturais excluídas pelo Estado liberal desde sua Latino-Americano: o estado plurinacional e pluralismo jurídico. In: Revista Pensar.
origem colonial, bem como em toda sua história posterior” (TAPIA, Luis. “Una reflexión Fortaleza, jul./dez. v. 16. n.2. 2011. p. 395).
sobre laidea de Estado plurinacional”. In.: OSAL (Buenos Aires: CLACSO) Ano VIII,
Nº 22, Setembro de 2007, p. 48 – tradução nossa. Disponível em: <http://bibliotecavirtual. 45 ) DALMÁU, Rubén Martínez. El Nuevo Constitucionalismo Latinoamericano y el Proyecto de
clacso.org.ar/ar/libros/osal/osal22/D22Tapia.pdf>. Acessado em 22 de Agosto de 2012). Constitución del Ecuador de 2008. In.: Alter Justicia: estudios sobre teoría y justicia cons-
titucional. Ano 2, n. 1, p. 13-28, oct. 2008. p. 19 – tradução nossa.
42 ) LINEIRA, Álvaro Garcia. El Estado en Transición: bloque de poder y punto de bifurcación. In.:
LINERA, Álvaro Garcia e outros. El Estado: campo de lucha. La Paz: Muela Del Diablo 46 ) A pachamama, portanto, necessita a partir dessas premissas, ser reconhecida enquanto
Editores, 2010. p. 11-24. sujeito de direitos, ou seja, há necessidade de transformarmos a forma como tratamos a
natureza, vendo-a, então, não somente como um objeto de exploração sem fim, mas sim,
43 ) O novo constitucionalismo latino-americano é diferente do constitucionalismo anterior, concretizando na prática, a ideia de que a natureza deve ser respeitada, haja vista tam-
sobretudo, pela natureza das assembleias constituintes, é o que Pastor e Dalmáu destacam bém possuir direitos. Ademais, para a visualização dessas premissas na seara jurídica, ver
quando concluem que “desde as constituições fundacionais latino-americanas – que por a AÇÃO CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO À NATUREZA, julgada em 30 de
outro lado, foram mas ínsitas ao liberalismo conservador, do que algo revolucionário – a março de 2011, na Corte Provincial de Justiça de Loja, no Equador (Juicio 11121-2011-
América Latina estava carente de processos constituintes ortodoxos – isto é, plenamente 0010). Disponível em: <www.funcionjudicial-loja.gov.ec>. Acessado em 27 de Julho de
democráticos – e, ao contrário, havia experimentado, em uma multiplicidade de ocasiões, 2013. Nesta Ação Constitucional um rio – rio Wilcabamba – figurou como pólo ativo da
processos constituintes representativos das elites e afastados da natureza soberana essencial demanda, ganhando a demanda em face do governo provincial de Loja, no Equador, por
do poder constituinte” (PASTOR, Roberto Viciano e MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. ter praticado o depósito de materiais de escavação em seu leito, sem que fosse realizado,
Se Puede Hablar de un Nuevo Constitucionalismo Latinoamericano como Corriente previamente, um estudo do impacto ambiental e social na área.

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A Patrimonialização do Meio Ambiente e o Novo Constitucionalismo
Latino-Americano: A Pachamama e a Busca pelo Buen Vivir

H Conclusão
Após discutirmos o modo como o direito ambiental, sobretudo a raciona-
lidade constitucional dos Estados nacionais da modernidade ocidental, visua-
liza o meio ambiente e, de outro lado, como o novo constitucionalismo latino
-americano visualiza esse contexto, cabe agora trazer as notas finais ao debate.
Desta feita, é possível perceber neste contexto que essa nova racionalidade
constitucional do Estado Plurinacional latino-americano rompe com os dogmas
dos Estados nacionais da modernidade dos colonizadores ocidentais europeus.
O meio ambiente passa a ser visto para além de um patrimônio de uso e
gozo comuns da sociedade humana, pois, em si, é visto como um verdadeiro su-
jeito de direitos, podendo, através de determinados agentes, recorrer, às vias ju-
diciais para fazer cessar lesão ou ameaça de lesão ao seu bem viver.
Toda ruptura, contudo, traz angústias e preocupações, pois não se imagina o
novo sempre como algo que surtirá efeitos, como algo bom. Em muitos casos
o novo traz perspectivas escuras, difíceis, ou até mesmo, impossíveis de serem
postas, efetivamente, em prática.
Para que o novo constitucionalismo latino-americano não ganhe o status
50 dessa segunda acepção, são necessárias mudanças radicais, sejam elas na políti-
ca, na sociedade, na cultura, na economia, pois esse novo contexto constitucio-
nal não surtirá os efeitos pretendidos, se o imaginarmos a partir das mesmas
perspectivas que temos atualmente, principalmente, em se tratando do regime
econômico de mercado, onde é o Capital – e não o Estado – quem governa.
Não visualizar patrimonialmente o meio ambiente não será fácil, principal-
mente, em sociedades ocidentais extrativistas, exploratórias – como a nossa –,
onde o meio ambiente não passa de mero instrumento para a consecução dos
objetivos da vida humana, cujo principal é a felicidade – que, atualmente, está
ligada mais aos valores das relações entre os Homens e seus bens, do que aos
valores das relações humanas.
Entretanto, se de um lado romper com o padrão patrimonial do meio am-
biente não será tarefa fácil, de outro, é uma tarefa necessária, pois, se ontem
podíamos usufruir patrimonialmente do meio ambiente, e ainda hoje “conse-
guimos” tal feito, as gerações futuras não terão a mesma facilidade.
Assim, a Pachamama deverá ser mais do que preservada, resguardada, pro-
tegida. Ela deverá ser elevada ao patamar de origem, de base, de primeiro ele-
mento, da felicidade humana. É através da Pachamama, e só por ela, que o
Homem, efetivamente, conseguirá garantir seu Buen Vivir.

Direitos Humanos e Meio Ambiente


2
Projeto do Novo Código Florestal Brasileiro:
Um Estado de Exceção Permanente
Destrutivo do Ambiente

Luísa Cortat Simonetti Gonçalves


Faculdade de Direito de Vitória

Daury Cesar Fabriz


Faculdade de Direito de Vitória

Sumário: Introdução. 1 O Estado de Exceção


Permanente em Agamben. 2 A Construção da Proteção
51
Jurídica ao Meio Ambiente no Brasil. 3 A Exceção
Permanente Destrutiva do Ambiente. Conclusão
Projeto do Novo Código Florestal Brasileiro:
Um Estado de Exceção Permanente Destrutivo do Ambiente Luísa Cortat Simonetti Gonçalves M Daury Cesar Fabriz

H Introdução samentos do autor expressos no livro de mesmo nome1, no qual ele procura
conduzir o leitor pelos raciocínios da compreensão do estado de exceção e de
As sociedades humanas, como se sabe, são estruturadas de maneira complexa, como ele tem se manifestado enquanto paradigma de governo.
com inúmeras instituições que se inter-relacionam e que, por vezes, são neces- A princípio, já se estabelece relação direta entre soberania e estado de exce-
sárias para que um resultado único seja atingido. ção (Schmitt, em Politische Theologie), o qual, por sua vez, poderia estar emba-
Isto é, as estruturas de normas e regras criadas para a regulação das intera- sado no estado de exceção e, por isso, a definição do termo estado de exceção
ções humanas deveria emanar do povo (de quem todo poder emana e em cujo teria se tornado tão difícil de definir: situado entre a política e o direito, ou seja,
nome o poder deve ser exercido), mas que, com populações cada vez maiores, teria se tornado um espaço vazio, mas que necessita ser preenchido para o ple-
precisa ser representado. Assim, as pessoas se organizam em partidos políticos no funcionamento e ordem do Estado.
meio pelo qual alcançam a esfera política que, por sua vez, será responsável pela Para o preenchimento desse espaço, Agamben traz a importante “luta de
produção das normas jurídicas. gigantes” acerca desse vazio. Nesse sentido, procura ler a teoria schmittiana da
Nessa primeira exposição, embora assumidamente breve e superficial, já fica soberania como uma resposta à crítica benjaminiana da violência, construção
bastante clara a proximidade da relação entre política e direito. No presente ar- que se mostra necessária de ser refeita aqui para plena compreensão do racio-
tigo, traz-se o pensamento de Agamben relativo ao espaço de exceção (tam- cínio em comento.
bém discutido em sua permanência), que, em análise última, acaba por ser O ensaio de Benjamin tem por objetivo “garantir a possibilidade de uma
justamente o espaço vazio que se coloca entre esses dois âmbitos e que, para violência (o termo Gewalt significa também simplesmente “poder”) absoluta-
organização e bom funcionamento do Estado, precisa ser preenchido. mente fora e além do direito e que, como tal, poderia quebrar a dialética entre
Objetiva-se, então, analisar, primeiramente, se esse espaço, no que tange violência que funda o direito e violência que o conserva”2. Assim, Benjamin
52 às questões ambientais, se fixou de forma permanente no Brasil, significando procura trabalhar com os dois tipos de violência, a “pura” e a que depõe o di- 53
a existência de um estado de exceção permanente. O exemplo enfrentado é a reito: a primeira sendo aquela que põe ou conserva o direito e, como este não
elaboração do Novo Código Florestal brasileiro, com base nas discussões que tolera de forma nenhuma qualquer violência fora dele, esta seria a que o depõe.
cercaram seu projeto. A partir daí, procura-se responder ao problema central Schmitt, por sua vez, procura trazer a violência para o contexto jurídico e
aqui sob análise: se esse suposto estado permanente acabou por gerar uma ex- “[...] é em resposta à ideia benjaminiana de uma indecidibilidade última de to-
ceção destrutiva do ambiente. dos os problemas jurídicos que Schmitt afirma a soberania como lugar de deci-
A hipótese trabalhada, posteriormente confirmada, é de que o vazio entre são extrema”3, procurando neutralizar a violência pura e assegurar uma relação
política e direito acaba por travar embates incertos entre as duas searas e, con- entre anomia e contexto jurídico.
sequentemente, mais suscetíveis a influências outras, como dos poderes econô- O autor conclui, sinteticamente, do debate entre os dois que “se para
micos. Para tanto, perpassou-se a teoria do estado de exceção permanente de Schmitt, a decisão é o elo que une soberania e estado de exceção, Benjamin, de
Agamben e a construção do ordenamento jurídico ambiental brasileiro para, modo irônico, separa o poder soberano de seu exercício e mostra que o sobera-
por fim, estabelecer as relações mencionadas. no barroco está, constitutivamente, na impossibilidade de decidir”4.

1 ) AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção: Homo Sacer. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.
1) O Estado de Exceção Permanente em Agamben
2 ) AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção: Homo Sacer. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.
p. 84.
De início, indispensável um breve transcurso no pensamento de Agamben
acerca do estado de exceção. É o que se realiza neste tópico, a partir dos pen- 3 ) AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção: Homo Sacer. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.
p. 85.
4 ) AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção: Homo Sacer. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.
p. 87.

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Um Estado de Exceção Permanente Destrutivo do Ambiente Luísa Cortat Simonetti Gonçalves M Daury Cesar Fabriz

Relembrando o contexto alemão em que se situaram esses entraves, uma rídico em sentido estrito (potestas) e outro anômico e metajurídico (auctoritas).
grande questão reside no fato de que o estado de exceção proclamado em 1933 O estado de exceção atinge seu máximo desdobramento quando ambos coin-
nunca havia sido extinto. Com isso, para Schmitt, a Alemanha estava em uma cidem numa só pessoa.
situação de ditadura soberana que deveria levar à abolição total da Constituição Ademais, distinguir entre vida e direito, anomia e nomos, é a própria articu-
de Weimar e à instituição de uma nova, o que ele não poderia aceitar é que o lação da máquina biopolítica. “Mostrar o direito em sua não relação com a vida
estado de exceção se confundisse inteiramente com a regra. Por outro lado, a e a vida em sua não relação com o direito significa abrir entre eles um espaço
resposta benjaminiana é defender que a tentativa do poder estatal de se ane- para a ação humana que, há algum tempo, reivindicava para si o nome ‘política’.
xar à anomia por meio do estado de exceção é uma ficção jurídica por excelên- A política sofreu um eclipse duradouro porque foi contaminada pelo direito”6.
cia que procura manter o direito em sua própria suspensão como força de lei5. Diante dessa constatação do espaço vazio e da função assumida pelo que
Retorna-se, pois, para o espaço vazio que seria o estado de exceção para o di- se denomina hoje no sistema ocidental de política, essencial a análise do papel
reito, o espaço vazio que é a anomia, isto é, um espaço vazio de toda determinação que a política vem desempenhando nesse sistema.
e de todo predicado real (zona onde se situa o comportamento humano sem rela- No presente artigo, a referida análise do papel da política centrará seu foco do
ção com a norma), sendo o estado de exceção como dimensão constitutiva. O di- direito ambiental, passando, mais especificamente, pelos direitos que vêm sendo
reito, espectralmente, se dividiria em uma figura na qual é pura vigência sem apli- possibilitados pelas nomos, autorizadas pela potestas, pela autorictas e pela política.
cação (a forma de lei) e outra na qual ele é aplicação sem vigência (força de lei).
Utilizando-se o termo técnico essencial de Benjamin, Reine Gewalt, e a dis-
tinção dessa violência pura para a que põe o direito, essa força de lei, segundo
2) A Construção da Proteção Jurídica ao
ele, já não é mais lei, sim vida.
54 Superado o debate entre Schmitt e Benjamin e estabelecidas as premissas Meio Ambiente no Brasil 55
para a plena compreensão do estado de exceção e do estado de exceção per-
manente, Agamben retoma as origens e a evolução semântica do termo iusti- A Constituição brasileira de 1988 traz inúmeras previsões relativas à prote-
tium (do estado de exceção ao luto público pela morte do soberano ou de um ção do meio ambiente, entretanto, relativamente a esse tema, o Capítulo VI
parente próximo dele), chegando a poder explicar a relação do soberano com do título VIII (“Do Meio Ambiente”) tem grande destaque. Nele, há previ-
a “norma viva”: “Se o soberano é um nomos vivo, se, por isso, anomia e nomos sões como o direito comum a um meio ambiente ecologicamente equilibrado,
coincidem inteiramente em sua pessoa, então a anarquia (que, à sua morte – deveres do Poder Público e da coletividade e possíveis controles e punições.
quando, portanto, o nexo que a une à lei é cortado – ameaça libertar-se pela ci- Contudo, a distinção é grande entre previsão constitucional e concretiza-
dade) deve ser ritualizada e controlada, transformando o estado de exceção em ção, sendo, ainda, agravada pela cultura jurídica brasileira, tendo em vista tal
luto público e o luto, em iustitium. (Agamben, 2004, p. 107)” proteção ser muito recente no ordenamento jurídico pátrio. Veja-se, pois, como
Complementando-se essa noção de poder, há que se ter em mente que a tem se dado a construção da proteção jurídica ao meio ambiente no Brasil.
auctoritas é prerrogativa essencial do Senado, enquanto a potestas e o imperium Inicialmente, deve-se destacar que o contexto histórico e, consequentemen-
dependem do povo, sendo que a auctoritas, na visão do autor, é um poder que te, cultural brasileiro, remonta a longos séculos de uma lógica socioeconômi-
suspende ou reativa o direito, porém sem a mesma vigência formal. ca puramente exploratória – não distante do “desenvolvimento” que se procu-
No atual sistema jurídico ocidental, essas instituições podem ser identifica- ra(va) promover nos demais países ocidentais. Logo, quando, após a Segunda
das com os dois elementos heterogêneos que o compõem: um normativo e ju- Guerra Mundial, o incipiente movimento ambientalista começa a ganhar mais
destaque, as resistências são quase que intransponíveis, vez que o pensamento
dominante impunha a compreensão da existência de diferenças inconciliáveis
5 ) Agamben assim ser refere à força de lei, porque esta expressão, de modo geral, é um conceito
relativo à posição da lei ou dos atos a ela relacionados, mas no espaço anômico do estado de
exceção “o que está em jogo é uma força de lei sem lei (que deveria, portanto, ser escrita: força 6 ) AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção: Homo Sacer. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.
de lei)” (Agamben, 2004, p. 61) p. 133.

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entre defesa do meio ambiente e crescimento econômico. biental se confundia com a autorização conferida à União para legislar so-
O grande marco mundial que significou Estocolmo (1972), levou o Brasil bre defesa e proteção da saúde ou com a proteção aos monumentos históri-
a salientar um ponto que até hoje constitui forte divergência durante as con- cos, artísticos e naturais, às paisagens [...]”. Complementando esse raciocínio,
ferências internacionais: os contrastantes interesses entre Hemisfério Norte, Antunes9 sintetiza a abordagem econômica e estritamente preocupada com as
já rico e preocupado com questões ambientais, e Hemisfério Sul, ainda em competências federais presente na Constituição de 1934: “De alguma forma, a
desenvolvimento e apenas com ele preocupado. Com base nesse raciocínio, o CF de 1934 estimulou o desenvolvimento de uma legislação infraconstitucio-
Brasil causou enorme constrangimento e controvérsia ao defender o desenvol- nal que se preocupou com a proteção do meio ambiente, dentro de uma abor-
vimento econômico a qualquer preço. dagem de conservação de recursos econômicos”. Pouca coisa mudou nas cons-
Entretanto, ainda nessa mesma década, começou-se a observar iniciati- tituições seguintes, mesmo com o regime democrático em 1946.
vas pontuais, em nível estadual, de tentativa de proteção do meio ambiente, Todo esse contexto demonstra a grande importância da CRFB/88, em es-
as quais, por outro lado, foram bruscamente impedidas pelo autoritário go- pecial o já mencionado título VI do capítulo VIII, sobretudo por elevar o tra-
verno federal ditatorial. tamento da questão no ordenamento jurídico ao status constitucional.
Foi apenas com a Lei 6.938/81, conhecida como Política Nacional do Meio
Ambiente, que se deu o passo inicial da vida pública do país no que tange à
regulação da proteção ambiental. Isso se deve, sobretudo, ao pioneirismo no
3) A Exceção Permanente Destrutiva do Ambiente
estabelecimento de uma política de longo prazo, em contraposição com as
corriqueiras ações impulsivas ou de momento. Nas palavras de Milaré7: “Sua
Parte-se, agora, para a conjugação das duas análises realizadas anteriormente,
implementação, seus resultados, assim como a estabilidade e a efetividade que
buscando-se compreender qual proteção jurídica tem sido dispensada ao meio
56 ela denota, constituem um sopro renovador e, mais ainda, um salto de qualida- 57
ambiente no Brasil e qual papel tem sido desempenhado pelo Estado.
de na vida pública brasileira. Seus objetivos nitidamente sociais e a solidarie-
Cabe, de início, analisar as promessas contidas no texto constitucional, o
dade com o planeta Terra, que, mesmo implicitamente, se acham inscritos em
que será realizado por meio do artigo exemplar que é o 225, caput: “Todos
seu texto, fazem dela um instrumento legal de grandíssimo valor para o País e,
têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso co-
de alguma forma, para outras nações sul-americanas com as quais o Brasil tem
mum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
extensas fronteiras”.
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presen-
No entanto, as mesmas pendengas observadas entre as posições das dife-
tes e futuras gerações”.
rentes nações passaram a ser vislumbradas dentro do Brasil, colocando em po-
Só daí já se extrai inúmeras pretensões do ordenamento jurídico pátrio atual
los distintos os estados mais ricos e os em desenvolvimento. Essa separação,
para o tratamento das questões ambientais. A constitucionalização da matéria,
por sua vez, trouxe, contraditoriamente, nova dificuldade ao estabelecimento
que no Brasil, conforme visto, é ainda bastante recente, traz de plano alguns be-
de uma política ambiental de caráter nacional.
nefícios, como nos lembra Canotilho10, tais quais o estabelecimento de um de-
Um aspecto essencial é o fato de que a constitucionalização das questões
ver constitucional genérico de não degradar, a ecologização da propriedade e da
ambientais ocorreu apenas em 1988, com a atual Constituição, tendo em
sua função social, a fundamentalização do direito à proteção ambiental, a legi-
vista que os legisladores constituintes anteriores não se preocuparam com
timação constitucional da função estatal reguladora, a redução da discriciona-
previsões dessa natureza.
riedade administrativa, a possibilidade de ampliação da participação pública etc.
Aliás, conforme bem destaca Horta8: “no período republicano o tema am-

7 ) MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: A Gestão Ambiental em Foco. 7. ed. rev., atual. e ref. 9 ) ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 11. ed. reform. Rio de Janeiro: Lumen
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 405. Juris, 2008. p. 59.
8 ) HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. 10 ) CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens (org.). Direito Constitucional
p. 271. Ambiental Brasileiro. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 95-107.

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Projeto do Novo Código Florestal Brasileiro:
Um Estado de Exceção Permanente Destrutivo do Ambiente Luísa Cortat Simonetti Gonçalves M Daury Cesar Fabriz

Ao mesmo tempo, preocupações como essas, principalmente no contex- constitucionais) a serem mencionadas são a já referida Política Nacional do
to da “constituição cidadã”, levam à possibilidade de entendimento de que o Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81), a Lei dos Crimes Ambientais (Lei nº
Estado brasileiro seria, então, um estado de direito ambiental, posto que a ordem 9.605/98) e a Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85).
pública instituída não estaria mais apenas vinculada a elementos esparsos da Obviamente, cada uma delas trouxe seus avanços para o ordenamento ju-
natureza, mas sim passou a ser abordado holística e autonomamente. E só as- rídico brasileiro, que, até não muito tempo, contava com nenhuma regulação
sim pode ser, porque o Direito Ambiental exige essa visão holística, ainda pou- nessa área. A Política Nacional do Meio Ambiente, por exemplo, foi o pri-
co presente no pensamento jurídico-político. Com isso, “todos os fatores que meiro passo brasileiro rumo à regulamentação da proteção ambiental, ape-
compõem o meio ambiente, sejam bióticos (vivos, como fauna e flora) ou abió- sar de todas as dificuldades anteriormente apresentadas; já a Lei dos Crimes
ticos (não vivos, como água, ar atmosférico, minerais) devem ser protegidos, Ambientais, inova ao trazer os comportamentos indesejados e cominar san-
pois interagem entre si garantindo o equilíbrio dos ecosssitemas”11. ções aos infratores; e a Lei da ACP, por sua vez, contribui mais no aspecto pro-
Entretanto, planos tão ambiciosos nunca vêm desconectados dos ônus, e cessual, ao possibilitar o ajuizamento de demandas coletivas.
aqui não é diferente. Um estado de direito ambiental impõe deveres que lhes Entretanto, como se vê, trata-se de iniciativas esparsas, que não contribuem
são inerentes, podendo eles serem distinguidos em três níveis12 – do máximo efetivamente para o tratamento holístico necessário à adequada proteção am-
para o mínimo: “a) O dever de promover ativamente a melhoria do estado do biental. Para uma melhor compreensão, abordar-se-á o exemplo do Código
ambiente, desenvolvendo ações de aperfeiçoamento ambiental e investindo na Florestal (Lei nº 4.477/65), dada sua especificidade e importância.
reabilitação de habitats e ecossistemas. São exemplos deste tipo de medidas, a O tratamento jurídico destinado às florestas é de especial relevo, dado o
replantação de florestas, a construção de recifes artificiais [...]; b) O dever de atual grau avançado de desmatamento. Antes de prosseguir, cabe destacar al-
evitar a degradação progressiva e gradual dos ecossistemas, habitats e recursos guns dados (Portal Brasil, 2012):
58 naturais [...] (mantendo apenas os níveis mínimos e inevitáveis de poluição) “Dos 64 milhões de km² de florestas existentes no planeta, restam menos 59
[...]; c) O dever de prevenir e precaver a ocorrência de acidentes ambientais de 15,5 milhões, ou cerca de 24%. Isso quer dizer que 76% das florestas pri-
graves com consequências irreversíveis e importantes (catástrofes ou calamida- márias já desapareceram. […];
des), resultantes de riscos ambientais”. Dos 100% de suas florestas originais, a África mantém hoje 7,8%, a Ásia
Para análise do Estado brasileiro, em seu aspecto estritamente normativo13, 5,6%, a América Central 9,7% e a Europa Ocidental – o pior caso do mun-
frente aos desafios que ele próprio (não sem uma generosa dose de pressão inter- do – apenas 0,3%. O continente que mais mantém suas florestas originais é a
nacional) se propôs a superar, faz-se necessário, então, perpassar, ainda que bre- América do Sul, com 54,8%. [...];
vemente, as principais normas brasileiras reguladoras de questões ambientais. A Mata Atlântica foi a principal vítima do desmatamento florestal no País
Além da Constituição propriamente dita, as principais legislações (infra- e hoje tem apenas cerca de 7% do que seria seu território original. Ela é reco-
nhecida como o bioma brasileiro mais descaracterizado. Já o cerrado brasileiro
perdeu 48,2% da vegetação original. Hoje são desmatados cerca de 20 mil km²
11) ABREU, Ivy de Souza. Holismo e proteção do meio ambiente com vistas a manutenção do por ano, principalmente no oeste da Bahia – na divisa com Goiás e Tocantins
equilíbrio ecológico: uma análise a partir do conceito de justiça em Aristóteles. Derecho y
Cambio Social. Lima - Peru, ano X, n. 31, p.1-11, 01 jan. 2013. Disponível em: <http:// – e no norte de Mato Grosso. As áreas coincidem com as regiões produtoras
www.derechoycambiosocial.com/revista03/ HOLISMO_E_PROTEÇÃO_DO_MEIO_ de grãos, de carvão e pecuária.
AMBIENTE.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2013. p. 3. A floresta amazônica brasileira permaneceu praticamente intacta até os anos
12) ARAGÃO, Alexandra. A prevençãode riscos em Estados de Direito Ambiental. In: MEN- 1970, quando foi inaugurada a rodovia Transamazônica. A partir daí, passou a
DES, José Manuel; ARAÚJO, Pedro (org.). Os Lugares (Im)possíveis da Cidadania. ser desmatada para criação de gado, plantação de soja e exploração da madeira.”
Coimbra: Almedina, 2012. p. 159-193, p. 160.
Vê-se, a partir da gravidade da situação do desmatamento, que a pro-
13) Está-se ciente que a realidade muito frequentemente se mostra de maneira completamente teção do remanescente de florestas constitui dever mínimo de um Estado
distinta do que se pretende no plano teórico das leis, entretanto, a análise aqui realizada
parte justamente desse momento inicial, de como se pretende que sejam encaminhadas as de Direito Ambiental. Porém, os recentes debates acerca do Novo Código
questões ambientais no Brasil. Florestal brasileiro demonstraram que o Estado brasileiro tem priorizado

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Um Estado de Exceção Permanente Destrutivo do Ambiente Luísa Cortat Simonetti Gonçalves M Daury Cesar Fabriz

outras questões (sobretudo de foro político e econômico) quando o assunto isentas de recomposição da RL. Uma isenção de 0,25 MF da exigência total
é proteção ambiental. Afirma-se tão grave fato tendo-se em vista os retro- de RL já atingiria 50% do número de imóveis e uma área de aproximadamente
cessos flagrantemente aprovados no substitutivo do Senado e nos motivos 5% da atual RL exigida. Com uma isenção de um MF teríamos 75% de imó-
que levaram a essas decisões. veis anistiados, algo em torno de 10% da área da atual de RL exigida.”16
Veja-se, inicialmente, como teria ficado o Novo Código Florestal – em ver- Inúmeros outros exemplos poderiam ser trazidos, mas os já tratados são
dade, uma breve exposição sobre alguns de seus aspectos – caso a presidente suficientes para demonstrar o retrocesso que significariam grande parte das
Dilma Roussef não o tivesse vetado14. mudanças trazidas na nova redação do Código Florestal, aprovada pelo
Um dos pontos mais graves é talvez a diminuição da previsão de tamanho Congresso brasileiro. Prosseguindo, então, para os motivos que levaram à
das áreas de preservação permanente de beiras de curso d’água (APPs ripárias): aprovação dessas alterações, não é preciso muito esforço argumentativo para
“O Substitutivo prevê uma nova classe de áreas de preservação permanente ri- se concluir que foram definidores os interesses econômicos dos produtores
pária com 15 m de largura em cada margem em rios de até 5 m de largura. A rurais, pressionando tanto das bancadas presentes no Congresso quanto a
versão atual do Código Florestal prevê APP de 30 m de largura em cada mar- partir da sociedade civil organizada, e também os interesses políticos em
gem. Analisando apenas a área total de APP ripária afetada por esta medida, agradar essa categoria e, assim, evitar atritos.
sem estimar os prejuízos ecológicos e hidrológicos20, calculamos, para o esta- Acerca dessas influências, que têm se mostrado quase que inevitáveis no
do de São Paulo, uma redução de 20% na área total de APP ripária15.” mundo atual, Garcia17 bem nos recorda das aproximações da economia, da po-
A isso, acresce-se o fato de que seriam excluídas dessas, a partir de uma emen- lítica e do próprio direito com a proteção do ambiente.
da proposta posteriormente no Congresso, as margens de rios intermitentes. Começando com a economia, vale destacar que “A ciência ecológica mos-
Outro ponto de extrema gravidade seria a isenção de reserva legal para as trou que as decisões humanas, particularmente as económicas, não podem ser
60 propriedades rurais com tamanhos inferiores a 4 módulos fiscais. Além da pa- tomadas ao acaso, pelas consequências a que ambientalmente dão lugar. [...] 61
tente abertura de espaço às fraudes, essa medida levaria ao desmatamento de Durante muito tempo, os agentes económicos usavam o ambiente sem
algumas áreas remanescentes, bem como à não recomposição de áreas já afeta- constrangimentos e sem preocupação em pagar o que quer que seja por esse
das, isso porque devido a duas questões: “A primeira diz respeito à efetiva capa- uso. O reconhecimento científico de que o uso dos bens ambientais acarreta
cidade do Estado em identificar e fiscalizar as áreas remanescente de vegetação um custo ambiental, reflectido na vida em sociedade e, em última análise, na
nos imóveis isentos de recomposição da RL. [...] Na prática, uma expressiva permanência da vida na Terra, conduziu a incorporar o referido custo no con-
quantidade de vegetação natural ficará sem proteção temporária, e poderá ser ceito de eficiência econômica18.”
desmatada sem medo de complicações até o dia em que algum mecanismo de Em verdade, o que se percebe é que o Brasil ainda está longe de ver a incor-
fiscalização (já previsto pelo Substitutivo) consiga determinar sua existência e poração eficiente, pelas empresas, do custo ambiental na eficiência econômica.
localização, possibilitando o monitoramento. O total de VN envolvido nesta Entretanto, a realidade é bem outra quando há obrigações legais – com res-
incerteza temporária e dependente da agilidade e eficácia dos órgãos ambien- pectivas punições financeiras –, de onde advém toda a influência que esse setor
tais é de aproximadamente 90 Mha. [...]
A segunda questão diz respeito à extensão da medida, ou seja, se é razoável
ou não fixar em quatro MF a área das propriedades rurais que passariam a ser 16) SPAROVEK, Gerd et al . A revisão do Código Florestal brasileiro. Novos estudos. -
CEBRAP, São Paulo, n. 89, Mar. 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002011000100007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em:
16 Feb. 2013. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002011000100007
14) Importante destacar que, até meados de 2014, o projeto prossegue no mesmo impasse, sem
qualquer mudança aos vetos ou a medida provisória. 17) GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O Lugar do Direito na Proteção do Ambiente. Coim-
bra: Almedina, 2007.
15) SPAROVEK, Gerd et al . A revisão do Código Florestal brasileiro. Novos estudos. -
CEBRAP, São Paulo, n. 89, Mar. 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo. 18) GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O Lugar do Direito na Proteção do Ambiente. Coim-
php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002011000100007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: bra: Almedina, 2007. p. 145-146.
16 Feb. 2013. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002011000100007

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Um Estado de Exceção Permanente Destrutivo do Ambiente Luísa Cortat Simonetti Gonçalves M Daury Cesar Fabriz

procura exercer em legislações ambientais de maior relevo. vando a abertura de espaço para a ação humana denominada política que, por
Depois, vêm as questões políticas. Garcia19 mantém seu foco, sobretudo, no sua vez, vem sofrendo um eclipse duradouro não só pelo próprio direito, mas
esteio científico que pode advir dos cientistas do meio ambiente, quando se viu também por fatores extrínsecos, como a economia.
que no Brasil a política tem usado seu poder, principalmente por meio do di- Consequentemente, o Estado brasileiro vem permitindo uma exceção per-
reito, para intervir em questões científico-ambientais, a depender dos interes- manente que é destrutiva do ambiente21.
ses que estiverem em jogo.
Finalizando este breve intercurso nas três vertentes, deve-se falar no di-
reito propriamente dito, questão essa que acabou por permear todo o tex-
to do presente artigo, o qual é centrado nos aspectos jurídicos da temática.
H CONCLUSÃO
Ainda assim, vale lembrar que as pressões à regulação estatal, em virtude de A partir da descrição do contexto brasileiro de construção das normas jurídi-
todo o contexto histórico da evolução da proteção do meio ambiente, vêm cas, com ênfase nos recentes debates em torno da aprovação da proposta de
aumentando muito. Assim, “a generalização desse desconforto, que contém Novo Código Florestal, utilizou-se da base teórica fornecida por Agamben
no âmago um «sentimento de injustiça», determinou o alerta para propostas para analisar a atual situação do estado brasileiro.
de intervenção estadual, destinadas a reequilibrar o que é compreendido Assim, foi possível verificar o estado de exceção permanente que se formou,
como ruptura do sistema de justiça, uma ruptura de relacionamento entre as tendo em vista o não preenchimento do espaço vazio entre política e direito.
gerações presentes e as futuras20.hoje” Via de consequência percebeu-se a abertura às influências inconstantes em um
No caso em tela, o que se percebe é que o vazio permanente que se estabe- embate permanente entre essas duas esferas do poder, o que, por sua vez, abre
leceu entre política e direito acaba por criar um também permanente embate possibilidades de intervenções outras, como da economia.
62 entre eles na tentativa de preenchimento desse espaço, sendo que muitas vezes No caso sob análise, do direito ambiental brasileiro, a exceção permanen- 63
a economia também aparece tentando ocupá-lo. te acabou se mostrando destrutiva do ambiente, na medida em que a poro-
Portanto, demonstrou-se que graves retrocessos na proteção ambiental ju- sidade às distintas influências colocou interesses particulares, sobretudo de
ridicamente prevista podem ser produzidos por fatores essencialmente econô- cunho econômico, à frente dos interesses da melhor proteção do ambiente
micos e políticos. Assim, sobrevém a forte relação com a teoria do estado de (interesses da coletividade).
exceção permanente de Agamben. Acerca do Novo Código Florestal, vê-se, por fim, mais uma ingerência da
Nas discussões trazidas por esse autor, conforme sintetizado, tem-se que o política, por meio do veto da presidente Dilma Roussef, mas que, dado todo o
estado de exceção seria o espaço vazio entre política e direito, mas que precisa exposto, pode ter significado uma tentativa – embora não muito bem sucedida
ser preenchido para o pleno funcionamento e ordem do Estado. No caso bra- – de reequilíbrio da presença da política nesse espaço vazio.
sileiro, vê-se a abertura de amplas possibilidades a influências dessas mesmas Portanto, o presente estudo buscou trazer nova perspectiva à análise da pro-
áreas bem como de outras, tal qual a econômica, nas decisões sobre questões dução normativa brasileira, nomeadamente na área ambiental, o que, espera-se,
ambientais. E é daí que se extrai a constatação de que esse espaço vazio não pode servir como alerta para a gestão que tem se realizado na prática, em con-
está preenchido no Estado brasileiro que, por conseguinte, está vivendo uma traposição com a gestão holística e com vistas no futuro que deveria ocorrer.
situação de exceção permanente na regulação ambiental.
Logo, de acordo com o defendido por Agamben, o direito está demons-
trando sua não relação com a vida e a vida a sua não relação com o direito, le-

19) GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O Lugar do Direito na Proteção do Ambiente. Coim-


bra: Almedina, 2007. p. 253-257
21) Cabe fazer uma breve observação, já que foi também uma atitude eminentemente política
20) GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O Lugar do Direito na Proteção do Ambiente. Coim- (o veto da Presidente), que, embora não tenha solucionado os graves problemas do projeto,
bra: Almedina, 2007. p. 369. permitiu a retirada de alguns deles e a inserção de pequenos avanços no texto final.

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3
O Binômio Direito-Dever Fundamental
Ao Meio Ambiente Ecologicamente
Equilibrado E seu Alicerce na Solidariedade

Ivy de Souza Abreu1


Faculdade de Direito de Vitória

Sumário: Introdução. 1 O Direito ao Meio Ambiente


Ecologicamente Equilibrado e o Dever de Proteção do Meio
Ambiente. 2 Os Direitos Humanos e o Princípio da Solidariedade.
3 Uma Nova Concepção da Proteção do Ambiente. Conclusão
65

1) Doutoranda em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV; Mestre em Direitos e Ga-


rantias Fundamentais pela FD; Membro do BIOGEPE – Grupo de Estudos, Pesquisa e
Extensão em Políticas Públicas, Direito a Saúde e Bioética da FDV; Bolsista da FAPES
– Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Espírito Santo; MBA em Gestão Am-
biental; Pós Graduada em Direito Público; Bacharel em Direito; Licenciada em Ciências
Biológicas; Advogada; Bióloga; Professora universitária. E-mail: ivyabreu@hotmail.com.
Endereço: Avenida Rio de Janeiro, n. 35, Bairro Belo Horizonte, Marataízes-ES.
O Binômio Direito-Dever Fundamental Ao Meio Ambiente
Ecologicamente Equilibrado E seu Alicerce na Solidariedade Ivy de Souza Abreu

H Introdução direito sem dever e tampouco dever sem direito.


A qualidade do meio ambiente é conditio sine qua non para o saudável de-
A Constituição brasileira de 1988 trouxe em seu art. 225, caput, o direito ao senvolvimento da vida em todas as suas formas. O meio ambiente ecologi-
meio ambiente ecologicamente equilibrado e o dever fundamental de proteção camente equilibrado é, indubitavelmente, imprescindível à realização da vida
do ambiente, tanto para o Estado quanto para os particulares. Poder Público e humana digna, por isso, o direito a este ambiente salubre e harmônico é um
sociedade deverão se engajar na tutela ambiental para preservação dos recursos direito humano fundamental.
naturais para as gerações atuais e vindouras. O autor português José Casalta Nabais informa que “[...] tanto os direitos
O fundamento para a existência dos deveres fundamentais é a solida- como os deveres fundamentais integram o estatuto constitucional do indiví-
riedade. Ao trata-se do dever de proteção do meio ambiente, por ser uma duo, ou melhor [,] da pessoa”2. Por mais liberal que seja um Estado, a partir do
questão de direito difuso, fica evidente que os benefícios da tutela ambiental momento que se constitui como tal, com a convergência das vontades dos in-
atingem toda a sociedade, não apenas em seu aspecto sincrônico (gerações divíduos neste sentido (o chamado contrato social), parte da liberdade dos ci-
presentes), mas também anacrônico (gerações futuras), extrapolando, inclu- dadãos é perdida em prol da construção de um ente coletivo, o Estado.
sive, os limites temporais e físicos. Os cidadãos adquirem responsabilidades perante toda a coletividade, den-
Entretanto, na atual conjuntura de crise ambiental e destruição da natureza, tre as quais, se destacam as obrigações constitucionalmente previstas: os deve-
a solidariedade do ser humano em relação à sua própria espécie já não é sufi- res fundamentais. Direitos e deveres se tornam parte da vida dos cidadãos nas
ciente para conter e solucionar os problemas ambientais. O paradigma huma- democracias constitucionais.
no da solidariedade intraespécie necessita transcender para uma nova concep- O dever fundamental de proteção do meio ambiente está expresso no art.
ção da proteção e da solidariedade ambiental. 225, caput, da Constituição de 1988, sendo tanto uma responsabilidade do
66 Assim, com base no holismo ambiental, que defende a inserção do ser hu- Estado quanto da sociedade em geral. Tal dever se estabelece não apenas ao 67
mano no ambiente, sem grau hierárquico em relação aos demais seres vivos, poder público, mas no âmbito privado, para os particulares.
apenas como espécie animal que é, como o dever fundamental de proteção do O grupo de pesquisa da Faculdade de Direito de Vitória-ES (FDV )
meio ambiente pode se fundamentar na solidariedade interespécies? Eis a pro- “Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais”, que estuda
blemática que será trabalhada. os deveres fundamentais no âmbito do particular, construiu dialógica e dia-
O artigo trabalhará com a hipótese de que a solidariedade é o princípio que leticamente um conceito, que merece destaque: “Dever fundamental é uma
embasa os deveres fundamentais de modo geral. Especificamente, em relação categoria jurídico-constitucional, fundada na solidariedade, que impõe con-
à proteção ambiental e sua análise dentro da escola de pensamento holística, a dutas proporcionais àqueles submetidos a uma determinada ordem demo-
solidariedade em sua vertente usual – intra-espécie – é insuficiente, transcen- crática, passíveis ou não de sanção, com a finalidade de promoção de direitos
dendo para uma visão ambientalmente altruísta, a solidariedade interespécies. fundamentais3. (2013)”
Quanto ao fundamento dos deveres fundamentais, Nabais esclarece que
existem os fundamentos jurídico e lógico. Juridicamente, o alicerce dos deve-
res fundamentais é a Constituição. Sem previsão constitucional, não há dever
1) O Direito ao Meio Ambiente Ecologicamente
Equilibrado e o Dever de Proteção do Meio Ambiente
2) NABAIS, José Casalta. Por uma liberdade com responsabilidade: estudos sobre direitos e
No contexto do atual Estado Democrático de Direito a principal temática de deveres fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 164.
discussão, seja acadêmica, doutrinária ou jurisprudencial, gira em torno dos di- 3) Conceito cunhado coletivamente pelos membros do Grupo de Pesquisa “Estado, Democracia
reitos, em especial, dos direitos fundamentais. A questão dos deveres funda- Constitucional e Direitos Fundamentais”, coordenado pelos professores Adriano Sant’Ana
Pedra e Daury Cesar Fabriz, do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado e
mentais fica relegada a último plano de discussão. Entretanto, direitos e deve- Doutorado – em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória
res são as duas faces da mesma moeda, coexistindo simbioticamente: não há (FDV).

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O Binômio Direito-Dever Fundamental Ao Meio Ambiente
Ecologicamente Equilibrado E seu Alicerce na Solidariedade Ivy de Souza Abreu

fundamental, e sim, mero dever legal4. “El ejercicio de um dever fundamental no reporta beneficios exclusivamen-
Em relação ao fundamento lógico, os deveres fundamentais expressam a te al titular del derecho subjetivo correlativo, cuando existe, sino que alcanza
soberania estatal alicerçada na dignidade da pessoa humana. “[...] los deberes una dimensión de utilidad general, beneficiando al conjunto de los ciudadanos
fundamentales son, em ocasiones, consecuencia de la convención y del ejercicio y a su representación jurídica, el Estado8 9”.
del poder soberano, titular de la producción normativa”5 6. Ao trata-se do dever de proteção do meio ambiente, por ser uma questão
É imanente à natureza soberana do Estado a existência de obrigações pró- de direito difuso, fica evidente que os benefícios atingem toda a sociedade, não
prias, dele perante a sociedade e, principalmente, as raramente lembradas, apenas em seu aspecto sincrônico (gerações presentes), mas também anacrô-
obrigações de seus cidadãos. O Estado é detentor de inúmeros compromissos nico (gerações futuras), extrapolando, inclusive, os limites temporais e físicos,
frente aos seus cidadãos e também os cidadãos têm deveres para com o Estado haja vista que a tutela ambiental visa a garantia da qualidade de vida de seres
e para com os demais cidadãos e a sociedade. humanos que sequer se encontram no planeta. As consequências positivas do
Julio Faro propõe um conceito de deveres fundamentais: “deveres são aquilo dever de preservação do ambiente geram efeitos intergeracionais.
que cada indivíduo tem ante o Estado e a sociedade de contribuir para a for- Eis a dicção do art. 225 caput da Lei Maior brasileira de 1988, in verbis:
mação de uma base material que satisfaça as necessidades básicas das institui- “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
ções públicas (manutenção do maquinário estatal) e efetive os bens de primor- uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
dial importância para que haja o correto exercício dos direitos fundamentais de Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
todas as pessoas humanas7”. presentes e futuras gerações10”.
Os deveres jurídicos alçam o status constitucional de deveres fundamentais O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, consequente-
quando são imprescindíveis a convivência da coletividade, tratando de temáti- mente, o dever de protegê-lo se traduzem como formas da expressão e desen-
68 cas relevantes para a organização do Estado e efetivo funcionamento da má- volvimento da dignidade humana, um dos fundamentos basilares e inconcus- 69
quina pública e para o exercício dos direitos fundamentais, em especial, para a sos do Estado Democrático de Direito brasileiro.
garantia da dignidade humana. Reiteram Abreu e Sampaio que o “direito à higidez ambiental [...] é indis-
Como os deveres fundamentais se correlacionam com matérias de alta pensável à qualidade de vida das presentes e futuras gerações, consubstancian-
relevância social, os proveitos trazidos pelo cumprimento de tais deveres do-se no princípio da dignidade da pessoa humana”11. E “a pessoa humana e
extrapolam os limites individuais do titular do direito correspondente ao sua dignidade constituem fundamento e fim da sociedade e do Estado”12.
dever. Toda a coletividade é beneficiada direta ou indiretamente com o re-
gular exercício dos deveres fundamentais fortalecendo, destarte, o Estado
8) PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Los deberes fundamentales. Doxa. Alicante,
Democrático de Direito. n. 04, p. 329-341, 1987. Disponível em: <http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveO-
bras/12837218659036051876657 /cu aderno4/Doxa4_19.pdf>. Acesso em: 11 ago. 2013, p.
336.
4) NABAIS, José Casalta. Por uma liberdade com responsabilidade: estudos sobre direitos e 9) “O exercício de um dever fundamental não traz benefícios exclusivamente ao titular do direito
deveres fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 170-171. subjetivo correlato, quando existe, mas alcança uma dimensão de utilidade geral, beneficiando
ao conjunto de cidadãos e a sua representação jurídica, o Estado”. Tradução nossa.
5) PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Los deberes fundamentales. Doxa. Alicante,
n. 04, p. 329-341, 1987. Disponível em: <http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveO- 10) BRASIL. Constituição (1988). Constituição (da) República Federativa do Brasil. Brasília:
bras/12837218659036051876657 /cu aderno4/Doxa4_19.pdf>. Acesso em: 11 ago. 2013, p. Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
336. Constituicao.htm>. Acesso em: 11 ago. 2013.
6) “[...] os deveres fundamentais são, ás vezes, consequência da convenção e do exercício do 11) ABREU, Ivy de Souza; SAMPAIO, Flávia Duarte Ferraz. A Conservação Ambiental sob a
poder soberano, titular da produção normativa”. Tradução nossa. Ótica dos Acadêmicos de Ciências Biológicas e Direito. Cadernos Camilliani. Cachoeiro
de Itapemirim, v. 8 - n.1, p. 71-81, 2007, p. 78.
7) FARO, Julio. Deveres como condição para a concretização de direitos. Revista de Direito
Constitucional e Internacional. São Paulo, ano 20, n. 79, p. 167-209, Abr. /Jun. 2012, p. 12) FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradig-
175-176. ma do biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 280.

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O Binômio Direito-Dever Fundamental Ao Meio Ambiente
Ecologicamente Equilibrado E seu Alicerce na Solidariedade Ivy de Souza Abreu

O dever de conservação do meio ambiente, bem sobremaneira valioso, é A solidariedade reflete a corresponsabilização de todos os indivíduos pe-
indispensável para a manutenção do equilíbrio no planeta e, portanto, é uma los problemas sociais e pela solução desses problemas. Os cidadãos são mu-
questão vital para a espécie humana. O ser humano, como ser biótico que é, tuamente detentores de direitos e de deveres perante a comunidade e aos de-
integra o meio e depende da natureza e da salubridade de seus recursos tanto mais cidadãos. O binômio direito-dever expressa a relação solidária no Estado
quanto os demais seres vivos, por isso o dever de proteger o ambiente faz parte Democrático de Direito.
de um dever maior de solidariedade para com a própria espécie humana e para O princípio da solidariedade remonta à Revolução Francesa de 1789,
com as demais espécies. como um de seus lemas, a fraternidade. As garantias constitucionais dos
direitos fundamentais buscam a consolidação dos ideais da Revolução
Francesa, quais sejam os três princípios cardeais dos direitos fundamentais:
liberdade, igualdade e fraternidade. A liberdade equivalente à primeira di-
2) Os Direitos Humanos e o Princípio da Solidariedade
mensão dos direitos humanos (direitos da liberdade), a igualdade indicando
a segunda dimensão (direitos de igualdade) e a fraternidade relacionada à
A solidariedade está prevista expressamente no texto constitucional de 1988,
terceira dimensão (direitos da fraternidade).
no artigo 3º, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sintetiza as dimensões
Além da construção de uma sociedade solidária, livre e justa, a promoção do
de direitos fundamentais: “Enquanto os direitos de primeira geração (direi-
bem de todos também está no rol de escopos do Estado brasileiro. Eis a dic-
tos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas
ção do artigo 3º:
ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda ge-
ração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa
70 liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualda- 71
do Brasil:
de, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade
M I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram
M II - garantir o desenvolvimento nacional;
o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no pro-
M I II - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigual-
cesso de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos huma-
dades sociais e regionais;
nos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota
M I V - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
de uma essencial inexauribilidade15.”
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação13”.
Os direitos de terceira dimensão, também conhecidos como direitos de so-
lidariedade, são direitos fundamentais que se preocupam com o destino da
Gramaticalmente, o conceito de solidariedade é trazido pelo dicionário
Humanidade. Estão relacionados com a proteção ambiental, a defesa do con-
como “1 Qualidade de solidário. 2 Estado ou condição de duas ou mais pes-
sumidor e o desenvolvimento econômico16, exemplificando, o direito ao meio
soas que repartem entre si igualmente as responsabilidades de uma ação, em-
ambiente, o direito à paz, o direito de propriedade sobre o patrimônio comum
presa ou de um negócio, respondendo todas por uma e cada uma por todas. 3
Mutualidade de interesses e deveres. 4 Laço ou ligação mútua entre duas ou
muitas coisas dependentes umas das outras. 5 Dir Compromisso pelo qual as uol.com.br/ moderno/portugues/ index.php?lingua =portugues -portugues&palavra= soli-
pessoas se obrigam umas pelas outras e cada uma delas por todas [...]14”. dariedade>. Acesso em: 01 jul. 2013.
15) BRASIL. Supremo Tribunal Federal – Pleno. MS nº 22164/SP. Relator: Min. Celso de
Mello. Brasília, 30 de outubro de 1995. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/jurispruden-
13) BRASIL. Constituição (1988). Constituição (da) República Federativa do Brasil. Brasília: cia/nova/pesquisa.asp?s1=MS%2022164&d=SJUR>. Acesso em: 02 ago. 2013.
Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
Constituicao.htm>. Acesso em: 11 ago. 2013. 16) MOTTA FILHO, Sylvio Clemente da. SANTOS, William Douglas Resinente dos. Di-
reito Constitucional: teoria, jurisprudência e 1000 questões. 15. ed. rev., ampl. e atual. até
14) Solidariedade. In: Dicionário Michaelis online. 2009. Disponível em: <http://michaelis. Emenda Constitucional nº 44/2004. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, P. 70.

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da humanidade, o direito de comunicação, o direito ao desenvolvimento, direi- A solidariedade é fundamento dos deveres fundamentais. A responsabili-
to ao progresso, direito à autodeterminação dos povos. dade mútua entre os cidadãos e o Estado para com o bem-estar, a qualidade
Chacon e Cruz prelecionam que os direitos de terceira dimensão tratam-se de vida e a dignidade dos outros cidadãos acentua a fraternidade e a alteridade
de direitos coletivos, por seus benefícios atingirem não apenas um indivíduo nos tempos hodiernos.
em particular, mas toda a coletividade17. Acerca desses direitos fundamentais, O dever de proteção do meio ambiente também tem como fundamento a
ensina Bonavides: “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalida- solidariedade. Acerca dos direitos de solidariedade, em especial os direitos eco-
de, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX lógicos, Nabais esclarece que são: “[...] direitos que, implicando directamen-
enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos inte- te com o comportamento de todos os indivíduos duma colectividade e sendo
resses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm pri- exercidos num quadro de reciprocidade e de solidariedade, têm um conteúdo
meiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de necessariamente definido em função do interesse comum [...]21 22”.
sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade correta. [...] O que ainda falta é a aplicação da solidariedade às relações dos seres hu-
Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento à paz, manos para com os seres não humanos e com a natureza. A proteção do meio
ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade18”. ambiente depende da construção de uma nova postura da humanidade frente à
A Constituição espanhola de 1978 trabalha com a ideia de dever de preser- sua participação e integração do ao meio natural. Daí exsurge a relevância dos
vação do meio ambiente pautado no dever de solidariedade coletiva, como se estudos e da efetivação da escola holística ambiental.
verifica no artigo 45:

“Artículo 45.
3) Uma Nova Concepção da Proteção do Ambiente
72 M 1. Todos tienen el derecho a disfrutar de un medio ambiente 73
adecuado para el desarrollo de la persona, así como el deber de
O holismo ambiental prega a integração e a necessária interação entre todos
conservarlo.
os elementos constituintes dos ecossistemas naturais como sistemas biológi-
M 2. Los poderes públicos velarán por la utilización racional de
cos e tendentes ao equilíbrio. Segundo a concepção holística, “todas as entida-
todos los recursos naturales, con el fin de proteger y mejorar
des físicas e biológicas formam um único sistema interagente unificado e que
la calidad de la vida y defender y restaurar el medio ambiente,
qualquer sistema completo é maior do que a soma das partes componentes”23.
apoyándose en la indispensable solidaridad colectiva.
A Organização das Nações Unidas, por meio da resolução nº 37/7, de 28
M 3. Para quienes violen lo dispuesto en el apartado anterior, en
los términos que la Ley fije se establecerán sanciones penales o,
en su caso, administrativas, así como la obligación de reparar el
2. Os poderes públicos zelarão pela utilização racional de todos os recursos naturais, com
daño causado19 20”. o fim de proteger e melhorar a qualidade de vida e defender e restaurar o meio ambiente,
apoiando-se na indispensável solidariedade coletiva.
3. Para aqueles que violem o disposto número anterior, nos termos da lei que estabelece
17) CHACON, Mario Peña. CRUZ, Ingread Fournier. Derechos Humanos y Medio Ambiente. sanções penais ou administrativas, bem como a obrigação de reparar o dano causado.
Revista de Direito Ambiental. São Paulo, ano 10, n. 39, p. 189-211, Jul. /Set. 2005, P. 192. Tradução nossa.
18) BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. atual. São Paulo: Malhei- 21) NABAIS, José Casalta. Por uma liberdade com responsabilidade: estudos sobre direitos e
ros, 2004, p. 569. deveres fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 320-321.
19) ESPANHA. Constitución Española de 1978. Disponível em: < http://noticias.juridicas. 22) “[...] direitos que, implicando diretamente com o comportamento de todos os indivíduos de
com/base_datos/Admin/constitucion.t1. html#a45>. Acesso em: 10 ago. 2013. uma coletividade e sendo exercidos num quadro de reciprocidade e de solidariedade, têm um
conteúdo necessariamente definido em função do interesse comum [...]”. Tradução nossa.
20) Artigo 45.
1. Todos tem o direito de desfrutar de um meio ambiente adequado ao desenvolvimento da 23) Holismo. In: WATANABE, Shigueo (coord.). Glossário de Ecologia. 2. ed. rev. ampl. São
pessoa, bem como o dever de preserva-lo. Paulo: ACIESP, 1997, p. 139.

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de outubro de 1982, proclamada pela Assembléia Geral enuncia: “Toda forma bientais e com o reconhecimento da importância de todos os fatores do am-
de vida é única e merece ser respeitada, qualquer que seja a sua utilidade para biente para o equilíbrio ambiental.
o homem, e, com a finalidade de reconhecer aos outros organismos vivos este Não apenas os seres vivos são protegidos, mas também os recursos ambien-
direito, o homem deve se guiar por um código moral de ação24 25”. tais (meio abiótico), dos quais derivam as condições para o efetivo desenvolvi-
Em 1992, com o advento da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio mento da vida. A bem ambiental é considerado autônomo e não mais valorado
Ambiente e o Desenvolvimento (ECO-92), a concepção holística ambiental segundo as necessidades humanas.
se fortaleceu com a ideia de desenvolvimento sustentável. A Declaração do Rio Nessa concepção ampla de meio ambiente existe a unicidade entre o meio
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em sua apresentação, estabelece a ambiente natural e o meio ambiente artificial (que foi construído pelo ho-
necessidade de que os Estados “protejam a integridade do sistema global de mem), além da inclusão do patrimônio cultural e, modernamente, do meio
meio ambiente e desenvolvimento, reconhecendo a natureza integral e inter- ambiente do trabalho, formando-se essa visão holística do conceito.
dependente da Terra, nosso lar”26. Abreu e Sampaio afirmam que tutelar o bem ambiental é uma forma de
Para Édis Milaré, o holismo se refere à percepção ou conhecimento que in- buscar a qualidade do meio ambiente e de garantir que todos os seres vivos
tegra partes ou componentes em um todo abrangente e compreensivo, a par- permaneçam vivos, inclusive o ser humano29, afinal, o ser humano é parte inte-
tir da constatação de que há uma integração entre eles e não apenas uma mera grante da natureza e do meio ambiente, tanto quanto indivíduo (espécie) tan-
justaposição dos componentes de um todo27. to quanto coletivamente (sociedade). A temática ambiental permea “todos os
O meio ambiente é um todo constituído por diversos elementos interde- segmentos da comunidade global, uma vez que a conservação do bem ambien-
pendentes e co-relacionados, que interagem mutuamente entre si, estabele- tal é questão de sobrevivência para toda a humanidade”30.
cendo seu próprio equilíbrio. O ambiente deve ser globalmente considerado, No holismo ambiental não apenas o meio natural e seus elementos são tu-
74 em todos os seus aspectos e componentes, vez que dessa relação inextricável telados. A vida humana e suas expressões também se tornam objeto de pro- 75
surge a harmonia ecológica. teção, mas não pelos motivos apregoados pelo antropocentrismo e sim, pela
Na fase holística de proteção, “o ambiente passa a ser protegido de ma- espécie humana (e os fatores que se relacionam com sua existência e desenvol-
neira integral, vale dizer, como sistema ecológico integrado (resguardando- vimento) ser parte do meio ambiente e indispensável ao equilíbrio ambiental.
se as partes a partir do todo) e com autonomia valorativa (é, em si mesmo, Sobre a solidariedade, Nabais entende que em sentido objetivo, “alude à
bem jurídico)”28. O holismo ambiental consagra a visão sistêmica e integra- relação de pertença [...], de partilha e de corresponsabilidade que liga cada
tiva do meio ambiente, com a inserção dos seres humanos nas questões am- um dos indivíduos [...] aos demais membros da comunidade”. Em sentido
subjetivo, “a solidariedade exprime o sentimento, a consciência dessa mesma
pertença à comunidade”31.
24) ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Resolução nº 37/7 da Assembleia Relembra Leonardo Boff que “a ética da sociedade dominante hoje é utili-
Geral. 1982. Disponível em: <http://www. un.org/documents/ga/res/37/a37r007.htm>. tarista e antropocêntrica. Considera o conjunto dos seres a serviço do ser hu-
Acesso em: 01 maio 2013.
25) Tradução nossa. “Every form of life is unique, warranting respect regardless of its worth to
man, and, to accord other organisms such recognition, man must be guided by a moral code 29) ABREU, Ivy de Souza; SAMPAIO, Flávia Duarte Ferraz. A Conservação Ambiental sob a
of action”. Ótica dos Acadêmicos de Ciências Biológicas e Direito. Cadernos Camilliani. Cachoeiro
de Itapemirim, v. 8 - n.1, p. 71-81, 2007, p. 76.
26) ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração do Rio sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento. Rio de Janeiro, 1992. Disponível em: <http://www.onu.org. 30) ABREU, Ivy de Souza. Holismo e proteção do meio ambiente com vistas a manutenção
br/rio20/img/2012/01/rio92.pdf>. Acesso em: 01 maio 2013. do equilíbrio ecológico: uma análise a partir do conceito de justiça em Aristóteles. De-
recho y Cambio Social. Lima - Peru, ano X, n. 31, p.1-11, 01 jan. 2013. Disponível em:
27) MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: doutrina, prática, jurisprudência e glossário. 4.ed. <http://www.derechoycambiosocial.com /revista031/HOLISMO_E_ PROTEÇÃO_
rev. ampl. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 1082. DO_MEIO_AMBIENTE.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2013. P. 8.
28) BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos. Introdução ao Direito Ambiental Brasilei- 31) NABAIS, José Casalta. Por uma liberdade com responsabilidade: estudos sobre direitos e
ro. Revista de Direito Ambiental, n.14. São Paulo: RT, 1999, p. 78. deveres fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 134.

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mano que pode dispor deles a seu bel-prazer, atendendo a seus desejos e pre- O meio ambiente ecologicamente equilibrado é conditio sine qua non para o
ferências”32. Esta postura diante da natureza não corrobora com a necessária desenvolvimento da vida humana com qualidade. A interação harmônica entre
proteção integral do ambiente. o homem e o meio natural implica a imersão da figura humana no ambiente,
Com o aprimoramento da concepção da tutela ambiental e o desenvolvi- o que, consequentemente, gera a mudança de postura, de um posicionamento
mento da visão holística e da ética ambiental, não apenas os componentes am- egoísta, antropocêntrico e interesseiro para uma postura ética e consciente, de
bientais que trazem benefícios direitos aos seres humanos são protegidos, to- respeito ao ambiente.
dos os fatores bióticos e abióticos e os processos que ocorrem naturalmente no O ser humano está na natureza, faz parte do meio ambiente onde vive e,
ambiente e dos quais resulta o equilíbrio ecológico, são tutelados. ao agredi-lo, agride a si próprio. Ao protegê-lo, a contrario sensu, garante o fu-
Peter Singer aduz que “o bem-estar e o desenvolvimento da vida na Terra, turo de seus próprios descendentes e realiza-se enquanto ser biótico. Os pro-
humana e não humana, têm valor em si (sinônimos: valor intrínseco, valor ine- blemas ambientais se agravam com o passar do tempo, por isso a mudança do
rente). Estes valores são independentes da utilidade do mundo não humano paradigma de proteção ambiental se faz necessária. O antropocentrismo não é
para finalidades humanas”33. mais suficiente para resolver a atual crise ambiental. Eis que surge o holismo
O ser humano, holisticamente considerado, como ser biótico que é, inte- ambiental com uma nova concepção do ambiente.
gra o meio ambiente e depende da natureza e da salubridade de seus recur- Dentro da visão holística ambiental, o meio ambiente tem valor em si mes-
sos tanto quanto os demais seres vivos, por isso o dever de proteger o am- mo, independentemente dos benefícios trazidos aos seres humanos, que por
biente faz parte de um dever maior de solidariedade, com a própria espécie sua vez, são considerados apenas uma espécie animal, como todos os outros se-
e com as demais espécies. res vivos, sem grau hierárquico e sem superioridade.
Quando a humanidade se sentir parte da comunidade biótica e do meio A solidariedade que fundamenta as relações humanas transcende para
76 natural, a proteção ambiental com base na solidariedade entre os seres huma- uma solidariedade em relação às demais espécies e à natureza. Como afirma 77
nos e os seres não humanos será apenas uma consequência da modificação de Boff (2004, p. 22): “E por fim ético seria reconhecer o caráter de autonomia
postura da humanidade. relativa dos seres; eles também têm direito de continuar a existir e a co-exis-
A solidariedade que transcende ao vínculo antropocêntrico e fundamenta tir conosco e com outros seres, já que existiram antes de nós e por milhões
o dever de cuidado e promoção de ambiente ainda é utópica. Entretanto, com de anos sem nós”.
base no holismo ambiental e na integração dos seres humanos no meio natu-
ral é possível e desejável.

4) Conclusão

O estudo dos deveres é sobremaneira carente no Brasil e no mundo. Muito se


preocupa em estudar os direitos fundamentais sem analisar sua outra face: os
deveres fundamentais. Dentro deste panorama, o estudo do dever fundamental
de proteção do meio ambiente se destaca.

32) BOFF, Leonardo. Ecologia: gritos da terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004,
p. 21.
33) SINGER, Peter. Ética prática. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
1993, p. 295.

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4
Direito como Integridade e Integridade do
Meio Ambiente: O Dever Fundamental de
Proteção do Meio Ambiente e a Proposta
Interpretativa de Dworkin a Partir da
Jurisprudência do Stf e do Stj

Ludmila Lais Costa Lacerda1


Universidade Federal de Minas Gerais

Julio Pinheiro Faro2


Universidade Federal do Rio Grande do Norte 79

Sumário: Introdução. 1 O Direito como


Integridade de Ronald Dworkin. 2.
A Interpretação do Stf e do Stj Sobre Integridade
e Meio Ambiente. Conclusão

1) Mestranda em Direito Constitucional e Teoria do Direito pela Faculdade de Direito da


Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Graduada em Direito pela Faculdade
Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas);
Advogada e Consultora Jurídica. Tem experiência e interesse acadêmico pelas áreas de
Filosofia do Direito, Teoria Geral do Direito, Hermenêutica Jurídica, Direito Público,
Direito Constitucional, Teoria da Constituição e Hermenêutica Constitucional. Currí-
culo Completo: http://lattes.cnpq.br/7654938362880630.
2) Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitó-
ria (FDV); Diretor Secretário-Geral da Academia Brasileira de Direitos Humanos
(ABDH); Pesquisador vinculado aos Programas de Pós-Graduação em Direito da FDV
(Mestrado/Doutorado) e do Departamento de Direito Público (Mestrado) da Universi-
dade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Servidor Público Federal. Pesquisa nas
áreas de Teoria do Direito, Filosofia do Direito, Teoria Política e Direito Constitucional.
http://lattes.cnpq.br/1936096236504255.
Direito como Integridade e Integridade do Meio Ambiente: O Dever Fundamental de Proteção do
Meio Ambiente e a Proposta Interpretativa de Dworkin a Partir da Jurisprudência do Stf e do Stj Ludmila Lais Costa Lacerda m Julio Pinheiro Faro

H Introdução Atualmente, autores como Robert Alexy3 e Ronald Dworkin4 colocam os


princípios morais como o fundamento de validade e da legitimidade do direi-
to. Devido à necessidade de uma abordagem teórica constitucional e princi-
O direito ao ambiente adequado foi mundialmente reconhecido pela Declaração piológica quanto aos direitos e garantias ambientais no Brasil pelos tribunais,
do Meio Ambiente, em seu princípio primeiro, adotada na Conferência das procuraremos desenvolver, como cerne no presente artigo, os argumentos da
Nações Unidas, em Estocolmo, em 1972, sendo assegurado ao ser humano o teoria de Ronald Dworkin em paralelo com comentários de modo acessório e
direito fundamental à preservação do ambiente e o direito à vida. No Brasil, comparativo a outras teorias e casos concretos.
diante da importância que o direito ao meio ambiente ecologicamente equi- Antes de tudo, é importante diferenciar as perspectivas dos autores ora
librado tem (art. 225, Constituição brasileira de 1988), ele é considerado pela mencionados, pois Dworkin não trabalha com diferenciação entre regras e
doutrina majoritária nacional como um direito fundamental, ainda que não princípios conforme estrutura de aplicação ou por características morfológi-
esteja presente nos artigos do Título II. Tal pensamento de correlação tem cas. Ele trabalha com uma distinção lógico-argumentativa partindo do caso5
respaldo diante do fato de que com um meio ambiente saudável há melhor concreto para análise das razões trazidas pelos participantes na discussão para
qualidade de vida, requisito básico e indispensável para a existência humana então compreendermos as regras e os princípios. Ademais, Dworkin traz não
digna (concretização do art. 1º, III, da Constituição de 1988). Assim, assegu- somente a possibilidade de regras e princípios, mas inclusive, de diretrizes polí-
rado meio ambiente ecologicamente equilibrado, também se garante o direito ticas, assim, enquanto um princípio consagra uma exigência de um direito, uma
individual à vida e à dignidade humana e são promovidos os demais direitos diretriz política traz um objetivo a ser alcançado, o qual geralmente coincide
fundamentais, de modo a possibilitar o entendimento que, assegurar um meio com alguma questão de ordem econômica, política ou social e pode ser consi-
ambiente equilibrado é, também, amparar um direito individual e social. derada desejável em uma comunidade. Nesse sentido, para o mencionado jus-
80 O presente trabalho propõe uma análise da interpretação que o Supremo filósofo, diretrizes políticas podem ser aplicadas em graus distintos, mas não 81
Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm sobre a in- os princípios, pois esses últimos possuem o caráter de “trunfo”, sendo aplicados
tegridade do meio ambiente. A discussão é feita a partir da proposta do Direito
como integridade de Ronald M. Dworkin, a qual é apresentada na segunda se-
ção e aplicada na terceira, para encerrar o artigo com considerações finais so-
bre o tema. Utiliza-se, para isso, uma metodologia dialógico-argumentativa. 3) Alexy afirma que “a partir de um estágio mínimo de desenvolvimento, todos os sistemas
jurídicos contêm necessariamente princípios. Isso basta como base para a fundamentação de
uma conexão necessária entre direito e moral pelo argumento dos princípios”. Ver: ALEXY,
Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 90.

1) O Direito como Integridade de Ronald Dworkin 4) O positivismo de H. L. A. Hart sustentou que o direito seria um conjunto de regras identifi-
cadas por meio de uma única regra de reconhecimento. Afirmou ainda que, esse conjunto de
regras válidas esgotaria o conteúdo do direito e, não havendo regra clara que seja identificada
A teoria da decisão e argumentação jurídica tem trabalhado com questões de pela regra de reconhecimento ao caso concreto, os juízes teriam poder discricionário para
justificação por meio de critérios de legitimidade (justos) e através de critérios decidir. Defendeu igualmente que, os direitos e obrigações poderiam originar-se somente de
regras jurídicas as quais seriam validadas pela regra de reconhecimento. Consequentemente,
de validade (legalistas). No Direito, a diferença entre uma prática lícita e ilíci- nos casos em que não haja regras jurídicas validadas pela regra de reconhecimento, não se
ta pode estar tanto pautada sob a perspectiva científica de uma situação ecoló- poderia sustentar que uma das partes do litígio teria direito a alguma decisão a seu favor. Para
gica e sustentável, como em um futuro a ser delineado e construído de forma Dworkin o conteúdo do direito não se esgotaria em um conjunto de regras, e nem poderia ser
totalmente identificado (delimitado) por uma regra de reconhecimento, pois na legislação e
idealizada a partir de condições do presente. A justificativa quanto a uma de- na prática jurídica existiriam, também, “princípios” que possuiriam estrutura e funcionamento
cisão pode ser focada tanto no prisma da validade das normas criadas, quanto distintos das regras e que poderiam ser aplicados pelos juízes aos casos.
na fundamentação de uma decisão jurídica legítima. 5) Em comparativo teórico, podemos afirmar que para Günther, o problema não é a aplicação
correta de uma norma, mas da “aplicação da norma correta” (apropriada). Ver: GÜNTHER,
Klaus. Teoria da argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação. São Paulo: Landy
Editora, 2004, p.55.

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Direito como Integridade e Integridade do Meio Ambiente: O Dever Fundamental de Proteção do
Meio Ambiente e a Proposta Interpretativa de Dworkin a Partir da Jurisprudência do Stf e do Stj Ludmila Lais Costa Lacerda m Julio Pinheiro Faro

de modo deontológico e prevalecendo também contra as diretrizes políticas6. que excepcionalmente) com as minorias sem que possam ser consideradas
Em suas obras, Dworkin não considera adequada uma concepção da de- como menos democráticas8. Há uma defesa que Dworkin chama de “con-
mocracia ou de princípios políticos justos a partir da mera premissa majori- cepção constitucional da democracia”9, segundo a qual, as decisões tomadas
tária7, já que as decisões da maioria podem ser justas ou injustas (mesmo

de participação (como um ‘direito dos direitos’), ao que parece, Hübner trata a participação
6) FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito constitucional. 6.ed. Salvador: JusPo- meramente através de via indireta (institucional) com reforço da representação através de
divm, 2014, p. 237. mecanismos eleitorais. Ele afirma que em Waldron a regra da maioria não seria um ‘mero’
7) Nesse sentido, de uma democracia sob concepção do majoritarismo, observar Waldron e o procedimento da democracia, uma vez que há nela um conteúdo fundamental, ou seja, a regra
debate do tema “democracia e constitucionalismo”. Segundo ele, o Poder Legislativo tem maioria teria assim, um valor moral. Hübner afirma que as críticas ao Judicial Review não são
mais legitimidade que o Poder Judiciário, pois o procedimento legislativo parte de insti- firmadas somente na regra da maioria (que teria um conteúdo moral fundamental relacionado
tuições representativas, compostas por membros eleitos diretamente pela população. Segundo ao direito de participação através de representantes), mas que tais críticas apontam a revisão
Waldron, nos lugares onde a legislação não pode ser invalidada pelo Poder Judiciário, o povo judicial apenas como mais um (novo) procedimento de democratização. A partir da colocação
(representado pela maioria legislativa) decide os assuntos de ‘forma definitiva’, na medida em de Hübner, talvez seja possível afirmar que, sendo a ‘regra da maioria’ passível de consideração
que elege os candidatos que os representarão no Poder Legislativo. Ao se adotar o Judicial como ‘procedimento democrático de conteúdo moral fundamental’ relacionado ao ‘direito de
Review, o eleitor que vota em candidatos que tendem a representar seus ‘interesses’ não tem participação’, nada impede que o Judicial Review também seja considerado como um procedi-
segurança alguma de que seu ponto de vista será considerado. Dessa forma, o Judicial Review mento de democratização (em âmbito jurisdicional), também de cunho moral e fundamental
seria politicamente ilegítimo para Waldron, pois privilegia poucos juízes que sequer foram ao direito de participação (seja através também de representantes na esfera judiciária ou de
eleitos diretamente, em detrimento dos votos da maioria e de seus representantes diretos, reti- modo mais direito e efetivo como cidadão – por mecanismos jurídicos e processuais difusos
rando os cidadãos comuns do processo e da solução final de assuntos sobre direitos, deixando de acesso pelas partes ao poder judiciário), porém, para correção daqueles casos que possam
de lado os princípios de representação e igualdade política. Para que uma decisão legislativa envolver erros no procedimento de regra da maioria (principalmente na esfera legislativa),
tenha sido tirânica em relação a determinada(s) pessoa(s), não basta que essa pessoa faça em que não sejam observados os direitos também fundamentais, inclusive de participação
parte da minoria que decide. Além disso, é preciso que: (i) a decisão tenha realmente sido das minorias. Ver: WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. Oxford: Oxford University
82 Press, 1999; WALDRON, Jeremy. The core of the case against judicial review. The Yale Law 83
equivocada, causando implicações negativas para os direitos dos afetados e (ii) a minoria que
decide coincida com a minoria afetada pela decisão. Ele ressalva que o processo legislativo só Journal, v. 115, 2006; WALDRON, Jeremy. Do judges reason morally? In: HUSCROFT,
é legítimo se cada votante tiver a garantia de que os demais votantes encaram os direitos dos outros Grant (org). Expounding the Constitution: essays in constitutional theory. Cambridge: Cambri-
com igual respeito e consideração. Quando essa premissa (pressuposta) não é observada, o Poder dge University Press, 2008; HÜBNER MENDES, Conrado. Controle de constitucionalidade e
Judiciário estaria reforçando a democracia ao determinar a não aplicação da lei (ilegítima ou democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
inválida por não respeitar a participação de todos). Waldron afirma que o compromisso com os 8) DWORKIN, Ronald. Is democracy is possible here? Princeton: Princeton University Press,
direitos dos demais é uma premissa (pressuposto) que ele assume (assim, nos casos em que ela não 2006, p. 131.
fosse observada teríamos um “non-core case” e o Judicial Review realmente poderia servir
para combater tais anomalias). Porém, a solução judiciária será sempre excepcional e de curto 9) Para Dworkin o objetivo que define democracia tem de ser diferente: que as decisões sejam
prazo, apta a resolver casos específicos e imediatos. A solução de longo prazo adequada é a re- tomadas por instituições políticas cuja estrutura, composição e modo de operação dediquem
visão legislativa que corrija eventual distorção da lei. Waldron ainda defende que o fato de o a todos os membros da comunidade, enquanto indivíduos, a “mesma consideração e o mes-
processo legislativo poder não ser adequado em algum momento não torna o Judicial Review mo respeito” (o que nem sempre a premissa majoritária, por si somente, pode garantir). A
necessariamente adequado, pois a ausência de premissas desqualifica o Poder Legislativo, mas concepção de Dworkin também engloba o mecanismo e premissa majoritária e a comple-
não faz caírem por terra todos os argumentos contrários ao arranjo judicial (uma vez que os menta com ressalvas (limitações). Dworkin não opõe objeções ao emprego deste ou daquele
juízes também podem errar ou não observar a declaração de direitos e todas as premissas, procedimento majoritário ou não-majoritário para proteção e promoção da igualdade (igual
ou pressupostos democráticos e participativos traçados). No campo da decisão judicial, ele consideração e respeito). Pode haver então uma interdependência e mútua sustentação (entre
acaba adotando a “natureza mista do raciocínio moral”, de acordo com a qual os juízes se en- a concepção de democracia caracterizada pela regra majoritária e a concepção constitucional
volvem em um raciocínio que torna inseparável a parte moral da parte jurídica da sua missão de democracia). Há certas condições para exercício das liberdades positivas e da democracia
(alguns dirão que o raciocínio moral vai além de muitos aspectos que o raciocínio jurídico). segundo a concepção constitucional. Dworkin divide essas condições em: condições estrutu-
O autor cita o método de equilíbrio reflexivo recomendado por Rawls e outros como uma rais - a comunidade política não pode ser somente nominal, tem de ter sido estabelecida no
forma de abordar questões morais entre certos julgamentos e princípios gerais. Certo é que, decorrer de um processo histórico que tenha produzido fronteiras territoriais suficientemente
para Waldron, os juízes nunca deixam o raciocínio moral para trás em nada que fazem, nem reconhecidas e estáveis. E condições de relação - determinam como um indivíduo deve ser
mesmo no raciocínio mais técnico e legalista pode fazer com que eles deixem os elementos tratado por uma comunidade política verdadeira para que possa ser um membro moral dessa
mais reconhecidamente morais de sua argumentação. Engajar-se em que tipo de raciocínio é comunidade. Uma comunidade política não pode fazer de nenhum indivíduo um membro
também uma das coisas que moralidade requer (ele diz que essa pode ser a forma da denúncia moral se não possibilitar que nas decisões coletivas essa pessoa tenha participação, um inte-
de Dworkin sobre Posner). Conrado Hübner defende que a democracia em Waldron não resse (na decisão) e independência em relação a ela. É preciso observação de três elementos:
é meramente procedimental ou formal, pois faz uma reivindicação substantiva pelo direito (i) participação - todas as pessoas devem ter a oportunidade de modificar de algum modo as

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por maioria pelos cidadãos não definem a democracia; o objetivo que define sa instituição social mais estruturada e reveladora” e se “compreendermos melhor a
democracia é pautado por decisões coletivas tomadas por instituições polí- natureza de nosso argumento jurídico, saberemos melhor que tipo de pessoas somos”12.
ticas, nas quais as estruturas, composições e modos de operação dediquem Dworkin vai além da perspectiva analítica, da divisão entre “ser” e “dever ser”
a todos os membros da comunidade, enquanto indivíduos, com a mesma conside- e da busca por cognições descritivas ou críticas normativas do direito a par-
ração e o mesmo respeito10. As pessoas participam de uma democracia quando tir de um observador externo com pretensão de uma teoria neutra. No Direito
governam a si mesmas, porém como parceiras de um empreendimento po- como integridade há um resgate de demonstrações por meio da prática nas de-
lítico coletivo, assim, através de uma visão constitucional, uma comunidade cisões judiciais (como produtos da argumentação e interpretação das práticas
que ignora os interesses de uma minoria é por essa razão, antidemocrática, sociais, da história e do tempo) que revelam impossibilidade da neutralidade
ainda que possua eleições majoritárias11. de teorias semânticas sobre o direito, visto que tanto estas teorias (concepções
A teoria proposta por Ronald Dworkin ainda enfrenta o tema da divergên- do direito) quanto seus autores (“observadores”/participantes) estarão sempre
cia teórica a partir da análise do exercício da justiça pelos juízes nas decisões imersos13 em um contexto histórico e portanto limitados, marcados pelo tem-
judiciais, ou seja, por meio da prática nos tribunais, vez que o direito “é a nos- po e por pré-compreensões14.

decisões coletivas. / (ii) reciprocidade - o processo político de uma comunidade política ver- 12) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 15.
dadeira deve expressar alguma concepção de igualdade de consideração para com o interesse
de todos os membros da comunidade, um indivíduo não pode ser um membro a menos que 13) Interessante destacar segundo Lenio Streck: “... o processo de subsunção no Direito re-
seja tratado pelos outros como tal. Uma sociedade onde a maioria despreza as necessidades produz metafisicamente a divisão ser-ente, opondo o ser ao ente... o resultado disso é o
e perspectivas de uma minoria, não se mostra somente injusta, mas também ilegítima. / (iii) predomínio do método, do dispositivo, da tecnização e da especialização, que na sua forma
independência moral - A independência moral deve ser mais controversa do que as duas pri- simplificada redundou em uma cultura jurídica estandartizada, na qual o direito não é mais
84 meiras. Os membros de uma comunidade política podem encarar uns aos outros como sócios pensado em seu acontecer.” Ver: STRECK, Lenio Luiz. A crise da hermenêutica e a her- 85
num empreendimento conjunto, como os membros de uma orquestra ou de uma equipe de menêutica da cise: a necessidade de uma Nova Crítica do Direito (NCD). Em: SAMPAIO,
futebol, todos os quais compartilham muitas coisas, ainda que o empreendimento como um José Adércio Leite. Jurisdição Constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del
todo seja conduzido (em decisões e circunstâncias) de uma maneira com a qual nem todos Rey, 2003, p. 117-130.
concordem completamente sempre. Não há nada nessa ideia constitucional de democracia 14) Contrário ao império da racionalidade metódica destacada a partir do Aufklärung, Gadamer
que ponha em xeque a responsabilidade do indivíduo de decidir por si mesmo que vida viver, dados expõe que a racionalidade não pode ser vista como uma ferramenta mágica em prol da com-
os recursos e oportunidades que lhe são oferecidos antes e depois das tomadas de decisões preensão livre dos “pré-conceitos”, pois compreender algo já é sempre interpretar (fusão de
coletivas. A comunidade política verdadeira é aquela feita de agentes morais independentes. horizontes), vez que a visão é sempre feita a partir dos pré-conceitos do interprete. Reassal-
Não se pode determinar o que os cidadãos devem pensar exatamente a respeito de política ou ta-se que, conforme Gadamer, “preconceitos / pré-conceitos” não são vistos de maneira pe-
ética, mas deve propiciar circunstâncias que os permitam chegar a convicções em matéria de jorativa e tampouco como uma limitação à interpretação. A constatação que a compreensão
ética e política, através da reflexão própria. Ver em: DWORKIN, Ronald. Direito da liberdade: flui mediatizada por conhecimentos prévios demonstra que a compreensão sempre se funda
a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006. em pré-compreensões. Ao fixar a compreensão em métodos que desconsiderem a tradição
10) DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. e levem à interpretação, despreza-se também o aspecto fundamental humano, que é a sua
São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 26. posição histórica, passando a tratá-lo como ser a-histórico. A condição histórica de todo
conhecimento e de qualquer método tido como correto são condição de possibilidade para
11) Ver também: DYZENHAUS, David. The Incoherence of Constitutional Positivism. In. seu próprio aprimoramento e também de reconhecimento das suas debibilidades. Assim,
HUSCROFT, Grant (org). Expounding the Constitution: essays in constitutional theory. Cam- não é correto analisar um evento histórico ignorando-o no contexto presente e no contexto
bridge: Cambridge University Press, 2008. Dyzenhaus faz uma interessante crítica à postura em que foi escrito. A tensão causada entre um comando de sentido criado e realizado no
de um ‘positivismo político’ e posições ‘neo-benthamistas’ como alega ser a de Waldron, passado e a necessidade de constantemente aplicá-lo no presente, exige do interprete sempre
também propõe a ideia sobre uma interação institucional: mais cooperativa e responsável uma interpretação e reconstrução (coerente) do conteúdo de tal comando em seu momento
com a decisão em si tomada e amadurecimento dos princípios democráticos em uma so- de criação e momentos de suas aplicações anteriores, para solucionar uma questão de acordo
ciedade, e menos ‘rude’ com possíveis desdobramentos destrutivos e de usurpação em prol com as exigências do presente... Em sua origem, o fenômeno hermenêutico não é problema
de interesses corporativistas, assim, as instituições podem emanar decisões pautadas em um do método. A questão não está em submeter às obras a um método de compreensão cien-
fortalecimento mútuo da confiança e legitimidade (nas relações entre as próprias institui- tífico, mas em se compreender a tradição, não se compreende apenas obras, mas também é
ções e os cidadãos), principalmente em lugares onde ocorre uma progressiva transição para o necessário discernimento e reconhecimento de contingentes verdades: “com a experiência
modelo de democracia liberal e consolidação de interações civis pautadas no ‘igual respeito da filosofia, com a experiência da arte, da própria historia. São modos de experiência nos
e igual consideração’. quais se manifesta uma verdade que não pode ser verificada com os meios metodológicos

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As teorias semânticas do Direito partem do pressuposto que os advogados to, que é considerado como evento único e irrepetível18.
e os juízes utilizam os mesmos critérios para determinar se uma proposição ju- Dworkin se contrapõe a tais perspectivas e apresenta casos19 demonstran-
rídica é verdadeira ou falsa, ou seja, nas teorias semânticas acredita-se que os do que, na prática, há, verdadeiramente, uma divergência teórica quanto aos
envolvidos na prática jurídica estão de acordo a respeito dos fundamentos do fundamentos do Direito. O autor menciona, inclusive, o caso “Snail Darter”20,
Direito. Assim, para os teóricos do positivismo jurídico a verdadeira divergên- que versou sobre uma lei promulgada pelo Congresso dos Estados Unidos da
cia sobre a natureza do Direito seria uma divergência empírica estabelecida so- América em 1973, conhecida como “Lei das Espécies Ameaçadas”, que auto-
bre um consenso institucional pré-estabelecido, enquanto, na escola do Direito rizava ao ministro do Interior designar as espécies que, em sua opinião, esta-
natural as divergências sobre o fundamento do Direito e validade das prepo- riam próximas da extinção.
sições jurídicas estariam em questões de critérios morais e não inteiramente Um grupo de preservacionistas do Tennessee vinha se opondo ao projeto
factuais. Há também a corrente do realismo jurídico, que permite a previsão de construção de uma barragem da Administração do Vale do Tennessee por-
de prováveis e possíveis decisões de acordo com variados contextos, assim, o que o projeto estava alterando a geografia da região, para produzir um aumen-
fundamento do Direito e determinação da validade das proposições jurídicas
dependem de resultados calculados pelo magistrado, os adeptos dessa corren- 18) Menelick de Carvalho Netto aduz que há um grande desafio, posto hoje em relação aos
te afirmam que “o Direito” conforme explicitado pelos juspositivistas e os jus- direitos fundamentais, como sendo: a descoberta que o Direito moderno não regula nem
naturalistas não existe, e o que existem são somente decisões judiciais a serem a si mesmo. Nas palavras do professor: “O direito moderno só se dá a conhecer por meios
de textos e textos, que por definição são manipuláveis. Kelsen já buscara trabalhar o cará-
proferidas considerando probabilidades e cálculos futuros, ou que resulta ape- ter indeterminado do Direito moderno a partir de uma concepção positivista de ciência.
nas daquilo que “o juiz tomou em seu café da manhã”15. Dworkin, ao contrário, buscará responder a esse desafio, no contexto do atual conceito de
Em contraponto às perspectivas existentes, a teoria de Dworkin considera ciência, optando pelo enfoque da hermenêutica filosófica. Se são possíveis várias leituras de
um mesmo texto, para ela, a saída se encontra na concretude e na singularidade dos even-
86 como “elemento central a coerência de princípio”, não desprezando “a equa- tos sociais que o Direito regula. A situação vivencial concreta levada ao Judiciário é única, 87
nimidade (fairness), justiça (justice) e o devido processo legal16 (procedure due irrepetível, por definição. No campo social, os eventos não se repetem em grau definitivo,
process)” negando, portanto, que “as manifestações do Direito sejam meros re- porque se o fizerem já não são os mesmos, uma vez que nós que os vivenciamos somos pes-
soas diferentes do que antes fôramos, já que aprendemos vivencialmente com eles. Somos
latos factuais voltados para o passado” ou que sejam somente “programas ins- pessoas mais vivenciadas, mais vividas, mais experientes e as nossas expectativas em relação
trumentais voltados para o futuro”. Para a teoria do direito como integridade “as a eles são distintas. É nesse sentido que Ronald Dworkin pôde afirmar que há uma única
afirmações jurídicas são, ao mesmo tempo, posições interpretativas voltadas decisão correta para cada caso, não é em termos de que só seja possível uma única leitura de
um texto legal. Dworkin tem uma formação extremamente sofisticada, é um crítico literário,
tanto para o passado quanto para o futuro”17. O direito que apresenta integri- sabe não somente que um texto admite várias leituras, mas que o horizonte de possibilida-
dade sinaliza e norteia a aplicação dos princípios em face de cada caso concre- de das leituras se altera com as mudanças sociais verificadas ao longo do tempo”. E ainda:
“não há saída fora de nós mesmos, nossa situação é hermenêutica, vemos a nós mesmos em
tudo. E se o nós que construímos for um nós pobre, um nós excludente e excluído, um nós
da ciência”. Ver: GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma de um país periférico, é claro que a identidade constitucional será apenas um ícone para os
hermenêutica filosófica. 3. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1997, p. 29-30. poderosos reproduzirem a sua privatização do espaço público, como, aliás, necessariamente
se veem obrigadas a fazer as ditaduras.” Ver: CARVALHO NETTO, Menelick de. A her-
15) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 45. menêutica constitucional e os desafios postos aos direitos fundamentais. Em: SAMPAIO,
José Adércio Leite. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey,
16) Uma observação: Para Marcelo Cattoni a tarefa geral da jurisdição (constitucional) no mar- 2003, p. 159-161.
co do paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, “é a garantia das
condições processuais para o exercício da autonomia pública e da autonomia privada dos 19) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 20-38.
co-associados jurídicos, no sentido da equiprimordialidade e da interrelação entre elas.” Para
Cattoni deve ser garantida a participação dos possíveis afetados por cada decisão na matéria, 20) Ainda hoje, trinta anos após batalhas jurídicas para salvar uma espécie ameaçada, o pequeno
através de uma interpretação construtiva que compreenda o próprio processo como garantia peixe que bloqueou a conclusão de uma barragem ainda é invocado em vários escritos. No
das condições para o exercício da autonomia jurídica dos cidadãos. Ver: CATTONI, Marce- livro “The Snail Darter and the Dam” o advogado Zygmunt J. B. Plater narra o caso no qual
lo. Devido processo legislativo. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006, p. 166. participou juntamente com seus alunos, vencendo diante da Suprema Corte Norte Ameri-
cana. Ele oferece um relato detalhado de seis anos contra um projeto que, segundo ele, “não
17) FERNANDES, Bernardo Gonçalves; PEDRON, Flávio Quinaud. Poder Judiciário e(m) fazia sentido econômico e era falho desde o início”. Ver: PLATER, Zygmunt Jan Broël. The
crise. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 209. Snail Darter and the Dam. New Haven: Yale University Press, 2013.

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to desnecessário de energia hidrelétrica. Esse grupo descobriu que uma barra- à competência para legislar sobre o tema, ela é concorrente entre a União, os
gem quase concluída, que custara mais de cem milhões de dólares, ameaçava Estados e o Distrito Federal, cabendo aos Municípios a competência suple-
destruir o único hábitat do snail darter, um peixe de 7,5 cm. Assim, convenceu mentar nos casos de interesse local.
o ministro a apontá-lo como uma espécie ameaçada de extinção e a impedir a Nos documentos jurídicos nacionais podemos encontrar diretrizes prin-
conclusão da barragem. cipiológicas que norteiam as práticas cidadãs juntamente com as práticas
A Administração do Vale argumentou que a lei não podia ser interpreta- institucionais dos poderes públicos, como direito ao meio ambiente ecolo-
da de modo a impedir a conclusão ou operação de qualquer projeto já em fase gicamente equilibrado em decorrência do direito à vida (seja como existên-
avançada de construção. Demonstrou, ainda, várias leis do Congresso que su- cia física e saúde, seja como aspecto da dignidade da existência humana).
geriam seu interesse na conclusão da barragem, inclusive a autorização da do- Também pode ser observada a dimensão de responsabilidade a partir da so-
tação de recursos para o projeto. lidariedade intergeracional21 (entre gerações), que busca assegurar a solida-
No entanto, a Suprema Corte determinou a interrupção da obra. O presi- riedade entre a geração presente e as futuras, para que se possa usufruir, de
dente Warren Burger, cujo voto foi seguido pela maioria dos juízes, afirmou que forma saudável, dos recursos naturais.
quando o texto é claro, a corte não tem o direito de recusar-se a aplicá-lo ape- A partir de 1988 há um compromisso constitucional com a natureza públi-
nas por acreditar que seus resultados serão tolos. Entendeu que, sendo claro o ca da proteção ambiental, que preconiza a primazia do interesse público sobre o
significado das palavras do texto, então o tribunal deve atribuir esse significa- particular, além da indisponibilidade do interesse público. Podemos falar tam-
do àquele termo, a menos que se pudesse mostrar que o legislador pretendia, na bém no desenvolvimento sustentável, finitude dos recursos ambientais e ligação
verdade, um resultado diverso. No caso, porém, considerou o juiz que o histórico dessa realidade com a prática das atividades econômicas. No campo da respon-
do processo legislativo que leva à promulgação da Lei das Espécies Ameaçadas sabilização, é possível argumentar sobre a questão do “poluidor pagador” e a do
88 não autorizava tal conclusão, pois estava claro que o Congresso queria dar às “usuário pagador”, que refletem fundamentos da responsabilidade em matéria 89
espécies ameaçadas de extinção alto grau de proteção, mesmo em detrimento ambiental. Em relação à proibição do retrocesso ecológico podemos dizer que
de outros objetivos sociais. O juiz Lewis Powell, vencido, entendeu que a Corte possui caráter irretroativo em relação às conquistas quanto à proteção ambien-
deveria adotar uma interpretação eficaz, compatível com o bom senso e o bem tal, e pode ser identificada nos conceitos de proteção deficiente e proteção ex-
-estar público. Para ele, os tribunais só deveriam aceitar um resultado absurdo se cessiva. Sobre a “prevenção” e a “precaução”, a primeira relaciona-se com o pe-
encontrassem uma prova inequívoca de que fosse isso o pretendido. rigo concreto de um dano inevitável e iminente, fazendo-se necessário adotar
Neste caso, os juízes admitiram que a Corte deveria seguir a lei, mas discor- medidas urgentes para evitá-lo, já a segunda trata do perigo abstrato potencial,
daram sobre o sentido dela, sobre o modo como os eles deveriam decidir sobre pautado na incerteza científica e na dúvida, devendo haver extrema considera-
qual norma jurídica resultava de textos promulgados pelo Congresso. ção da necessidade para adoção de qualquer medida, não somente na reparação
Diferentemente do caso que envolveu controvérsias normativas norte-ame- de qualquer dano (iniciado ou concluído), como para a redução de incidentes.
ricanas, no histórico do Direito brasileiro, podemos afirmar que há uma ten- A participação na informação e educação ambiental e na promoção de ati-
dência a criar legislações rígidas para garantir a preservação do meio ambiente. vidades e audiências públicas pode demonstrar que o cidadão não depende de
A Constituição de 1988 é a primeira a tratar de forma direta o meio ambiente, seus representantes políticos para atuar na gestão do meio ambiente, dotando-
tendo o tema se consubstanciado no art. 225, além do referido dispositivo, ao lhe de capacidade para atuação instantânea na preservação do meio ambiente
longo do texto constitucional são feitas diversas referências ao meio ambiente, o e na gestão ambiental.
que demonstra uma preocupação com a proteção jurídica efetiva mediante di- A proteção do meio ambiente é tema transversal e ubíquo na sociedade,
versas garantias e mecanismos processuais, como, por exemplo, a ação popular. sendo primordial quando tratamos dos direitos humanos, pois toda atividade
No caso brasileiro, a competência do poder público para proteger o meio pública deve considerar o fundamento de preservação da vida e, principalmen-
ambiente e combater abusos é comum à União, aos Estados, ao Distrito Federal
e aos Municípios, tendo em vista a preocupação com a eficácia e a responsabi-
lidade protetiva de forma conjunta por todos os entes federativos. Em relação 21) Observar novamente a Declaração de Estocolmo e o Princípio terceiro da ECO-92.

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te, a qualidade para que as pessoas possam viver de modo plural, respeitando um novo capítulo, assim, cada um deveria escrever seu capítulo de modo a
autonomia e responsabilidade, conforme cada ‘projeto de uma vida boa’. contribuir para um todo coerente24.
Sendo assim, a partir de uma verificação (superficial e breve) quanto aos A escolha pelo gênero narrativo em prosa na modalidade romance abdica
documentos jurídicos, garantias, competências e responsabilidades do poder das formas clássicas e não se liga à subjetividade do lírico, à tragédia do dramá-
público em relação ao tema ambiental para a tomada de decisões, inclusive tico ou à objetividade do épico, dando lugar à escrita da realidade e do hodier-
aquelas proferidas por um magistrado diante um caso concreto, questiona-se, no a cada tempo. Diante do jogo entre tradição (passado), novidade (futuro)
como proceder a tal tomada de decisões e como justificar argumentativamente e imediato (presente), o “romance em cadeia” demonstra a necessidade de en-
a decisão (principalmente em âmbito judicial). cadeamento da narrativa jurídica, onde, considerado o conjunto da obra, cada
Para decidir conforme o Direito como integridade, Dworkin traça uma (novo) capítulo escrito mantém plausibilidade com as partes produzidas por
concepção sobre interpretação22, podendo ser dividida a etapa interpreta- diversos juízes e Cortes, o que pode ser mais facilmente exequível em ordena-
tiva em três subetapas: etapa pré-interpretativa, etapa interpretativa e etapa mentos que exijam a consideração do precedente como parte da argumentação.
pós-interpretativa. A primeira identifica as regras e padrões que fornecem Assim, uma argumentação jurídica inspirada no “romance em cadeia” não
o conteúdo experimental da prática. A segunda estabelece uma justificação pode negligenciar interpretação dos debates escritos em diversos capítulos por
dos princípios que se ajustam às práticas em questão, visando garantir que distintos autores na cadeia do romance jurídico e a obra não pode conter ca-
se obtenha uma “interpretação” e não uma “invenção”. Por fim, a terceira re- pítulos isolados em que juízes desprezem os precedentes, escrevam argumen-
forma a prática para que esta se adapte. tos restritos (“interpretações” ou “literalidades”/“subsunções”) que considerem
O Direito como integridade é uma teoria alternativa, onde as afirmações apenas o texto das leis como cânones, e/ou recorram exclusivamente a argu-
jurídicas voltam-se tanto para o passado quanto para o futuro e que recusa mentos políticos no momento de elaboração dos textos normativos por seus
90 descoberta de um direito pré-existente (convencionalismo) ou invenção de um autores. Essa postura desvinculada comprometeria a segurança jurídica e a vi- 91
direito novo (pragmatismo), pois coloca a prática jurídica melhor compreen- são constitutiva da justiça, já que a busca daquilo que o legislador/autor quis
dida quando se reconhece que as decisões judiciais contêm as duas coisas e ne- dizer, caso não sejam considerados outros elementos presentes no iter decisó-
nhuma delas. Para construí-la, Dworkin utiliza de metáforas na tentativa que rio, desnatura as conexões históricas e despreza as contribuições (não subje-
seu intérprete capture a essência das experiências comunicadas e as aplique em tivas, mas compartilhadas entre a comunidade) que o intérprete/romancista/
sua prática, a partir de uma substituição analógica. A palavra metáfora tem a magistrado pode oferecer aos casos.
mesma raiz de “ânfora”, um recipiente usado para guardar e transportar óleos Além disso, ao se valer somente de argumentos políticos pautados na inten-
e condimentos de um lugar para outro23, de modo semelhante, as metáforas ção do legislador no momento de ações políticas ou somente em uma política
dworkinianas parecem conter ideias e ensinamentos valiosos tendo a capacida- de resultados prospectivos, o juiz estaria a desconsiderar a necessidade de um
de de conservá-los e potencial de transmiti-los no decorrer do tempo. equilíbrio de opiniões, já que os legisladores divergem entre si; desconsideraria
Uma das metáforas utilizadas na teoria do Direito como integridade é o também que, durante a elaboração das leis, os legisladores poderiam decidir a
“romance em cadeia” (chain novel), onde o juiz em sua atividade, é compa- partir de suas próprias opiniões e convicções ou negociações com grupos de in-
rado a um crítico literário que procura interpretar as diversas dimensões de teresses particulares (apesar de se esperar que, além dos juízes, os legisladores
valor em uma obra ou peça teatral. O magistrado faria parte de um grupo de de uma comunidade ajam com base em princípios e com integridade, o histó-
romancistas responsáveis por escrever um romance em série, sendo que cada rico da legislatura é limitado para servir de base exclusiva às pretensões argu-
romancista interpretaria os capítulos anteriores para dar início à escrita de mentativas na construção da decisão correta, servindo a priori como tentativa
de apontar as convicções que justificaram o que os legisladores fizeram).

22) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 81.
23) LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. São Paulo: Mercado das
Letras, EDUC, 2002. 24) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 276.

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Salutar mencionar um apontamento feito por Dworkin25: a busca por uma supostos nas decisões públicas. Assim, politicamente, o conjunto de normas
interpretação exclusiva do autor como revelação plena da obra já foi alvo de públicas reconhecidas pode expandir-se e contrair-se organicamente, à medida
crítica de Gadamer26. Em uma visão íntegra do Direito, há importância na que as pessoas da comunidade se tornem mais sofisticadas em perceber e em
memória e em seu acesso pelas decisões, o que fica demonstrado diante da explorar o que esses princípios exigem a cada nova circunstância28.
exigência de que as novas decisões não somente considerem decisões passa- Para expor a complexa estrutura da interpretação jurídica, Dworkin, ins-
das, mas que contenham também uma recuperação das narrativas construídas pirado pela história do herói mitológico Hércules (Héracles29 para os gregos),
pelo encadeamento de decisões pretéritas, realizando argumentativamente, na utiliza um juiz imaginário de capacidade e de paciência sobre-humanos, que
nova decisão, uma des-re-construção das decisões passadas, (re)interpretando aceita o Direito como integridade30. Ele representa a figura do magistrado a
-as criticamente e aperfeiçoando-as à luz, principalmente, das exigências do partir da atividade interpretativa, da comunidade de princípios e do romance
caso concreto (em questão), das práticas sociais e dos princípios justificados. A em cadeia, e constrói a resposta correta para cada caso.
partir do resgate da memória é possível que, além de uma formação coerente e Na esteira do mito, Dworkin descreve (contrafactualmente) o juiz Hércules
encadeada do Direito, haja o desenvolvimento da identidade do(s) próprio(s) como um magistrado com capacidade e paciência sobre-humanas, que não se
sujeito(s) constitucional(is)27. A memória coletiva e a lembrança de aconteci- deixa abater pelo tamanho da tarefa e que, por ser persistente e dedicado, não
mentos exigem, como suporte, os discursos intersubjetivos tecidos na esfera vai abdicar da decisão, ou seja, não passará o problema adiante. Além disso, o
pública e operados com uma construção contínua mediante a (re)interpretação. juiz Hércules é um dos responsáveis na construção de uma resposta (correta/
Também como um dos pilares para a construção da decisão jurídica, além adequada) para cada caso, assim como o Héracles da mitologia grega se empe-
do romance em cadeia, Dworkin lança mão da “comunidade de princípios”. nhou para buscar uma solução inteligente e específica para cada trabalho con-
Afinal, as decisões ao longo do romance em cadeia são construídas para (e
92 também por) uma sociedade que aceita a integridade como virtude, transfor- 28) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 229. 93
mando-se em um “tipo especial de comunidade”, a qual desenvolve sua autori-
29) O conto grego descreve Héracles como um extraordinário mortal (tanto que após sua morte
dade moral para assumir e mobilizar a força coercitiva. A comunidade de prin- foi convertido em semideus) filho de Zeus e Alcmena (neta de Perseu), foi anunciado como
cípios segue a ideia de que as pessoas aceitam um governo não somente por Rei de Micenas antes de seu nascimento. Porém, Hera, a rainha do Olimpo que o odiava,
regras expressas estabelecidas por decisões políticas tomadas no passado, mas o destronou. Ela manipulou Zeus a fazer um juramento: a primeira criança que nascesse
naquele dia assumiria os mandos da Casa Real de Perseu. Hera retardou o parto de Héracles
por quaisquer outros compromissos que possam decorrer dos princípios pres- e apressou o de seu primo Euristeu, este nasceu primeiro e assumiu o trono. Desde jovem
Héracles já era um guerreiro letal e graças a suas façanhas ganhou a mão de Mégara com
quem teve seis filhos. Em mais um ato contra o herói, Hera invocou Atê (deusa da loucura)
25) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 62-63. que lançou a sombra da insanidade sobre Héracles fazendo com que em um surto ele se
equivocasse e matasse seus próprios filhos. Abandonado e arrasado pela dor e culpa, Héra-
26) Habermas ainda apontou em Gadamer uma visão por demais passiva se a hermenêutica cles foi ao Oráculo que como expiação ordenou que ele se curvasse a serviço de Euristeu
assumisse o fluxo comunicativo como unilateral (autor – interpretes), Habermas justifica (seu primo e Rei de Micenas, covarde e invejoso que vivia no ócio e luxo) o Rei ordenou à
que a interpretação pressupõe que também o autor poderia aprender com o intérprete sobre Héracles doze missões mortais e impossíveis de executar à primeira vista (Os Doze Trabalhos
a obra e seus sentidos. Ver: HABERMAS, Jürgen. Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: de Héracles). Após ser dispensado por Euristeu e se remir cumprindo as 12 tarefas, Héracles
L&PM, 1987, p. 92-93. desposou Dejanira, que foi raptada por um centauro apaixonado, Héracles venceu o centau-
ro com flechas envenenadas. Antes de morrer o centauro entregou a túnica com seu sangue
27) Para Rosenfeld não faz sentido falar em constitucionalismo sem pluralismo. Em uma co- para Dejanira prometendo que se seu marido colocasse tal vestimenta a amaria para sempre.
munidade homogênea, com um objetivo coletivo único e sem uma concepção de que o Assim ocorreu. Um dia desconfiada do fim do amor de Héracles sua esposa lhe enviou a
indivíduo tem algum direito legítimo ou interesse distinto daqueles da comunidade como túnica, sendo que, a vestimenta estava embebida de sangue e também de veneno (causador
um todo, o constitucionalismo seria supérfluo. O constitucionalismo depende do plura- da morte do centauro). Ao usar a veste, Héracles, tomado de dor, acabou por arrancar as
lismo e pode ser visto como outorga de meios para sua institucionalização. A identidade próprias carnes e no desespero do sofrimento se lançou sobre feches de lenha implorando
constitucional é propensa a se alterar com o tempo, sendo ora um significado ora outro, que alguém lhe ateasse fogo, o que foi feito por um de seus discípulos. Ver: BULFINCH,
conforme a interpretação que se faça da expressão, necessária a reelaboração através de um Thomas. O livro de ouro da mitologia: história de deuses e heróis. 34. ed. Rio de Janeiro: Ediouro,
entrelaçamento entre o passado e o futuro das gerações que se sujeitam a uma determinada 2006.
Constituição. – Ver em: ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 21-36. 30) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 287.

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siderado inexequível, dentre os doze que lhe foram ordenados. mas estes não são os únicos protagonistas nem mesmo os mais importantes”33.
Em contrapartida ao juiz dotado de tantas qualidades e tão próximo à dedi- Dworkin não defende que os juízes devam34 ter (ou não) a “última pala-
cação e perfeição encontra-se a falibilidade humana, que é admitida e trabalha- vra”35, mas ressalta que, “ainda que os juízes devam ter a última palavra, sua pala-
da por Dworkin quando ele explica o motivo para querer se utilizar ‘Hércules’ vra não será melhor por esta razão”36, pois têm o dever de descobrir quais são os
e não de outro exemplo extraído da falibilidade judicial: (1) utilizar-se de um direitos das partes, e não inventar novos direitos, e aplicá-los de modo retroa-
exemplo falível seria admitir que por “desventura e com frequência” os juízes tivo37. Assim, o juiz real deve suprir sua desvantagem em relação a Hércules
tomarão decisões injustas não adiantando que eles se esforçassem para chegar recorrendo aos participantes e garantindo o trânsito livre de comunicação na
a decisões justas; (2) por serem considerados falhos, poderia entender-se que prática jurídica38. Hércules não se considera nem um passivista nem um ativis-
os juízes não precisam fazer esforço algum para apontar institucionalmente o ta39: acredita, assim como em outros casos, que sob o regime do Direito como
direito das partes, de modo a decidir os casos com base em razões políticas ou,
simplesmente, não os decidir; o que o autor considera como perverso. Assim, 33) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 16-19.
ficaria aberta a possibilidade de que os juízes submetessem a outros órgãos as
34) Para Dworkin “a democracia não faz questão de que os juízes tenham a última palavra, mas
questões de Direito colocadas pelos casos sem resposta aparente ou clara. Se também não faz questão de que não a tenham”. Ver: DWORKIN, Ronald. Direito da liber-
fosse assim, Dworkin questiona a quem submeter tais casos, e, também, se o dade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 10.
judiciário poderia se eximir de julgar. 35) Cumpre ressaltar que conforme Hanna Pitkin “ninguém tem a última palavra, pois não há
A figura do juiz Hércules suscita uma crítica pertinente feita por Habermas31 última palavra”. No entanto, é importante observar que essa colocação ocasiona negação
a Dworkin: a impossibilidade de se conceber o Direito de uma comunidade da existência de uma ‘última palavra’. Assim, nega o que está em questão ‘à priori’, ou seja,
nega inclusive a tensão sobre momentâneas “prevalências institucionais” e existência de au-
composta por somente um narrador e a “solidão” de Hércules ao decidir “sozi- toridade para controle-correção da produção legislativa, assim como controle-correção da
94 nho” demonstrariam a falta de pressupostos de uma teoria do discurso. Tal crítica produção judiciária. Diante da negativa de existência da “ultima palavra”, nos parece mais 95
se mostra infundada se analisada a teoria de Dworkin em seu conjunto, pois tan- adequado que se faça um questionamento inicial do que é ou poderia ser considerado como “últi-
ma palavra”, sobre qual a sua função e importância para o desenvolvimento democrático. A
to o juiz Hércules quanto os diversos autores do romance em cadeia (inclusive “última palavra” não se resume a uma decisão definitiva, mas a uma série de decisões institu-
as partes que participam do processo judicial) são membros dessa comunidade, cionais temporais, constantemente (re)construídas e, portanto, modificadas ou modificáveis
tendo sua visão formada por um mesmo “pano de fundo de silêncio compartilhado”32 sob vários aspectos, em relação à vários assuntos e competências institucionais. Uma “última
palavra” (inclusive a “última palavra” sobre quem dita “a última palavra”) para as instituições
que rege as práticas sociais. Assim, retomando uma das metáforas ora retrata- e sistemas perdura pelo tempo que consegue equilibrar satisfatoriamente (e articular atra-
da (a da comunidade de princípios), percebe-se que o juiz Hércules também faz vés da atividade discursiva) melhores soluções temporais viáveis para os atritos / tensões e
parte dessa comunidade, e interage e desenvolve suas tarefas a partir dessa rea- discordâncias práticas / teóricas juntamente com a correção demandada e minimização de
erros. Os poderes públicos estabelecem relações de diálogos através de desacordos e discussões
lidade. Ademais, não haveria qualquer outro interlocutor que se esmerasse mais institucionalizadas. Interessa que esse diálogo não configure mera disputa destrutiva, com
que juiz Hércules na construção do Direito como integridade. Os críticos da me- questões de vaidade e competição institucional sobre ilusões quanto à “última palavra” e
táfora de Hércules não percebem que as atribuições dele decorrem de um recor- “monopólio” da autoridade, mas sim, que propicie oportunidades e condições para cooperação e
coordenação mútua com decisões construídas de forma mais democrática, legítima e instituciona-
te no trabalho de Dworkin, o qual alerta os leitores que seu projeto é limitado lizada, considerando o desenvolvimento (social, político e jurídico) dos cidadãos em suas
também nesse sentido, pois “concentra-se na decisão judicial, nos juízes togados, autonomias, ajustes necessários e historicidade de uma comunidade.
36) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 492.
37) DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 127.
31) HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo 38) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 114.
Brasileiro, 1997, p. 276-277.
39) Importante frisar que em suas obras sobre uma decisão judicial justificada e adequada cons-
32) CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob titucionalmente, sendo dotada de legitimidade, Dworkin não defende ativismo judicial. Até
o paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Comparado, vol. 3, p. mesmo pelos riscos de decisionismo que uma postura assim ocasiona. Nesse sentido, Daniel
473. Belo Horizonte: Curso de Pós-Graduação em Direito da UFMG e Mandamentos, Sarmento afirma que “... e a outra face da moeda é o lado do decisionismo e do ‘oba-oba’.
maio/1999. Acontece que muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de atra-

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integridade, os problemas constitucionais polêmicos pedem uma interpretação


2) A Interpretação do Stf e do Stj Sobre
para resposta adequada, não uma emenda.
Hércules atribui relevância apenas aos argumentos de princípio40 (ratios), Integridade e Meio Ambiente
já que a tese dos direitos sustenta que tais argumentos correspondem correta-
mente à responsabilidade do tribunal. De forma resumida, o caminho feito por Apresentada a teoria de Ronald Dworkin do Direito como integridade, como
Hércules para encontrar a resposta correta a um problema jurídico inicialmen- aquela em que o Direito é construído a partir do diálogo entre intérpretes, como
te é: trabalhar com coerência argumentos e justificações os direitos em confli- um romance em cadeia, propõe-se, aqui, uma abordagem ousada, inspirada na
to; Selecionar as hipóteses principiológicas que possam corresponder à melhor proposta dworkiniana e na perspectiva dos deveres fundamentais. Realiza-se,
interpretação do histórico das leis e decisões anteriores, caso haja mais de uma assim, uma análise a partir das jurisprudências do Supremo Tribunal Federal
hipótese é necessário encontrar uma correta; Encontrar a hipótese correta a par- (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) brasileiros relacionada com o
tir do pensamento de que o direito é estruturado por um conjunto coerente de dever de preservar a integridade do meio ambiente.42
princípios. A partir da coerência é possível encontrar uma resposta satisfatória Nesse sentido, é necessário discorrer, mesmo brevemente sobre o tema dos
quando princípios aparentemente conflitam; Colocar a interpretação à prova. deveres fundamentais. Apesar de o conceito de dever ser, originariamente, um
Perguntar-se-á se essa interpretação é coerente o bastante para justificar as estru- conceito moral, seu uso no âmbito jurídico está consolidado, o que revela uma
turas e decisões políticas anteriores de sua comunidade. Mesmo seguindo toda conexão entre Direito e Moral.43 É muito comum dizer que o Direito é um
uma construção para decidir o caso, Hércules sabe da possibilidade de encon- instrumento que se propõe organizar a vida social. E como ele é essencialmen-
trar decisões incoerentes. Por isso precisa também de uma teoria sobre os erros.41 te linguagem, revela-se um texto prescritivo, ou um discurso prescritivo, ex-
primindo uma diretiva, um modelo de agir ou se comportar.44 O que se extrai
96 vés deles, buscarem a justiça – ou que entendem por justiça -, passaram a negligenciar no seu desses textos prescritivos, por meio de um procedimento interpretativo multi- 97
dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com os princípios fásico, são as normas, isto é, enunciados prescritivos que se referem àquilo que
abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido é normal, a algo que deve ou costuma acontecer, enfim, a uma regra.45 Portanto,
sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com seus jargões grandiloquentes e com
a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste
quadro, converteram-se em verdadeiras ‘varinhas de condão’: com eles, o julgador de plan-
tão consegue fazer quase tudo o que quiser. Esta prática é profundamente danosa a valores
extremamente caros ao Estado Democrático de Direito. Ela é prejudicial à democracia,
porque permite que juízes não eleitos imponham a suas preferências e valores aos jurisdi- alguns pontos propostos pelo autor para interligação com o tema. Portanto, para uma leitura
cionados, muitas vezes passando por cima de deliberações do legislador. Ela compromete a “à melhor luz” do autor e de suas obras, ler inicialmente: DWORKIN, Ronald. O Império do
separação dos poderes, porque dilui a fronteira entre as funções judiciais e legislativas. E ela Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
atenta contra a segurança jurídica, porque torna o direito muito menos previsível, fazendo-o 42) Ressalte-se: o próprio dever de preservar o meio ambiente (assegurando o direito ao meio
dependente das idiossincrasias do juiz de plantão, e prejudicando com isso a capacidade ambiente ecologicamente equilibrado) se revela relacionado à uma integridade com os de-
do cidadão de planejar a própria vida com antecedência, de acordo com o conhecimento mais direitos que possam vir a ser assegurados, pois, a integridade em questão, não se refere
prévio do ordenamento jurídico”. Ver: SARMENTO, Daniel. Ubiquidade Constitucional: somente a uma estrutura ambiental sustentável, mas também à própria lógica ou noção de
Os Dois Lados da Moeda. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. ter e assegurar quaisquer direitos (inclusive os humanos/individuais).
A constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris. 2007. 43) ASIS ROIG, Rafael de. Deberes y obligaciones en la Constitución. Madrid: Centro de Estudios
Políticos y Constitucionales, 1991, p. 54-55 e 448.
40) Thomas Bustamante leciona sobre a atividade judicial e os limites e deficiências da razão
prática, sendo plausível que o juiz aplique decisões com efeitos prospectivos e de modo a 44) MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. São Paulo: Max Limonad,
afetar qualquer segurança jurídica a partir da justificação e fundamentação em princípios 2001, p. 28; SGARBI, Adrian. Introdução à teoria do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013,
constitucionais, assentando sua decisão em argumentos jurídicos e não exclusivamente prag- p. 54.
máticos nos casos de mutação jurisprudencial prospectiva. Ver: BUSTAMANTE, Thomas
da Rosa de. Teoria do precedente judicial. São Paulo: Noeses, 2012, p. 465. 45) KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Trad. José Florentino Duarte. Porto Alegre: Ser-
gio Fabris Editor, 1986, p. 5; ROBLES, Gregorio. Considerações sobre a teoria da norma
41) O presente artigo não visa exaurir ou mesmo resumir de modo completo o conteúdo teórico jurídica em Kelsen. In: FARO, Julio Pinheiro; BUSSINGUER, Elda Coelho de Azevedo
proposto por Dworkin, trata-se apenas de uma abordagem interpretativa e dialógica sobre (org.). A diversidade do pensamento de Hans Kelsen. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 92.

