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I

ilBLIOTECA DE FILOSOFIA
„ CONTEMPORÂNEA A
Uma colecção que se pretende aberta
a todas as correntes do pensamento filosófico actual,
congregando os autores mais significativos
e abarcando os grandes polos da filosofia actual:
filosofia da linguagem, hermenêutica, epistemologia e outros
BIBLIOTECA DE FILOSOFIA
L CONTEMPORÂNEA À

1. MENTE, CÉREBRO E CIÊNCIA, John Searle


2. TEORIA DA INTERPRETAÇÃO, Paul Ricoeur
3. TÉCNICA E CIÊNCIA COMO “IDEOLOGIA”, JUrgen Habermas
4. ANOTAÇÕES SOBRE AS CORES, Ludwig Wittgenstein
5. TOTALIDADE E INFINITO, Emmanuel Levinas
6. AS AVENTURAS DA DIFERENÇA,Gianni Vattimo
7. ÉTICA E INFINITO, Emmanue! Levinas
8. O DISCURSO DE ACÇÃO, Paul Ricoeur
9. A ESSÊNCIA DO FUNDAMENTO, Martin Heidegger
'10. A TENSÃO ESSENCIAL,Thomas S. Kuhn
i 1. FICHAS (ZETTEL), Ludwig Wittgenstein
12. A ORIGEM DA ARTE, Martin Heidegger O
13. DA CERTEZA, Ludwig Wittgenstein
14. A MÃO E O ESPÍRITO, JeanBrun
CONHECIMENTO
15. ADEUS À RAZÃO, Paul Feyerabend E O
16. TRANSCEDÊNCIA EINTERLIGIBILIDADE, Emmanuel Levinas
18. IDEOLOGIA E UTOPIA, Paul Ricoeur PROBLEMA
19. O LIVRO AZUL, Ludwig Wittgenstein
20. O LIVRO CASTANHO, Ludwig Wittgenstein CORPO-MENTE
2 1 . 0 QUE É UMA COISA?, Martin Heidegger
22. CULTURA E VALOR, Ludwig Wittgenstein
23. A VOZ E O FENÔMENO, Jacques Derrida
24. O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE, Karl R. Popper
25. A CRÍTICA E A CONVICÇÃO, Paul Ricoeur
26. HISTÓRIA DA CIÊNCIA E SUAS RECONSTRUÇÕES RACIONAIS, Imre Lakatos
27. O MITO DO CONTEXTO, Karl R. Popper
28. FALSIFICAÇÃO E METODOLOGIA DOS PROGRAMAS DE INVESTIGAÇÃO, Imre Lakatos
29. O FIM DA IDADE MODERNA, Romano Guardini
30. A VIDA É APRENDIZAGEM, Karl Popper
31. ELOGIO DA TEORIA, Hans-Georg Gadamer
Karl R. Popper

O
CONHECIMENTO
E O
PROBLEMA
CORPO “MENTE

Título original: Knowledge and the Body-Mind Problem

© Alfred Raymond Mew e M elitta Mew, 1996

Tradução: Joaquim Alberto Ferreira Gomes

Capa de Edições 70

D epósito legal n.° 117490/97

ISB N 972-44-0961-9

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por Edições 70. Lda.
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incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor.
Qualquer transgressão à Lei dos Direitos do Autor será passível de edições 70
procedimento judicial.
AGRADECIMENTOS

Para M ELITTA

Este é o segundo volume compilado com base nos meus


documentos depositados na Instituição Hoover, de Stanford,
Califórnia. Mais uma vez, estou profundamente grato ao meu amigo
Dr. Werner Baumgartner e à Fundação Ianus por terem apoiado o
Dr. Mark Notturno e sua mulher Kira a reverem estas lições e a orga­
nizá-las para publicação. Agradeço a ambos o seu árduo trabalho e
incansável dedicação a tão difícil tarefa. E ainda a Raymond Mew e
à minha assistente Melitta Mew, que deram importantes sugestões
relativas ao texto.