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normas jurídicas são também regras,46 que têm uma estrutura sintático-condi- quando entende ser o meio ambiente um direito de todos.52
cional, dotadas de um antecedente (causa, hipótese, descrição) e de um conse- Nas decisões do STF a adoção do entendimento de que o direito ao am-
quente (efeito, resultado, prescrição): o primeiro descreve uma situação hipoté- biente ecologicamente equilibrado e sustentável depende da assunção de uma
tica, o segundo prescreve o efeito esperado com a ocorrência da hipótese. responsabilidade em nível intergeracional, ou seja, que o dever de preservação
O que esses enunciados normativos significam, e quando utilizados, podem da integridade ambiental é um compromisso para a geração atual e para as fu-
ser vistos a partir da perspectiva do Direito como integridade. Os significados turas.53 O STJ adota igual linha de raciocínio ao afirmar que a Constituição
das palavras e expressões contidas nos enunciados normativos dependem da- impõe tanto ao Poder Público quanto à coletividade o dever de defender e de
quilo que Dworkin chamou de interpretação construtiva. Podemos aceitar essa preservar o meio ambiente em benefício não apenas das presentes como tam-
proposta e lançar aqui uma concepção interpretativa de “meio ambiente” para bém das futuras gerações.54
auxílio no estudo do tema: o entendimento de que o meio ambiente é o con- Evidencia-se nos julgados tanto do STF quanto do STJ que o direito ao
junto de agentes físicos, químicos, biológicos e de fatores sociais suscetíveis de meio ambiente equilibrado ecologicamente decorre do cumprimento do dever
exercerem um efeito direto ou indireto, imediato ou a longo prazo, sobre todos fundamental, imposto pela Constituição ao Poder Público e à sociedade, de fa-
os seres vivos, incluindo o ser humano.47 zer respeitar e defender a integridade do patrimônio ambiental para as atuais
Decisões em matéria ambiental proferidas pelos tribunais serão consisten- e futuras gerações.55 Essa precedência do dever sobre o direito é vista também
tes se, tomadas aqui e agora, aproveitarem as lições do passado e se propuserem nas exigências de compensações reparatórias e de realização de estudos e re-
a construir um futuro melhor.48 O STF parece entender dessa mesma forma latórios de impacto ambiental para a implantação de empreendimentos com
quando destaca que o direito à preservação da integridade do meio ambiente significativo potencial impactante,56 e de cadastro de produtos potencialmente
decorre de seu caráter metaindividual e do fato de decorrer da solidariedade, danosos,57 nas proibições de atividades que impliquem em tratamento cruel a
98 sendo, por isso, necessário impedir que quaisquer transgressões a esse direito espécimes da fauna58 ou em prática atentatória à flora,59 e na regulamentação 99
faça irromper, no seio da coletividade, conflitos intergeracionais.49 Embora uti-
lize nomenclaturas distintas,50 há um consenso dentro do tribunal, já a algum 52) STJ. AgRg no REsp 958766, 2ª Turma, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES,
tempo, de que o direito ao meio ambiente funda-se na solidariedade, e, por isso DJE 30.3.2010.
é de interesse da coletividade.51 O STJ também parece partir desse consenso, 53) STF.ADPF 10, Plenário, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, DJE 4.6.2012; STF. ADI 1952-
MC, Plenário, Rel. Min. MOREIRA ALVES, DJ 12.5.2000.
54) STJ. AgRg no REsp 958766, 2ª Turma, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES,
DJE 30.3.2010.
46) Princípios podem ser considerados metanormas (Ver: SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Ho-
mem de. Far beyond from norms, distinguishing between rules and principles. ARSP – Ar- 55) STF. AgRg no RE 417408, 1ª Turma, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, DJE 26.4.2012; STF.
chiv für Rechts-und Sozialphilosophie, vol. 97, n. 2, 2011). MS 26064, Plenário, Rel. Min. EROS GRAU, DJE 6.8.2010; STJ. AgRg no REsp 958766,
2ª Turma, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJE 30.3.2010; STF. MS
47) IBGE. Vocabulário básico de recursos naturais e meio ambiente. 2. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 22164, Plenário, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 17.11.1995
2004, p. 210. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/vocabula-
rio.pdf. Acesso em: 09 maio 2014. 56) STJ. REsp 896863, 2ª Turma, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJE 2.6.2011; STF. ADI
3378, Plenário, Rel. Min. AYRES BRITTO, DJE 20.6.2008; STF. ADI 1086, Plenário,
48) DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Rel. Min. ILMAR GALVÃO, DJ 10.8.2001.
Press, 1986, p. 95. Ver. Também: OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos
fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 102. 57) STJ. Resp 1153500, 2ª Turma, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJE
3.2.2011; STF. AI 158479-AgR, 2ª Turma, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, DJ
49) STF. ADI 3540-MC, Plenário, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 3.2.2006. 26.4.1996.
50) Direito metaindividual, direito transindividual, direito coletivo. 58) STF, ADI 1856, Plenário, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJE 14.10.2011; STF. ADI
3776, Plenário, Rel. Min. CEZAR PELUSO, DJ 29.6.2007; STF. ADI 2514, Plenário, Rel.
51) STF. MS 25284, Plenário, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJE 13.8.2010; STF. MS Min. EROS GRAU, DJ 9.12.2005.
22164, Plenário, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 17.11.1995; STF. RE 134297, 1ª
Turma, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 22.9.1995. 59) STF. RE 134297, 1 Turma, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 22.9.1995.

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da poluição, entendida como uma forma de degradação ambiental decorrente A característica da exigibilidade revela que o binômio direito-dever ou de-
de atividades que, de alguma maneira, prejudiquem a saúde e o bem-estar da ver-direito determina a natureza metaindividual ou transindividual da prote-
população ou condições estéticas ambientais.60 ção ao meio ambiente; quer dizer, trata-se de um direito pertencente a e de um
Os casos decididos pelos dois tribunais atestam a preocupação com o dever exigível dos cidadãos, e também de toda a coletividade, transcendendo
dever de proteger o meio ambiente firmando-se a responsabilidade objeti- ou indo além do indivíduo. Isso determina a natureza coletiva do direito e de-
va fundada no risco integral, obrigando, então, o empreendedor a prevenir ver de proteção do meio ambiente, tornando-o, assim, um dever híbrido, pois é
ou reduzir o impacto dos riscos à saúde e ao meio ambiente (princípio da genérico por pertencer e a cada uma das pessoas, não sendo específico por não
prevenção), bem como a incluí-los em seus custos operacionais (princípio se relacionar a um direito subjetivo (potestativo) de uma pessoa específica.65
do poluidor-pagador).61 E isso se evidencia na preocupação em estabelecer A construção jurisprudencial do STF e do STJ revela, como ficou registra-
medidas compensatórias pelo uso de recursos que causem danos inevitáveis do, que a sociedade e cada indivíduo têm tanto dever de quanto direito à prote-
e imprescindíveis previstos nos estudos e relatórios de impacto, e medidas ção do meio ambiente, assim como o Estado (o Poder Público) possui o dever
mitigadoras e preventivas para os danos não previstos,62 devendo-se men- de protegê-lo ou conservá-lo.66 O referido dever, que tem uma profunda relação
surar o dano não apenas a partir dos efeitos visíveis à fauna ou à flora, mas
também pelo grau de desequilíbrio ecológico provocado.63
Verifica-se, nesse breve análise de alguns dos julgados do STJ e do STF Direitos, deveres e garantias fundamentais. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 327; CASALTA
NABAIS, José. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitu-
que há uma construção coerente sobre o dever fundamental de proteção do cional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2009, p. 78-83, 114-117 e 123-124;
meio ambiente que permite a sua defesa, ainda que os dois Tribunais come- SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
tam alguns erros judiciais. Há, portanto, a partir de uma abordagem baseada fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009,
p. 228; ALEGRE MARTÍNEZ, Miguel Ángel. Los deberes en la Constitución española:
100 na teoria dos deveres fundamentais uma conexão condicional: a exigência esencialidad y problemática. Teoría y Realidad Constitucional, n. 23, 2009, p. 279; PALOM- 101
do direito ao ambiente ecologicamente equilibrado depende do cumpri- BELLA, Gianluigi. De los derechos y de su relación con los deberes y los fines. Derechos
mento do dever de proteção a esse mesmo meio ambiente, e vice-versa; fla- y Libertades, n. 17, 2007, p. 129-130; VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos
fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2001, p. 161;
gra-se uma relação jurídica obrigacional, permissiva da formulação de uma PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Los deberes fundamentales. Doxa, n. 4, 1987, p.
pretensão diante do descumprimento do dever para defender o direito e 340-341; VARELA DÍAZ, Santiago. La idea de deber constitucional. Revista Española de
da titularidade do direito para exigir que se preserve e proteja o seu obje- Derecho Constitucional, n. 4, 1982, p. 69, 73, 84 e 86; NAVAS BENAVENTE, Sara. Obser-
vaciones a algunas normas del capítulo III “de los derechos y deberes constitucionales” del
to (meio ambiente). Trata-se, assim, de dever e direito não autônomos, pois proyecto de nueva constitución. Revista Chilena de Derecho, vol. 6, 1979, p. 246-248; PAR-
correlatos ou relacionados entre si, permitindo, então, uma exigibilidade du- RA, Dario. Deberes constitucionales. Boletín de la Academia de Ciencias Políticas y Sociales,
pla, seja por violação ao direito seja por descumprimento do dever.64 vol. 31, n. 34, 1966, p. 42.
65) SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Deveres fundamentais: uma revisão de litera-
tura, 2014 (no prelo); PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Los deberes fundamen-
60) STJ. REsp 876931, 2ª Turma, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJE tales. Doxa, n. 4, 1987, p. 336.
10.9.2010.
66) SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Deveres fundamentais: uma revisão de litera-
61) STJ. REsp 1346430, 4ª Turma, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, 21.11.2012; STJ. tura, 2014 (no prelo); PINHEIRO, Gleydson Gleber Bento Alves de Lima. O dever funda-
REsp 967375, 2ª Turma, Rel. Min. ELIANA CALMON, DJE 20.9.2010. mental de proteção do meio ambiente e a proibição da proteção deficiente à luz da jurispru-
dência do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Revista do Instituto de Direito Brasileiro, vol.
62) STJ. REsp 896863, 2ª Turma, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJE 2.6.2011. 2, n. 9, 2013; ABREU, Ivy de Souza; FABRIZ, Daury César. O dever fundamental de prote-
63) STJ. REsp 1164630, 2ª Turma, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJE 1.12.2010. ção das matas ciliares e das nascentes com base no princípio da proibição do retrocesso: uma
análise do Código Florestal brasileiro. Derecho y Cambio Social, n. 32, 2013; MEDEIROS,
64) Para essa relação, ver, por exemplo: SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Deve- Fernanda Luiza Fontooura de; GRAU NETO, Werner. A esquizofrenia moral e o dever
res fundamentais: uma revisão de literatura, 2014 (no prelo); AMADO GOMES, Carla. fundamental de proteção ao animal não humano. Revista Brasileira de Direito Animal, vol.
O direito ao ambiente: vertentes pretensiva e impositiva de um falso direito. Argumenta, 10, n. 1, 2012; SGARIONI, Márcio Frezza; RAMMÊ, Rogério Santos. O dever fundamen-
n. 16, 2012, p. 323; DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Deveres fundamentais. tal de proteção ambiental: aspectos axiológicos e normativos-constitucionais. Direito Público,
In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang; CARBONELL, Miguel (coord.). n. 42, 2011; ZAMBRANO CETTINA, William. Deberes de los particulares en la Consti-

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Direito como Integridade e Integridade do Meio Ambiente: O Dever Fundamental de Proteção do
Meio Ambiente e a Proposta Interpretativa de Dworkin a Partir da Jurisprudência do Stf e do Stj Ludmila Lais Costa Lacerda m Julio Pinheiro Faro

com o direito ao meio ambiente sano (relação condicional, o exercício de um dada em noções como responsabilidade, solidariedade, fraternidade, cooperação,
depende do cumprimento do outro, e o cumprimento de um depende da exis- valores e alteridade. Isso quer dizer que o real sentido da existência de deveres
tência do outro), encontra respaldo na Constituição brasileira de 1988, no art. está em como cada pessoa percebe o seu papel na sociedade e como se relacio-
225, no qual se lê aquilo que resume bem a construção em cadeia interpretativa na com as outras pessoas. Se há uma precedência dos direitos sobre os deveres,
feira pelo STF e pelo STJ: todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente destacando uma exaltação do eu (ego) em prejuízo do outro (alter), é possível
equilibrado, enquanto bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade considerar haver uma crise de valores na sociedade,71 seria interessante que se
de vida e bem-estar. Impondo-se ao Poder Público e à coletividade, bem como voltasse a atenção para os deveres quando um direito não puder ser exercido.
a cada indivíduo, o dever de defende-lo e preservá-lo para as presentes e futuras Em uma sociedade baseada na solidariedade, cooperação e valores, seria
gerações. Isso quer dizer que o dever de conservar ou proteger o meio ambiente interessante que se repensassem os deveres, inclusive como condições para o
é uma obrigação, que se relaciona com o direito ao meio ambiente sano (rela- exercício adequado dos direitos, fomentando a prática cidadã de mútua coo-
ção condicional), sendo passível de sanção o descumprimento dessa obrigação, peração em relação ao patrimônio natural e aos recursos ecológicos que per-
como, ademais, registrou-se na análise das decisões do STF e do STJ. mitam valorização de proteção ambiental e uma melhor qualidade de vida
O destaque dado, pelos julgados dos dois tribunais, muito mais ao de- aos integrantes dessa comunidade.
ver de proteção do ambiente que ao direito a ele relacionado tem sua razão O que se observa em relação ao meio ambiente, o qual se funda, enquanto
de ser. A construção jurisprudencial parece se basear, ainda que não faça objeto de estudo do ramo jurídico, em noções como responsabilidade, solida-
isso consciente e expressamente, no entendimento (consenso mínimo) de riedade, cooperação, e alteridade, bem como fraternidade. Isso se extrai espe-
que para a reivindicação de direitos é necessário o cumprimento de deveres. cialmente do art. 225 da Constituição de 1988, como se pode observar logo
Essa não é uma conclusão fácil em uma sociedade, como a ocidental, mar- em seu caput (imposição ao Poder Público e à coletividade do dever de defen-
102 cada pelo individualismo e pelo subjetivismo,67 em que a referência aos de- der e preservar o meio ambiente para as atuais e as futuras gerações), como em 103
veres é normalmente feita de passagem,68 ou como um adorno ou recurso seus parágrafos, nos quais se estabelecem as incumbências do Poder Público
de retórica.69 Para confirmar isso, basta folhear os livros de curso de Direito em matéria ambiental (o §1º trata sobre a preservação e a manutenção do pa-
constitucional e notar quantas linhas são dedicadas ao tema. trimônio ambiental), a responsabilidade de todos de recuperar o meio ambien-
Como a teoria dos deveres fundamentais ainda está em construção,70 ape- te degradado (§§2º-3º e 6º), bem como o uso do meio ambiente (§§4º-5º).
nas é possível indicar, provisoriamente, que a natureza desses deveres está fun- Os princípios e valores, tanto positivados quanto construídos pelos tribu-
nais, que regem as relações com o meio ambiente, especialmente no que se
refere ao dever de protegê-lo, têm íntima relação com o projeto teórico de
tución y medio ambiente. Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano, 2010; GREY,
Natália de Campos. Dever fundamental de proteção aos animais (Dissertação de Mestrado em Dworkin que coloca o Direito como integridade. Isso porque, para ele, “(...) se
Direito). Porto Alegre: PUC-RS, 2010; RUSCHEL, Caroline Vieira. O deber fundamental todos estamos em comunidade e nos vemos como membros de uma comuni-
de proteção ambiental. Revista Direito & Justiça, vol. 33, n. 2, 2007; FENSTERSEIFER, dade de princípios, profundamente divididos quanto aos projetos individuais
Tiago. A dimensão ecológica da dignidade humana: as projeções normativas do direito (e dever)
fundamental ao ambiente no Estado socioambiental de Direito (Dissertação de Mestrado em de felicidade, mas unidos quanto a um projeto coletivo comum, qual seja, ten-
Direito). Porto Alegre: PUC-RS, 2007. tar tornar essa comunidade a melhor que ela pode, de modo a nos orgulhar-
67) Sobre a relação entre individualismo e subjetivismo, ver, por exemplo: RENAUT, Alain. mos de fazer parte dessa comunidade, porque ela, inclusive, nos respeita, então
L’ère de l’individu. Paris: Gallimard, 1989. temos que ser responsáveis uns pelos outros, devendo fiscalizar as ações esta-
68) ALEGRE MARTÍNEZ, Miguel Ángel. Los deberes en la Constitución española: esencia- tais e as ações de nossos parceiros de empreendimento comum”.72 A isso se
lidad y problemática. Teoría y Realidad Constitucional, n. 23, 2009, p. 271.
69) BUSCH VENTUR, Tania. Deberes constitucionales. Revista de la Facultad de Ciencias Jurí- 71) ROBLES, Gregorio. Los derechos fundamentales y la ética en la sociedad actual. Madrid: Civi-
dicas de la Universidad Católica de Salta, n. 1, 2011, p. 64. tas, 1997, p. 91-92, 119 e 125.
70) SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Deveres fundamentais: uma revisão de litera- 72) OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lu-
tura, 2014 (no prelo). men Juris, 2014, p. 23.

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Meio Ambiente e a Proposta Interpretativa de Dworkin a Partir da Jurisprudência do Stf e do Stj Ludmila Lais Costa Lacerda m Julio Pinheiro Faro

pode chamar de “democracia como parceria”.73 E a construção e preservação Dworkin constrói sua teoria, que considera a Constituição como a constru-
do meio ambiente depende essencialmente desse tipo de parceria. ção de uma comunidade política de princípios e o Direito como prática inter-
Em Dworkin, a questão da cooperação é imprescindível, especialmente para pretativa. Ele procura demonstrar que a filosofia do Direito e filosofia política
explicar a relação entre o Direito e a Moral e sua complementaridade na for- não são disciplinas desvinculadas da prática, e que através desse reconhecimen-
mação do Direito como integridade, bem como da comunidade de princípios. A to é possível desenvolver uma ligação de forma mais profunda, esclarecedora
proposta construída pelo autor se baseia no diálogo, pressupondo que todos e íntegra entre a prática e a teoria pelos juízes e cidadãos em tribunais de de-
os indivíduos de uma comunidade sejam respeitados em suas escolhas indivi- cisões. Assim, mesmo que inexistam regras ou leis expressas e minuciosas que
duais,74 pois todos adotam um consenso mínimo de que o Direito é formado procurem instruir ou detalhar determinados comportamentos esperados em
por um conjunto coerente de princípios, os quais visam garantir o igual respei- uma comunidade, já que a lei não traz por si só a solução dos problemas e de
to e consideração de um indivíduo por todos e de todos por um.75 O consenso todos os parâmetros, não sendo o “ponto de chegada”, mas sim um “ponto de
mínimo ou o conjunto coerente de princípios no sistema ambiental brasileiro, partida” que inaugura e tematiza as discussões e reflexões de pessoas em uma
parece ser, nesse sentido pela regra da proteção, que estabelece um dever (dever sociedade democrática, mediante os princípios que regem as práticas sociais e a
de proteção do meio ambiente) e que deve ser interpretada à sua melhor luz, condição interpretativa do direito não há espaço ou lacuna para um poder am-
para se construir um sistema de efetiva proteção ao meio ambiente. Em suma, plamente discricionário dos juízes ao decidir um caso concreto.
tanto o STF quanto o STJ parecem ter interpretado à Constituição dentro da- Na dimensão ambiental no Estado democrático de direitos, a interpretação
quilo que Dworkin propôs, coadunando com a concepção de meio ambiente principiológica considera o Direito como integridade para tratar sobre a inte-
aqui proposta como sendo um conjunto de agentes físicos, químicos e bioló- gridade do meio ambiente. Podemos dizer que as vivências de casos concretos
gicos e de fatores sociais que podem exercer efeitos, diretos ou indiretos, ime- podem trazer uma percepção da adequação do processo decisório às exigên-
104 diatos ou mediatos, sobre todos os seres vivos (fauna, flora e seres humanos), cias democráticas comunicativas e aprendizado discursivo para sua legitimida- 105
de maneira que é preciso agir com responsabilidade e compromisso para que de, além da garantia de princípios e direitos fundamentais. Conforme visto na
no presente se consiga extrair as lições do passado e se possa ajudar a construir aplicação prática da teoria de Dworkin, tanto o STF quanto o STJ em várias
um futuro melhor. decisões assumem a importância do tratamento deontológico do compromisso
e do princípio constitucional em relação a um meio ambiente ecologicamente

H Conclusão
equilibrado para construir uma visão sobre a proteção da integridade do meio
ambiente com certo enfoque sobre deveres fundamentais, ainda que não anun-
cie isso expressamente em seus julgados.
Ao expor sobre o processo decisório juntamente com a questão ambiental, po- Nesse sentido, é possível afirmar que a Constituição brasileira de 1988 abre
demos destacar a contribuição teórica de Dworkin em relação aos princípios espaço para o exercício interpretativo em uma comunidade política, primando
(inclusive aqueles constitucionalizados e institucionalizados em uma sociedade) pela consideração entre seus membros a partir de um processo decisório in-
e a construção de uma esfera pública para a comunicação democrática e institu- terpretativo e participativo que exercita a Constituição em permanentes dis-
cionalizada discursivamente, bem como, para a convivência e diálogo que con- cussões de uma comunidade política e fraterna que revisita interpretações his-
sidere a complexidade de argumentos e interações dos diversos atores sociais. tóricas de seus princípios ao mesmo tempo em que os aplica visualizando a
construção do futuro, o que propicia uma coerência institucional entre gera-
73) OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lu- ções ao longo do tempo e adequação da jurisdição constitucional brasileira às
men Juris, 2014, p. 23. exigências do Estado democrático de direitos. No caso ambiental isso é bas-
74) OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lu- tante evidente, já que a leitura feita pelos tribunais coaduna-se com a registra-
men Juris, 2014, p. 80. da no texto constitucional originário.
75) OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria da Constituição. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2014, p. 146.

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5
A Educação em Meio Ambiente como um
dos Pilares para a Cidadania

Jackelline Fraga Pessanha1


Faculdade São Geraldo

Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes2


Universidade Federal do Espírito Santo

Sumário: Introdução. 1 A escola na contemporaneidade.


2 A escola como formadora do cidadão que respeita o meio ambiente.
3 A Educação em Direito Ambiental como Alicerce do
Desenvolvimento Sustentável e da Cidadania. 4. Conclusão
107

1) Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória.


Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Vila Velha. Professora da Faculdade
São Geraldo. Assessora do Ministério Público do Estado do Espírito Santo. E-mail:
jackellinepessanha@yahoo.com.br.
2) Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Estado do Espírito Santo – UFES.
Especialista em Direito Processual Civil e Graduado pela Faculdade de Direito de Vi-
tória - FDV. Membro da Diretoria, na condição de Vice-Secretário Geral, da Academia
Brasileira de Direitos Humanos - ABDH. Assessor do Ministério Público Federal no
Estado do Espírito Santo. E-mail: mrsantanna@yahoo.com.br.
A Educação em Meio Ambiente como um dos Pilares para a Cidadania Jackelline Fraga Pessanha m Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes

H Introdução com a coletividade. Assim sendo, é gritante e latente a necessidade de que a


educação escolar se mostre como um dos sustentáculos.
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e in- A educação, como forma de inclusão social, foi um dos grandes ensina-
centivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da mentos de Paulo Freire. Ele pretendia construir uma educação democrática,
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o traba- onde quaisquer pessoas poderiam estudar e obter os conhecimentos neces-
lho. Como observado no trecho acima, a educação é um importante instru- sários à sua qualificação, oferecendo condições de acesso e de permanência
mento de formação das crianças e adolescentes para o exercício de sua ci- escolar a todos os estudantes.
dadania. Não é à toa que o art. 225, da Carta Constitucional o trouxe com Isso porque, no Brasil, a escola “é vista como a instituição que tem a mis-
a redação que se observa. são de promover a unidade nacional través da transmissão de conteúdos uni-
Há que se perceber que muitos são os conhecimentos diuturnamente di- ficados, de valores culturais e morais”3. E, neste sentido, Paulo Freire4 descreve
fundidos nas salas de aula espalhadas por todo o país. Contudo, algumas prio- com clareza as diferenças entre a concepção bancária e a problematizadora, ou
ridades devem ser levadas em consideração, exatamente, com o foco na forma- seja, a primeira não admite o nivelamento entre professor e aluno, uma vez que
ção do indivíduo, razão pela qual a educação em meio ambiente é fundamental. o professor é superior aos alunos.
É diante desse contexto que se insere o presente trabalho. Tem-se como A segunda concepção é a mais fundamentada, pois estimula a criativida-
foco a necessidade que as escolas de ensino fundamental e médio, sejam públi- de, pesquisa e reflexão dos alunos, sobre a verdadeira realidade, proporcio-
cas ou particulares, tenham em sua grade curricular disciplinas que incentivem nando um pensamento crítico e o professor funciona como mediador das
a educação em meio ambiente. discussões e debates entre os mesmos, ocorrendo a mútua humanização de
Para tanto, o artigo se divide em três pontos chaves. No primeiro tópico, é conhecimentos. Neste contexto, “A concepção bancária não pode admitir
108 abordada a escola na contemporaneidade e a importância da educação para in- uma tal nivelação e isto necessariamente. Dissolver a contradição professor 109
clusão social. No segundo tópico, a abordagem diz respeito ao meio ambiente -aluno, mudar o papel daquele que deposita, prescreve, domestica, colocar-
e a forma como ele tem sido tratado em âmbito nacional e/ou ambiental. Por se como estudante entre os estudantes equivale a minar a potência de opres-
último, no terceiro tópico, a abordagem traz uma discussão da educação em são e servir à causa da libertação.
meio ambiente para formação do cidadão. A educação problematizadora está fundamentada sobre a criatividade e es-
Como marco teórico para o debate relativo à educação, são evidenciados os timula uma ação e uma reflexão verdadeiras sobre a realidade, respondendo as-
ensinamentos de Paulo Freire, através de uma análise hipotético-dedutiva do sim à vocação dos homens que não são seres autênticos senão quando se com-
fenômeno da educação ambiental. prometem na procura e na transformação criadoras.
A educação crítica considera os homens como seres em devir, como seres
inacabados, incompletos em uma realidade igualmente inacabada e juntamen-
te com ela. Por oposição a outros animais, que são inacabados mas não históri-
1) A Escola na Contemporaneidade
cos, os homens sabem-se incompletos. Os homens têm consciência de que são
incompletos, e assim, nesse estar inacabados e na consciência que disso têm,
Na atualidade a escola possui um papel mais substancial do que, efetivamen-
encontram-se as raízes mesmas da educação como fenômeno puramente hu-
te, acredita ter. Isso porque, vários são os pais que relegam à escola a formação
mano. O caráter inacabado dos homens e o caráter evolutivo da realidade exi-
total de seus filhos, na medida em que creem que a formação agregada aos va-
lores da convivência da sociedade advém, exclusivamente, da educação escolar.
Obviamente que, esse pensamento se mostra retrógrado e absolutamente
contrário a real importância da educação para a formação da cidadania do in- 3) PAULA, Cláudia Regina de. Educar para a diversidade: entrelaçando redes, saberes e iden-
tidades. Curitiba: Ibpex, 2010. p. 17.
divíduo. O próprio art. 225 da Carta Constitucional, como já enunciado an-
teriormente, já estabelece que a educação deve ser fomentada em colaboração 4) FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensa-
mento de Paulo Freire. 3. ed. São Paulo: Moraes, 1980. p. 80-84.

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A Educação em Meio Ambiente como um dos Pilares para a Cidadania Jackelline Fraga Pessanha m Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes

gem que a educação seja uma atividade contínua5”. dizado, bem como a criação e difusão de ideias e ideais de formação pública,
Dessa maneira, é através da educação formal para a solução dos conflitos que futuramente concretizarão sua cidadania.
existentes que cada ser humano poderá se desenvolver, com a criação de uma A escola, juntamente com a educação realizada pela família, sociedade e
nova realidade social em que está incluída passando a ser crítico e consciente Estado são de fundamental importância para a mudança de rumos da socieda-
da realidade em que vive. Isso porque a educação abre portas para o aprimora- de, pois somente com cidadãos educados passa-se a ter novos valores sociais e
mento intelectual, social e político, além de inserção no mercado de trabalho. pluralidade de pensamentos para o debate e crescimento intelectual de todos.
Mas tal conscientização não se finda nesse contexto, haja vista que o ho- Além disso, a escola acompanha as crianças e os adolescentes durante ho-
mem é uma pessoa inacabada educacionalmente. Com essa nova realidade de- ras diárias e anos da sua vida. Sendo assim, precisa ser um ambiente acolhedor,
ve-se tornar objeto de uma nova reflexão e, assim, desenvolver-se mais em seu sem qualquer preconceito, para ser um local de debate e reflexão, em que famí-
aprendizado. Corroborando o entendimento firmado, Dermeval Saviani6 des- lias, educadores e alunos convivem em harmonia.
creve que “a educação é direito de todos e dever do Estado. O direito de todas à De acordo com Roberto João Elias8“o termo educação deve ser entendido
educação decorria do tipo de sociedade correspondente aos interesses da nova como o trabalho sistematizado seletivo e orientador, pelo qual nos ajustamos à
classe que se consolidara no poder: a burguesia. Tratava-se, pois, de construir vida de acordo com as necessidades ideais e propósitos dominantes”. Por isso
uma sociedade democrática, de consolidar a democracia burguesa. Para supe- a educação visa à inclusão de todas as crianças e adolescentes na escola, jus-
rar a situação de opressão, própria do ‘Antigo Regime’, e ascender a um tipo de tamente para cumprir suas necessidades básicas e, neste contexto, a educação
sociedade fundada no contrato social celebrado ‘livremente’ entre os indivídu- inclusiva pretende a captação de todos os alunos, com diversas capacidades,
os, era necessário vencer a barreira da ignorância. Só assim seria possível trans- interesses, características e necessidades, para que possam, no decorrer do seu
formar os súditos em cidadãos, isto é, em indivíduos livres porque esclarecidos, processo de aprendizagem, professores e alunos aprenderem juntos, com o ver-
110 ilustrados. Como realizar essa tarefa? Por meio do ensino. A escola é erigida no dadeiro sentido da igualdade de oportunidades. 111
grande instrumento para converter os súditos em cidadãos”. A educação é direito de todos e dever do Estado e da família, com a co-
A educação e a família são consideradas os pilares da sociedade, haja vista laboração da sociedade, ao promover mecanismos para o desenvolvimento
ser por meio deles que ocorre o desenvolvimento intelectual e social dos seres de crianças e adolescentes em fase de maturidade intelectual, como forma de
humanos, convertendo-os em sujeitos preparados para exercer direitos e obri- “evolução” de cada indivíduo.
gações dentro da sociedade. Mas, para isso, a educação deve ser efetiva, através Mas não se pode esquecer que a educação, em tempos anteriores, era vista
de mecanismos que realmente desenvolvam os estudantes. como modo de inculcação cultural, onde cada meio cultural desenvolvia a edu-
Neste sentido, Eliane Ferreira de Souza7 descreve que o direito à educação cação do modo que bem entendia. A título de exemplo os jesuítas ensinavam
“é pressuposto para a sobrevivência do Estado de Direito, porque ele enseja a para que todos pudessem ser evangelizados, de acordo com as normas e teo-
própria condição de desenvolvimento da personalidade humana de cada indi- rias da igreja católica, sem, contudo, verificar a cultura da sociedade brasileira.
víduo, consequentemente, da cidadania”. Assim, a criança e o adolescente têm direito a uma educação digna de de-
A educação compreende um processo de aprendizagem e transmissão de senvolver a sua personalidade e cidadania, uma vez que é obrigação estatal que
conhecimentos às crianças e aos adolescentes, para que assim possam desen- o ensino primário seja obrigatório e gratuito, para encorajar a organização e as-
volver variados ramos do saber humano, o que estimula a capacidade de apren- censão ao ensino secundário e superior, pois a escola deve ser um ambiente de
respeito aos direitos e a dignidade de cada criança e adolescente.
5) FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensa-
mento de Paulo Freire. 3. ed. São Paulo: Moraes, 1980. p. 81
6) SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze
teses sobre a educação política. 41. ed. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2009. p. 05.
7) SOUSA, Eliane Ferreira de. Direito à educação: requisito para o desenvolvimento do País. 8) ELIAS, Roberto João. Direitos fundamentais da criança e do adolescente. São Paulo: Sa-
São Paulo: Saraiva, 2010. p. 19. raiva, 2005. p. 79

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que as crianças e adolescentes possam se desenvolver já com essa ideia ine-


2) A Escola como Formadora do Cidadão
rente à sua condição em sociedade. Há que se compreender que “o ensino
que Respeita o Meio Ambiente e a educação, em seu sentido mais amplo e integral, constituem a essência
da promoção dos direitos humanos, base incontestável e condição neces-
No cotidiano do operador do direito, por muitas vezes, é possível vislum- sária, ainda que não exclusiva nem suficiente, para alcançar o respeito e a
brar um grande descaso das autoridades públicas para com a população. vigência desses direitos”10.
Problemas relacionados à saúde, ao saneamento básico, à educação, à mora- Entender os direitos e exigir que eles sejam cumpridos é um dever de
dia são os mais comuns. Quando se está a tratar do meio ambiente, a situa- cada cidadão. Para que haja uma convivência harmônica em sociedade, re-
ção se mostra ainda mais calamitosa. gras são estabelecidas com o intuito de que o respeito à individualidade do
Na medida em que não existem instrumentos efetivos para a contenção dos semelhante seja respeitado e, assim, surge a premissa de que “o seu direito
avanços e degradação do meio ambiente, uma medida se torna o foco do pro- termina, quando começa o do outro”.
blema: a educação ambiental. Ocorre que, por mais que se vislumbrem dificul- Baseando-se nesse respeito mútuo em sociedade, tem-se, claramente, a no-
dades e os meios de comunicação noticiem problemas, a postura passiva da so- ção real de cidadania. Nada mais evidente, portanto, que a cidadania implica
ciedade ainda se mostra um tanto quanto de aceitar muito calmamente essas ao mesmo tempo em direito (de estabelecer livremente as regras da convivên-
ocorrências e não buscam uma solução ao problema latente. cia interpessoal, política, sócio econômica, cultural e ecológica) e em dever (de
Enquanto algumas pessoas, com um espírito mais revolucionário, organi- respeitar e zelar por essas normas de convivência que os próprios cidadãos e ci-
zam passeatas, manifestações públicas na busca por direitos, outros permane- dadãs estabelecem, diretamente ou através de representantes legítimos)11.
cem em suas residências, apenas criticando as ações, sem qualquer preocupa- Nesse contexto a escola atual tem deixado a desejar. Não há uma real de-
112 ção, efetiva com o que está sendo reivindicado. Será que realmente todas as monstração de como as escolas tem trabalhado em relação à cidadania com as 113
manifestações que surgem, são em decorrência de um grupo de “baderneiros” crianças e adolescentes na atualidade. O que se percebe é que não há uma dis-
sem mais nada para fazer? A resposta é clara e, obviamente, negativa. ciplina dentro da grade curricular que tenha condições de suprir a falha que a
É exatamente por esse motivo que as escolas de ensino fundamental e sociedade tem delegado à escola. Por esse motivo, planejamento curricular de
médio possuem um importante papel nesse contexto. É através de práticas ações de educação para a cidadania torna-se fundamentais para garantir que o
simples na escola que será possível a formação do cidadão pensante quan- cidadão cresça com outra visão de mundo.
to ao meio ambiente. Logicamente que, aqui, o foco é a análise da educação em meio ambiente.
Perceba-se que “educar para a cidadania exige educar para a ação político- Mas a cidadania que se pretende a discussão escolar deve ser de maneira mais
social e esta, para ser eficaz, não poderá ser somente individual, nem indivi- ampla. O que se almeja é que a escola seja o local, de fato, de formação de um
dualista”9. Isso se torna absolutamente profundo. E se torna por um simples cidadão participativo, com uma visão futura de coletividade.
motivo, a visão que se deve ter é uma visão coletiva, tendo em vista que para se Pensar de maneira individual e imediatista tem feito com que grandes tragé-
ter um meio ambiente saudável e equilibrado, são necessárias ações simples de dias tenham se perpetuado na sociedade contemporânea. Com os avanços tec-
cada um: imagine que se cada cidadão evitar de jogar um pedaço de papel nas nológicos a premência por uma resposta instantânea fez com que a sociedade
ruas, quantas toneladas de papel não irão para os bueiros? passasse a alternar sua visão de mundo, para aquilo que traz uma resposta rápida.
Reflita-se que, todo esse papel que é eliminado indevidamente, pode ser Há que se perceber, contudo, que a formação do cidadão merece uma
responsável por dificultar o escoamento de águas de chuva, ou mesmo auxiliar formação gradual e efetiva. O que se pretende é que as crianças e adoles-
a proliferação de insetos e/ou outros animais nocivos à saúde da população?
É nas escolas que ações de conscientização podem ser realizadas para 10) RAYO, José Tuvilla. Educação em Direitos Humanos: Rumo a uma perspectiva global. 2.
ed. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 164.
9) CANDAU, Vera Maria et. al. Tecendo a Cidadania: oficinas pedagógicas de direitos huma- 11) MEDEIROS, Antonio José Castelo Branco. Idéias e práticas da cidadania. União, Piauí:
nos. 3.ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2000. p. 14. CERMO, 2002.p. 28.

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A Educação em Meio Ambiente como um dos Pilares para a Cidadania Jackelline Fraga Pessanha m Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes

centes em fase escolar possam ter visões a longo alcance. Portanto, a per- decorrência disso é que o próximo tópico tem o condão de analisar e demons-
cepção de educação que se pretende incutir na atual sociedade é que a esco- trar como a educação em direito ambiental, com foco no desenvolvimento sus-
la tem um papel fundamental de “[...] formar pessoas capazes de construir tentável e cidadania, pode mudar o futuro.
novos valores, atitudes e comportamentos, fundados no respeito integral aos
direitos universais do ser humano, independentemente de raça, etnia, con-
dição social, gênero, orientação sexual e opções política e religiosa. [...]12”.
3) A Educação em Direito Ambiental como Alicerce
Em outra visão, é através da percepção desses novos valores e compor-
tamentos que a sociedade terá condições de evoluir. Para evoluir, se faz do Desenvolvimento Sustentável e da Cidadania
presente que a educação para a cidadania passe a ter relevância na educa-
ção de base atual. Como ponto de partida, é importante perceber o papel desenvolvido pela edu-
Ao contrário do que se analisa, o simples fato de colocar latas de lixo que cação para o exercício da cidadania. Neste alicerce, Maria Cristina de Brito
dividem metais de papéis, plásticos e materiais orgânicos, já transparece a to- Lima14 ensina que “a educação pode se transformar em um instrumento ex-
dos uma visão conscientizadora de reciclagem. O que não se percebe é que ao tremamente hábil para o pleno desenvolvimento da pessoa, conduzindo-a ao
se jogar um determinado produto na natureza, não se pensa o tempo que ele exercício da cidadania e expandindo a sua qualificação para o trabalho, e do
durará para retornar ao estado natural da matéria. País, que passará a contar com cidadãos conscientes do seu papel”.
Da mesma forma, muitas instituições se esquecem de despejar seus resíduos É por isso, que no Brasil a Constituição Federal incumbiu o dever de pro-
em locais próprios, contaminando em muito o meio ambiente, pensando em porcionar a todas as crianças e adolescentes a educação básica, na busca da ci-
uma maneira de eliminar, a qualquer custo, os produtos que são indesejáveis à dadania do futuro, sendo um dever constitucional à abertura de mecanismos
114 produção. Mas, se esquecem do principal, as consequências danosas que essa e formas de conquistar uma melhor educação para todos. Desta maneira, a 115
atitude pode gerar a coletividade. Constituição brasileira entende a educação como matriz social, de acordo com
Diante dessa análise, percebe-se que ao se falar em levar conhecimentos o artigo 6º, o que ancorado nos dizeres de André Ramos Tavares15 “Como tí-
mínimos de mudar, efetivamente à cultura não civilizatória atual, transportan- pico direito social, o direito à educação obriga o Estado a oferecer o acesso a
do uma visão individual, para uma coletiva. Rezende Filho e Câmara Neto13, todos os interessados, especialmente àqueles que não possam custear uma edu-
ao tratarem do tema relacionado à cidadania na atual conjuntura, deixam claro cação particular. Os direitos sociais ocupam-se, prioritariamente, dentro do
que “Hoje, uma variedade de atitudes caracteriza a prática da cidadania. Assim, universo de cidadãos do Estado, daqueles mais carentes”.
entendemos que um cidadão deve atuar em benefício da sociedade, bem como Mais que isso, se percebe que uma sociedade capaz de analisar criticamente
esta última deve garantir-lhe os direitos básicos à vida, como moradia, alimen- seu contexto social, é capaz de mudar o futuro e buscar a valorização e respeito
tação, educação, saúde, lazer, trabalho, entre outros. a direitos. Inúmeros são os descasos para com o meio ambiente atual e qual a
Como consequência, cidadania passa a significar o relacionamento entre solução para o problema? Muitas das vezes nenhuma.
uma sociedade política e seus membros”. Enquanto empresas a todo o tempo despejam resíduos químicos e esgoto
É por esse motivo que a escola possui toda sua importância para a alteração em afluentes de rios, ou mesmo no ar atmosférico, o que a sociedade tem feito
dessa concepção atrasada e ainda arraigada no tecido das classes sociais. Em para solucionar o problema. Na maioria dos casos, absolutamente nada. E isso
porque, não há uma cultura social, desde a educação de base em exigir o res-

12) MONTEIRO, Aída; MENDONÇA, Erasto Fortes. O Plano Nacional de Educação em


Direitos Humanos. In: Brasil Direitos Humanos, 2008: A realidade do país aos 60 anos 14) LIMA, Maria Cristina de Brito. A educação como Direito fundamental. Rio de Janeiro:
da Declaração Universal. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2008. p. 29. Lumen Juris, 2003.p. 02.
13) REZENDE FILHO, Cyro de Barros; CÂMARA NETO, Isnard de Albuquerque. A Evo- 15) TAVARES, André Ramos. Direito fundamental à educação. Disponível em: <http://www.
lução do Conceito de cidadania. Revista Ciências Humanas. Taubaté V. 7, n. 02, 2001. p. anima-opet.com.br/primeira_edicao/artigo_Andre_Ramos_Tavares_direito_fund.pdf>,
06. acesso em 30/04/2014. p. 07.

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A Educação em Meio Ambiente como um dos Pilares para a Cidadania Jackelline Fraga Pessanha m Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes

peito aos direitos, seja para aqueles que dizem que não o buscam, porque nun- ciente, crítica e militante. Isto exige uma prática educativa participativa, dia-
ca o Estado cumpre com o que promete, seja porque nunca foram ensinados a lógica e democrática, que supere a cultura profundamente autoritária presente
exigir os seu cumprimento. O Estado, para essa última parcela da população, é em todas as relações humanas e, em especial, na escola17”.
visto como um “ser misterioso” e inatingível. Mais que isso, ao se estabelecer que o espaço da escola seja um espaço efe-
A educação inicia um processo de conhecimento e conquista das crianças e tivamente ativo, com absoluta certeza a sociedade tende a evoluir em parale-
dos adolescentes de uma cidadania digna, bem como poder usufruir dos direi- lo. Uma sociedade crítica e reflexiva, capaz de entender quais são seus direitos,
tos fundamentais que lhes são garantidos pela Constituição, pois sem educação tendo um espaço escolar capaz de garantir de maneira imparcial o levantamen-
não há como efetivar outros direitos sociais. to de ideias e a formação do indivíduo, irá, consequentemente, fortalecer as ge-
O direito à educação é resultante de uma matriz constitucional, confir- rações futuras mais evoluídas em termos de respeito à concepção de mundo.
mada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, pois garante às crianças Não se objeta da lógica de que existem fortes influências governamentais
e aos adolescentes estudar e aprender de forma digna, o que influenciará na no sentido de “brecar” até certo ponto esse desenvolvimento crítico-reflexivo.
convivência em sociedade. Isso porque, não é interessante aos anseios “politiqueiros” que os cidadãos pos-
È nesse ponto que se percebe a fundamental importância dos ensina- sam conhecer seus direitos e tenham condições de exigi-los.
mentos de Dalmo de Abreu Dallari16, na medida em questionando “Preparar Muito embora, os governantes sejam eleitos pelo voto popular, democra-
para a cidadania não é, portanto, apenas dar a informação sobre os cargos ticamente, os mesmos só conseguem se manter no poder se tiverem a apro-
eletivos a serem disputados e sobre os candidatos a ocupá-los, mas também vação popular. Se uma população insatisfeita passa a exigir mudanças de
informar e despertar a consciência sobre o valor da pessoa humana, suas ca- ordem prática que não estão na agenda governamental, a instabilidade ins-
racterísticas essenciais, sua necessidade de convivência e a obrigação de res- titucional acaba se instaurando.
116 peitar a dignidade de todos os seres humanos, independentemente de sua É por esse motivo, que os fins almejados de construção de uma cidadania 117
condição social ou de atributos pessoais”. efetiva, em especial no respeito ao meio ambiente, deve ser a pauta de reivindi-
É aqui que se percebe que cidadania não se restringe à participação nas elei- cações. A escola torna-se um importante produto para fomentar essa evolução,
ções, com o voto. Obviamente que, o exercício da cidadania também se trans- tendo em vista que “[...] Esse processo educativo deve, ainda, visar à formação
figura na concepção jurídica, como o direito a votar e a ser votado. Contudo, a do cidadão participante, crítico, responsável e comprometido com a mudança
visão de cidadania, não pode ser tão restrita a ponto de inobservar outras ques- daquelas práticas e condições da sociedade que violam ou negam os direitos hu-
tões básicas como o direito a ter um meio ambiente sustentável e equilibrado. manos. Mais ainda, deve visar à formação de personalidades autônomas, intelec-
A cidadania também é respeitar e exigir respeito ao meio ambiente que nos tual e afetivamente, sujeitos de deveres e de direitos, capazes de julgar, escolher,
circunda. Ao se observar qualquer violação, principalmente por se tratar de di- tomar decisões, serem responsáveis e prontos para exigir que não apenas seus
reito fundamental e social, cabe a todos os cidadãos, saber fazer cumprir o co- direitos, mas também os direitos dos outros sejam respeitados e cumpridos18”.
mando que a própria Carta Constitucional traz em seu texto como relevante. Mais que isso, a escola, desde que fundada nos pilares de desenvolvimen-
A escola, para conseguir obter uma melhoria no ensino, merece passar por to do cidadão, deve tecer uma linha de busca de meios para garantir que suas
algumas transformações. Isso porque o desenvolvimento de crianças e adoles- ações tenham importância para a formação do indivíduo. De nada adianta
centes com preceitos de cidadania é o foco que deve ser almejado pelo Estado. ações que não sejam capazes de fazer refletir questões envolvendo o meio am-
É por esse motivo que “Torna-se necessária a construção de uma escola que biente se não há como colocá-las em prática.
forma crianças e jovens construtores ativos da sociedade, capazes de viver no
dia-a-dia, nos distintos espaços sociais, incluído a escola, uma cidadania cons-
17) CANDAU, Vera Maria et. al. Tecendo a Cidadania: oficinas pedagógicas de direitos huma-
nos. 3.ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2000. p. 15,
16) DALLARI, Dalmo de Abreu. Um breve histórico dos direitos humanos. In: CARVALHO, 18) BENEVIDES, Maria Victoria. Educação em Direitos Humanos: de que se trata? São
José Sérgio (org.). Educação, Cidadania e Direitos Humanos. Petrópolis/RJ: Vozes, 2004. Paulo, 2000. Disponível em: http://www.hottopos.com/convenit6/victoria.htm. Acesso em
p.42. 15 mar. 2014. p. 03.

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A Educação em Meio Ambiente como um dos Pilares para a Cidadania Jackelline Fraga Pessanha m Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes

Passeios, visitas a ecossistemas, a parques botânicos, fomentar o cultivo de co da formação do cidadão. Isso quer dizer que o Estado deve garantir a for-
plantas e hortaliças entre as crianças, estabelecer conscientização em relação à mação básica do indivíduo através da garantia desse direito, de forma a que o
utilização da água, já são os alicerces iniciais desse contexto. indivíduo que nasce desprovido de qualquer conhecimento, possa desenvolver-
José Romão e Paulo Padilha19 (1997, p. 85), já demonstram que o simples se. Neste sentido, Elaine Ferreira de Sousa21 estabelece que “O direito à educa-
fato de se pensar em estruturas escolares capazes de garantir ações voltadas à ção, como pertencente à ordem dos direitos fundamentais, é essencial à ordem
cidadania, já mostra um exercício da mesma. Não mais que isso, a cidadania jurídica nacional. É um tipo de direito que ultrapassa o próprio sistema na-
pautada no estudo das questões ambientais, é um dos focos que merecem tra- cional. Essa superação do sistema nacional diferencia-se em dois aspectos: um
balho e análise entre as crianças e adolescentes uma vez que “planejar a escola substancial e outro sistemático. Os direitos fundamentais ultrapassam o siste-
de forma socializada é exercitar a cidadania, pois implica a tomada de decisões, ma nacional de forma substancial porque, se eles devem fazer jus às exigências
em envolvimento com as ações do cotidiano escolar e em avaliações dos servi- que lhes são estabelecidas, hão de contemplar os direitos humanos”.
ços prestados à população, o planejamento deve começar pela inserção de toda O processo de formação da criança e do adolescente inicia-se com a educa-
a sociedade no debate democrático sobre as questões relativas não só ao pro- ção, que pode ser familiar, social, cultural e/ou escolar. Isso porque “a educação
cesso de ensino aprendizagem, mas também em relação às questões adminis- consiste num processo de desenvolvimento da pessoa que implica a boa forma-
trativas e financeiras da escola e às questões da própria sociedade em que ela ção moral, física, espiritual e intelectual, destinando o seu crescimento integral
se insere, considerando sempre os condicionantes socioculturais e políticos que para o melhor exercício da cidadania e aptidão para o trabalho”22.
influenciam e afetam diretamente o cotidiano escolar”. A educação, por isso, é um direito fundamental constitucionalmente asse-
Aqui se percebe o importante papel que a escola possui na educação do in- gurado a todas as crianças e adolescentes, com o fundamento da dignidade da
divíduo. É ela o início, o meio e o fim da formação do indivíduo. Obviamente pessoa humana, uma vez que é por meio da educação que nascem os cidadãos
118 que não se exclui dessa formação de cidadania a família, mas deve-se perceber do futuro, na eterna busca de uma sociedade livre, justa e solidária. De acordo 119
que é na escola que as crianças e adolescentes passam a maior parte do tempo com Maria Cristina de Brito Lima23 “a Constituição Brasileira de 1988 uniu
e é ali que poderão passar a ter uma nova visão de mundo. o direito público subjetivo à educação a dois dos princípios fundamentais do
Não mais que isso, muitas das famílias são compostas por pais e mães que Estado Democrático de Direito: a cidadania e a dignidade da pessoa humana.
sequer concluíram o ensino fundamental. Portanto, são essas crianças que Por sua vez, esses princípios tendem a se concretizar com a observância dos ob-
terão condições de repassar em suas casas, os ensinamentos adquiridos na jetivos fundamentais do Estado: de construção de uma sociedade livre, justa e
escola no que se refere à cidadania. É por isso que “Precisamos da educação solidária; de garantia do desenvolvimento nacional; de erradicação da pobreza
para nos prepararmos, para construirmos, de forma criadora e transforma- e da marginalização, com redução das desigualdades sociais e regionais; e por
dora, um conhecimento que possibilite a nossa intervenção na sociedade de fim, de promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
forma plena, justa e solidária. Essa participação ativa na sociedade é a forma idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
mais clara e consequente, o melhor modo de desempenharmos o nosso pa- O direito fundamental à educação se for realmente concretizado pelo
pel no exercício da cidadania.20” Estado Brasileiro, como forma de aplicação dos princípios e objetivos fun-
Assim sendo, é que o direito à educação torna-se o foco de todo o debate. damentais do Estado Democrático, influenciará num melhor futuro nacional,
Constitucionalmente garantido, o direito à educação acaba sendo o pilar bási- com crianças e adolescentes melhores preparados para enfrentar o trabalho e

19) ROMÃO, José; PADILHA, Paulo. Planejamento Socializado Ascendente na Escola. In: 21) SOUSA, Eliane Ferreira de. Direito à educação: requisito para o desenvolvimento do País.
GADOTI, Moacir e ROMÃO, José E. (org.). Autonomia da Escola: princípios e propos- São Paulo: Saraiva, 2010. p. 37-38.
tas. 2ª ed., São Paulo: Cortez, 1997.p. 85.
22) TEIXEIRA, Anísio. Educação não é Privilégio. 5. ed. Rio de Janeiro: UFRJ. 2001, p. 101
20) ALVIM, Márcia Cristina de Souza. Educação, Cidadania e o Acesso à Justiça. Revista
Mestrado em Direito. Osasco, ano 6, n.2, p.97-106, 2006. Disponível em: www.fieo.br/ 23) LIMA, Maria Cristina de Brito. A educação como Direito fundamental. Rio de Janeiro:
edifieo/index.php/rmd/article/viewfile/39/77. Acesso em: 20 mar. 2014. p. 11 Lumen Juris, 2003.p. 08.

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A Educação em Meio Ambiente como um dos Pilares para a Cidadania Jackelline Fraga Pessanha m Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes

exercer com dignidade a sua cidadania, pois “a educação se apresenta como po- cimento de novos direitos que se tornem historicamente necessários como
deroso instrumento de transformação e inclusão social e, consequentemente, também por seu reconhecimento e por sua implementação tendo em vista
como pressuposto para o exercício dos demais direitos fundamentais”24. a promoção do bem comum.
Por isso, a educação é considerada o futuro da sociedade, pois é por meio Diante disso é que a educação em meio ambiente, em especial, com respei-
dela que cada indivíduo capta o conhecimento para promover o desenvolvi- to a parâmetros ambientais, se torna um dos focos a serem trabalhados entre as
mento da sua personalidade e da cidadania, desenvolvendo em cada um a sua crianças de escolas de ensino fundamental e médio, como busca de desenvolver
consciência crítica e a livre determinação, para que, assim, possa estar diante de sua cidadania plena, objetivo traçado pelo legislador constitucional.
um verdadeiro Estado Democrático de Direito25.
A educação busca garantir a todos o seu pleno acesso, uma vez que é por
meio do conhecimento que cada indivíduo se tornará cidadão, usufruindo de
maneira correta a sua cidadania, bem como conhecendo os seus direitos cons-
H Conclusão
titucionalmente previstos. Entende-se, portanto, que a educação detém uma Em suma, percebe-se durante toda a explanação que o foco a ser difundido
função de conscientização e reflexão crítica do que está sendo ensinado, para no que se refere à educação em meio ambiente é um maior aprimoramento da
que os educandos possam participar ativamente na sociedade, tendo conheci- educação escolar. A escola, como fomentadora da formação dos cidadãos, deve
mentos dos seus direitos e exercendo a sua cidadania plena. ser uma das principais responsáveis por praticar ações inovadoras no sentido
Portanto, o objetivo da Constituição e do Estatuto da Criança e do de desenvolver pessoas capazes de refletirem criticamente sobre determinados
Adolescente ao disciplinar sobre a educação, foi demonstrar de que maneira pontos e, assim, tornarem-se cidadãos ativos.
devem agir as escolas públicas e particulares, o Estado e a família, para que a Desprovida de qualquer concepção “politiqueira”, a sociedade tende a evo-
120 educação possa transformar um adulto mais consciente e participativo. luir na medida em que seus cidadãos passam a ter condições de exigir do Estado 121
A educação escolar tem a função precípua de garantir a todas as crianças e o cumprimento dos direitos aos quais ele se propôs a garantir. A população
adolescentes a convivência decente em sociedade, podendo se manifestar sobre os deve passar a ser menos passiva e mais ativa na participação em sociedade.
assuntos cotidianos e importantes no seio social, pois “a educação escolar emer- Essa participação não deve se resumir a lidar com o voto. Não se está aqui a
giu na modernidade como a forma principal e dominante de educação, erigindo- afirmar que o sufrágio universal, ou seja, o direito de votar e ser votado não seja
se em ponto de referência e critério para se aferir as demais formas de educar”26. exercício de cidadania. Contudo, deve ser propagado que o exercício da cidada-
Assim, na concepção de Costa e Duarte27 o que se almeja é que a educa- nia é muito mais amplo que simplesmente essa concepção eleitoreira.
ção seja não só ao acesso pleno, embora passivo, a um determinado conjun- Na medida em que as crianças e adolescentes passam a reconhecer seus di-
to de direitos existentes. Ao contrário ela supõe uma participação ativa na reitos e os meios de fazer cumpri-los, a sociedade tende a evoluir de manei-
luta pelo cumprimento de direitos já reconhecidos, na luta pelo reconhe- ra mais efetiva. Para tanto, a matriz curricular das escolas de educação de base
deve sofrer alterações no sentido de manter disciplinas capazes de desenvolver
ações em respeito a preceitos de cidadania.
24) ARANÃO, Adriano, Direito à educação: A educação como direito fundamental na Cons- Aqui é que o respeito às questões ambientais se torna o foco da questão.
tituição Federal de 1988. In: Argumenta: Revista do programa de Mestrado em Ciência
Jurídica da FUNDINOPI. nº 9. Jacarezinho, 2008. p. 248. Na medida em que são difundidas métodos e ações curriculares capazes de de-
monstrar como é o meio ambiente atual e formas mínimas de preservá-lo de
25) SOUSA, Eliane Ferreira de. Direito à educação: requisito para o desenvolvimento do País.
São Paulo: Saraiva, 2010.p. 34. maneira saudável, estar-se-á dando um importante passo em busca de cidadãos
mais bem conscientizados. Enquanto a escola for responsável por difundir co-
26) SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze te-
ses sobre a educação política. 41. ed. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2009.p. 202. nhecimentos que nenhum proveito trazem ás crianças e adolescentes, em nada
servirá a malfadada expressão de formar cidadãos.
27) COSTA, Antonio Carlos Gomes da; DUARTE, Cláudio Nunes. Educação para os direitos
humanos. Belo Horizonte: Modus Faciendi; Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Hu- Já afirma a música de Gabriel, o Pensador: “Manhê! Tirei um dez na prova
manos e Ministério do Trabalho e do Emprego, 2004, p. 21. Me dei bem tirei um cem e eu quero ver quem me reprova. Decorei toda lição, não errei

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A Educação em Meio Ambiente como um dos Pilares para a Cidadania

nenhuma questão, não aprendi nada de bom Mas tirei dez (boa filhão!)”. Enquanto
a escola só trouxer às crianças e adolescentes ensinamentos que nada alteram
suas realidades, que servem apenas para decorar e fazer uma determinada ava-
liação, mas não geram aprendizado, a cidadania almejada tende ao fracasso.

122

Direitos Humanos e Meio Ambiente


6
Educação Ambiental como Instrumento de
Posse de Direitos e Cidadania

Margareth Santos Schayder*1


Universidade Federal do Espírito Santo

Sumário: Introdução. 1 Aspectos legais da Educação


Ambiental. 1.1 Finalidades da Educação Ambiental. 1.2 Meio
ambiente e cidadania. 2 Sustentabilidade. 2.1 Crise ambiental
e educação. 3 Educação Ambiental e participação social. 4
Ministério Público e Educação Ambiental. Conclusão.

123

1) *Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade federal do Espírito Santo. Servi-


dora Pública do Ministério Público do Espírito Santo, lotada na Coordenadoria regional
do Meio Ambiente e Urbanismo da Região Metropolitana. Pós-Graduada, lato sensu, em
Direito Urbano e Ambiental, Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio
Grande do Sul. E-mail: mschayder@mpes.gov.br.
Educação Ambiental como Instrumento de Posse de Direitos e Cidadania Margareth Santos Schayder

H Introdução condições para o desenvolvimento das capacidades necessárias, para que


grupos sociais em diferentes contextos socioambientais do país exerçam o
A Educação Ambiental, desde a publicação da Lei Federal nº 9795/1999, seu controle social da gestão pública.
decreto regulamentador, Decreto nº 4281/2002, tem se consolidado na ges- Neste sentido, no presente estudo, busca-se apresentar a educação ambien-
tão ambiental ganhando notoriedade e reconhecimentos quanto à sua impor- tal como instrumento estratégico para a socialização de informações, conheci-
tância estratégica para socialização de informações e conhecimentos, autono- mentos, participação popular e democratização das decisões. Importante me-
mia dos grupos sociais, participação popular e a democratização das decisões. diadora na construção social, oportunizando uma vivencia participativa como
Inegavelmente, a educação no processo de gestão ambiental torna-se elemento um terreno fértil capaz de produzir um sujeito ambientalmente correto, colo-
estruturante para que haja participação e controle social no processo decisório cando-se como componente urgente e essencial no exercício da cidadania.
sobre a destinação dos recursos ambientais na sociedade.2
Pensar em educação no processo de gestão ambiental é desejar o controle
social na elaboração e execução de políticas públicas, por meio da participação
1) Aspectos Legais da Educação Ambiental
permanente dos cidadãos, principalmente de forma coletiva, na decisão do uso
dos recursos ambientais e nas decisões que afetam à qualidade do meio am-
O marco inicial da educação ambiental no mundo foi a Conferência das
biente. Importa acrescentar que o preceito constitucional determinado no art.
Nações Unidas para o Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, no ano de
225 da Constituição Federal estabelece ao mesmo tempo “o meio ambiente
1972. Surgiu daí um novo conceito de desenvolvimento, o “desenvolvimen-
ecologicamente equilibrado” como direito e “bem de uso comum do povo e es-
to sustentável”, servindo de base para o entendimento das relações entre meio
sencial à sadia qualidade de vida”, também impõe ao Poder Público e a coleti-
ambiente e o desenvolvimento.
124 vidade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 125
Em 1975 a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Para garantir a efetividade deste princípio, a constituição determina incum-
Cultura (UNESCO) e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
bências ao Poder Público e a coletividade que vão desde a preservação e res-
(PNUMA), realizaram o Seminário Internacional sobre educação ambiental,
tauração de processos ecológicos até a proteção da fauna e da flora destacando
com objetivo de disciplinar uma das resoluções da conferência de Estocolmo
a educação ambiental como instrumento estratégico para conscientização do
na qual a educação ambiental era recomendada com caráter interdisciplinar
controle social. O grande desafio da educação ambiental é atuar como agente
visando preparar o ser humano para viver em harmonia com o meio ambien-
difusor dos conhecimentos e indutor da mudança de hábitos e comportamen-
te. Naquele seminário foi aprovada a Carta de Belgrado onde se encontram
tos predatórios, em hábitos e comportamentos tidos como compatíveis com a
os elementos básicos para estruturar um programa de educação ambiental em
preservação dos recursos naturais, pois o processo de educação ambiental tor-
diferentes níveis, seguindo a orientação da Recomendação 96 da Conferência
na-se eficaz na medida em que possibilita ao indivíduo perceber-se como su-
Estocolmo a qual atribuía importância fundamental à Educação Ambiental. 3
jeito social capaz de compreender a complexidade da relação sociedade/ natu-
Em 1977, na primeira Conferência Intergovernamental sobre Educação
reza, e comprometer-se a agir em prol da prevenção de riscos.
Ambiental ou Conferencia de Tbilisi, os objetivos e diretrizes da Carta de
Torna-se então necessário trazer para o processo decisório, como determina
Belgrado foram ratificados. A Educação Ambiental foi conceituada como
a Constituição Federal, todos os atores sociais nele implicados, pois a experiên-
chave principal para uma tomada de consciência que pudesse tornar visível
cia tem mostrado que a própria sociedade se constitui em um parceiro vital na
os problemas já existentes e formasse cidadãos responsáveis para alterar os
defesa dos seus recursos naturais, desde que sensibilizada e capacitada para tal.
rumos destrutivos nos quais a sociedade se encontrava. Nesta Conferência a
Surge assim o desafio de se fazer cumprir a finalidade da educação am-
Educação Ambiental foi apontada como uma formação permanente, prepa-
biental, conforme definida na Constituição Federal, de proporcionar as

3) CARVALHO, I & SCOTTO, G. Conflitos Socioambientais no Brasil I. Rio de Janeiro:


2) Lei Federal nº 9795/1999 Ibase, 1995.

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Educação Ambiental como Instrumento de Posse de Direitos e Cidadania Margareth Santos Schayder

rando os indivíduos para os problemas contemporâneos, possibilitando-lhes te ecologicamente equilibrado como direito de todos, bem de uso comum do
conhecimentos técnicos que orientasse e qualificasse sua vida induzindo a povo e essencial à qualidade de vida, atribuiu ao Estado e à coletividade a res-
proteção do ambiente, considerando sempre os princípios éticos norteado- ponsabilidade de preservá-lo e defendê-lo para as presentes e futuras gerações.
res do meio ambiente. No parágrafo 1º, inciso VI, a Carta Magna atribui ao poder público a respon-
Dez anos após a Conferência de Tbilisi, especialistas de aproximadamente sabilidade de assegurar a efetividade do direito mencionado no corpo do cita-
cem países, juntamente com observadores da IUCN, reuniram-se em Moscou, do artigo, de promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a
antiga URSS para a realização do Congresso Internacional de Educação e for- conscientização pública para a preservação do meio ambiente, complementado
mação Ambiental cujo objetivo era revisar os progressos e as dificuldades al- pela Lei nº 9795/99, que instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental,
cançadas no campo da Educação Ambiental a partir da Conferencia. Deste e pelo seu Decreto Regulamentador 4.281/02. 5
Congresso saíram às estratégias internacionais para as ações no campo da Diante do exposto podemos depreender que a educação ambiental, sob a
Educação e formação ambiental para a década de 90, consolidando a Conferência perspectiva do Direito, está muito bem amparada, oferecendo orientações bá-
como um marco importante e fundamental da Educação Ambiental. sicas para se implantar uma educação ambiental de qualidade. Observa-se, po-
No ano de 1992 aconteceu no Rio de Janeiro, a Conferência das Nações rém, a falta de atuação do Estado no sentido de fiscalizar e cobrar a aplicação
Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco - 92 ou Rio 92) dessas leis dentro dos sistemas educacionais, tornando efetiva a educação am-
Organizada pela ONU- Organização das Nações Unidas. O objetivo deste biental, não só diante da legislação, mas atendendo a necessidade de dar solu-
encontro foi reafirmar a Conferencia de Estocolmo e a partir dela estabele- ções adequadas aos graves problemas que afetam o Planeta.
cer diretrizes para o século 21. O principal documento foi a Agenda 21. Nesta
Agenda cada país definiu as bases para a preservação do meio ambiente em seu
126 território, possibilitando o desenvolvimento sustentável.4 127
1.1) Finalidades Da Educação Ambiental
Como resultado de uma vasta consulta à população foi criada a Agenda 21
Brasileira surgindo como um processo e instrumento de planejamento partici-
No rotineiro cotidiano as pessoas estão envolvidas em uma dinâmica, incons-
pativo para o desenvolvimento sustentável e que tem como eixo central a sus-
ciente, que leva a assimilar como natural uma série de práticas que, sem refle-
tentabilidade, compatibilizando a conservação ambiental, a justiça social e o
xão, executam mecanicamente. Convivem com tal tranquilidade presas aos ar-
crescimento econômico. O documento foi construído a partir das diretrizes da
tefatos da tecnologia que não vislumbram imaginar um mundo em que estas
Agenda 21 global. Trata-se, portanto, de um instrumento fundamental para a
coisas não estejam presentes, passando a aceitar isso como natural ao ambiente.
construção da democracia participativa e da cidadania ativa no País.
Quando, porém, se enfrenta a problemática ambiental verifica-se o quanto
A partir da Lei 6.938/81 foram estabelecidos os objetivos e instrumentos
se tem de limite. Nem com toda a ciência e conhecimento tecnológico se acham
da Política Nacional de Meio Ambiente, no Brasil. Esta lei coloca, pela pri-
competentes para superar as questões ambientais. Faz-se então necessário a re-
meira vez, a necessidade de se conciliar desenvolvimento econômico com pre-
flexão a respeito de possíveis soluções objetivas e prováveis de serem colocadas
servação ambiental, tendo como um de seus princípios a educação ambiental
em prática com propósito de atenuar, de maneira gradativa, a crise ambiental.
incluída em todos os níveis de ensino, inclusive a educação da comunidade,
Neste cenário, portanto, a educação ambiental ganha especial destaque, uma
objetivando capacitá-la para participação ativa na defesa do meio ambiente.
vez que tem como objeto a formação do sujeito capaz de compreender o mundo
Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 incorporou o conceito de
e agir nele de forma analítica, sabendo ler seu ambiente e interpretar as relações,
desenvolvimento sustentável ao consagrar, em seu artigo 225, o meio ambien-
os conflitos e os problemas aí presentes. Atores sociais preparados para auto-
compreender o lugar que ocupam, capazes de exercer uma cidadania ambiental,
4) Educação ambiental no licenciamento: aspectos legais e teórico-metodológicos. In: Carlos inspirados por uma educação crítica, voltada para o exercício desta cidadania.
Frederico B. Loureiro (org.). Educação Ambiental no contexto de medidas mitigadoras e
compensatórias de impactos ambientais: a perspectiva do licenciamento. Salvador: IMA,
2009 – (Série Educação Ambiental v. 5). 5) Brasil, Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

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Uma educação que possibilita o fornecimento de elementos para formação ca-


1.2) Meio Ambiente e Cidadania
pacitando identificar a dimensão conflituosa das relações sociais que se expres-
sam em torno da questão ambiental, posicionando-se diante desta.
A Constituição Federal (1988)6, em seu artigo 225, caput, consagra o meio am-
Dentro dessa perspectiva a educação ambiental deverá adotar uma atitude
biente ecologicamente equilibrado como direito de todos. Meta esta já esta-
estimuladora e analítica dos diferentes fatores que intervém em cada caso, me-
belecida no artigo 4º, inciso I, da Lei n 6938/ 81 (Lei da Política Nacional do
diando interesses e conflitos entre atores sociais. As pessoas agem sobre o meio
Meio Ambiente), que tem como um dos objetivos fundamentais a compatibi-
físico natural e construído, definindo e redefinindo continuamente o modo
lização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade
como esses diferentes atores sociais, por meio de suas práticas, alteram a qua-
do meio ambiente e do equilíbrio ecológico.
lidade do meio ambiente e como são distribuídos os custos e benefícios decor-
Para que tal objetivo seja alcançado, e efetive-se o direito fundamental
rentes da ação desses agentes. Assim agindo, superam o desafio de favorecer, em
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, não basta à existência da lei,
todos os níveis, a participação responsável e eficaz da população na concepção e
porquanto a lei em si só não opera a transformação necessária à superação
aplicação das decisões que põem em jogo a qualidade do meio natural, social e
da crise ambiental, pois não tem força suficiente para impor mudanças nos
cultural. Uma educação estratégica para a socialização de informações e conhe-
comportamentos e modos de vida nocivos ao ambiente. Tal mudança se rea-
cimentos dos grupos sociais, resultando na democratização das decisões.
liza socialmente através de um processo educativo apto a munir os cidadãos
Esta educação ambiental crítica voltada para a cidadania incluí como obje-
com os valores, conhecimentos e habilidades necessárias à construção de
tivo os direitos a integridade dos bens naturais, o caráter público e a igualdade
uma sociedade ecologicamente sustentável.
na gestão daqueles bens dos quais depende a existência humana. Este méto-
Neste contexto, a educação ambiental surge como um instrumento de ex-
do educativo deverá fornecer os elementos para formação de um sujeito capaz
trema importância para a efetividade da Política Nacional de Meio Ambiente,
128 tanto de identificar a dimensão conflituosa das relações sociais que se expres- 129
uma vez que, oferecendo maneiras inovadoras de se perceber o mundo, é capaz
sam em torno da questão ambiental quanto de posicionar-se diante dela. E
de tornar os cidadãos aptos a atuarem diretamente na construção de uma so-
também objetivar a socialização de informações, proporcionado uma interven-
ciedade socialmente justa, democrática e ecologicamente sustentável.
ção qualificada, capaz de, através de diagnóstico participativo garantir apro-
Infere-se assim que, a educação ambiental, como um processo educativo
priação pública de informações que permitam o posicionamento responsável
evolucionário, é o primeiro passo a ser dado rumo à sustentabilidade, pois
e qualificado. A atuação deve ser orientadora da tomada consciente de deci-
irá fornecer substrato necessário às mudanças que deverão ser feitas, pro-
são buscando adotar uma atitude crítica e estimuladora de uma análise precisa
piciando a formação de cidadãos aptos a atuarem de forma consciente na
e ordenada apropriada aos diferentes fatores que intervém em cada situação.
construção do meio em que vive.
Consolida-se, assim, uma educação ambiental que não se limita simples-
Vale citar que os princípios e valores ambientais traçam os rumos da cons-
mente a divulgar novos conhecimentos, mas despertar a capacidade de ques-
trução de uma proposta de educação ambiental emancipatória e comprometi-
tionar ideias sobre os diversos problemas ambientais e os sistemas de valo-
da com o exercício da cidadania, exigindo a explicitação de pressupostos que
res que sustentam essas ideias, difundindo a importância da participação com
devem fundamentar sua prática nos preceitos constitucionais. Assim, a parti-
maior frequência possível de organizações, surgindo como um espaço de to-
cipação popular, como um dos princípios do direito ambiental, é sumamente
mada de decisões sobre os problemas ambientais de forma coletiva. Neste con-
importante para alcançar mudanças eficazes na sociedade.
texto, a educação ambiente concentra o olhar para estabelecer uma relação en-
Esta participação democrática da sociedade é reflexo das demandas am-
tre a aquisição de conhecimentos, o esclarecimento dos valores, a aptidão para
bientais que clamam pela gestão de seus recursos naturais, requerendo do
resolver problemas, a sensibilização ambiental e a participação direta e indire-
Poder Público maior atenção com a educação ambiental. É urgente e neces-
ta de proteção e melhoria do meio ambiente em âmbito local. Em suma, uma
sário que o Poder Público e a sociedade civil juntos elaborarem e executem
educação voltada à promoção de procedimentos pedagógicos que permitam
um debate bastante amplo sobre as possíveis soluções dos problemas ambien-
tais e o caráter dos valores correspondentes. 6) Brasil, Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

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projetos que não visem apenas resultados pontuais, mas tenham como objetivo um direito fundamental. Porém, a expressão “desenvolvimento sustentável”
uma educação ambiental contempladora das aspirações de melhor qualidade foi utilizada pela primeira vez em um estudo intitulado “Estratégia mundial
de vida em um mundo ambientalmente sadio. para a conservação”, da International Union for Conservation of Nature
Ressalta-se então, a necessidade do agir do Estado como parceiro no pro- (UICN). Foi, portanto, no “Relatório Brundtland” Relatório da Comissão
cesso de transformação, exercendo seu papel fortalecedor da sociedade civil, Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, ligada a ONU, que esta
disponibilizando uma educação ambiental capaz de contribuir com o processo expressão se tornou conhecida.
dialético Estado/ sociedade que possibilite uma definição das políticas públi- O “Relatório Brundtland” retomou o conceito de “desenvolvimento sus-
cas a partir do diálogo. Entende-se que esta deve ser a diretriz norteadora para tentável” trazendo a seguinte definição: “a humanidade tem a capacidade de
a construção da educação ambiental como política pública, uma política cons- alcançar o desenvolvimento sustentável - de atender às necessidades do pre-
ciente que implique em uma crescente capacidade do Estado de disponibilizar sente sem comprometer a capacidade das futuras gerações de atenderem às
uma educação voltada para a cidadania, ampliando a dinâmica interativa entre suas próprias necessidades”. Esse relatório propôs que os interesses econômi-
população e o poder público. cos seriam atingidos satisfatoriamente pela sustentação da capacidade ambien-
Assim, é necessário e urgente que o objetivo da Política Nacional do Meio tal, comprometidos com a durabilidade da vida relacionando as gerações pre-
Ambiente, a partir de um amplo processo de educação ambiental, instrumen- sentes com as que estão surgindo.
talize formas variadas e inovadoras de relacionamento com o ambiente natu- Em setembro de 2000, a ONU, diante da inquietação em torno da neces-
ral, efetivando o direito fundamental ao meio ambiente, administrando riscos sidade de preservação do Planeta, ao analisar os maiores problemas mundiais,
socioambientais, valorizando e ampliando o envolvimento público através de estabeleceu oito (8) objetivos do Milênio, que devem atingir todos os países até
iniciativas que possibilitem o aumento do nível da consciência ambiental. 2015. O debate resultou na aprovação da “Declaração do Milênio” que contêm
130 Vale citar que a prática da educação ambiental deve ter um dos seus pres- oito metas a serem atingidas, entre as quais está a garantia da sustentabilida- 131
supostos o respeito aos processos culturais, considerando as realidades locais, de ambiental, como um aspecto fundamental para a concretização dos demais
proporcionando aos diferentes seguimentos condições efetivas de intervirem objetivos sociais. Surge assim, com a proposta de assegurar um projeto de vida
no processo de gestão ambiental. Só então será possível a construção de uma digno para uma sociedade duradoura, vinculando todos os atores sociais a um
sociedade livre, justa, solidária, desenvolvida com estreitos índices de desigual- compromisso de longo prazo.7
dade social e que promova o bem estar de todos. Deparamos então com a definição de um princípio de sustentabilidade in-
Assim, a educação ambiental se estabelece como importante estratégia de timamente relacionada com o da responsabilidade social, porém, não se pode
ações permanentes que promovem o fortalecimento de uma consciência maior pensar em responsabilidade sem uma compreensão das relações sociedade-
sobre os problemas ambientais, contribuindo para a formação de cidadãos ca- natureza e a desarmonia que aí se instaura, o que é chamado de conflitos so-
pacitados para exercer seu papel na preservação do meio ambiente e aptos para cioambientais. Diante desses conflitos faz-se necessário refletir acerca dos
tomar decisões, sabedores que a educação ambiental sozinha não é suficien- atuais valores sociais buscando aplicar uma maneira coerente de lidar com os
te para resolver a problemática ambiental, mas é condição indispensável para problemas ambientais, evitando extremismos.
tanto. Preparando assim cidadãos para exigirem justiça social e ética na rela- Certamente, há muito que trilhar para se chegar a um conceito de susten-
ção homem-natureza, tornando possível a construção de uma sociedade justa. tabilidade e suas relações com a cidadania. Nessa perspectiva, eis o conceito
proposto para o princípio da sustentabilidade: trata-se do princípio constitucio-
nal que determina, com eficácia direta e imediata, a responsabilidade do Estado e
da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento material e imaterial,
2) Sustentabilidade

Em 1972 a ONU, ao realizar a Conferências das Nações Unidas, declarou 7) MARRUL FILHO, S. Crise e sustentabilidade no uso dos recursos pesqueiros. Brasília,
formalmente o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como 2001. Dissertação (Mestrado) – Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade
de Brasília.

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socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente limpo, inovador ético e dariedade e a justiça ambiental como faces de um mesmo ideal de sociedade
eficiente, no intuito de assegurar, preferencialmente de modo preventivo e precavido, justa e ambientalmente orientada.
no presente e no futuro, o direito do bem- estar8. Isto posto, a educação ambiental, considerando toda a complexidade que
Denota-se então, que o conceito desenvolvimento sustentável não contra- envolve o processo de aprendizagem, alerta para a cautela ao propor a indu-
diz com o crescimento econômico, mas que requer a observação de princípios ção de mudança de comportamentos diante dos desafios ambientais. Há de
que enfatizam um padrão de justiça coletiva integrando necessidades huma- se ter consciência que nem sempre será alcançada a formação de uma ati-
nas com a necessidade de proteção dos recursos naturais. Este conceito reú- tude ecológica resultando procedimentos ambientalmente corretos. Cabe
ne elementos indispensáveis para uma sustentabilidade operacional, trazendo reconhecer que gerar comportamentos individuais ordeiros e preocupados
uma visão de desenvolvimento que busca superar o reducionismo e estimula com as questões ambientais, pode ser socialmente desejável e necessário,
um pensar e fazer sobre o meio ambiente diretamente vinculado ao diálogo, à mas não significa que tais comportamentos sejam integrados na formação
participação e aos valores éticos. de uma atitude ecológica e cidadã.
Assim, esboça-se a formulação de um conceito de desenvolvimento sus- Nesse sentido é proposto um ideal de convívio solidário entre os sujeitos
tentável em forma de discurso simbólico, que sucumbe aos ditames da ordem como parte de uma grande teia de relações naturais, culturais e sociais que cons-
econômica, apontando explicitamente para a necessidade de repensar e anali- troem modos individuais e coletivos de olhar, perceber, usar e pensar o ambiente.
sar de onde emanam os valores que comandam nossas práticas, possibilitando, Assim sendo, no seu papel orientador, é mister que a educação ambiental
assim, a construção de uma relação harmônica e duradoura entre o homem e atenda ao anseio por uma consciência racional, considerando o comportamen-
o ambiente. Possibilita a integração de mais informações e conhecimentos que to de uma totalidade capaz de expressar as motivações individuais. Acreditando
viabilizem condições para o desenvolvimento de capacidades e sensibilidades que é possível proporcionar uma transformação que passe pelo plano do es-
132 para identificar e compreender os problemas ambientais, com intuito de fa- clarecimento, do acesso a informações coerentes, da capacidade de tomadas de 133
zer-lhe frente comprometendo-se com a tomada de decisão onde o ambiente decisões. Que sejam mais do que comportamentos isolados, mas sejam produ-
é entendido como uma rede de relação entre a sociedade e o meio ambiente. to do amadurecimento de valores e visões de um mundo que obrigatoriamente
Convém sublinhar o papel eticamente esperado da educação Ambiental perpassa pela relação aberta com o outro. Compreendendo os recursos natu-
com a visão de superar a concepção mecanizada de Meio Ambiente, fundada rais além do monetário que ultrapasse a visão econômica da sustentabilidade.
em princípios e valores que permitam uma relação sustentável entre o homem
e os recursos naturais, auxiliando na compreensão do ambiente como conjunto
de práticas sociais, superando o desafio de ir além da aprendizagem comporta-
2.1) Crise Ambiental E Educação
mental, engajando-se na construção de uma cultura cidadã e de atitudes ecoló-
gicas, promovendo transformações reais, duradouras e efetivas capazes de legi-
Diante do vertiginoso crescimento populacional, percebido após a revolução
timar modos alternativos e responsáveis de apropriação da natureza.
industrial, somado ao desenvolvimento tecnológico, questiona-se até quando
É importante considerar que a dissonância entre os comportamentos ob-
os recursos naturais serão suficientes para atender a tão grande demanda. Fica
servados e as atitudes que se pretendem formar é um dos grandes desafios
visível então que a problemática ambiental está cada vez mais presente no co-
da Educação Ambiental. É necessário romper o paradigma de um processo
tidiano da população, principalmente no que se refere ao desafio de preservar a
educativo imerso e condicionado por um contexto cultural, social, econômi-
qualidade de vida, fazendo-se necessário a busca do equilíbrio entre população,
co, político e ecológico, capaz de gerar e moldar os valores e conhecimentos
recursos naturais e consumo.
que devem ser transmitidos aos indivíduos. Uma atitude ecológica cidadã
Porém, uma retrospectiva histórica deixa à mostra a dificuldade de estabe-
implicaria desenvolver capacidades e sensibilidades para identificar a soli-
lecer um pacto de sobrevivência pacífica entre os humanos, o ambiente, os vá-
rios interesses sobre o direito e acesso aos bens e recursos ambientais e sobre
suas formas de uso. Embora crescente a consciência da existência de uma crise
8) Juarez Freitas- 2012- pg. 41- 2ª edição

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ambiental planetária, sendo difundida por toda humanidade, tem-se a certeza propuseram mudanças, sobretudo, no modo como estão sendo usados os re-
que não se trata apenas de problemas isolados, mas de uma ameaça à sobrevi- cursos naturais do planeta. Porém, o documento “O futuro que queremos”, re-
vência de toda biosfera. Trata-se, sim, de necessidade de modificar o nosso re- sultado final desse encontro, foi considerado uma grande distância entre a ex-
lacionamento com o ambiente em prol da sobrevivência da humanidade. pectativa gerada por uma conferência como essa e sua capacidade de mudar o
Em busca de respostas aos questionamentos e tentando conciliar o desenvol- cenário de degradação ambiental e acabar com a extrema pobreza.
vimento socioeconômico com a proteção e conservação dos ecossistemas, dele- Diante do que se observa no mundo e da constatação que a crise ambiental
gados de todo o mundo, reuniram-se no Rio de Janeiro, em 1992, na primei- é fruto de ações danosas causadas ao longo do tempo pela ação humana, ques-
ra Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, tiona-se quem será responsabilizado pelo dano. Neste contexto, Milaré rela-
também conhecida como “Cúpula da Terra”. Nesta reunião foi consagrado o ciona o homem ao dano e à crise: “Parece ser consequência da verdadeira guer-
conceito de desenvolvimento sustentável e apontou como responsáveis pelos ra que se trava em torno da apropriação dos recursos naturais limitados para a
danos ambientais os países desenvolvidos. satisfação de necessidades ilimitadas (MILARÉ, 2005, p.131).
Na ocasião desta conferência, a canadense Severn Cullis-Suzuki9, com ape- Assim, em tempos de questionamentos e incertezas, reascende oportuna-
nas 12 anos, fez seu nome conhecido e sua voz ouvida com um apelo intenso mente a educação, em espacial a ambiental, como estratégia para o “desenvol-
aos delegados que tomariam decisões para as presentes e futuras gerações. Em vimento de uma compreensão integrada do meio ambiente em suas múltiplas e com-
seu discurso revelou, há mais de 20 anos, seus temores sobre o estado do am- plexas relações, envolvendo aspectos ecológicos, psicológicos, legais, políticos, sociais,
biente e sua preocupação com o futuro da humanidade: “[...] Sou apenas uma econômicos, científicos, culturais e éticos.10 Este instituto legal busca fundamentar
criança e não tenho as soluções, mas quero que saibam que vocês também não modos de vida inovadores baseados na participação democrática, na justiça so-
têm. Vocês não sabem como reparar os buracos da camada de ozônio. Vocês cial e modos de apropriação dos recursos naturais.
134 não sabem como salvar os salmões de águas poluídas. Vocês não podem res- Constata-se, portanto, que a crise ambiental é uma crise do nosso tempo e 135
suscitar os animais extintos. Vocês não podem recuperar as florestas que um o enfrentamento dessa crise requer entendimento do caráter público dos bens
dia existiram onde hoje é deserto. Se vocês não podem recuperar nada disso, ambientais, que embora apresente diferenças nacionais e regional é, antes de
então, por favor, parem de destruir! Aqui vocês são os representantes de seus tudo, um problema global, pois todos dependem de um ambiente equilibrado
governos, homens de negócios, administradores, jornalistas ou políticos. Mas para viver. Para isso, portanto, a educação, voltada para a cidadania ambiental,
na verdade são mães e pais, irmãos e irmãs, tias e tios, e todos também são fi- deve envolver a participação da sociedade cotidianamente.
lhos. Sou apenas uma criança, mas sei que todos nós pertencemos a uma sóli-
da família de cinco bilhões de pessoas, e ao todo somos 30 milhões de espécies
compartilhando o mesmo ar, a mesma água e o mesmo solo. Nenhum governo,
3) Educação Ambiental e Participação Social
nenhuma fronteira poderá mudar essa realidade [...]”.
Passados 40 anos da primeira reunião mundial sobre Meio Ambiente e
A participação como eixo norteador das práticas sociais de educação ambiental
Desenvolvimento, em Estocolmo, e 20 anos do discurso de Servrn Cullis, acon-
representa a possibilidade de motivar e sensibilizar as pessoas para transformar
teceu a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável
as diversas formas de atuação na defesa da qualidade de vida. Proporciona a
(CNUDS), conhecida também como Rio+20, cujo objetivo era discutir a re-
reorganização da sociedade num processo de aprendizagem social capacitando
novação do compromisso político com o desenvolvimento sustentável, firmado
para a constituição de identidades coletivas e de comunidades em espaços de
em 1992, na cidade do Rio de janeiro.
convivência, conduzindo ao caminho do exercício da cidadania.
Considerado o maior evento já realizado pela Nações Unidas, o Rio+20
Do ponto de vista dos ambientalistas, participar é debater a questão am-
contou com a participação de chefes de estados de cento e noventa nações que
biental considerando a administração do espaço comum, partindo do pressu-

9) Disponível em: <http://timblindim.wordpress.com/2008/05/04/discurso-desevern-cullis-


suzuki-na-rio-eco-92>. Acesso em: 17 mar.2013. 10) Lei nº. 9.795-99, artigo 5º, I

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posto de que os recursos naturais são finitos. É oportuno citar que a disponi- Em sua entrevista, Paulo fala da inquietação que despertou a necessidade
bilização da informação é uma condição essencial para que possamos falar ou de discussão sobre as causas que induziram uma crise vivenciada por uma cole-
não de participação, porém não basta disponibilizar informação, é necessário tividade, da busca em viabilizar a participação nos processos de gestão do meio
que as pessoas possam dialogar sobre essas informações, trocar ideias, senti- ambiente, do papel que cabe ao Estado na gestão desta crise e da importância
mentos e afetividades, se sentir envolvidas com aquela temática.11 da representação efetiva da sociedade organizada nos processos decisórios no
Sob este prisma de análise, verifica-se que a informação, nos últimos tem- que tange as ações que interferem na qualidade do ambiente em que vivem.
pos, tem assumido um papel cada vez mais relevante abrindo espaços, cada vez Constata-se, neste caso a ser citado, a importância, na prática da gestão
maiores, para a discussão sobre participação colocando como necessidade a arti- ambiental, da presença do Estado e da Sociedade Civil se complementando,
culação de saberes e fazeres para responder às complexas questões socioambien- agindo de forma compartilhada a partir de objetivos comuns. Certo é que esta
tais, contribuindo para o alcance destes objetivos no cenário mundial e local. parceria exigiu dos envolvidos transparência, humildade, compromisso com a
Nesta perspectiva, aponta-se a educação ambiental como mecanismo de causa ambiental e postura negociadora. Tudo isto reunindo condições neces-
ampliação de espaços decisórios e difusão de conhecimento onde diferen- sárias para nortear as discussões da problemática socioambiental.
tes grupos sociais são capacitados e se organizam para alcançar resultados Neste cenário, a narrativa de Paulo Esteves, Engenheiro Civil aposentado,
eficazes, possibilitando intervir na prevenção ou resolução dos problemas exemplifica a importância da participação na resolução dos conflitos, imbuído
ambientais. Constitui-se, assim, um espaço com potencialidade estratégica, de uma cidadania ambientalmente correta, conforme proposta nas diretrizes
capaz de difundir diferentes saberes que possam promover uma sociedade da Agenda 21 global, considerada um instrumento fundamental para a cons-
sustentável, partindo do pressuposto que o recurso é finito e que as mudan- trução da democracia participativa e da cidadania ativa no País.
ças só podem ocorrer a partir de uma nova consciência, uma nova forma de Constata-se a partir de seu depoimento a importância do conhecimento e
136 se comportar e de consumir. consciência ambiental na resolução de conflitos socioambientais causados pela 137
Questiona-se, porém, as possibilidades de participação que estão colo- emissão de pó preto pelas Empresas Vale e Arcelor, localizadas ao norte da ci-
cadas para os cidadãos e qual o peso desta participação nos discursos e na dade de Vitória. Este depoimento foi-nos cedido dia 18 de março de 2013,
lei, pois, embora tenha disponível uma legislação permeada por dispositi- numa manhã de segunda-feira, em um espaço público.
vos que buscam viabilizar a participação popular, observa-se que o arcabou- Paulo relata que, “quando trabalhava em Salvador, Bahia, presenciou operários
ço jurídico, somente, é insuficiente para proporcionar a efetiva participação tendo contato com o Clinquer, cujo pó, espalhado pelo vento, em contato direto com os
da sociedade nas decisões tomadas acerca do uso e apropriação dos recursos operários suados, causaram queimaduras gravíssimas, como consequência da reação
naturais. Faz-se então necessário a contribuição do Estado disponibilizando química entre a cal, contida no pó, e o suor”. A partir desta vivencia, ao observar o
instrumentos que viabilizem o cumprimento das prerrogativas legais para caso em 1972, com o apoio da imprensa local, da Secretaria de Meio Ambiente
que esta participação se dê de fato. e da Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito
Sob esta visão ressalta-se a tarefa estatal de assegurar a materialização de Santo, conseguiram evitar que o navio atracasse até que a Empresa responsá-
uma política pública e seus instrumentos, para que a participação comunitá- vel pela entrada da substância, no Estado, neste caso a Empresa Vale, executas-
ria seja efetiva, através da prestação de informações ambientais, usando como se todos os ajustes necessários para um descarregamento seguro.
forte instrumento uma educação ambiental capaz de promover processos par- Paulo cita “que esta negociação levou 45 dias, contando o dia da chegada do na-
ticipativos baseados em conhecimento de causa e sentido de responsabilidade. vio até seu descarregamento o que resultou na decisão da Vale de não descarregar
Isto posto, como caso concreto da efetiva participação da comunidade, desta- mais esta substância até o dia de hoje.
ca-se a participação do líder de nove Associações de Moradores junto a Empresa Diante do satisfatório resultado de sua participação como cidadão e do im-
Vale, localizada no Município de Vitória, Espírito Santo, Sr. Paulo Esteves. portante espaço dado pela mídia começou a questionar sobre a emissão de pó
preto causador de vários transtornos na comunidade local. Havia fortes indí-
11) UEMA. E. E, Pensando e Praticando a educação no processo de gestão ambiental: controle cios mostrando que a Vale e a Arcelor Mital eram as principais empresas res-
social e participação no licenciamento. Brasília: IBAMA, 2006. ponsáveis pela emissão dessa substância.

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Como cidadão, Paulo, tornou-se o porta voz na relação conflituosa entre de Acompanhamento do referido termo com representantes da Empresa Vale,
moradores e Empresa com apoio da mídia local. Recebeu então o convite para do MPES, do IEMA e da Associação dos moradores. Às reuniões são mensais
participar de um encontro para exposição de fatos, onde compareceu acom- durante todo o período de implantação do TCA, com representação fixa do
panhado por outro membro da associação dos moradores, porém, “descobriu representante das associações. Na visão de Paulo “as respostas veem com mais
ao chegar ao local, que seria a primeira audiência pública sobre licenciamento facilidade com negociação interna”.
ambiental da oitava usina da Vale”. Hoje, na conclusão de Paulo, “os resultados positivos que têm contribuído
É importante ressaltar, com relação a audiências públicas, o § 2º artigo 37 para a resolução dos conflitos são conquistados em reuniões com participação
do Decreto estadual 1777/2007, versando que ”a convocação da audiência públi- ativa e incondicional do representante das associações dos moradores e das co-
ca será fixada em edital e publicada no Diário Oficial do Estado e em jornal de ex- munidades afetadas”. Afirma que a principal fonte de poluição não é mais a
pressiva circulação na área de influencia direta do empreendimento, com antecedên- Vale e que a posição da Empresa no esforço em atender aos anseios da popu-
cia mínima de 07 (sete) dias úteis”. E ainda, a declaração do art. 31, do referido lação local tem amenizado o conflito das negociações.
decreto afirmando que: “A participação pública no processo de licenciamento am- Enfatiza o entrevistado que o papel intermediador do Estado, através do
biental tem caráter informativo e consultivo, servindo de subsídio para tomada de Ministério Público local, com a presença do órgão licenciador (IEMA) tem sido
decisão do órgão ambiental”, que confirma que a Audiência Pública é uma forma fundamental para as conquistas que atendem aos anseios da população afetada.
inequívoca de participação. Acrescenta ainda, como resultado da importante participação da sociedade
Diante do fato vivenciado, Paulo “percebeu-se ultrajado em seu direito de ci- organizada na resolução dos conflitos, “a ação civil pública em face da empresa
dadão, retirou-se do local seguido do único representante da associação de moradores apontada, anteriormente, como a segunda maior emissora do pó na região, ins-
afetados presentes, frustrando assim esta reunião”. taurada pelo Ministério Publico em parceria com as associações de moradores”.
138 Segundo Paulo, “uma segunda reunião foi marcada com participação da co- Diante do exposto, percebe-se a importância da participação da sociedade 139
munidade e representante das associações, porém, mais uma vez houve a tenta- organizada na resolução de conflitos ambientais, considerando, neste contexto,
tiva de camuflar a participação social, onde o mais agravante foi à condição de a bagagem de conhecimentos do depoente, adquirida através de um processo
silêncio dos moradores e de seus representantes imposta pelo órgão licenciador”. de educação que o tornou um cidadão questionador com conhecimentos ne-
O representante das associações de moradores observou a influência social- cessários para transformar a sociedade em que vive, conforme visão da Política
mente negativa da empresa sobre o órgão e as pessoas que deveriam defender os Nacional de Educação Ambiental (Lei nº 9.795-99), apontando como eficaz,
direitos dos cidadãos envolvidos. O depoente foi provocado e quebrou a regra do o processo de educação ambiental, na medida em que possibilita ao indivíduo
silêncio, assim, com apoio da imprensa televisada, fez varias denúncias e teve voz. perceber-se como sujeito social capaz de compreender a conflituosa relação so-
Neste cenário, de posse de resultado que apontava a Empresa Vale como ciedade – natureza, e também agir em prol da prevenção de riscos e danos am-
principal responsável pela emissão de pó, e após vários debates foi requisi- bientais causados por intervenções no ambiente físico-natural.
tada e atendida, junto ao Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Citando Carvalho12 no texto introdutório do Tratado de Educação
Hídricos – IEMA e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente- SEAMA, uma Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, “a educa-
Notificação Premonitória para suspensão do licenciamento devido às condi- ção ambiental como um processo dinâmico em permanente construção deven-
cionantes. Aconteceu então à terceira reunião, nos moldes de audiência pú- do, portanto, propiciar a reflexão, o debate e a sua própria modificação”.
blica, com participação dos representantes da Empresa Vale, do IEMA, da Para a referida autora [...] “o papel central da educação na formação de
SEAMA, do Ministério Público do Estado do Espírito Santo – MPES e valores e na ação social” [...] o “comprometimento com o processo educati-
Associação de Moradores dos bairros afetados. vo transformador através do envolvimento pessoal, de nossas comunidades
Esta audiência obteve grande repercussão na imprensa local, e com efetiva e nações para criar sociedades sustentáveis e equitativas”. E conclui que o
atuação do MP resultou na assinatura do Termo de Compromisso Ambiental
(TCA), lastreado na legislação do Termo de Compromisso de Conduta 12) CARVALHO, Isabel Cristina de M. Educação Ambiental: a formação do sujeito ecológi-
(TAC). Para garantir o cumprimento do compromisso foi criada a Comissão co-6. ed.-São Paulo: Cortez, 2012.

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objetivo é “tentar trazer novas esperanças e vida para nosso pequeno, tumul- do em vista à sua atuação jurisdicional. Esta interação, da educação ambiental
tuado, mas ainda belo planeta”. e o Ministério Público, pode se dar por meio de instrumentos legais de que
Do exposto, constata-se que a própria comunidade constitui-se e efetiva-se este último dispõe em seu acervo jurídico, no caso o termo de ajustamento de
em parceiro vital na defesa do meio ambiente ecologicamente saudável, desde conduta (TAC) ou Termo de Compromisso Ambiental (TCA), que são ins-
que sensibilizada e capacitada para tal. Destaca-se, também, a participação so- trumentos legais de atuação extrajudicial com propostas sócio-educacionais
cial como valioso instrumento de uma educação ambiental que valoriza as di- efetivas para combater os desmandos provocados pelo homem na natureza.
ferentes formas de conhecimento, acumulado e produzido socialmente, capaz Nesta visão, o Ministério Público do Estado do Espírito Santo assinou
de promover a cooperação e o diálogo entre indivíduos e instituições, com fi- um Termo de Compromisso Ambiental (TCA) com a Secretaria de Estado
nalidade de criar novos modos de vida, converter cada oportunidade em expe- de Meio Ambiente e recursos Hídricos (SEAMA), Secretaria Estadual
riências educativas na construção de uma sociedade sustentável. de Educação e Cultura (SEDU) e o Instituto Estadual de Meio Ambiente
e Recursos Hídricos (IEMA), com participação intensiva e testemunhal da
Comissão Interinstitucional de Educação Ambiental (CIEA).
O referido Termo visa a estabelecer ações destinadas à implementação
4) Ministério Público E Educação Ambiental
da Lei da Política Nacional e Estadual de Educação Ambiental, especifica-
mente, no âmbito da educação formal, com vistas à construção de valores
A Constituição Federal de 1988, criada em resposta aos anseios e necessidade
sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para
do ser humano, traz em seu bojo uma série de direitos fundamentais cujo ob-
a conservação do meio ambiente. Com o propósito de se alargar as discus-
jetivo é a construção de uma sociedade mais justa e igualitária enfatizando a
sões e fazer cumprir o objeto deste Termo, foi instituída uma Comissão de
importância do bem estar do homem13. Esses direitos fundamentais, com for-
140 Acompanhamento, composta por 5 (cinco) membros, entre os quais 2 (dois) 141
ça constitucional, são capazes de interferir no modo de ação do Estado que
são do Ministério Público Estadual.
é obrigado a observar e garantir este preceito determinado na Carta Magna.
Com efeito, para o Estado do Espírito Santo, o Ministério Público, como
Insta esclarecer que, por serem direitos relacionados a valores humanos forta-
órgão jurisdicional, tem sido um importante aliado na formulação de uma
lecendo o conceito de bem estar geral, vêm imbuídos de uma relação umbilical
nova proposta pedagógico educacional, participando efetivamente na ges-
com a necessidade de proteção ao meio ambiente exigindo, assim, políticas que
tão articulada da Educação Ambiental no Estado. As avaliações periódi-
visem à efetivação desses direitos.
cas do Termo de Compromisso, estreitamente acompanhadas pela institui-
Neste contexto, ressalta-se a proteção concebida ao meio ambiente no artigo
ção Ministério Público e pela sociedade civil organizada, representada pela
225 da Constituição Federal, no qual a condição de bem estar é indispensável
CIEA, demonstram avanços visíveis na área da educação ambiental, e evi-
para a sobrevivência humana, associado com a qualidade do lugar em que vive.
dencia uma soma de esforços na direção de contribuir com a adoção de uma
Assim, a instituição de políticas públicas visando a proteção do meio ambien-
atitude mais participativa da sociedade.
te, tornou-se obrigatória, tendo em vista que este é um fator determinante na
Diante deste caminho a ser percorrido, torna-se imprescindível a partici-
busca da qualidade de vida. Nesse sentido, ressalta-se a responsabilidade esta-
pação de uma Instituição Pública que se dispõe a abraçar a causa ambiental
tal de analisar as necessidades humanas pactuadas com o desenvolvimento de
na defesa do direito de todos, coibindo os excessos praticados em prejuízo do
atividades que zelam pela harmonia da relação do homem com o meio natural.
meio ambiente, acompanhando o cumprimento das obrigações do Termo de
Cabe citar, o artigo 127, caput, da Constituição Federal de 1988, que apre-
Compromisso e intermediando as negociações na área da educação ambien-
senta o órgão do Ministério Público como instituição pública defensora da or-
tal local. Assim, a interação da educação ambiental com um órgão de atuação
dem jurídica, do regime democrático e dos interesses individuais indisponíveis.
jurisdicional tem se mostrado extremamente proveitosa para que, lado a lado,
Destaca-se ainda o referido órgão como aliado da Educação Ambiental, ten-
façam triunfar a causa ambiental no Estado.
Em suma, o Ministério Público, na sua função constitucional de represen-
13) Brasil, Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. tar a sociedade na esfera judicial, tem sido um auxiliar valioso na árdua tarefa

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da educação ambiental. Desempenha também, importante papel no proces- cipação, os valores éticos como valores fundamentais para fortalecer a com-
so educacional através de instrumentos legais de atuação extrajudicial, que é plexa interação entre sociedade e natureza.
o caso do termo de Ajustamento de Conduta (TAC), cujo objeto é prevenir e Nesta direção, motivar e sensibilizar para a educação voltada para a cidada-
corrigir práticas atentatórias ao meio ambiente, figura assim, como órgão pú- nia representa a possibilidade de preencher vazios e promover a inserção so-
blico preparado para atender as demandas sociais na área ambiental, cuidando cial pela presença crescente de uma pluralidade de atores que, pela ativação do
para que as pessoas, em sua totalidade, possam contar com um meio ambiente seu potencial de participação, terão cada vez mais condições de intervir con-
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. sistentemente e sem tutela nos processos decisórios de interesse público, legi-
timando e consolidando propostas de gestão baseadas na garantia do acesso à

H Conclusão
informação e na consolidação de canais abertos para a participação, que são
precondições básicas para a institucionalização do controle social.
Concluímos, afirmando que o desafio político da sustentabilidade, apoia-
Há diante da espécie humana um grande desafio: como agir ante os graves de- do no potencial transformador das relações sociais encontra-se estreitamen-
sequilíbrios verificados na natureza considerando que os distúrbios ambientais te vinculado ao processo de fortalecimento da democracia e da construção da
são verificados no mundo todo? O modo despreocupado de viver e o incenti- cidadania. A sustentabilidade traz uma visão de desenvolvimento que busca
vo ao consumismo desenfreado distanciam do ideário de sustentabilidade que superar o reducionismo e estimula um pensar e fazer sobre o meio ambiente
visa garantir um ambiente saudável para as presentes e futuras gerações. O mo- diretamente. Percebe-se então que a promoção da informação e da educação
mento global denota sério desconforto socioambiental expresso na má quali- ambiental, instrumentos valiosos de transformação política e social, é determi-
dade de vida, na violação dos valores humanitários de solidariedade e coopera- nante para o redirecionamento da cultura da insustentabilidade, pois, ajudam
142 ção, expondo ao risco a dignidade da pessoa humana. O homem não se enxerga à coletividade a tomar consciência da responsabilidade da atuação cidadã em 143
como parte da natureza e tem dificuldade de estabelecer critérios para utiliza- prol de um meio ambiente ecologicamente equilibrado.
ção dos recursos naturais, colocando como incerto o futuro da vida.
Percebe-se assim que o sistema de poder que sustenta a direção política
e econômica será mantido até que a sociedade civil dotada de verdadeira in-
serção social, educada, consciente e participativa, ocupe lugar na condução e
adaptação da ordem pública e social, tendo compreensão sistêmica de todos
os temas relacionados à qualidade de vida e saúde e que têm relação direta
com o meio ambiente. Cabe acreditar que a sociedade civil educada com en-
foque ambiental será dotada de capacidade para compreender a ordem jurí-
dica e social, podendo assumir um papel mais participativo no controle da
comunidade e do Estado, provocando a ação socioambiental mais efetiva da
Administração Pública.
Neste cenário a educação ambiental foi apresentada com proposta de um
viver coerente com os ideais de uma sociedade sustentável e democrática, vi-
sando criar condições para a ruptura com a cultura política dominante, atra-
vés da educação para a participação. Uma educação capaz de avaliar velhas
fórmulas de vida propondo ações concretas, proporcionando a transforma-
ção do sistema produtivo e do consumismo em uma sociedade baseada na
solidariedade, afetividade e na cooperação, ou seja, visando a justa distribui-
ção de seus recursos entre todos, facilitando o diálogo entre saberes, à parti-

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7
As Tecnologias da Informação e
Comunicação e a Educação Ambiental no
Cotidiano Escolar

Wagner Scopel Falcão1


Instituto Federal do Espírito Santo

Ítalo Severo Sans Inglez2


Instituto Federal do Espírito Santo

Sumário: Introdução. 1 A educação e a formação para a cidadania.


2 A educação ambiental. 2.1 Breve histórico sobre a educação ambiental.
2.2 Debates sobre a Educação Ambiental em um contexto nacional. 145
3 As Tecnologias da Informação e Comunicação (Tics) e a Educação
Ambiental no Cotidiano Escolar. 3.1 A Terceira Revolução Industrial e
As Tics na Sala de Aula. 3.2 A Educação Ambiental por Meio das Tics:
Algumas Possibilidades. 3.2.1 As músicas. 3.2.2 Os vídeos. Conclusão

1) É Licenciado e Bacharel em Geografia pela Universidade Federal do Espírito Santo e Li-


cenciado em Pedagogia pela Faculdade Capixaba da Serra. É especialista em Informática
na Educação e mestrando no Programa de Pós-graduação em Educação pela Universi-
dade Federal do Espírito Santo. Atualmente é pedagogo do Instituto Federal do Espírito
Santo – campus Serra e é professor de Geografia no projeto Pré-universitário Dandara,
CESAM/Salesiano, Vitória – ES.
2) É Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Espírito Santo e Licenciado
em Pedagogia pela Faculdade Capixaba da Serra. É especialista em Educação de Jovens e
Adultos. Atualmente é pedagogo no Instituto Federal do Espírito Santo – campus Ibati-
ba, atuando diretamente nos cursos técnicos em Meio Ambiente e Floresta.
As Tecnologias da Informação e Comunicação e a Educação Ambiental no Cotidiano Escolar Wagner Scopel Falcão m Ítalo Severo Sans Inglez

H Introdução 1) A Educação e a Formação para a Cidadania


Este artigo tem seus primeiros passos no curso de graduação em Geografia dos
Vivemos em uma sociedade dividida por classes e marcada por desigualdades
autores no ano de 2008, na Universidade Federal do Espírito Santo. Em busca de
sociais, onde poucos têm acesso a uma educação de qualidade. Estes poucos
alternativas metodológicas de ensino, com a disciplina Estágio Supervisionado,
detêm o poder e procuram a todo custo manter o “status quo”. Neste cenário, a
com o Trabalho de Conclusão de Curso3 orientado durante nossa graduação e
educação serve como ferramenta para a classe dominante disseminar seus va-
com os muitos anos de formação continuada (especializações e mestrado), bem
lores de forma subliminar e assim serem aceitos e naturalizados.
como as experiências adquiridas durante a atuação profissional (docência e su-
Ao observarmos a história da educação brasileira com um olhar mais de-
pervisão pedagógica), e as recentes pesquisas de cunhos teórico e empírico pro-
tido e investigativo, o que podemos perceber de maneira clara é que desde a
movidas pelos autores, foi possível adquirir uma visão ressignificada sobre me-
catequização dos povos indígenas até as políticas atuais que propõem e imple-
todologias de ensino e a Educação Ambiental em um contexto escolar.
mentam diversos projetos educacionais, existe uma nítida relação de poder que
Nesse processo, os professores Vilmar José Borges, Marisa Terezinha Rosa
delega à educação, especificamente à escola, a tarefa de formar cidadãos que se
Valladares, Regina Frigério, Gisele Girardi e Leonardo Matiazzi Corrêa fo-
encaixem e sirvam à ordem social e econômica vigente, além de transmitir a
ram verdadeiros orientadores e a eles somos gratos por todas as aprendizagens.
ideologia de determinada classe social.
Durante todo esse período, foi possível perceber que questões relativas ao
Hoje, a Constituição da República Federativa do Brasil de 19884 define
ensino, no que tange a importância da educação, a formação para a cidada-
as normas para a educação no país. O artigo 205 da Constituição deixa claro
nia e a Educação Ambiental, estavam muito presentes nas escolas e nos cur-
qual seria o verdadeiro papel da educação brasileira: formar para a cidadania
sos de formação de professores. Em meio a esse contexto, surgem nas práticas
plena: “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família,
146 educativas dos professores nas escolas muitos projetos que visam trabalhar a 147
será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao ple-
Educação Ambiental, visto que temáticas como a grande produção de lixo, o
no desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
desperdício e a escassez de água, a emissão de gases tóxicos, as mudanças cli-
qualificação para o trabalho.”
máticas globais etc. passaram a serem discussões cotidianas da sociedade.
Em 1996, atendendo o previsto na Constituição Federal, a educação
Inquietos com tantas demandas que atravessavam a escola, passamos a fa-
brasileira ganha uma nova aliada: a Lei de Diretriz e Bases da Educação
zer alguns questionamentos, do tipo: Qual é o papel da escola? O que é formar
Nacional – LDBEN (Lei nº 9394/96). É ela que a partir deste momento
para a cidadania? O que é a Educação Ambiental? Como as discusões sobre
direciona e traça as metas para a educação no Brasil, onde vários artigos ex-
Educação Ambiental ocorreram a nível global e nacional? Como as tecnolo-
pressam a preocupação com uma educação que desenvolva a aprendizagem
gias atuais podem contribuir para a formação dos alunos quanto às demandas
continuada e a criticidade do aluno.
ambientais do século atual?
De fato, temos observado que apesar desses avanços na legislação em favor
Diante desses questionamentos que se deu nossa busca. Assim, objetivando
de uma educação cidadã, o que muitas vezes tem ocorrido é o inverso, onde
desenvolver e socializar reflexões e possibilidades de práticas docentes que se
nem sempre as nossas escolas têm propiciado formar seus alunos nessa direção.
utilizem das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), com este ar-
Em muitos casos elas têm se preocupado mais em prepará-los para as provas
tigo, visamos contribuir para as discussões urgentes e imediatas sobre a impor-
de ingresso nas universidades e para o mercado de trabalho deixando em se-
tância do meio ambiente para a proteção dos direitos humanos.
gundo plano a formação cidadã.
Nessa perspectiva, ao discutir sobre a formação cidadã dos sujeitos, leva-se
3) ALMEIDA JUNIOR, Edvaldo Dias de; BAPTISTA, Rafael Costa; FALCÃO, Wagner
Scopel; INGLEZ, Ítalo Severo Sans; LIMA, Welder Rodrigues de; PEREIRA, Thiago Bar-
celos. Aula de campo: uma alternativa para o ensino de Geografia na Região Metropolitana 4) BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
da Grande Vitória-ES. 2008. 86 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Geo- DF: Senado Federal: 1988. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/legislacao/const/
grafia) – Centro de Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008. con1988/CON1988_05.10.1988/CON1988.pdf >. Acesso em: 10 fev. 2014.

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em conta uma gama de variáveis, dentre elas os princípios da proteção e defe- de, à igualdade de direitos, enfim, direitos civis, políticos e sociais. Mas este
sa civil e a Educação Ambiental, como ressalta a Lei nº 12.608/12, que dispõe é um dos lados da moeda. Cidadania pressupõe também deveres. O cidadão
sobre a Política Nacional de proteção e Defesa Civil.5 tem de ser cônscio das suas responsabilidades enquanto parte integrante de
Ainda, nesse tocante que, na atualidade, a “informação” se confunde com um grande e complexo organismo que é a coletividade, a nação, o Estado,
a “formação”.6 O tempo da informação é rápido e em pouco tempo se torna para cujo bom funcionamento todos têm de dar sua parcela de contribuição.
obsoleto. Já o processo de formação envolve outro tempo, aquele da reflexão. Somente assim se chega ao objetivo final, coletivo: a justiça em seu sentido
Assim entendemos que o processo de “formação” é muito mais produtivo para mais amplo, ou seja, o bem comum.8”
formar cidadão, por exigir um tempo considerável, requerer críticas e pensar o Assim, evidenciamos a importância de se voltar à educação para a formação
mundo sob um olhar diferente. Por outro lado, mesmo a informação sendo efê- da cidadania. Ser cidadão vai além de cumprir com os direitos e os deveres que
mera e correndo o risco de logo cair no esquecimento da sociedade, ela compõe o Estado propõe. Exercer a cidadania é lutar pelos direitos que lhe cabe, por
o processo de formação dos sujeitos. uma sociedade mais justa e igualitária, pela preservação de um meio ambiente
Assim, o ato de formar um cidadão exige muitos esforços, desde os da fa- de qualidade e pela construção de um mundo mais ético nas instâncias em que
mília como o do professor. Para o professor o caminho vai desde criar vínculos atua objetivando a proteção dos direitos humanos.
afetivos com o aluno a formar a criticidade do mesmo. Nesse processo o papel A cidadania necessita da participação social para assegurar sua concretiza-
do professor é fundamental, pois é ele que dará os devidos direcionamentos aos ção, dinamismo, crescimento e maturação. Em outras palavras, para que deixe
alunos, os quais foram, provavelmente, incorporados em seus anos de formação de ser apenas uma ideia ou consciência de diretos passiva e assuma um caráter
acadêmica e/ou continuada. ativo de construção e materialização de conquistas requer também a participa-
Nesse caminho Milton Santos retrata o papel que a educação deveria ter ção contínua a fim de se alimentar e se manter viva evitando-se, assim, a perda
148 na formação cidadã: “A Educação não tem como objetivo real armar o cida- ou regressão de direitos já reconhecidos socialmente. 149
dão para uma guerra, a da competição com os demais. Sua finalidade, cada
vez menos buscada e menos atingida, é a de formar gente capaz de se situar
corretamente no mundo e de influir para que se aperfeiçoe a sociedade hu-
2) A Educação Ambiental
mana como um todo.”7
Ser cidadão, porém, não significa somente lutar por direitos. Lutar por um
A Educação Ambiental, como campo de atividade e de saber, já nasce como
mundo cidadão implica em cumprir com os deveres pelo qual somos incumbi-
um fenômeno complexo e multidimensional, que reúne contribuições de di-
dos dentro da nossa sociedade, do nosso lugar de vivência, nosso meio de ação.
versas disciplinas e matrizes político-pedagógicas e filosóficas de diversos ato-
Nessa direção, Marcos Santana assim preconiza: “Ser cidadão é ter cons-
res e movimentos sociais. 9
ciência de que é sujeito de direitos. Direitos à vida, à liberdade, à proprieda-
Esse campo da Educação Ambiental, se comparada a outros da educação,
pode ser considerado recente, pois, de acordo com a literatura estudada, come-
5) BRASIL. Lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção çou a ser pensado com mais força no final do século XX, mais especificamente
e Defesa Civil - PNPDEC; dispõe sobre o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil em meados da década de 1960, início da década de 1970.
- SINPDEC e o Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil - CONPDEC; autoriza a
criação de sistema de informações e monitoramento de desastres; altera as Leis nos 12.340, de Foi na busca de respostas teóricas e práticas de enfrentamento da crise am-
1o de dezembro de 2010, 10.257, de 10 de julho de 2001, 6.766, de 19 de dezembro de 1979,
8.239, de 4 de outubro de 1991, e 9.394, de 20 de dezembro de 1996; e dá outras providên-
cias. 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20112014/2012/Lei/
L12608.htm>. Acesso em: 02 abr. 2014. 8) SANTANA, Marcos Silvio de. O que é cidadania. [S.I.]: Artigos Jurídicos, [200-]. Dis-
ponível em: <http://www.advogado.adv.br/estudantesdireito/fadipa/marcossilviodesantana/
6) CARLOS, Ana Fani Alessandri (Org.). A geografia na sala de aula. São Paulo: Contexto, cidadania.htm >. Acesso em: 7 out. 2008.
1999.
9) LIMA, Gustavo Ferreira da Costa. Educação Ambiental no Brasil: Formação, identidades e
7) SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 4. ed. São Paulo: Nobel, 1998, p. 126. desafios. Campinas: Papirus, 2011, p. 100.

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biental que sempre se expôs a questão de como a educação poderia ser um ins- Ao contrário, com um conhecimento mais profundo e uma ação mais pruden-
trumento para criar e promover valores, saberes, sensibilidade e atitudes favo- te, podemos conseguir para nós mesmos e para nossa posteridade, condições
ráveis à preservação do meio ambiente. melhores de vida, em um meio ambiente mais de acordo com as necessidades e
Segundo Lima10, “Os primeiros analistas da questão ambiental contempo- aspirações do homem [...] Para chegar à plenitude de sua liberdade dentro da
rânea consideravam que, ao lado de outras iniciativas políticas, jurídicas, insti- natureza, e, em harmonia com ela, o homem deve aplicar seus conhecimentos
tucionais, econômicas e tecnológicas, a educação tinha um importante papel a para criar um meio ambiente melhor.12”
cumprir na mudança das mentalidades em relação à problemática ambiental.” Ainda na Declaração de Estocolmo, no princípio 19 (dezenove): “É indis-
Nessa perspectiva, a atuação de organismos internacionais como a pensável um esforço para a educação em questões ambientais, dirigida tanto às
Organização das Nações Unidas - ONU e a Organização das Nações Unidas gerações jovens como aos adultos e que preste a devida atenção ao setor da po-
para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO contribuíram para a cons- pulação menos privilegiado, para fundamentar as bases de uma opinião pública
tituição do campo da Educação Ambiental, pois passaram a criar diretrizes bem informada, e de uma conduta dos indivíduos, das empresas e das coleti-
para a abordagem e estudos dessa área de conhecimento. vidades inspirada no sentido de sua responsabilidade sobre a proteção e me-
lhoramento do meio ambiente em toda sua dimensão humana. É igualmente
essencial que os meios de comunicação de massas evitem contribuir para a de-
terioração do meio ambiente humano e, ao contrário, difundam informação de
2.1) Breve Histórico Sobre A Educação Ambiental
caráter educativo sobre a necessidade de protegê-lo e melhorá-lo, a fim de que
o homem possa desenvolver-se em todos os aspectos.13”
Podemos observar a grande influência que organismos internacionais como a
Neste contexto, impulsionada pela Conferência de Estocolmo, a impor-
ONU e a UNESCO tiveram para a criação e o fortalecimento da Educação
150 tância da Educação Ambiental cresceu em âmbito mundial e, consequente- 151
Ambiental em âmbito mundial.
mente, outros eventos e mais debates sobre o assunto começaram a acontecer.
De acordo com o Portal MEC11, foi na década de 1960 que hou-
Em 1975 a UNESCO realizou em Belgrado o Encontro Internacional em
ve a criação de grupos para se debater sobre a importância desse tema. O
Educação Ambiental. Foi nesse encontro que surgiu o Programa Internacional
Conselho para a Educação Ambiental, fundado no Reino Unido, e o Clube
de Educação Ambiental - PIEA, no qual foram formuladas orientações que
de Roma, que publicou em 1972 o relatório “Os Limites do Crescimento
abordavam a Educação Ambiental de forma continuada, multidisciplinar, in-
Econômico”, foram os primeiros grupos surgidos com foco na importância
tegrada às diferenças regionais e voltada para os interesses nacionais.
sobre a Educação Ambiental.
Ainda na década de 1970, a UNESCO realizou no ano de 1977 a Conferência
Na década de 1970 houve a primeira Conferência das Nações sobre
Intergovernamental de Educação Ambiental em Tbilisi, na Geórgia, ex-UR-
o Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, na qual foi constituída a
SS, onde os objetivos, as características da Educação Ambiental e as estra-
Declaração de Estocolmo. Neste documento, foram descritos 7 (sete) tópicos e
tégias no plano nacional e internacional foram delineados. Novamente a
26 (vinte e seis) princípios. O sexto tópico da Declaração diz: “Chegamos a um
UNESCO, dessa vez em conjunto com o Programa das Nações Unidas para o
momento da história em que devemos orientar nossos atos em todo o mundo
Meio Ambiente - PNUMA, realizou na Costa Rica o Seminário de Educação
com particular atenção às consequências que podem ter para o meio ambiente.
Ambiental para América Latina, em 1979.
Por ignorância ou indiferença, podemos causar danos imensos e irreparáveis
Nas décadas de 1980 e 1990 ocorreram inúmeras ações e congressos que ti-
ao meio ambiente da Terra do qual dependem nossa vida e nosso bem-estar.

12) ONU, Organização das Nações Unidas. Conferência das Nações Unidas, Estocolmo, 1972.
10) Idem. Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. Esto-
colmo: ONU, 1972. Disponível em: <http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/estocol-
11) BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Um Pouco da História da Educação Ambien- mo1972.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2014, p. 2.
tal. Brasília: MEC/SECADI. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/
pdf/educacaoambiental/historia.pdf>. Acesso em: 10 de abr. 2014. 13) Idem, p. 6.

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nham em suas pautas a Educação Ambiental. Entre os eventos realizados po- lização em Educação Ambiental do país.14”
demos citar o Congresso Internacional sobre Educação e Formação Relativas Um marco nacional anterior à Constituição Federal ocorreu em 1987, quan-
ao Meio Ambiente, em Moscou no ano de 1987. Este congresso discutiu sobre do o Conselho Federal de Educação definiu, por meio do Parecer 226, que a
importância da formação de profissionais nas áreas formais e não formais na Educação Ambiental tinha caráter interdisciplinar, oficializando a posição do
Educação Ambiental e na da mesma nos currículos de todos os níveis. governo acerca do debate comum na época, principalmente entre as secretarias
Em 1992, aconteceu a Conferência ONU sobre Meio Ambiente e estaduais e municipais de Educação, se esta deveria ser inserida no ensino for-
Desenvolvimento, conhecida também como Rio 92 ou ECO 92, onde o mal como uma disciplina ou não, apesar de todas as orientações internacionais
Ministério da Educação do Brasil - MEC realizou um evento que discutiu serem refratárias a qualquer tentativa de torná-la uma disciplina específica.15
sobre os resultados das experiências nacionais e internacionais de Educação Em 1997, ocorreu a I Conferência Nacional de Educação Ambiental que
Ambiental e debateu sobre metodologias e currículos na educação. elaborou um documento nacional, conhecido como a Declaração de Brasília,
Nos anos 2000, a Assembleia Geral da ONU, XIV Reunião do Foro de em que constam grandes temas com seus problemas e recomendações. Foram
Ministros de Meio Ambiente da América Latina e Caribe e as XII Jornadas categorizados em Educação Ambiental e as vertentes do desenvolvimento
Pedagógicas de Educação Ambiental também discutiram sobre temas relevan- sustentável, Educação Ambiental formal, Educação Ambiental no processo
tes à Educação Ambiental. de gestão ambiental, Educação Ambiental e políticas públicas, e Educação
No Brasil, ocorreram algumas discussões sobre a questão da Educação Ambiental, ética e formação da cidadania.16
Ambiental, porém esses debates não tinham tanta ênfase como em outros paí- Um ano antes, em 1996, a consolidação de uma nova LDBEN trouxe a
ses. O crescimento desse campo, em território brasileiro, ganhou impulso ape- importância da Educação Ambiental para a formação cidadã, tornando-a ele-
nas a partir da década de 1980. mento obrigatório aos currículos ensino fundamental e médio no país (Art. 26,
152 § 7o).17 A partir desse contexto, foi realizado um movimento em prol da cons- 153
trução de um novo currículo para a educação básica brasileira, tomando como
base esse “novo” momento que a sociedade brasileira estava passando, após
2.2) Debates sobre a Educação Ambiental
uma década de reabertura democrática, da instauração da nova Constituição
em um Contexto Nacional Federal e da criação da LDBEN.
Com isso, foram criados os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN para
Foi a partir da década de 1980, principalmente após a redemocratização do o Ensino Fundamental, que visavam “ampliar e aprofundar um debate edu-
país e com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que foram toma- cacional que envolva escolas, pais, governos e sociedade e dê origem a uma
das várias medidas pelo governo brasileiro que parametrizaram e encaminha- transformação positiva no sistema educativo brasileiro”18. Eles foram propos-
ram o campo da Educação Ambiental como conhecemos atualmente. tos em áreas curriculares (Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, Naturais,
De acordo com Arruda (2001, apud LOUREIRO, pág. 87), “No Brasil,
em particular, a Educação Ambiental se fez tardiamente. Apesar da existência
de registros de projetos e programas desde a década de setenta, é em meados 14) LOUREIRO, Carlos Frederico B. Trajetória e fundamentos da educação ambiental. 4 ed.
da década de oitenta que esta começa a ganhar dimensões públicas de gran- São Paulo: Cortez, 2004, p. 87.
de relevância, até mesmo com sua inclusão na Constituição Federal de 1988. 15) Idem.
Dentre as ações anteriores, é interessante lembrar as primeiras medidas gover- 16) Idem, p. 92.
namentais promovidas pela extinta Sema, que realizou cursos de ecologia para
17) BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da edu-
profissionais do ensino fundamental, e, entre 1986 e 1990, esta, em conjunto cação nacional. 1996. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/tvescola/
com a Capes, CNPq, UnB e Pnuma, o primeiro formato de curso de especia- leis/lein9394.pdf>. Acesso em: 10 de abr. 2014.
18) BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: In-
trodução aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1998, p. 5.

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História, Geografia, Arte, Educação Física e Língua Estrangeira) e em temas cepção do meio ambiente em sua totalidade, considerando a interdependência
de interesses sociais que perpassam as áreas, como Ética, Orientação Sexual, entre o meio natural, o socioeconômico e o cultural, sob o enfoque da sustenta-
Pluralidade Cultural, Saúde, Trabalho, Consumo e Meio Ambiente. bilidade; III - o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, na perspectiva
Para os temas gerais foi criado o documento PCN – Temas Transversais, da inter, multi e transdisciplinaridade; IV - a vinculação entre a ética, a edu-
que discute sobre Educação Ambiental, dentre os demais temas. Nesse con- cação, o trabalho e as práticas sociais; VI - a permanente avaliação crítica do
texto, a Educação Ambiental é discutida a partir de uma perspectiva de uso e processo educativo;  VIII - o reconhecimento e o respeito à pluralidade e à di-
escassez dos recursos naturais da Terra, sendo em grande parte utilizados pelas versidade individual e cultural”. “ Art. 5o São objetivos fundamentais da educa-
indústrias, bem como a degradação dos ambientes urbanizados, colocando em ção ambiental: I - o desenvolvimento de uma compreensão integrada do meio
xeque o modelo de desenvolvimento vigente. Além disso, debate sobre o mo- ambiente em suas múltiplas e complexas relações, envolvendo aspectos ecoló-
mento vivido e sobre a crise ambiental versus crise civilizatória. O documen- gicos, psicológicos, legais, políticos, sociais, econômicos, científicos, culturais e
to propõe ainda a educação como elemento essencial para a transformação da éticos; II - a garantia de democratização das informações ambientais; III - o
consciência ambiental a partir da relação escola-comunidade 19. estímulo e o fortalecimento de uma consciência crítica sobre a problemática
No ano de 1999 foi sancionada a lei n° 9.795, de 27 de abril, que instituiu ambiental e social; IV - o incentivo à participação individual e coletiva, perma-
a Política Nacional de Educação Ambiental. Nesta lei, observamos artigos im- nente e responsável, na preservação do equilíbrio do meio ambiente, entenden-
portantes que servem de base para a implementação e entendimento do campo do-se a defesa da qualidade ambiental como um valor inseparável do exercício
da Educação Ambiental no Brasil, na qual a Educação Ambiental passa a ser da cidadania; V - o estímulo à cooperação entre as diversas regiões do País, em
entendida como “uma prática educativa integrada, contínua e permanente em níveis micro e macrorregionais, com vistas à construção de uma sociedade am-
todos os níveis e modalidades do ensino formal” (Art. 10º). 20 bientalmente equilibrada, fundada nos princípios da liberdade, igualdade, soli-
154 A Lei 9.795/99 entende a Educação Ambiental como “os processos por dariedade, democracia, justiça social, responsabilidade e sustentabilidade; VII 155
meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, co- - o fortalecimento da cidadania, autodeterminação dos povos e solidariedade
nhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conser- como fundamentos para o futuro da humanidade”.
vação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qua- Em 2001 foi criado o Sistema Brasileiro de Informação em Educação
lidade de vida e sua sustentabilidade” (Art. 1º)21, sendo “um componente Ambiental e Práticas Sustentáveis (Sibea), coordenado pelo Ministério do
essencial e permanente da educação nacional, devendo estar presente, de Meio Ambiente, em parceria com instituições de ensino superior, ONGs e re-
forma articulada, em todos os níveis e modalidades do processo educativo, des, tinha por finalidade organizar, sistematizar e difundir as informações pro-
em caráter formal e não formal” (Art. 2º)22. duzidas em Educação Ambiental e articular ações governamentais que se en-
Quanto aos princípios e objetivos da Educação Ambiental no Brasil, a Lei contram fragmentadas24.
de 1999 assim discorre:23 “Art. 4o São princípios básicos da educação ambien-
tal: I - o enfoque humanista, holístico, democrático e participativo; II - a con-
3) As Tecnologias da Informação e Comunicação (Tics)
19) BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Parâmetros Curriculares Nacionais: Temas e a Educação Ambiental no Cotidiano Escolar
transversais. Brasília: MEC/SEF, 1998.
20) BRASIL. Lei nº 9.795, de 27 de abril de 1999. Dispõe sobre a educação ambiental, institui É no contexto do mundo capitalista contemporâneo que se relacionam os pro-
a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências. 1999. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9795.htm>. Acesso em: 18 abr. 2014. cessos de ensino-aprendizagem promovidos nas escolas. Através da interação
entre indivíduos se torna possível conquistar as habilidades necessárias para
21) Idem.
22) Idem.
24) LOUREIRO, Carlos Frederico B. Trajetória e fundamentos da educação ambiental. 4. ed.
23) Idem. São Paulo: Cortez, 2004, p. 94.

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que se possa fazer uso dos recursos tecnológicos de modo eficiente. As abor- todo o desenvolvimento tecnológico decorrente da Terceira Revolução
dagens do processo de ensino-aprendizagem, em geral, convergem para inte- Industrial que trouxe uma nova configuração aos modos pelos quais os seres
ratividade como fator importante para produção de conhecimentos. Logo, as humanos se comunicam, como as inovações tecnológicas ou aperfeiçoamento
relações estabelecidas entre indivíduo-indivíduo e indivíduo-meio permitem das tecnologias pré-existentes.
que sejam geradas experiências que podem se transformar em conhecimento.25 Segundo Canto e Almeida “Cada vez mais as novas tecnologias de infor-
mação e comunicação têm sido incorporadas às práticas da sociedade contem-
porânea. Nossas relações sociais e manifestações culturais são, hoje, intensa-
mente mediadas pelos dispositivos digitais”.29
3.1) A Terceira Revolução Industrial e as Tics na Sala de Aula
Dentre esses dispositivos digitais podem ser citados a televisão, o computa-
dor, a internet, os tablets, os aparelhos telefônicos fixos e móveis, os aparelhos
As revoluções tecnológicas por que passamos recentemente, em especial a par-
de som, os aparelhos de reprodução e gravação de fitas cassetes, DVDs e Blu-
tir da metade do século passado – período da Terceira Revolução Industrial26 –,
Rays, os quadros digitais, e muitos outros existentes no dia a dia das sociedades.
trouxeram muitas mudanças ao cotidiano das pessoas, a partir do surgimento
A escola tem um papel fundamental nesse movimento, pois atua como
e utilização das TICs, o que “[...] continua mudando a forma como nos comu-
agente formador de cidadãos, que adquirem conhecimentos críticos ao longo
nicamos e a maneira como vivemos”.27
de processos de interação com os demais sujeitos da aprendizagem, bem como
O geógrafo Milton Santos, exemplificando a amplitude que essas técnicas
o meio educacional. Nessa direção, a escola tem a função de permitir que os
recentes têm alcançado nas sociedades, afirma: “Na história da humanidade é
indivíduos que estão inseridos em tais processos saibam usar os recursos tec-
a primeira vez que tal conjunto de técnicas envolve o planeta como um todo
nológicos de maneira consciente e em favor da sociedade.
e faz sentir, instantaneamente, sua presença. Isso, aliás, contamina a forma de
156 Pereira reforça a importância de se discutir o uso das tecnologias nas es- 157
existência das outras técnicas, mais atrasadas. As técnicas características do
colas: “Hoje, escola, família, grupos sociais e meios de comunicação são com-
nosso tempo, presentes que sejam em um só ponto do território, têm uma in-
preendidos como importantes espaços educativos e socializadores. Isso ressalta
fluência marcante sobre o resto do país, o que é bem diferente das situações
a importância de haver, dentro das escolas, das famílias e das demais institui-
anteriores. Por exemplo, a estrada de ferro instalada em regiões selecionadas,
ções sociais, espaços de reflexão a respeito do papel político, cultural e eco-
escolhidas estrategicamente, alcançava uma parte do país, mas não tinha uma
nômico das mídias. As tecnologias de informação e comunicação mudaram
influência direta determinante sobre o resto do território. Agora não. A técni-
nossas vidas, e por isso cada vez mais pessoas têm passado a se preocupar em
ca da informação alcança a totalidade de cada país, direta ou indiretamente.28”
mudar a vida das mídias.30”
Define-se aqui como Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs)
Caldas, Nobre e Gava corroboram com o pensamento anterior, discutindo
desafios sobre como utilizar essas novas tecnologias nas escolas, como o com-
25) FALCÃO, Wagner Scopel. As TICs na sala de aula: o software Google Earth como possi- putador. Os autores afirmam que “[...] temos por meio das TICs um universo
bilidade para o ensino de Geografia. 2014. 52 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especia- de recursos disponíveis na internet e que favorecem a aprendizagem, se bem
lização em Informática na Educação) – Centro de Educação a Distância do Ifes, Instituto explorados é claro, por meio da cooperação, colaboração, pesquisa etc”.31
Federal do Espírito Santo, Serra, 2014.
26) A Terceira Revolução Industrial é chamada também de Revolução Técnico-científico Infor-
macional ou Globalização. 29) CANTO, Tânia Seneme do; ALMEIDA; Rosângela Doin de. Mapas feitos por não cartó-
grafos e a prática cartográfica no ciberespaço. In: ALMEIDA, Rosângela Doin de (Org.).
27) FÁVARO, Rutinelli da Penha; NUNES, Vanessa Battestin. Os projetos de aprendizagem Novos rumos da cartografia escolar. São Paulo: Contexto, 2011, p. 148.
e as TICs. In: NOBRE, Isaura Alcina Martins et al. (Org.). Informática na educação: um
caminho de possibilidades e desafios. Serra: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tec- 30) PEREIRA, Silvio da Costa. Mídia e Educação no contexto escolar. 2008, p. 1. Disponível
nologia do Espírito Santo, 2011, p. 174. em: <http://www.anped.org.br/reunioes/31ra/1trabalho/GT16-4061-Int.pdf>. Acesso em:
28 jun. 2013.
28) SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento crítico à consciência uni-
versal. 14. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 25-26. 31) CALDAS, Wagner Kirmse; NOBRE, Isaura Alcina Martins; GAVA, Tânia Barbosa Salles.

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Pontuschka, Paganelli e Cacete (2009) afirmam que é papel fundamental Nesse contexto, múltiplas são as possibilidades de uso das TICs para as
da escola dialogar com as tecnologias existentes no mundo atual, para uma lei- discussões sobre Educação Ambiental nas escolas. As músicas, os filmes e
tura do mundo mais crítica, mais consciente: “Diante do avanço tecnológico e documentários, os computadores, os quadros digitais, os aparelhos projeto-
da enorme gama de informações disponibilizadas pela mídia e pelas redes de res, os aparelhos telefônicos móveis, o uso de imagens orbitais etc. são fer-
computadores, é fundamental saber processar e analisar esses dados. A esco- ramentas que por eles as questões ambientais podem ser trabalhadas objeti-
la, nesse contexto, cumpre papel importante ao apropriar-se das várias moda- vando a formação da cidadania discente.
lidades de linguagens como instrumentos de comunicação, promovendo um Em seguida, serão discutidos, por meio de alguns exemplos, como as músi-
processo de decodificação, análise e interpretação das informações e desenvol- cas e os vídeos podem contribuir para as discussões sobre Educação Ambiental
vendo a capacidade do aluno de assimilar as mudanças tecnológicas que, entre no contexto escolar.
outros aspectos, implicam também novas formas de aprender.32”

3.2.1) As Músicas
3.2) A Educação Ambiental por meio das
Quem não se recorda das aulas nas décadas de 1980 e 1990 quando a pro-
Tics: Algumas Possibilidades
fessora ou o professor ao discutir sobre o meio ambiente começava a aula
com a música “Planeta Água” de Guilherme Arantes ou então “Aquarela” de
Como já mencionado, as Tecnologias da Informação e Comunicação estão
Toquinho? Essas nossas memórias se fazem possíveis, pois a música é um
presentes no cotidiano de nossa sociedade. Assim, utilizar-se delas para usos
elemento presente em nosso cotidiano e que, de alguma forma, essas aulas
158 com finalidades educativas pode torná-las potencializadoras de aprendizagens. 159
foram marcantes para nós.
A Terceira Revolução Industrial possibilitou ao mundo muitos avanços
A música, nesses momentos que mais uma vez acabamos de recordar, foi
tecnológicos. Por outro lado, ela aumentou significativamente a degrada-
uma ferramenta de aprendizagem efetiva, já que aprendemos ou, ao menos,
ção ambiental a nível global, através da crescente emissão de gases poluen-
nos lembramos das aulas. Diversas são as possibilidades do uso dos diferen-
tes à atmosfera, do desmatamento acelerado, do consumo exagerado e sua
tes tipos de músicas nas aulas.
consequente grande produção de lixo entre outros. Assim, se faz necessário
Escolhemos, aqui, dois exemplos de músicas que discutem sobre as questões
discutir sobre essas questões relevantes nas escolas, bem como já nos aler-
ambientais e que podem ser discutidas com alunos de Ensino Básico ou Superior.
tou alguns organismos internacionais, como a ONU e a UNESCO, e como
As letras das músicas abrem margem para amplas discussões interdisciplinares.
rege a legislação nacional.
No caso da Educação Ambiental, aproveitar-se das tecnologias desen-
volvidas pela atual Revolução Industrial para questioná-la é um passo im-
portante para a construção da cidadania. As formas pelas quais são produ- Garças de Jacarenema – Casaca33
zidas precisam ser urgentemente interrogadas a fim de que novos processos
sejam desenvolvidos em pról do meio ambiente. O que será de mim,
O que será de nós,
Quando chegar o fim da tarde
Uso do computador na educação: desafios tecnológicos e pedagógicos. In: NOBRE, Isau- E ninguém perceber?
ra Alcina Martins et al. (Org.). Informática na educação: um caminho de possibilidades
e desafios. Serra: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo, Estão dormindo em outro canto
2011, p. 37.
32) PONTUSCHKA, Nídia Nacib; PAGANELLI, Tomoko Iyda; CACETE, Núria Hanglei. 33) CASANOVA, Renato.  Garças de Jacarenema. Disponível em: <http://letras.mus.br/casa-
Para ensinar e aprender Geografia. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2009, p. 261-262. ca/68133>. Acesso em: 16 abr. 2014.

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E não vão mais voltar


3ª Do Plural - Engenheiros do Hawaii34
Esse sonho é um pesadelo
Quero acordar
Corrida pra vender cigarro
Quero acordar...
Cigarro pra vender remédio
Remédio pra curar a tosse
Me tira dessa guerra
Tossir, cuspir, jogar pra fora
Me leva com você
Pelo céu azul, me mostre a Natureza
Corrida pra vender os carros
Em suas asas brancas
Pneu, cerveja e gasolina
Sinto um poema
Cabeça pra usar boné
Eu vejo a vida
E professar a fé de quem patrocina
Eu vejo o verde em Jacarenema
Eles querem te vender
Tenha consciência, meu irmão
Eles querem te comprar
Não me leve a mal
Querem te matar (de rir)
Cuide da beleza que adormece
Querem te fazer chorar
Em nosso manguezal
Quem são eles?
160 As garças do Jucu 161
Quem eles pensam que são?
Pelo céu se vão
Quem são eles?
Formando uma nuvem de paz
Quem eles pensam que são?
As garças do Jucu
Corrida contra o relógio
Pelo céu se vão
Silicone contra a gravidade
Formando uma nuvem de paz
Dedo no gatilho, velocidade
Quem mente antes diz a verdade
A música Garças de Jacarenema, da banda capixaba Casaca, discorre sobre
o desmatamento da Mata Atlântica que ocorre constantemente na Reserva
Satisfação garantida
Ecológica de Jacarenema, localizada às margens do rio Jucu, no município de
Obsolescência programada
Vila Velha – ES. A extração de areia, a retirada de madeira e o fogo colocado
Eles ganham a corrida
na mata são alguns dos motivos que tem levado ao desmatamento da região, e
Antes mesmo da largada
a consequente migração das garças, como nos aponta a música.
O segundo exemplo de música, e que possui seu viés no consumis-
Eles querem te vender
mo promovido pelo mundo globalizado, se chama “3ª do Plural”, da banda
Eles querem te comprar
Engenheiros do Hawaii.
Querem te matar (a sede)

34) GESSINGER, Humberto.  3ª do Plural. Disponível em: <http://letras.mus.br/engenhei-


ros-do-hawaii/747530/>. Acesso em: 16 abr. 2014.

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Eles querem te sedar putadores (Internet), e que se trabalhados de maneira crítica podem formar
uma visão diferenciada dos alunos sobre o meio ambiente.
Quem são eles? Um exemplo de filme que discute sobre o consumismo no mundo atual se
Quem eles pensam que são? chama “O Diabo Veste Prada35”, produzido em 2006. O filme é uma adaptação
Quem são eles? do livro de mesmo nome escrito por Lauren Weisberger. Este filme discute so-
Quem eles pensam que são? bre o poder de grandes marcas, principalmente do ramo de vestuário, produ-
zindo e reproduzindo a moda e o consumismo pelo mundo.
Vender, comprar, vendar os olhos Outro longa-metragem que discute sobre o capitalismo atual e as desi-
Jogar a rede... contra a parede gualdades por ele produzidas se chama “O Preço do Amanhã36”. Com o fil-
Querem te deixar com sede me, produzido em 2011, podem ser discutidas algumas questões atuais rela-
Não querem te deixar pensar cionando o trabalho, o capital, o tempo, o consumo e os modos de vida em
diferentes classes sociais.
Quem são eles? O filme “Lixo Extraordinário37” é outra opção. Sua história se passa no
Quem eles pensam que são? Jardim Gramacho, um dos maiores aterros sanitários do país, localizado no
Quem são eles? município do Rio de Janeiro. Com ele, pode ser discutido sobre o cotidiano da
Quem eles pensam que são? população marginalizada que vive do lixo e a grande produção desses resíduos
em uma metrópole global.
Quem são eles? O documentário de Annie Leonard, “A História das Coisas38”, é um ex-
162 celente vídeo que relata as cinco principais etapas do processo produtivo no 163
A música tem seu foco na obsolescência programada ou planejada, uma das mundo globalizado: extração, produção, distribuição, consumo/consumismo e
características do capitalismo atual, globalizante. A obsolescência programada geração de lixo. A partir do vídeo é possível desenvolver uma visão mais ampla
consiste no ato vender e de consumir aquilo que não se precisa, que é supérfluo da nossa forma de consumo no mundo capitalista atual e da degradação am-
(consumismo), por meio de propagandas abusivas ou excessivas, da venda ca- biental produzida por nossos modos de vida.
sada de mercadorias, da “necessidade” de se manter na moda, ou da venda de O vídeo “Você sabia? Sobre o mundo em que vivemos39”, foi produzido pelos
produtos com um prazo de “vencimento” pré-determinado, como os eletrôni- alunos da turma M04-2014 do curso técnico em Eletrotécnica do Instituto Federal
cos, para que logo novos sejam consumidos. do Espírito Santo, campus Vitória, sob orientação do professor de Geografia Eder
O autor deixa em destaque a terceira pessoal do plural: “Eles”. “Quem são Lira. O vídeo discute sobre a produção industrial no mundo atual, tendo como
eles?” e “Quem eles pensam que são?” são questões que podem ser debatidas um dos focos suas consequências para os seres humanos e para o meio ambiente.
com os alunos ao longo da(s) aula(s).
35) THE DEVIL Wears Prada. Direção: David Frankel. Produção: Wendy Finerman: Fox
Filmes, 2006.

4.2.2) Os Vídeos 36) IN TIME. Direção: Andrew Niccol. Produção: Andrew Niccol e Eric Newman: Fox Filmes,
2011.

Desenvolver o sendo crítico sobre as questões ambientais é formar cidadãos, e os 37) WASTE Land. Direção: Lucy Walker. Produção: Angus Aynsley e Hank Levine. Down-
town Filmes, 2010.
audiovisuais são instrumentos importantes e presentes no cotidiano dos alunos.
Na atualidade existe uma gama enorme de vídeos, sendo filmes longa-me- 38) STORY of Stuff. Direção: Louis Fox. Produção: Annie Leonard: 2005.
tragem ou curta-metragem, documentários, desenhos animados, propagandas 39) VOCÊ sabia? Sobre o mundo em que vivemos. Direção e produção: discentes da turma
comerciais entre outros, muitos dos quais disponíveis na rede mundial de com- M04-2014, Ifes, campus Vitória. Orientação: Eder Lira. Disponível em: <http://www.you-
tube.com/watch?v=bMkDHquWM8g>. Acesso em: 13 fev. 2014.

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As Tecnologias da Informação e Comunicação e a Educação Ambiental no Cotidiano Escolar

H Conclusão
A educação é muito importante para a formação de cidadãos plenos, assim
como rege a Constituição Federal de 1998, pois possibilita ao aluno conhecer
o meio, a realidade em que vive, podendo contribuir para o aumento de uma
visão crítica do mundo em que vivem. Nisso ela pode ajudá-los a se formarem
verdadeiros cidadãos plenos, não para servirem como robôs a serviços do capi-
tal, e sim como indivíduos preparados criticamente para o mercado de trabalho
e também com um poder de escolha efetivo, promovendo em seus cotidianos
uma efetiva Educação Ambiental.
Nessa direção, é possível afirmar que na segunda metade do século passa-
do, durante o boom da Terceira Revolução Industrial, ocorreu a nível global um
avanço nas discussões sobre a Educação Ambiental no mundo, promovidos
principalmente pela ONU. No contexto brasileiro, essas discussões se deram
principalmente ao final do século, em especial após a ECO 92.
Na atualidade, a questão da Educação Ambiental a nível nacional é defini-
da e regulamentada pelas leis nº 9394/96, nº 9795/99 e nº 12.608/12. A partir
da primeira destas leis, a LDBEN, foram criados os documentos PCNs para o
164 Ensino Fundamental, que foi um passo importante para esse então novo currí-
culo, em especial, ao discutir sobre as questões relativas à Educação Ambiental
e o papel da escola, dos docentes e dos discentes nesse contexto.
Por fim, é possível afimar que a partir do uso consciente das TICs nas escolas
há uma multiplicidade de opções pelo qual podem ser trabalhados os conceitos
relativos à Educação Ambiental com os alunos. Os filmes e as músicas aqui ci-
tados são apenas alguns exemplos de uso das TICs nas aulas pelos professores.
É possível inferir que muitas outras aprendizagens podem ser elaboradas a par-
tir do uso orientado ou problematizado das TICs pelo professor em conjunto
com os alunos, em especial, para se discutir as urgentes questões sobre necessi-
dade da preservação ambiental para a proteção dos direitos humanos.

Direitos Humanos e Meio Ambiente


8
A Teoria da Injustiça Ambiental como
Ocultamento da Ocorrência do Racismo
Ambiental na Sociedade Brasileira

Helena Carvalho Coelho1


Faculdade de Direito de Vitória

Lorena Ferreira Carpes2


Faculdade de Direito de Vitória

Sumário: Introdução. 1 Da sociedade de risco. 2. Injustiça Ambiental


e Racismo Ambiental. 2.1 Breve Histórico do Desenvolvimento das 165
Teorias de Injustiça e Racismo Ambiental. 2.2 Da Injustiça Ambiental.
2.3 Do Racismo Ambiental. 2.4 Da Correlação dos Conceitos e da
Opção Pelo Estudo a Partir do Racismo Ambiental. Conclusão

1) Graduada em Direito na Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Cursou um semestre


letivo na Universidad de Castilla-La Mancha, campus Toledo, Espanha. Pós-graduanda
em Direito Ambiental na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Integrante do grupo
de pesquisa “BIOGEPE” – Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Políticas Pú-
blicas, Direito à Saúde e Bioética- da FDV coordenado pela professora doutora Elda
Coelho de Azevedo Bussinguer. E-mail: helenacarvalho9@gmail.com.
2) 
Graduada em Engenharia Ambiental pela Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES). Cursou um semestre letivo na University of Pittsburgh, Estados Unidos. Gra-
duanda em Direito na Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Integrante do grupo
de pesquisa “Invisibilidade social e energias emancipatórias em Direitos Humanos” da
FDV coordenado pela professora pós-doutora Gilsilene Passon Picoretti Francischetto.
E-mail: lorenafcarpes@gmail.com.
A Teoria da Injustiça Ambiental como Ocultamento da
Ocorrência do Racismo Ambiental na Sociedade Brasileira Helena Carvalho Coelho m Lorena Ferreira Carpes

H Introdução plosão demográfica e com o aumento substancial do consumo trouxeram gran-


des consequências: por um lado, desenvolvimento econômico com avanços so-
A desigualdade social está na gênese da história do Brasil, desde a colonização, ciais em alguns países, permitindo maior distribuição de renda e emprego; por
e se agravou sobretudo com o advento das relações comerciais e com a conso- outro lado, retrocessos ambientais, decorrentes da produção sem o devido con-
lidação do capitalismo através do acúmulo de capitais e concentração de renda. trole, que geram passivos ambientais.
Essa desigualdade se reflete também na relação da população com o meio Nesse sentido aduzem Sarlet e Fensterseifer5: “Assim os avanços científicos
ambiente. O racismo ambiental é identificado por meio de políticas públicas e tecnológicos operados pela ciência especialmente a partir da ‘revolução cientí-
e industriais que impõem aos grupos sociais de cor e de baixa renda, por força fica’ dos séculos XVI e XVII [...], a despeito dos notáveis progressos que propi-
do poder econômico, maior risco ambiental.3 ciou, paralelamente serviram (e ainda servem) de instrumentos de intervenção
O Movimento de Justiça Ambiental foi criado nesse contexto com o ob- no meio natural e, consequentemente, de degradação e esgotamento dos recur-
jetivo de evitar tais práticas discriminatórias por parte do governo e das gran- sos naturais, na medida em que a Natureza é tratada – do ponto de vista filo-
des empresas. Inicialmente, nos Estados Unidos e, posteriormente, difundiu-se sófico – como uma simples máquina, destituída de qualquer valor intrínseco”.
para outros países. Isso nos permite entender melhor a complexidade da sociedade atual, a qual
O presente trabalho visa a analisar o histórico do movimento de justiça am- deve atender, ao mesmo tempo, a todos os setores, quais sejam, os sociais, os eco-
biental, bem como objetiva explorar os conceitos de racismo e injustiça ambiental nômicos e os ambientais. No auge da globalização ainda é extremamente com-
e relacioná-los, com o intuito de entender essa aplicação no contexto brasileiro. plicado o controle de determinadas situações, em especial, daquelas advindas de
problemas ambientais, tal qual descreve Ulrich Beck6: “Os ‘paradigmas’ de desi-
gualdade social estão sistematicamente relacionados a fases específicas do pro-
166 cesso de modernização. A distribuição e os conflitos distributivos em torno da 167
1) Da Sociedade de Risco
riqueza socialmente produzida ocuparão o primeiro plano enquanto países e so-
ciedades [...] o pensamento e a ação das pessoas forem dominados pela evidência
A sociedade de risco delineia-se em uma paradoxal catástrofe, diante de enor-
da carência material, pela ‘ditadura da escassez’. [...] Paralelamente, dissemina-se
mes avanços tecnológicos, rapidez na comunicação, em que o longe torna-se
a consciência de que as fontes de riqueza estão ‘contaminadas’ por ‘ameaças co-
perto e, ao mesmo tempo, há aceleração das desigualdades sociais. Assim, evi-
laterais’. Isto, de forma alguma, é algo novo, mas passou despercebido por muito
denciam-se a exploração dos miseráveis e abusos com grupos que formam mi-
tempo em meios aos esforços para superar a miséria [...] Argumentando siste-
norias. Nesse sentido, descreve Ulrich Beck4: “Com a ameaça, dissolvem-se as
maticamente, cedo ou tarde na história social começam a convergir na continui-
antigas urgências, e paralelamente amplia-se a política dirigista do estado de
dade dos processos de modernização as situações e os conflitos sociais de uma
exceção, que da circunstância iminente extrai suas ampliadas competências e
sociedade ‘que distribui riqueza’ com os de uma sociedade ‘que distribui riscos’. ”
possibilidades de intervenção. A partir do momento em que o perigo se con-
Em relação à situação da sociedade brasileira, Ricardo Abramovay7 traz os
verte em normalidade, ela assume uma forma firmemente institucionalizada.
seguintes dados: “O caso do Brasil talvez seja o mais emblemático nesse senti-
“[...] A Sociedade de risco não é, portanto, uma sociedade revolucionária, mas mais
do. A renda per capita das famílias correspondentes à base dos 10% mais po-
do que isto: uma sociedade catastrofal. Nela, o estado de exceção ameaça converter-se
em normalidade.” (grifo nosso)
As diversidades trazidas pelos avanços tecnológicos relacionados com a ex- 5) SARLET, Ingo Wolfgang; FERNSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambien-
tal: Constituição, Direitos Fundamentais e Proteção do Meio Ambiente. 2. ed. rev. e atualiza-
da. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2012. p. 33.
3) RHODES, Edwardo Lao. Environmental justice in America a new paradigm. Blooming- 6) BECK. Ulrich. Sociedade de Risco: Rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo:
ton: Indiana University Press, 2003. p.6 Editora 34, 2011. p.24-25.
4) BECK. Ulrich. Sociedade de Risco: Rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: 7) ABRAMOVAY, Ricardo. Muito Além da Economia Verde. São Paulo: Editora Abril, 2012.
Editora 34, 2011. p. 96. p. 43

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Ocorrência do Racismo Ambiental na Sociedade Brasileira Helena Carvalho Coelho m Lorena Ferreira Carpes

bres da pirâmide social aumentou 120% desde o fim de 1993 até 2008. [...] ta, em que seguimos a passos largos para à escravidão -, o fim da humanidade
Entre 2005 e 2011 nada menos que 64 milhões de brasileiros mudaram sua estaria traçado na lógica da produção.
faixa de renda para cima. Nesse período, a quantidade de pobres cai de 51% Sobre essa reflexão, Ricardo Abramovay11 afere que: “[...] É necessário lem-
para 24% da população e a classe média salta de 34% para 54% dos brasileiros”. brar também que o bom desempenho na ecoeficiência dos países da OCDE
Disto é possível aferir algumas conclusões: há melhor e maior distribuição durante o século 20 não se apoia apenas em seus inegáveis ganhos tecnológi-
de renda, assim como há mais consumidores, logo aumenta-se a cada dia a pro- cos. Muitas de suas atividades tipicamente industriais foram transferidas para
dução de lixo, exige-se cada vez mais, a produção de bens de consumo e gera-se países emergentes e, antes de tudo, para a China. Essa transferência produtiva
uma enorme dificuldade de controle da poluição. das atividades tipicamente industriais acaba por obscurecer a própria contabi-
Naomi Klein8 alerta para os problemas gerados pelas “zonas verdes” em que lidade de fluxos materiais nos países mais ricos, assim como sua responsabi-
classifica como um novo modelo de apartheid do desastre, em que aponta, mais lidade pela emissão de gases de efeito estufa: sabe-se que a China tornou-se re-
uma vez, a capacidade financeira como determinante à sobrevivência: “A ante- centemente o maior emissor do planeta. Mas, se for descontado o que ela exporta (ou
visão de um futuro coletivo de apartheid do desastre, no qual a sobrevivência é seja, se a responsabilidade for atribuída aos consumidores), as emissões chinesas caem
determinada pela capacidade de pagar pelo escape [...] Não é que eles precisam nada menos do que um terço do total. [...]” (grifo nosso)
acreditar que há uma rota de fuga do mundo que estão criando, apenas. É que Assim, para melhor visualização do problema exposto, tem-se que a trans-
a Revelação é uma parábola para o que eles estão construindo aqui embaixo – ferência de indústrias poluidoras de países desenvolvidos para países subde-
um sistema que convida à destruição e ao desastre e depois oferece helicópte- senvolvidos acarreta duas principais consequências: a) auxílio de cumprimento
ros privados para leva-los, junto com seus amigos, rumo à segurança divina”. de metas pelos países desenvolvidos; b) aumento dos problemas relacionados à
Sem dúvida, os problemas ambientais ensejam na necessidade de aplicação saúde pública nos países emergentes.
168 de princípios, do direito internacional, de doutrinas e de todos os meios capa- Esta é mais uma manifestação do apartheid do desastre, nas palavras de Naomi 169
zes de colmatar lacunas que surgem cotidianamente em uma sociedade global. Klein12, em referência direta aos problemas ambientais existentes no capitalismo.
O desafio é implantar um desenvolvimento sustentável em uma socieda- A partir da análise da sociedade de risco e de como esse modelo econômico
de de consumo, de riscos e de desigualdades. Urge a necessidade de inversão afeta determinadas minorias, apresentaremos, no próximo capítulo, a teoria da
de prioridades, de uma nova cultura, uma cultura verde, em que mais é menos. injustiça e do racismo ambiental.
Nesse ínterim, Ricardo Abramovay9 levanta pertinente questionamento:
“Quanto é suficiente? [...] É verdade que os caminhos trilhados até aqui permitiam
inegáveis vitórias na luta contra a pobreza. Mas será que aí se encontram as me-
2) Injustiça Ambiental e Racismo Ambiental
lhores possibilidades de compatibilizar o funcionamento do sistema econômico
com o preenchimento das necessidades básicas no respeito à manutenção dos ser-
viços ecossistêmicos dos quais dependem as sociedades humanas?” (grifo nosso)
Necessário, pois, rever os paradigmas do consumo. Diante de uma era de
globalização insustentável - para Vivian Rodrigues Mattos10, uma era sem vol- 2.1) Breve Histórico do Desenvolvimento das
Teorias de Injustiça e Racismo Ambiental
8) KLEIN, Naomy. A Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo do desastre. Trad. Vânia
Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2008. p. 467.
9) ABRAMOVAY, Ricardo. Muito Além da Economia Verde. São Paulo: Editora Abril, 2012.
p. 57. 11) ABRAMOVAY, Ricardo. Muito Além da Economia Verde. Editora Abril, São Paulo:
2012. p. 115.
10) MATTOS, Viviann Rodrigues. O trabalho na era da globalização: passos para a escravidão.
Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/4845/o-trabalho-na-era-da-globalizacao>. 12) KLEIN, Naomy. A Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo do desastre. Trad. Vâ-
Acesso em: 10 abr. 2014. nia Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2008. p. 467.

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A desigualdade entre os seres humanos teve origem, dentre outras formas, pela carem a desigualdade apenas a partir de suas características permanentes (for-
conquista e pela ocupação de terras estrangeiras. A conquista gerou uma justi- ça, ousadia, ambição, perseverança, etc.) que surgem em situações de competi-
ficativa generalizada da desigualdade entre os povos. “O conceito de ‘raça’ esta- ção em mercados livres, juntamente com a resistência da população branca em
beleceu uma justificação para a subordinação permanente de outros indivíduos aceitar a completa igualdade de direitos dos ex-escravos, acabou facilitando a
e povos, que eram temporariamente sujeitos pelas armas, pela conquista, pela aceitação de uma doutrina racista para justificar a restrição dos direito dos ne-
destruição material e cultural, ou seja, pela pobreza. ”13 gros. Um mesmo Estado de direito abrigou temporariamente, portanto, uma
A ideologia cientificista do século XIX converteu a desigualdade temporária dualidade de ordem jurídica nos Estados Unidos.16
(cultural, social e política) em permanente (biológica). Apesar da justificativa No Brasil, a temática se desenvolveu de forma distinta. O racismo está
biológica não ter mais legitimidade científica, a suposta inferioridade cultural presente nas práticas sociais e nos discursos (um racismo de atitudes), mas
permanece, passando a ser a justificativa do padrão do tratamento desigual. Em não é reconhecido pelo sistema jurídico e é negado pelo discurso não-racia-
referência às origens do racismo Guimarães14 assim se posiciona: “O racismo, lista da nacionalidade. Após a abolição da escravatura, em 1888, a dualidade
portanto, origina-se da elaboração e da expansão de uma doutrina que justifi- de tratamento entre brancos e negros é estendida ao sistema de clientelismo
cava a desigualdade entre os seres humanos (seja em situação de cativeiro ou de e colonato, que substitui a escravidão.17
conquista) não pela força ou pelo poder dos conquistadores (uma justificativa As liberdades e os direitos constitucionalmente outorgados a todos não são
política que acompanhara todas as conquistas anteriores), mas pela desigualda- garantidos nas práticas sociais, predominando a discriminação e a desigual-
de imanente entre as raças humanas (a inferioridade intelectual, moral, cultu- dade de tratamento. As elites rejeitaram o racismo, transformando-o em não
ral e psíquica dos conquistados ou escravizados). [...] Esta doutrina justificava racismo e a miscigenação cultural e biológica, em ideais nacionais para a inte-
pelas diferenças raciais a desigualdade de posição social e de tratamento, a se- gração de todos os indivíduos no Estado-nação. Os brancos, no Brasil, foram
170 paração espacial e a desigualdade de direitos entre colonizadores e colonizados, definidos de modo a abarcar todos os mestiços mais próximos das caracterís- 171
entre conquistadores e conquistados, entre senhores e escravos e, mais tarde, en- ticas somáticas europeias e todos que usufruem dos privilégios da cidadania.18
tre os descendentes destes grupos incorporados num mesmo Estado nacional”. As teorias de injustiça ambiental e racismo ambiental encontram como seu
O racismo, contudo, apresenta características diversas nos Estados Unidos marco teórico as décadas de 1970/1980 nos Estados Unidos, a partir da cons-
e no Brasil. Tal distinção é importante para se observar as formas pelas quais tatação de que haveria uma coincidência entre os atingidos ambientais e a dis-
se manifesta o racismo ambiental em ambos os países e serão retratadas super- posição de resíduos perigosos inerente de lixos tóxicos. Assim, o Movimento
ficialmente, por não serem o foco do presente trabalho. O racismo, nos Estado de Justiça Ambiental cresceu em diversos lugares com movimentos sociais di-
Unidos, é bi-racial. Na lógica preponderante à estrutura legal e social norte-a- ferentes, sendo, portanto, difícil identificar uma data ou evento específico que
mericana, os indivíduos têm sido historicamente ou negros ou brancos. No tenha dado origem ao movimento.19
Brasil, por sua vez, é multirracial: há um espectro de distinções raciais.15 O protesto de afro-americanos contra um despejamento tóxico em
Os Estados Unidos, ao se constituírem como Estado de direito e ao justifi- Warren Country, na Carolina do Norte em 1982, é considerado por muitos
como um dos marcos desse movimento, por tomar proporções nacionais.
13) GUIMARÃES, Antônio Sério Alfredo. Combatendo o Racismo: Brasil, África do Sul e
Estados Unidos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14. n. 39, p.104, fev. 1999. Dis- 16) GUIMARÃES, Antônio Sério Alfredo. Combatendo o Racismo: Brasil, África do Sul e
ponível em: < http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v14n39/1724.pdf >. Acesso em: 18 abr. 2014. Estados Unidos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14. n. 39, p.106, fev. 1999.
14) GUIMARÃES, Antônio Sério Alfredo. Combatendo o Racismo: Brasil, África do Sul e 17) GUIMARÃES, Antônio Sério Alfredo. Combatendo o Racismo: Brasil, África do Sul e
Estados Unidos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14. n. 39, p.104, fev. 1999. Dis- Estados Unidos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14. n. 39, p.107, fev. 1999.
ponível em: < http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v14n39/1724.pdf >. Acesso em: 18 abr. 2014.
18) GUIMARÃES, Antônio Sério Alfredo. Combatendo o Racismo: Brasil, África do Sul e
15) SKIDMORE, Thomas E. EUA Bi-racial vs. Brasil Multirracial: O Contraste ainda é Vá- Estados Unidos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14. n. 39, p.107, fev. 1999.
lido? In: Conferência sobre Racismo e Relações Raciais nos Países da Diáspora Africana
1992, Rio de Janeiro. p.49-50. Disponível em: < http://www.novosestudos.org.br/v1/files/ 19) COLE, Luke W.; FOSTER, Sheila R. From the Ground Up: Environmental Racism and
uploads/contents/68/20080625_eua_multirracial.pdf> Acesso em: 18 abr. 2014. the Rise of the Environmental Justice Movement. New York: NYU Press. 2000. p. 19.

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Essa oposição culminou em uma campanha de desobediência civil não vio-


2.2) Da (In)Justiça Ambiental
lenta e em mais de 500 prisões.20
Alguns ativistas americanos nativos e outros consideram, no entanto, que o
Para tratar de injustiça ambiental, necessário definir, primeiramente, justi-
primeiro movimento de justiça ambiental surgiu na América há 500 anos, com
ça ambiental e desvelar as discussões acerca da definição do termo. Segundo
a invasão dos Europeus, e perdura até os dias de hoje.21
Acselrad25, justiça ambiental seria uma ressignificação entre os termos “justiça
O Movimento de Justiça ambiental foi estruturado nacionalmente nos
social” e “meio ambiente”, a partir do contraponto entre duas teorias antagôni-
Estados Unidos a partir do programa dos “17 princípios’ elaborado em 1991,
cas, a visão utilitária e a razão cultural.
na Cúpula dos Povos de Cor pela Justiça Ambiental”.22
A visão utilitária26 é composta por uma noção de poluição democrática “não
O meio acadêmico foi uma importante contribuição para o esse movimen-
propensa a fazer distinção de classe”, sob uma ótica do mercado, da produção
to. No início dos anos 60, pesquisas revelaram que os riscos ambientais têm um
em série sob o modelo fordista e dos “proprietários”.
impacto desproporcional em pessoas de cor e baixa renda. Robert Bullard, es-
Em contraponto à visão utilitária, surge a razão cultural27, como uma forma
tudando padrões do uso da terra em Houston no final dos anos 70, descobriu
de resistência dos movimentos sociais, por meio da desmistificação, em espe-
que os lixões tinham um impacto desproporcional nos afro-americanos. Essa
cial, da noção de “poluição democrática”, demonstra, portanto, a lógica de pro-
pesquisa conduziu ao trabalho pioneiro de Bullard na área.23
dução e como isso afeta os atingidos por impactos ambientais, a poluição é se-
Os estudos se intensificaram nos Estados Unidos no início da década
letiva e excludente. Assim, para Acselrad28, “os riscos ambientais, nessa óptica,
de 80, quando, o termo racismo ambiental foi desenvolvido por Chavis24.
são diferenciados e desigualmente distribuídos, dada a diferente capacidade de
Constatou-se que os riscos ambientais se distribuem desigualmente: pesso-
os grupos sociais escaparem aos efeitos das fontes de tais riscos”.
as pobres e de cor sofrem uma maior carga de poluição do que pessoas mais
No mesmo sentido, Bullard29 apresenta a noção de “anatomia do racismo
172 abastadas e brancas. 173
ambiental”, assim expõe que “[...] algumas comunidades são rotineiramente
Há, todavia, que se estabelecer as diferenças entre as teorias e o porquê da
intoxicadas enquanto o governo finge ignorar. A legislação ambiental não tem
opção pelo conceito de racismo ambiental, haja vista existir uma confusão te-
beneficiado de maneira uniforme todos os segmentos da sociedade”. Discurso
órica na utilização dos conceitos de justiça e de racismo ambiental. Nesse sen-
que será aqui apropriado para complementar à ideia de razão cultural.
tido, trabalharemos cada um separadamente a seguir.
Em tal contexto, surge a noção de justiça ambiental inicialmente nos
Estados Unidos, como já demonstrado, no ano de 1980, tendo como grandes
20) COMMISSION FOR RACIAL JUSTICE UNITED CHURCH OF CHRIST. TOXIC
WASTES AND RACE In The United States. A National Report on the Racial and So-
cio-Economic Characteristics of Communities with Harzardous Waste Sites.1987. Disponível 25) ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justi-
em: <http://www.ucc.org/about-us/archives/pdfs/toxwrace87.pdf>. Acesso em: 05 mar. 2014. ça ambiental. Estudos Avançados 24, 2010. p.108. Disponível em: < http://www.scielo.br/
pdf/ea/v24n68/10.pdf > Acesso em: 10 abr. 2014.
21) COLE, Luke W.; FOSTER, Sheila R. From the Ground Up: Environmental Racism and the
Rise of the Environmental Justice Movement. 1.ed. New York: NYU Press. 2000. p. 19-20. 26) ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justi-
ça ambiental. Estudos Avançados 24, 2010. p. 108. Disponível em: < http://www.scielo.br/
22) HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. Revista pdf/ea/v24n68/10.pdf > Acesso em: 10 abr. 2014.
de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente. v.3, n.1, jan./ abril 2008. p.13
27) ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justi-
23) COLE, Luke W.; FOSTER, Sheila R. From the Ground Up: Environmental Racism and ça ambiental. Estudos Avançados 24, 2010. p. 108. Disponível em: < http://www.scielo.br/
the Rise of the Environmental Justice Movement. New York: NYU Press. 2000. p. 24. pdf/ea/v24n68/10.pdf > Acesso em: 10 abr. 2014.
24) O termo racismo ambiental foi desenvolvido no relatório “toxic wastes and race in The 28) ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justi-
United States”. COMMISSION FOR RACIAL JUSTICE UNITED CHURCH OF ça ambiental. Estudos Avançados 24, 2010. p. 108. Disponível em: < http://www.scielo.br/
CHRIST. TOXIC WASTES AND RACE In The United States. A National Report on pdf/ea/v24n68/10.pdf > Acesso em: 10 abr. 2014.
the Racial and Socio-Economic Characteristics of Communities with Harzardous Waste
Sites.1987. Disponível em: <http://www.ucc.org/about-us/archives/pdfs/toxwrace87.pdf>. 29) BULLARD, Robert. Confronting Environmental Racism – Voices from the Grassroot.
Acesso em: 05 mar. 2014. Trad. Regina Domingues. Boston: South End Press, 1996.

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expoentes Robert Bullard e Benjamin Chavis. cos químicos são pouco conhecidos e divulgados, à exceção do estado de São
Chavis30, contudo, traz para os dias atuais tal perspectiva e como a noção de Paulo, tendendo a se tornarem problemas crônicos, sem solução. Acrescente-
justiça se disseminou entre os países, em especial, aqueles maiores atingidos por se também que, dado o nosso amplo leque de agudas desigualdades sociais, a
danos ambientais. Outrossim, o mesmo autor acrescenta que: “A luta pela justi- exposição desigual aos riscos químicos fica aparentemente obscurecida e dis-
ça ambiental se intensificou em comunidades que se tornaram “sacrifícios am- simulada pela extrema pobreza e pelas péssimas condições gerais de vida a ela
bientais”. A luta pela justiça ambiental agora se expandiu para além das fron- associadas. Assim, ironicamente, as gigantescas injustiças sociais brasileiras en-
teiras dos Estados Unidos, uma vez que as ameaças se multiplicam no Terceiro cobrem e naturalizam a exposição desigual à poluição e o ônus desigual dos
Mundo. Muitos dessas ameaças estão além do controle das nações mais pobres custos do desenvolvimento”.
do mundo. Resíduos tóxicos, pesticidas banidos, baterias “recicladas”, sucatas Complementarmente, a Declaração de Lançamento da Rede Brasileira
são rotineiramente enviadas para as nações de Terceiro Mundo por corporações de Justiça Ambiental entendeu por Injustiça Ambiental “o mecanismo pelo
multinacionais. Além disso, as atrocidades das políticas ambientais nessas em- qual sociedades desiguais destinam a maior carga dos danos ambientais do
presas, quando operam no Terceiro Mundo, são bem documentadas.” desenvolvimento a [...] grupos raciais discriminados, populações marginali-
Para Carlos Peralta31, o conceito de justiça ambiental: “Tem um caráter zadas e mais vulneráveis”.34
aglutinador, integrando as dimensões ecológica, ética, social e econômica, as Nos resta, então, discutir a temática do racismo ambiental, com objetivo de
quais envolvem conflitos ambientais. A justiça ambiental enfrenta o dilema enfatizar as diferenças conceituais e justificar a escolha adotada neste trabalho.
entre a realidade da natureza e a realidade da sociedade da segunda moderni-
dade regida pela ciência e pelas relações econômicas”.
Especificamente no Brasil, o Movimento de Justiça Ambiental32 trouxe im-
2.3) Do Racismo Ambiental
174 portantes definições sobre os temas aqui analisados e conceituou justiça am- 175
biental como sendo “O conjunto de princípios que asseguram que nenhum
A divisão social em classes, a segregação das minorias e o “anti-status” são ex-
grupo de pessoas, sejam grupos étnicos, raciais ou de classe, suporte uma par-
plicados por Bourdieu35 pela noção de que “uma classe social nunca é definida
cela desproporcional das consequências ambientais negativas de operações
somente por sua situação e por sua posição numa estrutura social [...]; ela deve
econômicas, de políticas e programas federais, estaduais e locais, bem como
também muitas de suas propriedades ao fato de que os indivíduos que a com-
resultantes da ausência ou omissão de tais políticas”.
põem entram deliberadamente ou objetivamente em relações simbólicas que,
Em referência à aplicabilidade da teoria da justiça ambiental no contex-
expressando as diferenças de situação e de posição segundo uma lógica siste-
to brasileiro, Herculano33 defende que se trata de estudo extremamente perti-
mática, tendem em transmutá-las em distinções significantes”.
nente em função das desigualdades inerentes a sociedade brasileira, embora tal
Tal sistemática de exclusão deve ser aplicada à hipótese de racismo ambien-
tema ainda seja “incipiente”, e contextualiza: “Os casos de exposição aos ris-
tal. Esse termo foi cunhado originalmente no relatório “Toxic Wastes and Race
in The United States” por Benjamin F. Chavis Jr.36, a partir de demandas dos
30) CHAVIS, Benjamin Prefácio. In: BULLARD, Robert. Confronting Environmental Rac- movimentos sociais nos Estados Unidos.
ism: Voices from the Grassroots. Boston: South End Press, 1993. p.4.
31) PERALTA, Carlos E. A justiça ecológica como novo paradigma da sociedade de risco
contemporânea. Revista Direito Ambiental e sociedade, v.1, n. 1, p. 256, jan/jun. 2011.
34) Declaração de Lançamento da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, 2001, Niterói. Dispo-
32) HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. nível em: <http://www.fase.org.br/download/redejustamb.doc>. Acesso em: 10 abr. 2014.
Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente, v.3, n.1, p.2, jan/
abril. 2008. 35) BOURDIEU, Pierre. Condição de classe e posição de classe. In: AGUIAR, Neuma (org.).
Hierarquias em classes. Rio de Janeiro, 1974.
33) HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental.
Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente, v.3, n.1, p. 5, jan/ 36) CHAVIS, Benjamin. Prefácio. In: BULLARD, Robert. Confronting Environmental Rac-
abril. 2008. ism: Voices from the Grassroots. Boston: South End Press, 1993.

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Tais movimentos, chamados por Henri Acselrad37 de “ações coletivas”, di- população brasileira. O racismo encontra-se fortemente presente na nossa so-
vidiram-se em dois principais momentos, o subjetivista e o objetivista. No úl- ciedade e se manifesta de forma diferente do racismo dos Estados Unidos,
timo, “manifesta-se a constituição de uma força coletiva que se opunha a uma como já foi abordado previamente. Em relação ao conceito de racismo Chavis40
prática que lhes aparecia como de despossessão ambiental e de imposição do apresenta que é o: “Preconceito racial acrescido de poder. O racismo é o uso in-
poder decisório de terceiros sobre os atributo qualitativos de seu ambiente”. Já tencional ou não intencional do poder para isolar, separar e explorar os outros.
o primeiro tratou-se de uma radicalização da luta, em que criaram-se os ter- O uso do poder é baseado na crença de uma origem na superioridade racial,
mos “racismo ambiental”, “insight”, e “denunciou-se igualmente a traição das identidade ou supostas características raciais. O racismo confere certos privi-
promessas do sonho americano”; buscava-se, assim, “a igualdade substantiva légios e defende os grupos dominantes, que em retorno sustentam e perpetu-
de condições materiais de existência não medidas diretamente pelo mercado.” am o racismo. Ambos consciente e inconscientemente, o racismo é reforçado e
A importância trazida por tais movimentos é reconhecida por Acselrad38. mantido pelas instituições legais, culturais, religiosas, educacionais, econômi-
Entretanto, destaca a preponderância dos resultados trazidos pela corrente ob- cas, políticas, ambientais e militares das sociedades. O racismo é mais do que
jetivista, posto que, a partir de estudos evidencia a “objetividade da desigualda- uma atitude pessoal; é uma forma institucionalizada dessa atitude”. Além das
de do poder” e como “a variável racial adquire, no caso, relevância maior do que relações de poder existentes, o “racismo é a forma pela qual desqualificamos o
a coincidência entre a localização de grupos pobres e a localização de fontes outro e o anulamos como não semelhante. ”41
poluentes”. O movimento subjetivista, por sua vez, teve como marco a propo- O nosso racismo não nos deixa perceber a pobreza e as dificuldades de
sição de uma solidariedade interlocal e internacional, justificada como “forma enorme parcela da população brasileira que sofre com a ausência das po-
de evitar a exportação da injustiça ambiental e de dificultar a mobilidade de ca- líticas sociais de amparo, com a baixa escolaridade, com as condições pre-
pital, o qual tende [...] a abandonar áreas de maior organização política e diri- cárias de moradia e as dificuldades de acesso a um sistema de saúde digno
176 gir-se para áreas com menor nível de organização e capacidade de resistência”. e com um salário irrisório. “Naturalizamos tais diferenças, imputando-as a 177
O caso de Kattleman City, Estados Unidos, em 1992, é extremamente re- ‘raças’. Colocando o outro como inerentemente inferior, culpado biologi-
levante por ser uma das primeiras lutas definidoras do Movimento de Justiça camente pela própria situação, nos eximimos de efetivar políticas de res-
Ambiental. Nesse caso, relatado por Cole e Foster39, houve uma tentativa de gate, porque o desumanizamos.”42
instalação de um incinerador de resíduos tóxicos pela empresa Chem Waste a 4
milhas da comunidade de Kattleman City, onde 95% da população eram lati-
nos e 40% falavam apenas em espanhol. Ainda assim, o relatório de impacto
ambiental foi disponibilizado apenas em inglês para a comunidade. A comu- 40) “Racism is racial prejudice plus power. Racism is the intentional or unintentional use of
nidade lutou arduamente pela não instalação do empreendimento, e o caso to- power to isolate, separate and exploit others. This use of power is based on a belief in superi-
or racial origin, identity or supposed racial characteristics. Racism confers certain privileges
mou proporções nacionais, até que, em 1993, a Chem Waste anunciou sua de- on and defends the dominant group, which in turn sustains and perpetuates racism. Both
sistência de instalar o incinerador. consciously and unconsciously, racism is enforced and maintained by the legal, cultural, reli-
A temática do racismo levanta questões sobre a ocorrência do mesmo na gious, educational, economic, political, environmental and military institutions of societies.
Racism is more than just a personal attitude; it is the institutionalized form of that attitude.”
COMMISSION FOR RACIAL JUSTICE UNITED CHURCH OF CHRIST. Toxic
Wastes and Race In The United States. A National Report on the Racial and Socio-Eco-
37) ACSELRAD, Henri. Meio ambiente e Justiça – estratégias argumentativas e ação coleti- nomic Characteristics of Communities with Hazardous Waste Sites.1987. Disponível em:
va. Disponível em: <http://www.ambiente.sp.gov.br/cea/files/2011/12/henriacselrad.pdf>. <http://www.ucc.org/about-us/archives/pdfs/toxwrace87.pdf>. Acesso em: 05 mar. 2014.
Acesso em: 11 abr. 2014. p. 5-6.
41) HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental.
38) ACSELRAD, Henri. Meio ambiente e Justiça – estratégias argumentativas e ação coleti- Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente, v.3, n.1, p.17, jan./
va. Disponível em: <http://www.ambiente.sp.gov.br/cea/files/2011/12/henriacselrad.pdf>. abr. 2008
Acesso em: 11 abr. 2014. p. 5-8.
42) HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental.
39) COLE, Luke W.; FOSTER, Sheila R. From the Ground Up: Environmental Racism and Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente, v.3, n.1, p.17, jan./
the Rise of the Environmental Justice Movement. New York: NYU Press. 2000, p. 1-9. abr. 2008.

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Ocorrência do Racismo Ambiental na Sociedade Brasileira Helena Carvalho Coelho m Lorena Ferreira Carpes

Já em relação às especificidades do racismo ambiental, Herculano43 defen- O governo exerce papel fundamental na ocorrência do racismo ambiental
de que: “O conceito diz respeito às injustiças sociais e ambientais que recaem nessas comunidades. A omissão no atendimento à legislação ambiental ocorre
de forma desproporcional sobre etnias vulnerabilizadas. O racismo ambiental para atender a interesses políticos e econômicos. Afirmam Cole e Foster45 que
não se configura apenas por meio de ações que tenham uma intenção racista, “[...] uma vez que muitas das tomadas de decisões ambientais são estruturadas
mas igualmente por meio de ações que tenham impacto racial, não obstante a por instituições legais, é importante entender maneira com que as leis ambien-
intenção que lhes tenha dado origem. Diz respeito a um tipo de desigualdade e tais podem, ao mesmo, tempo contribuir com a injustiça vivida em tantas co-
de injustiça ambiental muito específico: o que recai sobre suas etnias, bem como munidades e também mitiga-las.
sobre todo grupo de populações ditas tradicionais – ribeirinhos, extrativistas, ge- Associado ao papel do governo, as indústrias também agem de forma a
raizeiros, pescadores, pantaneiros, caiçaras, vazanteiros, ciganos, pomeranos, co- fomentar essa política de segregação, a qual, segundo Bullard46, foi apelida-
munidades de terreiro, faxinais, quilombolas etc. – que têm se defrontado com da, nos Estados Unidos, de NIMBY, de “not in my backyard”, ou seja, não no
a ‘chegada do estranho’, isto é, de grandes empreendimentos desenvolvimentis- meu quintal, o que ocasionaria um deslocamento das indústrias poluidoras
tas – barragens, projetos de monocultura, carcinicultura, maricultura, hidrovias e para o “quintal dos pobres”.
rodovias – que os expelem de seus territórios e desorganizam suas culturas, seja Há, assim, a prevalência de um tratamento desigual entre países e territó-
empurrando-os para as favelas das periferias urbanas, seja forçando-os a conviver rios. Acselrad47 caracteriza esse fenômeno pela adoção de um “duplo padrão –
com um cotidiano de envenenamento e degradação de seus ambientes de vida”. a adoção de critérios ambientais distintos por uma mesma empresa em dife-
Chavis44, por sua vez, noutra vertente, define racismo ambiental como: rentes pontos do planeta – é a expressão chamada de ‘chantagem locacional’. ”
“[...] a discriminação racial nas formulações de políticas ambientais. É a dis- Um acontecimento emblemático citado por Bullard48 foi a declaração, em
criminação racial na aplicação das leis e regulamentos. É a discriminação ra- 1991, de Lawrence Summers, economista chefe do Banco Mundial - que in-
178 cial no alvo deliberado de comunidades de cor para disposição final de tó- centivou a transferência de indústrias poluentes para países subdesenvolvidos: 179
xicos e a localização de indústrias poluidoras. É a discriminação racial na “1. A mensuração dos custos da poluição prejudicial à saúde depende do lucro
sanção oficial da presença de venenos e poluentes que ameaçam a vida em embutido no crescimento da morbidade e mortalidade (...) a lógica econômica
comunidades de cor. E, é a discriminação racial na história de exclusão de que sustenta o deslocamento do lixo tóxico para países com menores salários é
pessoas de cor dos principais grupos ambientais, tomadas de decisão do con- perfeita e deveríamos assumir isto; 2. Os custos da produção tendem a ser não
selho, comissões, e corpos regulatórios”. -lineares, já que os incrementos da poluição tem custo muito baixo; 3. A rei-
As populações de cor são frequentemente preteridas quando há a instalação vindicação de um meio ambiente limpo, seja por razões estéticas ou de saúde,
de algum empreendimento que vai afetar significativamente a qualidade am- tem probabilidade de ser maior nas faixas maior de renda (...) Enquanto a pro-
biental de onde vivem. Não são consultadas se têm alguma objeção e não têm dução é móvel, o consumo de ar saudável não é comercializável.”
acesso a dados do empreendimento. Com intuito de verificar como esse fenômeno ocorria no Brasil, Tânia

43) HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental.
Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente, v.3, n.1, p.16. jan./
abr. 2008. 45) COLE, Luke W.; FOSTER, Sheila R. From the Ground Up: Environmental Racism and
the Rise of the Environmental Justice Movement. New York: NYU Press. 2000, p. 11.
44) “Environmental racism is racial discrimination in environmental policymaking. It is racial
discrimination in the enforcement of regulations and laws. It is racial discrimination in the 46) BULLARD, Robert. Environmental justice: strategies for building healthy and sustainable
deliberate targeting of communities of color for toxic waste disposal and the siting of pol- communities. In: II WORLD SOCIAL FORUM, Fev. 2002, Porto Alegre.
luting industries. It is racial discrimination in the oficial sanctioning of the life-threatening 47) ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justi-
presence of poisoned and pollutants in communities of color. And, it is racial discrimination ça ambiental. Estudos Avançados 24, 2010. p. 113. Disponível em: < http://www.scielo.br/
in the history of excluding people of color from the mainstream environmental groups, de- pdf/ea/v24n68/10.pdf > Acesso em: 10 abr. 2014.
cisionmaking boards, commissions, and regulatory bodies.” CHAVIS, Benjamin. Prefácio.
In: BULLARD, Robert. Confronting Environmental Racism: Voices from the Grass- 48) BULLARD, Robert. (org). Confronting Environmental Racism – Voices from the Grass-
roots. Cambridge: South End Press, 1999, p.3. Tradução livre. root. Trad. Regina Rodrigues. Boston: South End Press, 1996.

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A Teoria da Injustiça Ambiental como Ocultamento da
Ocorrência do Racismo Ambiental na Sociedade Brasileira Helena Carvalho Coelho m Lorena Ferreira Carpes

Pacheco49 desenvolveu um Mapa do Racismo Ambiental no Brasil, para acom- Acselrad54, “não há dúvida de que o locus por excelência da evidenciação da
panhamento das ações lesivas à comunidade, sua denúncia e a busca de alterna- injustiça ambiental está exatamente nos contextos intra-urbanos”, nesse senti-
tivas a este tipo de opressão “ao delinear os conflitos em que essas comunidades do, conclui que, “com os resultados encontrados, pode-se constatar que a raça,
estão envolvidas, bem como os impactos ambientais e suas consequências so- no Brasil, também constitui uma variável importante em termos de distribui-
bre a saúde coletiva, o mapa tem como principal objetivo romper com a invisi- ção da ‘desproteção ambiental’. ” Embora, o autor advirta que não teria, a partir
bilidade dessas situações e suas causas. ”50  desses dados, segurança para afirmar que tal problemática significaria “racismo
O mapa51 pretende, a longo prazo, “contribuir para o fortalecimento da luta ambiental” nos moldes do americano.
das comunidades atingidas e para a redução das vulnerabilidades socioambien- No tópico a seguir, trabalharemos a inter-relação entre os dois conceitos e
tais resultantes de um modelo de desenvolvimento socialmente injusto e am- as justificativas pela escolha do termo racismo ambiental.
bientalmente insustentável.”
Por sua vez, Acselrad52 desenvolveu um estudo, em conjunto com Haroldo
Torres, em que se destaca o fato de serem recentes as pesquisas no Brasil acer-
2.4) Da Correlação dos Conceitos e da Opção Pelo
ca da coincidência entre as áreas habitacionais e a degradação ambiental. No
mesmo sentido, o sociólogo Torres Marques53 desenvolveu a expressão “hiper- Estudo a Partir do Racismo Ambiental
periferia”, que evidencia tal cruzamento de dados.
Contudo, o que a teoria do racismo ambiental busca evidenciar é que, por O termo injustiça ambiental é tratado como uma afronta a um conjunto de
trás das questões de desigualdade e má distribuição de renda, encontra-se a princípios que asseguram que nenhum grupo de pessoas, sejam grupos étnicos,
problemática da divisão social pela “cor” e que isto está intrínseco em determi- raciais ou de classe, sofra com riscos ambientais, ausência de políticas públicas
180 nadas sociedades, como ficou claro, por exemplo, nos Estados Unidos. e deslocamento de empresas poluidoras para áreas periféricas. O significado 181
Assim, embora os estudos ainda sejam incipientes no Brasil, de acordo com disso, contudo, expõe um ocultamento do preconceito que tem como origem a
diferença de cor, pois separa em categorias para sujeição dos passivos ambien-
tais, dando-se mais ênfase à divisão de classes, que na verdade a gênese da se-
gregação encontra-se na cor.
49) HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental.
Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente. v.3, n.1, p. 17, jan/ Tânia Pacheco55 traz uma importante reflexão a respeito da conceituação
abr. 2008. dos termos, pois adverte que o racismo é “uma questão que transcende a cor”,
50) PACHECO, Tânia. Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde Ambiental no Brasil: Ferra- afirmando, ainda, que, “entre nós, diferentes populações economicamente vul-
menta dos movimentos sociais nas lutas territoriais. Combate Racismo Ambiental. Blog nerabilizadas são igualmente alvo de preconceito e, mesmo quando não rece-
de Tania Pacheco. Abr. 2011. Disponível em: < http://racismoambiental.net.br/2012/04/ bem rótulos obviamente racistas, são tratados como não cidadãos”.
mapa-da-injustica-ambiental-e-saude-no-brasil-ferramenta-dos-movimentos-sociais-nas
-lutas-territoriais/> Acesso em: 24 abr. 2014. Embora a mesma autora admita que a expressão recebe críticas tanto de
marxistas quanto dos próprios integrantes do movimento negro, há que se
51) PACHECO, Tânia. Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde Ambiental no Brasil: Ferra-
menta dos movimentos sociais nas lutas territoriais. Combate Racismo Ambiental. Blog acrescentar, aqui, a crítica realizada pelos liberais a qualquer forma de es-
de Tania Pacheco. Abr. 2011. Disponível em: < http://racismoambiental.net.br/2012/04/
mapa-da-injustica-ambiental-e-saude-no-brasil-ferramenta-dos-movimentos-sociais-nas
-lutas-territoriais/> Acesso em: 24 abr. 2014. 54) ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília Campello do A.; BEZERRA, Gustavo das Neves.
O que é justiça ambiental. – Rio de Janeiro: Garamond, 2009. p. 47-52.
52) ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília Campello do A.; BEZERRA, Gustavo das Neves.
O que é justiça ambiental. – Rio de Janeiro: Garamond, 2009. p. 47-52 55) PACHECO, Tania. Desigualdade, injustiça ambiental e racismo: uma luta que transcende
a cor. O presente artigo foi escrito, na sua forma original, para ser apresentado no I Se-
53) MARQUES, E. TORRES, H. Reflexôes sobre a hiperperiferia: novas e velhas faces da minário Cearense contra o Racismo Ambiental, realizado em Fortaleza, no final de 2006.
pobreza no entorno metropolitano, Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, Cumprida a sua finalidade, foi revisto e é agora apresentado em sua versão definitiva. Dis-
n.4, 2001, p.52. Disponível em: < http://www.anpur.org.br/revista/rbeur/index.php/rbeur/ ponível em: http://justicaambiental.org.br/projetos/clientes/noar/noar/UserFiles/17/File/
article/viewFile/57/41 >. Acesso em: 20 mar. 2014 DesInjAmbRac.pdf. Acesso em: 20/04/2014.

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tratificação que facilite a caracterização de uma poluição que não seja de- justiça ambiental” levaria a crer que tal preconceito existe, preponderantemen-
mocrática, como apontado por Acselrad56 ao tratar do empasse entre a visão te, devido a diferenças de classes sociais, e não da cor. Tal acepção, contudo, é
utilitária e a razão cultural. falaciosa, uma vez que o racismo é velado no Brasil. Segundo Skidmore60, a
Mesmo assim, o uso da denominação racismo ambiental tem, de fato, gran- “‘democracia racial’ do Brasil não existe.”
de carga simbólica. Em uma sociedade desigual e com graves problemas no en- Ainda segundo Skidmore61, “Era a falta de educação, cuidados de saúde,
frentamento da desigualdade racial, de certa forma, é desafiadora e imponente, moradia decente — em suma, era a pobreza que atrasava os brasileiros não
pois desvela a essência que vivemos de uma sociedade racista. -brancos, assim ditava o argumento. Essa estratificação, por sua vez, não era
Posto isto, de acordo com Iara Vicente57: “Conceitos como o de racismo primordialmente um resultado da raça. Era consequência do subdesenvolvi-
ambiental trazem uma contribuição efetiva para a sociologia pois dialogam mento brasileiro, da armadilha de pobreza na qual a maioria da população,
com duas esferas da privação humana: as hierarquias de classe e o preconceito. branca e não-branca, definhava. De acordo com essa análise, amplamente
É a partir da investigação desta intersecção entre situação objetiva de classe e partilhada pela elite brasileira, a raça era uma variável subordinada na determi-
a posição diacrítica, levando em conta as lutas simbólicas que são travadas ao nação da estratificação social. E a classe, não a raça, tornou-se a explicação
decorrer dos processos históricos, que podemos nos aproximar do que significa -padrão que a elite brasileira usou para explicar a persistente miséria na
a dominação do capital hoje.” qual os pesquisadores patrocinados pela UNESCO encontraram a maioria
Para ilustrar a importância da utilização do termo, Acselrad58 exemplifica o dos brasileiros não-brancos”.
problema da identificação racial, em verdade, da auto identificação, por meio A classe social tornou-se, portanto, justificativa para a miséria da população
da pesquisa acerca da cor realizada pelo IBGE. Essa pesquisa é feita de forma não-branca, em detrimento da raça.
auto declaratória, na modalidade de entrevista. Deste modo, não há uma exa- O termo “racismo ambiental”, por sua vez, diz respeito à discriminação ra-
182 tidão entre a pesquisa e os resultados encontrados, até por haver um subjeti- cial nas formulações de políticas ambientais, na localização de indústrias po- 183
vismo em tal questão. luidoras e disposição final de resíduos tóxicos.
Porém, mesmo assim, Acselrad59 constatou que a maioria da população que Pacheco62 complementa sobre a distinção dos conceitos de racismo am-
sofria com o cruzamento dos dados referentes aos danos ambientais e a falta biental e injustiça ambiental: “Quando se fala de Justiça Ambiental está implí-
de acesso às condições básicas de saúde, saneamento e água potável se autode- cito, nessa expressão, o conceito de ‘social’, inerente à essência da Justiça em si.
clara de “pele parda e negra”. Da mesma forma, quando falamos de Racismo Ambiental, não descartamos
Nos Estados Unidos, em razão da diferenciação entre brancos e negros, o em nenhuma hipótese o combate ao chamado racismo institucional ou à for-
termo racismo ambiental é explícito e, portanto, mais facilmente identificado. ma como ele se manifesta nas nossas vidas e no nosso dia-a-dia: o preconceito.
No Brasil, em função de uma maior miscigenação, a utilização do termo “in- Muito ao contrário, o que procuramos é expor melhor essa chaga, dissecar essa
ferida purulenta e denunciá-la como parte de um todo que deve ser comba-

56) Esse conceito é decorrente da análise de Acselrad sobre a razão cultural em contraponto
com a visão utilitária. ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais – o caso do 60) SKIDMORE, Thomas E. EUA Bi-racial vs. Brasil Multirracial: O Contraste ainda é
movimento por justiça ambiental. Estudos Avançados 24, 2010. p.108. Disponível em: < Válido? In: Conferência sobre Racismo e Relações Raciais nos Países da Diáspora Africana,
http://www.scielo.br/pdf/ea/v24n68/10.pdf > Acesso em: 10 abr. 2014. Rio de Janeiro. Abr, 1992. p.53. Disponível em: < http://www.novosestudos.org.br/v1/files/
uploads/contents/68/20080625_eua_multirracial.pdf> Acesso em: 18 abr. 2014.
57) VICENTE, Iara. A cor do risco: O racismo ambiental como categoria de estratificação
social. GT15. Disponível em: http://actacientifica.servicioit.cl/biblioteca/gt/GT15/GT15_ 61) SKIDMORE, Thomas E. EUA Bi-racial vs. Brasil Multirracial: O Contraste ainda é Váli-
VicenteI.pdf. Acesso em: 20 abr. 2014. do? In: Conferência sobre Racismo e Relações Raciais nos Países da Diáspora Africana, Rio
de Janeiro. Abr, 1992. Disponível em: < http://www.novosestudos.org.br/v1/files/uploads/
58) ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília Campello do A.; BEZERRA, Gustavo das Neves. contents/68/20080625_eua_multirracial.pdf> Acesso em: 18 abr. 2014.
O que é justiça ambiental. – Rio de Janeiro: Garamond, 2009. p. 47-52.
62) PACHECO, Tania. Desigualdade, injustiça ambiental e racismo: uma luta que transcen-
59) ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília Campello do A.; BEZERRA, Gustavo das Neves. de a cor. Disponível em: http://justicaambiental.org.br/projetos/clientes/noar/noar/UserFi-
O que é justiça ambiental. – Rio de Janeiro: Garamond, 2009. p. 47-52. les/17/File/DesInjAmbRac.pdf. Acesso em: 20 abr. 2014.

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tido e derrotado, se desejamos um mundo novo – ético, justo e democrático.”


Portanto, o conceito de “racismo ambiental” não se limita ao preconceito
racial, sendo muito mais abrangente. Ocorre que sua utilização tem um caráter
simbólico importante para a realidade brasileira.
A nomenclatura “racismo ambiental”, em detrimento da “injustiça ambien-
tal”, apresenta-se, pelo exposto, como ferramenta importante para que haja a
visibilidade, conscientização e enfrentamento dos problemas inerentes a segre-
gação racial – haja vista que estudos demonstrados neste trabalho evidenciam
ser o fator social mais relevante para a constatação da segregação, muito maior,
inclusive, que a divisão entre a renda ou classe social.

H Conclusão
O presente artigo buscou confrontar os conceitos de racismo ambiental com
o de injustiça ambiental e tentar entendê-los a partir da realidade brasileira.
Primeiro foi importante esclarecer as diferenças conceituais entre os ter-
mos, visto que o liame existente entre os mesmos é, por muitas vezes, tênue e,
184 até mesmo, passa despercebido.
Porém, é exatamente na etapa de diferenciação, que a carga simbólica se
apresenta. Desta forma, a partir dos estudos, tanto da doutrina brasileira e do
contexto histórico do Brasil quanto da doutrina estrangeira, que foi possível
averiguar a importância da utilização de um termo e não de outro.
Isto porque, enquanto o termo injustiça ambiental mostra-se amplo abar-
cando toda e qualquer forma de injustiça, o racismo ambiental busca destacar
que antes de tudo a desigualdade racial é apresentada como fator predominan-
te de exclusão social e, com ênfase para o caso brasileiro, necessita de maior
destaque, para que seja desvelada.
Destaca-se, por fim, que conforme apresentado por Tania Pacheco, o ra-
cismo ambiental não exclui as diversas outras formas de injustiça ambiental,
a importância de sua utilização está na carga simbólica e nos resultados que
podem ser trazidos a partir da consciência da realidade racista enfrentada e a
todo tempo velada, até mesmo como uma forma de resistir aos ocultamentos
propostos pelos críticos neoliberais, por meio da visão utilitária, e anulação dos
movimentos socioambientais.

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9
Função Socioambiental das
contratações públicas: O Estado
como ator da sustentabilidade

Elizabeth de Mello Rezende Colnago1


Polícia Militar do Estado do Espírito Santo

Sumário: Introdução. 1 O Estado como Consumidor: Um


Elemento a mais da Eficiência da Atividade Pública. 2 O Estado
na Posição de Consumidor Sustentável: Adequação a um Projeto de
Sociedade Sustentável. 3 Os Princípios da Administração Pública
na Perspectiva da Sustentabilidade: A Legalidade e a Eficiência com
o Fim de Reduzir Impactos Ambientais Negativos. 4 A Instrução 185
Normativa e a Contribuição para a Função Socioambiental nas
Contratações Públicas do Berço ao Túmulo. Conclusão

1) Advogada e Administradora de Empresas, Pós-Graduada em Direito Processual Civil,


Mestre em Ciências Sociais, Professora de Direito Administrativo da Polícia Militar do
Espírito Santo.
Função Socioambiental das contratações públicas: O Estado como ator da sustentabilidade Elizabeth de Mello Rezende Colnago

H Introdução exercida em razão e nos limites da função social do contrato”2.


Não é diferente a realidade brasileira, em relação às transformações
O presente artigo é uma reflexão dos principais questionamentos que envol- que ocorreram na sociedade do final do século XX e início do século XXI,
vem a função socioambiental nas múltiplas relações que se criaram entre o para as relações jurídicas que sofreram um processo de transformação
Estado e o complexo social para se alcançar o objetivo “desenvolvimento sus- socioeconômico, num contexto de desindustrialização e de urbanização
tentável”. Toda a atuação do Estado deve garantir resultados econômicos, re- inéditos na história brasileira.
duzir o impacto ambiental e melhorar o seu relacionamento com a sociedade. Um exemplo a ser citado é o caso específico do processo de desenvolvimento
E para alcançar esse objetivo deve ter visão ampliada na função socioam- da Região Metropolitana de Vitória como forma de integrar essa área na econo-
biental dos contratos, para dar ênfase a esse novo modelo, que tem por estra- mia internacional. Para alguns autores, isto vem acentuar as desigualdades sociais
tégia a mudança de agenda na gestão do negócio público, incluindo simultane- sem, contudo, deixar de trazer os impactos positivos como aponta Mattos: “[...]
amente a responsabilidade do Estado como um ator da sustentabilidade, para sobre a economia capixaba considerando apenas os fatores positivos como sua
reforçar os laços do Estado com a sociedade e a natureza. localização geográfica e condições naturais privilegiadas, como a implantação
A proteção ao meio ambiente contemporânea surge, principalmente, com a dos grandes empreendimentos industriais ligados ao mercado internacional e
degradação ambiental provocada por diferentes atividades humanas, e o ritmo com os investimentos em infraestrutura portuária e ferroviária, que criaram uma
da contínua expansão dos problemas ambientais, têm sido na atualidade obje- base industrial, o que possibilitou a inserção do Espírito Santo na nova lógica de
to de inúmeros debates. Tais desafios vêm apontando para a necessidade de se desenvolvimento [...] a mundialização e a reestruturação devem ser vistos como
pensar o desenvolvimento mais eficaz ecologicamente entre a proteção da pes- processos contraditórios, contendo dinâmicas de homogeneização e de singula-
soa humana e o respeito ao meio ambiente. rização territorial, o que equivale dizer que as condições econômicas, sociais, ins-
186 O tema não se esgota aqui, ele é complexo e os desafios continuarão para titucionais e culturais são fatores importantes nas estratégias de localização das 187
novos debates, pois a noção de desenvolvimento sustentável não evidencia a empresas e causam impactos, nem sempre positivos, nas questões sociais.3”
possibilidade ecológica de generalização dos padrões de consumo do Estado e Assim, no campo de novos conflitos sociais, onde a mundialização inten-
das sociedades atuais, mas deve reforçar uma mudança dos valores éticos, pau- sificou o processo de migração do campo para a cidade, novos efeitos sociais
tados na solidariedade como forma de preservar os níveis de bem estar mate- surgiram com a vulnerabilidade de parte da população, com restrições de aces-
rial, que consequentemente passará por uma mudança nesses padrões de con- so às condições mínimas de bem-estar e cidadania, gerando relações jurídicas
sumo, reforçando a ideia de bem estar social. das mais diversas e perversas, num contraponto à logica de mercado, gerando
Dessa forma, a autonomia de vontade ou liberdade de contratar é de funda- nova realidade contratual. Não persistindo mais o dogma da vontade em que
mental importância à nova realidade social e econômica. as partes contraentes eram consideradas formalmente iguais.
O regime contratual é concebido com o poder de autorregulamentação
dos interesses privados, observada a função social, face as “[...] transformações
das relações jurídicas na sociedade do século XX, o incremento da industriali-
1) O Estado como consumidor- um elemento a
zação e o surgimento do consumo de massa trouxeram um novo fundamento
mais da eficiência da atividade pública à ideia de justiça contratual”4.

O encontro do Estado de Direito e do Estado Social implica efeitos so- 2) Art. 421. In: BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Códi-
bre a racionalidade interna do sistema político, em que a interferência do go Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. 2002.
Estado nas relações jurídicas entre os particulares faz prevalecer o interesse 3) MATTOS, R. F. S. Expansão urbana, segregação e violência: um estudo sobre a Região
do bem-comum e da redução das desigualdades sociais. Considerando isso, Metropolitana da Grande Vitória. Vitória: EDUFES, 2011, p. 115-116.
a liberdade de contratar está atrelada aos fins sociais do contrato, como está, 4) LOREIRO, L. G. Teoria geral dos contratos no novo código civil. São Paulo: Método,
assim, disposto no Código Civil Brasileiro: “A liberdade de contratar será 2002, p. 44.

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Dessa forma, a autonomia de vontade ou liberdade de contratar é de funda- Nessa concepção, o contrato é uma operação econômica, vinculado a prin-
mental importância à nova realidade social e econômica. E outra não é a inter- cípios e regras de direito, muitas vezes, complexos e entendido a partir da ideia
pretação da norma contida no dispositivo legal, o “artigo 421”, do atual Código de circulação de riquezas, de um fator social e econômico, o que exprime uma
Civil Brasileiro, em que relaciona a “Função Social” com a preocupação do bem realidade de interesses mútuos. É, assim, um critério objetivo, sendo uma ope-
-estar coletivo. Em outras palavras, essa relação tem como finalidade precípua ração econômica ou não econômica.
a harmonização dos interesses individuais com a nova ordem econômica e so- Na função econômica, ele se refere somente a um bem material, mas “[...]
cial dentro dos princípios da justiça social. implica em circulação de riqueza, atual ou potencial transferência de riqueza
Mas a função social não é definida no artigo acima citado, passando a ser de um sujeito para outro”8. Com relação à ideia de riqueza, cabe lembrar que,
interpretada em outros dispositivos do mesmo diploma legal. Mais especifi- mesmo a promessa em benefício de terceiros, representa um contrato, como o
camente, isto vai ocorrer quando é fixada a importância do elemento moral contrato de promessa de compra e venda.
e da equidade nas relações entre os contratantes, traduzidas pela probidade O contrato implica ainda a função social, destinado à circulação de riqueza
e boa-fé, que devem guardar os contratantes em suas relações contratuais com segurança, vinculado ao desenvolvimento econômico de cada sociedade,
como previsto no artigo 422 que assim determina, “[...] os contratantes são época e em cada mercado. Transforma-se e se adequa. Mas não perde sua fun-
obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, ção primordial, que é a liberdade, para não ser instrumento que sirva de domi-
os princípios de probidade e boa-fé”5. nação dos mais fortes em detrimento dos mais fracos.
Para entendermos o conceito de contrato, é preciso que se entenda a fun- Confirma-se o princípio da autonomia da vontade “[...] não mais em ter-
ção econômica do contrato. Esta última está sendo, diariamente celebrada, seja mos absolutos e ilimitados, mas sujeitas a limites impostos pela lei, por deci-
comprando um bilhete de passagem num coletivo, seja comprando um lápis sões judiciais e por atos administrativos que procurem assegurar o interesse
188 e, até mesmo, ao ofertar um presente ou ainda usufruir o meio ambiente com preferencial da sociedade”9. 189
responsabilidade para que a futura geração possa usufruir de forma equânime. Na função social do contrato, o legislador previu a mesma pretensão quan-
Um contrato natural, uma nova relação do ser humano com a natureza, to à função social da propriedade, para garantir-lhe o equilíbrio, preservando o
com a previsão das mudanças e transformações do mundo que nos cerca, interesse da sociedade, e não o individual. É uma característica marcante à rea-
percebendo a natureza como um sujeito que interage, ou seja, um sujeito de lidade contemporânea, em prevalência aos direitos coletivos sobre os individu-
direito, enseja uma responsabilidade neste plano contratual. E, neste novo ais, “[...] sem perda, porém, do valor fundante da pessoa humana”10.
plano contratual: “[...] os direitos humanos ganham uma ‘tonalidade verde’ Assim, a função social do contrato, volta-se para os fundamentos e ob-
que sugere a luta do ambientalismo para adicionar aos direitos humanos o jetivos da República, que se constitui em Estado Democrático de Direito,
direito a um ambiente seguro e saudável, de maneira a incluí-lo numa lista com princípios basilares, os quais estão contidos nos artigos 1° e 3° da
de conquistas formalmente estabelecidas.6” Constituição Federal de 1988. Estes princípios orientam toda e qualquer
O contrato é explicado tanto no plano da sociologia como no plano da operação econômica, ante a não violação da dignidade da pessoa humana,
economia. Afinal, vivemos em sociedade, somos limitados e precisamos das dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, da equidade, da solida-
relações de troca para poder sobreviver, embora haja contrato a um inte- riedade e da produção de riquezas.
resse, ainda que não patrimonial. Sendo assim, o “contrato, portanto, é um Em interpretação a essas normas, tem-se que, se a operação econômica, re-
conceito jurídico que exprime uma realidade econômica subjacente na vida vestida em contrato, violar um desses fundamentos e objetivos constitucionais,
cotidiana da sociedade”7. não será cumprida a sua função social. Dessa forma, “[...] a liberdade contratu-

5) Art. 422. In: BRASIL, 2002. 8) LOUREIRO, 2002, p. 49.


6) TAVOLARO, 2001, p. 180. 9) LOUREIRO, 2002, p. 50.
7) LOUREIRO, 2002, p. 48. 10) LOUREIRO, 2002, p. 53.

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al só pode ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato, o que que seja regido por suas ‘cláusulas e pelos preceitos de direito público’16, são
implica a supremacia dos princípios da boa-fé e da equidade”11. aplicados, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as dis-
Nesse mesmo sentido, verificamos mudanças conferidas ao Estado, mesmo posições de direito privado.
composto por seu governo soberano, que surgem naturalmente, deparando-se Em tese de doutorado, Rabelo defende que “[...] prevalece para o Contrato
com o Estado de Direito, este organizado conforme seus ditames constitucio- Administrativo uma vontade de característica nitidamente normativa, que
nais, e que se submete às leis que cria. cumpre o mesmo papel da vontade individualmente considerada”17.
À medida em que o Poder Público se organiza, cria um aparelhamento Consequentemente, observa-se os reflexos do Código Civil nos contratos
complexo para cuidar de seus serviços e dar consecução aos seus objetivos, por administrativos. Esses últimos são regidos pela Lei 8.666/93, que passou a re-
meio da “Administração Pública”. Cabe lembrar que “[...] o verbo administrar gulamentar o artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal de 1988, mas com
indica gerir, zelar, enfim uma ação dinâmica de supervisão. O adjetivo pública observação a um conjunto de formalidades. Dentre essas formalidades, não se
pode significar não só algo ligado ao Poder Público, como também à coletivi- pode olvidar que a função social ou extraeconômica nas contratações públicas
dade ou ao público em geral”12. ou administrativas “[...] tornam-se um meio não apenas de satisfazer neces-
Assim, em sentido objetivo, consiste na própria atividade administrativa sidades imediatas do Estado. Passam a ser um instrumento de incentivo e fo-
exercida pelo Estado, por seus órgãos e seus agentes, caracterizando a função mento a atividades reputadas como socialmente desejáveis”18.
administrativa. Em sentido subjetivo, vamos encontrar o conjunto de agentes, Além do que, as ideologias contemporâneas pregam a redução do aparato es-
órgãos e pessoas jurídicas que executam as atividades administrativas. tatal, seguindo a linha de ampliação da eficiência na utilização de recursos públi-
A esse aparelhamento complexo organizado pelo Estado, que se traduz cos. Dessa forma, temos que a Administração Pública, direta e indireta, de qual-
em Administração Pública, tanto pode desenvolver por si mesmo as ati- quer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
190 vidades administrativas que têm, constitucionalmente, a seu encargo por em suas relações contratuais, deve, obrigatoriamente, observar os princípios 191
meio da “Administração Direta”13. Ou por meio de uma “Administração constitucionais essenciais para garantir a honestidade na gestão da coisa públi-
Indireta”14 que será prestada através de outros sujeitos. Portanto, segundo ca e responsabilizar seus gestores que se afastarem dessas diretrizes obrigatórias.
José dos Santos Carvalho Filho, sendo qual for “[...] à hipótese de adminis- A previsão do artigo 37 da Carta Magna de 1988 consagra normas
tração da coisa pública (res publica), é inafastável a conclusão de que a des- básicas regentes da Administração Pública e proclama os princípios da
tinatária última dessa gestão há de ser a própria sociedade, ainda que a ati- Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência, como
vidade beneficente, de forma imediata, o Estado”15. pilares de sua sustentação.
Como a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da fun- A Norma superior deixou expressos os princípios a serem observados, con-
ção social do contrato, nos contratos administrativos não será diferente. Posto sagrando o princípio da “Legalidade”, como diretriz básica da conduta dos
agentes administrativos, determinando de forma mais rigorosa e especial, que
toda e qualquer atividade administrativa implica autorização da lei.
11) LOUREIRO, 2002, p. 53-54. E não é diferente após séculos de evolução política, a criação do Estado
12) CARVALHO FILHO, J. S. Manual de Direito Administrativo. 22 ed., ver. ampl. e atual.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 9.
16) Conceitua-se contrato administrativo como um tipo de avença travada entre a Administra-
13) Administração Direta – órgãos e agentes que compõem o sistema federativo (União, Es- ção e terceiros na qual, por força de lei, de cláusulas pactuadas ou do tipo do objeto, a per-
tados, Distrito Federal e Municípios). Desempenham a atividade administrativa de forma manência do vínculo e as condições preestabelecidas assujeitam-se a cambiáveis imposições
centralizada. de interesse público, ressalvados os interesses patrimoniais do contratante privado.
14) Administração Indireta – algumas pessoas jurídicas (entidades) incumbidas de executar a 17) R
 ABELO, M. A. Substantividade, função social e boa-fé na valoração do contrato adminis-
função administrativa (autarquias, sociedade de economia mista, empresas públicas e funda- trativo. Tese (Doutorado em Direito Administrativo). Belo Horizonte: UFMG, 2006, p. 40.
ções públicas). Desempenham a função administrativa de forma descentralizada.
18) JUSTEM FILHO, M. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 13 ed.
15) CARVALHO FILHO, 2011, p. 9. São Paulo: Dialética, 2009, p. 12.

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de Direito está aí consagrado, já que o Estado submete-se a própria lei que prática de todo e qualquer do ato administrativo, e, quando atuar, sem ob-
cria, não havendo margem de liberdade na atuação de seus agentes. Inexiste servar a forma legal, em desrespeito à moralidade administrativa: “[...] en-
a incidência de sua vontade subjetiva; já que executor do direito, que atua quadra-se nos denominados atos de improbidade, previstos pelo art. 37, § 4°,
sem finalidade própria; mas em respeito ao interesse imposto pela lei, pre- da Constituição Federal, e sancionados com a suspensão dos direitos polí-
servando a ordem pública. ticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarci-
Todavia, em nova concepção contemporânea, a submissão da mento ao erário, na forma e gradação da lei.22”
Administração ao Direito, deixa revelar uma margem de liberdade na atua- O princípio da “Publicidade” inserido, também, pelo comando consti-
ção de escolha na prática de atos administrativos por seus agentes, de forma tucional, indica que, se deve dar divulgação oficial aos atos praticados pela
discricionária, mas com previsão na lei, para a melhor atuação possível com Administração Pública, em Diário Oficial ou por edital afixado no lugar pró-
a possibilidade de valoração da conduta. prio para divulgação de atos públicos, para conhecimento do público em geral,
O princípio da legalidade implica que “[...] na administração pública só é segundo Alexandre de Moraes.
permitido fazer o que a lei autoriza, diferentemente da esfera particular, em O ato administrativo, após sua publicidade, dará início a produção dos efei-
que será permitida a realização de tudo que a lei não proíba”19. tos desejados, ensejando a transparência administrativa, posto que não maneja
O Principio da “Impessoalidade”, no rol do artigo 37 da CRFB/88 vol- interesses, poderes ou direitos pessoais, conforme preceito da impessoalidade,
ta-se nas palavras de Carvalho Filho, “[...] exclusivamente para o interesse pois conforme um dos seus fundamentos, previsto no artigo 1°, parágrafo úni-
público, e não para o privado, vedando-se, em consequência, sejam favoreci- co da Constituição Federal de 1988, que assim dispõe: “[...] todo poder emana
dos alguns indivíduos em detrimento de outros e prejudicados alguns para do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos
favorecimento de outros”20. termos desta Constituição”23.
192 O interesse público é a única “finalidade” na atuação administrativa, já que Neste sentido, o povo é titular do poder e deve ter conhecimento de todos 193
se encontra no campo de incidência do princípio da isonomia e da legalidade. os atos praticados, já que pode deter o controle da legitimidade da conduta dos
A administração pública deve atuar ajustando-se as regras de Direito, segun- agentes que praticarem os atos. Aqui ainda se insere a eficiência, que deve ser
do a meta principal é atingir o alvo “interesse público”, em que a igualdade é aferida pelos cidadãos. Carvalho Filho, informa que: “[...] é importante que
mandamento e respeito constitucional, para a função administrativa, sob pena não se deixe de fora o registro de que o princípio da publicidade deve sub-
de “desvio de finalidade”, “[...] que ocorre quando o administrador se afasta do meter-se todas as pessoas administrativas, quer as que constituem as próprias
escopo que lhe deve nortear o comportamento – o interesse público”21. pessoas estatais, quer aquelas outras que, mesmo sendo privadas, integram o
O artigo 37 ainda se referiu ao princípio da Moralidade, ou da “ética” que quadro da Administração Pública, como é o caso das entidades paraestatais
todo administrador público não deve dispensar em sua conduta, distinguindo (empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas).24”
o que é honesto do que é desonesto, onde o constituinte teve a pretensão de Por fim, como último princípio inserido no texto do artigo 37, em 1988,
coibir a improbidade no âmbito da administração pública. pela Emenda Constitucional n. 04, denominada Reforma Administrativa,
A moralidade incide tanto nas relações entre Administração e administra- temos o princípio da eficiência, que se volta para a qualidade, na prestação
dos e nas relações entre a Administração e seus agentes que a integram, como do serviço público.
forma de pressuposto de validade de todo ato praticado. Segundo Alexandre de Moraes, o administrador público precisa ser efi-
E pressupõe a proporcionalidade entre os meios e os fins a atingir, na ciente e impõe à Administração Pública direta e indireta: “[...] a persecução do
bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial,

19) MORAES, A. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 4 ed.


São Paulo: Atlas, 2004, p. 793. 22) MORAES, 2004, p. 795.
20) CARVALHO FILHO, 2011, p. 17. 23) Art. 1º. In: BRASIL, 1988.
21) CARVALHO FILHO, 2011, p. 18. 24) MORAES, 2004, p. 795.