K.R.P.
Kenley, 17 de Março de 1994

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NOTA DO AUTOR

Os capítulos seguintes baseiam-se em lições dadas em 1969 na


Universidade de Emory acerca do problema corpo-mente. Neles
proponho a teoria da interacção mente-corpo, que relaciono com o
surgimento do evolucionismo, com a linguagem humana e com aquilo
a que, desde meados dos anos 60, chamei «mundo 3». Para apresentar
esta teoria, é necessário proceder de forma sistemática e iniciar o
leitor em algumas idéias que presidiram à sua elaboração, em par­
ticular as idéias de conhecimento subjectivo e objectivo, a teoria dos
«três mundos» e algo acerca da evolução, surgimento e funções da
linguagem. Conquanto tenha revisto exaustivamente as lições tal como
foram dadas, decidi manter-lhes a estrutura de forma a tornar a leitura
mais fácil. Parte dos debates que se lhes seguiram foram incorporados
nestas lições sempre que a propósito e inseri o resto, quando relevante,
em apêndice.
Como se aperceberão, as lições desviaram-se do que tinha
planificado e anunciado de início, porque desde a primeira aula e nos
debates informais que se seguiram, tornou-se evidente que os ouvintes
estavam muito interessados no meu «mundo 3». Este constitui uma
parte crucial da introdução ao problema corpo-mente, e a minha tese
pode resumir-se assim: para compreender as relações entre o corpo e
a mente, temos que admitir primeiro a existência do conhecimento
objectivo como um produto objectivo e autônomo da mente humana,
e em especial o modo como usamos esse conhecimento como um
sistema fiscalizador na resolução de problemas fundamentais.

K.R.P.
Kenley, 1993
CONHECIMENTO OBJECTIVO E SUBJECTIVO

É uma grande honra ter sido convidado para Emory, e estou


perfeitamente consciente do facto de que este convite pôs sobre os
meus ombros uma enorme responsabilidade. Chamei a esta série de
lições «O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente». Talvez devesse
ter-lhe dado um título mais sonoro — «O Conhecimento Humano e a
Mente Humana», por exemplo. Mas isso seria um tanto afectado,
além de que sou alérgico a palavreado oco — mais ainda do que a
fumo de cigarro.

Planifiquei estas seis lições como segue:


1. Conhecimento objectivo e subjectivo;
2. Evolução, linguagem e «mundo 3»;
3. O mito da estrutura;
4. A interacção dos três mundos;
5. Racionalidade;
6. Liberdade.

No entanto, não tenciono cingir-me estritamente a este plano;


considero-o apenas um elo de ligação entre as seis lições. Quer dizer
que não me preocuparei com o tempo; posso parar quando o relógio
marcar três horas e cinquenta minutos, dizendo que continuaremos
na próxima semana. É uma vantagem não ter de submeter cada lição
a um tópico definido. É possível também que lhes introduza alterações,
em especial se desejarem colocar questões.
Isto leva-me a um aspecto técnico. Gosto de ser interrompido e

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE CONHECIMENTO OBJECTÍVO E SUBJECTIVO

que me façam perguntas. E, sobretudo, peço-vos que intervenham Começarei por expor os dois principais grupos de questões que
sempre que as minhas palavras não forem absolutamente claras. De pretendo discutir. São eles:
facto, prefiro o debate à prelecção e considero-me livre de mudar o
plano das lições se no decurso das discussões ou do seminário surgir A) O problema dos dois tipos de conhecimento e da ligação entre
qualquer tópico que pareça justificar a mudança. ambos:
Além das interrupções, existe outra oportunidade de fazerem
perguntas. Terminarei às três horas e cinquenta minutos para aqueles 1. Conhecimento em sentido objectivo;
que queiram ou tenham de sair. Porém, quem assim o desejar, pode 2. Conhecimento em sentido subjectivo;
permanecer para perguntas e discussão.
Gostaria de dizer-vos, sobretudo depois de ter visto o Professor B) O problema corpo-mente ou, como também é chamado, o
Paul Kuntz na assistência, que não devem ter medo de mim — apesar problema mente-corpo.
do que o Professor Kuntz escreveu no jornal. Acho que ele me
entendeu mal: sou muito humilde e brando e nunca chamei ignorante Explicarei o primeiro com a ajuda de alguns exemplos.
a ninguém, muito menos a um estudante. Posso ter chamado ignorante
a um colega, mas não me lembro de o ter feito. 1. Podemos dizer:
Outro ponto que desejo esclarecer antes de começar, é o seguinte:
entendo que o meu primeiro dever para com o auditório é fazer o «E sabido que a água é formada por hidrogênio e oxigênio»; ou
possível para ser facilmente compreendido e o segundo indicar o rumo «E sabido que as estruturas atômica e nuclear podem ser definidas
do meu raciocínio. Isto dar-vos-á a possibilidade de considerar os como partículas elementares, mas não sabemos se, por sua vez, as
meus argumentos criticamente e, acima de tudo, de verificar se forneço partículas elementares têm estrutura: esta é uma questão ainda em
orientações erradas. aberto».
Estes exemplos explicam o que quero dizer ao falar de
Nesta perspectiva, apresentcir-vos-ei as minhas dúvidas e, a maior «conhecimento em sentido objectivo».
parte das vezes, também as minhas tentativas de solucioná-las; só depois
desenvolverei os argumentos. Deste modo, podem ver de antemão o 2. Os exemplos que se seguem explicam o conhecimento em
rumo que sigo e, a todo o momento, apreciar os argumentos criticamente. sentido subjectivo:
Isto quer dizer que o curso das conferências terá uma estrutura
em espiral, que é a seguinte: «Ele sabia que estava a exceder o limite de velocidade».
«Ele sabia que a água é composta por hidrogênio e oxigênio».
✓ A
+-C ■*- x. De A a B apresento os traços Os exemplos seguintes podem também incluir-se no âmbito do
gerais do assunto em causa, que conhecimento subjectivo, embora, de certo modo, sejam diferentes:
assum irá depois form as mais
i t'
restritas até chegar à formulação «Ele pensava que as partículas elementares tinham estrutura
p f t experimental F. interna».
y f
yr
«Ele observou que estava lua cheia».
'V "'*■ D ^ «Ele observou um disco amarelo».
s
N* «Ele viu um clarão amarelo».
B

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE CONHECIMENTO OBJECTIVO E SUBJECTIVO

«Ele bateu com a canela». O problema do conhecimento será um dos dois temas principais
destas lições. O outro, como estarão lembrados, é:
«Ele sentiu um arrepio».