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neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da a sustentabilidade nos contratos administrativos passa, assim, a ser um elemen-
qualidade, primando pela adoção de critérios legais e morais necessários para to a mais da eficiência da atividade pública. Portanto, o Estado como um dos
melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar desperdí- atores da sustentabilidade deve cumprir a função socioambiental nos contra-
cios e garantir uma maior rentabilidade social.25” tos administrativos, fazendo prevalecer o interesse do bem-comum e a redução
A qualidade do serviço prestado se inclui em todos os serviços prestados das desigualdades sociais. A autonomia de vontade ou liberdade de contratar
pela Administração, quer direta ou indireta, quer por seus delegados, sendo é de fundamental importância à nova realidade social, econômica e ambiental.
que o cerne do princípio, é a procura da produtividade e economicidade, redu- Além disto, o Estado, como consumidor, passa a observar as normas con-
zindo desperdícios de dinheiro público. tidas no Código de Proteção e Defesa do Consumidor, Lei 8078/1990. A
Na linha de interpretação do citado acima quanto à forma de “produtivi- referida lei estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, da or-
dade e economicidade”, a eficiência deve ser compreendida tanto qualitati- dem pública e interesse social nos termos do artigo 5° (Dos direitos e deveres
va como quantitativamente. Ela tem uma relação estreita com o Direito do individuais e coletivos), inciso XXXII, artigo 170, inciso V da Constituição
Consumidor, na medida em que a sociedade, por meio da prestação de serviços Federal de 1988 (Dos princípios gerais da atividade econômica). Em seu artigo
públicos, se caracteriza como usuária e consumidora destes, fazendo com que a 2º, esta lei define o consumidor como sendo toda pessoa física ou jurídica
eficiência seja um elemento indispensável no fornecimento dos bens e serviços que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. E, assim,
pela Administração Pública. no parágrafo único deste mesmo artigo, a lei detalha que “consumidor” pode
Com relação à Administração Pública, a Emenda Constitucional n. 04/98, ser compreendido como sendo a coletividade de pessoas mesmo que inde-
como proposta da citada “Reforma Administrativa”, considera, para o princí- termináveis; o que leva a abranger nessa expressão a Administração Pública.
pio da eficiência, “resultado” como sendo o sinônimo de qualificação, produtivi- Como organização política que é, o Estado atua, perante a sociedade, por
194 dade, profissionalização para o novo servidor público. Este princípio resguar- meio da organização da Administração Pública. 195
da os direitos e garantias fundamentais, preconizados pelo Estado de Direito Consequentemente, o Estado é apreendido como sendo ele um consumi-
e que foram ao encontro do Estado Social. Ainda, ele preconiza que haja uma dor de acordo com a referida lei. Isto implica para tanto que, em todo o pro-
obrigação de cuidado do patrimônio público com “efetividade”26 no trato da cesso da compra pública, incluindo a tríade “necessidade/planejamento/execu-
prestação de serviços qualitativos à coletividade. ção”, deve estar sendo considerado o padrão sustentável imposto pela Instrução
É nesse item, especificamente, que o Estado como consumidor, então, se Normativa citada acima. E isto, desde o momento em que o processo licita-
depara com a questão sustentável, que foi inserida pela Instrução Normativa tório é deflagrado até a sua execução. Ou seja, o princípio da sustentabilidade
N. 1, de 19 de Janeiro de 2010 da SLTI/MP27 28. Esta instrução prima pela efe- deve ser, primeiramente, considerado na elaboração criteriosa do edital, com
tividade na aquisição de bens ou contratação de serviços quando, através dela, descrição específica do objeto quanto a sua real necessidade, das exigências
que beneficiem a organização, sem prejudicar a sociedade e o meio ambiente29.
25) MORAES, 2004, p. 799. E, neste sentido, a Administração Pública tem o dever de acompanhar o
cumprimento das obrigações previstas no contrato, fiscalizando se, de fato, elas
26) Efetividade não se confunde com eficácia e eficiência. Efetividade é voltada para os resulta-
dos obtidos com as ações administrativas. estão sendo executadas. A fiscalização é uma das “cláusulas exorbitantes”30 que,
sendo inserida no contrato, passa a garantir que sejam observados os três pi-
27) Art. 1º. In: BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instrução Nor-
mativa n. 01, de 19 de janeiro de 2010. In: Instruções Normativas. 2010. Disponível em: lares da sustentabilidade, quais sejam, o econômico, o social e o ambiental.
<http://www.comprasnet. gov.br/legislacao/legislacaoDetalhe.asp?ctdCod=295>. Acesso Observados na fiscalização, as consequências negativas serão evitadas no mo-
em: 20 jun. 2012.
28) Nos termos do art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, as especificações para 29) MEDAUAR, 2012, p. 660.
a aquisição de bens, contratação de serviços e obras por parte dos órgãos e entidades da
administração pública federal direta, autárquica, e fundacional deverão conter critérios de 30) Cláusulas Exorbitantes são as prerrogativas especiais conferidas à Administração na rela-
sustentabilidade ambiental, considerando os processos de extração ou fabricação, utilização ção do contrato administrativo em virtude de sua posição de supremacia em relação à arte
e descarte dos produtos e matérias-primas. contratada.

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mento da execução do contrato, em benefício da sociedade e do meio ambiente. co 34. Para tanto, a perspectiva ecológica do processo econômico deve ser levada
Os contratos públicos cumprem a função social como nos contratos par- em conta. Afinal, como ressalta Da-Silva-Rosa: “[...] o processo econômico de
ticulares. No caso dos contratos públicos, são inseridos cláusulas de privilé- transformação pode ser visto como um processo natural, típico da espécie hu-
gios que os diferencia do particular, que bem demonstra sua superioridade mana. De maneira análoga ao que se passa na natureza, o processo econômi-
em face da outra parte contratante, em atendimento ao interesse da coleti- co se compõe de três etapas ou atividades: (1) o consumo de recursos; (2) a sua
vidade. Segundo Carvalho Filho: “[...] constituem verdadeiros princípios do transformação em produtos pelas diferentes etapas, e (3) a devolução (o feedback)
direito público, e, se antes eram apenas enunciadas pelos estudiosos do as- dos dejetos no meio próximo.35”
sunto, atualmente transparecem no texto legal sob a nomenclatura de “prer- Se o Estado tomar em conta o acima citado, o que parece ser o caso através
rogativas” (art. 58 do estatuto). São esses princípios que formam a estrutura da dita Instrução Normativa, ele passa a não ser mais um consumidor, mas um
do regime jurídico de direito público, aplicável basicamente aos contratos consumidor sustentável, respondendo, inclusive, os compromissos do Brasil as-
administrativos (art. 54, Estatuto).31” sumidos nas conferências onusianas sobre meio ambiente e desenvolvimento.
O Estatuto ao qual se refere Carvalho Filho na citação acima é a lei Cabe ressaltar, ainda, que está em tramitação na Câmara Federal o Projeto de
que estabelece normas gerais sobre licitações e contratos da Administração Lei 3.899/12, que vai instituir a Política Nacional de Estímulo à Produção e
Pública. De acordo com ela, a Administração, por meio das cláusulas cha- Consumo Sustentável, cujo objetivo é incentivar a adoção de práticas susten-
madas “exorbitantes” (impostas pelo Poder Público), tem a possibilidade de táveis e priorizar “[...] nas aquisições e contratações governamentais, produ-
assegurar a própria viabilidade econômica da contratação administrativa. tos reciclados e recicláveis; e a bens, serviços e obras que considerem critérios
Essas cláusulas são um poder-dever da Administração Publica, pois, segun- compatíveis com padrões de consumo social e ambientalmente sustentáveis”36.
do Marçal Justem Filho, “[...] A Administração dispõe de um poder jurídi- Deve ser pensado no “decréscimo” do ritmo de exploração dos recursos na-
196 co, que lhe é outorgado não no interesse próprio – mas para melhor realizar turais, renováveis ou não, isto é, práticas de consumo e ações socioambientais 197
um interesse indisponível”32. menos intenso da natureza, com recursos mais econômicos.
Em relação à função socioambiental dos contratos administrativos, na cria-
ção de uma política de Contratações Públicas, as prerrogativas especiais leva-
rão em consideração os critérios de sustentabilidade, ou seja, critérios funda-
2) O Estado na posição de consumidor sustentável:
mentados no desenvolvimento econômico e social, bem como no respeito ao
meio ambiente. Para Veiga e Cechin, no entanto, nos estudos com foco na di- adequação a um projeto de sociedade sustentável
mensão econômica estão raramente explicitados os impactos ambientais e so-
ciais causados pela atividade econômica. Afinal, “[...] o individualismo meto- Como é cediço, o Estado, sendo uma organização política, atua perante a so-
dológico da teoria econômica ignora sistematicamente a natureza hierárquica ciedade por meio da organização da Administração Pública, e, segundo José
dos sistemas sociais e ecológicos”33. Afonso Silva define que a organização administrativa do Estado federativo é
A Instrução Normativa parece não estar privilegiando essa visão conven- complexa quando aponta que: “[...] a função administrativa é institucional-
cional da atividade econômica a ser praticada pelo Estado, através da função mente imputada a diversas entidades governamentais autônomas, que, no caso
socioambiental de seus contratos administrativos. Frente a um Estado consu- brasileiro, estão expressamente referidas no próprio art. 37, de onde decorre a
midor, este ator deve buscar sempre, em suas relações contratuais, a conserva-
ção das espécies vivas em especial a humana, como finalidade do agir econômi- 34) DA-SILVA-ROSA & VEIGA, 2009, p. 32.
35 ) DA-SILVA-ROSA & VEIGA, 2009, p. 33.
31) CARVALHO FILHO, 2011, p. 174. 36) BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 3.899/2012. Institui a Política Na-
32) JUSTEM FILHO, 2009, p. 708. cional de Estímulo à Produção e ao Consumo Sustentáveis. Disponível em: <http://www.
camara.gov.br/ proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=545304>. Acesso em: 10
33) VEIGA, J. E. (org.). Economia socioambiental. São Paulo: SENAC, 2009, p. 10. dez. 2012.

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existência de várias Administrações Públicas: a federal (da União), a de cada Ou seja, eles passam a ser observados nas contratações administrativas no
Estado (Administração Estadual), a do Distrito Federal e a de cada Município sentido de se aplicar a legislação ambiental em vigor, antes de qualquer ativi-
(Administração Municipal ou local), cada qual submetida a um Poder político dade a ser exercida (isso é, desde um projeto básico, aos procedimentos licita-
próprio, expresso por uma organização governamental autônoma.37” tórios até a escolha da melhor proposta); e, até mesmo, na execução contratual,
Destarte, a Administração Pública exerce sua atividade por meio de agen- evitando, assim, um impacto negativo das contratações públicas. Essa é uma
tes e tem a natureza de um “múnus público”38. Isto é, a de um encargo de defesa, recente abordagem sobre compras públicas, as quais devem contribuir para a
conservação e aprimoramento dos bens, serviços e interesses da coletividade. sustentabilidade do desenvolvimento, que passou a ser regulamentada pelo ar-
Nesse sentido, todo agente do poder assume, para com a coletividade, o com- tigo 3° da Lei de Licitações e Contratos no âmbito da Administração Pública,
promisso de bem servi-la, porque outro não é o desejo do povo. pela Instrução Normativa Nº 1, de 19 de Janeiro de 2010 da SLTI/MP.
Assim, os fins perseguidos pela Administração Pública resumem-se no ob- Assim, nas contratações administrativas anteriores a IN acima, a “Eficiência”
jetivo do Estado Democrático de Direito. Este é a síntese da organização so- pautava-se em comprar mais rápido e melhor; pelo menor custo possível. Ou
cial, a fim de satisfazer o bem-estar comum da coletividade e que deve admi- seja, ela era compreendida numa perspectiva economicista. Com a entrada em
nistrar com “eficiência toda a vida pública”39. É essa supremacia de interesse que vigor da dita Instrução, a noção de eficiência toma uma outra dimensão, na
vai dar margem a que a sustentabilidade seja inserida no âmbito das contrata- medida em que, devido a IN, ela se insere no paradigma da sustentabilidade. É
ções públicas feitas pelo Estado, seja em níveis federal, estadual ou municipal. a densificação da eficácia. Com a nova política, o uso do poder de compra do
O alicerce da sustentabilidade na referida instrução normativa tem por ob- Estado deve observar critérios sustentáveis, pautando as comprar públicas em
jeto, reduzir o consumo de água e energia; a diminuição do impacto ambiental; segmentos estratégicos e relevantes, com vistas ao desenvolvimento econômico
a geração de resíduos; a toxicidade nos bens e insumos, além de fomentar po- e social ecologicamente sustentável. Dessa forma, este ator busca responder ao
198 líticas públicas voltadas à proteção do meio ambiente. anseio social em favor de uma sociedade sustentável e aos compromissos am- 199
bientais assumidos pelo Estado brasileiro no cenário internacional.
Quanto ao princípio da “Legalidade”, o Estado, enquanto agente público,
só faz o que a lei autorizar ou determinar, estando vinculado aos seus manda-
3) Os princípios da Administração Pública na perspectiva
mentos, observando as suas diretrizes, não tendo, portanto, total liberdade de
da sustentabilidade: A legalidade e a eficiência com ação. À exceção de quando a própria lei lhe der margem de liberdade para agir,
no que ele, mesmo assim, estará no cumprimento da legislação. Considerando
o fim de reduzir impactos ambientais negativos
a IN, o Estado, no cumprimento da lei, tem que passar a considerar os critérios
de sustentabilidade ambiental como estão dispostos na IN com o fim de redu-
Em relação ao uso racional de recursos públicos, o Estado quando atua como
zir impactos ambientais negativos. Para o caso das obras sustentáveis, devem
consumidor, não é um mero comprador. Pauta sua conduta na observação do
ser observados a redução do consumo de energia e água e o uso de tecnologias
princípio da Legalidade e Eficiência, em consonância com os demais princípios
e materiais ambientalmente sustentáveis. No caso das compras de bens e servi-
basilares, expressos no artigo 37 da Constituição Federal de 1988. Essa obser-
ços, devem ser observadas características quanto à eco eficiência dos produtos
vação deve ser feita da forma mais racional possível. Entre os princípios basila-
a serem adquiridos e de serviços a serem contratados.
res, estes dois são ressaltados aqui porque ambos se conectam com o paradigma
Dessa forma, o Estado-Administração, nas licitações e contratações públi-
da sustentabilidade a partir da Instrução Normativa 01/2010.
cas tem o dever de realizar este procedimento com eficácia e não simplesmente
com eficiência ou mera legalidade. Deve adaptar-se ao sistema normativo em
37) SILVA, J. A. Direito Administrativo. 23 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 67. consonância com o “principio positivo da sustentabilidade multidimensional”40.
38) CARVALHO FILHO, 2011, p. 527.
39) Princípio basilar da Administração Pública, inserido pela EC n. 19/98 ao artigo 37 da
CF/88. 40) FREITAS, J. Sustentabilidade: direito ao futuro. 2 ed., Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 241.

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nos artigos 2º ao 6º desta Instrução Normativa, no que couber”.42


4) A instrução normativa e a contribuição para a função A intenção do legislador é no sentido de que as especificações para a aqui-
socioambiental nas contratações públicas do berço ao túmulo sição de bens, contratação de serviços e obras por parte dos órgãos e entida-
des da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, deverão
Ante a inserção da “promoção do desenvolvimento nacional sustentável”, a conter critérios de sustentabilidade ambiental, considerando os processos de
IN abrange, em seu artigo 1º (nos termos do artigo 3º da Lei nº 8.666/93), extração ou fabricação, utilização e descarte dos produtos e matérias-primas.
as especificações para a aquisição de bens, contratação de serviços e obras Como indicadores de Sustentabilidade, preconizados pela Instrução
por parte dos órgãos e entidades, tanto da administração pública federal di- Normativa n. 01/2010, tem-se o ciclo de vida dos produtos. Isso consiste no
reta e indireta. Estes deverão conter critérios de sustentabilidade ambiental, exame do ciclo de vida de um produto, processo, sistema ou função, procuran-
considerando os processos de extração ou fabricação, utilização e descarte do identificar o seu impacto ambiental, no transcurso de sua existência, que
dos produtos e matérias-primas. inclui desde a extração do recurso natural, seu processamento para a trans-
Está, assim, visualizado o paradigma da sustentabilidade pelo viés da efici- formação em produto, transporte, consumo/uso, reutilização, reciclagem, até a
ência pública como, também, o uso do poder de compra do Estado, que tem disposição final. É comum utilizar a expressão “do berço ao túmulo”43.
por objeto a prestação de serviços públicos com padrão de excelência e quali- Esse ciclo de vida consiste na entrada de materiais (consumo), processos
dade ambiental. Visa, ainda, a operosidade da atuação da administração públi- de produção e condições, sua entrega, uso e descarte final. Ou seja, a sus-
ca. Como dito anteriormente, existem diferentes razões para introduzir crité- tentabilidade deverá estar garantida em toda a execução do contrato, cons-
rios ambientais a fim de buscar a compatibilidade ou coerência do conteúdo tatando-se que a seriedade e concretude da proposta vencedora, atende aos
das normas. Afinal, não se pode esquecer que a própria Constituição Federal critérios de sustentabilidade.
200 de 1988 coloca o direito de todos os cidadãos ao meio ambiente saudável e Assim, especialmente no artigo 2º da citada IN, encontra-se um princípio 201
que esta deixa evidente a necessidade de se respeitar os tratados internacionais, de suma importância, que é o da competitividade. Esse princípio é efetivado
compromissos assumidos pelo Estado. Isto é lembrado por Eros Grau quan- quando na fase externa do certame, é dada a divulgação oficial, para convocar
do afirma que: “A lei pode, sem violação do princípio da igualdade, distinguir maior número de participantes. Esses participantes irão oferecer propostas que
situações, a fim de conferir a uma tratamento diverso do que atribui a outra. sejam vantajosas para a Administração Pública.
Para que possa fazê-lo, contudo, sem que tal violação se manifeste, é necessário Estamos falando do instrumento convocatório, ou seja, do edital de lici-
que a discriminação guarde compatibilidade com o conteúdo do princípio.41” tações que deve apresentar itens com as exigências de natureza ambiental de
Sendo assim, não se está violando o princípio da igualdade entre os licitan- forma a não frustrar o seu caráter competitivo. A competividade deve garantir
tes. A sustentabilidade como uma temática contemporânea que ganha força no ampla participação, com disputa ética, em todas as fases seguintes ao do edi-
cenário nacional através desta IN, quando ela se torna um elemento da eficiên- tal no referido certame licitatório, possibilitando a classificação das propos-
cia na atividade pública. E, nesse padrão de excelência, qualidade e operosida- tas apresentadas e que devem estar em conformidade com os itens do edital.
de, um dos critérios adotados pela IN em seu artigo 10 é de que: “[...] os órgãos Dentre as propostas classificadas, que terá maior número possível de concor-
e entidades da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacio-
nal, quando da formalização, renovação ou adiantamento de convênios ou ins-
42) BRASIL, 2010.
trumentos congêneres, ou ainda de contratos de financiamento com recursos
da União, ou com recursos de terceiros tomados com o aval da União, deverão 43) Será entendido como ciclo de vida, ou seja, estágios do processo de produção e comercia-
lização, desde a origem dos recursos naturais no meio ambiente, até a disposição final dos
inserir cláusulas que determine à parte ou partícipe a observância do disposto resíduos de materiais após o uso, passando pelo beneficiamento, transportes, estocagens,
processamento, manutenção e outros estágios intermediários. Por isso, esse conceito tam-
bém é conhecido pela expressão do berço ao túmulo (cradle to grave), o berço é o meio ambien-
41) BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI N. 3.070-RN. In: Informativo STF. n. 493, te de onde são extraídos os recursos naturais que serão transformados e o túmulo é o próprio
2007. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/ informati- meio ambiente enquanto destino final dos resíduos de produção e consumo que não foram
vo493.htm>. Acesso em: 20 jun. 2012. reusados ou reciclados pelos sistemas produtivos.

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rentes, uma será escolhida na “fase do julgamento das propostas”44, demons- do desenvolvimento nacional sustentável”46, certamente irá selecionar a pro-
trando a viabilidade técnica, econômica e ambiental para garantir o cumpri- posta que melhor atenda ao interesse público, que tem uma finalidade específi-
mento das obrigações contratuais. ca e própria, que é a satisfação das necessidades coletivas, que é um dos traços
Dessa maneira, essas cláusulas ou condições que estabeleçam requisitos que os distinguem dos contratos de direito privado.
mínimos para a participação no certame, consideradas necessárias à garan- Busca-se por meio de critérios objetivos, previamente estabelecidos em lei,
tia da execução do contrato, segurança e a perfeição do objeto licitado, re- a promoção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, que é um direito
gularidade do fornecimento e à sustentabilidade, não restringirá seu caráter fundamental, com adequada e vantajosa qualificação de propostas oferecidas,
competitivo, e não é um óbice para a Administração Pública. Muito pelo para a promoção da função socioambiental dos contratos administrativos.
contrário, ao inserir tais requisitos, estará atendendo e viabilizando o que Portanto, considerando o desenvolvimento sustentável, e uma visão consu-
determina a IN para as compras, obras e serviços, com critérios objetivos merista estatal, em relação às atividades públicas, torna-se cada vez mais neces-
de sustentabilidade ambiental. sário, além dos princípios fundamentais da Administração Pública, o respeito a
É nesta fase do julgamento das propostas, nas licitações que utilizem como princípios do meio ambiente estabelecidos no Artigo 225 da Constituição da
critério de julgamento “a de melhor técnica e preço”45, que o edital deve estabe- República Federativa do Brasil de 1988, na Lei de Política Nacional do Meio
lecer os critérios objetivos de sustentabilidade para a avaliação e classificação Ambiente (Lei 6.938/81), na Instrução Normativa n. 01/2010 e na Lei de
das propostas, como determina o artigo 3° e seguintes da IN. Licitações e Contratos (Lei 8.666/93).
Insta salientar, que a interpretação do princípio do desenvolvimento nacio- E, conforme o comando constitucional do artigo 225, em seu caráter fun-
nal sustentável, inserido na Lei 8.666/93 deve ser para todos os “tipos de licita- damental, tem-se por escopo a realização da sustentabilidade e de uma ordem
ção”, quando do julgamento das propostas, e que o edital deve incluir critérios social justa, inseridos como elemento fundante da ordem econômica ao Poder
202 objetivos de sustentabilidade, pois em todos os contratos, deve ser cumprida a Público e não só à coletividade. 203
sua função socioambiental. A IN passa a contribuir para a sustentabilidade das licitações e contratações
Dito isso, a IN ao incluir o princípio nacional do desenvolvimento susten- públicas, e no cenário atual, esse desenvolvimento nacional sustentável deve
tável, na Lei 8.666/93 às contratações públicas, teve como regra geral e objetiva ser reconstruído com base em regulamentação de instrumentos legais para que
aos contratos públicos, prever que as empresas contratadas e o próprio Estado se tenha uma gestão eficiente e eficaz nas atividades administrativas, primeiro
adotarão práticas de sustentabilidade na execução dos serviços, com a redução passo para começarmos a internalizar a cultura da sustentabilidade.
do consumo de água e energia, da emissão do impacto ambiental, da geração Portanto, para que se conquiste uma gestão eficiente nas questões de con-
de resíduos, da toxidade nos bens e insumos. E, principalmente, fomentar po- tratos socioambientais, como “[...] obtenção de resultados e processos compatí-
líticas públicas voltadas para a proteção do meio ambiente. veis com os objetivos fundamentais”47, ou seja, com os objetivos da Constituição
Nesses casos, as chamadas “licitações sustentáveis”, procedimento admi- Federal, deve ser estruturada com uso de novas estratégias, e com responsabili-
nistrativo que antecede a celebração dos futuros contratos socioambientais, ao dade por parte do Poder Público, principalmente em relação às empresas con-
classificar a “[...] proposta mais vantajosa para a Administração e a promoção tratadas para atenderem as atividades típicas da administração pública.
Com essa nova perspectiva, passa-se a reconstruir e reproduzir os siste-
mas ecologicamente sustentáveis, na condução de políticas públicas desti-
44) A lei 8.666/93 tem como fase interna da licitação, a fase dita burocrática, que vai da abertura
do procedimento até a elaboração do edital de convocação. E como fase externa que vai da nadas a promoção dos ajustes necessários entre economia e meio ambiente,
publicação do edital até a adjudicação e homologação da proposta vencedora. já que novos conceitos, novos métodos, novos princípios e novos instrumen-
45) Segundo Justem Filho, em comentário a lei de licitações e contratos (p. 594) a definição do tos farão bases estruturantes desta relação, ou seja, prática da solidariedade
tipo de licitação produz reflexos não apenas sobre o julgamento das propostas. O próprio
procedimento licitatório, em toda a sua fase externa, variará consoante o tipo de licitação.
Uma licitação de técnica e preço se distinguirá de uma de menor preço já no ato con- 46) Art. 3°. In: BRASIL, 1993.
vocatório, pois dele deverão constar as exigências técnicas, etc. (art. 45 da Lei 8.666/93).
Art. 3°. In: BRASIL, 1993. 47) FREITAS, 2012, p. 242.

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pelo Poder Público que visem à diminuição da exploração da natureza e à o dever jurídico-constitucional de proteção ao meio ambiente, em suas con-
proteção da espécie humana. tratações públicas, para que se configure a ordem constitucional ambiental
Os recursos naturais são finitos e a natureza como limite da economia buscando a maior efetividade em suas atividades. Admite-se que o dever da
trata-se de uma questão fundamentalmente ética nas interpretações de administração pública é o de incluir e prever, em suas contratações, cláusu-
Cechin em que: “[...] Georgescu propôs um programa de austeridade, um las que contemplem a sustentabilidade para a promoção do desenvolvimen-
freio ao crescimento, para ser aplicado primeiro às economias avançadas [...] to nacional. O Estado passa a ser visto como um consumidor que, através
a razão de proteger o meio ambiente é proteger a espécie humana. As socie- de suas compras públicas, pode fomentar um processo produtivo ecologica-
dades que estão por vir precisarão de um suporte de recursos naturais para mente sustentável e socialmente mais justo.
ter qualidade de vida.”48 Com esse enfoque o Estado deve observar, em suas contratações adminis-
Isto é, ética fundada na perspectiva de políticas públicas destinadas a pro- trativas, a adequada e vantajosa qualificação de propostas oferecidas, dentro de
moção dos ajustes necessários entre economia e meio ambiente. critérios previamente estabelecidos na lei, demonstrando a função socioam-
biental dos futuros contratos administrativos para garantir mais eficiência do

H Conclusão
desenvolvimento em termos sustentáveis. Ao Estado promotor e condutor de
uma gestão moderna a um desenvolvimento sustentável está na hora de reava-
liar seu procedimento administrativo licitatório, passando a uma visão consu-
A insustentabilidade do desenvolvimento surge quando a racionalidade eco- merista, ao incluir, nas suas contratações, a sustentabilidade que, consequente-
nômica deixou de considerar a natureza como elemento na esfera da produção, mente, irá agregar valor de eficiência ambiental.
gerando uma crise ambiental. O Estado é um dos atores na efetivação de um projeto a uma sociedade sus-
204 A conservação do meio ambiente vem demandando alterações significati- tentável, objetivando a prestação de serviços públicos com padrão de excelên- 205
vas nos usos dos recursos naturais, impondo ao Poder Público e à coletividade cia e qualidade ambiental, visando, ainda, a operosidade da atuação da admi-
o dever de defendê-la face à complexidade dos conflitos surgidos. nistração pública. E esse mesmo Estado é responsável por uma movimentação
Destarte, a análise dos principais questionamentos que envolvem meio considerável de recursos naturais, considerando os processos de extração ou
ambiente, sustentabilidade e as contratações administrativas como uma nova fabricação, utilização e descarte dos produtos e matérias-primas. Como con-
forma de ação do Estado capitalista em favor de um projeto de sociedade sumidor ou empreendedor, possui papel estratégico na revisão de padrões de
sustentável teve por finalidade demonstrar a necessidade de adoção da susten- consumo e na adoção de novos paradigmas.
tabilidade nas práticas públicas administrativas. O Estado como consumidor, então, se depara com a questão da sustenta-
Nesse contexto, se incluem práticas com responsabilidade ética e espera-se bilidade que foi inserida pela Instrução Normativa n. 01, de 19 de Janeiro de
a implementação da multidisciplinariedade para compatibilizar meio ambien- 2010 da SLTI/MP. Esta instrução prima pela efetividade na aquisição de bens
te, desenvolvimento e a responsabilidade social, inclusive pelo Poder Público, ou contratação de serviços quando, através dela, a sustentabilidade nos contra-
como fomentador de atividades administrativas. tos administrativos passa, assim, a ser um elemento a mais da eficiência da ati-
Com isto, o Estado vem assumir novas estratégias que busquem a diminui- vidade pública. Portanto, o Estado, como um dos atores da sustentabilidade,
ção da degradação ambiental por meio de planos de ação de consumo susten- deve cumprir a função socioambiental nos contratos administrativos, fazendo
tável através de suas contratações, com critérios e contínuo planejamento, pes- prevalecer o interesse do bem-comum e a redução das desigualdades sociais. A
quisas e processos tecnológicos, buscando-se maior eficiência e efetividade em autonomia de vontade ou liberdade de contratar é de fundamental importância
suas inter-relações particulares a cada nova dimensão. à nova realidade social, econômica e ambiental.
A reflexão, ao longo do ensaio, foi de que se deve exigir do Poder Público Destarte, para se compreender um Estado socioambiental, tem-se por meta
as novas estratégias para a sustentabilidade do desenvolvimento que requer
o enfrentamento de desafios novos e emergentes a fim de alcançar um justo
48) CECHIN, 2010, p. 210. equilíbrio entre as necessidades econômicas, sociais e de meio ambiente das

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gerações presentes e futuras. Em outras palavras, é necessário promover a har-


monia de tais necessidades com a natureza, a lógica da natureza. E como nova
gestão estratégica da sustentabilidade, para que esteja o Estado apto, em ter-
mos socioambientais, a escolher dentre as propostas apresentadas, a mais van-
tajosa em termos de custos e benefícios em seus certames.
Finalmente, este posicionamento do Estado brasileiro pode ser compre-
endido como sendo a sua contribuição a um projeto de sociedade sustentá-
vel. É dentro deste contexto que se discutiu a ideia do “Estado como consu-
midor sustentável” para atender aos critérios de sustentabilidade impostos
pela legislação brasileira.

206

Direitos Humanos e Meio Ambiente


10
Gestão democrática das águas
no Brasil: um caminho rumo ao
desenvolvimento sustentável

Mariana de Siqueira1
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Sumário: Introdução: da finitudadeda água À sua tutela. 1 Panorama


Geral da Gestão das Águas Nacionais. 2 A Constituição, o Meio
Ambiente e a Tutela Sustentável das Águas. 3 Educação Ambiental,
Democracia e Gestão Descentralizada dos Recursos Hídricos. Conclusão

207

1) Professora efetiva da UFRN. Mestre em Direito Constitucional pela UFRN. Doutoranda


em Direito pela UFPE. Advogada. Vice-Presidente da Comissão de Ensino Jurídico da
OAB-RN. E- mail: marianadesiqueira@gmail.com
Gestão democrática das águas no Brasil: um caminho rumo ao desenvolvimento sustentável Mariana de Siqueira

H Introdução: Da Finitude da Água à sua Tutela Diante de sua essencialidade e do contexto que a circunda, por afetar dife-
rentes searas de interesse da sociedade e dos Estados (econômica, social, am-
A água, recurso natural indispensável à vida humana na Terra, tem ocupado pa- biental etc.), os países do globo costumam determinar normativamente dire-
pel de destaque nos debates geopolíticos contemporâneos. Por inexistir propor- trizes básicas para as formas de utilização de sua rede hídrica.
cionalidade entre a demanda por água doce no mundo e a sua distribuição geo- É exatamente nesse contexto que surge o tema da gestão do uso da água.
gráfica ao longo da superfície terrestre, as preocupações com a eficiente gestão A gestão dos recursos hídricos corresponde ao direcionamento dado, dentro
desse recurso crescem ano após ano. Acresça-se a isso a crise que a assola em ter- do território de determinado país, às ações desenvolvidas em torno de seus
mos de poluição, resultado de sua má utilização pelo homem nos últimos séculos. recursos hídricos, sejam essas ações públicas ou privadas, legislativas, admi-
Dados estatísticos revelam que do total de água existente na Terra ape- nistrativas ou jurisdicionais.
nas 0,6 % encontra-se sob a forma de água doce, estando o restante distri- O Brasil, relativizando o privilégio de possuir água em abundância em seu
buído da seguinte forma: 97,2% sob a forma salgada, 2,1 % na neve e gelo, território, durante longos anos se manteve carente de uma política capaz de
e 0,1% sob a forma de vapor d’água.2 estabelecer as diretrizes básicas para adequada utilização das águas nacionais,
Diante das limitações quantitativas do recurso, sua má distribuição geográfi- apenas dando o primeiro passo significativo nesse sentido na década de trinta,
ca, constante poluição e crescente demanda mundial por seu uso, especialmente através da criação da Diretoria de Águas.
para fins de consumo humano, geração de energia elétrica, agricultura e indústria, De lá até aqui alguns anos se passaram e hoje, disciplinando os recursos hí-
a Organização das Nações Unidas resolveu declarar os dez anos compreendidos dricos brasileiros, a sua natureza jurídica e gestão, destacam-se a Constituição
entre 2005 e 2015 como “Década Internacional de Ação Água para a Vida”. Federal de 1988, por sua supremacia e força normativa, e a Lei n.º 9.433 de
O Brasil, no cenário hídrico descrito, ocupa posição de destaque, em espe- 1997, por especificamente tratar do tema das águas.
208 cial por concentrar aproximadamente 13% da água doce superficial do plane- O presente artigo, atentando para a relevância da água e de sua eficiente 209
ta. Apesar da abundância do recurso em âmbito geral nacional, internamente gestão, se foca em um aspecto específico atinente a essa realidade e dotado de
e por região especificamente a distribuição de água doce ainda é desigual, fi- amparo normativo expresso: a gestão democrática dos recursos hídricos. Por
cando o percentual de cerca de 80% situado em região de baixa concentração gestão democrática dos recursos hídricos deve se entender a sua administração
populacional, a região Amazônica. 3 realizada por atores diversos, inclusive usuários e comunidades afetadas.
Além da questão da má distribuição, as águas nacionais são acometidas pelo Mencionando a existência dessa gestão e a explicando, o artigo enxerga na
problema da poluição. Em monitoramento de qualidade da água datado de educação ambiental verdadeiro caminho viabilizador de uma maior e mais efi-
2006 foi possível constatar que as regiões metropolitanas vivem situação crí- ciente participação popular na gestão das águas nacionais. Com uma maior e
tica, sendo a baixa ou péssima qualidade de suas águas, na maioria das vezes, mais informada participação popular, acredita ser possível concretizar a susten-
decorrente do lançamento de resíduos de esgotos. Esse é, inclusive, um dos tabilidade na gestão hídrica brasileira.
grandes fatos causadores da poluição das águas nacionais, pois apenas 47% das Para o desenvolvimento do tema, o trabalho se inicia com a presente intro-
cidades brasileiras possuem rede coletora de esgoto e apenas 18% dos esgotos dução e posterior exposição do breve panorama histórico da gestão das águas
recebem tratamento.4 no país. Após isso, trata da tutela constitucional das águas e do meio ambiente
e finaliza os escritos com narrativa a respeito da educação ambiental, democra-
cia, sustentabilidade e gestão descentralizada dos recursos hídricos.
2) BORSOI, Zilda Maria Ferrão. TORRES, Solange Domingos Alencar. A política de recur-
sos hídricos no Brasil. Disponível em: http://rash.apanela.com/tf/IEEE/rev806.pdf Acesso
em 20 de abril de 2014, p. 5.
3) BRASIL, Balanço das águas 2013. Disponível em: http://www.ana.gov.br/AcoesAdminis- 1) Panorama geral da gestão das águas nacionais
trativas/balancoDasAguas/balancoDasAguas2013.pdf. Acesso em 20 de abril de 2014.
4) BRASIL, Plano Nacional de Recursos Hídricos. 2006, Disponível em: www.mma.gov.br. A gestão dos recursos hídricos, como narrado na introdução do presente traba-
Acesso em 25 de abril de 2014, p. 62.

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lho, corresponde ao direcionamento dado, dentro do território de dado país, às cíficas, não possibilitando a ótima utilização social e econômica da bacia. 7
ações desenvolvidas em torno de seus recursos hídricos, sejam essas ações pú- Com a observância, na década de oitenta, de que o setor de energia elétrica
blicas ou privadas, legislativas, administrativas ou jurisdicionais. era o que mais intensamente atuava no âmbito da gestão, obtendo grande parte
O Brasil iniciou a sua mais intensa história em torno da gestão de seus re- das informações sobre a bacia e pleiteando normas que lhe fossem atinentes e
cursos hídricos na década de 30, através da criação da Diretoria de Águas, vin- benéficas, foram iniciados debates mais intensos, públicos e privados, em torno
culada ao Ministério da Agricultura. Em 1934, com o advento do Decreto da gestão dos recursos hídricos nacionais. 8 Contornos mais claros sobre a ges-
24.643, foi criado o Código de Águas, vigente até a presente data e responsável tão foram exigidos, especialmente no âmbito do domínio dos recursos hídricos
por instituir um modelo de gestão pautado nos tipos de uso da água. e de sua competência legislativa. 9
Zilda Borsoi e Solange Torres, estudando o tema, relatam que o histórico Com a evolução de alguns comitês de bacias, a conclusão de estudos as en-
da gestão dos recursos hídricos no país pode ser divido em três momentos dis- volvendo, a classificação das águas nacionais, tudo isso ainda na década de 80
tintos: burocrático; econômico-financeiro e de integração participativa. 5 e, por fim, com o advento da Constituição Federal de 1988, consolidaram-se as
Segundo as autoras, o período burocrático, iniciado na década de 30, vin- bases para inserção de um novo modelo de gestão de recursos hídricos no país:
culava à gestão o cumprimento estrito de variadas normas atinentes à temática o modelo sistêmico de integração participativa.10
hídrica; era o Poder Público o único apto a decidir as questões dessa seara e, na O novo modelo instituído não apenas se pautava na observância das nor-
maior parte das situações, o responsável por resolver os conflitos que surgiam mas, como fazia o modelo burocrático da década de 30, não só dava privi-
com a edição de novas regras. Preponderava a pluralidade normativa, a centra- légios para aspectos econômicos e para determinados setores considerados
lização decisória e a pouca eficiência da gestão, especialmente no que tange à relevantes, como fazia o modelo econômico-financeiro; ia além, atentando
capacidade de adaptar-se às mudanças internas e externas.6 também para aspectos sociais e ambientais essenciais. A Constituição de
210 O segundo período, por elas batizado de “econômico-financeiro” e ini- 1988, por seu viés democrático e foco na sustentabilidade ecológica, teve 211
ciado na década de 40, não se pautava apenas na necessária observância das papel normativo de destaque na consolidação dessa novel essência hídrica.
normas existentes, ia além, sendo também marcado por uma atuação mais Diante da relevância do texto constitucional na conformação do novo mo-
positiva e prestacional do Estado. O Poder Público fez uso de mecanis- delo hídrico nacional, o ponto seguinte se dedica ao estudo de seu conteúdo,
mos financeiros para promoção de seus fins desenvolvimentistas e se focou com foco especial no tema do presente artigo.
no planejamento do direcionamento dos investimentos e do uso da bacia.
Destacaram-se, enquanto instrumentos utilizados pelo Poder Público em
tal período, os investimentos realizados em setores considerados relevantes
(irrigação, energia, saneamento etc.) e a busca por um desenvolvimento in-
tegral da bacia. Esse momento, ainda que dotado de deficiências, na medida 7) BORSOI, Zilda Maria Ferrão. TORRES, Solange Domingos Alencar. A política de re-
cursos hídricos no Brasil. Disponível em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/
em que priorizava certos setores, permitia o planejamento do uso da bacia sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/revista/rev806.pdf. Acesso em 20
e dos investimentos. Pecou, todavia, por privilegiar em excesso searas espe- de abril de 2014, p. 09-10.
8) BORSOI, Zilda Maria Ferrão. TORRES, Solange Domingos Alencar. A política de re-
cursos hídricos no Brasil. Disponível em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/
sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/revista/rev806.pdf. Acesso em 20
5) BORSOI, Zilda Maria Ferrão. TORRES, Solange Domingos Alencar. A política de re- de abril de 2014, p. 10-11.
cursos hídricos no Brasil. Disponível em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/
sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/revista/rev806.pdf Acesso em 20 9) MUSETTI, Rodrigo Andreotti. Da proteção jurídico ambiental dos recursos hídricos. São
de abril de 2014, p. 9 - 11. Paulo: Editora de Direito, 2001, p. 205.
6) BORSOI, Zilda Maria Ferrão. TORRES, Solange Domingos Alencar. A política de re- 10) BORSOI, Zilda Maria Ferrão. TORRES, Solange Domingos Alencar. A política de re-
cursos hídricos no Brasil. Disponível em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/ cursos hídricos no Brasil. Disponível em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/
sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/revista/rev806.pdf. Acesso em 20 sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/revista/rev806.pdfAcesso em 20
de abril de 2014, p. 09 - 10. de abril de 2014, p. 10.

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Se o desenvolvimento sustentável é rumo para todas as atividades econômi-


2) A Constituição, o meio ambiente e a
cas efetuadas em âmbito nacional, também o será para as atividades relaciona-
tutela sustentável das águas das aos recursos hídricos. Ao Estado, desse modo, não basta prover acesso à agua
com universalidade, é preciso também fazê-lo na perspectiva da sustentabilidade.
Do constitucionalismo clássico do século XVIII à contemporaneidade, a Quanto aos recursos hídricos especificamente, estabeleceu a Constituição
Constituição vivenciou modificações inúmeras em face de fenômenos histó- Federal de 198812 modificações no âmbito de sua titularidade13, considerando
ricos, políticos e econômicos dos mais diversos, tendo o mais recente deles se -os de domínio público. No que tange à gestão, determinou o texto constitu-
estruturado como fruto da Segunda Guerra Mundial. cional ser da União a competência para instituir o sistema nacional de geren-
A partir de então, a Constituição passou a ocupar o centro do ordena- ciamento de recursos hídricos (SNGRH) e definir critérios de uso e outorga. 14
mento jurídico, interferindo diretamente em sua interpretação, construção e Em quase nove anos da publicação da Constituição, mais precisamente em
aplicação. É o que hoje se convenciona denominar de “neoconstitucionalis- 08 de janeiro de 1997, foram instituídos, pela União, conforme os ditames
mo”, fenômeno marcado, dentre outras características, pela filtragem cons- constitucionais, a política nacional de recursos hídricos e o sistema nacional de
titucional de todo o Direito. seu gerenciamento, ambos exteriorizados nos dizeres da Lei nº.9.433. 15
É com a Constituição de 1988 que o Direito brasileiro vivencia verdadeira- Inspirando-se em regras e princípios já consagrados na seara internacio-
mente uma situação de constitucionalização, pois dentre as constituições da his- nal16, visando otimizar o uso das águas nacionais e, ainda, pautando-se não
tória do Brasil é a ela que de fato se entrega a posição de centralidade no Direito apenas em aspectos econômicos, mas também em aspectos sociais e ambien-
nacional. Para Barroso: “Sob a Constituição de 1988, o direito constitucional no tais, a Lei nº. 9433 de 1997 trouxe, em seu art. 1º17, como fundamentos da polí-
Brasil passou da desimportância ao apogeu em menos de uma geração.” 11 tica nacional dos recursos hídricos, os seguintes elementos: a) domínio público
212 Democrática e analítica, a Constituição Federal de 1988 pioneiramente de- da água, b) água como recurso limitado e com valor econômico, c) uso priori- 213
dicou um Capítulo inteiro à disciplina do meio ambiente, seus recursos e prote- tário, na escassez, para consumo humano e dessedentação de animais, d) ges-
ção, entregando aos cidadãos papel de destaque na defesa dos recursos naturais. tão viabilizadora do uso múltiplo das águas, e) bacia hidrográfica como unida-
Com a Constituição de 1988, o meio ambiente ecologicamente equilibrado de territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos
passou a ser qualificado como bem de uso comum do povo, essencial à sadia e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos; e f )
qualidade de vida, sendo dever de todos e do Poder Público tutelá-lo, não só gestão descentralizada dos recursos hídricos. Esse último, por sua essencialida-
em benefício das presentes, mas também em prol das futuras gerações.
A tutela ambiental explicitamente constante no art. 225, caput, da
Constituição Federal de 1988, apontou mais à frente no texto constitucional 12) Para visualizar o tratamento constitucional dado aos recursos hídricos nacionais recomenda-
se a leitura dos seguintes dispositivos: Art. 20, § 1º; Art. 21, XIX; Art. 23, XI; Art. 49, XVI
na qualidade de princípio da Ordem Econômica Constitucional. e Art. 231, § 3º.
A consagração da defesa do meio ambiente junto à ordem econômica cons-
13) Art. 20, III. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro
titucional gera espaço para o reconhecimento de um elemento normativo im- de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%-
plícito: o desenvolvimento sustentável. Como o meio ambiente possui recursos C3%A7ao.htm Acesso em 25 de abril de 2014.
limitados e escassos, reconhece o constituinte que ao desenvolvimento eco- 14) Art. 21, XIX. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro
nômico devem ser acrescidas a preservação dos recursos naturais e a busca do de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%-
bem estar social. É exatamente ai que nasce constitucionalmente o embasa- C3%A7ao.htm Acesso em 25 de abril de 2014.
mento para o reconhecimento do princípio do desenvolvimento sustentável. 15) MUSETTI, Rodrigo Andreotti. Da proteção jurídico ambiental dos recursos hídricos.
São Paulo: Editora de Direito, 2001, p. 206.
16) O princípio do desenvolvimento sustentável é exemplo de tal inspiração.
11) BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o
triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Disponível em: www.direitodoestado.com. 17) Art. 1º, I a VI. BRASIL, Lei nº. 9.433 de 1997. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso
br. Acesso dia 22 de abril de 2013. p. 3- 4. em 25 de abril de 2014.

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Gestão democrática das águas no Brasil: um caminho rumo ao desenvolvimento sustentável Mariana de Siqueira

de para o presente trabalho, será analisado no ponto a seguir. do Plano é teorizada para se estruturar de forma dinâmica, transdisciplinar e
A Política Hídrica Nacional, em sua conformação atual, almeja assegurar aberta à ampla participação dos sujeitos interessados. Destacam-se, ai, os te-
às presentes e futuras gerações a disponibilidade da água necessária em níveis mas da democracia, descentralização na gestão e, ainda, da educação ambien-
satisfatórios e em padrões de qualidade compatíveis com as espécies de uso da tal, todos tratados no ponto seguinte.
água; o uso racional e integrado dos recursos hídricos evitando eventos hidro-
lógicos críticos, sejam esses naturais ou decorrentes do uso inadequado dos re-
cursos naturais, e buscando o desenvolvimento sustentável. 18
3) Educação ambiental, democracia e gestão
Visando melhor consolidar a Política Nacional de Recursos Hídricos, o
Governo Federal decretou, em 22 de março de 2005, a Década Brasileira da descentralizada dos recursos hídricos
Água. Em seu art. 2º, a normativa em questão expõe os objetivos para a déca-
da: “A Década Brasileira da Água terá como objetivos promover e intensificar a A educação, direito fundamental de ordem social, vem prevista no texto cons-
formulação e implementação de políticas, programas e projetos relativos ao ge- titucional em desdobramentos específicos diversos, a exemplo daquele atinen-
renciamento e uso sustentável da água, em todos os níveis, assim como assegu- te ao seu viés ambiental. A Constituição, no capítulo responsável por tratar do
rar a ampla participação e cooperação das comunidades voltadas ao alcance dos meio ambiente, estabelece como dever do Poder Público a promoção da edu-
objetivos contemplados na Política Nacional de Recursos Hídricos ou estabe- cação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para
lecidos em convenções, acordos e resoluções, a que o Brasil tenha aderido.”19 a preservação do meio ambiente. Nota-se, no trabalho do constituinte, a preo-
Nota-se, através do texto do decreto, o destaque dado aos temas do desen- cupação com a educação ambiental em viés escolar e formal, mas também de
volvimento sustentável e da participação das comunidades na gestão hídrica modo geral e em ambiente físico externo à escola.
214 nacional, ambos elementos também ressaltados na Lei 9433 de 1997. Dentro Infraconstitucionalmente, visando dar concretude e efetividade ao texto da 215
desse contexto de mais intensa tutela da água, em 30 de janeiro de 2006 foi Constituição, aponta a Lei 9.795 de 1999, responsável por dispor sobre a edu-
aprovado pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) o Plano cação ambiental e instituir a Política Nacional de Educação Ambiental.
Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), fruto de amplo debate político e so- A lei em questão, seguindo a linha constitucional, trata não apenas da educa-
cial descentralizado e pautado em informações técnicas relevantes. O plano ção ambiental formal escolar, mas também da educação ambiental informal. A
possibilitou a determinação de perspectivas e ações hídricas para o país até o educação escolar formal é aquela desenvolvida em sala de aula, no ambiente esco-
ano de 2020, estando, desse modo, ainda em vigor.20 lar. A educação ambiental não formal, por sua vez, corresponde às ações e práticas
Importante se faz expor, ao se considerar um PNRH elaborado com a visão educativas voltadas à sensibilização da coletividade sobre as questões ambientais,
futura de mais de uma década de vigência, que o seu texto e conteúdo não são sua organização e participação na defesa da qualidade do meio ambiente.
estáticos e imutáveis, a própria normativa que o circunda prevê revisões perió- O fomento à educação ambiental formal e não formal, conforme texto ex-
dicas em seu conteúdo, tendo a primeira delas ocorrido em 2010 e com obje- presso legal, objetiva desenvolver uma visão global do meio ambiente, demo-
tivo principal de avaliar os cinco anos iniciais de sua implementação. A revisão cratizar as informações ambientais, estimular a cooperação entre as diversas re-
giões do País; fomentar e fortalecer a integração com a ciência e a tecnologia;
estimular consciência crítica sobre a problemática ambiental e social; incenti-
18) Art. 2º. BRASIL, Lei 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Disponível em: www.planalto.gov.br var a participação individual e coletiva, permanente e responsável, na preser-
Acesso em 25 de abril de 2014.
vação do equilíbrio do meio ambiente, entendendo-se a defesa da qualidade
19) BRASIL, Decreto de 22 de março de 2005. Disponível em: www.cnrh.gov.br. Acesso em ambiental como um valor inseparável do exercício da cidadania; e fortalecer
01 de maio de 2014.
a cidadania, autodeterminação dos povos e solidariedade como fundamentos
20) SIQUEIRA, Mariana de. O Planejamento Hidrológico no Brasil. In: IRUJO, Antonio Em- para o futuro da humanidade.
bid. SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. XAVIER, Yanko Marcius de Alencar. (Org.)
O direito de águas no Brasil e na Espanha: um estudo comparado. Fortaleza: Konrad Ade- Dos objetivos da educação ambiental mencionados, três se conectam de
nauer, 2008, p. 203-207. modo mais direto e imediato ao tema da gestão descentralizada as águas nacio-

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nais: a democratização das informações ambientais, o incentivo à participação ao território nacional o atual modelo de Estado Democrático de Direito ou de
cidadã ambiental e o fortalecimento da cidadania. Com a efetivação dos obje- Estado Constitucional Democrático. Em seu art. 1º, Parágrafo Único, consa-
tivos destacados poderá ser viabilizada uma maior e mais eficiente participação grando a soberania popular, diz “Todo poder emana do povo, que o exerce por
popular na gestão das águas nacionais. meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”22.
A divulgação e acesso às informações ambientais e a demonstração da rele- O Estado conformado pelo texto de 88, dentre outras características, possui
vância da tutela ambiental cidadã parecem abrir verdadeiro e eficiente caminho poderes a serem exercidos de forma limitada, reconhece direitos fundamen-
rumo ao fomento de uma maior participação dos cidadãos, usuários e comuni- tais variados aos cidadãos e consagra a ideia de democracia mista, de forma a
dades afetadas na gestão das águas nacionais, gestão essa hoje já descentralizada. viabilizar a participação popular nas decisões políticas fundamentais. Sendo
A descentralização da gestão dos recursos hídricos, fundamento da Política o povo o titular da soberania, nada mais razoável que lhe permitir participar
Nacional dos Recursos Hídricos, implica na delegação do poder decisório so- ativamente de algumas das decisões antes tomadas exclusivamente no âmbito
bre os recursos hídricos; mais precisamente no que tange às decisões político da Administração Pública. É o que se costuma denominar de “democratização
-administrativas, de forma a permitir a oitiva de variadas opiniões: usuários, da Administração’, caminho de exteriorização da democracia participativa23.
comunidades e Poder Público. Com a participação de sujeitos variados e a ex- O que se busca com a democratização da Administração não é o fim da
posição de interesses diversos em torno da gestão das águas de determinada tradicional democracia representativa ou a presença constante e absoluta da
bacia, maior viabilidade existirá para a efetivação de uma gestão sustentável de população em toda e qualquer decisão administrativa, o que se objetiva é a
águas em seu âmbito. Com uma mais intensa e consciente participação cidadã existência da democracia participativa em hipóteses específicas, dotadas de
na gestão das águas, com a dialeticidade dos debates daí advinda, abrir-se-á es- amparo normativo prévio, com foco especial nas decisões de impacto local,
paço para a concretização da sustentabilidade hídrica nacional. de modo a fortalecer a soberania popular constitucionalmente consagrada e
216 As bacias hidrográficas são as unidades de referência para a gestão das a aproximar a Administração dos cidadãos. 217
águas no país e por determinação normativa recebem a atuação de Comitês de Apesar de relevante e de normativamente amparada, indispensável se faz
Bacias. Os Comitês são órgãos de consulta e deliberação, a serem compostos dizer aqui que a gestão descentralizada das águas nacionais pode levar à pro-
internamente de forma heterogênea. Participarão dos comitês membros da so- blemática do conflito de interesses entre os gestores plurais que a exercem.
ciedade civil, poder público e usuários das águas. Desse modo, para que a ideia de descentralização da gestão funcione adequa-
Discorrendo sobre a gestão descentralizada das águas pelos Comitês de damente no universo prático, é necessário que sejam bem delineados os temas
Bacias, expõem Fabiana Barbi e Pedro Jacobi: “Trata-se de uma concepção de atinentes a cada espécie de gestor (comunidades, Poder Público, usuários).24
gestão pública colegiada, com negociação sociotécnica, através dos CBHs, na Por fim, convém ressaltar o papel instrumental da educação ambiental na
qual a legislação de recursos hídricos reserva à sociedade civil uma responsa- eficiente gestão descentralizada das águas. Mais conscientes das questões am-
bilidade central na condução da política e da gestão desses recursos. Cabe aos bientais, da relevância e especificidades ligadas às águas, os sujeitos poderão
usuários da água organizar-se e participar ativamente dos comitês, defender ocupar mais ativamente e com maior lucidez os espaços democráticos que lhes
seus interesses quanto aos preços a serem cobrados pelo uso, assim como sobre são reservados na gerência das águas brasileiras.
a aplicação dos recursos arrecadados e sobre a concessão justa das outorgas dos
direitos de uso. Convém observar que isto implica em complexos processos de
negociações e resoluções de conflitos diversos.”21 22) Art. 1º, Parágrafo Único. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de
outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Cons-
Essa ideia de gestão hídrica descentralizada e democrática se coaduna em titui%C3%A7ao.htm Acesso em 25 de abril de 2014.
perfeição com a essência da Constituição de 1988. A Constituição, fruto de
23) OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Administração Pública democrática e a efetivação
um processo democrático de elaboração, é responsável por trazer formalmente dos direitos fundamentais. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/
anais/bh/gustavo_justino_de_oliveira.pdf Acesso em 12 de abril de 2013, p.4.
21) BARBI, Fabiana. JACOBI, Pedro Roberto. Democracia e participação na gestão dos recur- 24) CAUBERT, Christian Guy. A água, a lei, a política... E o meio ambiente? Curitiba: Editora
sos hídricos no Brasil. Rev. Katál. Florianópolis v. 10 n. 2 p. 237-244 jul./dez. 2007, p. 241. Juruá, 2004, p 152.

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H Conclusão
O presente artigo buscou oferecer uma visão geral acerca da gestão dos re-
cursos hídricos no país, focando-se mais detalhadamente no tema de sua
descentralização. A gestão descentralizada das águas foi, portanto, o seu
ponto principal de análise.
No texto, foi ressaltado o papel da educação ambiental como instrumento
fomentador da participação popular na gestão hídrica, bem como a conexão
existente entre essa participação e a concretização do desenvolvimento sus-
tentável. Os embasamentos constitucionais do tema foram apontados, assim
como os seus desdobramentos infraconstitucionais.
O incremento e a intensificação de meios de promoção da educação hídrica e
ambiental de todos aqueles que já participam ou dos que podem via a participar
da gestão descentralizada das águas no país são entendidos no presente traba-
lho como caminhos imprescindíveis à eficiência do sistema de tutela das águas.
Ressalte-se que o uso das águas nacionais deve pautar-se na sustentabilida-
de, os debates e estudos já realizados para fins de elaboração dos variados do-
cumentos hídricos brasileiros devem ser mantidos e propagados, com destaque
218 para um novo enfoque de caráter educativo. O Poder Público é peça funda-
mental na concretização desse enfoque.
Há de ser ressaltada, também, a necessidade de maior consolidação da
legislação hídrica brasileira, bastante recente e pouco divulgada no univer-
so jurídico. O sistema de gestão dos recursos hídricos, a Política Nacional
de Recursos Hídricos e o Plano Nacional de Recursos Hídricos, apesar de
muito relevantes, de se pautarem na descentralização e democratização e es-
tarem diretamente ligados à vida de todos os cidadãos brasileiros, ainda são
pouco conhecidos e divulgados.
O Brasil iniciou tardiamente o seu caminhar rumo à tutela mais completa e
eficaz das águas nacionais, muito ainda há de ser feito nesse sentido, a susten-
tabilidade hídrica parece ser um dos grandes desafios desse século e a educação
ambiental caminho essencial a ela conectado.

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11
O controle das áreas contaminadas:
o respeito ao direito de se viver
em um ambiente saudável

Vanessa de Fátima Terrade1


Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Sumário: Introdução. 1 A fragilidade dos solos. 2 A reação dos


estados à sensibilidade dos solos. 3 Uma caso de justiça ambiental.

219

1) Doutoranda em direito público na Universidade Paris 13-PRES Sorbonne-Paris Cité;


Mestre em direito ambiental pela Universidade Paris 1 – Panthéon-Sorbonne; Professora
de direito administrativo na PUC-Minas – Serro
O controle das áreas contaminadas: o respeito ao direito de se viver em um ambiente saudável Vanessa de Fátima Terrade

H Introdução 1) A fragilidade dos solos


O Brasil, assim como diversos outros países, vem enfrentando um sério pro-
A constatação da contaminação dos solos nos Estados Unidos, na década de
blema chamado “áreas contaminadas”2. A forma como esse problema se
70, foi um dos primeiros sinais de alerta sobre o quanto os solos são sensíveis
apresenta hoje em dia, e reflexo da postura desinteressada que o Estado adotou
e de como essa sensibilidade pode causar danos a saúde humana. O caso, que
durante anos, em relaçao ao meio ambiente, e, em especial a um dos recursos
ganhou repercussão internacional, é conhecido como “Love Canal”.
naturais: os solos. Tendo sido os mesmos vistos como uma grande massa ne-
No final do século XIX houve um projeto de se construir um canal para
gra capaz de tudo suportar.
ligar à parte baixa a parte alta do rio Nicarágua. O projeto foi abandonado,
O direito internacional3 que tanto impulsiona a consciência de necessidade
e entre os anos de 1920 e 1953, a escavação que havia sido feita para a cons-
de proteção do meio ambiente pelos Estados, não se ocupava dos solos. Para o
trução do canal, foi usada como depósito de lixo tóxico por indústrias e pelo
direito internacional, os solos não apresentariam riscos de ocasionar poluições
Exército norte-americano. Em seguida, esse “depósito” foi coberto com ter-
internacionais, como o ar ou a água, os quais se descolam levando à poluição
ra e vendido à Coordenação de Educação de Niagara Falls ao preço simbó-
para além das fronteiras. Desta forma, o direito internacional considerava os
lico de 1 dólar (GIBBS, 1998).
solos como um problema de cada país em si. O direito nacional por sua vez, na
Casas começaram a serem construídas nos arredores do canal, e uma es-
sua maioria, compreendia que os solos estavam enquadrados dentro do direi-
cola primária foi construída bem encima do depósito. As famílias, de classe
to civil, por serem parte do direito de propriedade, competindo ao dono desta
média, e em sua maioria, negras, não sabiam onde estavam indo morar, mas o
se ocupar da sua qualidade e preservação. Além do mais, assim como o direito
Estado sabia bem encima do que ele estava urbanizando. Em 1978 o caso foi
internacional, o direito nacional também não via os solos como recursos natu-
descoberto, a partir da constatação de doenças nos moradores, em especial, nas
220 rais “sensíveis” tal como a o ar e água, que remetem as suas poluições para os “4 221
crianças. As doenças constatadas eram de ordem neurológica, problemas re-
cantos”. Em grosso modo, os solos foram vistos como recursos rígidos, fortes,
nais, além de abortos e má-formação de recém nascidos, e do risco de câncer.
sendo mais um problema do seu proprietário do que do Estado ou das organi-
A catástrofe de Love Canal pode ser resumidamente apresentada pelo fato de
zações internacionais. (Prieur, 1995)
“moradores de um conjunto habitacional de classe média baixa descobriram
A grande questão, e que agora, os solos decidiram mostrar a sua “sensibili-
que suas casas estavam erguidas sobre um canal que havia sido aterrado com
dade”, Eles decidiram escancarar a poluição suportada durante tanto tempo. E
dejetos químicos industriais e bélicos.” (HERCULANO, 2001, p. 215)
o mais interessante, para não se dizer o mais caótico, é que o espelho que mui-
Do outro lado do mundo, em especial, na França, uma das grandes amos-
tas vezes refletiu e ainda continua a refletir essa “sensibilidade” é o ser humano,
tras da sensibilidade dos solos foi com a constatação de câncer em seis crianças
mais especialmente, a saúde humana.
de uma escola maternal na cidade de Vincennes, a escola “Franklin-Roosevelt”.
Uma usina química da Kodak foi desativada, em 1986, e no local da mesma e
2) Art. 3º, II, da Lei 12.305/2010 nos seus arredores, formam construídas casas e a escola maternal. A doença das
Art. 3o Para os efeitos desta Lei, entende-se por: crianças chamou a atenção dos professores e dos moradores que solicitaram a
(...)
II - área contaminada: local onde há contaminação causada pela disposição, regular ou irregular, de realização de estudos do solo. (OGE, 2004)
quaisquer substâncias ou resíduos; Voltando para a América, agora para o Sul, no Brasil, o caso que primei-
3) É importante mencionar que a Declaração de Limoges I de 1990 - França, documento pre- ro nos chamou a atenção foi o da “Cidade dos Meninos”4 no estado do Rio de
parado em atenção aos debates a serem realizados na Conferência do Rio de 1992, dedicou a Janeiro. Uma fábrica de pesticidas e o Instituto de Malariologia funcionam em
Recomendação nº 8 para apresentar argumentos sobre a necessidade de proteção dos solos. Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, nas dependências do Colégio in-
Em seguida, a Agenda 21, texto resultante da Conferência de 1992, ao dedicar um capítulo à
agricultura, outro à luta contra a desertificação e a seca, outro ao gerenciamento dos recursos terno para crianças carentes, chamado de “Cidade dos Meninos”. Durante os
terrestres e o capítulo 7 ao desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos, alertou
a comunidade internacional sobre a necessidade de proteção dos solos e os reflexos dos mes-
mos ao bem estar do ser humano. 4) ACP nº 97.0104992-6, 7ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro.

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anos 80, o governo parou de fabricar produtos contra a malária e começou a Recentemente, foi mostrado nos noticiários, uma contaminação na cida-
exportá-los, fechando as portas do instituto e da fábrica de pesticidas. Os resí- de de Volta Redonda/RJ, pela Companhia Siderúrgica Nacional. Não que
duos dessa produção continuaram no local: “Cidade dos Meninos é uma área o caso seja recente, na realidade, o nosso despertar é que risca de ser recente,
de domínio da União com aproximadamente 19,4 milhões de metros quadra- despertado somente a cada novo caso de áreas contaminadas. O desfecho des-
dos, localizada no município de Duque de Caxias, no estado do Rio de Janeiro. se caso, segundo o INEA7 – Instituto Estadual do Meio Ambiente informou
Nessa área, existem aproximadamente 750 famílias expostas a uma contami- a retirada imediata de 750 pessoas que residiam na área.
nação ambiental por organoclorados abandonados no local desde 1965 quan- Todos esses casos possuem duas semelhanças imediatamente detectáveis:
do foi desativada uma fábrica de produção de Hexacloroxiclohexano (HCH) e foram causados por poluição de resíduos industrial, em especial por resíduos
manipulação de outros organoclorados”.5 químicos e todos contaram com danos a saúde humana para serem descobertos.
Nós sabemos bem, que o fato de existir uma legislação ambiental por- As causas desses problemas são várias, e, sobretudo são históricas. Elas
tando obrigações a um particular, não significa que o mesmo as respeitará. são decorrentes de indústrias que fecharam as portas sem realizarem a
E, exatamente, por está razão, que o Estado se encontra diante do dever de reabilitação da área, indústrias que realizaram uma reabilitação “insufi-
exercer o poder de polícia, e de controlar as atividades exercidas pelos par- ciente” ou indústrias que utilizarem o meio ambiente como lixeira, livran-
ticulares. A questão é que se não existirem políticas públicas voltadas para do-se dos seus resíduos sólidos em depósitos clandestinos, que ficaram
esse controle, o resultado será o abandono de áreas contaminadas ao final abandonados, ou que posteriormente foram vendidos com toda a sua polui-
de uma exploração industrial. E essa é uma grande curiosidade do caso da ção “escondida”. E a isso, some-se o problema da falta de controle em rela-
“Cidade dos meninos”, no qual o próprio Estado, na figura do Ministério ção ao parcelamento, a reutilização dos solos.
da Educação e Saúde6, abandonou o solo contaminado, sem tomar a menor Além de pensar nas causas, e preciso se pensar, também, na remediação
222 precaução para impedir os reflexos dessa poluição sobre a saúde humana. e nesse ponto, outro aspecto preocupante e o próprio exercício de direito ao 223
Tanto é que na década de 80 pesticidas que ficaram na cidade dos meninos acesso à justiça que as vítimas de poluição dos solos enfrentam por questão
eram vendidas na feira do município pelos moradores da região, de acordo de provas. A dificuldade dos peritos em provarem nos autos que a doença
com reportagens dos jornais da época. ocasionada adveio dos resíduos industriais que se encontravam nos solos
Somado a esse caso, outros também tiveram grande repercussão, como o ou de conseguir provar que a indústria se servia dos produtos que geram os
caso em Santo Amaro da Purificação, no Estado da Bahia, quando uma cidade resíduos impo-se como um obstáculo à efetivação da justiça para várias fa-
inteira foi contaminada por metais pesados, descartados inadequadamente por mílias. Um exemplo disso é o caso da Usina Kodak, durante a lide, não foi
uma indústria. Além de vários casos no Estado de São Paulo: “Condomínio possível provar que o câncer desenvolvido pelas crianças estava ligado aos
Residencial Barão de Mauá”- ABC Paulista, o condomínio tinha 6.000 resíduos que a usina deixou no solo. Um relatório do governo francês, de
mil moradores vivendo encima de um solo contaminado por lixo industrial; 2000, teve uma importância primordial à favor da empresa, ao concluir pela
“Condomínio Recanto dos Pássaros”, em Paulínia, famílias viviam em uma ausência de relação: não é possível se falar em super-exposição a produtos,
área que não foi despoluída adequadamente ao final da atividade industrial, que hoje em dia são conhecidos como potencialmente cancerígenos, ligados
estando o solo e os lençóis freáticos contaminados por Hexaclorobenzeno ou não à atividade anterior. (tradução livre)8
(PCB). Em Cubatão, resíduos de uma indústria química forma enterrados
clandestinamente, posteriormente, uma comunidade se instalou no local e pas-
sou a ali desenvolver atividade agrícola.

5) http://www.geoprocessamento.icict.fiocruz.br/svs/dsast/cidadedosmeninos/index.html - site 7) http://www.inea.rj.gov.br


do Ministério da Saúde destinado a informar sobre o caso e sobre as ações tomadas para se
chegar a uma solução. 8) Rapport du 14 juin 2000: “il n’est pas mis en évidence de surexposition à des produits ac-
tuellement connus comme potentiellement cancérigènes, liés ou non à l’activité industrielle
6) Ministério extinto, sendo substituído na lide pelo Ministério da Saúde. antérieure.”

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onde a atividade será desenvolvida (“le préfet”11). A jurista especialista em di-


2) A reação dos Estados à sensibilidade dos solos
reito dos solos, Pascale Steichen (STEICHEN, 2006) apresenta esta lei como
um grande avanço na legislação Francesa, por colocar em evidencia dois ato-
Legislar em proteção aos solos pode ser uma tarefa muito difícil para os paí-
res fundamentais da reabilitação dos solos: o prefeito, o qual deverá atuar em
ses, principalmente para um país com um território tão grande quanto o Brasil.
prol dos interesses da coletividade, e o proprietário, que terá a oportunidade
As dificuldades para a regulamentação dos solos não é só de ordem jurídica, e
de se manifestar em defesa da sua propriedade. No momento deste “acordo”
também, de ordem técnica, de se conhecer a fundo, as características físicas de
sobre o uso futuro da área, os documentos de urbanismos em vigor nessa épo-
cada tipo de solo que forma um país com tantas diversidades geológicas.
ca não serão necessariamente observados, conforme se desprende da leitura
O que tem impulsionado a proteção dos solos é o fato de se saber, que a
do artigo 512-6-1, alínea 3: “No entanto, caso a reabilitação prevista em apli-
contaminação deles pode representar riscos para a poluição das águas e para
cação a alínea precedente seja manifestamente incompatível com a utilização
o exercício de outras atividades econômicas. O que faz com que os solos se-
futura da zona e dos terrenos situados aos arredores, em função dos documen-
jam abordados em especial, pela legislação das águas, da agricultura, da mi-
tos de urbanismo em vigor na data em que o solicitante apresenta ao admi-
neração, de loteamento urbana. Sendo raras e escassas as leis específicas em
nistrador a sua decisão de encerrar a sua atividade. O Administrador, após a
proteção aos solos.
manifestação dos interessados da alínea primeira, pode fixar outras obrigações
A lei francesa de 19 de dezembro de 1917 relativa aos estabelecimentos
complementares que permitam uma utilização coerente do sítio com dos do-
perigosos, insalubres ou incômodos, apresentava disposições relativas a polui-
cumentos de urbanismo. (tradução livre)”12
ção e ao controle das mesmas em direção aos solos. Prevendo, inclusive, que
As grandes críticas feitas por Steichen em relação a essa lei é que, apesar
tais estabelecimentos, fossem eles industriais ou comerciais, deveriam ser man-
dos seus avanços, nem ela, nem o seu decreto integram o risco de poluição no
tidos longe de áreas residenciais. A lei de 19 de julho de 1976 (lei 76-663) e
224 ciclo de vida da empresa, além, da falta de apreciação dos documentos urba- 225
o seu decreto 77-1133 apresentam a obrigação de reabilitação do solo a um
nísticos no momento da fixação da utilização futura do sítio.
estado, que não representará nenhum risco para a saúde humana, nem para o
Em outras palavras, o que a França faz, atualmente, é informar ao solici-
meio ambiente. Essa lei trouxe disposições tão importantes sobre a obrigação
tante de uma atividade econômica, quanto as medidas que ele deverá adotar
de despoluição, que são aplicadas até hoje no país.
para proceder a reabilitação do solo. Assim, ao final da atividade econômica,
Apesar das conclusões do Relatório do governo sobre a escola em
não haverão “surpresas” quanto as dificuldades técnicas para a realização da re-
Vincennes, que não demonstrou relação entre as doenças e os resíduos con-
abilitação e quanto ao custo da mesma. De tal forma, que o chefe do executivo
tidos no solo, paradoxalmente, a França adotou uma “resposta” ao caso, a Lei
da região,“Le prefet”, no caso de atividades mais poluidoras e degradadoras do
nº 2003-699, relativa a prevenção de riscos tecnológicos e naturais e a repara-
meio ambiente13, deverá levar em consideração para conceder a autorização, as
ção dos danos9 e o seu decreto 2005-1170. Essa nova legislação estabeleceu a
obrigação de que aquele que pede uma licença para desenvolver uma atividade
industrial, apresente junto com o seu pedido de licença um plano para a rea- 11) Cada região da França possui o seu representante , “Le prefet”. Dentro da repartição de
bilitação do solo, conforme o uso futuro do terreno. Esse planejamento sobre competência, o prefeito de uma cidade se ocupa das questões ligadas ao tratamento de re-
o uso futuro do terreno10 deve ser aprovado pelo proprietário do terreno (caso síduos, enquanto que o chefe do executivo de cada região é a autoridade competente pela
autorização de instalação de uma atividade industrial na sua região.
não sejam a mesma pessoa), pelo prefeito e pelo chefe do executivo da região
12) Article 512-6-1, al. 3  : “Toutefois, dans le cas où la réhabilitation prévue en application de l’ali-
néa précédent est manifestement incompatible avec l’usage futur de la zone, apprécié notamment
en fonction des documents d’urbanisme en vigueur à la date à laquelle l’exploitant fait connaître à
l’administration sa décision de mettre l’installation à l’arrêt définitif et de l’utilisation des terrains
9) Lei nº 2003-699, de 30 de julho de 2003, conhecida como “Loi Bachelot” – lei Bachelot. situés au voisinage du site, le préfet peut fixer, après avis des personnes mentionnées au premier
alinéa, des prescriptions de réhabilitation plus contraignantes permettant un usage du site cohérent
10) Article L512-6-1 du Code de l’environnement – Essa lei, foi codificada no Código do meio avec ces documents d’urbanisme.”
ambiente francês, sendo que essa disposição sobre o “acordo” trazida na Lei de 2003, encon-
tra-se atualmente no artigo L512-6-1 do Código do meio ambiente. 13) Diferente do que dispõe a Lei brasileira nº 12.3057/2010 no seu artigo 13.

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condições financeiras do solicitante e a apresentação de garantias financeiras. no mínimo, capacidade técnica e econômica, além de condições para prover
No Brasil, pode-se dizer que essa obrigação de proteção e de reabilita- os cuidados necessários ao gerenciamento desses resíduos”. (BRASIL, 2010)
ção dos solos remonta da década de 70, com o Decreto-lei 1.413/75, de- A 2ª sobre a contratação de seguro de responsabilidade civil por danos
creto que dispõe sobre o controle da poluição do meio ambiente provocada causados ao meio ambiente e á saúde pública: “Art. 40 - No licenciamento
por atividade industrial. ambiental de empreendimentos ou atividades que operem com resíduos peri-
“Através do Decreto-lei número 1.413, de 14 de agosto de 1975, o governo gosos, o órgão licenciador do Sisnama pode exigir a contratação de seguro de
brasileiro estabeleceu obrigação às indústrias instaladas ou a se instalarem de responsabilidade civil por danos causados ao meio ambiente ou à saúde públi-
promover medidas necessárias e prevenir e corrigir inconvenientes e prejuízos ca, observadas as regras sobre cobertura e os limites máximos de contratação
de poluição e contaminação do meio ambiente, de forma que o Poder Público fixados em regulamento. (BRASIL, 2010)”.
deve exigir a apresentação de projeto específico quanto à destinação dos resí- Essa capacidade econômica e o seguro de responsabilidade são instrumen-
duos. (CASTRO, 2003, p. 114)” tos de garantia para o Estado frente aos devedores insolventes, os quais de-
Em seguida, veio a Lei 6.803/80, portando diretrizes básicas para o zonea- vem ser somados ao da perícia, ao das provas como inibidor do acesso à justiça.
mento industrial, dividindo-as em zonas de uso estritamente industrial destinadas, Alguns países discutem, também, como forma de combate ao devedor insol-
preferencialmente, à localização de estabelecimentos industriais cujos resíduos sólidos, vente, a criação de fundo de recuperação ao solo e de indenização das vítimas.
líquidos e gasosos, ruídos, vibrações, emanações e radiações possam causar perigo à saú- Em termos de política pública, merece destaque a política de gestão de
de, ao bem-estar e à segurança das populações, mesmo depois da aplicação de métodos solos poluídos instituída na França com a trilogia: conhecer, agir, prevenir.
adequados de controle e tratamento de efluentes; zonas de uso predominantemente Para conhecer, foi criado no início da década de 90, um sistema de inven-
industrial destinam-se, preferencialmente, à instalação de indústrias cujos processos, tários. Na realidade, a França, realiza o inventário a partir de duas bases de
226 submetidos a métodos adequados de controle e tratamento de efluentes, não causem in- controle, uma da poluição atual - Basol16, e outra que e o rastreamento da 227
cômodos sensíveis às demais atividades urbanas e nem perturbem o repouso noturno poluição “histórica” - Basias17. Esse último registrou em 1993, 553 solos po-
das populações e zonas de uso diversificado destinadas à localização de estabelecimen- luídos ou potencialmente poluídos. Em 1994, no mesmo inventário, foram
tos industriais, cujo processo produtivo seja complementar das atividades do meio ur- registrados um total de 669 áreas nessa classificação. A circular de 28 de ja-
bano ou rural que se situem, e com elas se compatibilizem, independentemente do uso neiro de 1993 relativa a reabilitação dos solos poluídos por atividades indus-
de métodos especiais de controle da poluição, não ocasionando, em qualquer caso, in- triais constou o registro de 553 sítios em 31 de dezembro de 1992. O re-
convenientes à saúde, ao bem-estar e à segurança das populações vizinhas. 14 gistro desses sítios e solos poluídos em 1994 foi de 669. (Tradução livre)18
Somente, em 2010, veio a ser criada a Política Nacional de Resíduos Esses foram os dados oficiais do governo, publicados por meio de circulares,
Sólidos – PNRS, com a Lei 12.305/2010, regulamentada pelo Decreto enquanto, que renomados pesquisadores franceses, como o geólogo Fréderic
7.404/2010. O capítulo IV dessa lei é dedicado aos considerados resíduos Ogé, pesquisador do CNRS19 publicaram outros, em um mapa da França,
perigosos15, que são os responsáveis pelo surgimento de áreas contamina- nomeado “Les dossiers secrets de la santé publique”, no qual constam mais
das. Essa lei apresenta duas disposições que merecem destaque, em relação de 250.000 antigos terrenos industriais que podem representar riscos para a
aos resíduos perigosos: saúde humana. De acordo com esses pesquisadores, o Estado tem pleno co-
A 1ª sobre a necessidade de comprovação de capacidade técnica e econô-
mica: “Art. 37 - A instalação e o funcionamento de empreendimento ou ativi-
dade que gere ou opere com resíduos perigosos somente podem ser autoriza- 16) http://basol.ecologie.gouv.fr/
dos ou licenciados pelas autoridades competentes se o responsável comprovar, 17) http://basias.brgm.fr/
18) STEICHEN, 1994, p. 17 : “La circulaire du 28 janvier 1993 relative à la réhabilitation des sols
pollués par des activités industrielles en avait recensé 553 au 31 décembre 1992. Le recensement
14) Art. 2º, 3º e 4º da Lei 6.803/80 des sites et sols pollués de 1994 en a fait apparaître 669.”
15) Artigo 1º da Lei 19) CNRS é o órgão nacional de pesquisa, equivalente ao Capes no Brasil.

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O controle das áreas contaminadas: o respeito ao direito de se viver em um ambiente saudável Vanessa de Fátima Terrade

nhecimento da existência dessas áreas, mas ele prefere ocultar informações à Em São Paulo, estado com, supostamente, o maior índice de áreas con-
população, falando somente dos casos confirmados e mais graves, para evitar taminadas pela indústria, vemos reações a nível estadual. Uma delas foi
alarmes.20 O registro exatos dessas áreas que representam riscos para a saúde a obrigação de averbação no registro de imóvel, no Estado de São Paulo,
humana, é dificultado pela ausência de definição jurídica de solos poluídos. caso o imóvel esteja em área contaminada segundo exame do CETESB –
O que acaba possibilitando que os Estados trabalhem com a noção de “solos Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental. Esse avanço decor-
potencialmente poluídos” e que deixem de atuar em situações eminentes, por reu da ação conjunta do Ministério Público de São Paulo e da CETESB, em
não considerarem serem o caso de “solos potencialmente poluídos”. consulta formulada a Corregedoria-Geral da Justiça: “O Ministério Público
Essa e, também, a política empregada pelo Brasil para conhecer. Em do Estado de São Paulo e a CETESB formularam consulta à Corregedoria-
2002, foi adotada a Resolução CONAMA 313, dispondo sobre a criação Geral da Justiça a respeita da viabilidade de recepção e arquivamento nas
de um sistema de Inventário Nacional de Resíduos Sólidos Industriais. Essa Serventias de Registro de Imóveis do Estado de São Paulo do “Cadastro de
Resolução embora tenha a sua importância, “ficou no ar”, pelo mesmo pro- Áreas Contaminadas”, elaborada pela CETESB, no sentido de que todas as
blema que existe na França e no mundo, o de se chegar a uma conclusão so- certidões emitidas pelos oficiais registradores apontem, quando solicitado,
bre o conceito jurídico de solo poluído. o fato de o imóvel correspondente estar situado em área identificada como
Em 2009, foi adotada a Resolução CONAMA Nº 420, de 29 de dezem- contaminada. (SIRVINSKAS, 2009, p. 385)”
bro de 2009, sobre a qualidade dos solos e o gerenciamento ambiental de áre- A decisão Normativa da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de
as contaminadas. Dentre as ações para o gerenciamento, consta a implantação São Paulo, Processo CG nº 167/2005, pautou-se no dever da administração
de um Banco de Dados Nacional sobre Áreas Contaminadas21. Esse banco pública em dar amplitude as informações ambientais e a “Segurança jurídi-
de dados será formado a partir de relatórios que serão publicados pelos ór- co-registral” sobre a contaminação.25
228 gãos ambientais estaduais ao IBAMA. Os relatórios serão sobre áreas conta- “Essa decisão foi um grande avanço no Estado de São Paulo, uma vez que 229
minadas identificadas, constando as características hidrogeológicas e hidroló- há muitas áreas, já mapeadas pela CETESB, contaminadas. Tal fato poderá
gicas da área, as atividades poluidoras ativas ou inativas e as características das evitar a aquisição de áreas para habitação, por exemplo, o que coloca em risco a
fontes poluidoras. A Resolução fixa o ano de 2013, dezembro, para que sejam saúde da população. Assim, quem as adquirir deverá realizar a descontamina-
apresentados pelos órgãos ambientais dos estados os valores específicos de re- ção para dar-lhes o destino pretendido. Registre-se, por fim, que tanto a con-
ferência da qualidade dos solos.22 Esses valores é que permitem a avaliação taminação como a descontaminação poderão ser declaradas pela CETESB e
da qualidade do solo, quanto à presença de substâncias químicas.23 São eles levadas ao registro imobiliário para averbação. (SIRVINSKAS, 2009, p. 386)”
que permitirão, ao Brasil, de chegar a um conceito de solos poluídos, partindo- Tal disposição ganhou previsão legal, com a Lei estadual nº 13.577/09,
se da premissa de que poluição é: “(...) a introdução, pelo homem, diretamente a qual dispõe sobre diretrizes e procedimentos para a proteção da qualidade
ou indiretamente, de substâncias ou de energias no meio ambiente, que tra- do solo e gerenciamento de áreas contaminadas. Sendo a área classificada
gam prejuízos para a saúde humana, que prejudiquem os recursos biológicos e pelas autoridades competentes, como contaminada, deve o responsável legal
ao ecosistema ecológico, portando danos ou impedindo a utilização legítima e pela área, providenciar, no prazo de cinco dias, a averbação na matrícula do
natural do ambiente. (Tradução livre)24” imóvel.26 A lei apresenta, também, instrumentos para a proteção da quali-

20) Segundo esse dossiê, dentre essas áreas constam solos que são suporte de prédios luxuosos l’homme, directement ou indirectement, de substances ou d’énergies dans l’environnement, qui
em Paris. entraînent des conséquences préjudiciables de nature à mettre en danger la santé humaine, à nuire
21) Art. 38, §3º da Resolução. aux ressources biologiques et aux écosystèmes écologiques, à porter atteinte aux agréments ou à gêner
les autres utilisations légitimes de l’environnement ».
22) Artigo 8º da Resolução
25) Tal disposição foi incluída na lei estadual de gerenciamento de áreas contaminadas, Lei
23) Artigo 7º da Resolução 13.577/09.
24) Recommandation du 14 novembre 1974, du Conseil de l’OCDE  : «  l’introduction, par 26) Art. 24, III da Lei.

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O controle das áreas contaminadas: o respeito ao direito de se viver em um ambiente saudável Vanessa de Fátima Terrade

dade dos solos, para a reabilitação, além de dispor sobre o cadastramento de te contaminadas, não se mostra suficiente. A melhor solução seria a de tornar
áreas contaminadas no Estado. obrigatório o estudo do solo antes da realização de construções para mora-
Atualmente, existe mesmo um projeto de Diretiva européia27 sobre os so- dia e para “estabelecimentos sensíveis”, como as escolas maternais e primária,
los. Dentre as ações previstas para lutar contra a contaminação desse recurso, além da prevenção por meio de técnicas de tratamento dos resíduos gerados
consta a adoção de um sistema de inventario a nível europeu, demonstrando. durante a produção industrial, fazendo valer a velha premissa de “melhor re-
O que parece indicar que o sistema de inventários é visto como um passo sig- mediar”. Sendo este último aspecto medida obrigatória após a adoção da Lei
nificativo em reação as áreas contaminadas. O controle de áreas contaminadas, 12.305/2010 instituidora da Política Nacional de Resíduos Sólidos.
por meio de inventários ou de bancos de dados, mostra-se a melhor solução,
somado ao zoneamento urbano.
Desde 1979, a Lei 6.766 sobre parcelamento do solo, proíbe, no seu artigo
3º, parágrafo único, inciso II, que seja realizado o parcelamento dos solos em
H Conclusão: Um caso de Justiça Ambiental
terrenos que tenham sido aterrados com material nocivo à saúde humana, sem que Quando se ouve falar desses casos de áreas contaminadas e das conseqüências
sejam previamente saneados. que essa poluição representa para a saúde humana, duas questões se colocam:
“O Poder Público não acompanha a velocidade do surgimento de parcela- qual o problema, ou quais sãos as falhas na legislação, na fiscalização ambiental
mentos do solo, estabelecendo-se verdadeiro caos social com a construção de ca- desses países, para permitir que casos como esses aconteçam e que se repitam;
sas sobre depósitos de lixo urbano e às vezes, industrial e até de serviços de saúde. quais as ações governamentais para impedir o surgimento de novas vítimas.
Apesar da proibição de parcelamento do solo em terrenos que tenham sido “Love Canal” significou respostas para esses e para outros questionamen-
aterrados com material nocivo à saúde, sem que sejam previamente saneados, tos. Ele representou uma modificação na legislação dos Estados Unidos, sendo
230 é comum a instalação deles nesses locais, até porque se tornam terras baratas e hoje apontado como uma amostra da força da sociedade civil organizada e do 231
acessíveis às camadas mais pobres da população, justamente as mais suscetíveis movimento negro. Love Canal é sinônimo de uma luta pelo direito ao meio
às doenças em função da má alimentação, má vestimenta e praticamente ne- ambiente saudável para todas as raças e para todas as classes sociais. Ele aponta
nhuma assistência médica.” (CASTRO, 2003, p. 113) para o dever de se dividir as externalidades negativas ambientais das atividades
Grupos de defesa do meio ambiente até tentam redigir projetos de lei tor- econômicas, e não de concentrá-las sobre as classes sociais mais baixas. Esse
nando obrigatório a analise geológica e o geotécnica do solo, antes da aprova- movimento contra o “racismo ambiental”28 tornou-se símbolo para a busca por
ção de loteamentos residenciais, mas não passam de propostas sem serem to- justiça ambiental29. A Justiça ambiental possui duas significações: a de acesso à
madas a sério pela administração pública. justiça em matéria de meio ambiente; e a de que todas as classes sociais habi-
“Alguns ambientalistas do ABC, preocupados com a possibilidade de ou- tem em um ambiente ecologicamente equilibrando. Concerne o nosso traba-
tras áreas estarem, contaminadas, não só no ABC como em todo o Brasil, estão lho, a segunda significação, essa da justiça ambiental como “busca de equidade
apresentando neste seminário uma proposta de projeto de lei que determine ao material na distribuição dos espaços ambientais, especialmente na sua utiliza-
empreendedor de todo e qualquer loteamento, análise do solo tanto geológi- ção para fins de habitação.” (FIGUEIREDO, 2010, p. 328)
ca quanto geotécnica, já que para uma zona industrial se transformar em zona Esse conceito de “Justiça ambiental” foi reconhecido em 1994 pela Agência
residencial em qualquer município brasileiro, não é difícil, pois basta a vontade Americana de Proteção do meio ambiente – EPA30, sendo criado, posterior-
política de um prefeito, ou vereadores e ainda os empreendedores, portanto, há mente um órgão de equidade ambiental dentro da Agencia. A partir de então,
que se criar mecanismos legais que cerquem de exigências qualquer novo em- os Estados Unidos tornaram obrigatório o emprego da justiça ambiental em
preendimento. (CONTRERAS, 2004, p. 272)”.
O fato de conhecer, de cadastrar as áreas contaminadas ou potencialmen-
28) « Environmental racism”
29) « Environmental Justice »
27) O

Parlamento europeu se viu diante do mesmo problema técnico enfrentado pelo Brasil,
para legislar sobre solos: as variedades físicas dos solos. 30) « Environmental Protection Agency”

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O controle das áreas contaminadas: o respeito ao direito de se viver em um ambiente saudável

todas as políticas e programas adotados no país. (Gobert, 2010)


Não basta legislar, ou se tentar legislar como a maioria dos países vem
fazendo. É preciso encontrar mais respostas para esses casos, soluções para
essas controvérsias técnicas que dificultam os solutos jurídicos. Entender
que essa questão que começaria com a proteção de um recurso natural, vai
muito além. Ela apresenta empecilhos à segurança jurídica, em razão dos
problemas de pericias, do fato do poluidor desconhecido e dos devedores
insolventes. Representa ameaça a direitos fundamentais, à saúde, à moradia
e a propriedade. No caso específico do Brasil, esses casos todos além de se
chocarem com a garantia desses direitos fundamentais, soam em dissonân-
cia com o compromisso do país em constituir uma sociedade justa e iguali-
tária, em promover o bem estar de todos, e em garantir que a ordem econô-
mica assegure a todos existência digna.31

232

31) Artigos 3º e 170 da Constituição Federal de 1988.

Direitos Humanos e Meio Ambiente


12
Saneamento Básico: Direito do
Cidadão que a Defensoria Pública
tem o Dever Legal de Garantir

Gilmar Alves Batista1


Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo

Sumário: Introdução. 1 Aspectos Históricos da Formação da


Sociedade Brasileira. 2 Dos problemas enfrentados. 3. Do Saneamento
Básico. 3.1 Direito Fundamental. 3.2 Dever do Estado. 4 Por
que existe a Defensoria Pública? 5 O Papel da Defensoria Pública
em Razão da Mutação Social. 6 O Saneamento Básico como
Direito a ser Garantido Pela Defensoria Pública. Conclusão 233

1) Defensor Público-Geral do Estado do Espírito Santo. Especialista em Direito Público e


mestrando em criminologia.
Saneamento Básico: Direito do Cidadão que a
Defensoria Pública tem o Dever Legal de Garantir Gilmar Alves Batista

H Introdução acostumado a alcançar na Índia com as especiarias e os metais preciosos. Os


lucros que proporcionou de início, o esforço de plantar a cana e fabricar o açú-
Nos últimos anos, a civilização tem passado por transformações de toda or- car para os mercados europeus, compensavam abundantemente esse esforço –
dem. O planeta terra, cada vez mais, sofre com as interferências do homem no efetuado, de resto, com as mãos e os pés dos negros – mas era preciso que fos-
meio ambiente. A cada ano surge uma doença diferente, uma catástrofe avas- se muito simplificado, restringindo-se ao necessário às diferentes operações”.2
saladora e os problemas decorrentes da falta de cuidado com o meio ambiente Foi balizado no intuito explorador, do trabalho escravo e do lucro, que o
são sentidos por todos. Brasil colônia atingiu o sucesso empresarial, que alcançou em determinado mo-
No Brasil a situação não é diferente. Entra ano e sai ano, a situação é a mes- mento o ápice mundial. Contudo, o contraste entre o desenvolvimento econô-
ma. As enchentes já fazem parte do calendário das pessoas e os hospitais são mico e a pobreza da maioria da população já era um atributo da nação brasileira.
lotados por doentes dos mais variados tipos. Na caminhada evolutiva do Brasil encontramos na sequência o fenôme-
Apesar de todo esse alarde, o mínimo não tem sido feito para amenizar esse no da urbanização, pois com a crise no sistema colonial houve uma mudança
grave dilema que enfrentamos. Grande parte desses problemas enfrentados na economia que favoreceu o crescimento urbano, tendo em vista que gran-
está relacionada à falta de saneamento básico. de parte da mão-de-obra utilizada no campo mudou-se para a cidade na
Inobstante ser a sétima economia mundial, o Brasil, no quesito saneamento busca de um destino melhor.3
básico, pode ser comparado aos países subdesenvolvidos. Desta forma, as pessoas que moravam no campo, a maioria descendentes
As políticas públicas de saneamento básico não tem tido o foco que me- de escravos, objetivando a inserção no mercado de trabalho e melhores condi-
rece na agenda administrativa brasileira. Prova disso é que somente após 19 ções de vida, passaram a edificar favelas nos morros das cidades, sem observar
(dezenove) anos da Constituição Federal de 1988 surgiu a Lei 11.445 regu- nenhum regulamento urbanístico.
234 lamentando o setor. A urbanização no Brasil está ligada ao processo de industrialização. Segundo 235
Todavia, inúmeros dispositivos normativos, constitucionais e infraconstitu- MUKAI, os efeitos da Revolução Industrial chegaram ao Brasil com algum atra-
cionais, asseguram o direito ao saneamento básico, à infraestrutura urbana e ao so, e a urbanização acelerada, bem como suas consequências também chegaram
meio ambiente ecologicamente equilibrado. aqui após alguns anos de influência que exerceram nos países desenvolvidos.4
É fato: O cidadão brasileiro tem direito ao saneamento básico. Aliás, esse Realça-se, todavia, que o aceleramento da urbanização brasileira chegou alia-
é um direito humano essencial para gozar plenamente a vida e todos os outros do com o desenvolvimento econômico do país como um fenômeno irreversível.
direitos humanos nos termos da Resolução da ONU A/RES/64/292. O II Congresso Brasileiro de Serviço Social, em seus anais, deixou consig-
Também é fato que quem mais sofre com a falta de saneamento básico no nado:5 “O mencionado fenômeno da industrialização, auxiliado pelo desen-
Brasil é a população carente. Ou seja, as pessoas que são usuárias em potencial volvimento dos meios de transportes, provocam violentas modificações nas
dos serviços oferecidos pela Defensoria Pública. Daí fica a pergunta: O que a antigas e equilibradas relações, entre o meio rural e o meio urbano. A inten-
Defensoria Pública pode fazer para mudar essa triste realidade em nosso país? sa urbanização, fenômeno consequente do primeiro e que significa a criação
de novas áreas urbanas e intensificação do gênero urbano da vida de todas as
áreas já existentes, é acontecimento típico da era que se seguia à Revolução
1) Aspectos Históricos da Formação da Sociedade Brasileira
2) HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,
A origem colonial brasileira está calcada no extrativismo e no escravismo. 1976, p. 18.
Nosso colonizador não tinha a intenção de formar aqui um novo país ou nação, 3) OLIVEN, Ruben George. Urbanização e mudança social no Brasil. 2. Ed. Petrópolis: Vozes,
tinha apenas o intuito de explorar ao máximo os recursos naturais e humanos. 1982.
“O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que 4) MUKAI, toshio. Direito urbano-ambiental brasileiro. 2. Ed. São Paulo: Dialética, 2002, p. 47.
custa ousadia, não riqueza que custa trabalho. A mesma, em suma, que tinha
5) Ibidem, p. 48.

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Saneamento Básico: Direito do Cidadão que a
Defensoria Pública tem o Dever Legal de Garantir Gilmar Alves Batista

Industrial. Da necessidade de impedir o aparecimento inevitável de inúmeros fontes de morbidade e mortalidade, sendo responsáveis pela maioria dos casos
males, ligados a esse crescimento desordenado, começou a surgir uma especia- de enterites, diarreias, viroses, doenças endêmicas ou epidêmicas.
lização nova que visa não só ordenar a cidade, mas agora com uma preocupa- Destarte, para alcançar melhorias na rede pública de saúde será preciso
ção de maior alcance, qual seja a de disciplinar e conseguir estabelecer técnicas equilibrar a relação do homem com o meio ambiente. Quanto melhor o equi-
de intervenção no processo de ocupação de espaço.” líbrio ambiental, melhor será a saúde e qualidade de vida das pessoas. Mas o
Com o crescimento populacional e a falta de planejamento das cidades, o que se percebe é que a política nacional está voltada para o atendimento médi-
problema da segregação se intensificou. A política de investimento público ou co, colocando em segundo plano os meios de prevenção.
privado foi voltada para determinados locais, valorizando-os com a disponi- Talvez, os rumos dos investimentos em saneamento básico fossem ou-
bilização de saneamento básico, transporte, asfalto e segurança, ao passo que tros, se os mais atingidos também fosse outras pessoas: as que fazem parte
pouco ou nenhum investimento foi destinado às áreas periféricas. Quem pos- da elite desse país.
suía recursos escolheu os locais com maior infraestrutura, sendo a periferia re- Contudo, de qualquer maneira, é preciso equilibrar os investimentos no
servada à população menos abastada. E assim, historicamente, foram estrutu- setor e buscar o crescimento sustentável, onde a população carente possa ter
radas as cidades brasileiras. acesso à moradia digna, com acesso a infraestrutura básica, como esgoto, água,
ruas pavimentadas e energia elétrica.

2) Dos Problemas Enfrentados


3) Do Saneamento Básico
O crescimento desordenado das cidades redundou em diversos problemas de
236 237
ordem urbanística e ambiental. O Brasil não se preparou para o crescimento da
3.1) Direito Fundamental
população que se alojou nos morros, na beira dos rios e na periferia.
O impacto brutal de tudo isso recai sobre o meio ambiente: A maior parte
O direito ao saneamento básico, à infraestrutura urbana e ao meio am-
da população brasileira não é assistida por redes de esgotos e carece da distri-
biente ecologicamente equilibrado tem base na Constituição Federal6 e nas
buição de água potável. As residências lançam seus esgotos, sem nenhum tra-
Legislações Federais nº 10.257/2001, 6.938/1981 e 11.445/2007.
tamento, direitamente nos mananciais de águas potáveis.
Sem dúvida, o saneamento ambiental, dia após dias, ganha espaço nas pre-
Os reflexos da ausência de uma política pública voltada para o saneamento
ocupações sociais. O meio ambiente ecologicamente equilibrado é um bem co-
básico são sentidos nos hospitais públicos. A constatação que se faz é que con-
mum do povo e essencial à qualidade de vida, razão pela qual cabe ao Poder
vivendo com o esgoto a céu aberto as pessoas ficam doentes.
Público, bem como à coletividade, preservá-lo para a presente e futuras gerações.
O despejo do esgoto nos rios impede a preservação das nascentes e desequi-
Para atingir o objetivo da preservação ambiental, estabelecido na
libra o meio ambiente. A água doce, uma das principais riquezas mundial, está
Constituição Federal brasileira, uma meta primordial necessita de superação:
ameaçada e, mesmo num país com recursos abundantes como o Brasil, a falta
Garantir saneamento básico para todos os brasileiros.
de água potável já é sentida pela população.
Todo esse contexto está afetando a saúde do brasileiro de várias formas,
sendo pela ingestão direta de água contaminada, ou na sua utilização na prepa- 6) Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público muni-
ração de alimentos, na higiene pessoal, na agricultura, na higiene do ambiente, cipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desen-
nos processos industriais ou atividades de lazer. volvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de
Mesmo recebendo medicamentos seguros e eficazes no tratamento de do- vinte mil habitantes,é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
enças, o contato com o esgoto e com a água contaminada prolifera os mais di- Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso co-
versos tipos de vírus, parasitas e bactérias patogênicas, que são as principais mum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coleti-
vidade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

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Saneamento Básico: Direito do Cidadão que a
Defensoria Pública tem o Dever Legal de Garantir Gilmar Alves Batista

A falta do saneamento básico afeta a dignidade do ser humano com o meio O saneamento básico serve como ferramenta concretizadora dos objetivos
natural e, por isso, viola o princípio constitucional da dignidade da pessoal hu- previstos no artigo 3º da nossa Constituição, notadamente por diminuir a de-
mana. Ligado diretamente às condições de sobrevivência e de saúde do ser hu- sigualdade existente entre o pobre e o rico em nosso país.
mano, os serviços de saneamento básico é determinante para as relações do ho- Em virtude dessa característica específica, é possível afirmar que o direi-
mem com o meio ambiente. to ao saneamento básico conta com uma estrutura jurídica capaz de obrigar
Em razão disso, a política nacional de saneamento básico, estabelecida na o Poder Público ao seu devido cumprimento. Não há mais espaço para ques-
Lei nº 11.445/2007, determina que o saneamento básico engloba serviços, in- tionamento de sua fundamentalidade no sistema jurídico brasileiro, o sanea-
fraestruturas e instalações operacionais de: abastecimento de água potável; es- mento é um direito básico do cidadão. E, como direito fundamental social, o
gotamento sanitário; limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos; drenagem Estado deve prestá-lo adequadamente a toda população.9
e manejo das águas pluviais urbanas. No entanto, o Brasil apresenta enorme déficit de saneamento básico e como
Destarte, o saneamento básico tem como objetivo promover a melhoria das a sua implantação requer planejamento e investimentos de recursos financeiros, e
condições de saúde e a qualidade de vida da população. Por esta razão, deve ser o Poder Público não dá sinais visíveis que vai colocar em prática a legislação exis-
encarado como um direito fundamental social, cujo constituinte, embora não o tente que regulamenta o setor, será preciso que instituições como a Defensoria
tenha previsto expressamente na Constituição Federal, implicitamente o garan- Pública adotem medidas concretas para efetivar esse direito da população.
tiu por derivação do princípio constitucional da dignidade da pessoal humana. A geração da infraestrutura de saneamento demanda planejamento de lon-
Afinal, o constituinte brasileiro inseriu uma cláusula aberta quando tra- go prazo e dispêndio de muitos recursos financeiros, por essa razão não dá pra
tou do regime dos direitos fundamentais no § 2º do artigo 5º, da Constituição aguardar mais longos anos, na esperança de que o poder público coloque em
Federal, admitindo como fundamentais os direitos decorrentes dos princípios prática uma política de saneamento básico que atenda os anseios da população.
238 e do regime constitucional, bem como aqueles previstos em tratados interna- Destarte, entra ano e sai ano e o poder público vem se escusando de demo- 239
cionais. Desta forma, podem ser considerados direitos fundamentais, mesmo cratizar o saneamento básico alegando a falta de recursos financeiros. É certo
que não previstos na Constituição, aqueles que, materialmente, fossem dotados que os recursos financeiros são finitos, no entanto, é importante fazer a dife-
da mesma dignidade.7 É o caso do saneamento básico. renciação do que não é possível por insuficiência de recursos e o que não é pos-
Embora não haja dispositivo constitucional inserindo o saneamento básico sível porque os recursos, que inicialmente eram suficientes, foram transferidos
no rol dos direitos fundamentais, existem vários textos constitucionais que, in- e investidos em outras prioridades. Nesse ponto, a tão evocada discricionarie-
terpretados em conjunto, com sistematicidade e unidade, levarão à conclusão da dade administrativa deve ser avaliada em consonância com os princípios e os
existência desse direito fundamental de forma implícita na Constituição Federal.8 comandos constitucionais. A Constituição Federal fornece parâmetros para a
aplicação dos recursos, de modo que a avaliação alocativa dos meios deverá ser
norteada para atingir minimamente os fins por ela estabelecidos.10
Sendo assim, a insuficiência ou a inexistência de recursos financeiros deve
3.2) Dever do Estado
ser concretamente demonstrada pelo Poder Público, não se admitindo a utili-
zação dessa afirmativa de modo genérico para justificar a omissão na efetivação
A universalização do saneamento básico tem destaque especial e decisivo na
de direitos fundamentais.
consolidação dos direitos sociais e na garantia da dignidade da pessoa huma-
Neste diapasão, sabendo que a efetivação dos direitos fundamentais de-
na nos termos da Constituição brasileira, como forma de conceder condições
pende da distribuição dos recursos públicos e da política de investimento para
mínimas à população brasileira como o direito à saúde e ao bem estar social.

7) OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do 9) STJ – 1ª turma – Recurso Especial nº 575998/MG – Min. Rel. Luiz Fux – DJ:16/11/2004.
possível.Curitiba: Juruá, 2010, p. 46.
10) Olsen, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do pos-
8) Direito das Futuras gerações. ---Vitória: Cronograma, 2013, p. 189. sível.Curitiba: Juruá, 2010, p. 210.

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Saneamento Básico: Direito do Cidadão que a
Defensoria Pública tem o Dever Legal de Garantir Gilmar Alves Batista

cada setor, a discricionariedade administrativa deve ser concebida somente contingente populacional pobre, marginalizado e excluído.13
quando atendidas as normas constitucionais que estabelecem as prioridades Como responsável pelo acesso à Justiça da maioria da população brasileira,
na alocação de recursos, pois todos os direitos fundamentais estabelecidos na a Defensoria Pública é também garantia constitucional de promoção dos di-
Constituição Federal devem ser efetivamente respeitados. reitos fundamentais, instrumento de legitimação do Estado Democrático de
Direito, de cunho intervencionista.
Neste contexto é que está inserida a grande missão da Defensoria
Pública, como instituição responsável pela efetivação do acesso à Justiça em
4) Porque Existe a Defensoria Pública?
sua acepção ampla, incluindo a justiça social. Para tanto, a Instituição preci-
sa garantir a produção e a hermenêutica dos direitos fundamentais em con-
A formação social brasileira foi construída culturalmente pela ideia escra-
sonância com o modelo de Estado Social e Democrático, provedor e trans-
vagista, que além de ter redundado na tardia abolição da escravatura, tam-
formador de direitos.14
bém acentuou a violência contra a população negra explorada pelos escra-
Tradicionalmente a Defensoria Pública patrocinou os direitos individu-
vagistas, vez que de uma hora para outra os negros foram liberados sem
ais. Todavia, com a mudança das necessidades do cidadão, a Instituição as-
nenhum plano de inserção social. De acordo com cada região do país o
sumiu outras atribuições para atingir os objetivos que deram ensejo à sua
problema do negro variava. A opção pelo trabalho do imigrante e as pou-
existência. A atual Defensoria Pública, além de patrocinar os direitos indi-
cas oportunidades oferecidas aos negros resultaram em uma profunda de-
viduais da grande massa populacional, também passou a tratar de direitos
sigualdade social da população negra. 11
coletivos e metaindividuais.
As mudanças advindas da abolição afetaram desastrosamente a formação
A Lei 11.448/2007 adequou a legislação à nova realidade da Defensoria
das cidades brasileiras. Uma chaga que o Brasil carrega até os dias de hoje.
240 Pública, ao incluir a instituição em segundo lugar no rol dos legitimados para 241
Imensas levas de colonos – brancos, negros e mestiços – saíram do campo para
propor a ação civil pública. Com isso, a Defensoria Pública passou ter ainda
as periferias das cidades, passando a viver e morar em condições sub-humanas,
mais importância para a sociedade brasileira, ao titularizar também a defesa
formando os chamados “cinturões de miséria”.12
dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, quando o resultado
As cidades brasileiras não estavam preparadas para receber o quantitativo
da demanda beneficiar os grupos de pessoas marcados pela nota da hipossufi-
de pessoas advindas do meio rural, que acabaram formando as atuais favelas,
ciência, seja ela econômica, técnica ou organizacional.
que sofrem das mais diversas estruturas urbanas, dentre elas o saneamento bá-
Em decorrência da evolução social e do próprio aprimoramento da visão so-
sico. E é essa grande massa formada em nosso país pelo histórico de exclusão
bre o direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita, a Defensoria
social, que a Defensoria Pública tem o dever legal de defender.
Pública vem passando por mudanças de perfis na sua autuação. Os anseios da so-
ciedade atualmente são outros. A instituição, atualmente, é procurada pela popu-
lação objetivando acesso à assistência social, saúde, educação, habitação, seguran-
5) O Papel da Defensoria Pública em Razão da Mutação Social ça, emprego e à justiça, o que provocou, naturalmente, um alargamento no âmbito
de atuação da Defensoria Pública, que passou a demonstrar atribuição constitu-
Em razão da hipossuficiência da população brasileira, a Defensoria Pública cional para atuar em diversas áreas e em defesa dos mais diversos grupos sociais.
tem uma missão de alta magnitude constitucional. No Brasil, o efetivo “acesso Tendo-se em conta a missão primordial da Defensoria Pública, de prestar
à Justiça” passa necessariamente pela Defensoria Pública, em razão do grande assistência jurídica integral à população carente desassistida, e considerando
grande parte dos brasileiros vive na pobreza, a tutela do mínimo existencial

11) Souza, Fábio Luís Mariani de. A Defensoria Pública e o acesso à justiça penal. Porto Alegre:
Núria Fabris Ed., 2011. p. 142. 13) Ibidem, p. 303.
12) Ibidem, p. 143. 14) Artigo 3º-A da Lei Complementar 80/94.

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Saneamento Básico: Direito do Cidadão que a
Defensoria Pública tem o Dever Legal de Garantir Gilmar Alves Batista

passou ser um dos focos de atuação da Instituição. E, como a instituição tem população carece dos instrumentos básicos de saneamento, cabe à Defensoria
como objetivo a redução das desigualdades sociais, a erradicação da pobreza é Pública intermediar o diálogo entre o Estado e a Sociedade, visando resguar-
a meta principal da Defensoria Pública. “Na verdade, a Defensoria Pública é a dar os direitos dos seus assistidos.
única estrutura estatal destinada expressamente a trabalhar juridicamente para O que não se pode admitir, diante de todos os avanços conquistados pela
garantir redução das desigualdades sociais, através da prestação da assistência Defensoria Pública, é que nos dias atuais sejam os grupos vulneráveis obri-
jurídica integral e gratuita”.15 gados a arcar com as gravosas consequências de uma política pública eliti-
zada, por falta de voz, ou por falta de interlocução com as autoridades pú-
blicas. Este distanciamento entre a população carente e o poder público, e a
existência de uma grande massa populacional excluída, são os fundamentos
6) O Saneamento Básico como Direito a ser
de existir da Defensoria Pública.17
Garantido Pela Defensoria Pública Portanto, a Defensoria Pública, além de se organizar para a propositura das
ações coletivas visando à implantação de uma política de saneamento básico
A sociedade brasileira apresenta uma das maiores desigualdades sociais do voltada para a população carente e para a incorporação efetiva desta questão
mundo, sendo uma marca dessa desigualdade a falta de saneamento básico ambiental na concretização da democracia em nosso país, deve defender tam-
para toda população. Pode-se dizer que a população brasileira sofre de racismo bém os interesses individuais que tenham nítido reflexo em relação ao tema
ambiental, já que grande parte da população suporta de algum modo um im- ora tratado, sem prejuízo das atividades educativas e formadoras de opinião.
pacto ambiental negativo muito maior que as outras pessoas.16 Nunca é tarde lembrar que a qualidade de vida está ligada diretamente à
A falta de saneamento básico no Brasil está diretamente ligada às camadas dignidade da pessoa humana e ao desenvolvimento social sustentável, de modo
242 mais pobres da população, calcada numa sociedade excludente, racista e classis- que a falta de saneamento básico, além causar diversos tipos danos ambientais 243
ta, onde o princípio da igualdade de todos perante à lei é mera retórica formal. e afetar a saúde de uma pluralidade de pessoas, atinge fortemente, por questões
Sob esse aspecto, cabe a Defensoria Pública agir estrategicamente na luta obvias, os mais necessitados.
em prol da implantação de uma política de saneamento básico para todos os Destarte, sendo justamente a defesa das camadas mais pobres da socie-
cidadãos, reduzindo assim essa desigualdade latente entre pobres e ricos. No dade brasileira a razão de existir da Defensoria Pública, a Instituição deve
entanto, para que isso seja possível, além da estratégia, a Defensoria Pública agir sempre objetivando propiciar, através da educação em direitos e da pro-
deve adotar um modelo mais proativo com foco na identificação dos casos positura das medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis, um desenvolvimento
mais graves que demandam a atuação Institucional. social mais justo, baseado na premissa de que os serviços essenciais, como o
Cumpre salientar que a Defensoria Pública está dotada dos instrumentos saneamento básico, precisam ser oferecidos a toda população e não apenas a
necessários à efetivação do direito ao saneamento básico. A Instituição dis- uma parte elitizada da sociedade.
põe de atribuições para atuar na educação em direitos, na defesa individual e
coletiva dos direitos dos cidadãos. Portanto, identificando os casos em que a
H Conclusão
15) Roger, Franklin, Princípios institucionais da defensoria pública, Rio de Janeiro: Forense, 2014,
p. 317. A missão principal da Defensoria Pública é prestar assistência jurídica in-
tegral e gratuita à população carente e desassistida do nosso país. Por tal ra-
16) “O tratamento desigual em relação aos grupos ambientalmente excluídos é vergonhoso. Seja
pela atitude permissiva do poder público ao não impedir que estes grupos sejam diretamente zão, brevemente, fizemos um esboço da formação das cidades brasileiras, de-
afetados por empreendimentos poluidores, seja pela omissão com a ausência de políticas monstrando que a nossa sociedade apresenta elevado grau de desigualdade
públicas eficazes no combate a injustiça ambiental, seja pelo descumprimento do princípio
da informação, seja pela inexistência de efetiva participação dos interessados –afetados – nos
atos decisórios, seja pela falta de acesso aos recursos naturais, como é o caso dos nordestinos 17) Souza, Fábio Luís Mariani de. A Defensoria Pública e o acesso à justiça penal. Porto Alegre:
e a falta de água.” (Direito das Futuras gerações. ---Vitória: Cronograma, 2013, p. 215). Núria Fabris Ed., 2011. p. 303.

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Saneamento Básico: Direito do Cidadão que a
Defensoria Pública tem o Dever Legal de Garantir

social. O povo brasileiro possui uma elite dominante que se formou dentro
da cultura escravagista e que dela herdou o desrespeito aos pobres.18 As cida-
des brasileiras foram construídas sob a perspectiva da segregação. As locali-
dades com infraestrutura são reservadas aos mais abastados e a periferia, os
morros e as favelas destinados aos pobres.
Com efeito, diante do histórico apresentado, a grande maioria da população
brasileira ainda convive com esgoto a céu aberto e com a falta de água potável
para o consumo. Logicamente que a população mais afetada pela falta de sa-
neamento básico é a população pobre desse país.
As consequências advindas da falta de saneamento básico são variadas e vão
além dos danos ambientais, envolvendo a questão da saúde pública, haja vis-
ta que são fatores determinantes na proliferação de diversos tipos de doenças.
Realça-se que mesmo sendo o saneamento básico um direito do cida-
dão – podendo ser considerado, inclusive, um direito fundamental social – o
Estado brasileiro tem se omitido da consecução de seu dever de agir positi-
vamente para disponibilizar a todas as pessoas esse serviço público essencial
à dignidade da pessoa humana.
Por todo o exposto, é de grande importância o papel da Defensoria Pública
244 como instrumento influenciador e de efetivação da política pública envolven-
do o saneamento básico. Para tanto, a Instituição precisa adotar uma política
institucional mais proativa, visando identificar as pessoas ou os grupos de pes-
soas que necessitam da intervenção dos Defensores Públicos. E uma vez cons-
tatada a ausência de infraestrutura básica de saneamento, caberá à Defensoria
Pública agir, orientando os assistidos quanto aos seus direitos, cobrando do
poder público a implantação dos serviços e prestando assistência jurídica inte-
gral na forma da lei.

18) Souza, Fábio Luís Mariani de. A Defensoria Pública e o acesso à justiça penal. Porto Alegre:
Núria Fabris Ed., 2011. p. 327.

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13
Os tempos estão a mudar: alterações
climáticas, ordenamento do território
e protecção da orla costeira

Carla Amado Gomes


Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

“Come gather ‘round people


Wherever you roam
And admit that the waters
Around you have grown
And accept it that soon
You’ll be drenched to the bone 245
If your time to you
Is worth savin’
Then you better start swimmin’
Or you’ll sink like a stone
For the times they are a-changin’”
Bob Dylan, The times they are a-changin’ (1964)

Sumário: Introdução: As múltiplas estratégias face às alterações


climáticas. 1 Alterações Climáticas e Orla Costeira: Planos para quê?
1.1 Poocs. 1.2 Pgris. Conclusão: Prevenção e Responsabilização
em Tempos de Inclemência Climática: Um Mar de Incertezas.
Os tempos estão a mudar: alterações climáticas,
ordenamento do território e protecção da orla costeira Carla Amado Gomes

H Introdução:
as múltiplas estratégias face às
alterações climáticas
Em razão da natureza transversal e transnacional da questão das alterações
climáticas, a União Europeia, no âmbito do seu comprometimento nesta fren-
te de luta ambiental, aprovou a Estratégia da UE para a adaptação às alterações
No passado dia 9 de Janeiro de 2014, o Ministro do Ambiente, Ordenamento climáticas5, da qual nos permitimos reproduzir aqui alguns passos que sinteti-
do Território e Energia, em visita à costa de Ovar, uma das muitas zonas zam o presente estado de coisas:
flageladas pela onda de tempestades deste Inverno1, constatou que “a mu- “A temperatura do território terrestre europeu durante a última década (2002-
dança climática, infelizmente, não é ficção científica, não é matéria para da- 2011) foi, em média, 1,3 °C superior à do nível pré-industrial, o que significa um
qui a 20, 30 anos. Está a ocorrer”. E Portugal, um país com mais de dois aumento mais rápido do que o da média mundial. Intensificaram-se alguns fenó-
terços da sua costa voltados para o Atlântico tem, nos últimos anos, senti- menos meteorológicos extremos, com maior frequência de vagas de calor, incêndios
do particularmente os riscos dessa contiguidade. Tal circunstância levou à florestais e secas na Europa meridional e central. Prevê-se o agravamento da pre-
aprovação de medidas de prevenção da erosão e de contenção da força das cipitação e das inundações na Europa do norte e do nordeste, com um risco acresci-
marés em Planos de Ordenamento da Orla Costeira (POOCs), em instru- do de invasão e erosão da orla costeira. A intensificação destes fenómenos é suscetível
mentos como o Programa Finisterra (2002-2004), o Plano de Acção para o de acentuar a magnitude das catástrofes, causando significativas perdas económicas,
Litoral 2007-2013 ou a Estratégia Nacional para a Gestão Integrada da Zona problemas de saúde pública e mortalidade.
Costeira, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros 82/2009, de 8 Os impactos variam de um ponto para outro na UE, consoante as condições cli-
de Setembro2. Todos registaram tão baixo índice de concretização que, em máticas, geográficas e socioeconómicas. Todos os Estados-Membros estão expostos às
2012, foi lançado um novo Plano de Acção de Protecção e Valorização do Litoral alterações climáticas. Todavia, algumas regiões estão mais em risco do que outras. São
2012-2015, já sob o pano de fundo da Estratégia Nacional de adaptação às particularmente vulneráveis a bacia mediterrânica, as zonas montanhosas, as zonas
246 alterações climáticas3, adoptada pela Resolução do Conselho de Ministros densamente povoadas em leitos de cheia, as zonas costeiras, as regiões ultraperiféricas 247
24/2010, de 1 de Abril4. e o Ártico. Acresce que três quartos da população europeia vivem em zonas urbanas,
frequentemente mal equipadas para a adaptação e expostas a vagas de calor, inun-
dações e subida dos níveis do mar.
1) Cuja causa directa foi uma situação de NAO (North Atlantic Oscilation) positiva, ou seja, uma
anormal diferença de pressões barométricas entre a Depressão da Islândia e o Anticiclone Muitos setores económicos dependem diretamente das condições climáticas e es-
dos Açores, que gerou condições climáticas especialmente quentes e húmidas, favorecendo a tão já a enfrentar o impacto das alterações climáticas em domínios como a agri-
formação de tempestades marítimas. cultura, a silvicultura, o turismo de praia e de neve, a saúde e as pescas. São tam-
2) Refira-se ainda o Programa Polis — Programa de Requalificação Urbana e Valorização Am- bém afetados serviços fundamentais, como o abastecimento de energia e de água.
biental de Cidades, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros 26/2000, de 15 de Os ecossistemas e os serviços por eles prestados estão a sofrer os impactos adversos
Maio, no qual se incluíam algumas medidas de requalificação de zonas (urbanas) costeiras.
das alterações climáticas, o que acelera o declínio da biodiversidade e reduz a sua
3) Para uma análise das políticas de adaptação às alterações climáticas logo na sequência da capacidade para amortecer fenómenos naturais extremos. As alterações climáticas
emissão da Estratégia referida no texto, veja-se o relatório da Comissão para as alterações
climáticas, publicado sob a égide da Agência Portuguesa de Ambiente em Junho de 2010 terão consequências na disponibilidade de recursos naturais básicos (água, solo),
— Ponto da situação das políticas de alterações climáticas em Portugal, Fórum para as Alterações
Climáticas 2010.
ticos, mas que são desencadeadas por alterações ecológicas em sistemas naturais e por alte-
4) Este documento, que se assume como eminentemente programático, parte de um conceito de rações de mercado e de bem-estar em sistemas humanos. Também referida como adaptação
adaptação importado dos trabalhos do Painel das Nações Unidas para as alterações climáticas espontânea;
(IPCC), desdobrável em três dimensões: «Adaptação planeada»: Medidas que resultam de decisão política deliberada, baseadas na
“«Adaptação»: é um ajustamento nos sistemas naturais ou humanos como resposta a estí- consciência de que as condições se alteraram ou estarão prestes a alterar-se, e que são neces-
mulos climáticos verificados ou esperados, que moderam danos ou exploram oportunidades sárias para regressar a, ou manter, um estado desejado”.
benéficas. Podem ser distinguidos vários tipos de adaptação:
«Adaptação antecipatória»: Medidas tomadas antes dos impactes das alterações climáticas 5) Estratégia da UE para a adaptação às alterações climáticas, Comunicação da Comissão ao Par-
serem observados. Também referida como adaptação proactiva; lamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social europeu e ao Comité das
«Adaptação autónoma»: Medidas tomadas, não como resposta consciente a estímulos climá- Regiões - COM(2013) 216 final, pp. 2-4.

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Os tempos estão a mudar: alterações climáticas,
ordenamento do território e protecção da orla costeira Carla Amado Gomes

conduzindo a mudanças significativas nas condições para a agricultura e a pro- legal e político; ii) Avaliação, gestão, monitorização e alerta precoce de riscos
dução industrial em algumas zonas. naturais; iii) Investigação científica e educação; iv) Redução de factores de po-
(…) tenciação do risco natural; v) Prontidão para a resposta emergencial e reforço
A ausência de medidas ou o atraso na sua tomada poderão colocar a coesão da UE da capacidade de recuperação.
sob pressão. Prevê-se também que o impacto das alterações climáticas agrave as dife- No âmbito desta comunicação e atendendo às particulares circunstâncias
renças sociais no seio da União. Temos de prestar especial atenção aos grupos sociais climatéricas que têm caracterizado os últimos meses, gostaríamos de tecer al-
e regiões mais expostos e já desfavorecidos (devido, p. ex., a más condições de saúde, gumas considerações sobre a protecção do litoral contra a inclemência das ma-
rendimentos baixos, alojamento inadequado, falta de mobilidade) rés, aludindo, por um lado, a instrumentos de planeamento como os POOCs
Estima-se que o custo mínimo da não-adaptação às alterações climáticas va- e os planos de gestão do risco de inundações como metodologias de prevenção
rie entre 100 mil milhões de euros por ano em 2020 e 250 mil milhões em 2050, de danos às pessoas e ao ambiente (1.) e, por outro lado, reflectindo sobre as
para o conjunto da UE. Entre 1980 e 2011, as perdas económicas diretas na UE consequências do agudizar dos fenómenos climáticos no plano dos deveres de
devidas a inundações ultrapassaram 90 mil milhões de euros. Prevê-se que este protecção e compensação dos poderes públicos (2.).
montante se agrave, porquanto o custo anual dos danos causados por cheias flu-
viais está estimado em 20 mil milhões de euros na década de 2020 e em 46 mil
milhões de euros na década de 2050.
1) Alterações climáticas e orla costeira: planos para quê?
O custo social das alterações climáticas pode também ser considerável. Ao longo do
período 1980-2011, as inundações causaram mais de 2500 mortes e afetaram mais
Conforme se pode ler no ponto 2 do Plano de Acção de Protecção e Valorização
de 5,5 milhões de pessoas na UE. Se não se tomarem mais medidas de adaptação, o
do Litoral 2012-2015,
248 número de mortes pelo calor poderá sofrer um acréscimo anual de 26 000 na década 249
“O litoral português enfrenta atualmente, numa extensão considerável, uma
de 2020, ascendendo a 89 000 na década de 2050.
ameaça significativa decorrente dos fenómenos de erosão costeira, galgamento/inun-
Embora não exista nenhuma análise abrangente dos custos da adaptação na
dação, instabilidade das arribas e movimentos de massa de vertente. Cerca de 1/4 da
UE, estima-se que as medidas adicionais de proteção contra inundações se cifrem
sua extensão mostra tendência para erosão ou erosão confirmada, independentemente
em 1,7 mil milhões de euros por ano na década de 2020, valor que aumentará
de se tratar costa baixa ou alcantilada, rochosa ou arenosa (…).
para 3,4 mil milhões na década de 2050.
A perda de território e propriedade e a destruição ou danificação das infraestru-
Essas medidas podem ser bastante eficazes, pois, por cada euro gasto na proteção
turas existentes (de proteção costeira ou edifícios) em determinados pontos da orla
contra inundações, poderemos evitar seis euros de custos de danos”6.
costeira, bem como a ocorrência irregular e descontínua de movimentos de massa nas
A União Europeia demonstra uma particular preocupação com os cus-
arribas em praias com uso balnear, têm contribuído para o aumento das situações de
tos das alterações climáticas, financeiros, económicos e sociais. Por seu tur-
risco para as pessoas e bens instalados nestas áreas, por vezes com implicações graves
no, a Estratégia de Hyogo, documento forjado no seio das Nações Unidas, que
no que se refere à sua segurança. A gestão dos riscos inerentes à evolução do litoral será
pretende estabelecer um programa de acção mundial de prevenção e minimi-
uma questão de ainda maior importância num futuro cada vez mais próximo devi-
zação dos riscos de catástrofes naturais, muito agravados precisamente pelas
do aos impactos das alterações climáticas, designadamente a subida do nível médio
profundas mutações dos padrões climáticos a que vimos assistindo nas últi-
do mar e a modificação do regime de agitação marítima, da sobre-elevação meteoro-
mas décadas, elegeu cinco áreas de intervenção para o decénio 2005/20157: i)
lógica e da precipitação. Neste cenário, segundo os dados constantes do Projeto SIAM
Enquadramento jurídico da prevenção de catástrofes no plano organizacional,
II - Alterações Climáticas em Portugal. Cenários, Impactos e Medidas de Adaptação
(2006), são expectáveis alterações no balanço sedimentar que se podem traduzir no
6) Estratégia da UE para a adaptação às alterações climáticas, pp. 2-4. estabelecimento ou variação da intensidade da erosão e na modificação da frequência
7) Sobre a Estratégia de Hyogo, veja-se Carla AMADO GOMES, A gestão do risco de catástrofe e intensidade das inundações costeiras. Os impactos dessas alterações ao nível econó-
natural. Uma introdução na perspectiva do Direito Internacional, Capítulo I da obra Direi- mico, social e ambiental serão variáveis e irão depender fortemente das características
to(s) das catástrofes naturais, coord. de Carla Amado Gomes, Coimbra, 2012, pp. 15 segs, 56-59.

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Os tempos estão a mudar: alterações climáticas,
ordenamento do território e protecção da orla costeira Carla Amado Gomes

geológicas, morfológicas e padrões de ocupação existentes na faixa costeira nacional”. ponto de vista de análise custo-benefício)9 no médio/longo prazo.
Partindo deste diagnóstico, esta Estratégia vai lançar as directrizes de revi- A prognose cientificamente apoiada constitui a grande arma dos instrumen-
são dos POOCs actualmente em vigor, tendo em particular atenção o enqua- tos de gestão do risco de alterações climáticas, numa tentativa de reduzir a enorme
dramento de medidas de prevenção e mitigação de riscos para o ambiente ad- álea de incerteza que rodeia a evolução dos cenários naturais com um custo econo-
venientes do incremento da força das tempestades marítimas e da subida do micamente aceitável. Como se refere na Estratégia, a abordagem e as medidas em
nível das águas. O documento considera prioritárias, por ordem decrescente, as concreto “devem ser ajustadas convenientemente ao contexto geológico e morfo-
seguintes tipologias de intervenção (ponto 3.1.): lógico da faixa costeira portuguesa e ao padrão de ocupação e usos nela existente.
“Defesa Costeira e Zonas de Risco – sempre que sejam detetados riscos passíveis de A opção por uma ou outra aproximação deve assentar no conhecimento técnico
porem em causa a segurança de pessoas e bens localizados na faixa costeira; disponível, decorrente de estudos técnicos prévios e da experiência acumulada, dos
Estudos, Gestão e Monitorização – de forma a suportar e fundamentar tecnica- resultados das ações de monitorização já desenvolvidas e em curso em alguns tro-
mente as ações e intervenções previstas e garantir a sua adequabilidade face aos pro- ços costeiros, e ainda, crescentemente, em análises de custo/benefício” (ponto 4.).
cessos e mecanismos evolutivos presentes na faixa costeira; A elaboração dos planos de gestão do risco de inundações (=PGRI), cria-
Planos de Intervenção e Projetos de Requalificação – intervenções de requali- dos pelo DL 115/2010, de 22 de Abril, em transposição da directiva 2007/60/
ficação e de valorização da orla costeira previstas em Plano de Ordenamento da CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro, assenta em
Orla Costeira, designadamente planos de praia e ações enquadradas em Unidades metodologia semelhante. Com efeito, a sua aprovação é precedida de uma
Operativas de Planeamento e Gestão, e ainda outras integradas nas operações Polis”. avaliação preliminar dos factores de risco das regiões historicamente sujeitas
O primeiro tipo de intervenção é claramente reactivo e emergencial; o a inundações e de uma projecção estimada dos efeitos destes fenómenos num
segundo, de avaliação, gestão e pós-avaliação dos riscos, é funcional ao ter- futuro dominado pela instabilidade climática.
250 ceiro, de planificação. À sustentação científica e técnica das medidas de ges- Analisemos sumariamente as potencialidades de POOCs e PGRIs face 251
tão do risco deve ser dedicada particular atenção quer, de uma banda, em aos riscos de subida do nível das águas e de tempestades que ameaçam o li-
razão da incerteza que ainda divide os cientistas sobre os possíveis e pro- toral português.
váveis impactos do aquecimento global no comportamento das correntes
oceânicas8, quer, de outra banda, em virtude dos custos, económicos, sociais
e mesmo ambientais que tais medidas podem acarretar. A prevenção tem
1.1) POOCs
que obedecer a uma lógica de integração (não transferir riscos de umas zo-
nas para outras) e de durabilidade (assegurar a eficiência das medidas, de um
Conforme pode ler-se no Preâmbulo do DL 159/2012, de 29 de Junho, os
POOCs são planos especiais de ordenamento do território, nos termos do
artigo 42º/3 do DL 380/99, de 22 de Setembro (com última alteração pelo
DL 2/2011, de 6 de Janeiro: Regime jurídico dos instrumentos de gestão
8) N
 este momento, um conjunto considerável de cientistas inclina-se para associar o aumen-
to de temperatura no Ártico (três vezes mais intenso do que a média global) e a alteração territorial = RJIGT), e do artigo 3º/1 do DL 159/201210. O DL 159/2012
da corrente de jacto (jet stream). Como se pode ler na Caixa explicativa da Visão (Clima :
isto é só o começo, na Visão de 20 de Fevereiro de 2014, p. 61 – por Luís Ribeiro), «como a
corrente de jato é causada pelo choque entre o ar frio do Ártico e o ar relativamente quen- 9) Para uma já longa história de instrumentos de gestão de riscos na orla costeira, Carla AMA-
te das latitudes médias, uma aproximação das duas temperaturas enfraquece os ventos da DO GOMES e Heloísa OLIVEIRA, E um dia a falésia veio abaixo… Risco de erosão da
tropopausa, que passam a desviar-se  das altas pressões em vez de atravessá-las, tornando o orla costeira, prevenção e responsabilização, in Revista do CEDOUA, in Revista do CE-
percurso muito mais sinuoso do que habitualmente e esticando-se para sul ». Mas estamos DOUA, nº 24, 2009, pp. 15 segs.
ainda longe de um consenso, como sublinha Filipe Duarte Santos, afirmando que « the
jury is still out there ». 10) Refira-se que o DL 159/2012 revoga o DL 309/93, de 2 de Setembro (alterado pelos DLs
Veja-se também o artigo Is Weird Winter Weather 218/94, de 20 de Agosto; 151/95, de 24 de Junho, e 113/97, de 10 de Maio) - primitivo
Related to Climate Change?, da autoria de Fred Pearce, disponível em regime dos POOCs - e procede à unificação dos regimes sancionatórios previstos nos DLs
http://e360.yale.edu/feature/is_weird_winter_weather_related_to_climate_change/2742/ 218/95, de 26 de Agosto, e 96/2010, de 30 de Julho.

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Os tempos estão a mudar: alterações climáticas,
ordenamento do território e protecção da orla costeira Carla Amado Gomes

traça o quadro de elaboração e implementação dos POOCs, estabelecendo sobre deveres de informação sobre os riscos associados às zonas costeiras, so-
também um regime sancionatório unitário aplicável às infracções pratica- bretudo a praias, cujos usos de lazer as tornam particularmente apetecíveis ao
das na orla costeira (a qual compreende uma zona terrestre de proteção e público, agravando o factor “exposição”. Mas os riscos podem ser tão elevados
uma zona marítima de proteção) - artigos 1º/1 e 2, 8º e 9º. A Lei da Água que impliquem interdição de uso, circulação, sobrevoo, podendo gerar proibi-
(Lei 58/2005, de 29 de Dezembro, alterada pelos DLs 245/2009, de 22 de ções quer de actividades de lazer, quer de actividades económicas (como con-
Setembro, e 60/2012, de 14 de Março) salienta identicamente a importân- cessões de praia ou actividades piscatórias). O agravamento ou aligeiramento
cia dos POOCs enquanto documentos que reflectem « opções estratégicas dos deveres de prevenção está intrinsecamente ligado a operações de monito-
para a proteção e integridade biofísica, a valorização dos recursos naturais e rização que permitam analisar dinamicamente a evolução dos factores de risco,
a conservação dos valores ambientais e paisagísticos, configurando tais ins- que hão-de ser avaliados zona a zona, POOC a POOC12.
trumentos como um elemento fundamental na proteção, preservação e ges- O quadro de medidas de prevenção e adaptação é pelo menos teoricamen-
tão dos recursos hídricos » (Preâmbulo do DL 159/2012). te e parcialmente adequado13 e serviu de directriz aos nove POOCs aprovados
O risco que os POOCs se destinam a gerir reside fundamentalmente na para o território continental e aos três aprovados para a Região Autónoma dos
« perigosidade resultante da ocorrência de fenómenos de erosão costeira, galga- Açores14. No entanto, na prática, o índice de concretização dos investimentos
mento, inundação, instabilidade das arribas e movimentos de massa de verten- que servem de sustentáculo às acções de prevenção e adaptação previstas é mui-
te quando associada a uma determinada tipologia e densidade de ocupação hu-
mana » (artigo 2º/k) do DL 159/2012)11. O grau de risco é apurado através de
uma equação que envolve três componentes (Anexo II, 2.): a) Vulnerabilidade 12) Com uma exemplificação visual deste tipo de operações, v. Celso PINTO, Monitorização
(susceptibilidade ao fenómeno); b) Exposição (pessoas e bens expostas ao fe- das zonas costeiras: exemplos e aplicação na gestão do risco em litoral de arriba e areno-
so, in Actas do Seminário Ambiente Urbano e Riscos, AML, Lisboa, 2013, pp. 196 segs.
252 nómeno); e c) Perigosidade [Severidade (intensidade do fenómeno) x proba- 253
bilidade (frequência do fenómeno)]. 13) Como se observou em texto anterior (Carla AMADO GOMES e Heloísa OLIVEIRA, E
um dia a falésia veio abaixo…, cit.), os POOCs, pela sua aplicação territorial circunscrita
O Capítulo III do DL 159/2012 tem por epígrafe “Mecanismos de pre- à orla costeira (e por isso abstraindo de causas de fragilização que podem encontrar-se no
venção associados ao risco”. Os artigos 14º a 17º incidem fundamentalmente interior), não abarcam a totalidade das medidas necessárias à prevenção do risco litoral.
14) L
 istando os POOCs desde o mais antigo ao mais recente :
> Cidadela – S. Julião da Barra (Resolução do Conselho de Ministros 123/98, de 19 de Outu-
11 ) Esta tipologia de riscos encontra-se desenvolvida no Anexo II: bro, com Declaração de Rectificação 22-H/98, de 30 de Novembro; alterado pela Resolução
“1. Para efeitos de avaliação e monitorização das situações de risco no litoral, consideram-se do Conselho de Ministros 82/2012, de 3 de Outubro);
as seguintes tipologias de risco associadas à evolução e dinâmica do litoral: > Sines – Burgau (Resolução do Conselho de Ministros 152/98, de 30 de Dezembro);
a) Erosão costeira, traduzida pelo recuo da linha costa (perda de área emersa do território), > Caminha – Espinho (Resolução do Conselho de Ministros 25/99, de 7 de Abril);
e que inclui: > Burgau – Vilamoura (Resolução do Conselho de Ministros 33/99, de 27 de Abril);
i) Amputamento e recuo dos sistemas dunares frontais; > Sado – Sines (Resolução do Conselho de Ministros 136/99, de 29 de Outubro; alterado pela
ii) Redução da largura e perda volumétrica da praia emersa - incluindo a dinâmica sazonal; Resolução do Conselho de Ministros 108/2007, de 17 de Agosto);
iii) Recuo linear e paralelo em arribas talhadas em materiais brandos; > Ovar – Marinha Grande (Resolução do Conselho de Ministros 142/2000, de 20 de Outubro;
b) Galgamento e inundação costeira; alterado pela Resolução do Conselho de Ministros 76/2005, de 21 de Março),
c) Movimentos de massa de vertente em arribas, e que inclui: > Alcobaça – Mafra (Resolução do Conselho de Ministros 11/2002, de 17 de Janeiro)
i) Queda de blocos; > Sintra- Sado (Resolução do Conselho de Ministros 86/2003, de 25 de Junho),
ii) Deslizamentos; > Vilamoura – Vila Real de Santo António (Resolução do Conselho de Ministros 103/2005, de
iii) Tombamentos; 27 de Junho); a Resolução do Conselho de Ministros 78/2009, de 2 de Setembro, aprovou o
d) Fenómenos de instabilidade em arribas, e que inclui: Plano de Ordenamento do Parque Natural da Ria Formosa e determinou a derrogação de
i) Fendas de tração paralelas a face talude; algumas normas do POOC Vilamoura – Vila Real de Santo António);
ii) Erosão diferencial; > Ilha Terceira (aprovado pelo Decreto Regulamentar Regional 1/2005/A, de 15 de Fevereiro);
iii) Inclinação negativa da arriba; > Ilha S. Miguel troço Feteiras – Fenais da Luz - Lomba de S. Pedro (aprovado pelo Decreto
iv) Blocos em consola em situação próxima do equilíbrio limite; Regulamentar Regional 6/2005/A, de 17 de Fevereiro);
v) Erosão marinha de sopé (sapas/subescavações de sopé); > Ilha de S. Jorge (aprovado pelo Decreto Regulamentar Regional 24/2005/A, de 26 de Ou-
vi) Fraturação pouco espaçada ». tubro).

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to baixo, como se pode comprovar pela análise dos vários quadros descritivos Em jeito de balanço, poderíamos dizer que o POOC, pela sua sustenta-
das acções compreendidas na Estratégia de Valorização do Litoral 2012/201515. ção técnico-científica, pela sua atenção a aspectos especificamente relacio-
A alegada falta de visão integrada foi outra das falhas da elaboração da primei- nados com a dinâmica da zona litoral (entrelaçadamente, no contexto dos
ra geração de POOCs, gerando transferência de riscos entre diferentes áreas - procedimentos de revisão, com o Plano de Acção de Protecção e Valorização
esta uma das razões que justifica, por exemplo, a fusão dos POOCs Sintra-Sado, do Litoral 2012-2015), pela sua vocação de durabilidade, tem inegável po-
Sado-Sines e Sines-Burgau num único e novo POOC: Espichel-Odeceixe16. tencial enquanto metodologia de gestão do risco. A esta aptidão de partida
Uma outra crítica, movida por Fernando VELOSO17, aponta a necessidade de acresce, desde 2007 e sempre que aplicável20, o cruzamento com a avaliação
introduzir nos POOCs instrumentos mais flexíveis, que permitam fazer face, de ambiental estratégica, através da prognose ínsita no Relatório Ambiental
forma célere, ao agravamento das condições climáticas e à ocorrência de eventos em que esta assenta. O que se verifica na realidade é, contudo, desencorajan-
climáticos extremos (como as tempestades Hercules e Stephanie, que assolaram te, um tanto pelo insuficiente nível de concretização, outro tanto em razão
a costa portuguesa), tais como a delimitação de zonas adjacentes, a identifica- da dificuldade de acertar com as medidas mais idóneas num quadro de cres-
ção de zonas naturais “tampão”, ou a implementação de uma rede eficaz de pré cente incerteza científica sobre a evolução dos fenómenos atmosféricos, ma-
-alertas, planos de evacuação e de contingência18. xime tempestades marítimas21 - registando-se uma tendência topicamente
A Quercus, por seu turno, aponta a falta de entrosamento da política de ges- reactiva e falha de visão integrada, no espaço e no tempo22.
tão da orla costeira com a Estratégia de adaptação às alterações climáticas, lamen-
tando a ausência de uma visão sustentada do uso e ocupação do litoral em prol de
uma postura demasiado imediatista e serva dos interesses de lazer e de negócio,
1.2) PGRIs
e pouco virada para o incremento da resiliência da zona costeira - a que acresce
254 a sobrecarga de obras de infraestruturas como grandes barragens, cuja existência 255
O « último grito » em sede de gestão do risco de inundações são os planos de
reduz a descarga de sedimentos na foz dos rios. A Quercus critica, sobretudo, a
gestão do risco de inundação. Os PGRIs constituem, como se observou, resul-
inexistência de cartas de risco do litoral, que impedem uma estratégia evolutiva
tado da transposição de uma directiva da União Europeia. Com efeito, a estrei-
e eficiente do combate à crescente força do mar, sublinhando a inoperância de
ta ligação entre aquecimento global e intensificação, da cadência e da magnitu-
acções puramente reactivas e pontuais, como “a alimentação artificial de praias e
de, de eventos climáticos extremos, levou a União Europeia a reflectir sobre a
dunas ou a instalação de esporões e quebra-mares, soluções com efeitos de curto
necessidade de criar instrumentos que permitam salvaguardar interesses vitais
prazo (2 a 5 anos) e com custos elevados a longo prazo (entre 200 a 500 euros
dos cidadãos, bem como interesses colectivos como o ambiente, o património
anuais por metro quadrado, envolvendo a instalação e a manutenção)”19.
cultural, a boa gestão urbanística. Saliente-se, por decisivo, que o Tratado de
Lisboa veio incorporar no Tratado sobre o funcionamento da União Europeia
15) Veja-se o ponto 8 (pp. 33 segs) da Estratégia: 8.1. Defesa costeira e zonas de risco; 8.2. Es- um título dedicado a uma nova política de coordenação de esforços em sede
tudos, gestão e monitorização; 8.3. Planos de intervenção e projectos de requalificação; 8.4. de protecção civil perante a ocorrência de catástrofes naturais (Título XXIII)23.
Acções Polis.
16) Determinada pelo Despacho da Secretária de Estado do Ordenamento do Território e das cados/2014/janeiro/3269-zona-costeira-necessita-de-intervencoes-urgentes-para-resultados-
Cidades nº 7734/2011, de 20 de Maio (in DR, II, de 23 de Maio de 2011, pp. 20359-20360). a-longo-prazo-quercus-nao-quer-300-milhoes-euros-deitados-ao-mar
17) Fernando VELOSO, A gestão da zona costeira portuguesa, in Revista da Gestão Costeira 20) Carla AMADO GOMES, Introdução ao Direito do Ambiente, 2ª ed., Lisboa, 2014,
Integrada, 2007/2, pp. 83 segs. pp. 170-172.
18) Q uanto a planos de emergência, rege a Lei 27/2006, de 3 de Julho (Lei de Bases da Pro- 21) Cfr. supra, nota 8.
tecção Civil), onde se prevê a existência de planos de prevenção e de emergência, de âmbito
nacional, regional, distrital e municipal (cfr. o artigo 50º). 22) Já assim se concluía em Carla AMADO GOMES e Heloísa OLIVEIRA, E um dia a
falésia veio abaixo…, cit.
19) Zona costeira necessita de intervenções urgentes para resultados a longo prazo: Quercus
não quer 300 milhões euros deitados ao mar - disponível em http://www.quercus.pt/comuni- 23) Sobre esta nova política europeia, veja-se Francisco PAES MARQUES, A prevenção e

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Terá sido esta a alavanca para a União começar a ponderar a definição de um prejudiciais das inundações para a saúde humana, o ambiente, o património
quadro normativo geral de prevenção de catástrofes naturais. cultural e as actividades económicas, e, se forem consideradas adequadas, em
Com efeito, na Communication from the Commission to the European iniciativas não estruturais e/ou na redução da probabilidade de inundações”25.
Parliament, the Council, the European Economic and Social Committee and the O diploma nacional de transposição - DL 115/2010, de 2 de Abril -
Committee of the regions24, a Comissão lançou as bases de uma abordagem dá corpo à figura dos PGRIs, planos sectoriais que “abrangem os aspectos
europeia à problemática da prevenção de desastres naturais e humanos (“na- da gestão dos riscos de cheia e inundações provocadas pelo mar, centrando-
tural and man-made disasters”). Nesta Comunicação - e na sequência das se na prevenção, protecção e preparação, incluindo sistemas de previsão e de
directrizes da Estratégia de Hyogo (2005/2015) - enfatiza-se o imperati- alerta precoce, tendo em conta as características de cada bacia ou sub-bacia
vo de elaborar cartas de risco para definir um zoneamento de áreas de ris- hidrográfica” (artigo 9º/4).
co natural no território da União, bem como a conveniência de desenvol- Deve assinalar-se que, em Portugal, a preocupação com a prevenção do ris-
ver estudos científicos no campo das alterações climáticas e dos sistemas de co de cheias já vem desde 1971, data em que o DL 468/71, de 5 de Novembro,
alerta precoce, e de os tornar acessíveis às entidades com responsabilida- criou a figura das zonas adjacentes (de terrenos ameaçados pelo mar ou pe-
des na área da prevenção e aos peritos da matéria de gestão de riscos natu- las cheias), integrando-as no domínio público hídrico e sujeitando os terre-
rais. O Conselho Europeu de Ministros da Justiça e Assuntos internos, re- nos em causa a restrições de utilidade pública. O regime da Reserva Ecológica
unido em Bruxelas em Novembro de 2009, retomou a questão. As Council Nacional, uma década mais tarde, veio perseguir intuito similar, consideran-
Conclusions on a Community framework on disaster prevention within the EU do as zonas ameaçadas pelas cheias como áreas de risco. Acresce que o DL
2979th Justice and Home Affairs Council meeting enfatizam a lógica dual em 364/98, de 21 de Novembro, incumbiu os municípios mais castigados por
que deve assentar a prevenção de catástrofes no plano europeu: responsa- cheias (desde 1967) cujo território se não encontrasse abrangido por zonas
256 bilidade nacional e solidariedade da União (cf. o ponto 16 das Conclusões). adjacentes, de elaborar cartas de zonas inundáveis que deveriam ficar sujei- 257
Estas Conclusões incluem um conjunto de convites aos Estados, dos quais tas a restrições de edificação. Deve também dar-se nota da Estratégia Nacional
destacamos um, no sentido de, até final do ano de 2011, desenvolverem, ao ní- de Conservação da Natureza e da Biodiversidade, aprovada pela Resolução do
vel nacional, procedimentos de análises de risco que incluam projecções in- Conselho de Ministros 152/2001, de 11 de Outubro, cujo ponto 26, exclu-
corporando o cenário de alterações climáticas nos seus territórios e de comu- sivamente dedicado à política para o litoral e para os ecossistemas marinhos,
nicarem os resultados à Comissão. No mais, exortam à comunicação de riscos refere como um dos objectivos a consideração da elaboração de uma Carta de
à população, à partilha de informação, à criação de estruturas coordenadas de risco do litoral. Por fim, a Lei da Água (Lei 58/2005, de 29 de Dezembro) im-
prevenção de riscos, ao tratamento de dados estatísticos de eventos naturais pôs a obrigação de demarcação das zonas inundáveis nos instrumentos de pla-
extremos, bem assim como dos seus efeitos sociais, económicos e ambientais. neamento dos recursos hídricos e de gestão territorial, devendo estas zonas ser
A directiva 2007/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de classificadas nos termos da Lei da Titularidade dos Recursos Hídricos (Lei
Outubro, sobre avaliação e gestão do risco de inundações, foi o mais concreto 54/2005, de 15 de Novembro) e sujeitar-se às restrições previstas nesta lei.
resultado, até agora, da percepção da urgência de identificação de causas e es- Assim, a legislação de 2010 veio fundamentalmente integrar a figura do
tabelecimento de medidas de prevenção adequadas. A directiva distingue entre PGRIs no quadro da gestão das bacias hidrográficas, visando congregar es-
avaliação de risco - traduzida na elaboração de cartas de zonas inundáveis e de forços no sentido de uma compatibilização e concertação de objectivos dos
cartas de inundações (artigo 6) -, e gestão do risco de inundações - baseada nos instrumentos já existentes (cfr. o artigo 12º do DL 115/2010, sobre articu-
objectivos definidos no nº 2 do artigo 7: “redução das potenciais consequências lação de instrumentos) e, sobretudo, da sujeição dos procedimentos de revi-
são dos planos de gestão das bacias hidrográficas aos critérios do novo di-
gestão de catástrofes no Direito da União Europeia, in Direito(s) das catástrofes naturais,
coord. de Carla Amado Gomes, Coimbra 2012, pp. 141 segs.
25 ) Mais desenvolvidamente sobre esta directiva, Carla AMADO GOMES, Catástrofes natu-
24) Rectificação 7075/1/09 REV 1 - anula e substitui a Comunicação COM (2009) 82 final, rais e acidentes industriais graves na União Europeia: a prevenção à prova nas directivas
de 23 de Fevereiro de 2009. Seveso, in O Direito, 2011/III, pp. 459 segs.

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ploma. Trata-se de um procedimento trifásico que envolve a elaboração, pela metodologia de avaliação do risco que lhes está subjacente a qual, por um lado,
Agência Portuguesa do Ambiente (APA, I.P.), através de serviços desconcen- se destaca da mera análise estatística a partir de registos históricos - abrindo
trados,26 e com o apoio da novel Comissão Nacional da Gestão dos Riscos de margem de ponderação a possibilidades de ocorrência e não só a probabilida-
Inundações, de cartas de zonas inundáveis para áreas de risco (artigo 7º do DL des27 - e, por outro lado, introduz uma ponderação conjunta de factores am-
115/2010), de cartas de riscos de inundações (artigo 8º do DL 115/2010), e bientais, sociais e económicos, assumindo claramente a lógica do custo-bene-
de PGRIs (artigo 9º do DL 115/2010), sempre precedida de uma avaliação fício nas operações de gestão do risco. Acresce a vocação tridimensional dos
preliminar (a cargo da APA: artigo 5º do DL 115/2010). Ou seja, numa pri- PGRIs, concordante com os princípios da Estratégia de Hyogo, de « preven-
meira fase, de avaliação preliminar, sinalizam-se as áreas atreitas a inundações ção, protecção e preparação », estreitamente associada à criação de um Sistema
“com base em informações disponíveis, incluindo registos e estudos, acessíveis de Vigilância e Alerta de Recursos Hídricos, que constitui um sistema de
e fiáveis, sobre a evolução a longo prazo, nomeadamente do impacto das alte- previsão e alerta de inundações (cfr. os artigos 9º/4 e 11º/3 do DL 115/2010).
rações climáticas na ocorrência de inundações” (artigo 5º/2 do DL 115/2010); Deve apontar-se, todavia, quatro aspectos menos positivos neste qua-
numa segunda fase, esse levantamento vai ser vertido para as cartas de zonas dro normativo:
inundáveis (onde se descreve os cenários possíveis em termos de intensida- i) que a APA poderá prescindir da avaliação preliminar e da elaboração das
de dos fenómenos “recorrendo a informação hidrometeorológica, nomeada- cartas previstas no diploma para a elaboração dos planos de gestão de risco de
mente precipitações, caudais e marcas de cheia, associados a fenómenos extre- inundações, desde que a informação levantada ao abrigo da legislação ante-
mos, ou outros tipos de registo de eventos históricos extremos” - artigo 7º/3), rior forneça “um nível de informação equivalente aos requisitos estabelecidos”
e para as cartas de risco de inundações, nas quais se complementa a descrição no novo regime (artigo 17º do DL 115/2010) - aproveitamento que se com-
dos cenários possíveis com a previsão de potenciais consequências (artigo 8º preende no plano da economia de meios, e que a directiva 60/2007/CE auto-
258 do DL 115/2010); e, numa terceira fase, a sinalização de causas e consequên- riza, mas que pode reduzir a eficácia do planeamento ; 259
cias vai ficar plasmada no PGRI para cada região hidrográfica, no qual releva- ii) que a ponderação dos efeitos das alterações climáticas na avaliação pre-
rão especialmente os aspectos relacionados com: “a) Os custos e benefícios; b) liminar é meramente facultativa, só se tornando obrigatória nas reavaliações -
A extensão das inundações; c) As vias de evacuação das águas e as zonas com o que nos parece uma visão pouco ambiciosa, face à emergência climática que
potencialidades de retenção de águas das cheias, como as planícies aluviona- vivemos (cfr. o artigo 5º/4 do DL 115/2010) ;
res naturais; d) Os objectivos ambientais estabelecidos no artigo 45º da Lei da iii) que o diploma autolimita os resultados das acções de prevenção do risco
Água; e) A gestão dos solos e das águas; f) O ordenamento do território; g) A de inundações quando, no Anexo, Parte A, I-5, estabelece que as medidas pre-
afectação dos solos; h) A conservação da natureza; i) A navegação e as infra-es- ventivas deverão ser, « preferencialmente, medidas não estruturais, ou seja, me-
truturas portuárias” (artigo 9º/3 do DL 115/2010). didas que não impliquem a construção de diques ou outras obras de contenção
Uma visão desapiedada tenderá a considerar que estes PGRIs constituem que obrigam a custos de manutenção elevados » - perspectiva que nos parece
mais um tipo de planos para entreter técnicos, acrescendo a vários outros « si- redutora e mesmo desnecessária em face do critério da ponderação « custo-be-
nalizadores » do risco de inundações pré-existentes. Uma abordagem menos nefício » ínsito no artigo 9º/3/a) do DL 115/2010 ;
céptica poderá encontrar alguma mais valia nos PGRIs, nomeadamente na iv) que a avaliação preliminar deveria estar concluída até 22 de Dezembro
de 2011 (artigo 15º/1 do DL 115/2010), cenário que se não verificou - subli-
nhe-se que o prazo fixado no artigo 7/5 da directiva 60/2007/CE para entrada
26) O diploma refere as Administrações de Região Hidrográfica como entidades competentes; em vigor destes planos é Dezembro de 2015. Na verdade, tal avaliação prelimi-
porém, por força da alteração introduzida pelo DL 130/2012, de 22 de Junho, estes organis-
mos desapareceram, sendo as suas competências assimiladas pela APA (cfr. o artigo 7º/1 da
Lei 58/2005, na redacção dada pelo DL 130/2012, além do artigo 2º/3 do DL 56/2012, de
12 de Março, que aprova a orgânica da APA, no qual se pode ler que “Para a prossecução das 27) Cfr. o artigo 5º/4/e), que aponta para, na avaliação preliminar a longo prazo, se considerar o
atribuições da APA, I. P., enquanto autoridade nacional da água, funcionam, a nível regional, impacto das alterações climáticas, com toda a incerteza que tal prognose envolve, bem assim
serviços desconcentrados, cuja circunscrição territorial é definida nos estatutos da APA, I. como o artigo 7º/1/a), onde se admite a ponderação de um cenário de « baixa probabilidade
P., sendo dirigidos por administradores regionais cargos de direcção intermédia de 1.º grau”. de ocorrência » ou de eventos extremos.

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nar só terá ficado concluída em Março de 2013, o que atrasou todo o restante Não espanta, por isso, que a Corte de Estrasburgo tenha já condenado
procedimento, bem assim como as datas das reavaliações a que alude o artigo Estados (mais concretamente, o Estado russo) por défice de medidas de mi-
16º do diploma, as quais deverão ter em conta as interferências das alterações tigação de efeitos de eventos climáticos, nos casos Boudaïeva e outros vs Rússia
climáticas no risco de inundações tanto na costa como em leitos fluviais - ou (2008)29, e Kolyadenko e outros vs Russia (2012). No primeiro, a Corte afirmou a
seja, o mapeamento do risco de inundações no território português com base necessidade de observância de deveres de prevenção do risco natural (no caso,
numa metodologia de prognose adequada à aleatoriedade das alterações cli- relativamente à população de uma localidade situada no sopé de uma encos-
máticas ainda não existe… ta sazonalmente exposta a enxurradas), tendo condenado o Estado russo por
omissão grave de condutas materiais de minimização do risco e por grave défice

H Conclusão: Prevenção e
responsabilização em tempos de inclemência
de cumprimento de deveres de informação à população. No segundo, a Corte
Europeia dos Direitos do Homem condenou o Estado russo por défice de me-
didas de prevenção de inundações provocadas por sobredescarga de um reser-
climática: um mar de incertezas vatório que deveria ter sido descarregado periodicamente em anos anteriores.
Em Portugal, os auxílios emergenciais a populações castigadas por even-
A prevenção de eventos climáticos extremos coloca problemas agudos do pon- tos extremos (mini-tornados ; cheias ; incêndios) têm aplacado exigências mais
to de vista da responsabilidade dos poderes públicos relativamente à previsão frequentes de cumprimento de deveres de prevenção de riscos naturais30. Há,
da sua ocorrência e à mitigação dos seus efeitos. Com a criação de modelos no entanto, uma decisão que consideramos curiosa, que se prende com desliza-
de previsão do clima, o que tradicionalmente se considerava “actos de Deus”, mento de rochas numa estrada em ravina da ilha da Madeira, na qual, apesar de
eventos irresistíveis e imprevisíveis - que no Direito da responsabilidade se o Governo regional ter feito prova da sinalização do risco de queda de pedras da
260 enquadram na causa excludente da força maior - entra progressivamente para encosta que ladeia a estrada, bem como do cumprimento de acções de fiscaliza- 261
um campo de previsibilidade tendencial, mesmo que a causalidade humana, ção para controlo do estado da encosta, o Tribunal Administrativo Central Sul
pelo menos directa, não se verifique. Assim, é verdade que o clima está cada confirmou a efectivação de responsabilidade por facto ilícito deduzida por um
vez mais imprevisível, mas é também certo que a consciência dessa imprevisi- particular cujo veículo sofreu danos em virtude da queda de uma pedra sobre o
bilidade gera deveres de prevenção antecipados, não puramente reactivos mas vidro dianteiro da viatura. A condenação deu-se com base no instituto da culpa
proactivos, redutores da vulnerabilidade e geradores de resiliência28. in vigilando (hoje, objecto de expresso acolhimento no artigo 10º/3 do regime
Ou seja, quanto mais consciência se tem dos efeitos potencialmente lesivos aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de Dezembro), mas o grau de prova do cum-
dos eventos climáticos, maior responsabilidade se tem na sua minimização, e a primento dos deveres de diligência foi de tal forma elevado que a decisão mais
falta de certeza não deve impedir a adopção de medidas de prevenção relativas
aos riscos antecipáveis e mitigáveis por recurso às melhores técnicas disponíveis,
ponderando os custos sociais e financeiros previsíveis. É importante frisar que
as medidas de mitigação não se reconduzem a acções, jurídicas e materiais de 29) Por nós analisado em Carla AMADO GOMES, A gestão do risco de catástrofe natural…,
redução do risco - v.g., proibição de edificação em zonas de rebentação; cons- cit., pp. 65-67.
trução de diques de contenção de rios ou ondas - mas também a difusão tem- 30) Vejam-se, a título de exemplo e com regimes muito diversificados: o DL 20/96, de 19 de
pestiva, clara e completa de informação sobre os comportamentos a evitar ou a Março (regula o Sistema Integrado de Protecção contra as Aleatoriedades Climáticas); o
adoptar pela população em caso de eclosão do risco para salvaguarda de vida e DL 339/97, de 4 de Dezembro (fundo especial de emergência destinado ao apoio, a fundo
perdido, à rápida normalização das condições de vida das populações afectadas dos distritos
património - v.g., simulacros, sinais de perigo, sistemas de alerta precoce. de Beja, Évora e Faro, pelos temporais de Outubro e Novembro de 1997); o DL 112/2008,
de 1 de Julho (conta de emergência titulada pela Autoridade Nacional de Protecção Civil
para fazer frente a situações de catástrofe ou calamidade); o DL 225/2009, de 14 de Setem-
28) Cfr. o Global Assessment Report on Disaster Risk Reduction 2011 - Reveal- bro (cria o Fundo de Emergência Municipal) ; ou a Resolução do Conselho de Ministros
ing Risk, Redefining Development, 1.4. Climate change adaptation - disponível em 2/2010, de 13 de Janeiro (fundo especial de emergência destinado a apoio das populações
http://www.preventionweb.net/english/hyogo/gar/2011/en/home/intro_1.4.html dos distritos de Leiria, Lisboa e Santarém, por temporais ocorridos em Dezembro de 2009).

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Os tempos estão a mudar: alterações climáticas,
ordenamento do território e protecção da orla costeira Carla Amado Gomes

parece ter-se fundado numa lógica de responsabilidade objectiva31. rem danos causalmente filiáveis na solução adoptada, a via de imputação mais
Os particularismos dos casos de responsabilidade, em geral, e os contornos adequada será a da compensação por facto lícito, uma vez que, não havendo
deste caso (desde logo por se reportar a um território insular com especiais ca- défice de ponderação de circunstâncias relevantes (uma vez que as teorias que
racterísticas), em especial, não permitem fazer extrapolações para a nossa temá- suportavam as várias opções técnicas possíveis eram identicamente credíveis),
tica - nem as recomendam, de resto. Transformar toda a actividade de vigilân- afastamo-nos no domínio da responsabilidade por facto ilícito - e, como ob-
cia de coisas e actividades perigosas em domínio de responsabilidade pública servámos supra, não nos parece que estejamos no contexto da responsabilidade
objectiva é um caminho indesejável, juridicamente - porque banaliza o insti- in vigilando. A compensação por facto lícito está, como se sabe, limitada pelos
tuto -, financeiramente - porque transforma as entidades públicas em segura- pressupostos do artigo 16º da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro - o que torna
doras universais - e mesmo politicamente falando - porque, ao absolutizar um esta via bastante aleatória.
direito à segurança, pressupõe uma postura altamente paternalista do Estado. A resposta dos poderes públicos envolve, na realidade, problemas bem mais
Hipótese de contornos diversos é aquela que deu aso à condenação do agudos em cenários de morfologia do território altamente mutante, que di-
Estado por facto ilícito, na sequência de danos provocados a uma habitação, ficilmente serão enquadráveis nos parâmetros da responsabilidade civil. É
licitamente construída na faixa litoral, em virtude da construção de um espo- verdade, por um lado, que o TJUE já se pronunciou no sentido de sobre o
rão de contenção do mar que agudizou a erosão costeira e deixou desprotegi- Estado-membro recair uma verdadeira obrigação de aprovação de plano (de
da a habitação. Os autores terão logrado fazer a prova da causalidade inequí- emergência; de redução de emissões poluentes) sempre que a sua omissão pro-
voca entre o facto - erosão aguda - e o dano - desprotecção da casa através vocar um risco iminente para a saúde das pessoas34; todavia, a discricionarieda-
da junção de um parecer técnico, subscrito por dois professores universitá- de de planeamento de que gozam os poderes públicos - palpável na bastante
rios, que alertava, aquando da construção do esporão, para o risco, elevado, de flexível solução de declaração de ilegalidade por omissão de norma, prevista
262 desgaste súbito da costa por força daquela estrutura32. Outros exemplos, mais no artigo 77º do CPTA - deixa dúvidas quanto à operacionalidade desta via. 263
problemáticos, colocar-se-ão em cenários de incerteza, no quadro dos quais Por outro lado, a « normalização » da instabilidade climática e dos fenómenos
a Administração optou por uma solução que apresentava riscos mas também extremos que acarreta pode gerar, da parte dos tribunais, decisões de reparti-
vantagens, escolhida entre várias tecnicamente possíveis e identicamente váli- ção do risco entre entidades públicas e particulares - recorde-se a decisão do
das, com base em diferente posicionamento científico33. Cremos que, a resulta- Conselho de Estado francês, de 2 de Outubro de 2002, sobre responsabilida-
de do Estado por emissão de licença de construção em zona ainda sem plano
de cheias e danos no imóvel edificado na sequência de inundações, na qual o
31) Acórdão do TCA-Sul, de 7 de Abril de 2011, proc. 02749/07. Em termos idênticos, cfr. o Tribunal considerou terem os titulares da licença contribuído para os danos,
Acórdão do STA, I, de 22 de Junho de 2010 (proc. 0279/10), onde se admitiu haver res- por haver consciência de que a zona era, de há muito, vulnerável a alagamentos
ponsabilidade por culpa in vigilando da EP - Estradas de Portugal S.A. pela queda de um
pinheiro na faixa de rodagem e destruição de um veículo, por a empresa não ter demonstrado em determinadas alturas do ano e em certos contextos atmosféricos35.
que agira com a diligência devida na detecção da fragilidade da árvore, e isto apesar de esta
ter tombado na sequência de uma forte intempérie.
Ao contrário, em Acórdão de 11 de Março de 2010 (proc. 070/10), o mesmo STA eximiu 34) Cfr. o acórdão do TJUE de 25 de Julho de 2008 (proc. C-237/07) - no qual o TJUE afir-
de responsabilidade in vigilando um município que, apesar de não ter conseguido fazer pro- mou que, nos termos da directiva 96/62/CE do Conselho, de 27 de Setembro, relativa à
va nos autos de ter agido com a diligência exigível num caso de fiscalização do estado de avaliação e gestão da qualidade do ar ambiente, o Estado-membro tem o dever de elaborar
algumas árvores da via pública, viu acolhida a tese da causalidade alternativa, por ter ficado planos de redução de emissões em zonas em que estas ultrapassem os valores-limite e que
provado que a árvore centenária que caiu sobre uma mulher e a deixou severamente inca- o cidadão residente tem o direito de exigir da Administração a aprovação e implementação
pacitada teria tombado de qualquer modo, dadas as condições atmosféricas anormalmente destes planos, valendo-se do efeito directo vertical dessas normas -, e o Acórdão de 15 de
adversas que se fizeram sentir na noite da véspera da queda - ver também, na mesma linha, Setembro de 2011 (proc. C-53/10) - onde a Corte do Luxemburgo vincou a obrigato-
o Acórdão do STA, de 9 de Julho de 2009 (proc. 01103/08). riedade de ponderação de aspectos de risco no exercício da competência de licenciamento
urbanístico, mesmo na ausência de diploma nacional de transposição da directiva Seveso II,
32) Sentença do TAF do Porto, de 24 de Novembro de 2008, proc. 194/96. e o direito dos particulares a exigir da Administração tal ponderação).
33) Várias situações reais foram apresentadas na reportagem Alerta vermelho, da autoria de José 35) Cfr. a anotação ao aresto de Clotilde DEFFIGIER, La responsabilité du fait de la déli-
Manuel Levy, visionada na RTP1, no dia 9 de Março de 2014. vrance du permis de construire en zone inondable, in AJDA, 2003/3, pp.143-147.

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Os tempos estão a mudar: alterações climáticas,
ordenamento do território e protecção da orla costeira Carla Amado Gomes

Acrescem à dificuldade de enquadrar situações de alegada omissão de às concessões, imperativo se revelará aferir o tempo de duração da concessão e
medidas de prevenção contra fenómenos climáticos extremos através do ponderar do índice da sua rentabilização para efeito de cálculo da compensa-
instituto da responsabilidade civil, de uma banda, a incerteza que rodeia ção financeira a atribuir ao concessionário40.
as circunstâncias de facto e a sua dinâmica - que torna complexa a tare- Qualquer uma destas vias envolve financiamento avultado - além de uma
fa de caracterização da ilicitude para efeitos de responsabilização por fac- cuidadosa gestão das sensibilidades sociais. A União Europeia, na Comunicação
to ilícito (cfr. o artigo 7º do regime aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social
Dezembro); e, de outra banda, a massificação dos danos, que agudiza a tarefa europeu e ao Comité das Regiões sobre a Estratégia da UE para a adaptação às al-
de qualificação dos prejuízos como « especiais e anormais », para os efeitos terações climáticas41, recomenda a disponibilização dos Fundos do Programa
de compensação por facto lícito nos termos do artigo 16º do regime apro- LIFE42 para apoiar as medidas de adaptação às alterações climáticas no perío-
vado pela Lei 67/2007, de 31 de Dezembro36. do 2013/2020 (cfr. o ponto 4.1., Acção 2)43. O documento frisa mesmo que
De todo o modo, cremos que a magnitude da tarefa de prevenção de da- “Um acesso melhorado ao financiamento será um fator básico para a cons-
nos às pessoas e património na faixa litoral em face da inclemência climática trução de uma Europa climaticamente resiliente”, que se traduz desde logo
crescente leva a conceber um de dois cenários - se não mesmo um só (o se-
gundo) no médio prazo: a) A construção de grandes diques de contenção em
Acórdão do TCA-Sul, de 7 de Abril de 2011, proc. 02749/07, no qual o Tribunal recusou pro-
certas zonas da costa, com todo o impacto visual e eventualmente ambiental cedência a um recurso no qual os recorrentes pretendiam ser indemnizados pelo Estado em ra-
que acarreta37; ou b) A deslocalização dos residentes nas zonas de maior ris- zão da paralisação de uma obra em área urbana em faixa de risco litoral por ordem da CCDR,
co38, bem como o resgate de concessões de exploração de bares e restaurantes caracterizando a ilicitude da actividade edificatória porque filiada em uma licença nula.
em praias sugadas pelo mar. 40) Esta segunda situação levanta questões complexas, na medida em que a resolução do con-
Deve sublinhar-se que, neste segundo cenário, haverá factores de pondera- trato deve-se não a imperativos subjectivos de interesse público, mas a alteração das cir-
264 265
cunstâncias fácticas que constituem base do negócio - sendo certo que relativamente a
ção a ter em conta, como o título de ocupação, o tempo de ocupação, a tolerân- concessões mais recentes, será difícil falar em imprevisibilidade das circunstâncias geradoras
cia ou intolerância das autoridades para com as situações - ou seja, cumprirá da alteração… Ou seja, no plano do Código dos Contratos Públicos, a resolução pela pri-
distinguir-se entre residentes com título válido ou clandestinos, qualificação meira via tem a solução indemnizatória prevista no artigo 334º; já a resolução pela segunda
via, parece deixar o concessionário totalmente desprotegido, nos termos do artigo 335º/1
que fará variar a resposta indemnizatória/compensatória39, bem como, quanto (embora em caso de modificação, o artigo 314º/2 do mesmo Código aceite a atribuição de
“uma compensação financeira segundo critérios de equidade”).

36) Sobre este regime, veja-se Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo 41) COM (2013) 216 final, de 16 de Abril de 2013.
sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in Estudos em homenagem ao Prof. 42) O programa LIFE para o período 2014-2020 foi adoptado pelo Regulamento (UE)
Doutor Jorge Miranda, IV, Lisboa, 2012, pp. 151 segs. 1293/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Dezembro (sobre o estabeleci-
37) Reportando-se à situação no Reino Unido, Mark STALLWORTHY (Sustainability, coas- mento de um programa de acção para o ambiente e para o clima, revogando o regulamento
tal erosion and climate change: an environmental justice analysis, in JEL, 2006/3, pp. 357 (CE) 614/2007. Este regulamento disponibiliza um orçamento para o período 2014-2020,
segs, 359 segs) assinala os custos, financeiros e ambientais das grandes estruturas de defesa, de 3.4 biliões de euros (cfr., em especial, os artigos 15 e 16) — disponível em http://ec.euro-
contrapondo-os aos custos sociais do deslocamento de poopulações. pa.eu/environment/life/funding/lifeplus.htm

38) Sendo certo que podemos estar desde logo a pensar em edificações situadas em área 43) “Ação 2: Disponibilizar fundos do LIFE em apoio à criação de capacidades e intensificar
anteriormente integrante de domínio privado e que, por força do avanço do mar (e do as medidas de adaptação na Europa (2013-2020):
concomitante recuo da linha de preia mar), passou a integrar domínio público marí- A Comissão promoverá a adaptação, em especial nos seguintes domínios vulneráveis:
timo - reclamando compensação por facto lícito ao proprietário a expropriar. Para uma - gestão transfronteiriça de cheias, promovendo acordos de colaboração com base na Dire-
análise de uma situação deste tipo, veja-se o Parecer do Conselho Consultivo da PGR tiva Inundações;
P000102006 (nº convencional PGRP00002742), de 17 de Janeiro de 2008 - disponível em - gestão transfronteiriça do litoral, com ênfase nos deltas densamente povoados e nas cida-
http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/0/90edf6fa5047cc51802570ff00603e19?OpenDocument. des costeiras (…);
A Comissão apoiará o estabelecimento de avaliações da vulnerabilidade e de estratégias de
39) Veja-se, por exemplo, o Acórdão do STA, de 18 de Março de 2003 (proc. 01219/02), no qual adaptação, incluindo as de natureza transfronteiriça.
se apreciou a legalidade da demolição de uma casa clandestina em zona protegida, negando A Comissão promoverá a sensibilização para a adaptação, incluindo indicadores e comuni-
o direito do dono a ser indemnizado em razão da situação ilícita em que se encontrava ; ou o cação e gestão de riscos”.

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Os tempos estão a mudar: alterações climáticas,
ordenamento do território e protecção da orla costeira

num aumento de 20% da despesa relacionada com o clima no Quadro de


Financiamento plurianual 2014/2020 (ponto 5.2.).
Estes fundos serão decisivos para apoiar medidas de prevenção sustentada
dos riscos de erosão e inundação na orla costeira portuguesa. Neste momento,
em Portugal, estão a ser implementadas medidas de emergência, de eficácia e
oportunidade altamente duvidosa (porquê invocar a preparação da época bal-
near em Fevereiro/Março como justificativo de injecção de areias nas praias,
mais a mais quando a época de tempestades parece ainda não estar fechada?),
financiadas pelo Programa Operacional “Valorização do Território”, progra-
ma ao abrigo do objectivo de convergência, financiado pelo Fundo Europeu de
Desenvolvimento Regional (FEDER) e pelo Fundo de Coesão. Sublinhe-se
que um dos objectivos estratégicos deste programa é a prevenção, gestão e mo-
nitorização dos riscos naturais e tecnológicos, aí residindo o seu terceiro eixo
prioritário ao qual estão afectos cerca de 11,5% do financiamento total44.
O financiamento da União Europeia será certamente decisivo para a boa
implementação de medidas de adaptação às alterações climáticas no plano cos-
teiro. O recurso a um fundo de assistência foi, de resto, a fórmula encontrada
no contexto de Quioto, com a criação do Green Climate Fund (aprovado em
266 Copenhaga, na COP de 2009, e efectivamente criado na COP de 2010, rea-
lizada em Cancun) para apoiar acções de adaptação e mitigação em Estados
menos desenvolvidos - sendo certo que este Fundo (que implica uma recolha
de 100 biliões de dólares por ano até 2020, de duvidosa proveniência) assen-
ta no princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas (cfr. o princí-
pio 7 da Declaração do Rio de Janeiro), numa dimensão mais política do que
a da solidariedade europeia. No entanto, o sucesso da actuação dos Estados-
membros passa por utilizar os recursos financeiros de forma sustentável e in-
tegrada, com base na melhor informação científica disponível e por recurso às
melhores técnicas, numa lógica custo imediato + benefício de longa duração -
o que, em tempos de incerteza climática, se reconhece tarefa árdua.

Faro, Março de 2014

44) Conforme pode ler-se no documento referenciado, « O objectivo específico é o aumento
da capacidade do sistema nacional de protecção civil a fim de cobrir todo o território e o
desenvolvimento de um sistema nacional de prevenção, gestão e monitorização de riscos
naturais e tecnológicos. Para este fim, serão construídos dois sistemas, o sistema nacional
de gestão de emergência e o sistema de prevenção dos riscos, e realizadas intervenções de
combate à erosão e de defesa costeira, bem como de reabilitação de locais contaminados
(solos, minas, etc.) ».

Direitos Humanos e Meio Ambiente


14
O Uso de Herbicidas e a Violação de
Direitos Humanos por Impactos Ambientais:
O que o Brasil Pode Aprender a Partir da
Experiência Jurisdicional Internacional?

Orlindo Francisco Borges1**


Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Sumário: Introdução. 1 Princípio da Soberania Sobre os Recursos


Naturais e a Responsabilidade de não Causar Danos ao Ambiente de
Outros Estados e Áreas Fora de sua Jurisdição. 2 Princípio da Prevenção
e o Precautionary Approach no Direito Internacional Ambiental. 3
Notas Sobre a Experiência Colombiana (Tij, Equador X Colômbia) –
267
Responsabilidade Internacional por Danos ao Meio Ambiente e à Saúde
Pela Pulverização Aérea de Herbicidas (Glifosato). 4 Ainda Sobre a
Colômbia: Abertura para o Reconhecimento de Crimes Internacionais por
Violações ao Direito Humanitário. 5 Para Além da Prevenção: O Dever de
Reparação e a Abertura para o Surgimento de Demandas Internacionais

1) ** Advogado, sócio da Lube, Diogo, Borges & Oliveira Sociedade de Advogados, e Professor
de Direito Ambiental; Mestre e Doutorando em Ciências Jurídico-Ambientais pela Fa-
culdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL); Especialista em Direito Inter-
nacional e Comunitário do Ambiente pela FDUL e em Direito Ambiental e Urbanístico
pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV); Aperfeiçoamento em Direito do Petróleo
e Gás Natural pela SINERGIAS (RJ/ES); Membro da Comissão de Relações Inter-
nacionais da OAB/ES; Pesquisador convidado (gäste) do Abteilung fur ausländisches und
internationales Strafrecht da Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha) e visiting
scholar da Human Rights Consortium, da School of Advanced Study - University of London
(Inglaterra). Membro do Grupo de Pesquisa (CNPq) Hermenêutica Jurídica e Jurisdição
Constitucional (FDV). Contato: orlindo@ldbo.com.br.
O Uso de Herbicidas e a Violação de Direitos Humanos por Impactos Ambientais:
O que o Brasil Pode Aprender a Partir da Experiência Jurisdicional Internacional? Orlindo Francisco Borges

H Introdução haja vista que a liberação comercial de organismos geneticamente modificados


(OGMs) resistentes a estes agrotóxicos funcionaria como fator multiplicador
A questão da regulação e o controle do uso de herbicidas é uma temática de da comercialização de substâncias perigosas no Brasil, colocando virtualmente
fundamental relevância em matéria ambiental para o Brasil, haja vista a repre- em risco os direitos fundamentais da população, nomeadamente, à saúde, à ali-
sentatividade do agronegócio para a economia nacional e a demanda deste se- mentação adequada, à biodiversidade dos biomas nacionais e ao meio ambiente
tor para o uso em larga escala destes defensivos, capazes de ocasionar sérios equilibrado e saudável (arts. 6º, 194, 196 e 225 da Constituição da República).
impactos à saúde e ao meio ambiente. Logo, vê-se nesse litígio um sério conflito entre o dever de prevenção e os
Em recentíssimos casos no contencioso nacional envolvendo a maté- interesses econômicos nacionais, uma vez que, dentre as substâncias listadas,
ria, vê-se a atuação do Ministério Público Federal (DF) no ajuizamento de incluem-se dois dos principais herbicidas utilizados no país: o glifosato (v.g
duas ações civis públicas, objetivando: “(1) compelir a Agência Nacional de Round Up) e o 2,4-D (v.g Tordon), tidos como principais responsáveis pelos al-
Vigilância Sanitária (ANVISA) a reavaliar a toxidade de 8 (oito) ingredien- tos índices da agricultura no país, em especial, nas exportações de milho e soja.
tes ativos publicados na Resolução ANVISA RDC nº 10/2008 (parationa A despeito dos altos rendimentos que o agronegócio obteve, verifica-se na
metílica, lactofem, forato, carbofurano, abamectina, tiram, paraquate e glifosa- literatura científica que estes mesmos agentes são reconhecidos como sendo
to), bem como determinar à União, por meio do Ministério da Agricultura, os principais causadores de envenenamento no campo4: “A exposição a pesti-
Pecuária e Abastecimento (MAPA), que suspenda os registros de produtos cidas tem sido fonte de muitos problemas de saúde, agudos e crônicos, na po-
que tenham tais substâncias como princípio ativo, até que seja realizada a re- pulação rural, principalmente nos países em desenvolvimento. Para se ter uma
avaliação, pela ANVISA, sobre a toxicidade daqueles ingredientes ativos, em idéia dos efeitos sobre o homem, foi realizada uma caracterização dos enve-
razão das próprias informações trazidas por aquela autarquia federal no sen- nenamentos por exposição aguda a pesticidas agrícolas utilizados no estado
268 tido de que as referidas substâncias apresentam-se nocivas à saúde humana; de Mato Grosso do Sul, entre 1992 e 2002, verificando-se um total de 1.355 269
e (2) determinar à União, por meio do Ministério da Agricultura, Pecuária e casos involuntários (acidental ou profissional). A maioria destes ocorreu com
Abastecimento (MAPA), que suspenda o registro dos agrotóxicos que conte- homens em idade variando de 15 a 49 anos (55,1%), sendo que 13% do total
nham o herbicida 2,4-D em suas formulações, enquanto a ANVISA não di- de envenenamentos levaram ao óbito. Deste montante, 14,6% (41 indivíduos)
vulgar os resultados conclusivos acerca da reavaliação toxicológica do 2,4-D sofreram envenenamento pela exposição à combinação dos herbicidas 2,4 D +
e que, por meio da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), picloran (ex. de nome comercial Dontor, Tordon, dentre outros). O glyphosate
a União seja proibida de liberar a comercialização de sementes transgênicas (ex. de nome comercial Glifos, Roundup, dentre outros), o segundo mais fre-
tolerantes ao 2,4-D enquanto, mais uma vez, a ANVISA não finalizar a rea- qüente herbicida envolvido no envenenamento [...]”
valiação toxicológica do referido princípio ativo”2. Inegável, portanto, a relevância desta temática para o Direito Ambiental bra-
Trata-se, portanto, de duas ações voltadas a uma mesma finalidade: sus- sileiro, sobretudo, no que diz respeito à aplicação do princípio da prevenção para
pender a comercialização de herbicidas que tenham como princípio ativo a proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado e para a sadia quali-
substâncias que necessitam de uma reavaliação de sua toxicidade, segundo dade de vida da população, além de trazer a possibilidade de avanços jurispru-
informações do próprio órgão regulador nacional (ANVISA) acerca de sua denciais na questão da regulamentação da comercialização de OGM’s no pais.
nocividade à saúde humana. Todavia, essa questão não diz respeito somente ao Brasil, havendo ao
Paralelamente a isso, pugnou-se pela proibição da comercialização de se- fundo destas discussões, importantes elementos do Direito internacional
mentes transgênicas de milho e soja tolerantes a um desses princípios ativos3,
neticamente modificadas, resistentes a substâncias como o 2,4-D, o glifosato, o glufosinato de
2) A íntegra das iniciais disponível em: <http://agricultura.ruralbr.com.br/noticia/2014/03/ amônio DAS-68416-4, o glufosinato de amônio DAS-44406-6 e outros herbicidas.
acoes-do-ministerio-publico-federal-questionam-registro-de-nove-agrotoxicos-4455376.
html>. Acesso em: 27 mar. 2014. 4) MARCONDES DE MOURA, Mônica Accaui. Impacto de herbicidas em recursos hídricos.
In: Revista Tecnologia & Inovação Agropecuária. Jun/08. Disponível em: <http://www.
3) Tendo em vista que o CTNBio liberou a comercialização de sementes de soja e milho ge- dge.apta.sp.gov.br/publicacoes/T&IA/T&IAv1n1/Revista_Apta_Artigo_117.pdf>, p.144.

Direitos Humanos e Meio Ambiente Obra dedicada ao Instituto Terra


O Uso de Herbicidas e a Violação de Direitos Humanos por Impactos Ambientais:
O que o Brasil Pode Aprender a Partir da Experiência Jurisdicional Internacional? Orlindo Francisco Borges

Ambiental, muitas vezes esquecidos quando da análise de temas como este. sitos em seu território; e do outro, o dever de não causar danos ao ambiente.
Em especial, as discussões que decorrem da relação transnacional envolven- O princípio 21 da Declaração de Estocolmo5 buscou abalizar esses in-
do tais impactos (princípio da ubiquidade) e a jurisprudência do contencio- teresses com o seguinte dispositivo: “Em conformidade com a Carta das
so internacional aplicável a tais situações. Nações Unidas e com os princípios de direito internacional, os Estados têm
Por conta disso, em vez de enfrentarmos os pontos comuns da doutrina o direito soberano de explorar seus próprios recursos em aplicação de sua
acerca da matéria, tais como a relação entre meio ambiente e saúde como direi- própria política ambiental e a obrigação de assegurar-se de que as ativida-
tos fundamentais e a exigibilidade de análise toxicológica prévia para a comer- des que se levem a cabo, dentro de sua jurisdição, ou sob seu controle, não
cialização de produtos supostamente perigosos em atendimento ao princípio prejudiquem o meio ambiente de outros Estados ou de zonas situadas fora
da prevenção/precaução, etc..., já abordados na inicial das aludidas deman- de toda jurisdição nacional”.
das, propomos uma discussão desfocada destas questões, ligada diretamente ao Esse princípio veio adotar em 1972 o teor de um costume internacional já
contencioso internacional ambiental em situação equivalente a essa, como é o reconhecido em sede jurisprudencial desde a década de 1940, como pôde ser
caso da Pulverização Aérea de Herbicidas (glifosato) pela Colômbia, subme- observado no célebre caso Trail Smelter, onde litigaram em um painel arbi-
tido ao TIJ e os seus efeitos para o Brasil que, nessa oportunidade, vem discu- tral os EUA e o Canadá acerca da responsabilização por danos transfrontei-
tindo o uso e comercialização desta mesma substância em território nacional. riços causados pela poluição atmosférica proveniente da fundição Trail, situa-
Tendo em vista que os danos ambientais não respeitam fronteiras; a fa- da na fronteira entre os países. Nesse leading case do Direito Internacional do
cilidade de dispersão de substâncias que carecem de regulação/exames de Ambiente, foi reconhecida a responsabilização de um Estado pela comprova-
toxicidade para outros Estados; o fato dos principais produtores nacionais ção do uso abusivo de instalações citas em seu território que tenham causado
de soja e milho estarem situados em zona de fronteira; e a existência de ca- prejuízos a um terceiro Estado (poluição com efeitos graves à sua população) 6.
270 sos no contencioso internacional ambiental envolvendo a contaminação por Em 1992 a Declaração do Rio de Janeiro (ECO92), por meio de seu prin- 271
glifosato no Tribunal Internacional de Justiça, o presente estudo se propõe a cípio nº 2, veio acrescentar o termo “políticas de desenvolvimento” ao princí-
analisar a situação brasileira frente aos princípios da prevenção e da proibi- pio 21 da Declaração de Estocolmo, invertendo a lógica ecocêntrica presente
ção de causar danos a zonas fora de sua jurisdição, a partir da jurisprudência no primeiro instrumento declaratório para a colocação do homem no centro
do Tribunal Internacional de Justiça. da problemática ambiental: “Os Estados, de acordo com a Carta das Nações
Unidas e com os princípios do direito internacional, têm o direito soberano de
explorar seus próprios recursos segundo suas próprias políticas de meio am-
biente e de desenvolvimento, e a responsabilidade de assegurar que atividades
1) Princípio da soberania sobre os recursos naturais e
sob sua jurisdição ou seu controle não causem danos ao meio ambiente de ou-
a responsabilidade de não causar danos ao ambiente tros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional 7”.
Destes dois instrumentos, portanto, se extrai esse binômio: soberania es-
de outros estados e áreas fora de sua jurisdição
tatal sobre os recursos naturais sitos em territórios sob sua jurisdição/res-
ponsabilidade de não causar danos ao ambiente de outros Estados ou áre-
O princípio da soberania estatal sobre os recursos naturais e a responsabilidade
de não causar danos ao ambiente de outros Estados e áreas fora de sua jurisdi-
ção forma, junto com o princípio do poluidor-pagador, a base da responsabili- 5) ONU, Declaração de Estocolmo de 1972. Disponível em: <http://www.onu.org.br/rio20/
zação internacional por atos lesivos ao ambiente natural. img/2012/01/estocolmo1972.pdf>. Acesso em: 24 fev. 2013.
O conteúdo normativo deste princípio decorre da própria lógica na qual se 6) AMADO GOMES, Carla. Apontamentos sobre a protecção do ambiente na jurisprudência in-
desenvolve o Direito Internacional do Ambiente, que é a busca do ponto de ternacional. In: _____; Elementos de apoio à disciplina de Direito Internacional do Ambi-
ente, Lisboa: AAFDL, 2008, pp. 367 et ss., p. 376/378.
equilíbrio entre dois objetivos fundamentais que apontam para direções opos-
tas: de um lado a soberania dos Estados na exploração dos recursos naturais 7) ONU, Declaração do Rio de Janeiro de 1992. Disponível em: <http://www.onu.org.br/rio20/
img/2012/01/rio92.pdf>. Acesso em: 23 fev. 2013.

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O Uso de Herbicidas e a Violação de Direitos Humanos por Impactos Ambientais:
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as fora de sua jurisdição. A sua aplicação foi inexoravelmente reconhecida cursos. Já no que tange aos deveres, cabe aos Estados: (a) exercer a sua sobe-
enquanto um princípio de Direito Internacional do Ambiente pelo TIJ no rania em prol do desenvolvimento nacional e bem estar de sua população; (b)
caso dos Ensaios Nucleares em 1996 8. respeitar o direito e interesses das comunidades indígenas; (c) cooperar com o
Com base na primeira parte do princípio, cada Estado será soberano para desenvolvimento internacional; (d) zelar pela conservação e uso racional des-
explorar os seus recursos naturais, conforme as suas políticas internas de pro- tes recursos; (e) a partilha eqüitativa no uso dos recursos transfronteiriços; (f )
teção ambiental e desenvolvimento. Essa exploração, todavia, não poderá re- respeitar o Direito Internacional e tratar o investidor estrangeiro com justiça e
dundar em danos ambientais para além de suas fronteiras. razoabilidade; (g) respeitar as obrigações decorrentes do seu direito de expro-
Sem embargo, conforme explica LOUREIRO BASTOS 9 de forma mais priar ou nacionalizar o investimento estrangeiro.
minuciosa, a primeira parte deste princípio acaba por representar uma série de Para além dos efeitos internos que esta soberania transmite, a segunda parte
direitos e deveres aos Estados, podendo se reconhecer, enquanto direitos: (a) o do princípio, estabelece os freios desse direito de auto-exploração. Freios estes,
direito de dispor livremente de seus recursos naturais (leia-se, aqueles sitos no que se fundamentam no princípio geral de boa vizinhança (art. 74 da Carta do
território sob sua jurisdição); (b) o direito de explorar livremente os seus recur- ONU), pelo qual os Estados têm a obrigação de não permitir o uso de seu ter-
sos naturais; (c) o direito de recuperar o efetivo controle sobre os seus recursos ritório para a violação do direito de outros Estados10.
e ser compensado por eventuais danos provocados aos mesmos; (d) o direito de Nico SCHRIJVER11, explica que ao longo dos anos este princípio sofreu
se utilizar destes recursos em prol do desenvolvimento nacional; (e) o direito forte influência dos Direitos Humanos, do Direito Internacional Privado, no
de gerir estes recursos em conformidade com a suas diretrizes ambientais; (f ) que tange à regulação dos investimentos estrangeiros e do Direito do Mar.
no caso de recursos naturais transfronteiriços, o direito à uma partilha eqüita- Todavia, com o desenvolvimento do Direito Internacional do Ambiente, so-
tiva de seus benefícios; (g) o direito de regular o investimento estrangeiro para bretudo, com as idéias de desenvolvimento sustentável e equidade intergera-
272 a exploração destes recursos; (h) o direito de expropriar ou nacionalizar o in- cional, este princípio seguiu novos rumos, no sentido de que a soberania dos 273
vestimento estrangeiro conforme o interesse nacional; (i) o direito de resolver Estados não se presta mais para o livre gozo dos recursos sitos em seu terri-
sob sua jurisdição as disputas que digam respeito ao uso/exploração destes re- tório. Nesse caso, ele também se apresenta como fonte de responsabilidades e
obrigações em nível internacional, bem como no desenvolvimento de outras
questões como as noções de uso partilhado de recursos transfronteiriços e de
8) “Also cited were Principle 21 of the Stockholm Declaration of 1972 and Principle 2 of the Rio Decla-
ration of 1992 which express the common conviction of the States concerned that they have a duty “to patrimônio e interesses comuns da humanidade.
ensure that activities within their jurisdiction or control do not cause damage to the environment of Diante do conhecimento geral de que os danos ambientais não respei-
other States or of areas beyond the limits of national jurisdiction”. These instruments and other provi- tam fronteiras, a segunda parte deste princípio ganha relevo, não só por es-
sions relating to the protection and safeguarding of the environment were said to apply at all times,
in war as well as in peace, and it was contended that they would be violated by the use of nuclear tabelecer um dever de cuidado para com os vizinhos, de modo a impulsionar
weapons whose consequences would be widespread and would have transboundary effects […]The políticas domésticas de gestão e controle de riscos ambientais, mas por re-
Court recognizes that the environment is under daily threat and that the use of nuclear weapons could conhecer a possibilidade de responsabilização de um Estado por uma falha
constitute a catastrophe for the environment. The Court also recognizes that the environment is not
an abstraction but represents the living space, the quality of life and the very health of human beings, neste dever de cuidado.
including generations unborn. The existence of the general obligation of States to ensure that activ-
ities within their jurisdiction and control respect the environment of other States or of areas beyond
national control is now part of the corpus of international law relating to the environment”. In: TIJ,
Advisory opinion on the legality of the threat or use of nuclear weapons, 8. jul. 1996. Disponível
em: <http://www.icj-cij.org/docket/files/95/7495.pdf>. Acesso em: 24 fev. 2013, pp. 19/20.
9) LOUREIRO BASTOS, Fernando. A Southern African Approach to the Permanent Sovereignty 10) SANDS, Philippe; PEEL, Jacqueline; FABRA, Adriana; MACKENZIE, Ruth. Principles
over Natural Resources and Common Resource Management Systems. In: International Confer- of International Environmental Law, 3ª ed., Cambridge: Cambridge Press, 2012, p. 197.
ence on Permanent Sovereignty over Natural Resources: Development of a Public International
Law Principle and Its Limits, 30 jan./01 fev. 2013, Universität Siegen. Disponível em: <http:// 11) SCHRIJVER, Nico J. Permanent Sovereignty over Natural Resources. In: Max Planck Ency-
www.wiwi.uni-siegen.de/rechtswissenschaften/oe-recht/tagungen/psnr/fokos-wp2013-01- clopedia on Public International Law, 2010. Disponível em: <http://ilmc.univie.ac.at/up-
bastos.pdf>. Acesso em: 8 mar. 2013, p. 4. loads/media/PSNR_empil.pdf>. Acesso em: 8 mar. 2013, § 24.

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Consuetudinariamente, tal princípio foi concebido por meio da sólida


2) Princípio da prevenção e o precautionary approach
construção de jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), que
no Direito Internacional Ambiental entendeu pelo direito de intervenção do Estado costeiro em matéria ambiental
nos limites de sua zona econômica, a fim de prevenir atuações lesivas ao am-
O princípio da prevenção está intimamente relacionado com o princípio da biente marítimo que possam redundar em efeitos nocivos ao meio ambiente
soberania estatal sobre os recursos naturais, uma vez que esta soberania deverá natural sito em seu território 15.
se pautar de acordo com uma política de prevenção de danos ambientais, jus- O precautinary approach, por sua vez, fez a sua primeira aparição inter-
tamente a se evitar a ocorrência de danos transfronteiriços capazes de ensejar nacional na Segunda Conferência Ministerial do Mar do Norte, em 1987,
uma responsabilização internacional. A adoção destas políticas em sede inter- sobre poluição marítima e depois ganhou ampla projeção, tendo sido des-
na (prevenção) e internacional (prevenção e cooperação) tem por objetivo re- tacado na Declaração da Conferência Governamental de Bergen sobre
duzir, limitar e/ou controlar atividades potencialmente poluidoras. Desenvolvimento Sustentado (1990); no princípio 15 da Declaração do Rio
Nessa linha de raciocínio, o princípio da prevenção, junto com o precautio- de Janeiro; no art. 3º, da Convenção-Quadro sobre alterações climáticas da
nary approach (precaução), podem ser reconhecidos como os sustentáculos da ONU; e no parágrafo 22.5, da Agenda 2116.
política de gestão de risco nas modernas sociedades. Ambas as normas estão voltadas ao afastamento do perigo/risco para a
O princípio da prevenção, no plano internacional, por exemplo, teve o seu segurança das gerações futuras. Nesse sentido, para uma separação entre
reconhecimento tanto convencional quanto consuetudinário. Além disso, foi ambos os institutos, a doutrina tem feito distinção entre “defesa contra um
positivado no âmbito comunitário europeu e internamente em diversos países perigo” e “evitação de um perigo”, como adverte OSSEMBÜHL17: “A pre-
ao longo do globo, dentre os quais se insere o Brasil12. venção pressupõe a previsibilidade do perigo, enquanto a precaução visa anteci-
274 No plano convencional internacional, Fernando da Silva SUORDEM par o surgimento de um perigo, a fim de o evitar”. Enquanto na prevenção en- 275
13
elenca inúmeros instrumentos normativos preventivos, dos quais Carla frentam-se perigos existentes, a precaução obriga a adoção de medidas que
AMADO GOMES 14 destaca alguns que tratam acerca da proibição de po- se antecipem ao perigo hipotético (risco) 18.
luição transfronteiriça: a Convenção sobre Alto-Mar, assinada em Genebra A inteligência destas normas parte do fato de que as agressões ao meio am-
em 1958 (art. 25/1); a Convenção de Montego Bay, de 1982 (art. 194/2), bem biente são, em regra, de difícil ou impossível reparação, de maneira que se torna
como as Convenções sobre a interdição de utilização de técnicas de modifi- forçosa uma atuação pró-ativa e de segurança, voltada para se evitar que o dano
cação do ambiente com fins militares ou hostis, de 1977; a Convenção para a ocorra, haja vista que, uma vez constatado, será quase impossível o seu retorno
proteção da camada de ozônio, de 1985, e a Convenção sobre alterações climá- ao status quo ante. Contudo, é importante frisar que a idéia de precaução não
ticas, de 1992. Em todos estes instrumentos há a convocação dos Estados para tem por finalidade imobilizar as atividades humanas, não se trata de um “antes
a proteção de seus recursos naturais por meio da adoção de técnicas de preven- prevenir do que remediar a qualquer custo”, como adverte Cass R. SUNSTEIN
ção de lesões irreversíveis e com consequências de nível global.

12) BORGES, Orlindo Francisco. Gestão de riscos no mar e a sua efetividade diante de danos
ambientais anônimos envolvendo hidrocarbonetos: uma análise comparada dos sistemas 15) AMADO GOMES, Carla. Apontamentos sobre a jurisprudência ambiental internacional.
brasileiro e português. Relatório apresentado ao mestrado científico em Ciência Jurídico In: _____; Elementos de apoio à disciplina de Direito Internacional do Ambiente... ob.
-Ambientais da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - FDUL (2010/2012) cit., pp. 367 et ss.
para a disciplina de Direito Constitucional e Administrativo do Ambiente “sem fronteiras”,
ministrada pelo prof. Dr. Vasco Pereira da SILVA, 2011, p. 14. 16) AMADO GOMES, Carla. A prevenção à prova no Direito do Ambiente… ob. cit., p.30.
13) SUORDEM, Fernando da Silva. O princípio da separação dos poderes e os novos movi- 17) OSSEMBÜHL, Fritz. Vorsorge als Rechtsprinzip im Gesundheits – Arbeits- und Umwelts-
mentos sociais, Coimbra: Coimbra, 1995, pp. 241 et ss. chutz, in Neue Zeitschrift für Verwaltung, Heft 3, 1986, p. 162 apud AMADO GOMES,
Carla. A prevenção à prova no Direito do Ambiente… ob. cit., p. 34.
14) AMADO GOMES, Carla. A prevenção à prova no Direito do Ambiente: em especial os
actos autorizativos ambientais, Coimbra: Coimbra, 2000, p. 23. 18) Idem, p. 34

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19
, haja vista que a adoção de tal princípio para todas as suas possibilidades (to- tro de sua perspectiva realista), qual seja a necessidade da imediata implemen-
dos os riscos imagináveis) resultaria em sua inoperatividade 20. Isso porque, se- tação de medidas de prevenção na potencialidade de graves danos ambientais
gundo o autor, há uma tendência mundial em seguir a idéia da precaução. Isso ou à saúde humana, a palavra de ordem no sistema de Direito Ambiental con-
se dá muitas vezes, de maneira impensada, cujos mecanismos cognitivos são diz com esse adágio, “não postergar”. Daí, a necessidade de uma interpretação
identificados pela economia comportamental como sendo fruto da “aversão à correta deste dispositivo, sob pena de desvirtuar toda a atuação da tutela am-
perda”, do “mito da natureza benigna”, da “heurística da disponibilidade”, da “ne- biental nas atuais sociedades do risco. Em razão disso, acredita-se não ser ne-
gligência da probabilidade”, bem como da “negligência do sistema” 21. Partindo cessário o tratamento destes “princípios” de maneira autônoma. Isso porque,
dessas premissas, adverte-se que a utilização em larga escala dessa norma (em ambos os entendimentos convergem para um significado comum que é o de
sua concepção forte) poderá resultar em inação, o que não é desejável por qual- se evitar perigos ao ambiente, não importando para este fim se tais perigos se-
quer ordenamento jurídico. jam imediatos ou mediatos. Nesse sentido, concorda-se com as observações de
Essa abertura presente na norma precaução ((i) variabilidade de conteúdo; Vasco Pereira da SILVA 24, em que, melhor do que uma separação entre os ins-
(ii) oscilação quanto a definição dos pressupostos de sua aplicação - pelas dife- titutos como princípios distintos e autônomos é a construção de uma noção
rentes capacidades dos Estados na avaliação dos riscos; nos diferentes graus de ampla de prevenção - ou uma prevenção alargada 25.
gravidade exigidos do dano imediato; na necessidade de ponderação de interes- O princípio da prevenção, portanto, exige a adoção de instrumentos pre-
ses políticos, econômicos e ambientais) acaba por retirar-lhe a normatividade ventivos voltados ao controle e gestão de riscos ambientais, no sentido de zelar
internacional 22, não lhe sendo reconhecida a natureza de princípio de Direito pela não ocorrência de danos ambientais com efeitos para além de sua jurisdi-
Internacional do Ambiente, apesar de sua ampla receptividade nacional e cará- ção. Embora o art. 2º da ECO92 não estabeleça quais as due diligences que os
ter programático no estabelecimento de políticas de gestão de riscos 23: Estados devam tomar, é amplamente reconhecida a necessidade de adoção dos
276 Portanto, resgatando-se a essência da idéia de precaução (logicamente, den- instrumentos previstos nos artigos 17, 18 e 19 da ECO92, ou seja, a necessidade 277
de adoção de estudos de avaliação prévia de impactos ambientais (AIA) das ati-
19) SUNSTEIN, Cass R. Para além do princípio da precaução. In: Interesse Público, n.37, São vidades potencialmente poluidoras desenvolvidas em seu território e a coope-
Paulo: Notadez, mai.-jun., pp. 119/173, 2006, p. 168. ração internacional, no sentido de notificar e apresentar informações relevantes
20) No mesmo sentido, Vasco Pereira da SILVA, ao defender inadequada a recondução da idéia aos Estados vizinhos acerca de potenciais emergências naturais e outros efeitos
de precaução enquanto um princípio in dúbio pro natura, por representar uma carga excessi- adversos que possam sofrer por atividades desenvolvidas em seu território 26.
vamente inibidora, uma vez que o “risco zero” em matéria ambiental é inexistente. Cfr. SIL-
VA, Vasco Pereira da. Como a Constituição é verde: os princípios fundamentais da Cons-
tituição Portuguesa do Ambiente, Lisboa: AAFDL, 2001, p. 19; SILVA, Vasco Pereira da.
Verde cor de Direito: Lições de Direito do Ambiente, Coimbra: Almedina, 2003, pp. 69/70. 24) SILVA, Vasco Pereira da. Como a Constituição é verde... ob. cit., pp. 17/19.

21) Sobre o assunto, veja-se SUNSTEIN, Cass R. Para além do princípio da precaução. In: Inte- 25) Também nesse sentido, Carla AMADO GOMES: “A atitude preventiva — que está sempre
resse Público... ob. cit., pp. 119/172. subjacente à ideia de precaução —, fundamental num domínio em que os danos têm, muitas ve-
zes, carácter irreversível, não deixa de imperar, contudo, por força do já consagrado princípio da
22) Nesse sentido, por todos, Carla AMADO GOMES: “A diferente formulação da equação de prevenção”. In: AMADO GOMES, Carla. Risco e modificação do acto autorizativo con-
precaução condena a ambição de assunção do estatuto de princípio (de Direito Internacional), na cretizador de deveres de protecção do ambiente... ob. cit., pp. 184; SADELEER, Nicolas
medida em que não se consegue impor com um significado unívoco. Ora, por mais vago que um de. The principles of prevention and precaution in international law: two heads of the same coin?
princípio, por definição, seja, tem que reunir um núcleo mínimo de elementos que veiculem a sua In: FITZMAURICE, Malgosia; ONG, David M.; MERKOURIS, Panos (eds.), Research
aplicação homogénea a um conjunto similar de situações; deve, “numa perspectiva material, pres- Handbook on International Environmental Law, Northampton: Edward Elgar, pp. 182 et
crever um comportamento determinado aos destinatários”; enfim, tem que ser normativo. A deriva ss., 2010, pp. 182/197.
formulativa da noção de precaução leva a que se entreveja nesta um “simples objectivo programá-
tico, que indica uma direcção mas não fixa uma regra”. In: AMADO GOMES, Carla. Risco 26) ELIAS, Olufemi. Environmental impact assessment. In: FITZMAURICE, Malgosia; ONG,
e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente, David M.; MERKOURIS, Panos (eds.), Research Handbook on International Environmental
Lisboa: AAFDL, 2006, p. 183. Law, Northampton: Edward Elgar, pp. 227 et ss., 2010, pp. 227/228. Nesse sentido, o autor:
“[i]t would be hard for a State to argue that it had acted in due diligence if it had not even studied
23) AMADO GOMES, Carla. Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de what the impacts of the proposed project on another state’s environment would be. Hence, should
deveres de protecção do ambiente... ob. cit., pp. 181/183. significant harm occur to the affected state, the source state has breached the no-harm principle”.

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Outras obrigações podem decorrer de instrumentos internacionais setoriais tivizado dentro de um contexto de conflito armado. Em não se tratando de um
ratificados27, incluindo a previsão de sanções pela não adoção das medidas es- alvo militar, ele deverá ser protegido e medidas deverão ser tomadas com vistas
tabelecidas, dando ao princípio da prevenção um extenso corpus 28. a prevenir a ocorrência de danos colaterais e acidentais com graves efeitos ao
Em se tratando de situações em que haja um conflito armado, nacio- ambiente advindos de operações militares 30.
nal ou internacional, o princípio da prevenção é reconhecido pela norma nº Logo, independentemente de se tratar de tempos de paz ou conflitos ar-
44 de direito costumeiro identificada pelo Comitê Internacional da Cruz mados, há a obrigação do Estado na adoção de medidas preventivas a se evi-
Vermelha (CICV) em seu estudo sobre os costumes reconhecidos no Direito tar a ocorrência de danos ambientais. A sua ausência ou a adoção de medidas
Humanitário Internacional 29: “Norma 44. Os métodos e meios de guerra de- deficitárias (em desconformidade com os procedimentos instituídos) poderão
vem ser utilizados tendo devidamente em conta a necessidade de proteger e redundar em responsabilização internacional, podendo o gestor público encar-
preservar o meio ambiente natural. Na condução das operações militares, terão regado desse munus, vir figurar como responsável solidário do particular que
de ser tomadas todas as precauções exequíveis para não causar danos aciden- realizou um evento de significativo impacto ambiental.
tais ao meio ambiente ou reduzi-los, pelo menos, tanto quanto possível. A falta
de certeza científica dos efeitos de certas operações militares sobre o meio am-
biente não isenta as partes num conflito de tomar tais precauções”.
3) Notas sobre a experiência colombiana (TIJ, Equador
Esse entendimento decorre da jurisprudência do TIJ nos casos Gabčíkovo-
Nagymaros e Ensaios Nucleares, quando reconheceram a prevenção como ele- x Colômbia) – Responsabilidade internacional
mento essencial a ser observado para a proteção do ambiente, tanto em tempos
por danos ao meio ambiente e à saúde pela
de paz como em conflitos armados. Ele também encontra fundamento na prá-
278 tica interna dos países e nas orientações presentes em seus manuais militares, pulverização aérea de herbicidas (glifosato) 279
com o escopo de demonstrar que o dever de proteção do ambiente não é rela-
A Colômbia detém hoje uma das maiores concentrações de plantio de folha
27) Inter alia: “the marine environment (for instance, UNCLOS, 1982: Articles 194(1)(2), 195, 192, de coca (Erythoxylum coca) e papoula (Papaver somniferum) do mundo, utili-
196, 204, 207, 208, 209, 210, 211, 212), the management of high seas fisheries (for instance, Ar- zados para a produção de narcóticos, como a cocaína e o ópio. Em combate a
ticle 5 of the 1995 UN Fish Stocks Agreement), the protection of rivers (for instance, Article 21 of essa realidade, o país adotou uma série de medidas. Dentre elas, a pulverização
the 1997 New York Convention on the Law Relating to the Use of International Watercourses for
Purposes other than Navigation), climate (for instance, UNFCCC, 1992: Articlle 3(3)), the ozone aérea de herbicidas sobre os plantios para a sua destruição 31. Um dos princi-
layer (for instance, Article 2(2)(b) of the 1985 Vienna Convention for the Protection of the Ozone pais fundamentos para o uso dos herbicidas é o combate aos grupos guerri-
Layer), waste management (for instance, Article 4(2)(c) of the 1989 Basel Convention on the con- lheiros das Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC) e do Ejercito
trol of the Transboundary Movements of Hazardous Wastes and their Disposal), biodiversity (for
instance, Article 14 of the 1992 CBD), vulnerable ecosystems such as the Antarctic and the Alps de Liberación Nacional (ALN), que se utilizam do narcotráfico para o finan-
(for instance, Article 3(2) of the 1991 Madrid protocol on the Environmental Protection to the ciamento de suas atividades no conflito armado em que o país se encontra 32.
Antarctic Treaty, Article 2 of the Salzburg Convention on the Protection of the Alps), transboun-
dary environmental risk assessment (for instance, the 1991 Espoo Convention on Environmental
Impact Assessment in a Transboundary Context; Article 3(1) of the 1992 Helsinki Convention
on the Transboundary Effects of Industrial Accidents)”. SANDS, Philippe; et al. Principles of 30) HENCKAERTS, Jean-Marie; DOSWALD-BECK, Louise. Customary International Hu-
International Environmental Law… ob. cit., pp. 201/202. manitary Law: Rules, Vol. I, 4ª ed., Cambridge; ICRC; Cambridge Press, 2009, p. 149/161.
28) SADELEER, Nicolas de. The principles of prevention and precaution in international law: two 31) A Colômbia é o único país no mundo a se utilizar da técnica de pulverização aérea de
heads of the same coin? In: FITZMAURICE, Malgosia; ONG, David M.; MERKOURIS, herbicidas como estratégia de combate ao narcotráfico. Cfr. WITNESS FOR PEACE. An
Panos (eds.), Research Handbook on International Environmental Law... ob. cit., p. 183. exercise in futility: Nine years of fumigation in Colômbia, 2009, p. 10. Disponível em: <http://
witnessforpeace.org/downloads/An_Exercise_in_Futility.pdf>. Acesso em: 08 fev. 2013.
29) HENCKAERTS, Jean-Marie. Estudo sobre o Direito Internacional Humanitário Con-
suetudinário: uma contribuição para a compreensão e respeito do direito dos conflitos ar- 32) LANDEL, Morgane. Are aerial fumigations in the context of the war in Colombia a violation
mados. Disponível em: <http://www.icrc.org/por/assets/files/other/review-857-p175.pdf>. of the rules of International Humanitarian Law? In: Transnational Law and Contemporary
Acesso em: 13 fev. 2013, p. 21. Problems: University of Iowa College of Law, Vol. 19, pp. 491 et ss., 2010, pp. 491/493.

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Nesse sentido, inclusive, a Corte Constitucional colombiana reconheceu que o hectares, em 2000, para 167.000 hectares em 2007, tendo aumentado em 15%
país está envolvido em um conflito armado interno, sendo-lhes aplicável o dis- as áreas plantadas e em 4% a produção de cocaína36.
posto no PACG II, sem violação de sua soberania interna 33. Durante anos de ação, sérios impactos foram sentidos local e internacio-
Em 1984, o governo do país consultou um grupo de especialistas de seu nalmente. Relatórios desenvolvidos por ONG’s apontam para os malefícios
Instituto Nacional de Saúde para a análise dos potenciais riscos que a pul- causados ao ambiente e às populações atingidas, incluindo, além dos prejuízos
verização de herbicidas poderia trazer para a população. Os especialistas se materiais obtidos com a destruição de plantações de outras culturas lícitas e a
opuseram ao uso desta política, em especial, a emissão de glifosato, pelo fato perda de certificações internacionais decorrentes da contaminação do solo e da
de ainda não possuírem na época conhecimentos mais detidos sobre os seus água pelos agentes pulverizados, o registro de doenças e até mortes37.
efeitos sobre humanos 34. Além dos males conhecidos do glifosato que, de acordo com os relatórios
Em 2000, após a adoção do “Plano Colômbia” pelo ex-presidente Andrés da Organização Mundial da Saúde (OMS) 38, incluem diarréia, vômitos, dores
PASTRANA ARANGO, que tinha por objetivos (i) reduzir a produção de no estômago e irritação na pele e olhos, novos estudos têm relacionado outros
drogas ilícitas, em especial a cocaína, em 50% dentro de 6 anos e; (ii) e o de- problemas de saúde à exposição de pessoas aos agentes herbicidas, como a in-
senvolvimento da segurança no país, por meio da retomada de áreas controla- fertilidade e abortos39. Ocorre, todavia, que os herbicidas pulverizados no país
das pelos grupos armados da guerrilha; a pulverização aérea de herbicidas pelo possuem outras substâncias combinadas com o glifosato, não informados pelo
governo, que já vinha sendo feita desde meados da década de 80, aumentou
exponencialmente no país com o apoio financeiro dos EUA, que investiu entre
36) Idem.
2000 e 2007, 6 bilhões de dólares no projeto, dos quais 458 milhões de dólares
foram destinados à estratégia com herbicidas 35. 37) “Examples of individuals and community groups affected by these sprayings abound. When María
Chirimía, Pedro Quintero and César Vargas, three Eperara Siapidaara indigenous children all
280 Apesar da redução da violência local, os esforços para a diminuição do plan- under the age of ten, died in April 2004, their community in Nariño claimed that the deaths were 281
tio de coca não obtiveram êxito. Estudos mostram que em 1999, a área abran- the result of aerial spraying in the region that made the children sick and caused illnesses in at least
gida pelas plantações de coca no país era de 122.500 hectares, dos quais 43.426 15 other people. Because the complaint was not investigated in a timely manner, it was impossible
to verify the community’s claims. Additionally, spraying in the area continued without consultation
foram objeto da política de pulverização. Em 2007, todavia, apesar área pulve- with the community. Similarly, early in 2005, crop dusters blanketed part of the Kogui Malayo
rizada abranger 153.133 hectares, a área de plantio de coca passou de 136.200 Arhuaco indigenous reserve located in the Sierra Nevada de Santa Marta in the North without
previous consultation with the community. That spraying campaign destroyed food crops and con-
taminated water resources that were vital to the community. These damages have not been com-
33) COLOMBIA. Sentencia No. C-225/95, Corte Constitucional. 18 mai. 1995, Disponível pensated. Finally, in May and June of 2005, many farms in Cauca in the Southeast, most of which
em: <http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/1995/C-225-95.htm>. Acesso em: 20 had support from the US Agency for International Development and the United Nations Office
fev. 2013. on Drugs and Crime, were sprayed. Subsequent inspections by local officials found that 90 percent
of the sprayed farms grew only legal crops. The majority raised fruits, vegetables and export crops
34) “Glyphosate: Its aerial use for the eradication of crops of marihuana and coca is not recommen- like organic, fair-trade coffee, and many had attained expensive organic certifications to sell their
ded. The data obtained in animal experimentation show low acute toxicity; its acute toxicity in harvest on the international market. These stories are just a few examples of harmful effects that
humans is little known. In the literature reviewed there is no information concerning chronic have occurred during the past six years of aerial spraying. In addition, the glyphosate mixture being
toxicity in humans. Neither is there information with respect to its mutagenic and tetragenic ef- sprayed harms the environment by destroying natural forests and food crops.” Cfr. AIDA, Alter-
fects [...]” In: Administrative Tribunal of Cundinamarca, Colombia, Second Section, Subsection native Development Strategies in Colombia: The Need to Move Beyond Illicit Crop Spraying.
“B”, 13/6/2003, “Claudia Sampedro y Hector Suarez v. Ministry of Environment and Others” Publicado em 28 ago. 2006. Disponível em: <http://www.aida-americas.org/sites/default/
(Col.), p. 15 apud TIJ, Aerial herbicide spraying (Ecuador v. Colombia), Aplication Instituting files/refDocuments/AIDA%20-%20EX%20SUMM%20ALT%20DEVT%20DOC%20
Proceedings. 31 mar. 2008. Disponível em: <http://www.icj-cij.org/docket/files/138/14474. 06-08.pdf>. Acesso em: 07 fev. 2013.
pdf>. Acesso em: 06 fev. 2013.
38) WHO/FAO. Data sheets on pesticides n.91: Glyphosate (Doc. WHO/PCS/DS/96.91).
35) USA GOVERNMENT ACCOUNTABILITY OFFICE, Pub. n. GAO-09-71, Plan Co- Disponível em: <http://www.inchem.org/documents/pds/pds/pest91_e.htm#4.0>. Acesso
lombia: Drug reduction goals were not fully met but security has improved; U.S. Agencies need em 07 de fev. 2013.
more detailed plans for reducing assistance (28), 2008. Disponível em: <http://www.gao.gov/
assets/290/282511.pdf>. Acesso em: 07 fev. 2013; LANDEL, Morgane. Are aerial fumiga- 39) RICHARD, Sophie; et al. Differential Effects of Glyphosate and Roundup on Human Placental
tions in the context of the war in Colombia a violation of the rules of International Humanitarian Cells and Aromatase. In: Environmental Health Perspective, Vol. 113, pp. 716 et ss., 2005,
Law? In: Transnational Law and Contemporary Problems... ob. cit., p. 492. p. 720.

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O Uso de Herbicidas e a Violação de Direitos Humanos por Impactos Ambientais:
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governo, o que impossibilita uma verificação mais acurada de sua toxicidade 40. incluindo-se, em particular, (a) as mortes e os danos causados à saúde huma-
Em 2007, o Equador, preocupado com os efeitos nocivos da pulveri- na pela pulverização dos herbicidas, (b) os danos à propriedade e aos meios de
zação de herbicidas na zona de sua fronteira com a Colômbia, convidou sustento de sua população, (c) os danos ambientais e recursos naturais perdi-
a Comissão de Direitos Humanos da ONU para uma visita de avaliação dos com o evento, (d) os custos de monitoramento e prevenção dos riscos ado-
dos danos à saúde física e mental de sua população. Instituída a missão, fo- tados; (e) e quaisquer outras perdas e danos relacionados ao evento; (iii) que a
ram visitados o Equador e a Colômbia nos meses de maio e setembro de Colômbia respeite a sua soberania e integridade territorial no sentido de tomar
2007, tendo sido editada a “Nota preliminar sobre a missão ao Equador e todas as medidas necessárias para prevenir que os herbicidas utilizados em seu
à Colômbia” adicionada ao Relatório Especial sobre o direito de toda pes- território não atinjam o Equador44.
soa desfrutar dos mais altos níveis de saúde física e mental da Comissão 41. Recebido o caso pela Corte, não foi proferida uma decisão de mérito sobre
Neste relatório preliminar, todavia, não foram realizados testes. Ele se li- o caso. Após a expedição de 3 ordens, todas concedendo prazos para a apre-
mitou a apontar os posicionamentos distintos de ambos os Estados sobre a sentação de provas e respectivas contestações para uma melhor elucidação dos
certeza científica dos efeitos nocivos dos agentes químicos 42. fatos e evidências 45, dado o alto caráter científico da demanda, as partes cele-
Diante das infrutíferas tentativas de composição amigável para que a braram um acordo, fazendo com que o caso fosse retirado do tribunal em 13 de
Colômbia deixasse de pulverizar seus herbicidas na região da fronteira equato- setembro de 2013, com base no art. 89, do Estatuto do TIJ 46.
riana e prestasse informações detalhadas da composição dos agentes químicos Em seus termos, foi estabelecida a criação de uma zona de exclusão en-
lançados, em 2008 o Equador ajuizou uma ação contra a Colômbia perante o tre os países em que a Colômbia se comprometeu a não realizar operações
Tribunal Internacional de Justiça da ONU (TIJ) 43. Dentre os seus pedidos, re- com herbicidas. Paralelamente a isso, foi criada uma Comissão Mista de
quereu: (i) a declaração de que a Colômbia violou uma obrigação de Direito acompanhamento/monitoramento para que as operações realizadas fora
282 Internacional ao causar ou permitir o contato de herbicidas tóxicos no territó- dessa zona não atinjam a área demarcada e, consequentemente, não afe- 283
rio equatoriano que causaram danos à saúde humana, à propriedade e ao meio tem o Equador.
ambiente; (ii) que a Colômbia o indenize pelos danos causados por tal prática, Nessa senda, apesar da inclinação do TIJ para um alargamento do prin-
cípio da prevenção (para os casos de incerteza científica), por conta do
40) WITNESS FOR PEACE. An exercise in futility: Nine years of fumigation in Colômbia… acordo realizado, deixou o TIJ de avançar na matéria, embora, pelos ter-
ob. cit., pp. 9/10. mos do acordo, vê-se a concordância da Colômbia em não afetar o terri-
41) “In May 2007, the United Nation’s special rapporteur on the right to health stated that ‘(t) tório equatoriano.
here exists credible and trustworthy evidence that aerial fumigation with glyphosate along
the Colombia-Ecuador boarder damages the physical healthy’ of the population”. Cfr. EL
COMERCIO. Relator de la ONU pide a Colombia suspender fumigaciones en frontera ecua-
toriana. 18 mai. 2007, apud WITNESS FOR PEACE. An exercise in futility: Nine years of
fumigation in Colômbia… ob. cit.,, p. 6.
44 )  TIJ. Aerial herbicide spraying (Ecuador v. Colombia), Aplication Instituting Proceed-
42) CDH, Informe del Relator Especial sobre el derecho de toda persona al ings… ob. cit., p. 26.
disfrute del más alto nivel posible de salud física y mental: Nota preliminar sobre la misión
al Ecuador y Colombia (Doc. A/HRC/7/11/Add.3), 4 mar. 2007. Disponível em: <www2. 45 )  TIJ. Aerial herbicide spraying (Ecuador v. Colombia), Order fixing of time-limits: Me-
ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/7session/A.HRC.7.11.Add.3_sp.doc  - 2008-03- morial and Counter-Memorial. 30 mai. 2008. Disponível em: <http://www.icj-cij.org/docket/
18>. Acesso em: 08 fev. 2013.  files/138/14629.pdf>; TIJ. Aerial herbicide spraying (Ecuador v. Colombia), Order fixing of
time-limits: Reply and Rejoinder. 25 jun. 2010. Disponível em: <http://www.icj-cij.org/docket/
43) Apesar de o TIJ ser detentor de uma Câmara Permanente especializada para assuntos ambi- files/138/15967.pdf>; TIJ. Aerial herbicide spraying (Ecuador v. Colombia), Extension of
entais desde 1993 (art. 26(1), do Estatuto do TIJ), esta questão não foi levada para a mesma. of time-limits: Rejoinder. Disponível em: <http://www.icj-cij.org/docket/files/138/16725.pdf>.
Isso se deve ao fato que, pelo art. 91(1) das Regras do TIJ, para que um caso seja submetido Acesso em: 08 fev. 2013.
a uma câmara especializada há a necessidade de consenso entre as partes, o que nos leva a
questionar o interesse dos Estados em resolver questões ambientais por meio de uma Corte 46 )  TIJ. Aerial herbicide spraying (Ecuador v. Colombia), Order Removal from list. 13 set.
especializada. Cfr. BORGES, Orlindo Francisco. Conflitos de Jurisdição no contencioso inter- 2013. Disponível em: < http://www.icj-cij.org/docket/files/138/17526.pdf>. Acesso em: 30 abr.
nacional ambiental... ob. cit., p. 13. 2014.