Espero ter feito a distinção entre os dois tipos de conhecimento B) O problema corpo-mente ou mente-corpo.
— objectivo e subjectivo — com razoável clareza. É interessante
notar que a maior parte dos filósofos discute o conhecimento apenas Esclareçamos um pouco este ponto. Vivemos num mundo de
no sentido subjectivo ou, para resumir, como conhecim ento corpos físicos, nós mesmos temos corpos físicos. No entanto, quando
subjectivo. Existem muitos livros de Filosofia dedicados à teoria do vos falo, dirijo-me não aos vossos corpos, mas às vossas mentes.
conhecimento — também chamada «Epistemologia» — que nunca Deste modo, além do primeiro mundo, o mundo dos corpos físicos e
mencionam a existência de conhecimento objectivo. E se por acaso o dos seus estados físicos e fisiológicos, a que chamarei «mundo 1»,
debatem, a maioria pretende explicá-lo na totalidade em termos de parece existir um segundo mundo, o dos estados mentais, que
conhecimento subjectivo. Por outras palavras, parte-se do princípio designarei por «mundo 2». Surge assim o problema do relacionamento
de que o conhecimento objectivo é constituído por muitos elementos entre estes dois mundos, o mundo 1 dos estados ou processos físicos
de conhecimento subjectivo que de algum modo estão ligados entre e o mundo 2 dos estados ou processos mentais; é este o problema
corpo-mente.
si.
Dír-lhes-ei desde já que, pelo menos durante trinta e cinco anos, Quando falo, primeiro que tudo emito certos ruídos que são
defendi precisamente o ponto de vista oposto sem que, contudo, tenha fenômenos físicos, fenômenos detectáveis por intermédio dos ouvidos,
causado muito impacto. Eis pois um tópico sobre o qual devem que detectam ondas de pressão. Mas não vos limitais a detectá-las,
apreciar criticamente as minhas palavras. também as descodificais: ouvis sons com significado. Estas ondas
A minha posição é a seguinte: interessa-me sobretudo o físicas transmitem-vos um sentido (pelo menos assim espero): têm
conhecimento objectivo e a sua evolução, e sustento que não é possível significado e podem (espero-o) fazer-vos pensar.
compreendermos os princípios do conhecimento subjectivo se não Segundo o notável filósofo francês René Descartes, também
estudarmos a evolução do conhecimento objectivo e o intercâmbio chamado «Cartesius», a minha mente actua sobre o meu corpo
entre os dois tipos de conhecimento (no qual o conhecimento levando-o a produzir sons físicos. Estes, por sua vez, actuam sobre
subjectivo recebe mais do que dá). os vossos corpos, isto é, sobre os vossos ouvidos, e o vosso corpo
Terminada a introdução geral, o resto da lição de hoje será actua então sobre a mente fazendo-vos pensar. Descartes e os
dedicado, quase por inteiro, a este assunto. cartesianos chamavam a isto «interacção» entre o coipo e a alma.
Por que motivo é importante o problema do conhecimento? Substituí-lo-emos chamando-lhe interacção entre os estados físico e
Porque suscita certas questões controversas a que chamarei «grandes mental.
questões». Liga-se aos grandes problemas da racionalidade, do Acho que, no mínimo, é uma questão de bom senso aceitar, pelo
progresso do conhecimento científico e sua função civilizadora, da menos experimentalmente, a existência desta interacção entre estados
responsabilidade moral do cientista, da nossa dívida para com a (ou processos) físicos e estados (ou processos) mentais, ou seja, entre
civilização, do papel da Universidade e da tradição em confronto os mundos 1 e 2. E, visto podermos considerar como real aquilo que
com a crítica. Contudo, o problema do conhecimento apresenta uma se influencia mutuamente, aceitemos a realidade destes dois mundos.
clara vantagem sobre estas importantes questões: pode ser discutido Assim, definir-me-ei como cartesiano dualista. De facto, faço ainda
de modo crítico e racional, enquanto a abordagem directa a qualquer melhor que Descartes: sou pluralista, pois também admito a realidade
das outras matérias referidas corre o risco de degenerar em prédica e de um mundo terceiro ao qual chamarei «mundo 3». Explicarei de
em palavreado oco, a que sou alérgico, como já disse. imediato este aspecto, já que por norma apresento logo de início não

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE CONHECIMENTO OBJECTIVO E SUBJECTIVO