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tios lícitos cultivados por civis; (b) plantios ilícitos cultivados por civis, coop-
4) Ainda sobre a Colômbia: Abertura para o
tados ou não pelas forças revolucionárias; (c) plantios cultivados diretamente
reconhecimento de crimes internacionais por pelas forças armadas; (d) cultivos lícitos indígenas. Assim, ainda que os ataques
se direcionassem apenas e tão somente aos plantios de coca no país, não houve
violações ao Direito Humanitário 47
uma distinção dos plantios lícitos dos ilícitos, já demonstrando, em um primei-
ro momento, a ocorrência de ataques direcionados a alvos civis 49.
Como se pode observar, reconhecidos os riscos causados ao ambiente e à
Além disso, é o conceito de “participação direta nas hostilidades” que se apre-
saúde da população vizinha à zona afetada, medidas civis foram tomadas
senta como o elemento essencial na distinção dos objetivos militares dos civis
perante o TIJ. Isso não impede, todavia, que medidas criminais também se-
para fins de aplicação dos dispositivos supramencionados. Nesse contexto, os fa-
jam perquiridas em sede do Tribunal Penal Internacional (TPI), uma vez
zendeiros que cultivam coca poderão ser qualificados como participantes diretos
que tanto o Estatuto de Roma, quanto o Protocolo Adicional à Convenção
nas hostilidades, de acordo com as regras de direito humanitário internacional?
de Genebra II (PACG II), reconhecem como crime de guerra (em conflitos
Tendo em vista o posicionamento adotado pelo ICTY no caso Galić, não.
armados não-internacionais) os ataques direcionados à população civil em
Nesse caso, “participação direta nas hostilidades” foi definida como a prá-
geral e àqueles que não participem diretamente das hostilidades (art. 8º(2)
tica de atos de guerra que, por sua natureza ou propósito, estejam voltados a
e, I, do Estatuto de Roma e art. 4º(1) do PACG II), causando-lhes danos à
causar um dano pessoal ou material às forças armadas inimigas. Nesse senti-
sua saúde física e mental (art. 4º(2) a c/c art. 13, do PACG II) e destruindo
do, o plantio de coca desenvolvido no país, embora possa ser apontado como
lavouras e outros bens indispensáveis à sua sobrevivência (art. 8º(2) b, II, do
uma das formas de financiamento das atividades armadas locais, não poderá
Estatuto de Roma e art. 14, do PACG II).
ser considerada como participação direta nas hostilidades, justamente por não
Nesse pormenor, importante destacar algumas peculiaridades que deverão
284 possuir esse condão lesivo à parte inimiga. Na mesma linha argumentativa, o 285
ser observadas no caso para que se possa sustentar uma denúncia nesse sentido.
Interpretive guidance on the notion of Direct Participation in Hostilities, editado
Inicialmente, se faz importante esclarecer que a proibição penal do plan-
pelo CICV, reconheceu que estão protegidos pelo direito costumeiro como al-
tio de coca na Colômbia se dá apenas para quem detém mais do que 20 plan-
vos civis aqueles que trabalham os prestam serviços enquanto particulares para
tas, sendo reconhecida a licitude de seu cultivo para além dessa quantidade em
as forças armadas (v.g civis que trabalham dentro de uma fábrica de armas) 50.
comunidades indígenas, que atribuem um caráter sagrado e medicinal para a
Ora, ainda que os fazendeiros locais venham a comercializar as folhas de
planta 48. Nessa senda, a realidade local possui uma gama de situações: (a) plan-
coca cultivadas diretamente com as forças armadas revolucionárias, isso não

47) Acerca da discussão de crimes internacionais ambientais, Cfr. BORGES, Orlindo Francisco.
“Esverdeando” o Estatuto de Roma: Uma análise da tutela do ambiente pelo Tribunal 49)“There is no evidence that the Colombian government is making any attempts to find out which
Penal Internacional. FDUL: Lisboa, 2013. fields are being used by armed groups in order to show that the coca fields it targets for fumigation
are military objectives. In fact, the government failed to consult with indigenous populations about
48) “When Colombia ratified the U.N. Convention Against Illicit Traffic in Narcotic Drugs and Psy- fumigations, which is a violation of domestic law. The Constitutional Court, recognizing this fail-
chotropic Substances on June 10, 1994, it included a formal declaration stating that the criminal- ure in 2003, ordered the government to consult effectively and efficiently with indigenous popu-
ization of coca cultivation -must be harmonized ... taking into account the rights of the indigenous lations about coca eradication. By its failure to consult them and determine if the fields are linked
communities. In deciding that the declaration to the Convention was valid under Colombian law, to the armed conflict, Colombia is failing in its obligations to distinguish between military and
the Constitutional Court stated that Colombia recognizes the difference between the coca leaf and civilian objectives. Before spraying areas, the government should, at the very least, attempt to make
cocaine, and that indigenous communities use the coca leaf in ways that do not have negative effects. inquiries about the fields and assess whether they belong to the armed groups or to civilians”. Cfr.
The means employed by the government to fight drug trafficking should be sensitive to the cultural LANDEL, Morgane. Are aerial fumigations in the context of the war in Colombia a violation
identity of the indigenous communities that the constitution protects. In 2003, the Constitutional of the rules of International Humanitarian Law? In: Transnational Law and Contemporary
Court reiterated that indigenous communities had the right to maintain coca plantations because Problems... ob. cit., p. 508.
coca is a sacred plant for some indigenous populations; it is important for their livelihood as well
as for cultural and medicinal purposes” Cfr. LANDEL, Morgane. Are aerial fumigations in the 50) MELZER, Nils. Interpretive Guidance on Notion of Direct Participation in Hostilities un-
context of the war in Colombia a violation of the rules of International Humanitarian Law? In: der International Humanitarian Law. Genebra: ICRC, 2009. Disponível em: <http://www.
Transnational Law and Contemporary Problems... ob. cit., p. 498. icrc.org/eng/assets/files/other/icrc-002-0990.pdf>. Acesso em: 21 fev. 2013. p. 39.

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faz com que tais fazendeiros sejam reconhecidos pelo Direito Humanitário seria a degradação do ambiente e dos meios de subsistência das comunidades
Internacional como participantes diretos, a torná-los um alvo militar justificado. civis atingidas 53. Nesta segunda hipótese, destaca-se o caso das comunidades
Ainda que consideremos apenas a destruição das plantações ilícitas, as de Nariño e Putumayo, que segundo estudos da Consultoria para los Derechos
mesmas também não poderão ser consideradas um objetivo militar, uma vez Humanos y el Desplazamiento (CODHES), já registravam em conjunto o des-
que não trazem vantagem direta no conflito. A sua destruição teria apenas o locamento de 65.000 pessoas no ano de 2004.
condão de diminuir uma das supostas fontes de renda adotadas pelas forças Neste mesmo estudo, que identifica a pulverização de herbicidas como
armadas inimigas. Não obstante, como demonstrado acima, desde a implan- a 2ª principal causa de deslocamento forçado no país, há o registro de que
tação desta política de pulverização, os cultivos não reduziram, muito pelo os dados relativos a esta forma de deslocamento são manipulados negativa-
contrário, além de aumentarem se diversificaram para outras áreas, restando mente. Isso porque, os órgãos oficiais de assistência às pessoas deslocadas
clara a ausência de proporcionalidade no ataque, caso se reconhecesse tais não oferecem auxílio às vítimas que declarem terem sido deslocadas pela
alvos como sendo um objetivo militar. pulverização, contribuindo, dessa forma, para as cifras negras envolvendo as
Dessa forma, os ataques feitos por meio da pulverização de herbicidas vítimas da ação com herbicidas 54.
sobre os plantios de coca, ainda que ilícitos - por redundar em danos físicos
e mentais a pessoas não participantes diretas das hostilidades, bem como
por destruir os plantios lícitos - poderá ser entendido como uma violação ao her home and community and the right not to be deprived of his or her property by being forcibly
displaced to another location” In: Prosecutor v. Milosevic, IT-02-54-T, Trial Judgment, 16 jun.
art. 8º(2) e, I, do Estatuto de Roma. 2004, §69 apud HALL, Christopher K.Crimes against humanity - par.1(d). In: TRIFFTER-
Essa possibilidade se potencializa após recentes descobertas sobre o uso de ER, Otto (ed.), Commentary on the Rome Statute of the International Criminal Court… ob.
substâncias inflamáveis e corrosivas no composto pulverizado que são proibi- cit., p. 195.

286 das pelo mercado 51. Logo, além de militarmente injustificáveis, as substâncias 53) “Fumigations destroy licit and illicit crops alike, exacerbating poverty and hunger, and worsening 287
lançadas contra a sua própria população são tóxicas e ilícitas. displacement in the country with the largest displaced population in the world (According to the
CODHES, Consultoria para los Derechos Humanos y el Desplazamiento, there are currently four
Outra forma de responsabilização penal ambiental também pode ser in- million internally displaced individuals in Colombia)”. WITNESS FOR PEACE. An exercise
vestigada com base no art. 7º(1) d, do Estatuto de Roma, que reconhece como in futility: Nine years of fumigation in Colombia… ob. cit., p. 9.
crime contra a humanidade a transferência forçada de pessoas por meio de atos 54) “En el caso específico de las fumigaciones, pudimos comprobar que existe um subregistro total del
coercitivos 52. Nesse caso, os atos coercitivos para o deslocamento das pessoas, fenómeno, ya que las entidades encargadas de recibir las declaraciones y valorarlas para decidir si
ingresan o no al sistema de registro estatal, excluyen a personas que se desplazan por efectos de la
aspersión aérea. En otras palabras, se les niega el reconocimiento ofi cial de la vulneración de sus
51) Em matéria publicada pelo jornal colombiano El Espectador, registrou-se o fato dos rótulos derechos y, por tanto, de la atención del Estado y el derecho a la reparación. En entrevistas con fun-
dos produtos adquiridos e utilizados no país no ano de 2011 terem sido “inexplicavelmente cionarios y organizaciones que tienen trabajo con desplazados, la misión comprobó que el sistema
adulterados” para atender os requisitos de uso no país quando, na verdade, continham subs- único de registro no ingresa desplazados por fumigaciones, aún más, que hay irregularidades en
tâncias inflamáveis e corrosivas proibidas em solos norte-americano e europeu. Informou-se, la toma de la declaración en las que se evidencia que en casos no relacionados con fumigaciones, se
ainda, que os EUA retirariam o seu apoio ao Plano Colômbia se o país persistisse na aquisi- manipula la entrevista para llegar a la conclusión de uma relación causal entre el desplazamiento y
ção de herbicidas ilegais. Desde 2010 os EUA não compram diretamente herbicidas para o la aspersión aérea, para así rechazar los casos, principalmente los que provienen de Putumayo. Por
programa colombiano. Cfr. MARÍN CORREA, Alexander. El glifosato chino de la policía. ejemplo, se les pregunta ¿de donde viene? Al responder de Putumayo le preguntan ¿viene
In: EL ESPECTADOR. 26 ago. 2012. Disponível em: <http://www.elespectador.com/im- por fumigaciones? Si responde que no y refiere hechos como combates o amenazas, piden
preso/temadeldia/articulo-370286-el-glifosato-chino-de-policia>. Acesso em: 07 de fev. 2013. constancia de esas amenazas directas (cartas) y los combates generalmente no se aceptan
como causal, a menos que sea un desplazamiento masivo en el que esté afectada toda la
52) Christopher HALL explica que a transferência forçada de pessoas se distingue da depor- comunidad. En otros casos le preguntan ¿pero, en Putumayo están fumigando? Si la persona
tação apenas terminologicamente para distinguir os casos em que há a remoção de pessoas responde afirmativamente, se le excluye del registro y en la carta de respuesta aparece que las
de um país para outro daqueles em que o deslocamento ocorre dentro do mesmo Estado. fumigaciones “no se encuentran em las estipulaciones de la ley 387 o no están contempladas
Na prática, os elementos de ambos os crimes são os mesmos. Cfr. HALL, Christopher como causas del desplazamiento. [...] A pesar de lo anterior, las organizaciones que trabajan
K. Crimes against humanity - par.1(d). In: TRIFFTERER, Otto (ed.), Commentary on the la línea jurisprudencial con personas desplazadas que no han podido ingresar al sistema de
Rome Statute of the International Criminal Court… ob. cit., pp. 194/195. Nesse sentido, se registro único, afirman que de cada 5 personas no registradas, 2 vienen por fumigaciones: esa
posicionou o ICTY no caso Milosevic com base nos precedentes Sismic e Nicolic: “the values es la razón del rechazo. Esto significa que el gobierno desconoce su responsabilidad como
protected by both crimes are substantially the same, namely ‘the right of the victim to stay in his or agente causante de desplazamiento, así como el derecho de las personas afectadas por fu-

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O que o Brasil Pode Aprender a Partir da Experiência Jurisdicional Internacional? Orlindo Francisco Borges

Desse modo, verifica-se que em uma política voltada ao combate aos guer- foi atestada pelo órgão regulador nacional, como pela distribuição de sementes
rilheiros narcotraficantes da Colômbia, o Estado tem se utilizado de meios (OGM’s) resistentes a princípios ativos não atestados, capazes de incentivar o
desproporcionais aos objetivos militares pretendidos, podendo os agentes por uso de substâncias potencialmente tóxicas e, por sua vez, afetar diretamente a
detrás desse aparato organizacional ser alvo de investigação tanto do cometi- saúde e o meio ambiente não só de suas populações, mas dos países vizinhos.
mento de um crime de guerra, quanto um crime contra a humanidade. Isso Como observado pelo princípio da prevenção, a ausência ou a adoção
porque, o governo local dentro de um contexto de conflito armado: (i) utiliza de medidas deficitárias (em desconformidade com os procedimentos ins-
substâncias tóxicas (proibidas) nocivas à saúde e ao ambiente; (ii) dirigidas à tituídos para o afastamento do perigo à saúde e ao meio ambiente: leia-se,
população em geral, uma vez que não distingue as culturas lícitas das ilícitas ti- o controle da comercialização dos herbicidas conforme os exames de toxi-
das como objeto de intervenção; (iii) destruindo bens civis (plantações de ou- cidade) poderão redundar em responsabilização internacional, podendo o
tras culturas e as culturas lícitas não distinguidas) e; (iv) promovendo o deslo- gestor público encarregado desse munus (União Federal), vir a figurar como
camento interno de sua população. responsável solidário do particular que realizou um evento de significativo
impacto ambiental e à saúde da população.

H Conclusão: Para além da prevenção: O dever


de reparação e a abertura para o surgimento de de-
Não obstante, pelo princípio da soberania sobre os recursos sitos em seu
território e da responsabilidade de não causar danos a terceiros Estados e zo-
nas fora de sua jurisdição, verifica-se a imposição de um dever de cuidado para
mandas internacionais com os Estados vizinhos, de modo a impulsionar políticas domésticas de ges-
tão e controle de riscos ambientais (instrumentos de prevenção) e reconhecer
Tendo por base o caso da Pulverização Aérea de Herbicidas, em que a a possibilidade de responsabilização de um Estado por uma falha neste dever
288 Colômbia foi demandada pelo uso de glifosato na fronteira com o Equador, de cuidado capaz de gerar danos a terceiros Estados. 289
acompanhado da consolidação do entendimento que o Tribunal Internacional Logo, a não adoção de medidas preventivas e de controle acerca do uso e
de Justiça possui sobre a aplicação dos princípios da prevenção e da responsa- comercialização destas substâncias ou mesmo a permissão da continuidade de
bilidade de não causar danos a terceiros Estados/áreas fora de jurisdição, tem- sua comercialização depois de atestada a ausência de certeza quanto ao atendi-
se para o Brasil algumas questões que merecem especial atenção com o desen- mento dos padrões exigidos, abre espaço não apenas para a reparação de even-
rolar dessas ações civis públicas movidas pelo Ministério Público Federal, para tuais danos em foro nacional como, se vir a atingir zonas fora de jurisdição na-
além dos impactos econômicos advindos da suspensão da comercialização des- cional, impingir uma responsabilidade internacional do país.
tes produtos e da potencial responsabilização por danos causados à população Nesse último caso, poder-se-ia justificar a jurisdição do TIJ, de modo que o
com o uso destas substâncias, diante da confirmação de sua toxicidade. mesmo poderá vir a ser provocado a se manifestar e a avançar no mérito em re-
No Direito Internacional Ambiental, vê-se uma clara abertura virtual de lação aos pontos que o caso da Pulverização Aérea de Herbicidas na Colômbia
potenciais litígios em zonas de fronteira agrícola com outros países latinos deixou em aberto por conta de sua resolução pelas vias negociais: o papel da
em que o Brasil poderá ser demandado (destaque para a Bolívia, Paraguai, aplicação do princípio da prevenção diante de incerteza científica (precautio-
Uruguai e Argentina), não apenas pelo uso de substâncias cuja toxicidade não nary approach) no Direito Internacional do Ambiente.

migaciones a la reparación y mantiene invisibilizada la magnitud del desplazamiento en las


zonas donde aplica su política de seguridad. ACNUR por ejemplo, habla de un subregistro
de 4 mil a 8 mil personas en Nariño. También signifi ca que casi la mitad de las personas que
no se registran están desplazadas por efecto de las fumigaciones”. Cfr. CODHES, Informe
de la mision de observacion sobre los efectos del Plan Colombia en los departamentos de Nariño
y Putumayo, frontera colomboa-ecuatoriana. Dez. 2004. Disponível em: <http://www.cod-
hes.org/index2.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=53&Itemid=51>. Acesso
em: 23 fev. 2013, pp. 122/123

Direitos Humanos e Meio Ambiente Obra dedicada ao Instituto Terra


15
Em Defesa da Igualdade de
Responsabilização Penal entre
Pessoas Jurídicas de Direito
Público e de Direito Privado

Renata Machado Saraiva1


Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Sumário: Introdução. 1 A previsão normativa no Brasil – Constituição


Federal/88 e Lei nº 9.605/98. 2 A jurisprudência brasileira. 3.
A abordagem doutrinária. 3.1 Contrapondo argumentos avessos à
responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público. 3.2 Outros
problemas da responsabilização penal diferenciada entre entes coletivos
291
públicos e privados: (1) O desequilíbrio concorrencial (2) O estímulo a
relações simuladas e (3) Os casos de monopólio do Estado. Conclusão

1) M
 estranda em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, possui especialização em Direito Empresarial pela Pontifícia Universi-
dade Católica do Rio Grande do Sul. É atuante na advocacia criminal em Porto
Alegre/RS. Contato: renata.saraiva@wunderlich.com.br
Em Defesa da Igualdade de Responsabilização Penal entre
Pessoas Jurídicas de Direito Público e de Direito Privado Renata Machado Saraiva

H Introdução Constituição Federal brasileira de 1988, e a Lei dos Crimes Ambientais


(9.605/98) não preveem qualquer exclusão.
Em meio a (ainda muito) polêmica responsabilidade penal de entes coletivos, Na verdade, o legislador brasileiro, baseando-se numa política criminal ex-
convém delimitar a quais órgãos e sob que justificativas a norma penal se desti- pansiva de tutela de bens difusos, previu a responsabilidade penal ambiental
na. Se tomarmos como premissa a possibilidade de incriminação penal de pes- ampla de entes coletivos, sem qualquer especificação quanto à sua natureza.
soas coletivas (superados ou negligenciados os obstáculos teóricos contrários, A falta de determinação expressa do texto legal relegou à jurisprudência,
como a aplicação do princípio da culpabilidade) restará ainda por saber exata- caso a caso, o esclarecimento sobre os destinatários da norma. Contudo, e
mente contra que entes a imputação penal é legítima e necessária. apesar da importância prática desta tarefa atribuída ao Judiciário, são raros
Neste contexto, é evidente que a penalização recai sobre as pessoas jurídi- os julgados sobre a matéria, e raríssimas as condenações penais contra entes
cas da iniciativa privada, pois foi justamente nestas que se espelhou o modelo coletivos públicos.
de organização que tenta justificar o ingresso do instituto na teoria e na prá- Na doutrina, como costuma ser, encontramos escritos a favor e contra a
tica penal. Especificamente, falamos de um contexto organizacional comple- responsabilidade de entes coletivos de direito público, sendo que os principais
xo, hierarquizado, com distribuição de tarefas e de informações, características argumentos contrários resumem-se em quatro questionamentos: (1) Tendo os
comuns nas sociedades empresárias. Contudo, devemos atentar para o fato de entes públicos como fim primeiro e permanente a busca do “interesse públi-
que também no setor público inúmeros órgãos, na execução de suas tarefas, co”, podem se beneficiar de conduta criminosa, preenchendo, assim, um dos
adotam modelos muito próximos àqueles das organizações privadas, especial- critérios formais de responsabilização penal de pessoas coletivas? (2) Se o ius
mente quando com elas concorrem, adotando condutas potencialmente dano- puniendi é exclusividade do Estado, como se justifica a sua autorregulação/au-
sas a bens juridicamente tutelados, como é o exemplo do meio ambiente. topunição? (3) O Juiz quando condena criminalmente o Estado está se de-
292 Se partirmos da afirmação, portanto, de que o Estado, e qualquer uma clarando integrante de um órgão “criminoso”? (4) As penas hoje previstas são 293
de suas manifestações jurídicas, pode praticar condutas ilícitas, ou seja, adequadas às pessoas jurídicas de direito público? E neste caso, toda conde-
pode apresentar um agir criminoso, justificaremos a análise da sua possí- nação criminal contra um órgão público é revertida em desfavor da sociedade,
vel incriminação penal. Enquanto esta hipótese é textualmente rechaça- inviabilizando sua aplicação?
da em muitos cenários normativos – como em Portugal2, por exemplo - a A busca destas respostas é também a questão de fundo deste estudo, e o que
garante a importância do recorte na teoria da responsabilização penal dos en-
tes coletivos, com foco na esfera pública e naqueles entes privados dotados de
2) A partir da última reforma do Código Penal Português (lei 59/2007, de 4 de setembro), há
expressa exclusão da responsabilidade penal de entes públicos. O legislador português, espe- prerrogativas públicas.
cificando os atingidos pela norma (art. 11.º do Código Penal), restringiu a responsabiliza- O que nos impulsiona, de início, é saber que, para além das característi-
ção penal-ambiental a rol taxativo de entidades, deixando de fora, inclusive, aquelas privadas cas peculiares aos entes públicos, o papel que ocupam (e que devem ocupar)
instrumentalmente utilizadas pelo Estado na execução de serviços públicos. Sobre o tema,
vide: SERRA, Teresa. Responsabilidade penal das pessoas colectivas. Artigo de opinião publicado na tutela dos direitos fundamentais exige do direito um olhar diferenciado. O
no seminário Expresso, de 29/09/2007. Disponível em <http://o-meu-monte.blogspot.com. Estado, assim, assumindo atividades potencialmente perigosas ao meio am-
br/2007/10/responsabilidade-criminal-das-pessoas.html>> Acesso em abril de 2014. Outros
exemplos: (i) Na lei penal da Espanha, tradicionalmente rígida quanto ao princípio societas
delinquere non potest, a partir da LO 5/2010 introduziu no Código Penal a responsabilidade
criminal de pessoas jurídicas (art. 31.bis), com previsão elencada de penas (art. 33.7). O art. interesse constitucional, o Estado e entes equiparados que exerçam poderes públicos. Vide:
31.5 expressamente excluiu a responsabilização do Estado e equiparados, sob os argumentos RIONDATO, Silvio. Sulla responsabilità penali degli amministratori di società pubbliche, et de
de potestades públicas de soberania e/ou de prestação de servicios de interés económico general, publica societate quae delinquere potest In Rivista Trimestrale di diritto penale dell’economia.
exceto quando entidades criadas no intuito de iludir a eventual responsabilidade penal. Sobre anno XVIII.n.3.lugl-sett/05. CEDAM, 2005. p.791. (iii) Na França, a partir da lei 92-683, de
o tema, vide MUÑOZ CONDE, Francisco; LÓPEZ PEREGRÍN, Carmen/ GARCÍA 22 de julho de 1992, também o Estado foi excluído da responsabilização penal dos entes mo-
ÁLVARES. Manual de derecho penal médio ambiental. Valencia: Tirant lo blanch, 2013.pp. rais, conforme o art. 121-2, assim como as coletividades territoriais (municípios, departamen-
240/241. (ii) Na Itália a responsabilidade penal (formalmente: amministrativa per reato) foi tos e regiões), a menos que exerçam serviços públicos delegáveis. Vide: PICARD, Etienne,
incorporada no ordenamento pelo Decreto- Legislativo 231 de 8 de junho de 2001, que no La responsabilité pénale des personnes Morales de droit public: fondements et champs d’application
seu art.1, commi 1 e 2., também exclui, além das instituições que desenvolvem atividades de In Revue des societes,1993. p. 261.

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biente e em contextos concorrenciais com a inciativa privada, se por um lado Já a constitucionalidade, tomando o lugar da legalidade, cunhou com o signo
torna suas tarefas públicas mais eficientes, por outro, tem de revalidar constan- verde todo o ordenamento, as searas civil, administrativa e penal, os setores
temente a sua cota de responsabilidade naquilo que lhe é mais caro: os repre- públicos e privados.
sentados, na perspectiva dos seus interesses e principalmente dos seus direitos. Apesar da clara escolha político-criminal pela responsabilização das pes-
soas jurídicas, não foram poucas as ressalvas doutrinárias quanto à adoção
do instituto (até hoje ressonantes5), inclusive sobre qual modelo de previ-
são normativa deveria ser utilizado: se a tendência de integração dos tipos
1) A Previsão Normativa no Brasil – Constituição
a Códigos Penais; ou se através de uma legislação mosaico, com tipificações
Federal/88 e Lei N. 9.605/98 distribuídas em leis setoriais.
Optou-se pela forma segmentada, com o advento tardio – 10 (dez) anos
O mandado de incriminação de pessoas jurídicas surgiu no Brasil de carona após a promulgação da Constituição de 1988 – da lei 9.605/1998. Considerada
com a constitucionalização do meio ambiente como direito fundamental, as- por alguns como a pior lei já elaborada no país, a lei dos crimes ambientais
sim explicitado no art. 225 da Carta Republicana (1988): “Todos têm direito mostra-nos um excesso de tecnicidade e de brechas dogmáticas invencíveis,
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e como a tipificação de condutas de mera desobediência, de condutas de baga-
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletivi- telas e de condutas de mero desrespeito a normas regulamentares, sem falar
dade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações no injustificado excesso de tipos de perigo abstrato. Tudo isto gerando apenas
(…)”, indicando no seu correspondente § 3º que “(…) as condutas e atividades “resultados latentes”6, ou seja, sem efetivo aumento na proteção do ambiente.
consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas Dentre estas “brumas” da lei 9.605/98 está o art. 3º: “(...) as pessoas jurídi-
294 ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obri- cas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o dis- 295
gação de reparar os danos causados”. posto nesta lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu
Esta “consolidação democrática - política e do acesso à justiça”3 - de tute- representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou
la do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado deu-se após um benefício da sua entidade” .
longo período de hibernação letárgica, pois da promulgação da Lei de Política O artigo regulamentou o disposto na Constituição (art. 225, § 3º) e intro-
Nacional do Meio Ambiente (1981) até a reforma constitucional (1988) não duziu a responsabilidade penal de pessoas jurídicas no país, independentemen-
houve outra lei em matéria ambiental no país. Ademais, a constitucionaliza- te das sanções direcionadas às pessoas físicas. E se por um lado a lei penal foi
ção caracterizou um verdadeiro paradigma de legalidade ambiental, pois antes
dela as normas protetivas estavam distribuídas em leis infraconstitucionais4.
da poluição, e o Decreto 76.389, especificamente sobre a poluição industrial. Em 1976 surge
a Portaria do Ministério do Interior n. 13 que classificou as águas nacionais interiores, de
acordo com parâmetros de consumo, bem como dispôs sobre formas de controle de poluição.
3) BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Constitui- Apenas como referências, em 1940 o Código Penal é promulgado prevendo crimes como o do
ção brasileira. In CANOTILHO, J.J.Gomes; LEITE, José R. Morato. Direito Constitucional artigo 271, que tipificava, no âmbito da tutela ambiental, a poluição de água potável.
Brasileiro.3.ed.São Paulo: Saraiva, 2010.p. 87.
5) Em posicionamento contrário à interpretação constitucional pela possibilidade de respon-
4) Em 1934 surge o primeiro Código Florestal, (Decreto 23.793) substituído em 1965 pela sabilização penal de pessoas jurídicas, vide, por exemplo, REALE JUNIOR, Miguel. A res-
vigente lei 4.771. No mesmo ano é promulgado o Código de Águas (Decreto 24.643) e em ponsabilidade penal da pessoa jurídica. In PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel (cords).
1938, o Código de Pesca, (Decreto 794, substituído pelo hoje em vigor Decreto-lei 221/67). Responsabilidade penal da pessoa jurídica – em defesa do princípio da imputação penal subjeti-
Em 1967 o Decreto-lei 248 cria a Política Nacional de Saneamento Básico e, na mesma data, va.4.ed.(rev). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.pp. 353-355./BITENCOURT, Cezar
o Decreto-lei 303 cria o Conselho Nacional de Controle da Poluição Ambiental, junto ao Roberto; MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo:
Ministério da Saúde. Todavia, em 1967, com a aprovação da lei 5.318 que criou a Política Saraiva, 2013. pp.249-259.
Nacional de Saneamento Básico ambos decretos foram revogados. Só em 1973 novo órgão
é criado, a chamada SEMA – Secretaria Especial de Meio Ambiente – a partir do Decreto 6) Como denuncia MIGUEL REALE JÚNIOR em prefácio à obra de HELENA LOBO DA
n. 73.030 – junto a qual funcionava o Conselho Consultivo do Meio Ambiente – CCMA. COSTA, que se posiciona no mesmo sentido. Vide: COSTA, Helena Lobo. Proteção penal
Em 1975 dois diplomas legais importantes são expedidos: o Decreto-lei 1.413, sobre controle ambiental – viabilidade, efetividade – tutela por outros ramos do Direito. São Paulo: Saraiva, 2010.

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minimamente clara em indicar critérios objetivos (i. por decisão de represen- de incriminar penalmente pessoas jurídicas de direito público.11
tante legal ou contratual, ou do órgão colegiado; ii. no interesse ou benefício da Nos julgados dos tribunais de segundo grau, embora não encontremos
entidade), por outro lado, deixou em aberto a quem se destinava, precisamente, condenação contra o Estado ou ente equiparado, alguns trechos merecem
quais as pessoas jurídicas estavam sujeitas à incriminação penal. destaque. Vejamos.
Lembremo-nos que a organização administrativa é dividida no Brasil en- Em âmbito federal, a extração de recursos minerais para uso em obras pú-
tre uma administração direta (União, Estados-membros, Distrito Federal e blicas sem licença ambiental, como na construção de estradas, é objeto recor-
Municípios) e outra indireta (autarquias, fundações e agências reguladoras) 7. rente dos recursos encaminhados por municípios aos tribunais regionais12. O
Havendo, ainda, as empresas paraestatais que dispõem de capital público, par- entendimento adotado por maioria é de atípica da conduta de extração do mi-
cial - sociedades de economia mista - ou exclusivo – e as empresas públicas, nério sem licença ambiental pelo órgão público, desde que comprovado o ob-
que mantêm personalidade de direito privado, pois criadas para a consecução jetivo de uso em função do interesse público, como por exemplo na constru-
de atividades econômicas alheias à administração pública.8 ção de vias para trafegabilidade. A permissibilidade legal estaria disposta no
Apesar desta multifacetada organização político-administrativa, a lei penal parágrafo único do art. 2º (Código de Minas), introduzido pela lei 9.827/9613.
não esclareceu a quais entes coletivos destinava-se e, assim, coube à doutrina e No julgamento de um destes casos, refere o voto divergente que a licença
à jurisprudência a tarefa de fazê-lo. As pessoas jurídicas de direito privado por ambiental exigida no art. 55 da lei 9.605/98 está relacionada ao preceito cons-
evidente estavam incluídas na descrição da norma. Já às pessoas jurídicas de titucional do art. 225, e que toda a atividade que se utiliza de recursos ambien-
direito público restou o limbo hermenêutico. tais (como a construção de estradas) exige licença, emitida por órgão com-
petente. Por este argumento concluiu o magistrado: “(...) não percebo existir
princípio, norma ou preceito legal, com aptidão para afastar a responsabilidade
296 criminal do agente público ou político – tampouco do Município – que utiliza 297
2) A Jurisprudência Brasileira
substância mineral pertencente à União, quanto a eventuais infrações ambien-
tais decorridas dessa conduta”. 14
Enquanto o Superior Tribunal de Justiça há bastante tempo decide sobre a
responsabilidade penal de pessoas jurídicas9, o Supremo Tribunal Federal, ór-
gão responsável pelo controle de constitucionalidade no país, apenas no ano 11) Apenas de forma muito sutil o tema já foi tratado pelo Superior Tribunal de Justiça, sem
qualquer aprofundamento, no curso de outros debates, como no caso do Recurso Especial
de 2012 posicionou-se sobre a matéria – inclusive para relativizar a Teoria da 929664/SC, no qual a Min. Laurita Vaz simplesmente menciona a complexidade da maté-
Dupla Imputação até então aplicada pelo primeir10. Contudo, até hoje nenhum ria, sem desenrolar qualquer conclusão. Recurso Especial 929664/SC, Rel. Min. Laurita Vaz,
dos Tribunais Superiores pronunciou-se especificamente sobre a possibilidade decisão monocrática de 01/02/11.
12) Neste caso a extração (de cascalho) deu-se em área de Unidade de Conservação Ambien-
tal (Área de Relevante Interesse Ecológico – ARIE – Serra da Abelha), causando dano
concreto ao ambiente: TRF4 – PIMP 2007.04.00.020334-3, Rel. Des. Néfi Cordeiro. j.
7) MENDES, Samuel Santos Felisbino. A responsabilidade penal da pessoa jurídica de direito pú- 18/09/08. Outros exemplos: TRF4, Apelação Criminal 2003.72.02.000245-9/SC, Sétima
blico por dano ambiental. In VILELA, Gracielle; RIEVERS, Marina (orgs). Direito e meio Turma, Des. Rel. Taadaqui Hirose, j. 21/11/2006; TRF4, Ação penal n. 200004010891195,
ambiente – reflexões atuais. Belo Horizonte: Fórum, 2009.p. 329. 4a Seção, Des. Rel. José Luiz Borges Germano da Silva, j/ 17/06/2004; TRF4, Inquérito n.
200204010372656, 4a Secção, Des. Rel. Vladimir Passos de Freitas, j. 18/12/2002.
8) SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica.3.ed.Rio de Janeiro:
Campus Jurídico, 2011.p.187. 13) “(…) Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica aos órgãos da administração
direta e autárquica da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, sendo-lhes
9) Vide, por exemplo: Recurso Especial 610114/RN, Rel. Min. Gilson Dipp, Quinta Turma, j. permitida a extração de substâncias minerais de emprego imediato na construção civil, defi-
17/11/2005. nidas em Portaria do Ministério de Minas e Energia, para uso exclusivo em obras públicas
por eles executadas diretamente, respeitados os direitos minerários em vigor nas áreas onde
10) Recurso Extraordinário em Agravo Regimental 62858/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, devam ser executadas as obras e vedada a comercialização.”
j.17/02/2012. Com publicação no informativo do Supremo Tribunal Federal n. 639. Reafir-
mando este posicionamento no ano seguinte em Agravo Regimental em Recurso Extraor- 14) Tribunal Regional Federal da 4a Região (TRF4), Inquérito Policial 2007.04.00.009259-4/
dinário 548181/PR, Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, j.14/05/2013. RS, Rel. Des. Néfi Cordeiro, j. 18/07/2008.

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Apesar do voto pela possível incriminação do município nos casos em que ção e atuação preventiva na preservação ambiental e, por esse motivo, também
há dano ambiental, a matéria atinente à extração de minérios é pacificada no devem ser réus em eventual ação penal. O dever do Estado de fiscalizar e pre-
sentido de desnecessidade da licença de extração quando está em jogo a perse- servar o ambiente não implica que as pessoas jurídicas de direito público figu-
cução do interesse público. rem no pólo passivo do processo penal. De qualquer modo, nada impede que
Em outro caso, o mesmo tribunal recebeu denúncia criminal contra todos eventual atuação dolosa ou culposa dos agentes estatais seja apurada, até por-
os sócios de uma empresa coureira, mais a prefeitura municipal, mais o atual e que a investigação dos fatos ainda está em andamento (…)”18.
os dois ex-prefeitos. Estes últimos e o órgão público teriam permitido a manu- Nos tribunais regionais estaduais também é frequente o posicionamento
tenção de vala de curtume (resíduo da produção coureira) fora dos limites da contrário à sanção criminal de entes de direito público. Vejamos dois exemplos
respectiva licença ambiental, incidindo nas omissões previstas no art. 68, caput, ilustrativos do Tribunal de Justiça do Paraná.
da lei 9.605/98. Inclusive porque suas condutas estavam em desconformidade Em inquérito policial, o município de União da Vitória, juntamente com
com os pareceres técnicos que alertavam a poluição do solo em razão dos hi- o prefeito, foram investigados pela prática de destruição de vegetação em área
drocarbonetos liberados na vala pelo curtume. protegida (art. 38 e 41 da lei 9.605/98). À parte dos fatos, o relator discorreu
Ainda em fase de instrução, em dezembro de 2011 a peça acusatória foi re- sobre a impossibilidade de punição criminal das pessoas jurídicas da adminis-
cebida, o que nos que demonstra, pelo menos em termos de legitimidade pro- tração direta, detentoras de capacidade política, como no caso dos municípios.
cessual, a aceitação da Corte (Tribunal Pleno do TRF da 4ª Região) pela res- Para tanto, referiu como ilógico “(...) sustentar que a prática de crimes ambien-
ponsabilização dos entes coletivos de direito público. 15 tais possa ser realizada no ‘interesse’ ou em ‘benefício público’ da coletividade”.
Em outro caso, estando sob análise o recebimento de denúncia por crime Disse, ainda, que conceber “(...) a possibilidade da existência de interesse esta-
de dano (art. 40, lei 9.605/98) contra o prefeito e os dois ex-prefeitos do mu- tal ou benefício público com o cometimento de uma infração (...) será negar o
298 nicípio de São José do Barreiro, por terem, em tese, escavado 200 metros cúbi- próprio Estado Democrático de Direito”. Argumentou com base na exclusi- 299
cos de terra do Parque Nacional da Serra da Bocaina (unidade de conservação va titularidade estatal do ius puniendi que “(...) não há como admitir-se que o
de proteção integral), para depósito em leito de estrada. Em voto vencido, diz Estado seja auto-responsabilizado penalmente”. E como terceiro argumento,
a Desembargadora que “(...) a despeito da controvérsia, filio-me ao entendi- referiu a impossibilidade de aplicação das penas previstas às pessoas jurídicas
mento que admite a prática de crime ambiental por pessoa jurídica de direi- como sanções penais ao Estado: (i) o eventual pagamento de multa seria re-
to público, estando abrangida esta hipótese pelo art. 3º da lei 9.605/98 (...)”. vertido em favor do próprio ente, num tipo de remanejo orçamentário; (ii) as
Estava em caso a possibilidade de conversão do julgamento em diligência para penas restritivas de direitos não poderiam ser impostas diante dos princípios
aditamento da denúncia, diante da ausência de indícios mínimos de autoria. da continuidade e da eficiência do serviço público, e diante do prejuízo que a
Por inépcia, contudo, a inicial não foi recebida16. suspensão parcial ou total destas atividades acarretaria à comunidade.
Anos antes a mesma Corte decidiu em sentido oposto ao analisar a compe- Nestes termos, o julgado conclui quanto à responsabilidade penal que “(...)
tência da justiça federal em procedimento que investigava crimes em área de na esfera pública somente é razoável permitir seu alcance às pessoas jurídicas
proteção permanente (art. 48, lei 9.605/9817),especificamente, o reservatório de direito público que operem como entidades autônomas e tenham ativida-
artificial que abastecia a Usina Hidrelétrica de Água Vermelha: “(…)Descabe de comercial, a exemplo das empresas públicas, as quais, circunstancialmente,
o argumento do recorrido de que os órgãos públicos têm o dever de fiscaliza- podem ter interesses comerciais conflitantes com os interesses da sociedade”.
Restando para os demais casos, apenas as penas das pessoas físicas envolvidas.19
O mesmo tribunal rejeitou denúncia contra o município de Faxinal que
15) Ação penal n.º 2009.04.00.002578-4/RS, TRF4, 4a Seção, Des. Rel. Sebastião Ogê Muniz.
16) TRF3, Inquérito Policial nº 0001286-55.2009.4.03.6118/SP (2009.61.18.001286-5/SP, 18) TRF3, Recurso em Sentido Estrito n. 00015659620044036124, Quinta Turma, Des. Rela-
Des. Relator Carlos Muta, publicado em 17/02/2012. tor Andre Nabarrete, j. 10/10/2005.
17) “Art. 48: Impedir ou dificultar a regeneração natural de florestas e demais formas de vegeta- 19) Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) – Inquérito Policial 7565039 PR 0756503-9, Segun-
ção: Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa”; da Câmara Criminal, Rel. Des. José Maurício Pinto de Almeida, j. 28/03/2011.

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descrevia crime contra floresta de preservação permanente, sob o argumento vas distintas: com relação aos entes coletivos de natureza pública e com relação
da impossibilidade de responsabilização penal do ente público. “Entendeu-se aos entes coletivos dotados de poderes públicos. Os entes coletivos de nature-
que em casos de dano ambiental, os responsáveis penais são os agentes que au- za privada, ainda que em alguns casos disponham exclusiva ou parcialmente
torizam a prática do ato e que, se admitida a responsabilidade penal das pes- de capital público22, fogem do debate proposto, porque ao não se confundirem
soas jurídicas de direito público, haverá punição da sociedade e dos municípios com o Estado em suas funções, são abarcados pela teoria geral da responsabi-
como um todo, uma vez que a própria coletividade arcaria com as despesas”.20 lidade penal de pessoas jurídicas.
Nesse breve apurado de exemplos pincelados da jurisprudência, o que per- Assim, verificando em que consiste o primeiro argumento contrário à
cebemos é que, seguindo o branco legislativo da lei 9.605/98 e da Constituição punição criminal de entes coletivos públicos, autores como GUILHERME
(art. 225, § 3º), a questão sobre quais entes coletivos podem ser autores de PURVIN DE FIGUEIREDO e SOLANGE TELLES23 e JORGE DOS
delitos está longe de ser solucionada pelo Judiciário. A falta de julgados que REIS BRAVO24, referem que estes sujeitos são caracterizados pelo fim que
se debrucem sobre o tema (conforme pesquisas virtuais21), especialmente nos perseguem, ou seja, toda a sua “conduta” rege-se pela prossecução de um “inte-
Tribunais Superiores, é resultado tanto do receio dos acusadores em investigar resse público”25, e em respeito ao princípio de legalidade que orienta e legitima
e denunciar órgãos públicos, quanto das inúmeras hipóteses de arquivamento a ação administrativa pública, somente as atividades “que o direito descreve ou
dos processos sem julgamento de mérito, por questões meramente processuais, consente”26 prestam à sua persecução.
o que impede que a matéria seja debatida pelos Julgadores e, quiçá, solucionada. Diante desta perspectiva, é evidente o paradoxo quando a mesma condu-
ta que persegue o “interesse coletivo” pode ser caracterizada como criminosa.
Contudo, a expressão “interesse público” não se reveste de sentido “mági-
co” ou oco que possa justificar qualquer comportamento da Administração
3) A Abordagem Doutrinária
300 301

3.1) ContrapoNDO argumentos avessos à responsabilidade


22) No Brasil, a Petrobrás e o Banco do Brasil são exemplos de sociedades de economia mista.
penal das pessoas jurídicas de direito público Portanto, embora parte do seu capital seja público, sua natureza é de direito privado.
23) FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin; SILVA, Solange Teles da. Responsabilidade penal
A partir dos textos normativos e da jurisprudência, em ajuste com algu- das pessoas jurídicas de direito público na Lei 9.605/98 In Revista Brasileira de Ciências Cri-
mas posições doutrinárias, podemos deduzir quatro argumentos que colo- minais. ano 7. n.25 (jan-mar/99).1999. p. 132.
cam em xeque a responsabilidade penal de entes coletivos públicos: (a) o 24) BRAVO, Jorge dos Reis. Direito Penal dos Entes Colectivos – ensaio sobre a punibilidade de
interesse público como fim presente em todo o agir dos entes públicos ou pessoas colectivas e entidades equiparadas. Coimbra: Editora, 2008.p.179.
dotados de prerrogativas públicas; (b) a exclusividade do ius puniendi esta- 25) Neste sentido, os dizeres de MARCELLO CAETANO quando dos seus comentários sobre
tal impeditiva de uma autoincriminação; (c) a estigmatização das sanções a contratação pública: “Mas temos sempre posto em relevo que o interesse público não é
penais; (d) e a inadequação das penas previstas às pessoas coletivas quando um interesse que possa considerar-se próprio da Administração, de que ela disponha como
um particular dispõe aquilo que só a ele diz respeito: por isso distinguimos já, nas pessoas
aplicadas a entes públicos. jurídicas de direito público, entre os seus interesses pessoais de conservação e expansão, e os
A análise de cada um destes argumentos deve ser feita em duas perspecti- transpessoais, que são do público, ou, se se preferir, da colectividade (...) O interesse público
é, em relação à Administração, uma ideia transcendente, que não depende dela, pelo contrá-
rio, exerce sobre ela o seu império. Desde que a colectividade exija, por virtude de transfor-
20) TJPR – Recurso em Sentido Estrito 3085370 PR 0308537-0, Segunda Câmara Criminal, mações económicas, técnicas, morais ou simplesmente políticas, que os serviços administra-
Rel. Juiz Conv. Rui Portugal Barcellar Filho, j. 16/11/2006. tivos tomem outro rumo, o caráter instrumental destes, como meios directos ou indirectos
de satisfação das necessidades colectivas, impõem adaptação”. Vide: CAETANO, Marcello.
21)Em site eletrônico <<www.jf.jus.br>> que agrega a jurisprudência unificada de todos Tribu- Princípios fundamentais do Direito Administrativo.Coimbra: Almedina, 1996. p. 183.
nais Federais do país, e também no site de pesquisa ampla de jurisprudência <<jusbrasil.com.
br>>, não se encontrou qualquer julgado que condenasse criminalmente pessoas jurídicas de 26) FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin/ SILVA, Solange Teles da. Responsabilidade penal
direito publico. das pessoas jurídicas de direito público (...).p.131.

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Pública27, exige na verdade, bastante esforço por parte dos operadores jurí- do sua tarefa fiscalizadora de cumprimento da lei ambiental34), o Estado pode
dicos na sua delimitação. Se é certo que só na lei está a base desta interpre- cometer (e comete) crimes ecológicos.
tação28, “(...) nem o legislador está completamente ‘livre’ para definir sozi- Notemos que um dos requisitos à punição de pessoas coletivas é que o ilí-
nho estes conteúdos; menos ainda o Executivo e o Judiciário na hora de sua cito ocorra em “benefício do órgão”. Segundo GUILHERME PURVIN afir-
atualização”. Logo, a ideia de “interesse público” pressupõe uma tarefa per- mar esta possibilidade seria como “(...) negar o próprio Estado Democrático
manente de atualização, de ponderação29. de Direito”, porque o Estado jamais se beneficiaria de um crime. O julgado re-
Na temática ecológica, não há dúvidas que esta ponderação envolve a pre- ferido na nota de rodapé 20 apontava no mesmo sentido.
venção e na punição de danos ambientais30. E vejamos que não se trata de Segundo este raciocínio, quando for identificada a prática criminosa do ór-
mera intuição, mas sim de mandamento constitucional31. Como direito funda- gão com poderes públicos, os agentes envolvidos é que devem ser punidos por-
mental, o meio ambiente ecologicamente equilibrado demanda um dever-agir que agiram no desvio de suas finalidades35, não o órgão, pois jamais seria bene-
protetivo por parte dos indivíduos, da sociedade e do Estado, nas suas diver- ficiado com a conduta ilícita.
sas ramificações (art. 225, CF), e como missão de natureza pública, afirma-se Acontece que se analisarmos os demais julgados indicados concluiremos,
como substrato do que se desenha por interesse público, traduzindo a prática ao contrário, que é sim possível um órgão público se beneficiar de situações cri-
de ações, jurídicas e materiais, que visem à tutela ambiental32. minosas. O que ocorre tanto pelo desvio de finalidades públicas, quanto na má
Ademais, mesmo que o Estado e seus entes equiparados nunca estejam escolha das alternativas disponíveis, quando é preterido o ambiente a outros
originariamente inclinados ao cometimento de crimes, fato é que em inú- interesses, tanto na destinação diversa de verbas angariadas para fins ambien-
meras situações os praticam. Especialmente quando atuam em contextos tais, como quando o Estado não é preventivo e não dimensiona tecnicamente
férteis à produção de danos/perigos ambientais e quando estão em debate suas condutas (não promove estudos de impacto ambiental ou licenciamentos
302 outros interesses (também sociais)33. ambientais, por exemplo). 303
Assim, seja como agente direto (Estado-Empreendedor, envolvido na No fundo, se dos particulares são exigidas incontáveis condutas preventivas
construção de empreendimentos hidrelétricos, hidroviários, rodoviários, de ae- e protetivas sob pena da resposta criminal, não nos soa correto que o Estado e
roportos, de portos, etc.); seja como degradador-conveniente (quando apoia/ seus entes equiparados, especialmente aqueles de natureza privada com prer-
legitima projetos que agridem o ambiente, como na expedição de licenças e de rogativas públicas, sejam penalmente eximidos destas obrigações. Nem enten-
autorizações); seja como degradador-omisso (descumprindo ou negligencian-

34) BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Consti-


tuição brasileira. (...).p.135.
27) KRELL, Andreas. Interesse publico (primário) e interesses difusos no direito ambiental In Revis-
ta de Direito Ambiental.ano 2011.n.63.p.14. 35) Como ensina ROGÉRIO SOARES, em algumas situações, os agentes públicos poderão
atuar em benefício dos órgãos, mas em situações de falsa necessidade pública, quando o agente
28) SOARES, Rogério Guilherme Ehrhardt. Interesse público, legalidade e mérito. Coimbra: Dis- mal avalia os interesses propostos pelo legislador (convencido “da presença da uma necessidade
sertação de Doutoramento em ciências político-econômicas da Faculdade de Direito da pública real, e, todavia, querer usar os poderes concretos que por esse facto a lei pôs ao seu alcance,
Universidade de Coimbra, 1955.p.82. para conseguir um resultado diferente da satisfação do interesse público”). O poder público aqui
29) KRELL, Andreas. Interesse público (primário) e interesses difusos no direito ambiental (…).p.28. atua fora dos seus fins, ainda que dentro dos limites da lei. Ou, ainda, num contexto de des-
vio de poder (“(…) se se demonstrar que a Administração se serviu dos poderes discricionários para
30) MENDES, Samuel Santos Felisbino. A responsabilidade penal da pessoa jurídica de direito prosseguir interesses (público ou privados) diferentes daqueles que a lei tinha em vista ao conceder-
público (...).p.332. lhe tal competência discricionária o tribunal anulará o acto praticado por desvio de poder subjetivo.
A dificuldade neste caso reside, porém, na prova de que a Administração se motivou por interesses
31) Na Constituição brasileira de 1988, vide os artigos. 23 e 225. diferentes daqueles que, segundo a lei, a deveriam animar”). Nota-se que o desvio de poder
32) GOMES, Carla Amado. Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de ocorreria quando o agente (i) mal julgando um fim ilegal como legal, por ele se guiasse; e
protecção do ambiente. Coimbra: Editora, 2007.p.131. também quando (ii) sabendo da ilegalidade do fim, adotasse-o. Pois o que está em jogo no
fundo é a não consecução pelo ente coletivo do interesse específico típico, a não realização
33) Como nos casos acima referidos em que os Municípios escavam recursos minerais para do fim da norma. Vide: SOARES, Rogério Guilherme Ehrhardt. Interesse público, legalidade
utilizá-los na construção de estradas, ou seja, para obras de interesse público. e mérito. (...).pp.168-177.

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demos que os agentes públicos ajam de maneira criminosa e estejam legalmen- incriminação dos entes estatais, pois “(...) tendo o Estado o monopólio do di-
te escudados pela imunidade do respectivo ente ou pela dificuldade de provar reito de punir, não deve sancionar-se a si próprio, perspectiva muito exagerada
a individualização da conduta, barreira típica em contextos complexos como que levaria a ideia às raias do absurdo”40.
aqueles das organizações coletivas, públicas ou privadas.36 Também assim são as palavras de Jorge dos REIS BRAVO, “(...) o Estado
Significa dizer que o Estado e seus órgãos têm a obrigação de sopesar a enquanto, aparelho politicamente legitimado para deter o monopólio do ius
questão ambiental nas suas escolhas, justamente em nome do interesse públi- puniendi, converter-se-ia – admitindo-se a sua punibilidade – em órgão auto
co, o que “(...) desde logo estabelece um dos maiores argumentos favoráveis a sancionador, o que seria de todo inédito, revelando de uma <<esquizofrenia
responsabilização”37 do Estado e de seus agentes quando atuam em confron- conceptual>> de contornos inexplicáveis”41.
to com o ambiente. Reverberando a ideia de que “(...) responsabilizar penal- O argumento nos indica, todavia, uma ideia antiquada de sacralização do
mente todas as pessoas de direito público não é enfraquecê-las, mas apoiá-las Estado42 como insuscetível de correções, especialmente quando a própria lei,
no cumprimento de suas finalidade”38, digamos do próprio interesse público. emanada do Estado pelo Legislativo, é constantemente sujeita ao controle de
Nas últimas décadas modificaram-se a função pública e a maneira como as constitucionalidade43 pelo Judiciário. O fundamento se choca, ainda, com o co-
tarefas públicas são executadas, tanto na forma quanto no conteúdo. A diferen- mando constitucional de ampla proteção do meio ambiente como direito fun-
ça funcional entre a função pública e a função privada, e a diferença orgânica damental, ou seja, como limite ao próprio poder de polícia.44 45
entre um órgão público e um órgão privado não justificam em si qualquer dife- No caso brasileiro, a Constituição traduz em dever de punir todas as con-
rença no tratamento jurídico. Especialmente no âmbito das responsabilidades. dutas atentatórias ao meio ambiente, inclusive na seara penal, “(...) daí que ao
Tanto o direito público quanto o direito privado evoluíram no sentido de am- Estado não resta mais do que uma única hipótese de comportamento: na for-
pliar os deveres dos sujeitos/órgãos públicos e, no mesmo compasso, aumentar mulação de políticas públicas e em procedimentos decisórios individuais, op-
304 a proteção dos cidadãos39, do que a função e a natureza orgânica destes entes tar sempre, entre as várias alternativas viáveis ou possíveis, por aquela menos 305
não bastam mais à exclusão de responsabilidades criminais, embora se man- gravosa ao equilíbrio ecológico, aventanda, inclusive, a não ação ou a manu-
tenham como critérios de caracterização e que, em análise com o todo, devem tenção da integridade do meio ambiente pela via de sinal vermelho ao empre-
ser levados em conta. É nisto, especialmente, que falha o argumento apontado. endimento proposto. É desse modo que há de ser entendida a determinação
O segundo argumento declara que o poder de punir exclusivo do Estado constitucional de que todos os órgãos públicos levem em consideração o meio
não permite sua autoincriminação. Argumento, no todo, mitigado em rela-
ção aos entes de direito privado com prerrogativas públicas. Segundo Sérgio 40) SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica.(...).p.186.
Salomão SHECAIRA, esta seria inclusive a justificativa mais sólida contra a
41) BRAVO, Jorge dos Reis. Direito Penal dos Entes Colectivos (...).p.181.
42) MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro (...).p.747.
36) Sobre modelos de edificação da responsabilidade criminal de pessoas colectivas que dispen-
sam “a imputação de um fato ilícito criminal a algum membro dos órgãos sociais, ou até a 43) PICARD, Etienne, La responsabilité pénale des personnes Morales de droit public: fondements et
algum trabalhador subordinado, para fundar a responsabilidade criminal da própria pessoa champs d’application In Revue des societies,1993. p.18.
colectiva”, vide MENDES, Paulo de Sousa. Vale a pena o direito penal do ambiente. MEN- 44) “(...) mas também porque os direitos e liberdades fundamentais participam agora, do próprio
DES, Paulo de Sousa. Vale a pena o direito penal do ambiente?Lisboa: Associação Académica conceito de ordem pública e constituem limite essencial e intrínseco a toda actividade de
da Faculdade de Direito de Lisboa, 2000.pp.22-24. polícia”. Vide: GOMES, Carla Amado. Risco e modificação do acto autorizativo concretizador
37) MENDES, Samuel Santos Felisbino. A responsabilidade penal da pessoa jurídica de direito (...).p.249.
público (...).p.332. 45) Sobre a modificação da intervenção estatal diante da “questão ecológica”: “A complexidade
38) MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 18.ed. rev, atual e ampl. e dinâmica das situações sobre que o Estado tem de intervir por força da ‘questão ecológica’, a di-
São Paulo: Malheiros, 2010.p.747. mensão de acaso instalada na acção e a falta de confiança nas relações de causalidade introduziram
incerteza na acção estadual. A simplicidade do Estado tradicional, em especial, o seu modelo de
39) VERVAELE, J. A. E. La responsabilidad de y en el seno de la persona jurídica en Holanda. polícia regulativa e de direito de polícia, que suportava a acção administrativa agressiva, mostra-se
Matrimónio entre pragmatismo y dogmática jurídica. In Revista de Derecho Penal y Crimino- incapaz de fazer frente à realidade”, vide GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O lugar do direito
logía.2.v.n.1.1998.p.182. na proteção do ambiente. Coimbra: Almedina, 2007.p.245.

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ambiente em suas decisões (art. 225, caput e parágrafo 1º, CF), imbuindo cada totalmente superada pela doutrina e pela jurisprudência, inclusive com a res-
uma das suas missões primárias – não por opção, mas por obrigação – da tutela ponsabilidade objetiva do Estado em algumas situações de risco ambiental. A
ambiental. No Brasil, o desvio deste dever caracteriza improbidade adminis- ideia de ouro é: o Estado de Direito responde por seus atos53.
trativa e infrações penais e administrativas”46. Admitir o Estado, ou qualquer ente público, como penalmente responsável
Sendo assim o próprio Estado de Direito só se perfectibiliza se for per- não faz do órgão um “delinquente”. E mais: “(...) a existência de um Estado
meável, se subordinar-se à lei e também ao controle da sua legalidade, o que criminoso, que pratica um ilícito criminal, não transforma a totalidade dos
traduz invariavelmente um controle jurisdicional, e intitula o Estado e seus funcionários públicos em agentes criminosos”54.
entes derivados como “sujeitos”47 de direito. Esta submissão do Estado ao Santiago MIR PUIG diz que a função do direito é a de “(…) asegurar la
direito ocorre em três planos distintos: “autonomia dos cidadãos juridica- existencia de la sociedad y sus intereses”, sendo que a isto contribui o direito penal “in-
mente reconhecida através de liberdades e direitos fundamentais perante o terponiendo los medios más enérgicos para evitar las conductas que comprometen de
Estado; Estado criado como pessoa jurídica e, logo, detentora de direitos e forma más grave aquellos fines sociales”55. Logo, e desde já de um ponto de vista
deveres no seu relacionamento com os cidadãos; organização do poder do da política criminal, é necessária a punição das pessoas jurídicas públicas quan-
Estado fundada na divisão de poderes e no estabelecimento do seu funcio- do agem de forma comprovadamente ilícita56.
namento segundo normas jurídicas com vista a melhor garantir as liberda- Nunca quisemos o mercado empresarial formado por “criminosos” e nem
des e os direitos fundamentais dos cidadãos”48. por isto deixamos de considerar as pessoas jurídicas da iniciativa privada passí-
Não fosse assim, sentido algum teria a reconhecida autonomia dos tribu- veis de resposta penal. Portanto a lógica do terceiro argumento não se sustenta,
nais, submetendo à Justiça Estado e cidadãos49. O argumento, como antecipa- pois não é o rótulo que a sanção carrega que determina sua (des)necessidade,
do, falha nestes aspectos. mas antes, a necessidade ou não está imbricada na demanda qualitativa e quan-
306 Da mesma lógica do segundo argumento surge o terceiro: a estigmatiza- titativa de proteção que exige o bem jurídico alvo da norma. 307
ção da pena criminal. Segundo Sérgio SHECAIRA, pudesse o juiz condenar o Nesse sentido, num Estado fundado em garantias57, é incorreta e antiquada
Estado e seus órgãos assumiria que ele mesmo (juiz) integra um Estado crimi-
noso.50 Guilherme PURVIN entende como incongruente conceber o Estado Estado e restantes entidades públicas é hoje um elemento essencial e estruturante do sis-
como delinquente quando, na verdade, se trata do guardião da paz pública51. tema de proteção constitucional, comunitária e internacional do particular perante os po-
No âmbito do direito civil esta costumava ser justamente a tese de defesa do deres públicos, constituindo não só uma garantia institucional, como um verdadeiro direito
fundamental, directa e imediatamente invocável pelos particulares. Trata-se de uma forma
Estado quando acusado da prática de danos aos cidadãos52. A hipótese é hoje adicional de tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos, para além das formas de tutela
primária, como seja o mecanismo da fiscalização da constitucionalidade”. Vide: FONSE-
CA, Guilherme da; CAMARA, Miguel Bittencourt da. A responsabilidade civil dos poderes
46) BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Consti- públicos – a responsabilidade do legislador, do ‘juiz’ e da administração pública – a ação contra o
tuição brasileira. (...).p.95. Estado. Coimbra: Editora, 2013.p.72. Ainda sobre o tema, vide os argumentos de Etien-
ne Picard: PICARD, Etienne, La responsabilité pénale des personnes morales de droit public
47) SILVA, Vasco Pereira da. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 1996. (...).pp.1/2.
48) GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O lugar do direito na proteção do ambiente (...).p.279. 53 ) CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito – cadernos democráticos.n.7.Lisboa:
Gradiva, 1999.pp.67/68.
49) MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA, Apud SERRA, Teresa; SÁNCHEZ, Pedro
Fernández. A exclusão de responsabilidade criminal das entidades públicas – da inconstituciona- 54 ) M
 ACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro (...).p.746.
lidade dos nºs 2 e 3 do artigo 11 do Código Penal.in Separata de Estudos em Homenagem ao
Professor Doutor Sérvulo Correia, Coimbra: Editora, 2010.p.71. 55 ) MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal – colección maestros de derecho
penal, n.5.2.ed.Buenos Aires: B de F Editorial, 2007.p.52.
50) SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica.(...).p.186.
56 ) SERRA, Teresa; SÁNCHEZ, Pedro Fernández. A exclusão de responsabilidade criminal
51 ) FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin; SILVA, Solange Teles da. Responsabilidade penal (...).p.70.
das pessoas jurídicas de direito público (...).p.132.
57 ) CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. São Paulo:
52 ) Sobre a Responsabilidade Civil dos Poderes Públicos, em resumo: “A responsabilidade do Saraiva, 2013.p.248.

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a concepção do direito penal como “marca” estigmatizante58 do sujeito (pessoa adaptação do instituto aos esquadros da teoria penal63, não se tratando de espe-
física ou jurídica). Se a penalização se justifica contra alguns entes coletivos, no cificidade dos órgãos públicos, mas sim da já reconhecida dificuldade de apli-
mínimo é porque os resultados que podem dar causa são potencialmente dano- cação de princípios basilares (como é o caso do princípio da culpa64 65) ao ins-
sos a bens juridicamente protegidos e de relevante interesse social, sendo ina- tituto da responsabilidade penal de pessoas jurídicas.
ceitável que se ponha de lado contra aqueles de direito público, em razão das Ao afirmarmos que os efeitos da sentença penal significam danos à socie-
características do agente (pessoa física/jurídica, de natureza pública/privada). dade, restará por saber: 1) Se sempre que houver uma sanção penal haverá um
Especialmente quando este sujeito-agente, Estado e equiparados, tem a obri- consequente repasse à sociedade; 2) Se sim, se será sempre um repasse dano-
gação constitucional de agir de forma ambientalmente exemplar, e se submete so; 3) Em sendo danoso, se é preferível a punição apenas dos agentes públi-
aos olhos fiscalizadores dos cidadãos. cos quando uma conduta de dano/ameaça ao meio ambiente for comprovada.
Por fim, como quarto argumento contrário à responsabilidade penal das Pelo exame das hipóteses de pena e também em conformidade com os ar-
pessoas jurídicas de direito público deparamo-nos com a inaplicabilidade das gumentos acima traçados, nos parece que sancionar penalmente um órgão pú-
penas previstas em lei59. Na nossa visão, trata-se de argumento consistente, não blico, uma vez que haja a incriminação penal contra pessoas jurídicas privadas,
só porque enfrenta as dificuldades de efetivação das funções da pena, como é medida que se impõe inclusive em benefício da sociedade. Explicamos.
também porque identifica que, em havendo responsabilização penal do Estado, As possíveis penas imputáveis no Brasil aos entes coletivos estão descrimi-
tanto os danos quanto as sanções penais serão revertidos contra a sociedade. nadas nos artigos 21, 22, 23 e 24 da lei 9.605/98. Esquematicamente são de
Segundo acentuam Sérgio Salomão SHECAIRA e Édis MILARÉ60, cinco tipos: (i) a multa; (ii) restritivas de direitos (suspensão parcial ou total de
“(...) ou a pena é inócua, ou então, se executada, prejudicaria a própria co- atividades; interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade; proi-
munidade beneficiária do serviço público”61. Também Etiénne PICARD,
308 em artigo paradigmático sobre a questão, é enfático ao denominar de “ef- 309
fet boomerang” este repasse aos cidadãos dos efeitos da condenação penal do 63 ) Nesse sentido: GÁNDAJA, Beatriz Vallejo de la. El sujeto del derecho penal económico y la
Estado.62 A sociedade seria duplamente prejudicada, não só pela ação/omis- responsabilidade penal y sancionatória de las personas jurídicas: derecho vigente y consideraciones
‘de lege ferenda’. in BACIGALUPO, Enrique (director). Curso de Derecho Penal Económico.
são danosa como também pela pena imposta. Barcelona: Marcial Pons, 1998.p.57.
Entretanto, olhando a fundo, notamos que a isto se assemelham os casos
64 ) Sobre o tema, vide o posicionamento de PAULO DE SOUSA MENDES, ainda antes
de responsabilidade das pessoas jurídicas em geral, quando, por exemplo, são da Reforma do Código Penal português, com referências às teorias desenvolvidas sobre o
repassadas as sanções (especialmente pecuniárias) impostas na sentença pe- instituto. MENDES, Paulo de Sousa. Vale a pena o direito penal do ambiente?(...).pp.19-25.
nal aos sócios/acionistas e estes, de fato, não são culpados e nem participaram 65 ) GÓMES-JARA DÍEZ, adotando modelo construtivista que busque funcionalmente equi-
dos atos criminosos. Esta semelhança de cenários demonstra a dificuldade de valer a culpabilidade empresarial à individual, ainda que distintas, aponta a problemática:
“Dentro os diferentes problemas que apresenta a instauração de um modelo de responsabi-
lidade penal empresarial, a determinação da culpabilidade empresarial goza de uma posição
privilegiada. Não em vão a impossibilidade de compatibilizar o princípio da culpabilidade
com a organização empresarial se mostrou o bastão irredutível da doutrina tradicional, ten-
58 ) MENDES, Samuel Santos Felisbino. A responsabilidade penal da pessoa jurídica de direito do inclusive afirmado que o princípio ‘societas delinquere non potest’foi imposto como ex-
público (...).p.341. pressão do princípio: não há pena sem culpabilidade”. Pode-se, então constatar a existência
de vários autores que, apesar de não terem grandes problemas com as outras categorias do
59 ) Ilustrativamente, vale referir o trabalho acurado sobre as penas impostas pela lei espanhola crime, demonstram dúvidas quando ao princípio da culpa se referem”. GÓMEZ-JARA,
às pessoas coletivas In SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María; MONTANER FERNÁNDEZ, Carlos Díez. A repsonsabilidade penal da pessoa juridical e o dano ambiental – a aplicação do mo-
Raquel Los delitos contra el medio ambiente. Barcelona: Atelier libros jurídicos, 2012. delo construtivista de autorresponsabilidade à Lei 9.605/98.trad. Cristina Reindolff da Mota.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.p.35. Ainda: “Contudo, para além da assunção da
60 ) MILARÉ, Édis. A nova tutela penal do ambiente In Revista de Direito Ambiental. ano.4. teoria da ficção ou da teoria da realidade como fundamento da natureza jurídica das pessoas
n.16, out/dez, 1999.p.101. colectivas, os problemas em relação à atribuição de responsabilidade penal são derivados
61 ) SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica.(...).p.187. dos limites estabelecidos pelo princípio da personalidade da pena e, em decorrência, pelo
princípio da culpabilidade (...)” In CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no
62 ) PICARD, Etienne, La responsabilité pénale des personnes morales de droit public (...).p.18. direito penal brasileiro. (...).p.275.

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bição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, sub- imposição de multa predestinada ao Estado serviria inclusive como orien-
venções ou doações); (iii) prestação de serviços à comunidade; (iv) extinção ou tação de parte de suas contribuições à causa ambiental, o que, ao fim, mini-
dissolução; (v) divulgação da sentença condenatória; mizaria os danos sofridos pela sociedade.
Sobre a pena de multa, Guilherme PURVIN66 diz que impô-la ao Estado, Já quanto às penas restritivas de direitos argumenta-se que não pode-
em nome do Estado, é mero remanejo orçamentário e como o montante sairia riam ser aplicadas a quem têm por fim originário a sua prestação, forte no
dos cofres públicos, o pagamento se resumiria numa prestação paga pela socie- princípio de continuidade e da eficiência do serviço público. Ou seja, as ati-
dade por um dano também por ela sofrido. vidades estatais não podem ser interrompidas porque representam a pró-
Primeiro, por sabermos das homéricas disputas que envolvem a destinação pria tarefa pública. Logo, quando uma pena restritiva de direitos impõe o
de verbas dentro das esferas administrativas, é inquestionável o caráter sancio- embargo de obra ou a interrupção de atividade, em linhas gerais, interrom-
nador que recairia sobre um órgão que, podendo se beneficiar de determina- peria a execução do serviço social.
da destinação orçamentária (por parte do governo central, por exemplo), não Acontece que as penas restritivas de direitos devem ser adaptadas à ativida-
o fosse sob a justificativa de mau uso/desvio de finalidade do interesse público. de debatida. Porque quando falamos em punir um ente coletivo de direito pú-
Corroborando este entendimento, apontamos a lei complementar 101/00 (so- blico pressupomos que a atividade por ele exercida tenha violado ou viole um
bre responsabilidade fiscal) que no artigo 51, parágrafo 2º, proíbe os entes de bem ecológico juridicamente protegido. Ou seja, pressupomos que a atividade
direito público de receber transferências voluntárias e contratar operações de revestida de poder público tenha/esteja prejudicando a sociedade através do
crédito quando houver irregularidade comprovada na administração pública, ambiente. Nestes casos, suspender ou interditar é ato obrigatório, sem impedi-
Depois, frisamos que na responsabilidade civil do Estado a indenização de- mento algum que o ente público siga suas atividades/obras regulares.
vida é sempre suportada pela própria comunidade (porque paga com dinheiro O mesmo se daria na proibição de contratação com o poder público. Um
310 dos cofres públicos), o que não serve nem de longe de justificativa à não per- ente equiparado ao Estado não poderia ser tolhido da sua capacidade de pros- 311
quirição estatal neste campo jurídico. secução do interesse público. Todavia, as contratações entre órgãos públicos
Advertimos, ainda, que o fato da pena de multa transcender o ente, co- são variadas (recursos, subvenções, doações) e abarcam muitos interesses pró-
municando-se com seus representados, também ocorre nos casos das pes- prios da organização, como no caso de financiamentos específicos para obras,
soas jurídicas de direito privado. Hoje todo o custo com o passivo ambien- especialmente em épocas de eleição. Seria o caso de admitir esta sanção contra
tal decorrente da publicidade com produtos e serviços “verdes”, das licenças o Estado e os demais entes públicos pelo não repasse, por exemplo, de benefí-
ambientais, dos estudos prévios de impacto, das autorizações ambientais cios por parte do governo central para um município, desde que mantidos os
exigidas e, até, das multas, são valores comumente incorporados ao preço fi- repasses para saúde, educação, segurança pública, ou seja, desde que mantida a
nal dos produtos/serviços e, portanto, repassados aos consumidores. Ainda autossuficiência básica do órgão estatal68.
que aqui sejam consumidores “voluntários” e naquela primeira hipótese, Com relação à prestação de serviços à comunidade, o argumento con-
contribuintes-vinculados, o fato se repete. trário à sanção dos entes coletivos públicos circunscreve-se à sua própria
Ademais, na grande maioria dos casos tanto a poluição (externalidade função. Guilherme PURVIN diz que os deveres estatais de proteção am-
negativa67) quanto o perigo de danos ao ambiente são mais desvantajosos biental não poderiam ser considerados substrato da pena69. Quer dizer que
à sociedade do que o valor pago através da multa. Indo além, num contex- quando o Judiciário manda um órgão do Executivo custear programas e
to hipotético de pouca transparência na destinação das verbas públicas e de projetos ambientais, recuperar áreas degradadas, promover a manutenção
acentuada desconfiança dos particulares na atuação dos órgãos públicos, a de espaços públicos, contribuir com entidades ambientais, ou seja, que atue

68 ) MENDES, Samuel Santos Felisbino. A responsabilidade penal da pessoa jurídica de direito
66 ) FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin; SILVA, Solange Teles da. Responsabilidade penal público (...).p.337.
das pessoas jurídicas de direito público (...).p.133.
69 ) FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin; SILVA, Solange Teles da. Responsabilidade penal
67 ) GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O lugar do direito na proteção do ambiente (...).p.158. das pessoas jurídicas de direito público (...).p.134.

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da forma descrita na lei ambiental, gera uma intromissão de poderes. A partir deste sucinto exame sobre penas, estamos de acordo que o direito
Contudo, são discutidos aqui casos em que um ente coletivo, devendo agir penal “(…) no sólo debe ofrecer garantías al individuo, sino también su protección
num sentido predeterminado por lei, e de maneira que não agrida o meio am- frente al delito, es un postulado que ha de seguir defendiendo en un régimen político
biente (norma constitucional) atua em sentido oposto ou desvirtuado. Logo, al servicio del ciudadano”73. Em expressão máxima de um Estado Democrático
a determinação de prestação de serviço à comunidade seria sim possível, mas no qual a sociedade detenha meios transparentes, isonômicos e eficazes de im-
nunca poderia ultrapassar os deveres impostos pela lei que, restringindo-se à por limites à ação Estatal, seja na sua face punitiva, seja como agente interven-
prevenção de danos, à reposição ou à compensação ambiental. Não se trataria tor econômico, seja como agente degradador do ambiente. Motivo pelo qual a
de ingerência entre poderes, mas do cumprimento da própria norma (constitu- mera previsão inadequada ou imperfeita de penas não acarreta a sua impossibi-
cional) em benefício da sociedade e do ambiente (interesse público). lidade de aplicação, quanto menos a sua desnecessidade. Especialmente quan-
Por fim, quanto à possibilidade de extinção ou dissolução das pessoas jurí- do se verifica que o Estado e seus entes equiparados podem cometer e repe-
dicas de direito público a regra de que são entes criados por lei e que só podem tidamente cometem ilícitos, notadamente num cenário político-criminal que
ser extintos por lei, jamais por decisão judicial, fica prejudicada nos casos de pune as pessoas jurídicas de direito privado.
privatização do serviço público, quando os entes de natureza privada estão me- Caberá ao juiz, identificado o dano/a ameaça adaptar as hipóteses de pena
ramente instrumentalizados na atividade administrativa, mas não foram cria- às pessoas jurídica de direito público74, na medida da legalidade. Como a pena
dos por lei. Nas demais situações, em se tratando de entes de natureza formal- imposta nestes casos sempre pesará na sociedade, ainda que minimamente,
jurídica pública, não poderia jamais ser aplicada.70 nunca deverá ser mais agressiva do que o próprio dano já causado. O julga-
Frisamos, ainda, que a pena de divulgação da sentença condenatória é pedra
angular do sistema de responsabilidade penal de entes coletivos71, repousando
NJ 1993,12) e de Vlissingen (1995), em que os municípios foram condenados por organizar
312 sua eficácia no abalo da imagem do órgão. Neste domínio, a divulgação de sen- leilões públicos de peixadas violando as quotas de pesca estabelecidas na lei. A conduta 313
tença condenatória contra um ente público cumpre papel ainda mais especial criminosa não ocorreu no decurso da gestão de tarefa pública, como é evidente, mas sim de
porque serve à fiscalização dos cidadãos quanto à gestão dos interesses e bens uma prática meramente comercial, o que serviu de justificativa ao tribunal superior (Tri-
bunal Supremo) para manter as condenações de primeiro grau, que no caso de Vlissingen
coletivos pela administração pública, especialmente nos casos de turismo eco- havia sido estabelecida em 16 mil florins. Já o caso Volkel (Tribunal de ‘s-Hertogenbosch,
lógico, por exemplo, ou de entes direcionados à proteção ambiental72. 1 de fevereiro de 1993, NJ 1993, 257), tratou de sistemático derramamento de querosene
no solo do aeroporto da base militar da cidade, pelo vazamento de tanques de combustível
das aeronaves oficiais, em verdadeira omissão por parte das autoridades públicas para com o
70 ) Germano MARQUES DA SILVA advogando expressamente pela possibilidade de respon- ambiente. A lei do solo determinava obrigação preventiva expressa contra as contaminações
sabilizar penalmente as concessionárias de serviços públicos (art. 11.º, b) do Código Penal) deste tipo, ponderando, que em caso de dolo comprovado, não se trataria de mera contra-
e outras entidades que exerçam prerrogativas de poderes públicos (art. 11.º, c) do Código venção, mas sim de crime. O Ministério da Defesa justificava seu descuido sob a alegação
Penal), refere como “(...) razoável que às entidades públicas empresariais não seja aplicável a de que a atividade exercida no aeroporto era de interesse público. Nos primeiros eventos
pena de dissolução, porventura também a multa, e as penas acessórias previstas pelas alíneas identificados pelas autoridades fiscalizadoras, o processo penal pode ser evitado mediante
b/ a e/ do art. 90.º-A do Código, já consideramos não haver razão para que não possam ser acordos com a acusação (transações), mas diante da reincidente omissão e da constante afe-
responsabilizadas criminalmente e lhes possam ser aplicadas as penas substitutivas da multa tação ao ambiente, a ação penal foi intentada e o Tribunal de primeira instância condenou
e as penas acessórias de injunção judiciaria e publicidade da decisão condenatória”, vide: simbolicamente o município. Significa dizer, o tribunal não impôs qualquer pena além da
SILVA, Germano Marques da. Responsabilidade penal das sociedades e dos seus administradores publicação da condenação “por desnecessidade de punição” (BRAVO, Jorge dos Reis. Di-
e representantes. Lisboa/São Paulo: Verbo, 2009.p.214. reito Penal dos Entes Colectivos (...).p.182). O Estado recorreu da sentença, evidenciando o
desconforto com a publicação. O Tribunal Superior, entretanto, acolhendo os argumentos
71 ) SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica.(...).p.118. da defesa, considerou a sentença condenatória nula justamente na parte em que declarava
72 ) Na Holanda, a responsabilidade dos entes coletivos é reconhecida há algum tempo (intro- a responsabilidade penal do ente público (Tribunal Supremo, de 25 de janeiro de 1994, NJ
duzida no Código Penal desde 1976) e de forma bastante ampla, incluindo o Estado. Se- 1994, 598 (C) MenR 1994 - Del. Vliegbasis Volkel). Segundo o acórdão, os atos do Estado
gundo VERVAELE, na exposição de motivos do Código Penal holandês, é referido expres- se supõem dirigidos para a defesa do interesse geral, e com isto foi reconhecida a imunidade
samente que “(...) no es prudente excluir las actividades punibles (de las empresas) de los órganos penal absoluta no âmbito jurisprudencial aos entes coletivos públicos.
o instituciones de Derecho publico, porque esto podría considerarse injusto, es decir, contrario al 73 ) M
 IR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal (...).p.107.
principio de igualdad (…)” (p.177). São julgamentos paradigmáticos, apesar do tempo trans-
corrido, aqueles dos municípios de Urk (1992) (Tribunal Supremo, de 8 de julho de 1992, 74 ) M
 ACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro (...).p.746.

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Pessoas Jurídicas de Direito Público e de Direito Privado Renata Machado Saraiva

dor levará em conta, ainda, os demais interesses em causa (interesses públicos risco óbvio da práctica de infrações para as quais está cominada uma pena” 77. São
de extrema relevância), bem como as alternativas ao alcance do ente coletivo domínios férteis à prática de crimes, como no caso das atividades potencialmen-
público que não a conduta equivocada escolhida. Assim, realizará o julgador a te perigosas ao ambiente. Ressalta a autora que “(...) foi certamente a importân-
diferenciação necessária e realista entre os entes públicos e privados, conside- cia da actividade económica do Estado e demais pessoas colectivas públicas que
rando peculiaridades contextuais, orçamentárias, funcionais e orgânicas, sem, levou o legislador a sujeita-las também ao direito da concorrência, em igualda-
contudo, imunizar qualquer um deles, o que é claramente contrário ao manda- de de circunstâncias com o setor privado e cooperativo”78, o que por analogia de
do constitucional de proteção ambiental ampla, e dissonante dos demais insti- contextos justificaria sua incriminação no domínio ambiental, pois as questões
tutos jurídicos, como o da responsabilidade civil. que abarca estão diretamente relacionadas aos custos de mercado (externalidades
ambientais) e à dimensão concorrencial que a internalização destes custos gera.
Como segundo problema, ao discriminar os entes coletivos em razão da na-
tureza, pública e privada, a lei penal incentiva um agir contrário ao interesse
3.2) Outros problemas da responsabilização penal
público. Vejamos como.
diferenciada entre entes coletivos públicos e privados: (1) Uma primeira hipótese trazida pela Teoria da Gestão Pública identi-
fica casos em que o interesse público é capturado pelo interesse privado79,
o desequilíbrio concorrencial (2) o estímulo a relações
sem dispor o Estado de mecanismos eficazes para se proteger desta captu-
simuladas e (3) os casos de monopólio do Estado ra. Segundo revela, uma visão “desassombrada do Estado” permitiria vê-lo,
“na crueza da realidade dos fatos”, como campo fértil aos interesses priva-
O tratamento diferenciado da lei penal em relação aos entes coletivos, a partir dos80. De fato, não são poucas as denúncias neste sentido, sendo permanen-
314 dos critérios de sua natureza (pública ou privada) ou de suas funções (prerro- te a busca por mecanismos transparentes de fiscalização e de orientação da 315
gativas de poderes públicos) traz outros problemas para além daqueles acima administração pública para além da norma.
identificados. Quando a lei penal isenta principalmente os órgãos privados dotados de
O primeiro foi desenvolvido de forma irretocável por Teresa SERRA e poderes públicos e criminaliza entes coletivos da iniciativa privada, incenti-
diz respeito ao papel do Estado de agente econômico ativo, especialmente em va uma relação promíscua de captura de interesses, de busca do agente priva-
contextos concorrenciais com a iniciativa privada. Os órgãos públicos em inú- do pela “carapuça” da lei penal que dispõem os órgãos públicos. Simula o ente
meras realidades superam a característica de instrumentos do Estado na per- privado situações que lhe permitam livremente perquirir seus interesses – pri-
secução do interesse público75 e atuam como reais interventores comerciais, vados – revestidos em “poderes públicos”. Isentar a tutela penal dos entes co-
industriais, econômicos. Estes novos fins e estas novas modalidades do ente letivos de direito público significa, no nosso sentir, um abandono da proteção
estatal (direta ou indiretamente) suscitam a questão “(...) se, na medida em que ambiental a este jogo econômico81.
intervém em plano de igualdade – real ou virtual -, com os cidadãos, não deve- Também originária da análise econômica do Direito, a Teoria da Agência82
rá beneficiar do mesmo estatuto jurídico destes, quando surja um litígio (...)” 76.
Teresa SERRA lembra que “(...) esta participação na actividade econômica, 77 ) SERRA, Teresa; SÁNCHEZ, Pedro Fernández. A exclusão de responsabilidade criminal
não raras vezes em concorrência com entidades privadas (como sucede ainda ac- (...).p.70.
tualmente na banca, no sector financeiro e nos transportes, por exemplo) cria um 78 ) SERRA, Teresa; SÁNCHEZ, Pedro Fernández. A exclusão de responsabilidade criminal
(...).p.70.
79 ) G
 ARCIA, Maria da Glória F. P. D. O lugar do direito na proteção do ambiente (...).p.223.
80 ) G
 ARCIA, Maria da Glória F. P. D. O lugar do direito na proteção do ambiente (...).p.223.
75 ) FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin; SILVA, Solange Teles da. Responsabilidade penal
das pessoas jurídicas de direito público (...).p.135. 81 ) G
 ARCIA, Maria da Glória F. P. D. O lugar do direito na proteção do ambiente (...).p.245.
76 ) BRAVO, Jorge dos Reis. Direito Penal dos Entes Colectivos (...).p.173. 82 ) Associando a Teoria da Agência com a contratação pública vide: RAIMUNDO, Miguel

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identifica casos em que há uma relação juridicamente legítima entre um sujeito dade dos entes coletivos públicos nestes casos significaria, em última instância,
denominado “principal” impossibilitado de concretizar determinado fim, busca endossar uma lacuna na tutela penal de determinados bens ambientais.
a sua realização através de outro sujeito denominado “agente”. Permitir a resposta penal dos entes públicos, uma vez aceita contra os entes
Esta teoria tem o mérito de demostrar que o “agente”, ainda que se jus- privados, é uma forma de transparecer e de direcionar a boa administração pú-
tifique na relação por otimizar os fins do sujeito “principal” (Estado ou ór- blica, quiçá de prevenir condutas corruptas, e, em qualquer caso, de valorizar a
gão equiparado – para tornar mais eficiente a administração pública), age ética ambiental. Porque ainda que a sociedade seja indiretamente prejudicada
em alguns casos em nome de seus próprios interesses, pois não só dispõe com estas condenações, no limite da sanção estipulada, ela será direta e ampla-
do poder de diligência da atividade, que é justamente o que motiva a rela- mente afetada pelo descaso dos órgãos públicos com o ambiente, em algumas
ção, como ainda domina as informações relacionadas. Haverá nestes casos situações ilimitadamente. Fato que o direito penal não pode ignorar.
uma assimetria de informações entre o “agente” e o “principal” e a partir daí
um desvirtuamento do que justifica a relação jurídica entre ambos (o fim do
“principal”), o que direcionaria a prestação tão somente à realização dos in-
teresses do “agente”, sem que o “principal” sequer se dê por conta, pois de-
H Conclusão
sinformado e impossibilitado de sabê-lo. Do apanhado acima, concluímos que na marcha da responsabilização penal,
Acreditamos que quando a lei isenta os entes imbuídos de poderes públicos a marca é da cautela no que se refere às pessoas coletivas de direito público.
da persecução penal e, por outro lado, criminaliza os entes coletivos da esfera Pontuamos, ainda, que:
privada, estimula que estes últimos transformem-se em “agentes” (pessoa jurí- 1. No Brasil, nem a Constituição (art. 225, caput e parágrafo 3º) e nem a lei
dica privada que se revestirá de prerrogativas públicas), relacionando-se com 9.605/98 diferenciaram os entes coletivos a que a tutela penal se destina. Com
316 um principal-Estado diante da possibilidade de ludibriar a administração pú- isto, deixaram a segurança jurídica de lado. O branco normativo deu margem a 317
blica na realização de interesses, no fundo, exclusivamente privados. diferentes posicionamentos na jurisprudência e na doutrina. E como são pou-
Por fim, há casos em que o Estado detém o monopólio de uma atividade cos os julgados que tratam a matéria (sendo certo que os tribunais superiores
potencialmente perigosa (conforme art. 177 da CF83). Excluir a responsabili- sequer se manifestaram sobre o tema), não encontramos nenhuma sentença
condenatória contra entes públicos, já que as sanções penais são direcionadas
Assis. A formação dos contratos públicos – uma concorrência ajustada ao interesse público. Lisboa: apenas às pessoas jurídicas de direito privado ou, no limite, àquelas que atuam
AAFDL, 2013.p.362. em nome do poder público.
83 ) Art. 177. Constituem monopólio da União: I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo 2. Na doutrina, boa parte dos autores é contrária à diferenciação de tra-
e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos; II - a refinação do petróleo nacional ou es- tamento penal entre organismos públicos e privados, especialmente no caso
trangeiro; III - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das
atividades previstas nos incisos anteriores; IV - o transporte marítimo do petróleo bruto
de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o
transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer petróleo em todo o território nacional; II - as condições de contratação; III - a estrutura
origem; V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e atribuições do órgão regulador do monopólio da União; § 2º - A lei disporá sobre o
e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados. V - a pesquisa, a lavra, o transporte e a utilização de materiais radioativos no território nacional. § 3º A lei disporá
enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais sobre o transporte e a utilização de materiais radioativos no território nacional. § 4º A lei
nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de
e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as alíneas b e c do importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e
inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal. § 1º O monopólio previsto álcool combustível deverá atender aos seguintes requisitos: I - a alíquota da contribuição
neste artigo inclui os riscos e resultados decorrentes das atividades nele mencionadas, sendo poderá ser: a) diferenciada por produto ou uso; b) reduzida e restabelecida por ato do Poder
vedado à União ceder ou conceder qualquer tipo de participação, em espécie ou em valor, Executivo, não se lhe aplicando o disposto no art. 150,III, b; II - os recursos arrecadados
na exploração de jazidas de petróleo ou gás natural, ressalvado o disposto no art. 20, § 1º. § serão destinados: a) ao pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combus-
1º A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades tível, gás natural e seus derivados e derivados de petróleo; b) ao financiamento de projetos
previstas nos incisos I a IV deste artigo observadas as condições estabelecidas em lei. § 2º ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás; c) ao financiamento de pro-
A lei a que se refere o § 1º disporá sobre: I - a garantia do fornecimento dos derivados de gramas de infra-estrutura de transportes.

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de entes empresariais com prerrogativas públicas. Isto porque, as formas de parte de um órgão “criminoso” - campo subjetivo de análise.
atuação do Estado, a gestão de suas tarefas, e até mesmo a configuração e a 4.4. quarto argumento: as penas hoje previstas às pessoas jurídicas (multa,
administração de seus custos (eficiência administrativa) o aproximaram exa- restritiva de direitos - suspensão parcial ou total de atividades, interdição tem-
tamente dos órgãos privados. porária de estabelecimento, obra ou atividade -, proibição de contratar com o
3. Na base da incriminação penal-ambiental de pessoas jurídicas está a bus- Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações, e a pres-
ca da proteção eficaz do meio ambiente, englobando todos os potenciais de- tação de serviços à comunidade) devem ser moldadas aos entes públicos. O que
gradadores. Neste domínio, tanto empresas da iniciativa privada quanto órgãos poderia ser feito, enquanto não tisnado em lei, pelo próprio julgador no caso
do Estado, e ele mesmo, são interventores ecológicos constantes, especialmen- concreto, nos seguintes moldes: A) Tanto o dano causado pelo agir crimino-
te quando atuam em contextos mercadológicos e econômicos nos quais há evi- so do órgão público, quanto os efeitos da correlata sanção penal seriam reverti-
dente perigo ao meio ambiente. Em outras situações os órgãos com poderes do à coletividade. Entretanto, o custo da poluição, por exemplo, é maior e mais
públicos concorrem com a iniciativa privada, cujo passivo ambiental representa imprevisível do que os custos de eventual e delimitada multa. Neste sentido, as
custo altíssimo. Logo, qualquer diferenciação simplificada entre os entes públi- penas aplicadas não deveriam ser mais gravosas do que os danos causados pela
cos e privados pela norma penal seria injusta e desigual. conduta ilícita; B) A publicação da sentença é das penas que mais preocupam
4. Os argumentos trabalhados, contrários à incriminação de órgãos públi- os órgãos públicos, especialmente aqueles voltados à questão ambiental e que
cos, não inovam nas barreiras típicas à responsabilidade penal de pessoas ju- dependem (economicamente) da sua boa imagem, como no caso dos destinos
rídicas em geral. Assim, nenhum dos argumentos identificados na doutrina e turísticos ambientais, por exemplo. A condenação publicada contribuiria, tam-
na jurisprudência convenceu-nos da desnecessidade de punição dos entes co- bém, à fiscalização da gestão pública. C) Diante de uma possível condenação,
letivos públicos, uma vez aceita a responsabilidade penal dos privados, espe- todos os interesses sociais em conflito necessariamente deveriam ser avaliados,
318 cialmente quando se identificam, orgânica e funcionalmente, e, ainda mais, bem como as alternativas de conduta do órgão público, se existiram ou não, 319
quando com eles concorrem em incontáveis nichos de mercado. Da sua análise aplicando-se uma regra de proporcionalidade à decisão. D) A pena de extinção
traçamos as seguintes ponderações: não seria adaptável aos órgãos públicos, pois somente podem ser extintos por
4.1. primeiro argumento: a constante realização do interesse público dire- lei, exceção feita àqueles com natureza privada e prerrogativas públicas.
ciona ao tratamento idêntico dos entes coletivos, pois a proteção contra danos 5. Há situações nas quais o interesse público é preterido a interesses políti-
ao meio ambiente é substrato evidente do interesse social. Comprovamos que cos ou privados, em benefício do próprio ente público, são casos em que dife-
o dano ambiental pode ser revertido em benefício dos órgãos públicos, na mi- renciar a aplicação da lei serve de incentivo a simulações, como apontado pela
nimização de custos, de tempo ou de esforços dos agentes, quando houver des- Teoria da Gestão Pública - interesses privados capturam o interesse público,
tinação diversa de verbas predirecionadas a programas ecológicos, e até mesmo não podendo o Estado “proteger-se” - e pela Teoria da Agência - entes priva-
quando o ambiente for preterido a outro bem de interesse social. dos buscam relações promíscuas com os órgãos públicos em busca de isenção
4.2. segundo argumento: o poder estatal de punir não impede que o Estado normativa, ainda que sejam relações juridicamente legitimadas. E ainda nos
fiscalize e sancione suas condutas, mas antes a formatação do Estado de Direito casos de monopólio do Estado sob um elemento ambiental, quando a isenção
impõe uma constante resposta deste por seus próprios atos e por suas respon- normativa se traduziria em desproteção absoluta deste bem específico.
sabilidades. Este segundo argumento inclusive foi utilizado durante anos para 6. Por fim, se realmente acreditamos num estágio de educação/conscienti-
justificar a não responsabilização civil do Estado, hoje amplamente aceita na zação ecológica enraizada em todos os ângulos da sociedade (dos indivíduos
doutrina e na jurisprudência. ao Estado), os largos passos caberão justamente aos sujeitos com poderes pú-
4.3. terceiro argumento: a legitimidade da pena contra os entes coletivos blicos – porque constitucionalmente legitimados e obrigados - sendo verda-
está na identificação fática e jurídica - provas de materialidade e autoria do deiros exemplos, e cunhando, não só os seus fins (interesse público), mas espe-
crime contra o ambiente - independentemente das características dos autores cialmente os meios escolhidos para atingi-los (tarefas públicas) com a marca
(pessoas físicas/jurídicas, de direito público/privado). Logo, quando um juiz das reais demandas sociais, incluído aí, inegavelmente, o cuidado com o que
condena o Estado – campo objetivo de análise - não assume com isto que faça sobrou deste nosso planeta.

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Causas Excludentes de Nexo Causal:
Aplicabilidade no Direito
Ambiental Brasileiro

Camila Pedroni Ribeiro1


Faculdade de Direito de Vitória

Cristina Grobério Pazó2


Faculdade de Direito de Vitória

Sumário: Introdução. 1 Ponderações sobre Meio Ambiente e


Direito Ambiental. 1.1 Dano ao Meio Ambiente. 2 Responsabilidade
civil. 2.1 Responsabilidade subjetiva e objetiva. 3 Responsabilidade 321
civil no Direito Ambiental. 3.1 Princípios do Direito Ambiental.
3.1.1 Princípios da Prevenção e da Precaução. 3.1.2 Princípio do
poluidor-pagador. 3.2 Responsabilidade objetiva. 4 Excludentes
da responsabilidade civil no Direito Ambiental. Conclusão

1) Graduanda do 9º período do curso de Direito da Faculdade de Direito de Vitória – FDV.


E-mail: camilapedroniribeiro@gmail.com. Endereço: Rua Juiz Alexandre Martins de
Castro Filho, nº 779, Santa Lucia, Vitória – ES, CEP 29056-919.
2) Doutora em Direito pela Universidade Federal de Goiás – UFG. Mestre em Direito pela
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Graduada em Direito pela Universi-
dade Federal do Espírito Santo – UFES. Professora da Faculdade de Direito de Vitória
– FDV. E-mail: crispazo@uol.com.br. Endereço: Rua Juiz Alexandre Martins de Castro
Filho, nº 779, Santa Lucia, Vitória – ES, CEP 29056-919.
Causas Excludentes de Nexo Causal:
Aplicabilidade no Direito Ambiental Brasileiro Camila Pedroni Ribeiro m Cristina Grobério Pazó

H Introdução Dito isto, surge o seguinte questionamento: é possível a aplicação das ex-
cludentes de responsabilidade civil por dano ambiental?
O meio ambiente está intimamente ligado à relação do homem e dos outros ani- O objetivo desta pesquisa é verificar a aplicabilidade das excludentes, apre-
mais com a natureza. O meio ambiente é o local onde se desenvolve a vida hu- sentando solução coerente com a legislação nacional e adequada à importância
mana, a partir das relações do homem com os outros animais e com o próprio do meio ambiente ecologicamente equilibrado para garantir a sadia qualidade
meio ambiente. De acordo com essa noção, a lei 6.938 de 1981, que dispõe sobre de vida para as presentes e futuras gerações.
a Política Nacional do Meio Ambiente, definiu, para seus fins, o meio ambien-
te como: “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física,
química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.
1) Ponderações Sobre Meio Ambiente e Direito Ambiental
Por isso, é importante sua proteção, para que todos possam ter qualidade de vida.
Entretanto, a relação do homem com o meio ambiente pode se dar de
O termo “meio ambiente” é bastante amplo e gera diversas discussões, como
maneira desordenada, de forma a alterá-lo significativamente, inclusive
o âmbito de sua abrangência e até mesmo se sua denominação está correta de
provocando danos. É a partir desta ideia que surge a noção de responsabi-
acordo com as normas da língua portuguesa.
lidade civil por dano ambiental.
Luís Paulo Sirvinskas4 e José Afonso da Silva5 são dois dos doutrinadores
A Carta Magna de 1988 trouxe, no artigo 225, §3º, a previsão de reparação
que entendem que a palavra “ambiente” está inserida no conceito de “meio”, de
de danos causados ao meio ambiente, bem como de sanções aos infratores que
forma que a expressão “meio ambiente” resultaria em pleonasmo, que é a repe-
praticarem condutas consideradas lesivas ao meio ambiente. No mesmo sen-
tição de palavras com o mesmo sentido.
tido, a lei 6.938, trouxe, anteriormente, a reparação e a indenização dos danos
Marcelo Abelha Rodrigues entende em sentido contrário à maior par-
322 causados não só ao meio ambiente, mas a terceiros também, independente- 323
te da doutrina. Segundo o referido autor: “Porquanto as palavras ‘meio’ e
mente da existência de culpa.
‘ambiente’ signifiquem o entorno, aquilo que envolve, o espaço, o recinto, a
A partir disso, fica claro que a intenção do legislador é a ampla proteção ao
verdade é que quando os vocábulos se unem, formando a expressão ‘meio
meio ambiente, atribuindo, inclusive, a responsabilidade civil objetiva ao cau-
ambiente’, não vemos aí uma redundância como sói dizer a maior parte da
sador do dano ambiental, ou seja, “não se pergunta a razão da degradação para
doutrina, senão porque cuida de uma entidade nova, autônoma e diferente
que haja o dever de indenizar e/ou reparar”3.
dos simples conceitos de meio e ambiente. O alcance da expressão é mais lar-
A concepção de responsabilidade civil objetiva é pautada na teoria do risco,
go e mais extenso do que o de simples ambiente”6.
o que significa dizer que, simplesmente porque a atividade tem a probabilida-
Entendemos ser correto o apontamento de Rodrigues, pois a expressão
de de causar danos, quem exerce a atividade perigosa deve assumir seus riscos e
“meio ambiente” tem conotação diferente de quando os dois termos que a
reparar os danos decorrentes de tal atividade. A teoria do risco possui algumas
compõem são utilizados isoladamente.
subdivisões, quais sejam: risco-proveito, risco profissional, risco excepcional,
Entretanto, apesar da divergência apontada, fato é que essa expressão é
risco criado e risco integral. De acordo com algumas dimensões da teoria do
“consagrada na língua portuguesa e pacificamente utilizada pela doutrina, pela
risco, seria possível a aplicação das excludentes de responsabilidade e de acordo
com outras não haveria essa possibilidade. Tais excludentes, no âmbito da res-
ponsabilidade civil objetiva, podem abranger o campo do dano, do nexo causal,
da ilicitude do ato ou, ainda, da prescrição, de forma que, se aplicadas, ocorrerá 4) SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
a exclusão da responsabilidade civil. p. 123.
5) DA SILVA, José Afonso. Direito ambiental constitucional. 6. ed. atual. São Paulo: Malhei-
ros Editores, 2007. p. 19.
3) MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 21. ed. rev., ampl. e atual.,
de acordo com as leis 12.651/2012 e 12.727/2012 e com o decreto 7.830/2012. São Paulo: 6) RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito ambiental: parte geral. 2. ed. rev.,
Malheiros Editores, 2013. p. 404. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 64.

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Causas Excludentes de Nexo Causal:
Aplicabilidade no Direito Ambiental Brasileiro Camila Pedroni Ribeiro m Cristina Grobério Pazó

lei e pela jurisprudência de nosso país”7. Contudo, essa conclusão não torna o a relação do homem com o meio ambiente e de normas que visam a prote-
uso isolado dos termos “meio” e “ambiente” errado. ção deste. É a partir dessas normas que surge a ideia de direito ambiental, que
Feita essa explicação, passamos agora a analisar o conteúdo da expressão é bem definido por Édis Milaré12 como o “complexo de princípios e normas
“meio ambiente”. coercitivas reguladoras das atividades humanas que, direta ou indiretamente,
A lei 6.938 definiu, em seu artigo 3º, o “meio ambiente” como: “o conjunto possam afetar a sanidade do ambiente em sua dimensão global, visando à sua
de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, sustentabilidade para as presentes e futuras gerações”.
que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. Sirvinskas13 acrescenta que o direito ambiental “é a ciência jurídica que es-
Luis Paulo Sirvinskas8 entende que o conceito desse dispositivo legal não é tuda, analisa e discute as questões e os problemas ambientais e sua relação com
adequado, pois é restrito ao meio ambiente natural, de forma que não abrange o ser humano, tendo por finalidade a proteção do meio ambiente e a melhoria
todos os bens jurídicos protegidos pelo direito ambiental. Deste modo, é corre- das condições de vida do planeta”.
to o apontamento de José Afonso da Silva9 no sentido de que o “meio ambien- Neste sentido, a tutela do meio ambiente pelo direito ambiental pode ser
te” é “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que feita de forma preventiva ou repressiva. Na esfera preventiva, o Estado estabe-
propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”. lece padrões e regras a serem seguidos, como é o caso, por exemplo, das me-
Dessa forma, o conceito de “meio ambiente” abrange: o meio ambiente didas previstas nos incisos do artigo 225, §1º, da CF. Já na esfera repressiva,
natural, que é integrado pela atmosfera, pelo solo, pela fauna e outros ele- o Estado atua, por exemplo, impondo responsabilidades administrativas e pe-
mentos naturais; o meio ambiente cultural, integrado por bens de natureza nais, independentemente da obrigação de reparar eventuais danos causados,
material e imaterial de valor histórico, artístico, paisagístico, arqueológico, como prevê o artigo 225, §3º, da CF.
paleontológico, ecológico e científico; o meio ambiente artificial, que é for- Portanto, o direito ambiental é a disciplina jurídica estabelecida pelo ho-
324 mado pelas edificações, equipamentos e alterações provocadas pelo homem; mem que trata de sua relação com o meio ambiente, bem como de sua prote- 325
e meio ambiente do trabalho, é formado pelas condições relacionadas ao lo- ção, atuando nas esferas preventiva ou repressiva.
cal de trabalho do homem10.
Alguns doutrinadores ainda defendem a inclusão de uma nova classe, que é
o meio ambiente genético, como é o caso de Celso Antonio Pacheco Fiorillo11,
1.1) Dano ao Meio Ambiente
que entende devida a proteção ambiental do patrimônio genético em decor-
rência do que dispõe o artigo 225, §1º, II e V, da CF. Tal posicionamento é bas-
Diante da importância do meio ambiente, são necessárias normas disciplinan-
tante coerente com a atualidade, já que a engenharia genética está em constan-
do o dano ambiental. Usualmente, o dano é visto como o resultado de uma
te e rápida evolução, permitindo inclusive a utilização de gametas conservados
conduta que diminua o valor de determinado bem jurídico. Na seara do direito
em bancos genéticos para a criação de seres vivos.
ambiental, a noção de dano é bastante abrangente, em decorrência da ampli-
Assim, essa classificação direciona a formulação de normas que regulam
tude do próprio conceito de meio ambiente. Em virtude disso, é difícil apontar
um conceito para o que seja dano ambiental.
7) MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco – doutrina, jurisprudên- Nem a lei, nem a Constituição estabeleceram o que é o dano ambien-
cia, glossário. 7. ed. rev., atual. e reform. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. tal, justamente por causa de sua amplitude. Entretanto, a lei 6.938, de 1981,
142-143. anterior à atual Constituição, estabeleceu dois conceitos que auxiliam seu
8) SIRVINSKAS, 2013, p. 123. entendimento. São eles: degradação da qualidade ambiental e poluição.
9) DA SILVA, 2007, p. 20. Segundo o artigo 3º da referida lei, a degradação da qualidade ambiental é
10) SIRVINSKAS, op. cit., p. 124.
12) MILARÉ, 2011, p. 1062.
11) FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 13. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 83-84. 13) SIRVINSKAS, 2013, p. 105.

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a “alteração adversa das características do meio ambiente” e a poluição é a responsabilidade civil, pois é o prejuízo que enseja o direito de reparação ou de
“degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou ressarcimento, como será visto mais à frente.
indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da popu- Ao dano ambiental também pode ser aplicada a bipartição do direito civil:
lação; b) criem condições adversas às atividade sociais e econômicas; c) afe- dano patrimonial e dano moral ou extrapatrimonial. O dano patrimonial atin-
tem desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitá- ge o patrimônio, constituído de bens corpóreos ou de direitos, que podem ser
rias do meio ambiente; e) lancem matérias ou energia em desacordo com os apreciados economicamente18. No direito ambiental, portanto, é relativo “à res-
padrões ambientais estabelecidos”. tituição, à recuperação ou à indenização do bem ambiental lesado”19.
A partir desses conceitos, Édis Milaré14 oferece um conceito didático para Já o dano moral relaciona-se a lesões a direitos da personalidade do indi-
o dano ambiental. Segundo o autor, “dano ambiental é a lesão aos recursos víduo, de forma que não tem conteúdo pecuniário e nem pode ser traduzido
ambientais, com consequente degradação – alteração adversa ou in pejus – do economicamente20. A responsabilização civil em decorrência de dano moral
equilíbrio ecológico e da qualidade de vida”. ambiental é aplicada no direito brasileiro e pode ser observada na jurispru-
Já Luís Paulo Sirvinskas15 entende que dano ambiental é “toda agressão dência, como, por exemplo, no trecho abaixo referente a acórdão de Recurso
contra o meio ambiente causada por atividade econômica potencialmente po- Especial 1374342/MG, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão,
luidora, por ato comissivo praticado por qualquer pessoa ou por omissão vo- do STJ: “CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE
luntária decorrente de negligência”. CIVIL. ROMPIMENTO DE BARRAGEM. “MAR DE LAMA” QUE
Nos filiamos à ideia de Milaré, no sentido de que o dano é a alteração da- INVADIU AS RESIDÊNCIAS. TEORIA DO RISCO INTEGRAL.
nosa do equilíbrio ecológico e da qualidade de vida, independentemente de ser NEXO DE CAUSALIDADE. SÚMULA N. 7/STJ. DANO MORAL IN
em decorrência de atividade econômica, pois qualquer pessoa pode praticar a RE IPSA. CERCEAMENTO DE DEFESA. VIOLAÇÃO AO ART. 397
326 conduta danosa, inclusive pela simples conduta de jogar lixo na rua. DO CPC. INOCORRÊNCIA. [...] 5. Na hipótese, a autora, idosa de 81 327
Esse dano, como foi visto, afeta o meio ambiente e, consequentemente, o anos, vendo o esforço de uma vida sendo destruído pela invasão de sua mo-
ser humano. O homem pode ser atingido de duas formas: como parte da co- rada por dejetos de lama e água decorrentes do rompimento da barragem,
letividade ou individualmente. A coletividade é atingida pela simples lesão ao tendo que deixar a sua morada às pressas, afetada pelo medo e sofrimento
patrimônio ambiental, já que o meio ambiente é indivisível, de forma que as de não mais poder retornar (diante da iminência de novo evento similar), e
pessoas lesadas são indeterminadas ou indetermináveis, restando configurado, pela angústia de nada poder fazer, teve ofendida sua dignidade, acarretando
neste caso, o dano ambiental coletivo. Já o dano ambiental individual ocorre abalo em sua esfera moral [...]”21.
quando a conduta lesiva atinge interesses, patrimônio ou saúde de certa pes- Assim, fica claro que a responsabilidade civil pode ser constatada havendo
soa ou de um grupo determinado ou determinável16. Morato Leite e Patryck dano ambiental individual ou coletivo, moral ou patrimonial.
de Araújo Ayala17 entendem que o dano tem conceituação ambivalente, justa-
mente por causa desta capacidade de atingir interesses individuais e coletivos,
concomitante ou isoladamente.
Dito isto, é importante destacar que o dano é elemento e fundamento da
18) CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. rev. e ampl. São
Paulo: Atlas, 2010. p. 73.

14) MILARÉ, 2011, p. 1119. 19) LEITE; AYALA, op. cit., p. 94.

15) SIRVINSKAS, 2013, p. 255. 20) GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil.
v. 3, 11. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 105.
16) MILARÉ, op. cit., p. 1120-1121.
21) BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial nº 1374342/MG. Disponível
17) LEITE, José Rubens Morato; Ayala, Patryck de Araújo. Dano ambiental: do individual em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSe-
ao coletivo extrapatrimonial – teoria e prática. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora q=31326792&sReg=201201796436&sData=20130925&sTipo=5&formato=HTML>.
Revista dos Tribunais, 2012. p. 92. Acesso em: 14 abr. 2014.

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do Código Civil de 2002, cuja redação é a seguinte: “Aquele que, por ação ou
2) Responsabilidade Civil
omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a
outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
A responsabilidade pode ser pensada como uma forma de reparar algo ou al-
Da redação deste artigo, é possível extrair os elementos necessários para ca-
guma situação modificada indevidamente e que acarretou prejuízo a um indi-
racterizar a responsabilidade subjetiva. São eles: conduta omissiva ou comis-
víduo. Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves22, “destina-se ela a restaurar
siva, dano, nexo de causalidade entre a conduta e o dano e a culpa lato sensu.
o equilíbrio moral e patrimonial provocado pelo autor do dano”. Assim, pode-
Por outro lado, segundo a teoria objetiva há possibilidade de se responsa-
se entendê-la como uma solução para amenizar ou resolver algum fato danoso.
bilizar sem culpa, como prevê o artigo 927, parágrafo único, do CC: “Haverá
Percebe-se, então, que, em regra, a responsabilidade deriva da violação de
obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especifi-
outro dever. Neste sentido, Sergio Cavalieri Filho faz uma diferenciação en-
cados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do
tre obrigação e responsabilidade para melhor definir este instituto. Segundo o
dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
autor23, “obrigação é sempre um dever jurídico originário; responsabilidade é um
O referido artigo traz duas hipóteses em que há a responsabilidade sem cul-
dever jurídico sucessivo, consequente à violação do primeiro”.
pa: os casos regulados por lei e quando a atividade normalmente desenvolvida
Rui Stoco24 entende que a responsabilidade civil envolve “o dano, o prejuí-
pelo autor do dano implica risco para os direitos de outrem.
zo, o desfalque, o desequilíbrio ou descompensação do patrimônio de alguém”,
Dessa forma, pode-se dizer que, para haver responsabilidade objetiva, são
pois sem o dano, não há que se falar em responsabilidade.
necessários os mesmos elementos da modalidade subjetiva, com exceção da
A responsabilidade civil tem cunho reparatório e é caracterizada por ser
culpa. Assim, passa-se a analisar cada um destes elementos.
essencialmente patrimonial25, pois sujeita o infrator “ao pagamento de uma
A conduta, como elemento da responsabilidade, pode ocorrer por ação
compensação pecuniária à vítima, caso não possa repor in natura o estado
328 ou omissão e deve ser voluntária. A ação advém de comportamento positivo 329
anterior das coisas”26.
ou “movimento corpóreo comissivo”28. Já a omissão é a abstenção de agir ou
comportamento negativo, que adquire importância quando pensada sob a óti-
ca daqueles que têm o dever de agir em determinadas situações para impedir
2.1) Responsabilidade Subjetiva e Objetiva a ocorrência do resultado danoso29.
O próximo elemento da responsabilidade civil subjetiva é o dano. Pode-
A responsabilidade civil pode ser classificada como subjetiva e objetiva. De se dizer que o dano, além de ser elemento, é fundamento da responsabili-
acordo com uma concepção clássica, a culpa é inerente à ideia de responsabili- dade civil, pois sem ele não haveria necessidade de reparar ou ressarcir, já
dade e constitui um de seus elementos caracterizadores, de forma que, sem ela, que não haveria prejuízo.
não há que se falar em responsabilização27. Sergio Cavalieri Filho30 conceitua o dano como “a subtração ou diminuição
Essa é a teoria subjetiva ou teoria da culpa, que está prevista no artigo 186 de um bem jurídico, qualquer que seja sua natureza, quer se trate de um bem
patrimonial, quer se trate de um bem integrante da própria personalidade da
22) GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: responsabilidade civil. v. 4. 8. ed. vítima, como a sua honra, a imagem, a liberdade, etc.”.
São Paulo: Saraiva, 2013. p. 19. A partir deste conceito, é possível extrair que o dano não é necessaria-
23) CAVALIERI FILHO, 2010, p. 2. mente causador de redução patrimonial, mas também pode abranger as le-
sões relativas à personalidade do indivíduo. Assim, convém fazer uma divi-
24) STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 8. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 141.
25) GONÇALVES, op. cit., p. 44 28) CAVALIERI FILHO, 2010, p. 24.
26) GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013. p. 53. 29) Ibid., p. 25.
27) GONÇALVES, op. cit., p. 48. 30) Ibid., p. 73.

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são entre dano patrimonial e dano moral. age desejando qualquer dos resultados de sua conduta e em eventual, quando o
O dano patrimonial é aquele que causa diminuição no patrimônio, abran- agente prevê possível consequência de sua conduta, mas mesmo assim age sem
gendo lesões a bens corpóreos e a direitos que possam ser apreciados econo- se importar com o resultado37.
micamente. O agravo pode ser atual, chamado também de dano emergente, Já a culpa stricto sensu pode ser definida como a conduta inadequada, por
ou futuro, quando frustra expectativa de lucro, configurando o lucro cessante31. causa de negligência, imprudência ou imperícia, que causa dano previsível de
O dano moral, ao contrário do patrimonial, não tem conteúdo pecuniário, forma não intencional38.
nem pode ser reduzido a um valor monetário, pois afeta a esfera dos direitos Dessa forma, negligência, imprudência e imperícia são formas de exterioriza-
da personalidade, o que acaba por ocasionar grande dúvida na quantificação do ção da conduta culposa39. Negligência é a não observância do dever de cuidado, é
dano, para fins de reparação civil32. a falta de atenção, que normalmente ocorre por omissão quando o agente deveria
Outro elemento da responsabilidade civil é o nexo causal. Este elemento agir. A imprudência é a falta de cautela ao agir, ou seja, caracteriza-se comumen-
desempenha papel de conector entre a conduta ilícita e o dano, pois ele tem te por conduta comissiva. Por último, a imperícia significa a falta de habilidade
a função de comprovar que o dano foi ocasionado em decorrência da con- para a realização de atividade técnica, podendo ocorrer por ação ou omissão40.
duta ilícita do agente33. Estes foram os elementos da responsabilidade civil subjetiva, que também
O último elemento é a culpa, que é conceito amplo, podendo abranger a estão presentes na responsabilidade civil objetiva, exceto o elemento culpa.
culpa em sentido estrito e o dolo. É conceituada muito bem, por Rui Stoco, Esse é o grande diferencial entre as duas modalidades.
como a: “[...] expressão da consciência e vontade dirigidas a um fim perseguido A responsabilidade objetiva visa proteger algumas situações que a subjetiva
e querido, embora ilícito, como o descumprimento de um dever de cuidado ou não alcança, deixando a vítima em desamparo. Dessas situações, surgiu a teo-
de diligência em razão de açodamento, de desídia ou de imperfeição técnica, ria do risco, para justificar a responsabilização sem culpa. Cavalieri Filho41 en-
330 ainda que sem intenção de prejudicar34”. tende que risco é perigo de dano, é probabilidade de dano, de forma que aque- 331
Nesse sentido, podemos estabelecer três elementos essenciais para configu- le que exerce atividade de risco deve responder objetivamente se causar dano.
rar a culpa em sentido amplo: comportamento voluntário do agente, previsibi- No contexto da teoria do risco, foram criadas algumas modalidades ou su-
lidade do resultado e violação de dever de cuidado. bespécies para tentar explicar quando e como o risco seria utilizado para res-
A partir dessas noções, é preciso diferenciar o dolo e a culpa em sentido ponsabilizar civilmente alguém. Dentre essas teorias, as principais são: risco
estrito. O dolo se refere à vontade do agente em produzir o resultado danoso, -proveito, risco profissional, risco excepcional, risco criado e risco integral.
ofendendo dever preexistente35 ou ainda pode ser conceituado como a viola- A teoria do risco-proveito sustenta que deve ser responsabilizado aquele
ção intencional do dever jurídico, de acordo com Carlos Roberto Gonçalves36. que ganha proveito com a atividade danosa, cabendo à vítima provar o ga-
O Código Penal, em seu artigo 18, I, faz referência ao dolo dividindo-o em nho obtido pelo agente. Essa teoria merece crítica, pois o fato de a vítima
duas modalidades: dolo direto e dolo indireto. O dolo é direto quando o agente ter provar o ganho do agente acaba prejudicando-a, já que pode encontrar
tem como intenção determinado resultado e este resultado se realiza na práti- dificuldades em produzir provas, assim como ocorre na responsabilidade
ca. Quanto ao dolo indireto, pode ser dividido em alternativo, quando o agente subjetiva, tornando difícil a reparação42.

31) Ibid., p. 73-74. 37) STOCO, op. cit., p. 174.


32) GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013, p. 105. 38) Ibid., p. 157.
33) CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 47. 39) CAVALIERI FILHO, 2010, p. 37.
34) STOCO, 2011, p. 157. 40) STOCO, op. cit., p. 158.
35) STOCO, op. cit., loc. cit.. 41) CAVALIERI FILHO, 2010, p. 142.
36) GONÇALVES, 2013, p. 53. 42) Ibid., p. 143.

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Semelhante à anterior, a teoria do risco profissional baseia-se na ideia de


3.1) Princípios do Direito Ambiental
que o responsável é aquele que desenvolve atividade ou profissão com fins lu-
crativos, e delas decorre o dano43.
Conquanto uma série de princípios orientem o direito ambiental, serão trata-
Já o risco excepcional, como o próprio nome diz, é extraordinário, vai além
dos somente alguns deles neste tópico, cujo conteúdo tenha relação com o ins-
da atividade comum da vítima e exatamente por submeterem a coletividade a
tituto da responsabilidade civil.
esses riscos é que deve ser atribuída a responsabilidade objetiva44.
Outra é a tese do risco criado, que tem como adepto Caio Mário da Silva
Pereira45. Segundo ele, “aquele que, em razão de sua atividade ou profissão, cria
um perigo, está sujeito à reparação do dano que causar, salvo prova de haver 3.1.1) Princípios da Prevenção e da Precaução
adotado todas as medidas idôneas a evitá-lo”.
Assim, se o risco é criado pela atividade exercida pelo agente, cabe a res- Estes princípios são comumente utilizados como sinônimos pelos juristas,
ponsabilidade objetiva. entretanto, os dois termos diferenciam-se etimologicamente. De acordo com
Por fim, a modalidade do risco integral baseia-se na tese de que basta o Milaré48, enquanto prevenção significa chegar antes, antecipar-se no tempo,
dano para haver responsabilidade. Essa teoria mais radical pode ser criticada com finalidade conhecida, precaução sugere cuidado antecipado com o desco-
pelo fato de que, segundo ela, há responsabilização até em situações em que nhecido. Nesse sentido, o autor entende que a prevenção abarca a precaução.
inexiste o nexo causal, como nas hipóteses de caso fortuito e força maior, que José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala49 chamam o princípio
são excludentes de responsabilidade civil. É por isso que essa teoria só é adota- da prevenção de ação preventiva e a diferenciam do princípio da precaução, na
da em alguns casos no direito brasileiro46. medida em que aquela exige a eliminação dos perigos comprovados e esta não
332 necessita de comprovação absoluta de um nexo causal para que haja ação para 333
eliminação de possíveis danos ao meio ambiente.
Esse entendimento é claramente baseado na disposição do princípio 15
3) Responsabilidade Civil no Direito Ambiental
da Declaração do Rio de Janeiro de 1992, na Conferência das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, cuja redação é a seguinte: “Com
De início, é certo que os danos causados ao meio ambiente têm repercussão
o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser am-
jurídica tripla, termo utilizado por Édis Milaré47 para definir o âmbito jurídico
plamente observado pelos Estado, de acordo com suas capacidades. Quando
afetado em caso de dano ambiental. Essa constatação é feita a partir da leitura
houver ameaça a danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica
do artigo 225, §3º, da CF, que estabelece a responsabilização do infrator nas
absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas econo-
esferas penal, administrativa e civil, alternativa ou cumulativamente.
micamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”50.
Neste tópico será analisada a responsabilidade civil e a forma como ela se
Essa diferenciação também é feita por Édis Milaré, cujo entendimen-
relaciona com o direito ambiental, incluindo os princípios do direito ambien-
to é de que o princípio da prevenção é aplicado “quando o perigo é certo e
tal que orientam a responsabilização, bem como a teoria adotada pelo direito
quando se tem elementos seguros para afirmar que uma determinada ativi-
brasileiro para responsabilização civil por dano ambiental.

43) STOCO, 2011, p.187.


44) CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 144. 48) Ibid., p. 1069.

45) PEREIRA apud CAVALIERI FILHO, 2010, p. 144. 49) LEITE; AYALA, 2012, p. 52-53.

46) CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 145. 50) ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração do Rio de Janeiro de 1992 –
Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Disponível em:
47) MILARÉ, 2011, p. 1130. <http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/rio92.pdf>. Acesso em: 5 mar. 2014.

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dade é efetivamente perigosa”51. jurídico nacional não aceita norma que disponha em sentido contrário ou
Por outro lado, o princípio da precaução deve ser invocado quando a infor- limite a indenização, devendo ser considerada inconstitucional, nos dizeres
mação científica é incerta, mas haja indicação de que os efeitos sobre o am- de Édis Milaré56. Caso não seja possível restaurar o estado original da coisa,
biente como um todo podem ser “potencialmente perigosos e incompatíveis o ressarcimento deve ser feito em espécie, cujo valor deve ser depositado no
com o nível de proteção escolhido”52. O nível de proteção deve ser entendido fundo para o meio ambiente57, que pode ser de âmbito federal, estadual ou
como a abrangência da intervenção do Estado nas questões ambientais, que municipal, a depender de seu alcance.
varia de acordo com o local. Assim, o princípio da precaução está em constan- Este princípio é claramente adotado pelo direito brasileiro, com previsão no
te desenvolvimento, já que a todo momento novas tecnologias surgem e, com artigo 4º, VI, da lei 6.938, que dispõe que o poluidor tem a obrigação de recu-
elas, surgem também novas ameaças. perar ou indenizar os danos causados, e no artigo 225, § 3º, da CF, que dispõe
que os infratores estão sujeitos a sanções penais e administrativas, além de se-
rem obrigados a reparar os danos causados.
Além disso, o princípio do poluidor-pagador também foi adotado no prin-
3.1.2) Princípio do Poluidor-pagador
cípio 16 da Declaração do Rio de Janeiro de 1992, na Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, cuja redação é a seguinte:
O princípio do poluidor-pagador estabelece que o poluidor deve reparar o
“As autoridades nacionais devem procurar promover a internacionalização dos
dano que causar ao meio ambiente. É claro que a indenização não substitui o
custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, tendo em vista a abor-
que foi alterado e, muitas vezes, não repara os danos causados, mas é impor-
dagem segundo a qual o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo da poluição,
tante por seu conteúdo pedagógico, funcionando como forma de evitar que
com a devida atenção ao interesse público e sem provocar distorções no comér-
ocorram novos danos53.
334 cio e nos investimentos internacionais” (grifo nosso). 335
No mesmo diapasão, este princípio não deve ser interpretado no sentido de
Os princípios da prevenção, da precaução e do poluidor-pagador, abordados
que aquele que indeniza ou repara o dano está livre para danificar o meio am-
acima, baseiam a aplicação da responsabilidade civil no direito brasileiro e par-
biente, porque a coletividade é titular do bem ambiental, o que significaria pa-
ticipam de sua concretização, pois é com base neles e na importância do bem
gar para utilizar o bem de todos, como demonstra Marcelo Abelha Rodrigues:
protegido que se encontra a justificativa para a aplicação da responsabilidade.
“Muitas vezes tomado como ‘pago para poder poluir’, o princípio do poluidor
pagador passa muito longe deste sentido, não só porque o custo ambiental não
encontra valoração pecuniária correspondente, mas também porque a ninguém
poderia ser dada a possibilidade de comprar o direito de poluir, beneficiando- 3.2) Responsabilidade Objetiva
se do bem ambiental em detrimento da coletividade que dele é titular”54.
Ao contrário, este princípio busca a internalização do déficit ambiental por A responsabilidade civil por danos ambientais tem previsão no artigo 14,
aquele que utiliza o meio ambiente em seu proveito, buscando-se, com isso, §1º, da lei 6.938, segundo o qual o poluidor é obrigado a reparar, indepen-
evitar a socialização do dano causado ao meio ambiente55. dentemente de culpa, os danos causados ao meio ambiente e a terceiros afe-
A reparação do dano causado deve ser integral, de forma que o sistema tados por sua atividade.
Posteriormente, e no mesmo sentido, a Constituição Federal de 1988 dis-
pôs no artigo 225, §3º, que o infrator, pessoa física ou jurídica, está sujeito às
51) MILARÉ, 2011, p. 1070.
sanções penal e administrativa, independentemente da obrigação de reparar
52) Ibid., p. 1071. o dano. Dessa forma, o infrator pode, ao mesmo tempo, responder por crime
53) SIRVINSKAS, 2013, p. 144.
54) RODRIGUES, 2005. p. 190. 56) MILARÉ, 2011, p. 1252.
55) RODRIGUES, 2005. p. 190. 57) SIRVINSKAS, 2013, p. 144.

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ambiental, por infrações administrativas e, ainda, reparar os danos causados ao finalidade da lei, isto porque: “Se fosse possível invocar o caso fortuito ou
ambiente e a terceiros que também sejam afetados. a força maior como causas excludentes de responsabilidade civil por dano
Dessa forma, percebe-se que a responsabilidade civil adotada pelo direito ecológico, ficaria fora da incidência da lei, a maior parte dos casos de polui-
ambiental brasileiro é a responsabilidade objetiva e “independe, pois, da exis- ção ambiental, como a destruição da fauna e da flora causada por carga tó-
tência de culpa e se funda na ideia de que a pessoa que cria o risco deve reparar xica de navios avariados em tempestades marítimas; rompimento de oleo-
os danos advindos de seu empreendimento”58, bastando que estejam presentes duto em circunstâncias absolutamente imprevisíveis, poluindo lagoas, baías,
apenas os elementos: ação ou omissão do agente, dano e nexo de causalidade. praias e mar; contaminação de estradas e rios, atingindo vários municípios,
Assim, a prova da responsabilidade se torna de mais fácil obtenção, sem a provocada por acidentes imponderáveis de grandes veículos transportadores
comprovação da culpa, com o intuito de “serem protegidos bens de alto inte- de material poluente e assim por diante”61.
resse de todos e cuja lesão ou destruição terá consequências não só para a ge- Observa-se a adoção da teoria do risco integral em grande parte da ju-
ração presente, como para a geração futura”59. risprudência pátria, incluindo o Superior Tribunal de Justiça, como no
exemplo a seguir: “DIREITO AMBIENTAL E PROCESSUAL CIVIL.
DANO AMBIENTAL. LUCROS CESSANTES AMBIENTAL.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA INTEGRAL. DILAÇÃO
4) Excludentes de Responsabilidade Civil no Direito Ambiental
PROBATÓRIA. INVERSÃO DO ÔNUS PROBATÓRIO. CABIMENTO.
1. A legislação de regência e os princípios jurídicos que devem nortear o ra-
Em sede de responsabilidade civil por dano ambiental, de acordo com previsão
ciocínio jurídico do julgador para a solução da lide encontram-se insculpidos
expressa no artigo 14, §1º, da lei 6.938, é incontestável, portanto, que a mo-
não no códice civilista brasileiro, mas sim no art. 225, § 3º, da CF e na Lei
dalidade adotada pelo direito brasileiro é a objetiva. Contudo, não há previsão
336 6.938/81, art. 14, § 1º, que adotou a teoria do risco integral, impondo ao po- 337
legal ou consenso doutrinário sobre qual das vertentes da teoria do risco deve
luidor ambiental responsabilidade objetiva integral. Isso implica o dever de
ser adotada. Tal fato enseja situações controvertidas nos casos concretos, como
reparar independentemente de a poluição causada ter-se dado em decorrên-
a possibilidade de aplicação ou não das excludentes de responsabilidade civil,
cia de ato ilícito ou não, não incidindo, nessa situação, nenhuma excluden-
de modo que uma análise das diversas correntes adotadas pelos doutrinadores
te de responsabilidade. Precedentes. 2. Demandas ambientais, tendo em vista
e pela jurisprudência se faz imprescindível.
respeitarem bem público de titularidade difusa, cujo direito ao meio ambien-
Sirvinskas, ao tratar do tema, concorda com o posicionamento de que
te ecologicamente equilibrado é de natureza indisponível, com incidência de
a responsabilidade objetiva, prevista na lei 6.938, foi recepcionada pela
responsabilidade civil integral objetiva, implicam uma atuação jurisdicional de
Constituição Federal de 1988. O referido autor ainda complementa que essa
extrema complexidade. 3. O Tribunal local, em face da complexidade proba-
modalidade não admite qualquer excludente de responsabilidade60. Dessa for-
tória que envolve demanda ambiental, como é o caso, e diante da hipossufici-
ma, Sirvinskas é adepto à parte da doutrina que entende pela adoção da teo-
ência técnica e financeira do autor, entendeu pela inversão do ônus da prova.
ria do risco integral, teoria esta que não admite alegação das excludentes de
Cabimento. 4. A agravante, em seu arrazoado, não deduz argumentação jurídi-
responsabilidade civil para eximir a responsabilidade do causador do dano.
ca nova alguma capaz de modificar a decisão ora agravada, que se mantém, na
Da mesma maneira, Sérgio Cavalieri Filho entende pela adoção da te-
íntegra, por seus próprios fundamentos. 5. Agravo regimental não provido”62.
oria do risco integral e argumenta que esta teoria pode ser extraída do tex-
A adoção da teoria do risco integral no âmbito da responsabilidade civil por
to constitucional e a partir do sentido teleológico da lei 6.938, ou seja, pela

61) CAVALIERI FILHO, 2010, p. 154.


58) GONÇALVES, 2013, p. 87. 62) BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo regimental em recurso especial nº
59) MACHADO, 2013, p. 405. 1412664/SP. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.
asp?sLink=ATC&sSeq=33596392&sReg=201103053649&sData=20140311&sTipo=5&-
60) SIRVINSKAS, 2013, p. 263-266. formato=HTML>. Acesso em: 22 abr. 2014.

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Causas Excludentes de Nexo Causal:
Aplicabilidade no Direito Ambiental Brasileiro Camila Pedroni Ribeiro m Cristina Grobério Pazó

dano ambiental merece críticas. Tratando-se de responsabilidade civil na mo- Apesar de não ter conhecido do recurso, por não se tratar de hipótese de re-
dalidade objetiva, devem estar presentes seus elementos: conduta comissiva ou discussão do mérito, o acórdão abordou a necessidade do nexo causal para con-
omissiva, dano e nexo de causalidade. Ao negar a incidência de excludentes de figurar a responsabilidade civil por dano ambiental, da mesma maneira que de-
responsabilidade civil que rompem com o nexo causal, estar-se-ia permitindo a cidiu o Tribunal a quo (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios).
responsabilização sem a presença de um dos elementos: o nexo causal. Há quem entenda, ainda, que a análise deve ser feita a partir do caso
Outra crítica à adoção dessa teoria é que ela é extremada, exatamente por concreto, sob a perspectiva do risco ao qual a atividade expôs o meio am-
não admitir excludentes de responsabilidade em nenhuma hipótese. Se por um biente e a sociedade. Neste sentido, Maria Luiza Machado Granziera, ob-
lado isso é importante para garantir o meio ambiente ecologicamente equili- serva que o agente não pode ser responsabilizado se o dano foi decorrente
brado, por outro lado, em caso de dano, não há prestígio para aquele que tomou de fato totalmente imprevisto e cujos efeitos não era possível evitar, afas-
várias providências para evitar danos, como “o cumprimento de todas as exi- tando implicitamente a teoria do risco integral, que não admite nenhuma
gências, a busca do constante desenvolvimento tecnológico inovador, o exame excludente de responsabilidade66.
das necessidades coletivas das populações, atual e futura”63. Em direção similar, Machado67 discorda da adoção ilimitada do caso for-
Por outro lado, Carlos Roberto Gonçalves entende que podem ser aplica- tuito e da força maior, excludentes de responsabilidade civil, pois não haveria
das as excludentes que rompem com o nexo causal, justamente por faltar um análise dos efeitos causados pelo fato decorrente da natureza. Assim, tratando-
dos elementos da responsabilidade civil, como se pode perceber no trecho: “pa- se de responsabilidade objetiva, o referido autor entende que deve ser averigua-
rece-nos, todavia, que tais excludentes devem ser admitidos, uma vez que não da a ausência de previsibilidade e as medidas tomadas para evitar os efeitos do
afastam a culpa do poluidor, mas afetam o nexo causal, rompendo-o”64. fato “sem se levar em conta a diligência dos atos do devedor, pois a ocorrência
Neste sentido entendeu o STJ no Recurso especial nº 620872/DF: da responsabilidade independe de sua culpa”68.
338 “PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL Esse posicionamento parece ser um meio termo entre a adoção da teoria do 339
PÚBLICA. DANO AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. risco integral e a aplicação ilimitada das excludentes de responsabilidade civil
NEXO DE CAUSALIDADE AFASTADO PELO TRIBUNAL DE que rompem o nexo de causalidade.
ORIGEM. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. Diante do que foi exposto, parece-nos importante pensar em uma teoria
IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. RECURSO ESPECIAL NÃO- que proteja o meio ambiente, levando em conta sua importância, e ao mesmo
CONHECIDO. 1. O Tribunal de origem, ainda que considerando a respon- tempo não contrarie a legislação nacional.
sabilidade objetiva para os danos causados ao meio ambiente, afastou expressa- Analisando-se o conjunto de normas vigentes no país, a partir de uma in-
mente o nexo causal entre a ação do recorrido e os prejuízos causados ao meio terpretação teleológica, é possível apreender que o legislador teve a intenção
ambiente. 2. Portanto, a eventual análise da pretensão recursal, especificamente de dar a maior proteção possível ao meio ambiente, com a adoção da respon-
quanto à responsabilidade do referido condomínio pelo dano ambiental cau- sabilidade civil objetiva.
sado na área litigiosa, com a consequente reversão do entendimento exposto No entanto, a aplicação dessa modalidade de responsabilidade civil não
pelo Tribunal de origem, exigiria o reexame de matéria fático-probatória, o que deve ser radical, no sentido de aceitar a responsabilização mesmo faltan-
não é admitido em sede de recurso especial, nos termos da Súmula 7/STJ. 3. do os elementos necessários para sua caracterização, quais sejam: conduta,
Recurso especial não-conhecido”65. dano e nexo causal.

63) CASTRO, Guilherme Couto de. A responsabilidade civil objetiva no direito brasileiro. Acesso em 24 abr. 2014.
Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 118.
66) GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito ambiental. 2. ed. rev. e atual. São Paulo:
64) GONÇALVES, 2013, p. 90. Atlas, 2011. p. 687.
65) BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial nº 620872/DF. Disponível 67) MACHADO, 2013, p. 421.
em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSe-
q=2719195&sReg=200302355542&sData=20070201&sTipo=5&formato=HTML>. 68) Ibid., p. 422.

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Causas Excludentes de Nexo Causal:
Aplicabilidade no Direito Ambiental Brasileiro

Dessa maneira, não seria possível a adoção da teoria do risco integral.


Entendemos, portanto, pela possibilidade da utilização das excludentes de res-
ponsabilidade civil que rompem o nexo causal, como o caso fortuito, a força
maior, o fato de terceiro e a culpa exclusiva da vítima, pois, nestes casos, faltaria
um dos elementos necessários para configurar a responsabilidade civil objetiva.

H Conclusão
Diante do que foi apresentado neste estudo, restou clara a importância que o
meio ambiente tem em sua relação com o homem, cabendo a este o papel de
defendê-lo e preservá-lo. Dessa forma, a responsabilidade civil por dano am-
biental assume importante papel de prevenir e reparar danos ao meio ambiente.
É diante deste cenário que o questionamento inicial que deu origem a esta
pesquisa é tão importante, pois, mesmo com a omissão do legislador, é impres-
cindível saber se é possível a utilização de excludentes de responsabilidade civil
com o intuito de ver a responsabilidade civil afastada.
A aceitação ou a negação do uso dessas excludentes ocasiona diversas con-
340 sequências no mundo jurídico. Tal questão, portanto, deve ser tratada de forma
a observar os princípios de direito ambiental, bem como os princípios consti-
tucionais ambientais, tendo como norte o direito ao meio ambiente ecologi-
camente equilibrado. Não obstante, o instituto da responsabilidade civil, assim
como seus elementos, não pode ser desprezado ou ignorado para proteger o
meio ambiente a todo e qualquer custo.
Dessa forma, a partir da análise do ordenamento jurídico brasileiro como
um todo sistemático, parece-nos que não foi a intenção do legislador permitir
o uso das excludentes de responsabilidade civil como regra geral, diante da am-
pla proteção dada ao meio ambiente. Entretanto, consideramos correta a utili-
zação das excludentes que rompem o nexo causal, justamente pela ausência de
um dos elementos caracterizadores da responsabilidade civil.

Direitos Humanos e Meio Ambiente


17
Tutela do Meio Ambiente do Trabalho
nos Planos Internacional e Interno

Lívia Gaigher Bósio Campello1*


Faculdade Estácio de Sá em São Paulo

Carlos Walter Marinho Campos Neto2**


Universidade de São Paulo

Sumário: Introdução. 1 A questão ambiental. 2 Regime de


Proteção do Meio Ambiente do Trabalho. 3 Responsabilidade
Objetiva do Empregador no Meio Ambiente Laboral. 4 Ação Civil
Pública por Danos ao Meio Ambiente Laboral. Conclusão
341

1) * Doutora em Direito das Relações Econômicas e Internacionais pela Pontifícia Univer-


sidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Professora da Estácio de Sá – São Paulo e do
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu - Mestrado da Unimar. Advogada em São
Paulo. E-mail: livia.gaigher@uol.com.br.
2) ** Mestrando em Direito Internacional pela USP. Advogado. E-mail: cwcampos@usp.br.
Tutela do Meio Ambiente do Trabalho nos Planos Internacional e Interno Lívia Gaigher Bósio Campello m Carlos Walter Marinho Campos Neto

H Introdução Inglaterra” (“Die Lage der Arbeitenden Klasse in England”, 1845), registrou que,
em bairros operários da época, já se constatava o barulho contínuo e insupor-
Se o Direito do Trabalho trata da condição jurídica dos trabalhadores, regendo tável, a água contaminada e os cortiços insalubres como fatores de degradação
as relações jurídicas entre empregados e empregadores, e o Direito Ambiental do meio ambiente. Diante disso, Ronaldo Coutinho ressalta que “como o pro-
trata da proteção do meio ambiente, bem como de disciplinar o comporta- letariado foi durante muito tempo a exclusiva vítima da degradação ambiental,
mento a ele relacionado, o Meio Ambiente do Trabalho pode ser posicionado essa questão foi acobertada pelo silêncio histórico”. 3
como pertencente a um campo comum ao Direito Ambiental e ao Direito do A chamada “crise ambiental” se impôs intensamente preocupante nas
Trabalho, na medida em que lida com a qualidade do meio ambiente onde são três últimas décadas do século passado, quando a situação ecológica adqui-
exercidas atividades laborais. riu proporções exponenciais e dimensão planetária.4 Em 1968, havia sido
É sabido que no mundo do trabalho atual existem dois objetivos que ad- criado o Clube do Roma, que reunia pedagogos, cientistas, economistas en-
quirem cada vez maior protagonismo: que o trabalho a ser prestado pelos tre outros para debater sobre a crise e o futuro da humanidade. Em seu pri-
trabalhadores seja “justo” e “digno”; e que o desenvolvimento socioeconômi- meiro relatório, em 1972, The Limits to Growth, apresentou dados de um ce-
co, a que se aspira com a organização e prestação de tal trabalho, seja “sus- nário catastrófico de como seria o planeta se permanecessem os padrões de
tentável”, o que deve ser entendido como a busca do progresso econômico desenvolvimento vigentes. Nos termos do relatório: “1. Se as atuais tendên-
– sempre necessário – sem menosprezo algum à qualidade de vida nem de- cias de crescimento da população mundial, industrialização, poluição, pro-
terioração do meio ambiente. dução de alimentos, e esgotamento dos recursos continuarem inalteradas,
Com esta perspectiva, este estudo pretende demonstrar como ocorre a in- os limites do crescimento neste planeta serão alcançados algum dia dentro
tegração do meio ambiente, enquanto conteúdo essencial do trabalho digno e dos próximos cem anos. O resultado mais provável será um declínio súbito
342 do desenvolvimento sustentável, no Direito do Trabalho. Mais especificamen- e incontrolável na população e na capacidade industrial. 2. É possível alte- 343
te, almeja explicar como o direito ao meio ambiente do trabalho equilibrado rar essas tendências de crescimento e estabelecer uma condição de estabili-
está protegido no ordenamento jurídico internacional e brasileiro, assim como dade ecológica e econômica que seja sustentável a longo prazo. O estado de
o respectivo modo pelo qual essa tutela pode ser exigida. equilíbrio global poderia ser concebido de modo que as necessidades mate-
Nesse passo, no primeiro capítulo será apresentada a evolução da questão riais básicas de cada pessoa na Terra fossem satisfeitas e cada pessoa tivesse
ambiental, imposta pela conscientização, ao longo da segunda metade do a mesma oportunidade de realizar seu potencial humano individual.”5
século XX, quanto à existência de uma crise de dimensões planetárias. Em
seguida, será estudado o regime de proteção do meio ambiente do trabalho,
composto de direitos e obrigações constitucionais, infraconstitucionais e in- 3) COUTINHO, Ronaldo do Livramento. Direito Ambiental das Cidades: Questões teórico-
metodológicas. In: COUTINHO, Ronaldo do Livramento; ROCCO, Rogério (orgs.). O
ternacionais. A partir daí, discutir-se-á a natureza da responsabilidade dos Direito Ambiental das Cidades. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p. 21.
agentes causadores de danos ao meio ambiente do trabalho. Por fim, anali-
4) Em 26 de janeiro de 1971, na conferência The Necessity of Social Control, István Mészáros
sar-se-á a Ação Civil Pública trabalhista como principal instrumento jurí- afirmou: “Há dez anos a ecologia podia ser tranquilamente ignorada ou desqualificada como
dico de proteção do ambiente laboral. totalmente irrelevante. [...] As pessoas deveriam esquecer tudo sobre as cifras astronômicas
despendidas em armamentos e aceitar cortes consideráveis em seu padrão de vida, de modo a
viabilizar os ‘custos de recuperação do meio ambiente’: isto é, em palavras simples, os custos
necessários à manutenção do atual sistema de expansão da produção de supérfluos”. MÉS-
ZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Ed. Unicamp/Boitempo, 2002.
1) A questão ambiental
5) MEADOWS, Donella H. et al. The Limits to Growth: A Report to the Club of Rome, 1972.
Disponível em: http://www.clubofrome.org/?p=1161. Acesso em 03.02.2014. No original,
Decerto, o declínio da qualidade de vida nas cidades avultou-se com as cres- em inglês: “1. If the present growth trends in world population, industrialization, pollution,
centes taxas de urbanização provocadas, mormente, pela Revolução Industrial. food production, and resource depletion continue unchanged, the limits to growth on this
Em 1845, Friedrich Engels, na obra “A situação da classe trabalhadora na planet will be reached sometime within the next one hundred years. The most probable result
will be a rather sudden and uncontrollable decline in both population and industrial capacity.

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Já no segundo relatório, Mankind at Turning Point, em 1974, foram des- O terceiro relatório, Reshaping the international order (RIO), foi publicado
tacados dois desníveis em nosso planeta, um entre o desenvolvimento hu- em 1977, e foca nas bases técnicas e científicas do crescimento econômico ne-
mano e a natureza, e outro, entre o número de ricos e pobres, propondo-se cessário ao bem estar presente e futuro da população mundial. São identifica-
desenvolvimentos diferenciados a depender das especificidades e das diver- dos as questões consideradas mais problemáticas, dentre elas a explosão demo-
sidades de cada região. gráfica, a escassez de alimentos, os danos à integridade ambiental e a iminência
“5.1 Se o padrão histórico de desenvolvimento for mantido, e as hipóte- do colapso do sistema financeiro mundial. Dentre as propostas apresentadas
ses mais favoráveis ​​em relação ao aumento da população forem adotadas, a pelo Relatório, voltadas a um crescimento do sistema econômico global mais
desproporção entre a renda média per capita do mundo desenvolvido e a da harmonioso e igualitário, está a redução dos danos ambientais causados pela
América Latina aumentará de 5 – 1 para 8 para 1 nos próximos 50 anos. A si- expansão da produção mundial, por meio de intensa pesquisa relacionada
tuação é pior em relação ao Sul da Ásia e à África Tropical. a formas alternativas de energia e à reciclagem de resíduos, bem como pela
5.2 Um possível passo para a redução da diferença seria um contínuo au- adaptação dos estilos de vida.7
xílio em forma de investimento nas regiões carentes: isso implicaria em uma A questão ambiental avulta definitivamente a partir dos relatórios de pre-
substantiva perda per capita anual para as regiões desenvolvidas, mesmo para paração para a Conferência de Estocolmo, em 1972, representando a valori-
alcançar uma proporção de 3 para 1 na América Latina, e melhorias corres- zação política do meio ambiente em nível internacional.8 Assim, no âmbi-
pondentes em outras regiões subdesenvolvidas. O custo seria 50% maior se o to da Organização das Nações Unidas (ONU), a realização da I Conferência
início do programa de ajuda fosse postergado por ​​ 25 anos; por outro lado, se Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em Estocolmo, de 5 a
uma ajuda maciça for fornecida nos próximos 25 anos, o custo para o mundo 16 de junho de 1972, acarretou reconhecimento mundial para a importância
desenvolvido pode ser reduzido à metade. Ações rápidas custam apenas um da discussão e da mobilização voltadas à preservação ambiental e ao equilí-
344 quinto do que ações finais, e, além disso, poderia tornar possível a completa au- brio ecológico global. Os principais resultados desse encontro foram a cria- 345
tossuficiência das regiões em desenvolvimento até o final do século. ção do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA e
5.3 O mundo industrializado só pode garantir tempo para desenvol- a Declaração sobre o Meio Ambiente Humano, também conhecida como
ver fontes alternativas de energia usando quase a totalidade das reservas Declaração de Estocolmo, que contém 26 princípios referentes a comporta-
de petróleo. Isso antecipa a fonte de energia mais eficiente e conveniente, mentos e responsabilidades destinados a nortear as questões ambientais.9
precisamente quando as nações em desenvolvimento mais precisam dela.
Segue-se que mesmo os auxílios em forma de investimentos maciços não
veloped regions.
são, por si só, suficientes.”6 The cost would be 50% greater if the commencement of the aid programme were delayed
for 25 years; if on the other hand massive aid is provided in the next 25 years, the cost to the
developed world might be more than halved. Early action costs only one fifth as much as late
2. It is possible to alter these growth trends and to establish a condition of ecological and action; in addition, it could make possible the complete self-sufficiency of the developing
economic stability that is sustainable far into the future. The state of global equilibrium could regions by the end of the century.
be designed so that the basic material needs of each person on earth are satisfied and each 5.3 The industrialised world can only secure time to develop alternative energy sources by
person has an equal opportunity to realize his individual human potential.” using nearly the entire oil reserves; this effectively preempts the most efficient and convenient
energy source precisely when the developing nations need it most. It follows that even mas-
6) MESAROVIC, Mihajlo; PESTEL, Eduard. Mankind at the turning point: The second report sive investment aid is not, by itself, sufficient.”
to the Club of Rome, 1974. Disponível em: http://aei.pitt.edu/42190/1/A6277res.pdf. Aces-
so em 03.02.2014. No original, em inglês: “5. Problems of the developing regions: 7) TINBERGEN, Jan. Reshaping the international order (RIO). Futures, v. 8, n. 6, 1976, pp.
5.1. If the historical pattern of development is maintained, and the most favourable assump- 553-556.
tions about population increase are adopted, the disproportion between average per capita 8) COUTINHO, Ronaldo do Livramento. Direito Ambiental das Cidades: Questões teórico-
incomes in the developed world and Latin America will increase from 5:1 to 8:1 in the next metodológicas. In: COUTINHO, Ronaldo do Livramento; ROCCO, Rogério (orgs.). O
50 years. The position is worse in South Asia and Tropical Africa. Direito Ambiental das Cidades. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p. 21.
5.2 One possible step to narrow the gap would be continuous investment aid in the needy
regions: this would involve a substantial annual per capita loss to the developed regions even 9) Dentre os princípios enumerados na referida Declaração, destaque-se: Princípio 4 - O Ho-
to achieve a ratio of 3:1 in Latin America and corresponding improvements in other unde- mem tem a responsabilidade especial de preservar e administrar judiciosamente o patrimô-

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A institucionalização da questão ambiental adquiriu novos contornos com a fusos. Esses são direitos voltados para o ser humano enquanto gênero, ou seja,
elaboração e divulgação, em 1987, do “Nosso futuro comum”, como é mais co- a humanidade, reconhecendo necessidades e anseios comuns a todos os indiví-
nhecido o relatório da Comissão Especial criada pela Assembleia Geral da ONU, duos. Como leciona Vladmir Oliveira da Silveira, a terceira geração dos direi-
sob a presidência da então primeira-ministra da Noruega, Gro Brundtland, o tos humanos sintetiza os direitos da primeira (direitos humanos individuais)
qual, em termos gerais, propõe estratégias ambientais de longo prazo para al- e da segunda (direitos humanos coletivos) gerações sob o viés da solidarieda-
cançar o desenvolvimento sustentável. Pela primeira vez foi usado o conceito de de, fundados sob uma nova concepção de Estado, de ordem internacional e de
“desenvolvimento sustentável”, definido pela Comissão como o “desenvolvimen- relacionamento entre os povos voltados não apenas ao acréscimo de novos di-
to que atende às necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade reitos, mas à realização efetiva dos direitos anteriores.11 Portanto, enquanto di-
de as futuras gerações terem suas próprias necessidades atendidas”. reito de terceira geração, a proteção do meio ambiente resulta do interesse na
Desse modo, o Relatório Brundtland reforçou uma visão crítica do mode- sobrevivência e no bem-estar da espécie humana. Decerto que, dentre as pre-
lo de desenvolvimento adotado pelos países industrializados, e reproduzido tensões relacionadas ao bem-estar do ser humano e à sua dignidade, está a de
pelas nações em desenvolvimento, incompatível com a dimensão ambiental que lhe seja proporcionado um meio ambiente do trabalho sadio e seguro.
emergente. Maristela Bernardo10 anota que “a Constituição brasileira, por No plano internacional, cumpre mencionar algumas Convenções da
exemplo, nos seus dispositivos ambientais, filia-se diretamente ao Relatório Organização Internacional do Trabalho (OIT), dentre elas a Convenção
Brundtland e foi seu produto normativo mais imediato e bem-sucedido, ser- 148/77, que dispõe sobre a proteção dos trabalhadores contra os riscos prove-
vindo de modelo para outros países”. nientes da contaminação do ar, do ruído e das vibrações no local de trabalho; a
Nesse diapasão, o advento da Constituição Federal brasileira de 1988, à Convenção 155/81, que consolida proposições relativas à segurança, à higiene
guisa do movimento constitucionalista moderno e de proposições dos docu- e ao meio ambiente do trabalho; e a Convenção 161/85, que fixa orientações
346 mentos internacionais, tratou o tema do meio ambiente de maneira inédita e sobre a implantação de serviços de saúde no trabalho.12 347
significativa ao dedicar o Capítulo VI do Título VII, sobre a “Ordem Social”, Sobre a Convenção 148/77, possui a característica de ser o primeiro docu-
considerado o fulcro normativo da questão ambiental. Além deste capítulo, mento a proteger não apenas a higiene no trabalho mas também a saúde dos
o inciso VI do artigo 170 eleva o meio ambiente à condição de princípio da trabalhadores. Isso trouxe evolução em alguns aspectos. Primeiro, a mudança
“Ordem Econômica”, Capítulo I do Título VII, restando certo que a explo- do objeto de proteção que passa a se referir à saúde. Assim, por exemplo, os
ração dos recursos ambientais necessários ao desenvolvimento econômico do riscos do ruído abrangem qualquer som que possa provocar não apenas uma
país deve ser pautada pelos mandamentos do desenvolvimento sustentável, em consequência pontual, como a perda da audição, mas também engloba a ideia
oposição a um desenvolvimento econômico desenfreado, sem limites. mais ampla de que é nocivo para saúde.
Os riscos que podem prejudicar a saúde dos trabalhadores são mais am-
plos, visto que a legislação não se preocupa unicamente com os efeitos in-
trínsecos dos meios de produção, que provocam imediatamente a lesão ou
2) Regime de proteção do meio ambiente do trabalho
acidente, mas também outros tal como a contaminação em geral que pode
alterar o estado de saúde dos trabalhadores.
O direito ao meio ambiente sadio é classificado como um direito humano per-
Posteriormente, a Convenção 155/81 veio a integrar definitivamente as
tencente à chamada terceira geração/dimensão, representativa dos direitos di-
noções tradicionais de segurança e higiene no trabalho à ideia de proteção
do meio ambiente do trabalho. Ratificada pelo Brasil em 1992, a Convenção
nio representado pela flora e fauna silvestres, bem assim o seu habitat, que se encontram
atualmente em grave perigo, por uma combinação de fatores adversos. Em consequência, ao
planificar o desenvolvimento econômico, deve ser atribuída importância à conservação da 11) SILVEIRA, Vladmir da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos: conceitos,
natureza, incluídas a flora e a fauna silvestres. significados e funções. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 177-180.
10) BERNARDO, Maristela. Impasses sociais e políticos em torno do meio ambiente. In: So- 12) A Convenção 148 foi ratificada em 14/01/1982; a Convenção 155 o foi em 18/05/1992; e a
ciedade e Estado, Brasília, n. 1, jan./jun., 1996, p. 161. Convenção 161, em 18/05/1990.

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155 provê sobre o desenvolvimento, pelos países, de uma Política Nacional lho, Celso Fiorillo15 conceitua o meio ambiente do trabalho como: “[...] o lo-
de Saúde, Segurança e Meio Ambiente do Trabalho, incluindo local de tra- cal onde as pessoas desempenham suas funções laborais, sejam remuneradas
balho, ferramentas, máquinas, agentes químicos, biológicos e físicos, ope- ou não, cujo equilíbrio está baseado na salubridade do meio e na ausência de
rações e processos, as relações entre trabalhador e o meio físico, entre ou- agentes que comprometam a incolumidade físico-psíquica dos trabalhadores,
tros assuntos correlacionados. Como ressalta Francisco Péres Amorós, a independente da condição que ostentam (homens ou mulheres, maiores ou
Convenção 155/81 representou um importante avanço na consolidação da menores de idade, celetistas, servidores públicos, autônomos etc.)”.
saúde no trabalho como objeto de proteção, tendo sido a primeira a utilizar Não há como dissociar a realidade do trabalho humano da lógica da ativi-
o conceito de “meio ambiente do trabalho”13. dade econômica que, por sua vez, afeta o meio ambiente. A tensão entre esses
Em 2006, a OIT aprovou a Convenção 187, com a ideia central de pro- interesses, isto é, o das atividades econômicas e o da proteção ambiental, deve
mover a melhoria contínua da segurança e da saúde no trabalho. O instru- ser equilibrada de modo que esteja assegurada a vida digna para todos.
mento visa à instituição de uma cultura de prevenção ininterrupta, de modo A dignidade da pessoa humana é um valor absoluto e qualificado como um
a reduzir sistematicamente as estatísticas acidentárias. A Convenção, con- dos fundamentos da República, nos termos estabelecidos pelo artigo 1°, inci-
tudo, ainda não foi adotada pelo Brasil.14 so III da Constituição. Sobre a dignidade humana, explica Ingo Sarlet16 que,
No Brasil, o cerne do tratamento ambiental constitucional se encontra independente de circunstâncias concretas, é qualidade inerente a todos os se-
no artigo 225, que determina a todos um: “[...] meio ambiente ecologica- res humanos. Diz o autor que: “[...] tem-se por dignidade da pessoa humana
mente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualida- a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz
de de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defen- merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comu-
dê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Esse importante nidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres funda-
348 ditame constitucional evoca a atuação conjunta e coordenada de todas as mentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho 349
esferas estatais, ao incumbir ao Poder Público, enquanto expressão genéri- degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais
ca designativa de todos os entes territoriais públicos, o dever de proteger e mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participa-
defender o meio ambiente conjuntamente com a sociedade civil. Esta, por ção ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em co-
conseguinte, não deve se eximir de seu importante papel dentro da atual óti- munhão com os demais seres humanos.”17
ca de promoção da cidadania ambiental. Eros Grau afirma que, além de ser fundamento da República Federativa do
Pela leitura do artigo 225 da Constituição, o ser humano também deve Brasil, a dignidade da pessoa humana é o fim que se deve ser observado pela
ser considerado na sua qualidade de trabalhador, pois no seu labor submete- ordem econômica comandada pelo artigo 170 e incisos, condicionando, assim,
se diariamente a um ambiente que deve proporcionar-lhe qualidade de vida toda a atividade econômica.18 No caput do art. 170 da Constituição está esta-
sadia, por meio do controle de agentes degradadores que afetam a sua saú- belecido que a ordem econômica tem como um dos seus fundamentos a valo-
de. Focado no objetivo de salvaguardar o homem no seu ambiente de traba-

15) FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, pp. 22-23.
13) AMORÓS, Francisco Pérez. Derecho del Trabajo y medio ambiente: unas notas introduc- 16) SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
torias. Gaceta Laboral, v. 16, n. 1, p. 93-128, 2010, p. 100. Em suas palavras, “El Convenio Advogado Editora, 1998, p. 104.
155/1981 sin derogar y/o revisar los anteriores textos sobre el mismo tema (Art. 22), aportó
un serio avance en orden a consolidar la salud en el trabajo como objeto de protección, pues 17) SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma
este texto normativo se refiere también al “medio ambiente en el trabajo”, progresión que ya compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In SARLET, Ingo Wolfgang
se deduce de la simple lectura de su título (recordemos su rezo: “sobre seguridad y salud de (Org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do Direito e Direito Constitucional.
los trabajadores y medio ambiente de trabajo”) y se confirma en su contenido.” Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 37.
14) Informação disponível em: http://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f ?p=NORMLEXPU- 18) GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Melhora-
B:11300:0::NO:11300:P11300_INSTRUMENT_ID:312332:NO mentos, 2010. p.198.

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rização do trabalho humano e a finalidade de assegurar a todos uma existência se manifesta o professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo: “Mais do que mera
digna. Nesse sentido, a valorização do trabalho humano como um dos funda- hipótese de proteção dos trabalhadores, o dispositivo ilumina todo um sistema
mentos da ordem econômica implica garantir as condições essenciais a sua dig- normativo que hoje se encontra delimitado de forma mais profunda nas Cartas
nidade, como as formas adequadas de trabalho relativas à saúde e à segurança. Magnas e mesmo em legislação infraconstitucional. Tendo como destinatários
Sobre a relação da saúde e da proteção do trabalhador com a questão am- pessoas indeterminadas, a regra de redução dos riscos inerentes ao trabalho
biental, que permitiu a construção do conceito de meio ambiente do trabalho, está plenamente adaptada aos fundamentos da República Federativa do Brasil
leciona Francisco Pérez Amorós: “O conceito de ambiente de trabalho [...] é (art. 1º) que ao indicar os valores sociais do Trabalho e da livre-iniciativa não se
claramente reunidor de diferentes aspectos, abrangendo não apenas condições olvidou também em destacar a dignidade da pessoa humana como regra fun-
“clássicas”, como o comprimento da jornada, a remuneração salarial e a higiene damental, o que significa de outro modo afirmar que todos os cidadãos, pou-
industrial, mas também acomoda a saúde laboral e, por derivação, as condições co importando ser pessoas determinadas ou indeterminadas, terão asseguradas
gerais de vida dos trabalhadores, uma vez que estas estão sujeitas àquelas; mas condições de trabalho adequadas, evitando-se e mesmo minimizando riscos
é mais, o respeito ao ambiente de trabalho assim configurado, para ser autênti- inerentes às diferentes funções exercidas.20”
co, exige a qualidade do meio ambiente, visto que a sua deterioração afeta ne- No âmbito da legislação infraconstitucional ambiental, a Lei da Política
gativamente a saúde e a vida. (Tradução nossa) 19”. Nacional do Meio Ambiente, Lei 6.938/81, ao definir poluição, nos termos
De fato, não há como deixar de vislumbrar o meio do ambiente do trabalho do seu artigo 3°, inciso IV, realça-a como degradação que resulte de atividade
em conjunto com os aspectos do indivíduo trabalhador, totalmente inserido no que prejudique a saúde, a segurança e o bem-estar da população. Nesse sentido,
meio onde sua força de trabalho interatua e intervém. A dignidade do traba- como explica Norma Padilha21, as doenças profissionais, ou seja, aquelas de-
lhador é uma garantia fundamental que deve ser preservada, e o meio ambiente sencadeadas pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade, bem
350 laboral é local em que devem estar asseguradas as bases dignas para manuten- como, as doenças do trabalho, adquiridas em função das condições em que o 351
ção de uma sadia qualidade de vida. trabalho é realizado, não podem ser consideradas apenas para fins previdenci-
Referência específica sobre o meio ambiente do trabalho na Constituição ários, mas também deve ser aplicado o regime ambiental.
pode ser encontrada no artigo 200, inciso VIII, segundo o qual “ao sistema úni- A Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT22, no Capítulo V de seu
co de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: [...] VIII Título II, dispõe especificamente sobre a “segurança e medicina do trabalho”,
– colaborar com a proteção do meio ambiente, nele compreendido o do traba- estabelecendo a necessidade de inspeção prévia das instalações onde ocorrem
lho”. Obviamente que, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, estão as atividades laborais e a possibilidade de interdição ou embargo dos estabe-
previstas medidas que possibilitam a redução dos riscos inerentes ao trabalho. lecimentos, serviços ou equipamentos que representem risco grave e iminente
A Constituição Federal ainda estabelece que são direitos dos trabalhadores ao trabalhador.23 A CLT ainda traz diversas outras previsões específicas, como
urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, a quanto à manutenção pelos empregadores de serviços especializados em segu-
redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene rança e medicina do trabalho; o fornecimento de equipamentos de proteção
e segurança, nos termos do artigo 7º, inciso XXII. Sobre esse preceito, assim individual; a realização de exames médicos regulares; a segurança das instala-
ções, dos equipamentos e das atividades; a iluminação e o conforto térmico no

19) “El concepto de ambiente de trabajo [...] es claramente omnicomprensivo de distintos as-
pectos, pues abarca, no sólo las “clásicas” condiciones de trabajo, tales como la duración de la 20) FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Os sindicatos e a defesa dos interesses difusos no processo
jornada, la remuneración salarial, incluso la higiene industrial, sino que también da cabida civil brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 96
a la salud laboral, y por derivación, incluye también las condiciones de vida del trabajador
en general, pues éstas están supeditadas a aquéllas; pero es más, el respeto del ambiente 21) PADILHA, Norma Sueli. Fundamentos constitucionais do Direito Ambiental Brasileiro. Rio
laboral así configurado, para ser auténtico, exige calidad del medio ambiente, tanto porque de Janeiro: Elsevier, 2010.
el deterioro del mismo afecta negativamente a la salud y vida.” AMORÓS, Francisco Pérez. 22) Decreto-lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943.
Derecho del Trabajo y medio ambiente: unas notas introductorias. Gaceta Laboral, v. 16, n.
1, 2010, pp. 15-16. 23) Artigos 160 e 161 da CLT.

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ambiente de trabalho; a movimentação, armazenagem e manuseio de mate- Tais instrumentos cumprem a determinação do artigo 7º, inciso XXII, da
riais; a prevenção da fadiga dos empregados; etc.24 Constituição da República, que estabelece como um direito dos trabalhadores
A fiscalização do cumprimento das normas de segurança e medicina urbanos e rurais a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de nor-
do trabalho, conforme o artigo 156 da CLT, cabe às Delegacias Regionais mas de saúde, higiene e segurança.
do Trabalho, que são dotadas de poder para, diante do descumprimento,
adotar medidas e impor penalidades. Nos termos do artigo 161 da CLT, o
Delegado Regional do Trabalho pode interditar um estabelecimento, servi-
3) Responsabilidade objetiva do empregador
ço ou equipamento, ou embargar uma obra, caso laudo técnico demonstre
haver “grave e iminente risco ao trabalhador”. no meio ambiente laboral
O artigo 200 incumbe ao Ministério do Trabalho o estabelecimento de dis-
posições complementares a tais normas. Nesse sentido, a Portaria n.º 3.214/7825 Conforme a definição dada por Tércio Sampaio Ferraz Júnior, a responsabi-
aprova diversas Normas Regulamentadoras (NRs), também relativas à seguran- lidade objetiva ocorre quando “[...] a prestação se exige não porque pela sua
ça e medicina do trabalho. A NR-6, por exemplo, complementa o artigo 166 ação o sujeito se compromete ou porque dela resultou um dano, mas porque
da CLT, trazendo a definição de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) há um risco potencial na situação”30. Tal reponsabilidade objetiva, fundada no
em seu item 6.1. Em relação aos EPIs, cabe informar que o item 4.12 da NR-4 risco, originou-se da dificuldade de comprovação em juízo da culpabilidade do
orienta sua utilização somente quando não for possível eliminar completamen- agente em relações jurídicas complexas, como são as empregatícias, diante do
te os riscos à saúde e à integridade do trabalhador. Também é digna de nota a desequilíbrio de poder ali existente. Assim, busca-se fundamentar a responsa-
NR-926, que obriga os empregadores a elaborar e implementar um Programa de bilidade – e, consequentemente, justificar a indenização – não mais por conta
352 Prevenção dos Riscos Ambientais (PPRA), com fins de “antecipação, reconhe- de culpa do agente, como ocorre na responsabilização subjetiva, mas pelo risco 353
cimento, avaliação e consequente controle da ocorrência de riscos ambientais produzido por determinada atividade pela qual ele é responsável.
existentes ou que venham a existir no ambiente de trabalho”. No tocante ao sistema brasileiro ambiental, o primeiro texto a instituir a
Além da CLT e das NRs, a Lei Orgânica da Saúde27, que dispõe sobre a responsabilidade objetiva ambiental foi o Decreto 79.347 de 1977, fruto da
promoção, proteção e recuperação da saúde, bem como sobre a organização Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil por Poluição de Mar
e o funcionamento dos serviços correlatos, traz previsões quanto à proteção por Óleo, de 20 de novembro de 1969. Seguidamente sobreveio a Lei 6.453,
e a saúde do meio ambiente do trabalho.28 Vale também mencionar as dis- também de 1977, que trouxe, no seu artigo 4°, a caracterização da responsabi-
posições encontradas na Lei sobre os Planos de Benefícios da Previdência lidade civil objetiva em detrimento de danos nucleares.
Social, quanto à definição de acidente de trabalho e sua relação íntima com Enfim, em 1981 foi promulgada a Lei 6.938, que criou a Política Nacional
a qualidade do meio ambiente do trabalho.29 do Meio Ambiente. Seu artigo 14, § 1° determina a responsabilização dos
causadores de danos ao meio ambiente, “independentemente da existência
de culpa”. Insta mencionar o artigo 15 da mesma Lei, que estabelece pena
24) Artigos 162 a 200 da CLT.
de reclusão e multa ao agente que tão-apenas causar ou agravar perigo à “in-
25) Portaria do Ministério do Trabalho e Emprego n.º 3.214 de 8 de junho de 1978. columidade humana, animal ou vegetal”.
26) Alterada pela Portaria da Secretaria de Segurança e Saúde no Trabalho n.º 25 de 1994. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 recepcionou
27) Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990. a Lei 6.938/81 e deixou intacta a responsabilização objetiva do causador do
dano ambiental. O artigo 225, §3º, da Carta Magna, ao prever a reparação
28) Seu artigo 3º apresenta o trabalho como um fato determinante e condicionante para a saúde.
O artigo 6º, §3º, incisos I e V, fala sobre os riscos de acidentes de trabalho e suas vítimas. Os dos danos ocasionados por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente,
artigos 6º, incisos I e V, 13, incisos II e VI, e 16, inciso II, alínea “a” incluem no campo de
atuação do Sistema Único de Saúde a saúde do trabalhador e do meio ambiente do trabalho.
30) FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 2. ed. São Paulo:
29) Lei n.º 8.213, de 24 de julho de 1991, artigos 19 e 20. Atlas, 1994.

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nada fala em comprovação de dolo ou culpa. Sobre aplicação da responsabi- minados, ligados por circunstâncias de fato; já os direitos coletivos são aqueles
lidade ambiental objetiva em relação aos danos causados ao meio ambiente também de natureza indivisível, mas de titulares pertencentes a uma mesma
do trabalho, Sebastião Geraldo de Oliveira ressalta que o artigo 200, VIII, categoria, grupo ou classe; enquanto que os direitos individuais homogêneos
da Constituição da República, ao incluir o local de trabalho no conceito de são divisíveis, de titulares determinados, mas decorrentes de origem comum.
meio ambiente, permite a interpretação de que os danos causados pelo em- Como leciona Celso Antonio Pacheco Fiorillo33, em se tratando de direito in-
pregador ao meio ambiente do trabalho devam ser ressarcidos sem a neces- dividual homogêneo, o legitimado para a ação civil pública age como legitima-
sidade de demonstração da culpa do agente ou da ilicitude de sua conduta, do extraordinário, pleiteando em nome próprio direito alheio.34
isto é, bastando constatar o dano e o nexo causal.31 A não adoção, pelo empregador, das medidas de prevenção a acidentes de
A responsabilidade objetiva ainda se encontra explicitamente estabeleci- trabalho previstas na legislação (CLT e Normas Regulamentadoras) configu-
da em outros instrumentos esparsos do ordenamento jurídico brasileiro, tais ra uma violação de interesse difuso, caso em que pode-se requerer a promoção
como: Lei 7.092/83, que trata dos danos decorrentes de transporte rodoviário; adequada do meio ambiente do trabalho, como pela instalação de equipamen-
Lei 7.542/86, sobre a responsabilidade de danos à segurança de navegações, a tos de segurança específicos. O interesse difuso é constatado na medida em
terceiros e ao meio ambiente; Lei 7.661/88, sobre danos aos recursos naturais e que o bem jurídico é indivisível e os titulares são indeterminados. Todos os tra-
culturais da zona costeira; Lei 7.802/89, que trata de danos à saúde das pesso- balhadores de determinada empresa, presentes e futuros, e mesmo os indivídu-
as e ao meio ambiente; Lei 7.805/89, sobre danos causados ao meio ambiente, os que não são empregados encontram-se sujeitos às suas condições ambien-
decorrentes de atividades mineradoras; Lei 8.171/91, por danos causados ao tais: prestadores de serviço, visitantes, a comunidade vizinha etc. Comungam
meio ambiente, decorrentes de atividades agrícolas; Lei 8.974/95, sobre ativi- tão somente de uma circunstância de fato, qual seja, a de convivência dentro ou
dades decorrentes de biogenética. no entorno de determinado estabelecimento empresarial.
354 A Constituição Federal de 1988 conferiu ao Ministério Público legiti- 355
midade para a propositura da ação civil pública, “para a proteção do patri-
mônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e
4) Ação Civil Pública por danos ao meio ambiente laboral
coletivos”, nos termos do artigo 129, inciso III. Tal legitimidade, contudo, é
concorrente, conforme indica o próprio texto constitucional, no §1º do arti-
O termo “ação civil pública” foi primeiramente mencionado no artigo 3º, inci-
so III, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei Complementar
federal nº. 40, de 13-12-81). A expressão, porém, veio a ser consagrada na
conceitos de direito difuso, direito coletivo e direito individual homogêneo.
Lei n°. 7.347/85, que cuidou da defesa do meio ambiente, do consumidor e
de valores culturais. A ação civil pública é instrumento processual de ordem 33) FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2003, pp. 5-10.
constitucional adequado para reprimir ou impedir danos ao meio ambiente, ao
consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e 34) A jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho é pacífica em aceitar a propositura de
ação civil pública em defesa de direito individual homogêneo, como é possível aduzir de
paisagístico, e por infrações da ordem econômica. Sua natureza pode ser con- trecho de Acórdão do Tribunal superior do Trabalho: “O Ministério Público pode agir como
denatória, cautelar, de execução, constitutiva ou meramente declaratória. substituto processual em nome da sociedade na defesa de -interesses ou direitos individuais
A ação civil pública visa proteger os interesses de natureza metaindividual, homogêneos-. Para tanto, é necessário que esteja presente a relevância social, bem como a
adequação com o desempenho de sua função institucional. A relevância social é auferida
compreendidos os difusos, os direitos coletivos e os direitos individuais homo- conforme a natureza do dano (saúde, segurança e educação públicas). Já a compatibilidade
gêneos32. Os direitos difusos são os de natureza indivisível de titulares indeter- com a função institucional encontra amparo quando o direito ou interesse relaciona-se com
a ordem jurídica, com o regime democrático, interesses sociais e individuais indisponíveis,
conforme disposto no art. 127 da Constituição Federal.” (TST RR 559 559/2002-051-
31) OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupacio- 03-00.6, Relatora: Kátia Magalhães Arruda, Data de Julgamento: 14/10/2009, 5ª Turma.
nal. 2. ed. São Paulo: LTr, 2006, p. 95. No mesmo sentido: TST AIRR 1277/2000-014-04-40.3, Relator: Luiz Philippe Vieira
de Mello Filho, Data de Julgamento: 04/11/2009, 1ª Turma; e TST RR 1575/2003-003-
32) A Lei 8.078/90, em seus artigo 81, parágrafo único, incisos I, II e III, traz as definições dos 22-00.0, Relatora: Kátia Magalhães Arruda, Data de Julgamento: 18/11/2009, 5ª Turma).

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go 129, e o artigo 5º a Lei 7.347/85, que estabelece como demais legitima- to constitucional brasileiro, que em seu artigo 225 estabelece o dever de defesa
dos a Defensoria Pública, os entes públicos e as associações cujas finalidades e preservação do meio ambiente37. Vale lembrar que, como mencionado ante-
institucionais incluam o tema em questão, dentre as quais estão os sindica- riormente, a legislação infraconstitucional relacionada à proteção do meio am-
tos. O artigo 1º, inciso I, da Lei 7.347/85 estabelece a adequação da ação ci- biente do trabalho prevê mecanismos jurídicos específicos para a prevenção de
vil pública na proteção do meio ambiente, no qual se inclui o meio ambiente danos à saúde e à integridade do trabalhador, como a interdição de estabeleci-
do trabalho. Dessa forma, tanto o Ministério Público do Trabalho quanto os mentos, serviços e equipamentos, ou embargo de obras, que representem risco
sindicatos, no desempenho de suas funções de proteção – o Ministério, a da grave e iminente ao trabalhador.38
ordem jurídica e dos interesses sociais coletivos; e os sindicatos, os interesses A competência da Justiça do Trabalho para julgar violações à saúde e se-
de determinada categoria de trabalhadores, encontram-se legitimados para gurança do meio ambiente do trabalho pode ser depreendida do artigo 114 da
propor a ação civil pública trabalhista, e devem fazê-lo quando identificada Constituição da República.39 Contudo, a utilização da ação civil pública traba-
a violação de direitos, com o objetivo de obrigar o empregador a cumprir as lhista era inexpressiva até a entrada em vigor da Lei Complementar 75/9340,
normas trabalhistas de segurança, higiene e medicina do trabalho, mediante que, em seu artigo 83, inciso III, estabelece ser competência do Ministério
a implementação de medidas individuais e coletivas de adequação e proteção, Público do Trabalho “promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do
sob pena de multa diária. Ao Ministério Público do Trabalho é reservada, Trabalho, para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos
ainda, no plano administrativo, a possibilidade de instauração de inquérito sociais constitucionalmente garantido”. Tais “interesses coletivos” devem ser
civil, em que ocorrerá a análise e apuração de fatos, visando à prevenção e à interpretados de forma abrangente, compreendendo o direito difuso ao meio
regularização da atividade empresarial nociva ao meio ambiente do trabalho. ambiente do trabalho de qualidade, bem como os direitos individuais homo-
Na ação civil pública trabalhista em que o autor é outro legitimado que não gêneos a ele relacionados.41
356 o Ministério Público do Trabalho, é obrigatória sua participação como custos 357
legis, a fim de garantir o cumprimento dos interesses coletivos a que o órgão se
destina a proteger, sob pena de nulidade do processo, conforme dispõe o artigo
5º, §1º, da Lei 7.347/85. Sua intimação compete à autoridade judiciária, ca- mente viáveis para prevenir a degradação ambiental.”
bendo ao Ministério quaisquer poderes que lhe seriam destinados caso fosse o
37) Artigo 225 da CRFB/88: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
propositor da ação. Vale salientar que, ainda que a ação civil pública trabalhista bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Pú-
tenha sido proposta por uma entidade sindical, o inquérito civil compete ex- blico e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
clusivamente ao órgão ministerial.35 38) Em relação ao rito processual da ação civil pública trabalhista, a Justiça do Trabalho reco-
A propositura da ação civil pública para a defesa da qualidade do meio am- nhece no princípio da prevenção o fundamento da tutela inibitória antecipada, pela qual são
biente do trabalho está diretamente relacionada ao princípio da prevenção. Tal determinadas medidas voltadas a impedir a prática, continuação ou repetição de violação à
saúde e à integridade do trabalhador no ambiente de trabalho (Nesse sentido: TRT-10, RO
princípio retira sua importância do fato de que os danos ambientais, inclusi- 01970-2009-011-10-00-8 Relator: Mário Macedo Fernandes Caron, Data de Julgamento:
ve ao ambiente de trabalho, são, muitas vezes, irreversíveis e irreparáveis. Ele 01/06/2011, 2ª Turma; TRT-24 MS 01527-2007-007-24-00-0 (RO), Relator: Nicanor de
consta do Princípio 15 da Declaração do Rio de 199236, e foi adotada pelo tex- Araujo Lima, Data de Julgamento: 24/09/2008, 7ª Vara do Trabalho de Campo Grande/
MS; TRT-23 - MT 01088.2009.008.23.00-9 RO, Relator: Tarcísio Valente, Data de Julga-
mento: 14/12/2010, 1ª Turma, Data de Publicação: 24/01/2011
35) LEAL JÚNIOR, João Carlos; FREITAS FILHO, Julio Cesar de. Da ação civil pública em 39) A Súmula n.º 736 do Supremo Tribunal Federal consolida esse entendimento: “Compete à
matéria trabalhista. Semina: Ciências Sociais e Humanas, v. 30, n. 2, 2011, p. 103. Justiça do Trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de
36) Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, adotada na Conferência das normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores.”
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, tendo se reunido no Rio de Ja- 40) Lei complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, que dispõe obre a organização, as atribui-
neiro, de 3 a 14 de junho de 1992. Princípio 15: “Com o fim de proteger o meio ambiente, o ções e o estatuto do Ministério Público da União.
princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas
capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza 41) LEAL JÚNIOR, João Carlos; FREITAS FILHO, Julio Cesar de. Da ação civil pública em
científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economica- matéria trabalhista. Semina: Ciências Sociais e Humanas, v. 30, n. 2, 2011, p. 98.

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H Conclusão dade. A Ação Civil Pública trabalhista representa o grande instrumento para
a defesa em juízo da saúde e da segurança do meio ambiente laboral, ou seja,
A preocupação com a qualidade do meio ambiente do trabalho vai além nas hipóteses em que o interesse não é de natureza individual. Reveste-se de
de questões específicas e particulares da relação empregatícia, alcançando relevância o papel do Ministério Público do Trabalho, que, mesmo quando não
uma preocupação mais abrangente que se traduz na qualidade de vida de atua como propositor da ação, o faz como custos legis, devendo desempenhar
todos aqueles envolvidos na atividade laboral, principalmente em relação à igualmente sua função de defesa dos interesses sociais indisponíveis, dentre os
sua saúde e segurança. quais destacam-se aqui o equilíbrio, a sustentabilidade, a saúde e a segurança
Por intermédio do trabalho, realizado em condições de liberdade, igual- do meio ambiente do trabalho.
dade, segurança e dignidade, que os seres humanos têm condições de en-
frentar a pobreza e relacionarem-se com a sociedade e o meio ambiente
de uma maneira verdadeiramente sustentável. Nesse sentido, o Direito do
Trabalho pode e se coaduna com a efetiva proteção do meio ambiente, e isto
está comprovado pelas normas internacionais e estatais próprias do ordena-
mento jurídico laboral e ambiental.
No Brasil, a Constituição Federal reconhece, como parte integrante do
meio ambiente, o meio ambiente do trabalho. Ao mesmo tempo, estabelece os
valores sociais do trabalho como princípios fundamentais da República, fun-
dando a ordem econômica na valorização do trabalho humano e na defesa do
358 meio ambiente. Dessa forma, é possível depreender do texto constitucional que 359
um meio ambiente verdadeiramente equilibrado sustentável só é alcançado se
o ambiente no qual as atividades laborais são desempenhadas se mostrar sa-
dio e seguro. Isso porque o desenvolvimento do ser humano, objetivo último
das normas ambientais, está intimamente relacionado e depende da existência
de condições dignas de trabalho. A proteção ao meio ambiente do trabalho se
confunde com direitos fundamentais/humanos como o direito à saúde e à se-
gurança, denunciando a natureza sincretista dos direitos difusos de terceira ge-
ração, os direitos de solidariedade.
As previsões encontradas na CLT e nas Normas Regulamentadoras do
Ministério do Trabalho, bem como em dispositivos esparsos de outras leis in-
fraconstitucionais, cumprem a determinação constitucional de estabelecer a
redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene
e segurança, como um direito dos trabalhadores urbanos e rurais. Por sua vez,
a atuação preventiva do poder de polícia da Administração Pública se mos-
tra imprescindível, a fim de evitar o dano ao meio ambiente do trabalho, que,
como qualquer outro dano ambiental, pode ser irreversível.
Enquanto bem difuso, o meio ambiente do trabalho merece a mesma pro-
teção conferida pela legislação brasileira às demais manifestações do meio am-
biente, o que inclui a responsabilização objetiva dos agentes violadores das
regras garantidoras de sua saúde e segurança, independente do fator culpabili-

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Ensaio sobre a função de garantia dos
juízes e tribunais em matéria ambiental

Hermes Zaneti Jr.1


Ministério Público do Estado do Espírito Santo

Sumário: Introdução. 1 Direitos Fundamentais como Limites e


Vínculos no Modelo do Constitucionalismo Garantista: O Conceito
Formal e Material do Direito Fundamental ao Meio Ambiente. 1.1
Constitucionalismo Garantista e a Constituição Brasileira como
Constituição de Terceira Geração. 1.2 Direito de Propriedade V Direito
Urbanístico-Ambiental: Conceito Formal de Meio Ambiente. 1.3 O
Conceito Material/Substancial de Direito Urbano-Ambiental: Posição
Jurídica Dinâmica que Garante Permissões Especiais de Aproveitamento.
361
2 O Direito Fundamental ao Meio Ambiente Urbano e o Postulado
Hermenêutico “In Dubio Pro Natura”: Ônus Argumentativo Pro
Ambiente. 3 A Teoria dos Precedentes como Mecanismo de Controle
das Decisões Judiciais por Déficit de Fundamentação (Disfunção
Argumentativa): Limites e Vínculos ao Ativismo Judicial. Conclusão

1) Especialista em Direito Urbano Ambiental FMP/RS. Mestre e Doutor em Direito pela


UFRGS. Pós-doutorado pela Università degli Studi di Torino/IT. Promotor de Justiça
MPES. Membro da ABRAMPA.
Tutela do Meio Ambiente do Trabalho nos Planos Internacional e Interno Lívia Gaigher Bósio Campello m Carlos Walter Marinho Campos Neto

H Introdução Assim, pretendemos contribuir ao debate apresentando um modelo de


constitucionalismo fortíssimo, de inspiração na teoria garantista de Luigi
Os juízes e tribunais podem decidir contra ou de forma indiferente ao direito Ferrajoli, que pode apresentar validamente limites e vínculos à degeneração do
fundamental ao meio ambiente e ao direito urbano-ambiental expressamen- direito pelos poderes selvagens da política e da economia2. Não obstante, dedi-
te previsto na Constituição e nas leis alegando aplicar o princípio da proporcio- caremos um pequeno espaço a descrição dos direitos subjetivos coletivos como
nalidade ou razoabilidade, interpretando cláusulas gerais e conceitos jurídicos in- direitos fundamentais, demonstrando, a partir do caso paradigmático do direi-
determinados para privilegiar os interesses dos poderes políticos (governo) ou to ao meio ambiente sadio e equilibrado, sua qualidade de posição jurídica di-
econômicos (mercado/privado)? nâmica, ao mesmo tempo direito e dever, social e liberal, coletivo e individual, que
Este estudo visa a crítica em matéria de interpretação/aplicação do di- permite especiais permissões de aproveitamento.
reito no Estado Democrático Constitucional a partir da premissa de que a Em continuidade, iremos analisar a teoria da interpretação/aplicação do
Constituição e as leis ambientais brasileiras são ativistas em matéria ambien- direito como forma de controle das decisões judiciais e do ativismo judicial
tal, fornecendo, na maior parte dos casos o modelo a ser seguido pelo legisla- contra ou indiferente ao meio ambiente. Procurando conceituar a função do
tivo, pelos órgãos da administração pública e pelos tribunais, se confrontadas princípio in dubio pro natura como limite e vínculo da interpretação/aplicação
ao art. 225 da CF/88. judicial, portanto, como metanorma de aplicação do direito, ou, postulado nor-
Isso porque os precedentes jurisprudenciais devem ser vinculados à mativo aplicativo para resolução das colisões entre direitos fundamentais (mo-
Constituição e a lei escrita, em uma grade dogmática de aplicação/interpreta- delo combinado de regras, princípios e postulados).
ção do direito, restringindo assim o ativismo judicial contra a tutela ambiental, Neste caminho iremos demonstrar a existência de um ônus argumentativo
fenômeno muito comum em nossos dias, especialmente através da indevida pro ambiente em abstrato pelo texto da Constituição Federal Brasileira, decor-
362 aplicação do “princípio” da proporcionalidade e das cláusulas gerais, tanto no rente não só da posição constitucional do art. 225 da CF/88, mas também, da 363
direito material quanto no direito processual, que se dá em sentido frontal- permeabilidade da matéria ambiental em todo o texto constitucional, especial-
mente contrário ao indicado pelo legislador e pela Constituição, consequente- mente nos capítulos dedicados à ordem econômica (art. 170, inc. VI) e urba-
mente, em forma degenerada de exercício arbitrário da jurisdição que deveria nística (art. 182). Ao final, iremos apontar os meios de atuação efetiva e pro-
garantir os direitos fundamentais. veitosa do Ministério Público e dos demais legitimados às ações coletivas no
Exemplo dessa nefasta utilização retórica e retrógrada da teoria dos prin- tocante a impugnação das decisões judiciais que não mostrarem fundamenta-
cípios é a ponderação de direitos e interesses para privilegiar o aspecto econô- ção racional de acordo com o direito fundamental ao meio ambiente.
mico da livre iniciativa e da propriedade privada mediante as conhecidas teo- A relevância acadêmica do tema reside na necessidade de construir uma
rias do fato consumado (v.g. o direito de manter construções em contrariedade teoria sólida e fornecer instrumentos para impor aos juízes e tribunais a ob-
com o plano direito municipal, as normas edilícias e as normas ambientais, em
matéria urbanística-ambiental) e do periculum in mora (in)reverso (v.g. a não
concessão de tutelas antecipadas para preservação do bem jurídico ambien- 2) Para a correta compreensão dos direitos fundamentais como limites e vínculos aos poderes
tal em razão do perigo/risco de dano material ao patrimônio do investidor ou políticos e do mercado conferir a extensa obra de Luigi Ferrajoli, em especial: Luigi Ferrajoli.
Por Uma Teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Porto Alegre: 2011; Luigi Ferrajoli. Di-
empresário). ritti Fondamentali. In.: Ermano Vitale (org). Diritti Fondamentali: Un Dibattito Teorico. 3ª ed.
Trata-se de um fenômeno conhecido em todo mundo de apropriação do Roma/Bari: Laterza, 2008, p. 03-40; Luigi Ferrajoli. Diritto e ragione: Teoria del Garantismo
direito e da racionalidade à lógica de mercado, pervertendo o “nunca mais” Penale, 8ª ed. Roma/Bari: Laterza, 2004; Luigi Ferrajoli. Il costituzionalismo di terza genera-
zione. L’esperienza europea e quella latino-americana a confronto. Texto inédito, gentilmente
representado pelos direitos fundamentais como limites e vínculos das liber- cedido pelo autor. (Conferência proferida em Florianópolis, 26.11.2009); Luigi Ferrajoli. Per
dades do poder político (governo) e dos poderes de mercado (economia), un Pubblico Ministero come Istituzione di Garanzia. Questioni di Giustizia: 2012, p. 31/45;
em um propenso relativismo moral e jurídico que atua em prol da face sel- Luigi Ferrajoli. Poteri Selvaggi. La Crise della Democrazia Italiana. Roma/Bari: Laterza, 2012;
Luigi Ferrajoli. Principia Iuris: Teoria del Diritto e Teoria della Democrazia. Roma/Bari: Later-
vagem destes poderes, aquela não-regulada pelo direito e, portanto, à mar- za, 2007; Luigi Ferrajoli. La Democrazia Attraverso i Diritti: Il Costituzionalismo Garantista
gem do Estado Constitucional. come Modelo Teorico e come Progetto Politico. Roma/Bari: Laterza, 2013.

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servância da vinculatividade fortíssima da constituição e das leis em matéria tadas ao constitucionalismo brasileiro que se apresenta híbrido entre com-
ambiental e da fundamentação racional ambientalmente adequada de suas de- mon law e civil law5. Nesse sentido, vale relembrar a importância da revisão
cisões, inclusive no que diz respeito aos precedentes dos tribunais, em especial do dogma da separação de poderes em prol de uma separação entre funções
o Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, cortes supremas de governo e funções de garantia, conforme a proposta de Luigi Ferrajoli,6
responsáveis respectivamente pela interpretação da norma constitucional e da na qual o Poder Judiciário atua como garantia de segundo grau (postulado
norma infraconstitucional, a fim de evitar danos ambientais às presentes e fu- da jurisdicionalidade/judicialidade), movimentado pelo Ministério Público
turas gerações chancelados pelo Poder Judiciário que se perenizam no tempo ou outro legitimado (postulado da acionabilidade), igualmente instituições
independentemente da reversão jurídica futura nas instâncias extraordinárias. de garantia de segundo grau, para defesa da integridade dos direitos fun-
Isso porque, no atual quadro da história de nosso país, a teoria dos princí- damentais, revisando, igualmente, a proibição da utilização dos precedentes
pios e o uso das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados tem sido judiciais como fontes formais do direito, em prol de sua utilização em con-
deturpados em favor de interpretações jurídicas tendencialmente ativistas em formidade com as leis e a Constituição.7
prol dos interesses imediatos e econômicos com prejuízo das funções e dos processos eco-
lógicos essenciais tutelados pelo direito (art. 225, § 1º, inc. I da CF/88).
primárias, através de normas e instituições públicas de garantia, desvinculadas das funções de
A histórica construção dos direitos fundamentais como limites e vínculos governo, destinadas a sua obediência – limites dos direitos de liberdade - e satisfação – pres-
permite aos juristas a reconstrução atual do direito ambiental e do direito ur- tações dos direitos sociais). Garantias primárias. c) princípio da jurisdicionalidade (se existem
banístico ambiental como formas de controle das distorções argumentativas garantias primárias deve existir uma jurisdição como garantia secundária que possa corrigir
a sua não efetivação ou efetivação insatisfatória por omissão ou comissão); d) princípio da
representadas por essas decisões, na maior parte das vezes, ausentes de funda- acionabilidade (se existe uma jurisdição devem existir órgãos públicos voltados a satisfação das
mentação jurídica adequada, por deficiência de justificação interna (lógica for- garantias primárias por via da judicialização das ações próprias a corrigir os atos omissivos ou
mal) e externa (lógica-argumentativa, questões de fato e de direito).3 comissivos dos poderes públicos e privados que atentem contra as garantias primárias), ver
364 365
Luigi Ferrajoli. La Democrazia Attraverso i Diritti: Il Costituzionalismo Garantista come Modelo
O constitucionalismo fortíssimo defendido aqui adota as premissas dos Teorico e come Progetto Politico, § 2.1, no prelo, gentilmente cedido pelo autor. Existe tradução
quatro postulados do modelo garantista (MG): legalidade, completude deôn- para o português em andamento.
tica, jurisdicionalidade/justicialidade e acionabilidade,4 devidamente adap- 5) Cf. Hermes Zaneti Júnior. A Constitucionalização do Processo: O Modelo Constitucional da Justi-
ça Brasileira e as Relações entre Processo e Constituição. São Paulo: Atlas, 2014 (segunda edição,
revista, ampliada e modificada, da tese de doutorado, Hermes Zaneti Júnior. Processo Consti-
3)  Jerzy Wróblewski. “Legal Decision and its Justification”. Logique et Analyse. n. 14. Bruxelles: tucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007).
Centre National de Recherches de Logique, 1971; Jerzy Wróblewski. The Judicial Application
of Law. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1992; Robert Alexy. Teoría de la Argu- 6) Sobre o tema, para aprofundar essas questões, Luigi Ferrajoli, Principia Iuris: Teoria del Di-
mentación Jurídica. Trad. Manuel Atienza e Isabel Espejo, 2ª ed. Madrid: Centro de Estu- ritto, p.869 e ss.
dios Políticos y Constitucionales, 2007, p. 213 e ss. “La giustificazione in forma sillogistica
– afferma Wróblewski – è una giustificazione interna, poiché non prova la fondatezza delle 7)  A teoria dos procedentes tem chamado muita atenção nos últimos anos, atraindo uma série
premesse. Il ruolo della giustificazione esterna è, naturalmente, di primaria rilevanza, ma essa de novos estudos ligados a superação da antiga dicotomia civil law/common law entre pre-
non può essere spiegata mediante strumenti logico-formali. Di conseguenza, il ruolo della cedentes vinculantes e precedentes persuasivos. Para uma leitura adequada desta teoria cf.
logica informale, o logica dell’argomentazione, non risulta affatto minacciato dall’uso della Thomas Bustamante; Carlos Bernal Pulido (eds.). On the Philosophy of Precedent: Proceedings
giustificazione sillogistica. Al contrario, quest’ultimo tipo di giustificazione può servire da of the 24th World Congress of the International Association for Philosophy of Law and Social Phi-
argomento per sostenere il ruolo decisivo delle valutazione e delle scelte nella determinazione losophy,Beijing, 2009, vol. III. Stuttgart/Sinzheim: Franz Steiner Verlag/Nomos, 2012; Neil
delle premesse delle decisioni giudiziali” Pierluigi Chiassoni. La Giurisprudenza Civile: Me- MacCormick; Robert S. Summers (eds.). Interpreting precedents: a comparative study. Sudbury,
todi d’Interpretazione e Tecniche Argomentative. Milano: Giuffrè, 1999, p. 157, com referências MA: Dartmouth Publishing Company, 1997.Entre outras obras individuais, vale citar: Nico-
ao trabalho de P. Comanducci. Assaggi di Metaetica, pp. 195/209. la Picardi, La Giurisdizione all’Alba del Terzo Millennio. Milano: Giuffrè, 2007; Id. Appunti sul
precedente giudiziale, cit., p. 201-208, com tradução para o português, Nicola Picardi. “Notas
4) Luigi Ferrajoli define o modelo garantista (MG) como o modelo teórico adequado ao cons- sobre o precedente judicial”. Trad. Hermes Zaneti Jr. In: Nicola Picardi. Jurisdição e Processo.
titucionalismo garantista baseado em quatro princípios ou postulados, dois vinculados às ga- Org. e Revisor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 145-155;
rantias primárias, dois vinculados às garantias secundárias: a) princípio da legalidade (em sua Marino Bin. Il Precedente Giudiziario: Valore e Interpretazione. Milano: CEDAM, 1995. No
dupla versão: legalidade lata, formal ou legal, também denominada mera legalidade; legalidade brasil: Thomas da Rosa de Bustamante. Teoria do Precedente Judicial: A Justificação e a Aplicação
estrita, substancial ou constitucional); b) princípio da completude deôntica (consistente na obri- de Regras Jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012; Luiz Guilherme Marinoni. Precedentes
gação de introdução dos deveres correspondentes aos direitos fundamentais como garantias Obrigatórios. São Paulo: RT, 2010; José Rogério Cruz e Tucci. Precedente Judicial como Fonte

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Isso porque são exatamente os precedentes judiciais, aplicados como fecha- nela afirmados com força normativa, vinculante, aplicação direta e imedia-
mento racional do ordenamento jurídico, decididos nos casos concretos mas de ta, cabendo ao Poder Judiciário a sua garantia e não uma liberdade de inter-
forma universalizável, que permitem a partir da garantia da segurança jurídica, pretação que acaba resultando no “ativismo judicial pernicioso”, como nos
da confiança legítima, da previsibilidade, da efetividade e da certeza, diminuir casos agrupados em torno do conceito de “fato consumado” e “periculum in
o espaço entre a previsão constitucional e legal e sua aplicação prática, imple- mora (in)reverso” com a consequente negativa de vigência da tutela ambien-
mentando através do Judiciário as políticas públicas previstas abstratamen- tal constitucionalmente adequada.11
te nos instrumentos legislativos direcionadas a efetivar os direitos fundamen-
tais todas as vezes que as condutas comissivas ou omissivas, do mercado ou da 11) Isso porque, como se pode aferir de obiter dictum em julgamento da lavra do ministro Her-
administração pública, frustrarem os mandamentos constitucionais. Trata-se, man Benjamin não são os juízes que são ativistas no Brasil, em nosso país o ativismo é das
portanto, de função típica do Poder Judiciário, pelo menos no modelo brasi- leis e da Constituição; combatendo-se, isto sim, o ativismo judicial pernicioso que sob o
falso pretexto da teoria dos princípios, flexibiliza as garantias constitucionais e legais as-
leiro que aceita a ampla judicial review, interpretar e garantir o direito em face seguradas ao meio ambiente em prol de interesses imediatistas de lobbies de proprietários,
dos atos desconformes dos demais poderes. grupos econômicos e políticos. REsp. nº 650.728/SC, rel. Min. Herman Benjamin, DJ sem
Importante ressaltar a noção de princípios e o papel da interpretação/apli- grifos no original. No mesmo sentido, MOREIRA, Nelson Camatta; NEVES, Rodrigo
Santos; BESSA, Silvana Mara de Queiroz; RUDIO, Alexsandro Broeto. Política de prote-
cação como forma de controle da discricionariedade judicial, ou seja, na ori- ção do meio ambiente, expansão da exploração do petróleo e atuação do Poder Judiciário (ou
gem a teoria dos princípios, é limitadora e vinculadora dos juízes e tribunais,8 ativismo judicial?). Revista de Direito Ambiental. vol. 65, p. 59, Jan, 2012, com importantes
e sua subversão, pela jurisprudência e pelo(s) assim chamado(s) movimento(s) referências à contraposição entre Habermas e Dworkin no ponto, esclarecendo a postura de
Lenio Luiz Streck e Antonie Garapon. Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia:
(neo)constitucionalista, constitucionalismo principiológico ou panprincipia- entre facticidade e validade, cit., vol. I; DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad.
lismo, em um modelo liberalista ou relativista do direito, representa o sentido Jéferson L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003; GARAPON, Antonie. O guardador
contrário de retorno à arbitrariedade judicial do Estado pré-moderno ou neoliberal, de promessas. Lisboa: Instituto Piaget, 1998; STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica
366 367
jurídica nos vinte anos da Constituição do Brasil. In: Moura, Lenice S. Moreira de (org.). O
conforme os valores sejam o arbítrio ou o mercado.9 novo constitucionalismo na era pós-positivista: homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo:
Por essas razões, defenderemos aqui que o modelo de direito adotado Saraiva, 2009; RIGAUX, François. A Lei dos juízes. Lisboa: Instituto Piaget, 1997,
pelo Estado Democrático Constitucional10 brasileiro é um modelo em que esp. p. 287/292. Citamos um excerto, com referência igualmente a Lenio Luiz
Streck ao final: “A judicialização da política é a deliberação de questões de ordem política
o ativismo é da Constituição Federal de 1988 e dos direitos fundamentais por órgãos do Poder Judiciário, sem qualquer tendência política. Quando o Judiciário é pro-
vocado pelos jurisdicionados, não há opção do Estado-juiz em decidir ou não. Se o conteúdo
da demanda, ou seja, se o pedido e a causa de pedir são relacionados a um direito fundamen-
do Direito. São Paulo: RT, 2004. tal, por exemplo, que não tem sido garantido pelo Estado, cabe o Judiciário se manifestar, a
fim de garantir que o jurisdicionado tenha o seu direito reconhecido e cumprido por quem
8) Assim, “[...] a expressão ‘princípio jurídico’ tem tido uma presença frequente em decisões judi- é obrigado.“O direito assume um caráter marcadamente hermenêutico”, explica Streck, em
ciais e na doutrina brasileira. A expressão foi popularizada entre os profissionais e teóricos do função “de um efetivo crescimento no grau de deslocamento do pólo de tensão entre os
direito no Brasil a partir de uma leitura direta ou, frequentemente, indireta de autores como poderes de Estado em direção à jurisdição (constitucional), diante da impossibilidade de o
Ronald Dworkin e Robert Alexy. Ironicamente, um conceito que foi originalmente elaborado legislativo (a lei) poder antever todas as hipóteses de aplicação e do caráter compromissório
como uma forma de estabelecer critérios de racionalidade que limitam a discricionariedade judicial da Constituição, com múltiplas possibilidades de acesso à Justiça”, MOREIRA, Nelson Ca-
é mais comumente associado no Brasil a um instrumento que permite ao juiz mais liberdade em matta; NEVES, Rodrigo Santos; BESSA, Silvana Mara de Queiroz; RUDIO, Alexsandro
relação à lei e ao direito posto.” Claudio Michelon. “Princípios e Coerência na Argumentação Broeto. Política de proteção do meio ambiente, expansão da exploração do petróleo e atuação do
Jurídica”. In: Ronaldo Porto Macedo Jr; Catarina Helena Cortada Barbieri. (coords.). Direito Poder Judiciário (ou ativismo judicial?), § 6. No mesmo sentido, cf., ainda, SANTANNA,
e Interpretação: Racionalidade e Instituições. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 261/262. No mesmo Gustavo da Silva; HUPFEER, Haide Maria. Da impossibilidade do poder discricionário
sentido, Pierluigi Chiassoni. Tecnica dell’Interpretazione Giuridica. Bologna: Mulino, 2007, p. do intérprete para os hard cases no direito ambiental. Revista de Direito Ambiental, vol. 64, p.
289. 117, out. 2011; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Deveres fundamen-
9) Cf. Luigi Ferrajoli. La Democrazia Attraverso i Diritti: Il Costituzionalismo Garantista come tais ambientais – a natureza de direito-dever da norma jusfundamental ambiental. Revista de
Modelo Teorico e come Progetto Politico, passim. Existe tradução para o português em anda- Direito Ambiental, Vol. 67, p. 11, jul, 2012; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER,
mento. Tiago. Democracia participativa e participação pública como princípios do estado socioam-
biental de direito. Revista de Direito Ambiental, vol. 73, p. 47, jan, 2014, § 3.1; YOSHIDA,
10) Para o conceito de Estado Democrático Constitucional e suas implicações para o processo Consuelo Yatsuda Moromizato. Ato jurídico perfeito, direito adquirido, coisa julgada e meio
judicial cf. Hermes Zaneti Júnior. A Constitucionalização do Processo, op. cit., cap. 3. ambiente. Revista de Direito Ambiental, vol. 66, p. 113, abr, 2012.

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Por isto é fundamental sua compreensão a partir do regime jurídico caracterís-


1) Direitos fundamentais como limites e vínculos no modelo
tico dos direitos fundamentais, superando os regimes jurídicos de direito privado
do constitucionalismo garantista: o conceito formal e fortemente ligados à noção de disponibilidade plena, a exemplo do direito de
propriedade, e de direito público, ao revés, ligados tradicionalmente e de forma
material do direito fundamental ao meio ambiente
indevida a uma supremacia do interesse público, geralmente vinculada aos in-
teresses do Estado, pessoa jurídica (frutos de uma superada teoria subjetiva do
O direito ambiental deve ser compreendido não mais como um ramo do di-
interesse público), igualmente suplantada pela noção de deveres negativos e posi-
reito administrativo, mas como normas jurídicas que formam um microssistema
tivos impostos pela norma fundamental ambiental ao próprio Estado e aos particu-
com lógica e princípios próprios, a partir da Constituição Federal de 1988 e
lares (art. 225, caput).13
dos tratados internacionais por ela recepcionados, caracterizado pela transver-
Nesse sentido, em síntese, podemos resumir o direito fundamental ao
salidade dentro dos ramos tradicionais da ciência jurídica, a exemplo das dis-
meio ambiente como um direito de múltiplas funções, justamente caracteri-
ciplinas do direito constitucional ambiental, direito administrativo ambiental,
zado por uma multifuncionalidade pervasiva na sua interpretação e aplicação,
direito penal ambiental, direito processual ambiental etc., uma intervenção que
que autoriza deduzir sua natureza jurídica e a possibilidade de ampla judi-
representa uma alteração das premissas tradicionais desses ramos para adequar o di-
cialização14 como forma de garantia dos patamares constitucionalmente e
reito à função de regular e controlar os efeitos diretos e indiretos da ação humana no
legalmente assegurados de tutela.
meio ambiente natural, artificial, do trabalho e cultural, promovendo o desenvolvi-
A multifuncionalidade do direito fundamental ambiental implica no reco-
mento sustentável (pilares econômicos, sociais e ambientais) para garantia do meio
nhecimento de sua dimensão objetiva e subjetiva, através da afirmação de direi-
ambiente saudável para as presentes e futuras gerações humanas, assim como, a de-
tos e deveres15 negativos ou defensivos, bem como, positivos ou prestacionais, que
fesa dos bens ambientais como fim em si, assegurando a dimensão fundamental do
368 369
meio ambiente junto ao valor fonte da dignidade da pessoa humana.12
da dignidade da pessoa humana conferir Ingo Wolfgang Sarlet; Tiago Fensterseifer. Direito
Constitucional Ambiental: Constituição, Direitos Fundamentais e Proteção do Ambiente. 2ª ed.
12) As ideias aqui desenvolvidas são fruto da reflexão do autor a respeito dos temas tradicionais revista e atualizada. São Paulo: RT, 2012, p. 59-91.
do biocentrismo e do antropocentrismo em relação a matéria ambiental, valorizando as pre-
missas do debate podemos afirmar que as teses de que os direitos ambientais serão melhor 13) SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Deveres fundamentais ambientais
defendidos se fragmentadas as perspectivas natural, artificial, cultural e laboral, bem como, – a natureza de direito-dever da norma jusfundamental ambiental. Revista de Direito Am-
a tutela do bem jurídico fundamental independentemente do reconhecimento de uma ti- biental, Vol. 67, p. 11, jul, 2012.
tularidade difusa do meio ambiente (macrobem ambiental) como um fim em si mesmo são 14) “(...) as normas constitucionais em matéria ambiental possuem eficácia plena, não poden-
agregadas e não conflitam com esta visão mais ampliativa, que no entendimento deste texto, do, em regra, ter sua aplicação integralmente condicionada à prévia regulamentação legal,
resulta da interpretação harmônica dos dispositivos da Constituição Federal de 1988, por- gerando desde logo posições subjetivas e efeitos objetivos passíveis de uma “judicialização”
tanto do direito positivo nacional brasileiro, uma vez que a Constituição deve ser compreen- por meio de todo o rol de ações constitucionais e outros instrumentos de tutela previstos
dida em sua unidade, “a Constituição não se interpreta em tiras”. Para as posições debatidas no sistema jurídico-constitucional brasileiro, com destaque para a Ação Civil Pública e a
conferir Carla Amado Gomes. Introdução ao Direito do Ambiente. Lisboa: AAFDL, 2012; Ação Popular.” Ingo Wolfgang Sarlet; Tiago Fensterseifer. Direito Constitucional Ambiental:
Patrick de Araújo Ayala. Devido Processo Ambiental e Direito Fundamental ao Meio Ambiente. Constituição, Direitos Fundamentais e Proteção do Ambiente, p. 238.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011; Luigi Ferrajoli. “Por uma Carta dos Bens Fundamen-
tais”. In.: Luigi Ferrajoli. Por Uma Teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Porto Alegre: 15) Sobre os deveres ambientais afirma a doutrina: “Os deveres fundamentais de proteção do
2011, p. 49-88; Patrícia Iglecias. Direitos Difusos e Coletivos: Direito Ambiental. São Paulo: ambiente, de modo similar ao regime jurídico-constitucional dispensado ao próprio direito
RT, 2013, p. 17-26; Ana Maria Moreira Marchesan; Annelise Monteiro Steigleder; Sílvia fundamental ao ambiente, podem apresentar cargas normativas tanto de conteúdo negativo
Cappelli. Direito Ambiental. 7ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013, p. 35-46, entre outros. ou defensivo, quanto positivo ou prestacional (...) vinculam juridicamente os particulares no
Para uma aproximação do conceito adotado aqui de antropocentrismo alargado conferir: “o sentido de exigir-lhes não apenas a adoção de medidas negativas, o que ocorre no caso de
meio ambiente deve ser embasado em uma visão antropocêntrica alargada mais atual, que impedir o particular de realizar determinada atividade que, mesmo potencialmente, possa
admite a inclusão de outros elementos e valores. Esta concepção faz parte integrante do sis- acarretar dano ambiental, como desmatar a área de mata ciliar ou despejar produto químico
tema jurídico brasileiro. Assim, nesta concepção, entende-se que o meio ambiente deve ser no córrego de um rio, como também medidas positivas (de cunho promocional) necessárias à
protegido com vistas ao aproveitamento do homem, mas também com o intuito de preservar salvaguarda do equilíbrio ecológico, como ocorre na hipótese de medidas voltadas à conser-
o sistema ecológico em si mesmo”. José Rubens Morato Leite. Dano Ambiental: Do Indi- vação do patrimônio ambiental ou à reparação de um dano ecológico”, Ingo Wolfgang Sar-
vidual ao Coletivo Extrapatrimonial. São Paulo: RT, 2000, p. 95. Para a dimensão ecológica let; Tiago Fensterseifer. Direito Constitucional Ambiental: Constituição, Direitos Fundamen-

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permitem sua judicialização a partir da afirmação de pretensões decorrentes de e cláusula pétrea, vedado portanto a sua supressão e o retrocesso social.18
posições jurídicas complexas, especiais permissões de aproveitamento da norma16, Trata-se de reconhecer a estes direitos fundamentais, a estas posições jurí-
que autorizam a consecução de seus fins, quer em face dos poderes públicos, dicas, todas as prerrogativas asseguradas aos tradicionais direitos fundamentais
quer dos atores privados, sendo, a partir da interpretação e no contexto de sig- subjetivos individuais, porém agora dinamizadas e funcionalizadas pelo mar-
nificado da norma, garantida sua aplicação direta e imediata, com eficácia plena17

tais e Proteção do Ambiente, p. 183; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago.


Deveres fundamentais ambientais – a natureza de direito-dever da norma jusfundamental subjectivo – o de elemento institucional e organizatório e o de feixe de direitos fundamentais e de
ambiental. Revista de Direito Ambiental, Vol. 67, p. 11, jul, 2012. Quanto aos direitos e de- situações subjectivas conexas ou próximas. O ambiente surge a nível das tarefas fundamentais,
veres fundamentais implícitos, a exemplo do dever de solidariedade que dá azo à estrutura de incumbências e de formas de organização do Estado [art. 9º, alínea e), desde logo] e a
de tutela do direito ambiental, é bom ressaltar o papel que o STF vem exercendo na sua nível de direitos e deveres fundamentais (arts. 66º, 52º e 59º, principalmente). Mais do que
afirmação como norma cardinal do sistema: “especial obrigação – que incumbe ao Estado e noutras áreas, a multifuncionalidade ou multidimensionalidade torna-se aqui irrecusável. E quer
à própria coletividade – de defendê-lo e de preservá-lo em benefício das presentes e futuras uns aspectos quer outros têm de ser integrados, numa necessária elaboração sistemática,
gerações, evitando-se, desse modo, que irrompam, no seio da comunhão social, os graves com os demais princípios e com as demais situações subjectivas. Por isso, pode aludir-se à
conflitos intergeracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade na proteção da presença no ordenamento português de uma verdadeira <<constituição do ambiente>> global
integridade desse bem essencial de uso comum de todos quantos compõem o grupo social”. e coerente, e não de simples pontualizações constitucionais, fragmentárias e assistemáticas.”
STF, Tribunal Pleno, ADI 3.540-1/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 01.09.2005. Jorge Miranda, Manual de direito Constitucional – Direitos Fundamentais, op. cit, p. 536..
“Com esta estrutura bifronte, os direitos atinentes ao ambiente ficam sujeitos ora ao regime
16) Deve-se eliminar no direito ambiental a visão clássica dos direitos subjetivos ligados ao dos direitos, liberdades e garantias (...) ora aos direitos econômicos, sociais e culturais. E se só os
exercício individual de seus titulares, poder da vontade ou interesse protegido, para adotar- primeiros são de aplicação imediata (...), nem por isso os segundos deixam de ter a proteção
se uma postura dinâmica de direitos subjetivos funcionalizados à tutela do meio ambiente adequada na Constituição e na lei (...)”. Jorge Miranda. “A Constituição e o Direito do Am-
e da sadia qualidade de vida. “Contrapõem-se, tradicionalmente, duas definições de direito biente”. In.: Idem. Escritos Vários sobre Direitos Fundamentais. Estoril: Princípia Editora,
370 subjetivo: direito subjetivo como poder da vontade e direito subjetivo como interesse prote- 2006. p. 324/325, sem grifo no original. Sobre o regime jurídico dos direitos fundamentais 371
gido... O vício metodológico está na crença de que um interesse tutelado pelo ordenamento em Portugal conferir: “As normas que consagram direitos económicos, sociais e culturais são
seja finalizado em si mesmo.” Pietro Perlingieri. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direitos quase todas normas programáticas, conforme se sabe, e a inconstitucionalidade por omissão
Civil Constitucional, 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p.120. Não se tratam apenas de (art. 283º da Constituição) é a sua violação mais característica. Não deixa, porém, de se
situações jurídicas complexas, mas de permissões especiais de aproveitamento normativa- registar inconstitucionalidade por acção na hipótese de normas legais contrárias (designa-
mente previstas e funcionalizadas à finalidade de tutela definida na constituição. Assim, “ damente por desvio de poder legislativo) e na hipótese de revogação (não, logicamente, de
(...) permissão normativa de aproveitamento específico” António Manuel da Rocha e Mene- declaração de inconstitucionalidade) de normas legais destinadas a conferir exequibilidade
zes Cordeiro. Da Boa Fé no Direito Civil. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007, esp. p. 662-670. às normas constitucionais (...)”. Jorge Miranda. Manual de Direito Constitucional – Direitos
Trata-se na verdade do exercício de verdeiros direitos-deveres, imperativos de tutela direcio- Fundamentais. 3ª ed. Coimbra: Coimbra, 2000, Tomo IV, p. 400, sem grifo no original. No
nados ao poder público e a sociedade, nos termos da norma constitucional. “Uma situação mesmo sentido Carla Amado Gomes. Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de
híbrida que não pode ser reconduzida às situações subjetivas tradicionalmente definidas deveres de proteção do ambiente. Dissertação de doutoramento em Ciências Jurídico-políticas
ativas e passivas é a potestà (...) pátrio poder (...) tutela (...) curatela (...) figuras do pró-tutor (direito administrativo). Lisboa: Edição da autora, 2012 (disponível em pdf na internet).
(...) do síndico (...) configuram situações denominadas potestà. Esta constitui um verdadeiro
ofício, uma situação de direito-dever: como fundamento da atribuição dos poderes existe o 18) “Por uma questão de justiça entre gerações humanas, a geração presente tem a responsabi-
dever de exercê-los. O exercício da potestà não é livre, arbitrário, mas necessário no interesse lidade de deixar, como legado às gerações futuras, pelo menos condições ambientais tenden-
de outrem ou, mais especificamente, no interesse de um terceiro ou da coletividade”. Pietro cialmente idênticas do que aquelas recebidas das gerações passadas, estando a geração vivente,
Perlingieri. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direitos Civil Constitucional, 3. ed. Rio de portanto, vedada a alterar em termos negativos as condições ecológicas, por força do prin-
Janeiro: Renovar, 2007. p. 129; Fernando Noronha. Direito das Obrigações. São Paulo: Sarai- cípio da proibição de retrocesso socioambiental e do dever (do Estado e dos particulares) de me-
va, 2003, esp. p. 61-64. lhoria progressiva da qualidade ambiental. No caso especialmente da legislação constitucional
de proteção do ambiente, há que assegurar a sua blindagem contra retrocessos que a tornem
17) Neste sentido, dando suporte aos conceitos de multifuncionalidade e explicitando o regime menos rigorosa ou flexível, admitindo práticas poluidoras hoje proibidas, assim como buscar
jurídico dos direitos fundamentais no Brasil é mais amplo do que nos estados europeus, a sempre um nível mais rigoroso de proteção, considerando especialmente o déficit legado
exemplo de Portugal, pois não diferencia entre direitos de liberdade e direitos sociais, cf. pelo nosso passado e um “ajuste de contas” com o futuro, no sentido de manter um equilí-
Ingo Wolfgang Sarlet. “Direitos sociais como direitos fundamentais: seu conteúdo, eficácia brio ambiental também para as futuras gerações. O que não se admite, até por um critério de
e efetividade no atual marco jurídico-constitucional brasileiro”. In: Direitos fundamentais justiça entre as gerações humanas, é que sobre as gerações futuras recaia integralmente o ônus
e estado constitucional. Estudos em homenagem a J..J. Gomes Canotilho. São Paulo: Coimbra; do descaso ecológico perpetrado pelas gerações presentes e passadas.” Ingo Wolfgang Sarlet;
RT, 2009. p. 213-253. Ainda sobre a multifuncionalidade: “Verifica-se que o ambiente re- Tiago Fensterseifer. Direito Constitucional Ambiental: Constituição, Direitos Fundamentais e
cebe um tratamento de duplo alcance. Ele adquire um relevo concomitantemente objectivo e Proteção do Ambiente. 2ª ed. revista e atualizada. São Paulo: RT, 2012, 227/228.

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co constitucional, como garantia do “direito fundamental em sentido amplo”19. de segunda geração surgiu mais recentemente a partir das constituições italia-
Portanto, o direito fundamental ao meio ambiente tem natureza jurídica de na e alemã do segundo pós-guerra como forma de resistência ao modelo to-
direito fundamental social e de liberdade, combinando as clássicas dimensões talitário instalado pelas degenerações políticas do fascismo e do nazismo que
negativas e prestacionais. Não se restringe a esfera pública, mas alcança a esfe- transformaram o princípio da legalidade em instrumento de dominação abso-
ra das relações privadas, para instituir limites (proibições de excesso) e vínculos luta ao qual o constitucionalismo flexível e das cartas políticas do início do sé-
(proibições de proteção insuficiente) aos poderes selvagens da política e do mer- culo, primeira geração, não conseguiu fazer frente.
cado, deveres para o Estado e para a coletividade. Sem os limites e vínculos das A lei encontra-se a partir de então submetida à constituição, como elemento
normas constitucionais não haveria respeito adequado ao direito ambiental e de controle não mais apenas de sua dimensão formal, mas também substancial
estes poderes avançariam até o extremo de liquidar nosso planeta20. ou material, quer dizer, de conteúdo, firmando-se uma instância contramajori-
tária como garantia dos direitos fundamentais estabelecidos nas constituições
rígidas com mecanismos de controle de constitucionalidade e tribunais consti-
tucionais, instituindo-se um segundo modelo de constitucionalismo.
1.1 Constitucionalismo garantista e a Constituição
Os modelos que vieram a seguir, influenciaram em muito o nosso constitu-
Brasileira como constituição de terceira geração cionalismo, a Constituição Portuguesa de 1976 e a Constituição Espanhola de
1978, firmam o início da formação do constitucionalismo de terceira geração,
O Brasil é considerado pela doutrina como um país de constitucionalismo de com ampliação do Estado Social, do catálogo de direitos e bens jurídicos tute-
terceira geração21. Neste sentido, a doutrina explicita que o constitucionalismo lados, e instrumentos de fortalecimento dos direitos fundamentais.
Mas é com a nossa Constituição Federal de 1988, que identificamos mais
372 19) Na doutrina: “Para melhor compreensão da proposta de classificação, conveniente partir fortemente as seguintes marcas do emergente constitucionalismo de terceira 373
da premissa de que existe um direito fundamental em sentido amplo (o direito fundamental geração: a) constituição rigidíssima, com o reconhecimento de cláusulas pé-
considerado como um todo), ou seja, o direito compreendido como complexo de posições ju- treas; b) controle de constitucionalidade por um tribunal independente e im-
rídicas. Todavia, consideradas de modo individualizado, tais posições jurídicas assumem a
condição de direitos subjetivos, cujo objeto é, neste sentido, mais determinado e poderá ser parcial; c) ministério público para defesa dos direitos fundamentais como ins-
tanto negativo quanto positivo”, Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni, Daniel tituição de garantia, não mais apenas como órgão de acusação do direito penal;
Mitidiero. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: RT, 2012, p. 301. d) defensoria pública integral e gratuita (também chamada por Luigi Ferrajoli
20) “E’ del resto un dato di “esperienza eterna”, come scrisse Montesquieu, che i poteri, lasciati de ministério público de defesa); e) mandado de injunção e controle de cons-
senza limiti e controlli, tendono a concentrarsi e ad accumularsi in forme assolute: a tramu- titucionalidade por omissão, para tratar das lacunas normativas decorrentes do
tarsi, in assenza di regole, in poteri selvaggi.” Luigi Ferrajoli. Poteri Selvaggi. La Crise della
Democrazia Italiana. Roma/Bari: Laterza, 2012, p. X. Sobre os poderes selvagens da política desnível entre os compromissos constitucionais e as normas infraconstitucio-
e do mercado, caracterizados pela desregulamentação e ausência de limites e vínculos de nais; f ) vinculações orçamentárias, que no Brasil se desenharam, neste primei-
direito, cf., ainda, Luigi Ferrajoli. Diritto e ragione: Teoria del Garantismo Penale, 8ª ed. Roma/ ro momento, nos campos prioritários do direito à saúde e à educação.
Bari: Laterza, 2004, § 62, p. 975-984; Luigi Ferrajoli. Principia Iuris: Teoria del Diritto e
Teoria della Democrazia. Roma/Bari: Laterza, 2007, 3 Tomos, passim. Neste cenário, a tarefa da doutrina brasileira é desenvolver dogmaticamente
o conteúdo positivo já definido em nossa Constituição Federal.
21) Luigi Ferrajoli. Il costituzionalismo di terza generazione. L’esperienza europea e quella latino-a-
mericana a confronto. Texto inédito, gentilmente cedido pelo autor. (Conferência proferida O papel do Ministério Público como instituição de garantia dos direitos
em Florianópolis, 26.11.2009); Luigi Ferrajoli. Per un Pubblico Ministero come Istituzione di fundamentais ficou assim claramente renovado e aprofundado, devendo inter-
Garanzia. Questioni di Giustizia: 2012, p. 31/45. A lição que pode ser extraída deste per- vir fortemente quando ocorram violações da lei e da constituição para além do
curso é uma maior independência da dogmática latino americana em relação à dogmática
européia: “Fino a qualche decennio fa i Paesi dell’America latina sono stati subalterni alle
culture europea e statunitense: hanno copiato le loro costituzioni da quella degli Stati Uniti
e i loro codici da quelli europei. Oggi quel rapporto si è capovolto. Le nuove costituzioni e la seconda delle costituzioni rigide del secondo dopoguerra come quella italiana, quella
latinoamericane, nate o riformate dopo la fine delle dittature militari come radicali “mai tedesca e quella spagnola, che hanno arricchito il catalogo dei diritti con una lunga serie di
più” alla perdita delle libertà e della democrazia, segnano l’inizio di una terza fase del costi- diritti sociali. Possiamo ben chiamarle costituzioni di terza generazione a causa di taluni tratti
tuzionalismo, dopo la prima fase, sette- e ottocentesca delle costituzioni liberali e flessibili, comuni.” Idem, p. 32.

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processo civil clássico22 na defesa da indisponibilidade dos direitos fundamen-


1.2 Direito de Propriedade v Direito Urbanístico-
tais: “È sulla base di questo nuovo costituzionalismo che possono essere lette
le nuove funzioni assegnate al pubblico ministero dalle nuove costituzioni la- Ambiental: Conceito Formal de Meio Ambiente
tino-americane, e in particolare dalla Costituzione brasiliana che contiene le
trasformazioni più originali e innovative di questa figura. Tutte queste nuove O conceito formal de direitos fundamentais é definido de forma a extremar os
funzioni, che vanno ben al di là della tradizionale funzione della pubblica ac- direitos fundamentais dos direitos patrimoniais. Na doutrina: “Propongo una
cusa, sono dettate dal paradigma costituzionale, cioè dai vincoli imposti alla definizione teorica, puramente formale o strutturale, di ‘diritti fondamenta-
sfera pubblica dai diritti fondamentali e dagli interessi collettivi costituzional- li’: sono ‘diritti fondamentali’ tutti quei diritti soggettivi che spettano univer-
mente stipulati. Sono inoltre funzioni di garanzia di tali diritti e interessi che, salmente a ‘tutti’ gli esseri umani in quanto dotati dello status di persone, o di
ove questi siano presi sul serio, impongono un ripensamento teorico e un raf- cittadini o di persone capaci d’agire; inteso per ‘diritto soggettivo’ qualunque
forzamento istituzionale dello stesso costituzionalismo, essendo tutte logica- aspettativa positiva (a prestazioni) o negativa (a non lesioni) ascritta ad un sog-
mente dettate dalla necessità di apprestare a loro sostegno un organo di garan- getto prevista anch’essa da una norma giuridica positiva quale presupposto del-
zia in grado di azionarne la tutela. Precisamente, esse realizzano quello che a la sua idoneità ad essere titolare di situazione giuridiche e/o autore degli atti
mio parere è un fondamentale postulato teorico dello Stato di diritto: il siste- che ne sono esercizio”.24
ma delle garanzie giurisdizionali dei diritti – ove non si tratti di diritti patri- O direito fundamental à propriedade encontra limitações na própria
moniali disponibili, come avviene nel processo civile –, deve sempre essere in- Constituição e nas leis que garantem sua função socioambiental.
tegrato, oltre che da un giudice, da un organo in grado di attivarlo. Alla classica É portanto imprescindível reconhecer que assiste razão à Luigi Ferrajoli
massima “ci sarà pure un giudice a Berlino!”, la logica del costituzionalismo quando separa, desde a formação do conceito, os direitos à propriedade, con-
374 garantista impone perciò che si aggiunga la massima “ci sarà pure un pubblico siderados por ele direitos de liberdade civil; dos direitos de propriedade, com- 375
ministero a Berlino!” in grado di sollecitare, sempre e comunque, l’intervento preendidos como direitos reais dos proprietários.25
di un giudice contro le violazioni delle leggi e della Costituzione.”23 Os primeiros são direitos fundamentais de cunho civil, conquistas seculares do
Um sistema como o brasileiro, com um Ministério Público de garantia dos desenvolvimento da nossa democracia e da ruptura com os regimes de servi-
direitos fundamentais, instituição funcionalizada à acionar o Poder Judiciário dão característicos dos feudos do Ancien Regime, que eram regimes absolutis-
quando estes direitos fundamentais são violados por comissão ou omissão, exi- tas, nos quais a propriedade se limitava aos nobres e ao clero.
ge a diferenciação entre direitos fundamentais e direitos patrimoniais, direitos O direito fundamental à propriedade é um direitos fundamental de liberdade
“de” propriedade, disponíveis, negociáveis e transigíveis, enquanto direitos pa- e de autonomia, garantido a todos e a qualquer um, de forma a não se excluir a
trimoniais, e, direitos “à” propriedade, indisponíveis, inegociáveis e intransigí- possibilidade da aquisição, do gozo, uso e fruição da propriedade por ninguém
veis, enquanto direitos fundamentais. em uma democracia. Estes direitos à propriedade são universais e indisponíveis.
Os segundos, os direitos “de” propriedade, também conhecidos como direi-
tos reais de propriedade, são disponíveis e podem e devem ceder lugar aos di-
reitos fundamentais em sentido contrário, justamente por não contarem com o
mesmo regime jurídico de proteção.
22) Para uma contundente crítica do paradigma processual clássico, inservível para a tutela co- A associação dos direitos à propriedade aos direitos “de” propriedade foi uma
letiva e os desafios da tutela ambiental e da tutela do consumidor, cf. Antonio Herman operação de mistificação ideológica: “In questa prospettiva di bonifica concet-
Vasconcellos Benjamin. A Insurreição da Aldeia Global Contra o Processo Civil Clássico:
Apontamentos sobre a Opressão e a Libertação Judiciais do Meio Ambiente e do Consu-
midor. In: Édis Milaré. Ação Civil Pública. Lei 7.347/85. Reminiscências e Reflexões Após dez 24) Luigi Ferrajoli. Diritti Fondamentali. In.: Ermano Vitale (org). Diritti Fondamentali: Un
Anos de Aplicação. São Paulo: RT, 1995. Dibattito Teorico. 3ª ed. Roma/Bari: Laterza, 2008, p. 5
23) Luigi Ferrajoli. Per un Pubblico Ministero come Istituzione di Garanzia. Questioni di Giu- 25) Luigi Ferrajoli. Diritti Fondamentali. In.: Ermano Vitale (org). Diritti Fondamentali: Un
stizia: 2012, p. 34/35. Dibattito Teorico. 3ª ed. Roma/Bari: Laterza, 2008, p. 03-40.

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tuale e linguistica, criticai infine l’uso promiscuo della parola <<diritto sogge- Logo, não se pode cogitar de defesa do direito fundamental “à” proprieda-
tivo>> per una simile congerie di figure eterogenee, ravvisandovi il veiculo di de quando se trata de defender o patrimônio particular de uma pessoa física
una secolare operazione di mistificazione cui hanno contribuito sia la tradizio- ou jurídica sob a alegação de que o cumprimento dos deveres fundamentais
ne liberale che quella socialista: la prima al fine di accreditare la proprietà come estabelecidos na Constituição implicam custos. Os custos para efetivação do
diritto dello stesso tipo dei diritti di libertà; la seconda al fine di screditare le direito ambiental são decorrentes do compromisso constitucional do correto
libertà come <<diritti borghesi>> dello stesso tipo della proprietà, mediante exercício do direito “de” propriedade com acordo aos deveres fundamentais am-
il disvalore associato alle situazioni di potere rappresentate dal diritto di pro- bientais impostos ao Estado e a coletividade. Os argumentos econômicos não
prietà e dagli altri diritti patrimoniali.”26 justificam o déficit de tutela dos direitos fundamentais pois é da essência dos
Versa a nossa Constituição Federal: “Art. 5º (...) XXII – é garantido o direi- direitos fundamentais sua indisponibilidade, o que significa a impossibilidade
to de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social; Art. 170. de sua conversão em pecúnia.27
(...) II – propriedade privada; III – função social da propriedade; (...) VI – de- Portanto, do ponto de vista formal o conceito de direito fundamental ao
fesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o meio ambiente deve ser compreendido como direito subjetivo universal que
impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração diz respeito a todos, sendo assim indisponível na sua essência.
e prestação. Art. 182 A política de desenvolvimento urbano, executada pelo
Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por
objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e ga-
1.3 O conceito material/substancial de direito urbano-
rantir o bem-estar de seus habitantes. (...) § 2º - A propriedade urbana cum-
pre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da ambiental: posição jurídica dinâmica que garante
376 cidade expressas no plano diretor.” 377
permissões especiais de aproveitamento
Esta compreensão foi adequadamente transcrita para o direito civil que re-
gula o direito “de” propriedade. Versa o nosso Código Civil: “Art. 1.228. O pro-
Como vimos, a multifuncionalidade do direito fundamental ambiental implica,
prietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la
no reconhecimento de sua dimensão objetiva e subjetiva, através da afirmação
do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. (...) § 1º - O
de direitos e deveres negativos ou defensivos, bem como, positivos ou prestacionais,
direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalida-
que permitem sua judicialização a partir da afirmação de pretensões decorrentes
des econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o
de posições jurídicas complexas e especiais permissões de aproveitamento da norma,
estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico
que autorizam a consecução de seus fins, quer em face dos poderes públicos,
e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.”
quer dos atores privados, sendo, a partir da interpretação e no contexto de sig-
Ora, percebe-se claramente da leitura dos dispositivos que o ônus argu-
nificado da norma, garantida sua aplicação direta e imediata, com eficácia plena.
mentativo previsto na Constituição Federal de 1988 é pró-ambiente, daí a
configuração do princípio in dubio pro natura como um postulado interpretati-
vo que iremos analisar mais adiante.
27) A doutrina fala de quatro diferenças estruturais entre direitos fundamentais e direitos pa-
O direito “de” propriedade não é um direito fundamental, apenas o direi- trimoniais, entre as quais a indisponibilidade: a) os direitos fundamentais são “universais”
to à propriedade é um direito fundamental. O direito “de” propriedade somente e os direitos patrimoniais são “particulares”; b) ao direitos fundamentais são indisponíveis,
pode ser exercido se respeitadas as exceções estruturais internas e limitações inalienáveis, invioláveis, intransigíveis, personalíssimos, enquanto os direitos patrimoniais
são disponíveis, alienáveis, transigíveis e negociáveis; c) os direitos fundamentais são normas
externas previstas expressamente na Constituição ou decorrentes implicita- (normas téticas), os direitos patrimoniais são predispostos por normas (normas hipotéticas);
mente de sua interpretação. d) os direitos fundamentais são horizontais, criando obrigações de direito público, para o
Estado, particulares e inclusive para o legislador, já os direitos patrimoniais são verticais, no
sentido de que criam obrigações de tipo civil e predispõem um genérico dever de não lesão.
26) Luigi Ferrajoli. Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale, 8ed. Roma/Bari: Laterza, Cf. Luigi Ferrajoli. Diritti Fondamentali. In.: Ermano Vitale (org). Diritti Fondamentali: Un
2004, p. 951. Dibattito Teorico. 3ª ed. Roma/Bari: Laterza, 2008, p. 13.

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Podemos conceituar os direitos fundamentais em sentido material a partir A tutela adequado do direito ao meio ambiente urbano, direito urbano-am-
do trabalho de Giorgio Pino, o qual afirma: “[...] diritti fondamentali sono di- biental, está preocupada em garantir a sadia qualidade de vida para as presentes
ritti soggettivi attribuiti, riconosciuti, istituiti, garantiti ecc., da norme fonda- e futuras gerações, assegurada através do plano diretor, do Estatuto da Cidade
mentali – da norme cui è riconosciuto, nella cultura giuridica di riferimento, e do direito administrativo urbanístico, em espacial o poder de polícia em ma-
carattere fondamentali. Dunque, affermare l’esistenza di un diritto fondamen- téria urbano-ambiental.
tali equivale ad affermare l’esistenza di norme giuridiche che positivizzano, ri- Não atende a esta tutela a simples atuação a posteriori, após a consolida-
conoscono, attribuiscono ecc., quel diritto soggettivo, norme che, secondo la ção dos danos, as chamadas áreas estabilizadas ou ocupação consolidada por-
cultura giuridica di riferimento, hanno altresì una certa posizione <<sovraor- que estas apresentam um “vício de sinalagma genético”, expressão adequada
dinata>> all’interno di un sistema giuridico”.28 Ou seja, um conceito amplo de aos contratos entre particulares, mas não só, que aqui serve para demonstrar a
direitos fundamentais que, além de assegurar o seu caráter de direitos subjeti- quebra do pacto social de cumprimento dos deveres ambientais impostos ao
vos e de normas jurídicas, parte da premissa que o ordenamento jurídico reco- Estado e à coletividade.
nhece a estes direitos o papel de normas supraordenadas às demais normas do Na verdade, como demonstra a doutrina, quanto ao exercício não autoriza-
sistema de referência. do de uma posição jurídica não se pode falar em fato consumado, situação conso-
Este conceito amplo, inclui a tutela ambiental natural, cultural, do trabalho lidada ou em direito adquirido. No limite, o descumprimento dos deveres im-
e artificial, do chamado meio ambiente urbano, ou direito urbano-ambiental postos pela norma poderá resultar na própria extinção da posição jurídica por
(área urbana e área rural das cidades), e que tem por fundamento o art. 2º, inc. exercício abusivo do direito, pois no Estado Democrático Constitucional, no
I e art. 40, § 2º do Estatuto da Cidade. marco dos direitos fundamentais, o não-direito não merece tutela.30
Vale a transcrição de passagem da doutrina que esclarece o ponto “Desta Segundo Menezes Cordeiro: “Parta-se do direito subjectivo, paradig-
378 forma, a cidade, na concepção pré-contemporânea, correspondia ao urbano, ex- ma de posições jurídicas individuais. Qualquer atribuição jussubjectiva tem, 379
cluindo-se do conceito campo, que se caracterizava como rural. Essa dicotomia subjacente, não só a situação do titular-beneficiário, mas a de outros mem-
está superada em razão da complexidade do modo de viver atual. Esta ideia de bros do espaço jurídico. A concessão de uma permissão normativa específi-
cidade, que representa a essência do conceito constitucionalmente adequado ca de aproveitamento é, num ponto de vista ontológico não estereotipado,
de cidades, e que pode ser encontrado no texto constitucional, conforme uma possivelmente, a cominação de deveres a outras pessoas – caso dos direitos
interpretação constitucionalmente adequada, está plasmada no Estatuto da relativos e de direitos absolutos que, implicando situações de conflito, pres-
Cidade, apontando de forma positiva um caminho para a simbiose dos concei- suponham esquemas relativos para os dirimir, como sucede no caso típico
tos Urbanismo e Meio Ambiente. [...] garantia do direito a cidades sustentáveis, da vizinhança – e, necessariamente, a colocação de não-permissões para to-
entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, dos os não-beneficiários. Toda a conjunção permissão-dever-não-permissão
à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao exprime uma regulação material querida, com efectividade, pelo Direito.
lazer, para as presentes e futuras gerações.[artigo 2º, I, do Estatuto da Cidade] Esta – e não um jogo formal de posições jurídicas envolvidas desenraizadas
Este conceito de, que congrega Urbanismo e Meio Ambiente, direito à mora- – concita o interesse e a preocupação do jurídico. A pessoa que, mesmo fora
dia e gestão democrática, define o perfil constitucional e expressa o direito fun- do caso nuclearmente exemplar do sinalagma, desequilibre, num processo prévio,
damental à cidade que emerge da Constituição de 1988.”29 a regulação material instituída, expressa, mas só em parte, no seu direito subjec-
tivo, não pode, depois, pretender, como se nada houvesse ocorrido, exercer a posi-

28) Giorgio Pino. Diritti e Interpretazione: Il Ragionamento Giuridico nell Stato Costituzionale.
Bologna: Il Mulino, 201°, p. 15. nêsca Buzelato Prestes. Temas de Direito Urbano-Ambiental. Belo Horizonte: Editora Fó-
rum, 2006, p. 28-31.
29) Andrea Teischmann Vizzotto; Vanêsca Buzelato Prestes. Direito Urbanístico. Porto Alegre:
Verbo Jurídico, 2009, p. 28. Na doutrina, indicando como diretrizes básicas para o preen- 30) No mesmo sentido, YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato. Ato jurídico perfeito, di-
chimento do conceito de sustentabilidade urbano ambiental cf. Vanêsca Buzelato Prestes. reito adquirido, coisa julgada e meio ambiente. Revista de Direito Ambiental, vol. 66, p. 113,
Municípios e Meio Ambiente: A Necessidade de Uma Gestão Urbano-Ambiental. In.: Va- abr, 2012.

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ção que a ordem jurídica lhe conferiu. Distorcido o equilíbrio de base, sofre-lhe as
2) O direito fundamental ao meio ambiente
conseqüências. A nova situação criada altera a configuração da posição jurídica
do exercente; no limite, pode ir até à extinção. Esta construção tem um espa- urbano e o postulado hermenêutico “in dubio pro
ço descritivo triplo de aplicação. Funciona perante prestações em sinalagma
natura”: ônus argumentativo pro ambiente
e, ainda, no campo contratual não sinalagmática, nos termos acima examina-
dos; foi, aliás, esse sector, mais confinado, que permite, metodologicamen-
Segundo a doutrina e a jurisprudência contemporâneas o desequilíbrio cons-
te, abordar o tema pela via apropriada. Mas funciona, também, no campo não
titucional em favor do meio ambiente, muito embora não se possa falar em
contratual. Impõe, aí, que quem tenha firmado um direito, formalmente correc-
primazia a fortiori de um direito fundamental sobre os demais, nem mesmo,
to, numa situação jusmaterial que não corresponda à querida pela ordem jurídica
sobre direitos fundamentais absolutos, em um Estado Constitucional, gera
não possa, em conseqüência disso, exercer a sua posição de modo incólume. As pos-
um postulado hermenêutico interpretativo denominado “princípio in dubio
sibilidades de exercício são restringidas ou, até, suprimidas – com a extinção do
pro natura” ou “in dubio pro ambiente”.
direito implicado – por forma a recuperar o desiquilíbrio causado. Nesta leitura,
Na doutrina contemporânea a discussão sobre o modelo combinado de
o caso típico do direito indevidamente obtido ou, se se quiser, do chamado recur-
regras e princípios para a aplicação dos direitos fundamentais foi enrique-
so ao próprio não-direito, torna-se inteligível. Deve, pois, considerar-se cada po-
cida pelo acréscimo dos postulados normativo-aplicativos de caráter her-
sição jussubjetiva sempre integrada no complexo regulatório a que pertença. O
menêutico, que visam a estruturar um procedimento argumentativo que dê
titular que, em comportamento prévio, altere a figuração do complexo em
suporte a aplicação do direito. Assim, a questão central dos ataques ao posi-
causa e pretenda, depois, contrapor o seu direito a actuações de outras pes-
tivismo jurídico, que seria a liberdade do juiz, no aplicar a lei, nos chamados
soas, pode abusar do direito. Basta, para tanto, que tal contraposição, embo-
casos difíceis, usar de liberdade total, ou puro decisionismo, seria adequada-
380 ra conforme com os aspectos formais da atribuição jussubjectiva, ultrapasse 381
mente limitada por procedimentos lógico-argumentativos capazes de redu-
a realidade material de base, na sua nova compleição. Tente fazê-lo e po-
zir este espaço de discricionariedade, fornecendo pautas argumentativas.32
de-se contrapor-lhe a fórmula tu quoque: também ele cometeu prevaricação.
É justamente no espaço de uma renovada hermenêutica jurídica, cien-
Esta ordem de idéias permite ainda entender casos particulares de venire
te da distinção entre texto e norma, da principialização das constituições
contra factum proprium que não são resolvidos de modo satisfatório, com re-
contemporâneas e da necessidade de uma teoria da argumentação e de uma
curso à confiança e de que é exemplo, já referido, o réu que, sucessivamen-
teoria dos precedentes judiciais adequada ao Estado Constitucional que se
te, alega a incompetência dos árbitros e o compromisso arbitral: a primei-
insere o princípio in dubio pro natura como postulado hermenêutico, para
ra conduta impede-o de vir acusar a outra parte de violar o compromisso
em causa, pelas repercussões materiais que acarreta. Estas conclusões foram
possibilitadas pelo ponderar da excepção do contrato não cumprido, filiada, população ocupante de áreas de preservação ambiental: é crucial que governos e a população
historicamente, na bona fides. Pressupõem, além disso, conjunturas típicas de reconheçam que a promoção da regularização dos assentamentos informais é um direito
coletivo, condição de enfrentamento do enorme passivo socioambiental criado ao longo de
relação, que só em conjunções podem ser valoradas. No Direito português, a sua décadas no país. Para tanto, é preciso que se adote um conceito antropocêntrico de natureza,
base legal reside no art. 334. e, dentro deste, na boa fé.”31 bem como que se tomem todas as medidas necessárias para a total reversão do atual modelo
de crescimento urbano segregador e poluidor, de tal forma que as cidades brasileiras pos-
sam se tornar cidades ecológicas e sustentáveis do ponto de vista socioambiental”. Edésio
Fernandes. Preservação Ambiental ou Moradia? Um Falso Conflito. In.: Betânia de Moraes
31) Menezes Cordeiro, Da Boa-Fé no Direito Civil, p. 851-852. Importante contudo citar Edésio Alfonsin; Edésio Fernandes (orgs). Direito Urbanístico: Estudos Brasileiros e Internacionais.
Fernandes para a correta compreensão deste problema. Nem sempre a medida a ser adotada Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 357-358.
será a extinção total dos direitos surgidos do exercício abusivo de posições jurídicas, isto
porque existem direitos fundamentais contrários que na prática precisaram ser adequados e 32) Sobre a teoria dos princípios e seus desdobramentos para a dogmática jurídica dos direitos
sopesados sob pena de negar-lhe vigência. Isso porque: “A grande novidade da ordem jurídi- coletivos, com amplas referências bibliográficas a teoria de base em Robert Alexy, Ronald
ca brasileira, mas que ainda não foi totalmente compreendida, é que onde valores constitu- Dworkin e Humberto Ávila, cf. Fredie Didier Jr; Hermes Zaneti Jr. Curso de Direito Pro-
cionais forem incompatíveis e um tiver que prevalecer sobre o outro, medidas concretas tem cessual Civil – Processo Coletivo. 8ª ed. Salvador: Juspodivm, 2013, especialmente a primeira
que ser tomadas para mitigar ou compensar o valor afetado [...] Não há porque demonizar a parte do capítulo terceiro.

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completar o modelo combinado de direitos fundamentais em regras, princí- O postulado é igualmente reconhecido na jurisprudência do Superior
pios e postulados normativo-aplicativos (procedimentos).33 Tribunal de Justiça em diversos precedentes, como metodologia para garantir
Este postulado implica em um ônus argumentativo maior para afastar a a interpretação mais protetiva dirigida pragmaticamente a favorecer a eficácia
aplicação de uma norma protetiva de direito fundamental ambiental. Ao in- prevista na essências das normas materiais e processuais de tutela ambiental,
térprete, em face da especial proteção constitucional deste bem jurídico, caberá dos quais se transcreve o seguinte excerto da ementa: “ADMINISTRATIVO.
nos casos difíceis (hard cases), nos quais venha a existir uma colisão entre o di- AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DESMATAMENTO EM
reito fundamental ao meio ambiente e outros direitos igualmente fundamen- ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE (MATA CILIAR).
tais, assegurar prima facie a tutela ambiental. DANOS CAUSADOS AO MEIO AMBIENTE. BIOMA DO
Esta característica está bem marcada no texto constitucional, conforme já CERRADO. ARTS. 4º, VII, E 14, § 1º, DA LEI 6.938/1981, E ART.
analisamos, na função socioambiental que cria limites externos, por exemplo, 3º DA LEI 7.347/1985. PRINCÍPIOS DO POLUIDOR-PAGADOR
ao direito “de” propriedade. E DA REPARAÇÃO INTEGRAL. REDUCTIO AD PRISTINUM
Na doutrina este postulado hermenêutico é utilizado para solucionar con- STATUM. FUNÇÃO DE PREVENÇÃO ESPECIAL E GERAL DA
flitos normativos, prevalecendo a legislação mais protetiva: “[...]deve-se aplicar RESPONSABILIDADE CIVIL. CUMULAÇÃO DE OBRIGAÇÃO
o princípio in dubio pro natura, ou in dubio pro ambiente, aliado ao princípio da DE FAZER (RESTAURAÇÃO DA ÁREA DEGRADADA) E DE
prevenção, prevalecendo a legislação que garanta a maior efetividade à tutela do di- PAGAR QUANTIA CERTA (INDENIZAÇÃO). POSSIBILIDADE.
reito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.”34 DANO AMBIENTAL REMANESCENTE OU REFLEXO. ART. 5º DA
A competência legislativa (e administrativa) para a matéria ambien- LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO.
tal é comum e concorrente, vale dizer, tanto União, Estados, Municípios e o INTERPRETAÇÃO IN DUBIO PRO NATURA. 1. Cuidam os autos de
382 Distrito Federal podem legislar, sendo certo, que deve ser aplicada à legisla- Ação Civil Pública proposta com o fito de obter responsabilização por da- 383
ção que traga maior proteção ao bem ambiental, ou seja, aquela mais restritiva. nos ambientais causados por desmatamento de vegetação nativa (Bioma do
Esta é a interpretação constitucionalmente correta que assegura o princípio Cerrado) em Área de Preservação Permanente. O Tribunal de Justiça do
in dubio pro natura ou pro ambiente. Estado de Minas Gerais considerou provado o dano ambiental e conde-
nou o réu a repará-lo, porém julgou improcedente o pedido indenizatório
33) Princípios e regras tem igual dignidade normativa e, ambos, podem ser expressos em textos cumulativo. 2. A legislação de amparo dos sujeitos vulneráveis e dos interesses
de lei, inclusive no mesmo dispositivo de lei (Robert Alexy. Teoria dos Direitos Fundamentais. difusos e coletivos deve ser interpretada da maneira que lhes seja mais favorá-
Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, cap. 2, p.50/84). A atividade vel e melhor possa viabilizar, no plano da ef icácia, a prestação jurisdicional e a
interpretativa é já um juízo sobre a constitucionalidade da regra. No Estado Constitucional,
o direito depende de um modelo combinado de regras, princípios e postulados normativo ratio essendi da norma de fundo e processual. A hermenêutica jurídico-ambien-
-aplicativos para sua correta compreensão e aplicação. Sobre o modelo combinado de regras tal rege-se pelo princípio in dubio pro natura. 3. A jurisprudência do STJ está
e princípios e o duplo caráter das normas de direitos fundamentais cf. Robert Alexy. Teoria firmada no sentido de que, nas demandas ambientais, por força dos princí-
dos Direitos Fundamentais, p. 135/144; conferir, ainda, Robert Alexy. El Concepto y la Validez
del Derecho. Barcelona: Madrid, 1997, no qual Robert Alexy defende um modelo de sistema pios do poluidor-pagador e da reparação in integrum, admite-se a condenação,
jurídico de regras, princípios e procedimento (idem, p. 172/173). Sobre os postulados nor- simultânea e cumulativa, em obrigação de fazer, não fazer e indenizar. Assim,
mativos cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princí- na interpretação do art. 3º da Lei 7.347/1985, a conjunção “ou” opera com
pios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 60 e 80
valor aditivo, não introduz alternativa excludente. Precedentes da Primeira
34) Marcelo Azevedo Mafra. O Novo Código Florestal e a Prevalência das Leis Estaduais e Mu- e Segunda Turmas do STJ. 4. A recusa de aplicação, ou aplicação truncada,
nicipais Mais Protetivas do Meio Ambiente. In: Gregório Assagra de Almeida; Jarbas Soares
Júnior; Luciano Badini (coord.). Meio Ambiente. Belo Horizonte: Del Rey, 2013, p. 102. pelo juiz, dos princípios do poluidor-pagador e da reparação in integrum arris-
Este princípio, compreendido como uma interpretação à favor dos direitos fundamentais, ca projetar, moral e socialmente, a nociva impressão de que o ilícito ambiental
já foi reconhecido também em outros países da américa latina, a exemplo da doutrina e compensa, daí a resposta administrativa e judicial não passar de aceitável e ge-
jurisprudências argentinas, cf. Ricardo Luis Lorenzetti. Teoria Geral do Direito Ambiental,
trad. Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. São Paulo: RT, 2010, p. 63/64 (caso renciável “risco ou custo normal do negócio”. Saem debilitados, assim, o caráter
“Mendoza”). dissuasório, a força pedagógica e o objetivo prof ilático da responsabilidade civil

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ambiental (= prevenção geral e especial), verdadeiro estímulo para que outros,


3) A teoria dos precedentes como mecanismo de controle das
inspirados no exemplo de impunidade de fato, mesmo que não de direito, do de-
gradador premiado, imitem ou repitam seu comportamento deletério. [...] Por decisões judiciais por déficit de fundamentação (disfunção
isso, a simples restauração futura - mais ainda se a perder de vista - do recurso
argumentativa): limites e vínculos ao ativismo judicial
ou elemento natural prejudicado não exaure os deveres associados aos princípios
do poluidor-pagador e da reparação in integrum. 6. A responsabilidade civil,
“[...] le vere ‘corte di precedente’ sono le corti supreme.” (Michele Taruffo). 38
se realmente aspira a adequadamente confrontar o caráter expansivo e difuso
“A realidade atual é que frente ao pluralismo de fontes, a coerência do sis-
do dano ambiental, deve ser compreendida o mais amplamente possível, de modo
tema não é “a priori”, como ocorria no século XIX, que o legislador elaborava
que a condenação a recuperar a área prejudicada não exclua o dever de indeni-
um código de regras jurídicas harmonizadas entre si. Hoje em dia, a coerência
zar - juízos retrospectivo e prospectivo [...]”35
é “a posteriori”, e já não é tarefa do legislador, senão do juiz, quem deve decidir
Em especial vale referir, como reforço da interpretação in dubio pro ambien-
um caso levando em conta diversas normas localizadas em diversas fontes que
te, ao princípio da congruência, o qual determina que entre os atos administrati-
deve fazer “dialogar”. (Ricardo Lorenzetti). 39
vos e legislativos obedeçam ao sentido protetivo da legislação de regência em
A teoria dos precedentes é uma teoria para um modelo de cortes supre-
matéria ambiental, quer seja esta constitucional ou lei infraconstitucional, me-
mas40. Somente em um ordenamento jurídico que reconheça o papel das
diante uma conformação adequada.
O princípio da congruência está previsto expressamente na legislação ar-
gentina: “Nos conflitos ambientais, a Lei 25.675 prevê (art. 4): “A interpre- 38) Michele Taruffo. Precedente e Giurisprudenza. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura
tação e aplicação da presente lei, e de toda outra norma através da qual se Civile. Milano: Giuffrè, 2007, p. 718. O tema das cortes supremas é tratado por Daniel
Mitidiero. Cortes Superiores e Cortes Supremas: Do Controle à Interpretação, da Jurisprudência
384 execute a política ambiental, estarão sujeitas ao cumprimento dos seguintes ao Precedente. São Paulo, RT, 2013. Projetos internacionais de estudos de teoria sobre a inter- 385
princípios: Princípio da congruência: a legislação provincial, municipal referi- pretação das leis e a interpretação dos procedentes, desenvolvidos pelo grupo autodenominado
da ao meio ambiente deverá ser adequada aos princípios e normas fixadas na Bielefelder Kreis, adotaram a premissa da “operative interpretation” e da “interpretation in the
Higher Courts” justamente pela importância das cortes de vértice em um sistema racional
presente lei; no caso de assim não ser, esta prevalecerá sobre toda outra norma de aplicação da justiça. Cf.
que se lhe oponha”36. Como afirmou a doutrina: “Esta é uma regra de “prece-
39) Ricardo Luis Lorenzetti. Teoria Geral do Direito Ambiental, trad. Fábio Costa Morosini e
dência” lógica, que determina que, em caos de conflitos de fontes o juiz deve Fernanda Nunes Barbosa. São Paulo: RT, 2010, p. 70.
aplicar de modo prevalente a tutela ao bem ambiental”.37
40) As cortes supremas se diferenciam das cortes superiores por uma série de razões. São ca-
Trata-se de norma coerente com a teoria da argumentação jurídica por- racterísticas das cortes supremas, cortes de interpretação e precedentes, a função proativa,
que fornece pautas interpretativas para a escolhas das premissas que irão fun- a nomofilaquia recursal e a unidade da interpretação do direito através dos precedentes, a
damentar a justificação da decisão legislativa, administrativa e especialmen- igualdade perante o direito e a segurança jurídica como cognoscibilidade normativa, com
eficácia para o futuro, conforme a clássica expressão de Chiovenda, o recurso é compreen-
te judicial, em caso de inobservância pelo poder legislativo e administrativo. dido como ius constitutionis. As cortes superiores, cortes de controle e jurisprudência, por
outro lado, são cortes reativas, voltadas para o interesse das partes, ius litigatoris, objetivando
a igualdade perante a lei mediante a formação de jurisprudência não obrigatória, sendo a
segurança jurídica como prévia determinação do sentido normativo, com eficácia para o
passado. O modelo brasileiro não é ainda totalmente um modelo de cortes supremas, apro-
ximando-se mais de um modelo de cortes superiores, defasado em muitos sentidos perante
os desafios contemporâneos e o avanço da ciência jurídica. Mas algumas reformas já indicam
35) REsp 1145083/MG, Rel. Ministro Herman Benjamin, segunda turma, julgado em a adoção progressiva de um modelo de cortes supremas para o brasil, a exemplo do CPC
27/09/2011, DJe 04/09/2012. projetado. Para a sistematização adotada aqui conferir Daniel Mitidiero. Cortes Superiores
36) Ricardo Luis Lorenzetti. Teoria Geral do Direito Ambiental, trad. Fábio Costa Morosini e e Cortes Supremas, passim. Na doutrina cf., ainda, “Il primo modelo è quello di una Corte
Fernanda Nunes Barbosa. São Paulo: RT, 2010, p. 70-71. Suprema dotata di una funzione di controllo della legittimità allo stato puro, ossia di inter-
pretazione della legge in generale […] Il secondo modello è quello di una Corte di terza
37) Ricardo Luis Lorenzetti. Teoria Geral do Direito Ambiental, trad. Fábio Costa Morosini e istanza, che è suprema perchè si trova al vertice del sistema delle impugnazioni, ma svolge
Fernanda Nunes Barbosa. São Paulo: RT, 2010, p. 71. il controllo di legittimità sulla sentenza impugnata pronunciando sul merito della contro-

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cortes supremas como tribunais de vértice poderá desenvolver uma teoria reduz as súmulas vinculantes, sua base está na racionalidade do ordenamento
adequada dos precedentes apta a atingir seus objetivos básicos (racionalida- jurídico, na confiabilidade das decisões judiciais, na certeza, na segurança jurí-
de, confiabilidade, segurança jurídica, certeza e efetividade) e suas caracte- dica e na efetividade proporcionadas pelos precedentes como forma de com-
rísticas essenciais (universabilidade, normatividade, vinculatividade, estabi- plementação do ordenamento.
lidade horizontal e vertical). Uma adequada teoria dos precedentes auxiliaria a implantação do modelo
Demonstramos até aqui que o direito urbano-ambiental e o direito ambien- de cortes supremas para os tribunais brasileiros ao mesmo tempo que possibi-
tal são direitos fundamentais, conferindo posições jurídicas judicializáveis de litaria a confiabilidade das decisões em matéria ambiental e urbanístico-am-
cunho negativo e prestacional, direitos e deveres, de aplicação direta e imedia- biental implementando as regras e princípios definidos na lei e na Constituição
ta. Demonstramos, ademais, que em um Estado Democrático Constitucional brasileiras com reforço de sua eficácia.
a argumentação jurídica exerce um papel relevantíssimo para a realização dos Isso porque, como se pode aferir de texto em julgamento da lavra do ministro
objetivos definidos nas normas constitucionais e que no direito brasileiro o le- Herman Benjamin não são os juízes que são ativistas no Brasil, em nosso país o
gislador constituinte estabeleceu um ônus argumentativo em favor do meio ativismo ambiental é das leis e da Constituição. Constitui, ao contrário, ativis-
ambiente, que pode ser bem traduzido na fórmula síntese “in dubio pro natura”, mo judicial pernicioso, aquele que sob o falso pretexto da teoria dos princípios,
como postulado normativo-aplicativo que dirige a solução de conflitos e co- flexibiliza as garantias constitucionais e legais asseguradas ao meio ambiente em
lisões entre normas em matéria ambiental e outros direitos fundamentais, es- prol da interpretação restrospectiva, da manutenção do status quo ou de interes-
pecialmente os direitos “de” propriedade, que não se configuram como direitos ses imediatistas de proprietários, grupos econômicos ou políticos, vinculados às
fundamentais, mas sim como direitos disponíveis, particulares, indenizáveis e maiorias de ocasião, direitos patrimoniais e disponíveis na maior parte dos casos.
negociáveis, portanto, de menor proteção pelo paradigma constitucional. Vale a transcrição: “Como ocorre em todos os campos da regulação jurídica
386 Não obstante a prática cotidiana tem demonstrado que o raciocínio judi- do comportamento humano, nem sempre as alterações legislativas refletem- 387
cial dos julgadores ainda não está preparado para a aplicação destas premissas, se, imediata ou integralmente, na percepção popular. Persiste ordinariamente a
muito embora elas tenham sido reconhecidas pelas cortes de vértice brasilei- prática de condutas à moda antiga, mesmo quando já banidas pelo Direito mais re-
ras, o Supremos Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, tendo força cente. É a conhecida resistência do Ancien Régime às transformações legislati-
de precedentes judiciais. vas, dissonância entre a lei e seus destinatários que persiste, não obstante a soli-
Em parte isto se deve a uma inadequação da aplicação da jurisprudência no dez dos argumentos científicos e éticos que inspiraram o legislador.”[...]“No Brasil, o
Brasil à teoria dos precedentes. Uma adequada teoria dos procedentes não se juiz não cria obrigações de proteção do meio ambiente. Elas jorram da lei, após terem
passado pelo crivo do Poder Legislativo. Daí não precisarmos de juízes ativistas, pois
o ativismo é da lei e do texto constitucional. Ao contrário de outros países, nosso
versia[...] Una seconda distinzione attiene appunto al modo in cui viene svolta la funzione Judiciário não é assombrado por um oceano de lacunas ou um festival de meias-pala-
di controllo della legittimità […] <<caso paradigmatico>>. In questa situazione l’interpreta-
zione della norma effettuata in occasione di quel caso particolare è rivolta prevalentemente vras legislativas. Se lacuna existe, não é por falta de lei, nem mesmo por defeito
al futuro, ossia ai futuri casi identici o analoghi, e il suo scopo principale consiste allora nello na lei; é por ausência ou deficiência de implementação administrativa e judicial dos
stabilire un criterio valido per la decisione di questi casi futuri. Si può dire allora che la inequívocos deveres ambientais estabelecidos pelo legislador”.41
funzione della Cassazione è orientata verso la creazione di precedenti diretti ad influenzare
la giurisprudenza successiva (dei giudici di merito ma anche della stessa Cassazione). Può Analisemos portanto dois problemas comuns no direito brasileiro, que
darsi invece che il controllo verta soltanto sulla legalità della specifica decisione impugnata. acontecem na vida prática em muitos casos em que se trata de direito urbanís-
In questa situazione il caso particolare non è paradigma di nulla e – così dire – rappresenta tico-ambiental e direito ambiental: o chamado periculum in mora (in)reverso e
solo se stesso. Il giudizio di legittimità effettuato dalla Cassazione si volge allora solo al
passato, poiché interessa solo la fattispecie che si è già verificata ed è già stata decisa da altri as denominadas situações jurídicas consolidadas ou teoria do fato consumado em
giudici, ed è finalizzato a scoprire ed eliminare gli errori eventualmente commessi da costoro matéria ambiental.
nell’applicazione di una norma al caso concreto. Qui si tratta, esclusivamente, di controllo
in senso proprio, centrato essenzialmente sulla adeguatezza dell’interpretazione della norma
alle specifiche esigenze decisorie del singolo caso”. Michele Taruffo. Il Vertice Ambiguo: Saggi
sulla Cassazione Civile. Bologna: Il Mulino, 1991, p. 11-12. 41) REsp. nº 650.728/SC – Rel. Min. Herman Benjamin, sem grifos no original.

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Em diversos julgados podemos observar a tese do periculum in mora (in)re- Tratam-se de dois casos em que se percebe claramente que a aplicação do
verso como forma de impedir a tutela antecipada do meio ambiente. Estes pre- princípio in dubio pro natura como filtro hermenêutico prima facie em prol
cedentes normalmente levam em consideração questões patrimoniais, tais como do meio ambiente afastaria tanto do ponto de vista material quanto pro-
o prejuízo econômico do empreendedor ou o direito de propriedade. Devem ser cessual decisões iníquas e incapazes de tutelar os bens jurídicos ambientais
consideradas as questões jurídicas que estão subjacentes a esta aplicação equivo- e urbano-ambientais aos quais a constituição determinou prioridade, espe-
cada do preceito legal. Ora, é sabido que nos casos de tutela antecipada haverá cialmente por que destes bens depende a vida e a qualidade de vida das pre-
sacrifício de uma das pretensões antagônicas e que o direito determina para evi- sentes e futuras gerações.
tar o chamado dano marginal decorrente do tempo do processo até que ocorra
a prevalência do bem jurídico mais relevante42; isso porque toda decisão cau-
sa prejuízo à parte ex adversa; contudo, os prejuízos causados pela antecipação
de tutela implicam em responsabilização objetiva do requerente, sendo este um
H Conclusão
órgão do Estado, como o Ministério Público ou os órgãos de tutela ambiental, O ativismo judicial não virtuoso contra a lei e a Constituição no direito am-
não há risco de insolvência; por fim, não há, de rigor, irreversibilidade, mas sim biental e urbanístico-ambiental deve ser combatido, afirmando-se os limites e
consequências econômicas que como vimos acima estão ligadas à tutela do di- vínculos decorrentes da disciplina legal e constitucional do direito fundamen-
reito “de” propriedade, negociável, disponível e transigível, e, portanto, não nu- tal ambiental.
clear ao direito fundamental “à” propriedade. Para fins de tutela antecipada deve A partir das premissas, constadas no texto, da judicilização ampla dos
ser aferido o caráter irreversível do eventual dano ou lesão ao meio ambiente direitos fundamentais ambientais e urbanístico-ambientais, mediante o
como prioritário em relação as equações de caráter econômico. reconhecimento de seu regime jurídico de direitos negativos ou de liber-
388 Assim, assiste razão na jurisprudência que afirma: “o valor atribuído pelo ordena- dade e positivos ou prestacionais, da reconhecida precedência prima facie 389
mento constitucional e legal aos bens jurídicos em confronto e também o caráter irrever- destes direitos em relação aos direitos “de” propriedade, deve ser aplica-
sível, já não do que o juiz dá, mas do que se deixa de dar, ou seja, a irreversibilidade da do o postulado hermenêutico in dubio pro natura como ônus argumen-
ofensa que se pretende evitar ou mesmo da ausência de intervenção judicial de amparo.” 43 tativo pro ambiente e a teoria dos precedentes judiciais como forma de
Outro é o entendimento a respeito do fato consumado. Muito embora esta unificação do direito em prol da defesa deste bens jurídicos essências à
teoria tenha um forte apelo para a “razoabilidade” as cortes superiores brasilei- sadia qualidade de vida.
ras são unânimes em proclamar a sua excepcionalidade e a não validade desta
a partir de decisões tomadas em caráter precário.
Decidiu o Supremo Tribunal Federal em matéria ambiental que “A teoria
do fato consumado não pode ser invocada para conceder direito inexistente sob a
alegação de consolidação da situação fática pelo decurso do tempo.”44

42) Na doutrina, esclarecendo as origens da expressão “dano marginal” e apontando na direção
de uma nova conformação dogmática para a tutela antecipada cf. Daniel Mitidiero. Anteci-
pação da Tutela: Da Tutela Cautelar à Técnica Antecipatória. São Paulo: RT, 2013.
43) AgRg no Ag 736.826/RJ, Rel. Ministro Herman Benjamin, segunda turma, julgado em
12/12/2006, DJ 28/11/2007 p. 208.
44) Ag. Reg. RE 609.748/RJ, rel. min. Luiz Fux, 23/08/2011; Precedentes citados: RE 275.159,
rel. min. Ellen Gracie, Segunda Turma, DJ 11.10.2001; RMS 23.593/DF, rel. min. Moreira
Alves, Primeira Turma, DJ de 02/02/01; RMS 23.544-AgR, rel. min. Celso de Mello, Se-
gunda Turma, DJ 21/06/2002.

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19
Definição do Modelo Brasileiro de
Legitimidade Ativa Ad Causam nas
Demandas Coletivas Ambientais:
Substituição Processual

Márcia Vitor de Magalhães e Guerra1


Universidade Federal do Espírito Santo

Sumário: Introdução. 1 A Insuficiência do Modelo do Cpc e a


Necessidade de Reformulação de Antigos Conceitos à Luz do Processo
Coletivo Para Construção do Modelo Brasileiro. 2 Substituição
Processual: A Relação Entre Interesse Processual e a Legitimação
na Visão do Cpc Tradicional (Crítica da Doutrina Majoritária).
391
3 Substituição Processual: A Relação Entre Interesse Processual
e Legitimação nas Ações Coletivas Ambientais. Conclusão

1) Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo. Email:
marciavitormg@yahoo.com.br
Definição do Modelo Brasileiro de Legitimidade Ativa Ad Causam
nas Demandas Coletivas Ambientais: Substituição Processual Márcia Vitor de Magalhães e Guerra

H Introdução 1) A Insuficiência do Modelo do Cpc e a Necessidade de


A ruptura do paradigma da supremacia de leis reinante no século XIX impõe a Reformulação de Antigos Conceitos à Luz do Processo
necessidade de uma reanálise de antigos conceitos do direito processual, tradi-
Coletivo Para Construção do Modelo Brasileiro
cionalmente voltados à tutela de interesses individuais das partes, para adequá
-los ao novo modelo que hoje se apresenta sintonizado com o direito material.
No Brasil, o movimento pela tutela coletiva suscita-se, na década de 70, a
Essa mudança se reflete na produção normativa que, sensível às novas exigên-
partir dos estudos acadêmicos realizados na doutrina italiana notadamen-
cias da sociedade de massa, impõe a criação de técnicas processuais voltadas à
te por parte dos professores2 Barbosa Moreira, Ada Pellegrini Grinover e
efetivação de garantias fundamentais.
Waldemar Mariz de Oliveira.
O desenvolvimento da tutela dos direitos coletivos ambientais certamente
A doutrina italiana, com efeito, influenciou sobremaneira os estudos do direi-
denota o escopo que o processo, através das ações coletivas, passa a ter, volta-
to coletivo no ordenamento brasileiro. Na década de 703, com destaque para os
do não somente ao interesse das partes, mas à realização do bem comum. Ou
congressos de Pavia e Salermo, foi que o direito coletivo italiano ganha relevo, em
seja, o processo coletivo ambiental surge nesse cenário como importante ins-
especial com trabalhos de autores como Vicenzo Vigoritti e Mauro Cappelletti4.
trumento de efetivação de objetivos constitucionais.
Em 1974, no IX Congresso Internacional da Academia Internacional de
Não se pode olvidar que a Constituição da República alçou o meio ambien-
Direito Comparado, do qual resultou seu célebre trabalho intitulado Formações
te como um bem de interesse difuso, o que amplia a necessidade de se construir
cada vez mecanismos para efetivação desse direito constitucional.
Com efeito, face à sociedade moderna, na qual se avolumam conflitos mas-
2) Explica Mafra Leal que “Na verdade, o que aconteceu no Brasil foi uma ‘revolução’ de profes-
392 sificados, eis que surge a necessidade de se criarem instrumentos que viabili- sores e profissionais de Direito que, estudando autores estrangeiros, principalmente italianos, 393
zem a tutela desses novos direitos, em geral, de titularidade indeterminada ou passaram a reivindicar um tratamento processual no Brasil de conflitos meta-individuais,
de difícil determinação, em conformidade a um novo processo civil, pautado embora socialmente não houvesse manifestações e pressões visíveis para tal, por falta de cons-
ciência político-jurídica de grupos, pela debilidade organizacional da sociedade civil brasileira
nos valores constitucionais. e pela repressão política vivida no País durante pelo menos duas décadas. Conf. LEAL, Már-
Nessa novel perspectiva, observam-se que antigos institutos, moldados de cio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
acordo com a tradicional visão processual, calcados na cultura individualista e Editor, 1998, p. 184.
formal do processo, precisam ser revisitados, de modo a trazer para o processo 3) O movimento na Itália foi impulsionado pela polêmica decisão, proferida pelo Conselho
coletivo técnicas que possibilitem o seu sucesso. de Estado , em 1973, a qual reconheceu a legitimidade da associação ambientalista Italia
Nostra. Na ocasião, a entidade impugnou ato da província de Trento que teria autorizado a
Dentre estes institutos, que merecem uma nova roupagem frente à tutela construção de uma rodovia próximo ao lago do Tovel Conf. MENDES, Aluisio Gonçalves de
jurisdicional coletiva, encontra-se o objeto da presente pesquisa, o instituto da Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais,
legitimidade ad causam. 2002, p.98-120.
Objetiva-se com o presente escrito expor como o conceito jurídico da 4) Mauro Cappelletti, no relatório geral do Projeto Florença, publicado na década de 70, enu-
legitimidade ativa nas ações coletivas ambientais sofreu e vem sofrendo in- mera três soluções para o problema do acesso à justiça as quais intitulou ondas renovatórias: a
primeira onda foi 1) a assistência judiciária seguida da 2) representação dos interesses difusos,
fluência a partir do surgimento dos novos direitos da coletividade e a neces- sendo a mais recente o 3) novo enfoque de acesso à justiça. Conf. CAPPELLETTI, Mauro;
sidade de se efetivá-los. GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. Trad. Ellen
Gracie Northfleet, 2002, p. 49-67. O autor aborda ainda os problemas relacionados ao acesso
à justiça para tutela dos direitos coletivos nos seguintes escritos: CAPPELLETTI, Mauro.
“Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil”. Revista de processo. São
Paulo: Revista dos Tribunais, jan-mar, 1977; CAPPELLETTI, Mauro. Tutela dos interesses
difusos. Porto Alegre: Ajuris, março, 1985; CAPPELLETTI, Mauro. O Acesso dos con-
sumidores à justiça. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr-jun, 2001;
CAPPELLETI, Mauro. Acesso à justiça e a função do jurista. Revista de processo. São Paulo:
Revista dos Tribunais, jan-mar, 2001.

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Sociais e Interesses Coletivos diante da Justiça Civil, já ressaltava Mauro do numa base individualista de litígios, vincula a legitimidade ativa à afirma-
Cappelletti a necessidade de se superar a tradicional dicotomia entre direito ção da titularidade da relação jurídica material discutida no processo (legiti-
público-privado5 na solução das lides que passaram a marcar a sociedade con- midade ordinária), salvo em casos de expressa autorização legal (legitimidade
temporânea. Nessa esteira, defendia uma reformulação6 dos institutos proces- extraordinária). Assim, em se tratando de direitos coletivos, no qual se inclui
suais, dentre os quais a legitimação coletiva, de modo a torná-los mais adequa- em regra o direito ao meio ambiente hígido, cuja titularidade difusa é a marca
dos à tutela desses novos direitos. da sua definição e, considerando que, à época, não havia legislação própria que
O modelo de representação dos direitos supraindividuais, inicialmente regulasse a matéria, restava patentemente prejudicada a utilização da precitada
calcado no modelo tradicional, sem dúvida, na esteira do que afirmava o autor norma em sua visão clássica.
italiano, consistia um obstáculo organizacional à garantia do acesso à justiça.7 A doutrina, diante desse quadro, buscou soluções para que pudesse ser de-
Do mesmo modo, o comparecimento em juízo de todos aqueles conside- finida a legitimidade coletiva, por meio de sugestões como a legitimação con-
rados titulares dos direitos difusos ou coletivos mostrava-se inviável. Fazia- corrente e disjuntiva dos co-titulares agindo em juízo isoladamente ou me-
se imperiosa a construção de um modelo de representatividade dos direitos diante o direito à formação de litisconsórcio voluntário; legitimação de pessoas
dos membros ausentes, de modo que se viabilizasse a participação de um jurídicas (sociedades, associações) cujo fim institucional consistisse na defesa
ente em juízo que fosse capaz de promover a tutela adequada e efetiva dos do interesse em litígio; legitimação do Ministério Público, dentre outros9.
direitos dos membros ausentes. Em 1981, representando um claro avanço no tema, entra em vigor a lei que
A regra contida no art. 6º do vigente Código de Processo Civil8, construí- dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), respon-
sável pela legitimação do Ministério Público para propositura de ação de res-
ponsabilidade civil por danos causados ao meio ambiente.10
5) “A summa divisio aparece irreparavelmente superada diante da realidade social de nossa época, Kazuo Watanabe criticava a omissão quanto à possibilidade de tutela de
394 395
que é infinitamente mais complexa, mais articulada, mais ‘sofisticada’ do que aquela simplista
dicotomia tradicional. Nessa época, já tivemos oportunidade de ver, traz prepotentemente ao direitos coletivos perante o Judiciário. Sugeriu, assim, independentemente das
palco novos interesses ‘difusos’, novos direitos e deveres que, sem serem públicos no senso alterações legislativas que se impunham necessárias, uma interpretação exten-
tradicional da palavra, são, no entanto, coletivos: desses ninguém é ‘titular’, ao mesmo tempo siva do art. 6º do CPC, que fosse consoante às necessidades práticas de acesso
que todos os membros de um dado grupo, classe ou categoria, deles são titulares.” Conf.
CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Re- à justiça e que permitisse às associações, bem como a outros corpos interme-
vista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan-mar, 1977, p. 135. diários, o ajuizamento de demandas em prol da sociedade. Defendia, portanto,
6) “Eis, portanto, porque os milenares princípios de defesa e de contraditório se revelam insu-
ficientes diante das mutantes exigências da sociedade contemporânea. Tal insuficiência, por
outro lado, não significa abandono, mas superação. É necessário superar sistemas de um ga-
rantismo processual de caráter meramente individualístico [...]. Em seu lugar, deve nascer um por lei.
novo e mais adequado tipo de garantismo, que eu gostaria de definir como ‘social’ ou ‘coletivo’,
conceito não somente para a salvaguarda dos indivíduos em um processo individualístico, mas 9) Conf. MOREIRA, José Carlos Barbosa. A tutela jurisdicional dos interesses coletivos ou
também para a salvaguarda dos múltiplos e extremamente importantes novos grupos e ‘cor- difusos. In MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: terceira série. São
pos intermediários’ que também reclamam acesso à justiça para a tutela dos seus interesses.” Paulo: Saraiva, 1984, p. 198-199; GRINOVER, Ada Pellegrini. A problemática dos inte-
Conf. CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça resses difusos. In GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord). A tutela dos interesses difusos. São
civil. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan-mar, 1977, p. 154. Conf. ainda Paulo: Max Limonad, 1984, p. 38-45; WATANABE, Kazuo. Tutela jurisdicional dos inte-
do mesmo autor Vindicating the public interest through the courts. In CAPPELLETTI, resses difusos: a legitimação para agir. In GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord). A tutela
Mauro. The judicial process in comparative perspective. Clarend Press Oxford, 1998, p. 304. dos interesses difusos. São Paulo: Max Limonad, 1984, p. 90-97; OLIVEIRA Jr., Waldemar
Mariz. Tutela jurisdicional dos interesses coletivos. In GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord).
7) Acorde-se sobre o assunto que Cappelletti já indagava: “A quem pertence o ar que respiro?” A tutela dos interesses difusos. São Paulo: Max Limonad, 1984, p. 17-23.
Conf. CAPPELLETTI, MAURO. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça
civil. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan-mar, 1977, p. 135; CAPPEL- 10) Art. 14, § 1º. Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obri-
LETTI, Mauro. Vindicating the public interest through the courts. In CAPPELLETTI, gado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados
Mauro. The judicial process in comparative perspective. Clarend Press Oxford, 1998, p. 273 ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União
e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por
8) Art. 6. Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado danos causados ao meio ambiente.

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a natureza ordinária da legitimação ativa desses entes.11 E essa foi, de fato, implantando-se inicialmente um modelo de legitimi-
Essa necessidade de se flexibilizar a interpretação do art. 6º também foi en- dade ope legis, a solução encontrada pelo legislador brasileiro15, ao prever, na
campada por Barbosa Moreira12 que vislumbrava a tutela de direitos difusos Lei 7.347/85 e na Lei 8.078/90, um amplo rol de legitimados16, indo ao en-
por pessoa física a partir do art. 892, 1ª parte do CC/16 (atual 260 CC/02), contro do que se denominou de universalização do processo e da jurisdição17
tendo em vista a indivisibilidade de tais direitos; sugestão que se assemelhava e, certamente, contribuiu, e ainda contribui, para o fomento da democracia
à prevista na doutrina italiana. 13 participativa no Estado Democrático de Direito “que se manifesta na es-
Frente às soluções que se apontavam hábeis à resolução da problemática da truturação de processos que ofereçam aos cidadãos possibilidades efetivas
titularidade ativa da demanda coletiva, dentre as quais a instituição de legiti- de aprendizado da democracia, de participação nos processos decisórios, de
mação concorrente e disjuntiva dos co-titulares, a legitimação de pessoas ju- exercício do controle crítico nas divergências de opinião e da produção de
rídicas (sociedades e associações) e a legitimação de órgãos públicos, concluía inputs políticos democráticos.”18
Barbosa Moreira, seguindo Mauro Cappelletti, que proceder à combinação de A opção legislativa brasileira, em sede de tutela coletiva, ao pré-definir
tais soluções representaria, com grande probabilidade, a melhor forma de se os entes aptos à propositura das demandas, implicou o abandono do critério
atingir resultados mais positivos.14 da titularidade do direito pleiteado e concedeu a tais entes uma legitimação
processual extraordinária.19
Instituiu-se, desse modo, um modelo de legitimidade extraordinária por
11) WATANABE, Kazuo. Tutela jurisdicional dos interesses difusos: a legitimação para agir.
In GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord). A tutela dos interesses difusos. São Paulo: Max
Limonad, 1984, p.90.
12) O autor trata a questão da legitimidade nas ações coletivas como um dos pontos sensíveis da “As soluções ‘quimicamente puras’, aqui como alhures, parecem insatisfatórias.” Conf. MO-
396 problemática processual dos interesses coletivos ou difusos. Conf. BARBOSA MOREIRA, REIRA, Barbosa. A tutela jurisdicional dos interesses coletivos ou difusos. In MOREIRA, 397
José Carlos. A proteção jurisdicional dos interesses coletivos ou difusos. In GRINOVER, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984,
Ada Pellegrini (Coord.). A tutela dos interesses difusos. São Paulo: Max Limonad, 1984, p. 199.
p. 99.
15) Álvaro Luiz V. Mirra observa que o legislador, ao optar por essa legitimação, privilegiou a
13) Conf. MOREIRA, Barbosa. A tutela jurisdicional dos interesses coletivos ou difusos. In participação judicial semidireta. “Isso porque [...] atribuiu-se a iniciativa da ação civil públi-
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: terceira série. São Paulo: ca apenas a determinados ‘grupos ou instituições sociais secundários’ – no caso, o Ministério
Saraiva, 1984, p. 201. Segundo o autor, “[...] será talvez possível, em determinados casos, Público e as associações civis ambientalistas -, que se encontram [...] em posição interme-
contornar o óbice do art. 6º, do Código de Processo Civil, desde que se reconheça que neles diária entre os cidadãos e os representantes eleitos pelo povo. Afastou-se, com isso, a partici-
o que se põe em jogo é algo distinto da mera soma dos interesses individuais: um interesse pação direta das pessoas individualmente consideradas, as quais não tiveram reconhecida sua
geral da coletividade, qualitativamente diverso e capaz de merecer tutela como tal.” Idem, legitimidade ativa para a causa.” Conf. MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública em
p. 203. defesa do meio ambiente: a representatividade adequada dos entes intermediários legitima-
dos para a causa. In MILARÉ, Édis (Coord.) A ação civil pública após 20 anos: efetividade
14) Solução a que Mauro Cappelletti denominou de mista ou plúrima. Conf. CAPPELLETTI, e desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 42.
Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 65-66, e que BARBOSA MOREIRA chamou de 16) Solução consagrada em nossa Constituição Política no art. 109, § 1º.
eclética. Ressalte-se que, a despeito de não utilizar o termo plúrima ou mista, tal solução já
vinha sugerida por Mauro Cappelletti em trabalho anterior. Conf. CAPPELLETTI, Mau- 17) DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 4ª ed. São Paulo,
ro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Revista de processo, ano Malheiros, 1994, p. 304.
2, n. 5. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 143-145. Observa ainda José Carlos Bar- 18) SOARES, Mário Lúcio Quintão. Processo constitucional, democracia e direitos fundamentais.
bosa Moreira “que estas soluções [conceder legitimação a entes privados e públicos] não se In Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. SAMPAIO, José Adércio Leite
excluem reciprocamente a priori e admitem, pelo menos em tese, combinações de diversos (Coord.), Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 407; ZANETI Jr., Hermes. Processo consti-
tipos e graus. Como todas apresentam, ao lado de possíveis vantagens, manifestos inconve- tucional. O modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
nientes, quando as examinamos em separado, é justamente por meio de tais combinações 2007, p. 60-61.
que se pode, com toda probabilidade, alcançar resultados mais positivos.” BARBOSA MO-
REIRA, José Carlos. La iniciativa em la defensa judicial de los intereses difusos y colectivos 19) No entanto, conforme se demonstrará logo mais a frente, a natureza jurídica da legitimidade
(um aspecto de la experiência brasileña). In Temas de direito processual civil:quinta série. nas ações coletivas, se ordinária ou extraordinária ou ainda se autônoma para condução do
São Paulo: Saraiva, 1994, p. 165. Antes mesmo, já afirmava José Carlos Barbosa Moreira que processo, ainda é assunto discutido pela doutrina. Vide infra p. 14, notas 35-37.

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meio da técnica da substituição processual20, autônoma, assim entendida por se Nesse sentir, acolhe-se ainda a doutrina capitaneada por Arruda Alvim que
tratar de legitimidade que “confere ao respectivo titular [do direito] a possibi- considera a legitimação como decorrente do ordenamento, de modo a admitir
lidade de atuar em juízo com total independência em relação à pessoa que or- a substituição processual por determinado ente ainda que este não venha ex-
dinariamente seria legitimada, e em posição análoga à que a esta caberia se or- pressamente elencado num rol taxativo de legitimados em abstrato, mas a par-
dinário fôsse o critério adotado pela lei para definir a situação legitimante” (sic) tir de uma interpretação sistemática.23
e exclusiva, no sentido de que sua atuação exclui a do titular do direito como Com efeito, a leitura do ordenamento a partir da Constituição permite afir-
parte principal, “tornando-lhe a presença irrelevante e, mais do que isso, insu- mar que o substituto processual não é somente aquele definido pela lei, mas tam-
ficiente para a regular instauração do contraditório.” 21 bém pelo magistrado que o determina, no caso concreto, por meio do controle
Em sede de ações coletivas, em que se incluem as coletivas ambientais, com da legitimação adequada, em conformidade com as premissas do ordenamento
efeito, a regular observância do contraditório prescinde a presença dos titulares jurídico, inclusive a da necessidade de garantir a tutela jurisdicional adequada.
do direito deduzido em juízo, ou daqueles cujos interesses contrariam-se com Sob tal entendimento defende-se configurada a legitimidade ativa para a
os da demanda, até pela impossibilidade lógica de se chamar a juízo, em litis- propositura de uma lide coletiva ambiental a partir do ordenamento como um
consórcio necessário, todos aqueles que tenham tido ou venham a ter sua esfera todo e não somente a partir de autorização de uma norma legal específica.
de direito atingida pelo resultado da lide. O modelo brasileiro adotou ainda uma legitimidade concorrente e disjun-
Imagine se fosse necessário chamar a lide todas comunidades ribeirinhas tiva24, a saber, um modelo de legitimidade no qual a atuação de um ente não
que viessem a ser atingidas, por exemplo, pela contaminação de um rio e ima- exclui a de outro e ocorre independentemente de autorização ou anuência dos
gine ainda a problemática se tal rio cortasse mais de um estado. demais. É possível a todos os legitimados, de modo concorrente, habilitar-se à
Ressalte-se que o entendimento quanto à natureza da legitimidade nas ação coletiva ambiental, desde que preenchidos os requisitos legais.
398 ações coletivas: se ordinária, extraordinária ou autônoma para condução do Nesses termos, considerando que os entes legitimados agem na tutela de di- 399
processo, ainda padece de divergências entre os que debatem o assunto, não reitos pertencentes a uma coletividade e, portanto, na tutela de direitos alheios,
sendo objeto deste trabalho. sua atuação representa os anseios da sociedade. Nessa qualidade, atuam, ou no
O presente escrito funda sua pesquisa na corrente que acolhe a teoria da le- mínimo deveriam necessariamente atuar, no papel de autênticos porta-vozes da
gitimação extraordinária por substituição processual como a melhor forma de população. Disso se extrai a importância e a necessidade de se proceder ao con-
garantir uma efetiva e adequada tutela dos direitos coletivos lato sensu. trole dessa atuação, pelo que se denominou de representação adequada, institu-
E esse foi, de fato, o posicionamento encampado pelo Supremo Tribunal to largamente aplicado no modelo de litígio coletivo norte-americano e que o
Federal, recentemente confirmando no RE n. 214668, no qual o Supremo re- Brasil, não obstante com algumas resistências, vem buscando implementar, em
conheceu a atuação dos sindicatos como substitutos processuais na tutela dos uma clara evolução do modelo de legitimação ope legis para o modelo ope judicis25.
direitos e interesses coletivos ou individuais das categorias que representam. 22
DJ 24/08/2007. Conf. ainda RE n. 193.503/SP, RE n. 193.579/SP, RE n. 208.983/SC, RE
n. 210.029/RS, RE 211874/RS, RE n. 213.111/SP, rel. orig. Min. Carlos Velloso, rel. p/ o
20) A teoria da substituição processual será mais profundamente abordada nos itens 1.2.1 e acórdão Min. Joaquim Barbosa, julgados em 12.6.2006, DJ 24/08/2007.
1.2.3.
23) “A palavra lei, no art. 6º, deve ser entendida como sistema, no que se compreende decreto, lei
21) Trata-se de classificação elaborada por BARBOSA MOREIRA. A legitimação extraordi- complementar, etc.” ARRUDA ALVIM, Código de processo civil comentado. São Paulo:
nária, segundo o autor, pode ser classificada como autônoma ou subordinada. Será subor- RT, 1975, p. 426.
dinada quando “apenas o titular da própria situação jurídica objeto do Juízo pode ajuizar
o pedido, ou só contra ele pode dirigir-se a demanda. A presença do legitimado ordinário 24) Q uanto à atecnicidade do termo utilizado pela doutrina, bem observa Antonio Gidi que
é, assim, indispensável à regularidade do contraditório.” A legitimidade autônoma, por sua “Em vernáculo, ‘disjuntivo’ quer significar a proposição composta de dois predicados, sendo
vez, pode ser exclusiva ou concorrente. Conf. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Apon- que apenas um deles pode ser atributo do sujeito com exclusão do outro. É o ‘ou-excludente’
tamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária. Revista dos Tribunais, da Lógica Formal.” GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São
São Paulo: RT, ano 58, Junho, vol. 404, 1969, p. 10-11. Paulo: Saraiva, 1995, p.38, nota 91.
22) Conf. RE n. 214668/ES, tribunal pleno, Min. Relator Carlos Velloso, julgado em 12/06/2006, 25) Nesse sentido, afirmam Hermes Zaneti Jr. e Fredie Didier Jr. que: “Hoje, na jurisprudência,

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Ressalte-se que essa é uma tendência que vem sendo vislumbrada não so- uma atuação adequada e eficiente dos interesses da sociedade.
mente no Brasil, mas também em vários países de tradição da civil law, con- Tal modelo de legitimidade mostra-se de fundamental importância para
clusão essa extraída do Relatório Geral26 sobre as novas tendências em tema de a maior efetividade do direito ambiental na medida em que torna a lide mais
legitimação e coisa julgada nas ações coletivas dos países de civil law elabora- adequada aos anseios dos que representam.
do no âmbito do XIII Congresso Mundial de Direito Processual, realizado em
Salvador, Bahia, no ano de 2007.
Trata-se a representação adequada, em linhas gerais, de requisito neces-
2) Substituição Processual: A Relação Entre Interesse
sário ao regular desenvolvimento da ação coletiva ambiental, consubstan-
ciada na análise de determinadas características, atinentes aos legitimados Processual e a Legitimação na Visão do Cpc
e aferíveis pelo magistrado durante todo o iter processual, necessárias para
Tradicional (Crítica da Doutrina Majoritária).
demonstrar, no caso concreto, se os legitimados se apresentam habilitados a
Ressalte-se, inicialmente, que o conceito de interesse de agir, como condição da
começa a perseverar o controle judicial da adequada legitimação, seguindo a tendência dos ação, não deve ser confundido com o de interesse substancial, material na lide.
ordenamentos modernos de acompanhar , pelo juiz, a adequada representação das partes Este tem caráter substancial e primário e aquele, secundário e instrumental27.
envolvidas. Portanto, correta a doutrina ao afirmar que a legitimação no Brasil não se limita Essa distinção, todavia, nem sempre se mostra clara na doutrina. Por ve-
ao legislador, ocorrendo também o controle ope judicis. Um dos casos em que esse controle
tem se mostrado mais rigoroso é na legitimação do Ministério Público.” Conf. ZANETI zes, os conceitos se confundem, levando doutrina28 e jurisprudência, em al-
Jr., Hermes; DIDIER Jr., Fredie. Curso de direito processual civil. Processo coletivo, vol 4, gumas situações, a exigirem interesse material na causa para a configuração
3ª ed. Salvador: Juspodvum, 2008, p. 354. Do mesmo modo, assinala Marcelo Vigliar que do interesse para agir.
400 “Fizemos uma suposta adesão ao denominado sistema ope legis crendo que, apenas por per- 401
tencermos à família jurídica do civil law, a previsão legal de um rol de legitimados bastaria Rodrigo da Cunha L. Freire observa que, fruto dessa confusão concei-
à solução do problema. Puro engano. A jurisprudência (bastante expressiva) , formada ao tual, fala-se atualmente em interesse de agir metaindividual. Segundo o autor,
longo desses 20 anos de prática de processos coletivos, que versa a condição do legitimado o interesse de agir não pode ser qualificado como metaindividual, somente
ativo, não me deixa mentir nem exagerar. [...] Estivéssemos num sistema ope legis (nunca
estivemos porque ele é impraticável), e não se discutiria tanto, em juízo, a preliminar da legi- o interesse substancial29.
timação ativa.” Conf. VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Defendant class action brasileira: Segue concluindo que “O que se pode discutir é a presença do interesse de
Limites propostos para o ‘Código de Processos Coletivos’. In GRINOVER, Ada Pellegrini; agir em ação que visa a proteção de interesse substancial individual, estando
MENDES, Aluisio G. de Castro; WATANABE, Kazuo. Direito Processual Coletivo e o
anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, pendente ação para defesa de interesse substancial metaindividual, com causa
2006, p. 313. Registrem-se aqui as críticas lançadas por Antonio Gidi quanto ao termo ope de pedir correspondente à daquela.”30
judicis utilizado pela doutrina porque, segundo explica “tanto no direito brasileiro como Fundado no binômio31 necessidade e utilidade da tutela jurisdicional, o in-
no direito norte-americano, é a lei escrita (e não o juiz) que determina quem tem e quem
não tem legitimidade para propor uma demanda coletiva:um ente coletivo nas demandas
coletivas brasileiras, um membro do grupo típico e adequado nas demandas coletivas norte
-americanas.” Conf. Conf. GIDI, Antonio. Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo. 27) OLIVEIRA, Waldemar Mariz. Substituição processual. Revista dos Tribunais: São Paulo,
A codificação das ações coletivas no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 87. Trata- 1971, p. 32; DIDIER Jr., Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação. O juízo de
se, contudo, de observação que vai de encontro ao proposto na presente pesquisa, eis que, admissibilidade do processo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 281.
conforme já defendido, entende-se aqui que a legitimação decorre do ordenamento e não
somente da lei, podendo o magistrado, no caso concreto, aferir a legitimidade a determinado 28) MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 13 ed. São Paulo: Sa-
ente ainda que ausente previsão de lei, bem como afastá-la por considerá-la inadequada e raiva, 2001, p. 287-290.
desconforme aos princípios da tutela jurisdicional coletiva, por meio do que se denominou 29) LIMA FREIRE, Rodrigo da Cunha. Condições da ação. Enfoque sobre o interesse de agir.
de legitimação conglobante. 3ª ed. são Paulo: RT, 2005, p. 164
26) Conf. GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os pro- 30) LIMA FREIRE, Rodrigo da Cunha. Condições da ação. Enfoque sobre o interesse de agir.
cessos coletivos nos países de civil Law e common Law. Uma análise de direito comparado. 3ª ed. são Paulo: RT, 2005, p. 164.
Tema n. 5. Novas tendências em matéria de legitimação e coisa julgada nas ações coletivas.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 250. 31) Assim, trazida a demanda a juízo, “o Estado-juiz verifica, em juízo sucessivo,: a) se há real-

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teresse de agir, segundo a doutrina tradicional, “é o elemento material do di- Ainda que se reconheça a dificuldade em se dissociar legitimidade ad cau-
reito de ação”; trata-se de “um interesse processual, secundário e instrumental sam e o interesse de agir, a distinção se impõe, eis que em determinadas situa-
com relação ao interesse substancial primário: tem por objeto o provimento ções é possível que se visualize claramente a existência da legitimidade desta-
que se pede ao juiz como meio para se obter a satisfação de um interesse pri- cada do interesse. Nesse sentido, expõe Donaldo Armelin que se faz possível,
mário lesado pelo comportamento da parte contrária, ou, mais genericamente, por exemplo, a satisfação do bem da vida por meio da atuação do Judiciário
pela situação de fato objetivamente existente.”32 sem que o titular da pretensão seja legitimado a tanto, como ocorre nos casos
Trata-se, desse modo, de instituto que traz uma vinculação direta e pessoal de legitimação extraordinária.
com o titular do direito pleiteado33, mas que com ele não se confunde. Em ra- De fato, quando se está diante de legitimação extraordinária (substituição
zão dessa vinculação, reconhece-se na doutrina a dificuldade em se separar o processual), ou seja, quando o autor pleiteia, em nome próprio, direito alheio, a
interesse processual da legitimidade para agir.34 Enquanto o primeiro consubs- distinção dos institutos mostra-se mais clara. Isso em razão da regra geral con-
tancia-se na relação entre a necessidade e o bem da vida apto a satisfazê-la, o substanciada no art. 6º do CPC segunda a qual somente aquele que se afirma
segundo relaciona-se à necessidade de se descobrir, in concreto, quem pode mo- titular do direito pode em sua defesa demandar.
ver a demanda e em face de quem pode ser movida. Afirma José Augusto Delgado, que “A exceção [à regra do art. 6º] não atin-
Fazendo alusão a ambos os institutos, Cândido Rangel Dinamarco afirma ge de modo profundo o princípio geral, pois este, na verdade, se apresenta
que a legitimidade se absorve no interesse de agir, já que a falta daquela implica como o mais correto, em face do legislador deixar a cada pessoa a iniciativa de
inutilidade do provimento jurisdicional. Para o autor, a ilegitimidade ad causam reivindicar em juízo os seus direitos.”
é, assim, “um destaque negativo do requisito do interesse
” de agir, cuja concreta Nesses casos, continua o autor, facilmente se verifica “a presença de um in-
ocorrência determina a priori a inexistência deste. 35
teresse conexo da parte processual com o da parte material [...]. Esse liame é
402 ditado pela norma positiva, conforme já afirmado no art. 6º, em haver a restri- 403
ção de só ser admitida a substituição processual quando a própria lei reconhe-
mente a necessidade concreta de tutela apontada pelo demandado; b) se o provimento recla-
mado (bem processual – provimento solicitado) seria realmente apto ou adequado para de- cer ao terceiro uma condição especial para demandar direito alheio.” 36
belar aquela necessidade. portanto, havendo juízo negativo em uma dessas situações (falta de Com efeito, a atuação do substituto processual não depende da vontade do
necessidade ou falta de adequação), o Estado entende inexistir interesse, justamente porque substituído, titular da relação jurídica deduzida em juízo, eis que a legitimida-
inútil seria o provimento solicitado.” Conf. ABELHA RODRIGUES, Marcelo. Manual de
direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 141. de do substituto é originária, ou seja, “ela não deriva de uma outra legitimação
potencial do titular do direito material.” Ao mesmo tempo em que “é acessória
32) LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1984,
p. 206/207.
33) Na verdade, como bem ressalta Marcelo Abelha, “enquanto a necessidade põe o juiz em Paulo: Malheiros, 2004, p. 308.
contato com o direito material, a adequação o põe em contato com o direito processual, qual 36) DELGADO, José Augusto. Aspectos controvertidos da substituição processual. Revista de
seja o uso adequado das regras de processo (processo, provimento e procedimento) estabe- Processo, n. 47. São Paulo: Revista dos Tribunais, Jul-Set, 1987, p. 7-8. Para um estudo da
lecidas pelo legislador. Isso tem repercussão na decisão proferida pelo magistrado e conduz, substituição processual, conf. ainda BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Apontamentos
na verdade, à dissociação entre esses dois aspectos do interesse, para colocar a verificação da para um estudo sistemático da legitimação extraordinária. Revista de processo. São Paulo:
necessidade da tutela dentro de aspectos atrelados ao mérito e à verificação da adequação Revista dos Tribunais. Ano 28, vol. 404, 1969. Segundo o autor, embora a doutrina, em geral,
da tutela dentro dos pressupostos do processo.” Conf. ABELHA RODRIGUES, Marcelo. trate como substituição processual todos os casos de legitimidade extraordinária, a denomi-
Manual de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 141. nação é mais adequada aos casos de legitimação extraordinária autônoma exclusiva porque,
34) Conf. ARMELIN. Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. somente nesses casos, é que há, na verdade, uma substituição legal do legitimado ordinário
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p. 106. Para o autor, “A distinção entre a legiti- pelo legitimado extraordinário. Idem, p. 12. Recorde-se que, mesmo antes da promulgação
midade ad causam e o interesse de agir, posto que factível, não apresenta a facilidade e a da LACP, em 1985, a doutrina já defendia uma interpretação extensiva do art. 6º do CPC,
tranqüilidade de seu destaque da possibilidade jurídica do pedido. Isso em razão não só dos de modo a permitir a tutela de interesses coletivos por entidades associativas. Nesse sentido,
proteiformes contornos do interesse de agir, como também pelas características de ambos conf. WATANABE, Kazuo. Tutela jurisdicional dos interesses difusos; A legitimação para
os institutos constituírem-se em pressupostos genéricos dos atos processuais.” Idem, p. 106. agir. Revista de Processo, n. 34. São Paulo: Revista dos Tribunais; BARBOSA MOREIRA,
Barbosa. A tutela jurisdicional dos interesses coletivos ou difusos. In MOREIRA, José Car-
35) DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. T. 2, 4ª ed. São los Barbosa. Temas de direito processual: terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984.

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ou instrumental, pois tem ela por escopo provocar, do órgão da jurisdição, uma grupo determinado, determinável ou indeterminável de pessoas que não
decisão sôbre o mérito da relação jurídica do substituído.”37 possui legitimação coletiva.
No entanto, ressalta Waldemar Mariz de Oliveira, que muitos são os auto- No mesmo sentido, Fredie Didier Jr.e Hermes Zaneti Jr. assim se posi-
res que levam em consideração o interesse do substituto para que se configu- cionam sobre o tema: “[...] a substituição processual independe da existên-
re o interesse de agir. Citando Francesco Carnelutti e Piero Calamandrei, na cia ou não de um específico interesse processual ou material do substituto: o
doutrina italiana, e José Frederico Marques e João Bonumá, no Brasil, afirma que se deve averiguar é a existência de um interesse processual na solução do
que, segundo esses autores, para que o substituto processual conduza o proces- conflito, sem relacioná-lo à figura do substituto processual. A possibilidade
so, necessário que tenha interesse pessoal no resultado da demanda. jurídica do pedido e o interesse de agir devem ser examinados em relação à
Esse modelo de análise das condições da ação trazido pelo CPC tradi- situação jurídica litigiosa posta em juízo, não sendo relevante a informação
cional, baseado na titularidade do direito material e, por conseguinte, no sobre quem seja o substituto processual41”.
interesse pessoal no resultado da lide, não se mostra adequado ao modelo Assim, do mesmo modo que o instituto da legitimidade ad causam merece
coletivo ambiental. 38 revisitação à luz do novo modelo de processo coletivo, denota-se que o concei-
Importante, nesse ponto, faz-se a observação de Teori Albino Zavascki ao to de interesse de agir também merece reanálise.
defender que “os objetivos perseguidos na ação coletiva são visualizados não
propriamente pela ótica individual e pessoal de cada prejudicado, e sim pela
perspectiva global, coletiva, impessoal, levando em consideração a ação lesiva
3) Substituição Processual: A Relação Entre Interesse
do causador do dano em sua dimensão integral.”39
Já defendia, nesse sentido, Waldemar Mariz de Oliveira40 ao afirmar que tal Processual e Legitimação nas Ações Coletivas Ambientais.
404 exigência [de demonstrar interesse pessoal na causa] limita a incidência do dis- 405
positivo, tão elementar no processo coletivo atual. O autor cita, como exemplo, A compreensão do interesse processual42 na tutela coletiva ambiental, assim
a atuação do Ministério Público que litiga em prol do interesse público primá- como se dá com a legitimação ativa, não pode tomar como parâmetro essencial
rio, jamais buscando interesse próprio. a titularidade do direito subjetivo protegido.
Certamente o parquet não atua no processo coletivo na busca de um Com efeito, o assunto, em sede de direito coletivo, deve ser revisto de modo a
interesse próprio, mas de um interesse público primário tutelável por um receber tratamento adequado haja vista a omissão legislativa no trato da questão.
A problemática ganha contornos especiais, sobretudo, pelo fato de se estar
37) OLIVEIRA, Waldemar Mariz de. Substituição Processual. Revista dos Tribunais: São Pau- diante de direitos coletivos ambientais, em sentido lato, o que demanda a pre-
lo, 1971, p. 132. Conclui o autor que “é justamente por fôrça dêsse caráter inquestionável de sença de um representante em juízo desses direitos, que não necessariamente
acessoriedade ou de instrumentalidade que as causas responsáveis pela extinção do direito o titular individual do direito, mas um representante adequado. Ademais, “os
de ação do substituído produzem, igualmente, a extinção do direito de agir do substituto
[...]” (sic) p. 132-133
38) “A desconexão entre titularidade da pretensão material e o poder de agir em Juízo, no am-
biente dos conflitos metaindividuais, deve-se à dessubstantivação que caracteriza esses inte- 41) DIDIER, Fredie; ZANETI Jr., Hermes. Curso de direito processual civil. Processo coletivo.
resses de largo espectro social, levando a que os clássicos trinômios ‘necessidade-utilidade 3ª Ed. Salvador: Podivm, vol 4, 2008, p. 230.
-adequação’ da ação proposta e interesse de agir ‘real-pessoa-atual’, devam passar por uma 42) Teori Albino Zavascki faz alusão ao requisito da pertinência temática, exigível a alguns entes
releitura e alguma adaptação.” Conf. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva legitimados, como uma questão ligada ao interesse de agir. Não é essa a linha de entendi-
e coisa julgada. Teoria geral das ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. mento proposto no presente trabalho, que traz o requisito da pertinência temática como
394-395. questão relacionada ao controle judicial da adequada legitimidade conforme oportunamente
39) ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo. Tutela de direitos coletivos e tutela coletiva será demonstrado. Tal observação seria adequada ao nosso sistema caso este se assemelhas-
de direitos. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 229. se ao norte-americano cujo instituto da legitimidade encontra-se atrelado ao do interesse
processual, ao que a doutrina denominou de standing. Vide infra. Conf. ZAVASCKI, Teori
40) OLIVEIRA, Waldemar Mariz de. Substituição Processual. Revista dos Tribunais: São Pau- Albino. Processo coletivo. Tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 2ª Ed. São
lo, 1971, p. 134 Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 77.

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interesses difusos, por definição, não constituem uma situação diferenciada ou é exercido por quem se afirma titular do interesse metaindividual, mas por
de privilégio individual, cuja violação ou ameaça possa fazer emergir uma san- quem o texto de regência credencia como um adequado representante, seja de
ção previamente estabelecida em lei e que se possa fazer valer em juízo.”43 44 toda a sociedade, no caso dos interesses difusos, seja de parte dela (um gru-
Nesses casos, como seria possível determinar o interesse de agir de um le- po, categoria ou classe), no caso dos coletivos em sentido estrito, ou ainda de
gitimado em uma ação coletiva ambiental? um expressivo número de sujeitos, cujas posições estão uniformizadas, por
Rodolfo de Camargo Mancuso, analisando o assunto, expõe a necessida- conta de uma unitária situação legitimante.”46
de de se sistematizar um novo tipo de interesse processual, priorizando-se Importante é ressaltar que a jurisprudência muitas vezes não traz a dis-
não mais seu caráter pessoal e direto, mas seu caráter relevante e legítimo. tinção dos institutos com clareza e, não raro, confunde-os. No julgamento do
Assim leciona que: “[...] é sensível que a personificação do interesse, isto é, Resp n. 818725/SP47, a 1ª Turma do STJ entendeu que, no caso em estudo, a
seu caráter direto e pessoal, que o torna afetado a um titular, vai se esmae- ação popular, ajuizada com o objetivo de suspender o pagamento do estacio-
cendo, para dar lugar ao reconhecimento de um novo tipo de interesse pro- namento rotativo no Município de Tatuí/SP, por envolver relação de consumo,
cessual, surgido a partir de dados objetivos, da realidade exterior. Assim, em deveria ser extinta pela ausência de interesse de agir do autor (pela inadequa-
certas ações populares ou nas class actions tem-se por relevantes e suficientes ção da via eleita), bem como por falta de legitimidade ativa eis que o cidadão
para caracterizar o interesse de agir certos fatos objetivos como a condição de não é parte legítima a demandar coletivamente direitos do consumidor.
eleitor ou cidadão, ou o fato de “habitar certa região onde o que prevalece é Com efeito, buscar tutela de direitos do consumidor, pertencentes a uma
a relevância social do interesse. 45 coletividade, por meio de ação popular implica a inafastável conclusão da ina-
Destarte, o interesse processual passa agora a ser visto sob a ótica da neces- dequação da via eleita, eis não ser esse o escopo da ação popular, portanto, ca-
sidade de tutela de interesses legítimos e socialmente relevantes, ou seja, a ne- rente o autor da ação de interesse de agir. No entanto, não significa dizer que
406 cessidade de uma tutela jurisdicional efetiva passa a ser vista a partir do direi- o cidadão não disponha de legitimidade. O cidadão é parte legítima a propor 407
to que se pretende tutelar e não a partir da titularidade desse mesmo direito. ação popular, desde que o faça dentre dos parâmetros legais.
Rompe-se a tradicional estrutura processual e faz com que as hipóteses Elton Venturi48 leciona que o interesse processual nas lides coletivas é ín-
em que legitimidade e interesse eram antes usualmente coincidentes, pas- sito, presumido. Isso porque o legislador, ao previamente elencar os entes le-
sem a ser exceções, “porque aqui [no processo coletivo] o poder de agir não gitimados a demandar ações coletivas, incutiu-lhes, de forma implícita, um
interesse processual
Ricardo Negrão, seguindo o mesmo entendimento, afirma que “O interesse
43) MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos. Conceito e legitimação para agir. de agir, enquanto demonstração da necessidade jurídica leva, assim, a conside-
2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 164. Conf. ainda MANCUSO, Rodolfo rações de ordem objetiva: a lei teria, em tese, demonstrado os casos em que se
de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada. Teoria geral das ações coletivas. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2006, p. 106. entende ‘implícito’ esse interesse, para beneficio do interesse social.”49
Ocorre que, mesmo que consideremos que o instituto em referência mere-
44) José Marcelo Menezes Vigliar observa ainda que “[...] se fosse possível a exigência da de-
monstração do interesse de cada um dos interessados [dentro da sistemática da tutela co-
letiva], jamais haveria a apreciação do mérito, porque, além da dificuldade prática de se
viabilizar essa tarefa, encontraríamos alguns titulares que poderiam alegar que, do seu pon- 46) MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada. Teoria geral das
to-de-vista, a defesa em juízo do interesse transindividual ofendido (como o meio ambiente) ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 394.
não faria a menor diferença. Esse fato comprometeria a própria presunção (iure et de iure) 47) Conf. Resp n. 818725/SP, Min. Relator LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, Julgado em
que o legislador cria, para que certos interesses/direitos sejam defendidos em juízo, quando 15/05/2008. Publicado em 16/06/2008.
não observadas as vedações existentes no direito material. VIGLIAR, José Marcelo Mene-
zes. Tutela jurisdicional coletiva. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 65. 48) VENTURI, Elton. Processo civil coletivo. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 229-230. No
mesmo sentido, VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Tutela jurisdicional coletiva. 3ª ed. São
45) MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos. Conceito e legitimação para agir. 2ª Paulo: Atlas, 2001. p. 65.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 120. Conf. ainda MANCUSO, Rodolfo de Ca-
margo. Tutela judicial do meio ambiente: reconhecimento de legitimação para agir aos entes 49) NEGRÃO, Ricardo. Ações coletivas. Enfoque sobre a legitimidade ativa. São Paulo: Leud,
naturais? Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 13, n. 52, 1988, p. 61 2004, p. 154.

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ça tratamento peculiar em sede de direitos coletivos ambientais, sua aplicação Atento a necessidade de se desvincular o interesse de agir ao interesse ma-
ainda se mostra presente, de modo que afirmar que sua incidência ocorre sem- terial específico, Álvaro Luiz Valery Mirra52 observa que questões como “Qual
pre de modo presumido pode fazer com que algumas situações jurídicas tor- o interesse de um determinado Estado-membro da Federação no ajuizamento
nem-se descobertas de fundamento. de demanda para a reparação de danos causados por poluição de rio que não
Rodolfo de Camargo Mancuso traz o exemplo da atuação em juízo do banha o seu território?” ou “Qual o interesse de certa associação de defesa do
CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), autarquia legi- meio ambiente sediada em determinada localidade, ou criada para atuar na
timada à propositura das ações coletivas, ex vi do art. 3º da Lei 8.884/94 e proteção de determinado ecossistema ou bem ambiental específico, na pro-
art. 5ª da Lei 7.347/85 c/c art. 82, III, da Lei 8.078/90. Sua atuação, a de- positura de ação civil pública de responsabilidade por danos a bem ambiental
pender do caso concreto, pode carecer de interesse de agir quando a lesão diverso ou situado em região distante?” ou ainda “Qual o interesse de deter-
ou ameaça ao interesse que se pretende tutelar possa ser prevenida ou sa- minada sociedade de economia mista atuante na área do controle da poluição
nada em sede administrativa.50 ambiental para mover ação civil pública ambiental em defesa de espécies da
Debate ainda o autor paulista acerca da possibilidade de um ente da fauna ameaçadas de extinção?” não são úteis na aferição da presença do inte-
administração pública, detentor do poder de polícia, valer-se de ação civil resse de agir, já que, na verdade, trata-se de questões relacionadas ao interes-
pública para obtenção de providências materiais alcançáveis mediante sua se material na ação, elemento integrante, segundo o autor, da legitimação para
atuação direta (poder-dever) sem que houvesse a necessidade de interven- agir e relacionado à identificação da representatividade adequada do autor53.
ção do Judiciário. Com efeito, não se mostra a solução mais técnica concluir pela ausência de
Essa é uma questão que, de fato, não se resume à garantia de acesso à justi- interesse processual54 quando se está diante de demanda, ajuizada por Estado-
ça, mas envolve o Princípio da Separação dos Poderes e o interesse de agir, na membro da Federação, que vise à reparação de danos causados por poluição de
408 medida em que se verifica, no caso em análise, a desnecessidade e de se movi- rio que não banha o seu território. No entanto, concluir que o precitado exem- 409
mentar o aparato jurisdicional, eis que o ente público dispõe de instrumentos plo se refere ao interesse material do autor na ação, interesse este que integra-
próprios e hábeis a alcançar o mesmo resultado pretendido mediante a ação ria o instituto da legitimação para agir, significa aplicar, no âmbito processual
judicial. Além disso, não pode a atuação judicial operar “como um álibi para o coletivo, os mesmos institutos moldados à luz do direito processual tradicional.
administrador leniente, ou omisso, que prefere deixar o caso sub judicie.”51 A presença de interesse material na causa55 denota titularidade do direito e
Situações como esta, no entanto, devem ser analisadas com cautela. Trata-
se, com efeito, de situação em que, não obstante presente a legitimidade ad cau-
52) MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente.
sam, o interesse restaria prejudicado eis que pressupõe a necessidade de ingres- São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 220.
so ao Judiciário. Contudo, ressalte-se, mais uma vez, que tal aferição não pode
53) “Quando se indaga se um determinado Estado-membro ou Município nele situado podem
ocorrer em abstrato, mas antes avaliada em cada caso concreto, sopesadas a ur- propor ação civil pública de responsabilidade por danos ambientais ocasionados em outro
gência de cada situação bem como a relevância social do direito em questão. Estado-membro, o que se pretende discutir, rigorosamente, é a legitimidade, para a causa em
questão, dessas pessoas jurídicas de direito público, como entes representativos dos interesses
da coletividade na preservação da qualidade ambiental.” Conf. MIRRA, Álvaro Luiz Valery.
Ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente. São Paulo: Juarez de Oliveira,
50) “[...] v.g. [com a aplicação do] art. 52 daquela lei, autorizando o ‘Secretário da SDE ou o 2002, p. 221.
Conselheiro Relator, por iniciativa própria ou mediante provocação do Procurador-Geral
do CADE adotar medida preventiva, quando houver indício ou fundado receio de que o 54) Em sentido contrário, conf. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em
representado, direta ou indiretamente, cause ou possa causar ao mercado lesão irreparável juízo. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 287.
ou de difícil reparação ou torne ineficaz o resultado final do processo’; ainda dispõe o § 1º
desse artigo que nessa hipótese será ‘determinada a imediata cessação da prática e ordenará, 55) No mesmo sentido, abordando el dereho de amparo e a ação popular argentina, Gozaíni
quando materialmente possível , a reversão à situação anterior, fixando multa diária nos leciona que, por se tratar de ações que representam garantias instrumentais de acesso à
termos do art. 25’. jurisdição e que tutelam direitos abstrativamente considerados, não se exige que tais direitos
possuam titularidade específica ou a presença de um interesse pessoal ou de um dano efeti-
51) MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada. Teoria geral das vamente comprovado por parte daquele que apresenta a demanda. Conf. GOZAÍNI, Osval-
ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. P. 396. do Alfredo. El dereho de amparo. 2ª ed. Argentina: Depalma, 1998, p. 109 (tradução livre).

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subjetivação da ação, situações que não se verificam em sede de diretos coletivos.


Por isso, mais adequado que se posicione essas indagações como critérios
H Conclusão
identificadores da representação adequada do autor, aferíveis pelo magistrado Conclui-se, portanto, que o instituto da legitimação para agir, atualmente deten-
no curso da ação, de modo que se assegure uma tutela adequada e eficaz àque- tor de uma conceituação fundada na visão tradicional do direito processual civil,
les indivíduos que não se puderam fazer presentes na ação. vinculada à titularidade do direito material, demanda atualização constitucional.
Ressalte-se que esse posicionamento já vem sendo defendido por Ada A leitura do ordenamento a partir da Constituição da República permi-
Pellegrini Grinover56 que afirma haver a necessidade de se demonstrar a pre- te afirmar que o substituto processual não é somente aquele definido pela lei,
valência dos interesses comuns, bem como a superioridade da tutela coletiva mas também pelo magistrado que o determina, no caso concreto, por meio do
nas as ações que visem à tutela de direitos individuais homogêneos. controle da legitimação adequada, em conformidade com as premissas do or-
Segundo a autora, a origem comum do direito pode não ser suficiente para denamento jurídico, inclusive com a da necessidade de garantir a tutela juris-
caracterizar sua homogeneidade. Assim, para que se possa aferir se os direitos dicional adequada.
individuais são, efetivamente, homogêneos por sua origem comum, leva-se em
conta o critério da “prevalência da dimensão coletiva sobre a individual”57
Ou seja, inocorrendo essa prevalência das questões comuns, os direitos
mostrar-se-iam heterogêneos e, portanto, careceria à tutela coletiva possibili-
dade jurídica do pedido.
O segundo requisito exigido pela autora é o da superioridade da tutela co-
letiva, em relação à individual, analisado, segundo ela, sob dois aspectos: o do
410 interesse de agir e o da efetividade do processo. 411
Nessa esteira, “Se o provimento jurisdicional resultante da ação civil pública
em defesa de direitos individuais homogêneos não é tão eficaz quanto aquele
que derivaria de ações individuais, a ação coletiva não se demonstra útil à tu-
tela dos referidos interesses. E, ademais, não se caracterizaria como a via ade-
quada à sua proteção.”58

56) GRINOVER, Ada. Da class action for damages à ação de classe brasileira: os requisitos de
admissibilidade. In GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord). O processo. Estudos e pareceres.
São Paulo: DPJ, 2006, p. 195.
57) GRINOVER, Ada. Da class action for damages à ação de classe brasileira: os requisitos de
admissibilidade. In GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord). O processo. Estudos e pareceres.
São Paulo: DPJ, 2006, p. 195.
58) GRINOVER, Ada Pellegrini. Da class action for damages à ação de classe brasileira: os re-
quisitos de admissibilidade. In GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord). O processo. Estudos
e pareceres. São Paulo: DPJ, 2006, p. 196.

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20
A proteção do meio ambiente
ecologicamente equilibrado na
Constituição Federal de 1988

Fernando Carlos Dilen da Silva1


Faculdade São Geraldo

Paulo Roberto Ulhoa2


Faculdade São Geraldo

Sumário: Introdução. 1 A sustentabilidade como fundamento


e proteção do patrimônio ambiental. 2 Problematizando a
defesa do patrimônio ambiental. 3 A proteção do patrimônio 413
ambiental do Estado do Espírito Santo. 4 Instrumento de
defesa do patrimônio público ambiental. Conclusão

1) Mestre em História Social das Relações Políticas (UFES); Professor da Faculdade São
Geraldo; Procurador do Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo
2) Mestre em Direito pela UFMG; Coordenador do Curso de Direito da Faculdade São
Geraldo; Diretor da ABDH; Advogado e Consultor Jurídico.
A proteção do meio ambiente ecologicamente
equilibrado na Constituição Federal de 1988 Fernando Carlos Dilen da Silva m Paulo Roberto Ulhoa

H Introdução 2) Problematizando a defesa do patrimônio ambiental


O objetivo do presente artigo é buscar fundamentos teóricos a fim de funda-
Em decorrência do Princípio do Desenvolvimento Sustentável, também con-
mentar a nova conformação jurídica da proteção do patrimônio ambiental bra-
siderado uma das expressões de materialização e proteção aos direitos huma-
sileiro ocorrida na Constituição de 1988 bem como os autores e instrumentos
nos, restou inevitável, durante a Assembléia Constituinte de 1986 a 1988 a
judiciais e administrativos para a sua operacionalização.
constitucionalização do direito ambiental, seguindo assim a tendência mundial
assinalada, em especial nas novas constituições de características programáti-
cas, com programas sociais analíticos.
1) A sustentabilidade como fundamento da O professor Antônio Herman Benjamim3 descreve alguns benefícios de tal
constitucionalização, dentre os quais destacamos a proteção ambiental como
proteção do patrimônio ambiental
direito fundamental, ganhando em caráter formal eficácia normativa constitu-
cional, a par da já reconhecida configuração de direitos humanos.
Para a correta compreensão da proteção do patrimônio ambiental e a sua cons-
Com efeito, tais proteções foram incluídas na atual Constituição no ar-
titucionalização na atual Constituição, preliminarmente se faz necessário com-
tigo 225, gerando a mudança do paradigma da legalidade ambiental para a
preender o princípio da sustentabilidade como norte histórico que permitiu
constitucionalidade ambiental, quando o legislador constituinte declara o
sua posterior concretude constitucional.
direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sen-
Inicialmente empregada na Conferência de Estocolmo em 1972, o Princípio
do considerado direito fundamental de terceira dimensão com aplicabilida-
da Sustentabilidade ou Desenvolvimento Sustentável foi sendo aprimorado com
de imediata, com todas as características inerentes aos direitos humanos como
414 as inserções das dimensões econômicas, social e ecológica em seus dispositivos, 415
historicidade, universalidade, irrenunciabilidade, inalienabilidade, limitabi-
onde se analisava a demanda econômica juntamente com uma abordagem so-
lidade e imprescritibilidade, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal
cial e ecológica, considerada como dimensão agregadora.
Federal no julgamento da ADPF 101, assim transcrita na parte aqui refe-
Diferentemente da visão utilitarista, econômica ou liberal, onde se entendia
renciada: EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE
a economia unicamente como fonte de maiores ganhos com menor investi-
PRECEITO FUNDAMENTAL: ADEQUAÇÃO, OBSERVÃNCIA
mento, o Princípio do Desenvolvimento Sustentável começou a ser visto como
DO PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE. ARTS, 170, 196 E 225 DA
a necessidade de adaptação da produção econômica e do consumo a novas exi-
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, CONSTITUCIONALIDADE
gências mais amplas, relacionando-o com a manutenção dos recursos naturais.
DE ATOS’ NORMATIVOS PROIBITIVOS DA IMPORTAÇÃO
Esta nova noção induziu diversos Estados, dentre eles o Brasil, a aplicar em
DE PNEUS USADOS, RECICLAGEM DE PNEUS USADOS:
suas políticas públicas tais direcionamentos, tendo reflexo direto na elabora-
AUSÊNCIA DE ELIMINAÇÃO TOTAL DE SEUS EFEITOS.
ção da lei federal 6.938, denominada de Política Nacional de Meio Ambiente,
NOCIVOS À SAÚDE E AO MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO.
abrindo assim espaço para a futura constitucionalização do direito ambiental.
AFRONTA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA SAÚDE E
Referida legislação infraconstitucional buscou fomentar novas práticas de
DO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO. COISA
produção de serviços ambientais que também assegurassem a conservação e a
JULGADA COM CONTEÚDO EXECUTADO OU EXAURIDO:
restauração dos ecossistemas, em nível infraconstitucional, mas já indicando a
IMPOSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO. DECISÕES JUDICIAIS
futura necessidade de sua inserção constitucional.
COM CONTEÚDO INDETERMINADO NO TEMPO: PROIBIÇÃO

3) BENJAMIM. Antonio Herman de Vasconcellos. O Meio Ambiente na Constituição Fe-


deral de 1988. In: Informativo Jurídico da Biblioteca Ministro Oscar Saraiva, v. 19, n. 1, jan./
jun. 2008.

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A proteção do meio ambiente ecologicamente
equilibrado na Constituição Federal de 1988 Fernando Carlos Dilen da Silva m Paulo Roberto Ulhoa

DE NOVOS EFEITOS A PARTIR DO JULGAMENTO. ARGUIÇÃO do patrimônio ambiental por parte do Estado, já que a sua utilização, na doutri-
JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE. (...) 4. Princípios consti- na humanística universal, o classifica como bem de interesse difuso de terceira
tucionais (art. 225) a). do desenvolvimento sustentável e b) da equidade e respon- geração ou dimensão, emergindo assim o interesse de todos em sua preservação,
sabilidade intergeracional. Meio ambiente ecologicamente equilibrado: preservação incluindo entidades privadas que se disponham a fazê-lo, como adiante veremos.
para a geração atual e para as gerações futuras. Desenvolvimento sustentável: cres- Desta maneira, fica evidenciada a obrigação do Poder Público em defender
cimento econômico com garantia paralela e superiormente respeitada da saúde da e preservar o meio ambiente, por meio de entidades ou órgãos administrativos
população, cujos direitos devem ser observados em face das necessidades atuais e da- especializados em tal finalidade.
quelas previsíveis e a serem prevenidas para garantia e respeito às gerações futu-
ras. Atendimento ao princípio da precaução, acolhido constitucionalmente, harmo-
nizado com os demais princípios da ordem social e econômica. (Supremo Tribunal
3) A proteção do patrimônio ambiental
Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 101. Relatora
Ministra Carmen Lúcia, Data julgamento 24.06.2009). do Estado do Espírito Santo
Desta maneira, a Constituição da Federal de 1988 elevou em nível constitucio-
nal a proteção ambiental já positivada na lei 6.938/81, protegendo bens ambien- Não obstante a obrigação existente em nível federal e também municipal, no
tais de natureza material e imaterial considerados individual ou conjuntamente. Estado do Espírito Santo a proteção ao meio ambiente também ocorre no
Ademais, a Carta Magna também determinou o dever de toda a comunidade âmbito da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos, bem
na proteção e promoção do patrimônio ambiental brasileiro, elencando instru- como por meio das entidades de execução de tais políticas públicas como é o
mentos de ação de forma não taxativa (ação civil pública, ação popular, mandado caso do Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos.
416 de segurança, dentre outras formas de acautelamento e preservação), o que consa- Referida autarquia estadual foi criada pela lei complementar 248 de 28 de ju- 417
grou em definitivo o patrimônio ambiental como bem comum de uso coletivo. nho de 2002, tendo como objetivos o planejamento, coordenação, execução, fis-
O patrimônio público ambiental teve a sua concretude normativa cons- calização e controle das atividades de meio ambiente, dos recursos hídricos esta-
titucional com outros princípios tais como: Princípio do Direito Humano duais e dos recursos naturais federais, cuja gestão tenha sido delegada pela União.
Fundamental; Princípio da Responsabilidade; Princípio Democrático; Ao lado das entidades citadas, o Estado do Espírito Santo também atua na
Princípio do Equilíbrio; Princípio da Precaução; Princípio do Limite; Princípio proteção ao meio ambiente por intermédio da Secretaria de Agricultura, que
da Prevenção; Princípios do Usuário Pagador e do Poluidor Pagador, todos também possui entidade autárquica vinculada de execução de políticas am-
transcritos no artigo 225 da Constituição Federal. bientais por meio do Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal (IDAF).
Deve ser registrado que quando se faz referência ao patrimônio ambien- O pré-citado Instituto foi criado pela Lei Complementar 81/1996 e cons-
tal como bem público, o mesmo deve ser caracterizado como bem de uso tituído como pessoa jurídica de direito público, com autonomia patrimonial,
comum do povo, buscando enquadrá-lo corretamente na classificação dou- técnica, financeira e administrativa, na forma do art. 1º da Lei Complementar
trinária acerca do assunto. 197/2001, que modernizou e reestruturou a autarquia, in verbis: “Art. 1º O
A propósito, bens públicos são todos os bens móveis ou imóveis pertencen- Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo – IDAF, é
tes às pessoas jurídicas de direito público, aqui consideradas as entidades fede- uma autarquia, com personalidade jurídica de direito público interno, patri-
rativas e suas respectivas entidades da Administração Indireta como autarquias mônio próprio, com autonomia técnica, financeira e administrativa, vinculada
e fundações públicas. a Secretaria de Estado da Agricultura – SEAG.”
O artigo 66 do Código Civil classifica os bens públicos como: bens públi- A propósito, evidenciando o caráter de agência autônoma em face do Estado
cos de uso comum, bens de uso especial e bens dominicais, sendo considerado do Espírito Santo, o Tribunal de Justiça possui entendimento pacificado quan-
o patrimônio ambiental como bem público os de uso comum aqueles destina- to à personalidade jurídica própria do IDAF: EMENTA: APELAÇÃO
dos ao uso coletivo, os quais podem ser aproveitados por todos os indivíduos. CÍVEL - EXECUÇÃO FISCAL - AUTO DE INFRAÇÃO LAVRADO
Faz-se necessária tal classificação para registrar a própria indisponibilidade PELO Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo (IDAF) -

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AUTARQUIA ESTADUAL - PERSONALIDADE JURÍDICA AUTÔNOMA


4) Instrumentos de defesa do patrimônio público ambiental
- ILEGITIMIDADE DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO PARA fi-
gurar no pólo ativo de execuções fiscais baseadas em títulos executivos lavra-
Todos os atores citados possuem à sua disposição diversos instrumentos pro-
dos pelo ente personalizado - RECURSO DESPROVIDO - SENTENÇA
cessuais de caráter administrativo ou judicial para procederem à defesa do
MANTIDA. 1 - O Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito
meio ambiente, cuja finalidade inicial é a proteção dos seres humanos, aos bens
Santo (IDAF) é uma autarquia estadual e, por isso, possui personalidade ju-
imóveis e, ainda, à observância do direito material.
rídica autônoma. 2 - O Estado do Espírito Santo não possui legitimidade
Na doutrina de Édis Milaré4, tais instrumentos possuem como objetivo o
para figurar no polo ativo de executivo fiscal ajuizado com fundamento em
pedido de providência jurisdicional que se formula para a proteção de deter-
título executivo decorrente de auto de infração emitido por autarquia esta-
minado bem da vida.
dual. Precedentes do e. TJ⁄ES. 3 - Recurso desprovido. Sentença mantida.
Dentre as diversas formas de proteção judicial do patrimônio ambiental, a
(TJES, Classe: Apelação Civel, 24010124790, Relator: WILLIAM COUTO
mais utilizada é a Ação Civil Pública prevista em nível infraconstitucional na
GONÇALVES, Órgão julgador: PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de
lei federal 7.347/85, com previsão expressa de proteção ao meio ambiente em
Julgamento: 29⁄03⁄2011, Data da Publicação no Diário: 08⁄04⁄2011)
seu artigo 1º, inciso I.
Dentre as finalidades do IDAF encontram-se a defesa do patrimônio am-
Referida legislação possui um amplo rol de órgãos e entidades legitima-
biental, aqui considerado em seu sentido amplo de proteção sanitária, ani-
dos para a sua utilização como o Ministério Público, a Defensoria Pública
mal, vegetal e em especial das atividades com impacto florestal, conforme
(que deixa de ser um órgão de atuação restrita aos hipossuficientes no senti-
dispõe o art. 5º da mesma lei complementar: “Art. 5º O Instituto de Defesa
do econômico e passa também a ser órgão de defesa do interesse público co-
Agropecuária e Florestal do Espírito Santo – IDAF, tem como finalidade ins-
letivo e difuso), bem como as entidades públicas federativas como a União, os
418 titucional promover e executar as políticas de defesa sanitária; de inspeção de 419
Estados, o Distrito Federal e os Municípios, incluindo assim as entidades da
produtos de origem animal; de controle e fiscalização das atividades agropecu-
Administração Indireta.
ária, florestal, pesqueira e da fauna silvestre, dos recursos hídricos e dos solos,
Confirmando que a defesa do patrimônio público não se restringe às enti-
bem como executar as políticas agrária e cartográfica, no território estadual,
dades de direito público, a legislação também positiva a possibilidade de pro-
competindo-lhe: (...) V – contribuir para a conscientização sobre a importân-
teção ambiental a qualquer a associação ou fundação que tenha como objetivo
cia da conservação dos recursos florestais e recursos hídricos, do manejo ade-
institucional a proteção ao meio ambiente.
quado de agrotóxicos e solos, da defesa sanitária animal e vegetal; VI – pro-
Independentemente da variada gama de autores, o certo é que a Constituição
mover e executar as atividades de educação sanitária animal e vegetal; VII
também coloca posição de protagonismo na defesa do patrimônio ambiental
- promover e executar as atividades de educação florestal, recursos hídricos e
pelo Ministério Público, conforme artigo 129, inciso III, da CRFB, no sentido
solos; VIII – difundir práticas educativas e preceitos legais relativos à proteção
de que em toda Ação Civil Pública deverá o órgão ministerial atuar, no míni-
do meio ambiente da saúde da população; IX – desenvolver a educação am-
mo, como fiscal da lei, dando continuidade às demandas judiciais em caso de
biental e o fomento à investigação científica nas unidades de conservação e no
eventual desídia dos demais autores legitimados.
seu entorno; X – promover a adoção de princípios e ações com vistas à preser-
Assim, o órgão ministerial deve consolidar-se como instituição veiculadora
vação da fauna silvestre; XI – divulgar seus programas, atividades e resultados
de legítimas pretensões comunitárias e, dessa forma, de protagonista do pro-
que auxiliem na consolidação de uma mentalidade conservacionista”.
cesso realizador de políticas públicas.
Por oportuno, devemos registrar a existência de outros órgãos igualmen-
A finalidade da Ação Civil Pública é a de proteger o meio ambiente por
te legitimados à proteção ambiental, como o Ministério Público, a Defensoria
meio de mandamentos judiciais condenatórios que consistem em uma pena
Pública, o próprio Estado, além de entidades sem fins lucrativos e a própria so-
ciedade civil organizada, constituindo assim a variada gama de autores legiti-
mados para atuação na esfera do Estado do Espírito Santo. 4) MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: doutrina, pratica, jurisprudência, glossário. 2. ed.
rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

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para promover a reparação do dano causado pelo agente poluidor, ou destrui- cada espécie de prestação, da propositura de uma ação civil pública autônoma,
dor do meio ambiente. além de atentar contra os princípios da instrumentalidade e da economia pro-
A jurisprudência pátria possui entendimento pacificado sobre o assunto: cessual, ensejaria a possibilidade de sentenças contraditórias para demandas se-
PROCESSO CIVIL. DIREITO AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA melhantes, entre as mesmas partes, com a mesma causa de pedir e com finalida-
PARA TUTELA DO MEIO AMBIENTE. OBRIGAÇÕES DE FAZER, de comum (medidas de tutela ambiental), cuja única variante seria os pedidos
DE NÃO FAZER E DE PAGAR QUANTIA. POSSIBILIDADE mediatos, consistentes em prestações de natureza diversa. 8. Ademais, a proibi-
DE CUMULAÇÃO DE PEDIDOS ART. 3º DA LEI 7.347/85. ção de cumular pedidos dessa natureza não encontra sustentáculo nas regras do
INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA. ART. 225, § 3º, DA CF/88, ARTS. procedimento comum, restando ilógico negar à ação civil pública, criada espe-
2º E 4º DA LEI 6.938/81, ART. 25, IV, DA LEI 8.625/93 E ART. 83 DO cialmente como alternativa para melhor viabilizar a tutela dos direitos difusos, o
CDC. PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO, DO POLUIDOR-PAGADOR E que se permite, pela via ordinária, para a tutela de todo e qualquer outro direito.
DA REPARAÇÃO INTEGRAL. 1. A Lei nº 7.347/85, em seu art. 5º, autori- 9. Recurso especial desprovido. (STJ, REsp 625249/PR, rel: Min. LUIZ FUX,
za a propositura de ações civis públicas por associações que incluam entre suas 1ª. T., j: 15/08/2006, DJ 31.08.2006 - p. 203)
finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, ao pa- Além da Ação Civil Pública, a Constituição Federal também positiva a
trimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, ou a qualquer outro ação popular como meio de acesso à tutela jurisdicional, e visa à proteção
interesse difuso ou coletivo. 2. O sistema jurídico de proteção ao meio ambien- do meio ambiente.
te, disciplinado em normas constitucionais (CF, art. 225, § 3º) e infraconstitu- Diferentemente da Ação Civil Pública, a Ação Popular aumenta em defini-
cionais (Lei 6.938/81, arts. 2º e 4º), está fundado, entre outros, nos princípios tivo a possibilidade da proteção ao meio ambiente, na medida em que permite
da prevenção, do poluidor-pagador e da reparação integral. 3. Deveras, decor- aos cidadãos em geral, a busca da proteção jurisdicional, para preservação de
420 rem para os destinatários (Estado e comunidade), deveres e obrigações de va- bem de interesse coletivo, nas brilhantes palavras do professor Celso Fiorillo5: 421
riada natureza, comportando prestações pessoais, positivas e negativas (fazer e “a ação popular presta-se à defesa de bens de natureza pública (patrimônio pú-
não fazer), bem como de pagar quantia (indenização dos danos insuscetíveis de blico) e difusa (meio ambiente), o que implica a adoção de procedimentos dis-
recomposição in natura), prestações essas que não se excluem, mas, pelo con- tintos. Com efeito, tratando-se da defesa do meio ambiente, o procedimento a
trário, se cumulam, se for o caso. 4. A ação civil pública é o instrumento proces- ser adotado será o previsto na Lei Civil Pública e no Código do Consumidor,
sual destinado a propiciar a tutela ao meio ambiente (CF, art. 129, III) e sub- constituindo, como sabemos, a base da jurisdição civil coletiva. Por outro lado,
mete-se ao princípio da adequação, a significar que deve ter aptidão suficiente tratando-se da defesa de bem de natureza pública, o procedimento a ser utili-
para operacionalizar, no plano jurisdicional, a devida e integral proteção do di- zado será o previsto na Lei nº 4.717/65”.
reito material, a fim de ser instrumento adequado e útil. 5. A exegese do art. 3º Devemos salientar ainda a importância da participação do Poder Judiciário
da Lei 7.347/85 (“A ação civil poderá ter por objeto a condenação em dinheiro na proteção do meio ambiente, haja vista que também cabe ao Judiciário, na
ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer”), a conjunção “ou” deve qualidade de uma das mais importantes expressões do poder público numa de-
ser considerada com o sentido de adição (permitindo, com a cumulação dos mocracia com a igual incumbência de realizar valores constitucionais.
pedidos, a tutela integral do meio ambiente) e não o de alternativa excluden- Desta maneira, sem embargos dos diversos rótulos constitucionais para a
te (o que tornaria a ação civil pública instrumento inadequado a seus fins). 6. proteção ao meio ambiente (ação civil pública, ação popular, dentre outros) o
Interpretação sistemática do art. 21 da mesma lei, combinado com o art. 83 do certo é que, uma vez provocado, cabe ao Poder Judiciário a concessão na medi-
Código de Defesa do Consumidor (“Art. 83. Para a defesa dos direitos e inte- da e tempo adequados da proteção ambiental, seja observando o próprio con-
resses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de ações ca- teúdo da proteção (tutela específica), que pode constituir numa obrigação de dar,
pazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela.”) bem como o art. 25 da Lei fazer ou não fazer, com fundamento no artigo 461, caput, e §5, do CPC.
8.625/1993, segundo o qual incumbe ao Ministério Público “IV - promover o
inquérito civil e a ação civil pública, na forma da lei: a) para a proteção, preven- 5) FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 9. ed. São
ção e reparação dos danos causados ao meio ambiente (...)”. 7. A exigência para Paulo, Saraiva, 2008.

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equilibrado na Constituição Federal de 1988

H Conclusão
Não obstante a todos os atores legitimados, sistemas federais, estaduais, mu-
nicipais instrumentos e mecanismos positivados pela Constituição Federal e
legislação infraconstitucional, o sistema de proteção do meio ambiente alber-
ga outras hipóteses eventualmente previstas em tratados e convenções interna-
cionais, além de práticas ou costumes internacionais que eventualmente sejam
incorporadas ao direito cogente (jus cogens) internacional.
Esta absorção das normas de direito ambiental caracterizam o Princípio do
“nível elevado de proteção”, motivo pelo qual não admitem eventual retrocesso
em sua proteção e aumenta a necessidade de novos debates sobre tão intrigante
tema por parte da Academia Brasileira de Direitos Humanos.
Em arremate, podemos concluir que o direito à proteção ambiental num
ambiente ecologicamente equilibrado é genuinamente um direito “de todos”,
incluindo estrangeiros não residentes no Brasil, ou seja, de qualquer pessoa hu-
mana, que não se restringe ao meio ambiente natural, mas também o meio am-
biente artificial, cultural, do trabalho e genético.

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