só os problemas mas também as tentativas de solução — e a teoria da à primeira. No entanto, acho preferível pôr todas as cartas na mesa
realidade do mundo 3 é o ingrediente mais importante das minhas para que as examinem e se inteirem da direcção em que prossigo.
soluções experimentais. A propósito disto, recordo-me de uma anedota. Há muitos anos,
Por «mundo 3» entendo, grosso modo, o mundo dos produtos da vivia eu na Nova Zelândia, tive um amigo, o velho Doutor Farr,
mente humana. Por vezes estes produtos são coisas físicas, tais como emérito professor de Física e famoso investigador do geomagnetismo,
•as esculturas, pinturas, desenhos e construções de Miguel Ângelo. conhecido pelo seu espírito vivo. Quase com oitenta anos, interessava-
São coisas físicas, mas de um tipo muito especial: na minha se ainda pelos estudantes do seu antigo departamento de Física e
terminologia, pertencem tanto ao mundo 1 como ao mundo 3. Outros muitas vezes conversava com eles na rua. Um dia, a um estudante
produtos da mente não constituem propriamente coisas físicas. visivelmente embaraçado, perguntou: «Que se passa?». O aluno
Tomemos como exemplo uma peça de Shakespeare. Afirmaremos replicou, gaguejando: «Desculpe, Doutor Farr, mas tem o chapéu ao
que o livro escrito ou impresso é uma entidade física como, digamos, contrário!». A resposta veio como uma bala: «E por acaso sabes para
um desenho. Mas a peça representada não é por certo uma coisa física, que lado vou?».
embora talvez se possa dizer que é uma sequência muitíssimo Neste momento, quero que saibam para onde me encaminho, a
complexa de ocorrências físicas. Lembrem-se, porém, de que fim de descobrirem mais facilmente o que estiver errado. Por
nenhuma representação de Hamlet pode considerar-se igual à própria conseguinte, apresento desde já aquilo que, de certo modo, pode
peça Hamlet de Shakespeare. Nem a peça de Shakespeare será o considerar-se a tese principal do meu curso. Ei-la:
conjunto de todas as suas representações. A peça foi representada ou Não é possível compreender o mundo 2, isto é, o mundo povoado
reproduzida nestas interpretações de modo semelhante àquele em que pelos nossos próprios estados mentais, sem que se entenda que a sua
um edifício ou uma escultura são representados por um ou vários principal função é produzir os objectos do mundo 3 e ser influenciado
fotógrafos, ou àquele em que uma pintura ou desenho são reproduzidos pelos objectos deste último. Com efeito, o mundo 2 interage não só
em estampas de di versa qualidade. Mas a pintura original é diferente com o mundo 1, como Descartes pensava, mas também com o mundo
da sua reprodução. Do mesmo rnodo, o Hamlet de Shakespeare é, em 3; e os objectos deste exercem influência sobre o mundo 1 apenas
si, diferente das suas várias representações ou reproduções. Porém, através do mundo 2, que actua como intermediário. Resumamos o
enquanto uma pintura original é, como vimos, uma coisa física pe­ caso dando-lhe a forma de um simples diagrama:
culiar, o Hamlet de Shakespeare não o é certamente. Embora possamos
dizer que as suas reproduções pertencem tanto ao mundo 1 das coisas mundo 3 registo de temperaturas (gráfico)
físicas como ao mundo 3 dos produtos da mente, a peça Hamlet
pertence apenas ao terceiro mundo.
O mesmo se passa com uma sinfonia. A partitura escrita da
Sinfonia em sol menor de Mozart não é a sinfonia de Mozart, embora mundo 2 in termediário no f |
a represente de uma forma codificada. E as diferentes interpretações
da Sinfonia em. sol menor de Mozart também não são a sinfonia de t j
Mozart — em relação a ela, constituem as suas reproduções. Estas mundo 1 comando automático da fábrica
execuções pertencem simultaneamente aos mundos 1 e 3. Porém, a
de produtos químicos
sinfonia em si pertence apenas ao terceiro mundo, a esse terceiro
mundo que engloba arquitectura, arte, literatura, música e — talvez o
mais importante — ciência e conhecimento. Entre muitas outras coisas, o mundo 3 é constituído por registos,
A ideia do mundo 3 é, reconheço, uma ideia invulgar e muito que podem ser de temperatura; e neste caso, parecerá que o mundo 1,
difícil, e por isso não devemos querer apreendê-la por completo logo através de um gráfico e de um instrumento de registo automático.

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE CONHECIMENTO OBJECTIVO E SUBJECTIVO

actua directamente sobre algo do mundo 3. Mas não é assim. Somos Também admite que a vossa fisiologia possa ser estimulada de modo
nós que organizamos e agimos como intermediários, pois registamos a dar a resposta conveniente aos meus sons. Mas sustenta ser
as temperaturas e regulamos todo o processo de forma a que resulte desnecessário assumir-se que façamos algo que se pareça com prestar
de facto num registo de temperaturas, num gráfico, o qual pertence atenção ou pensar.
tanto ao mundo 1 como ao 3. É devido à nossa acção medianeira que Três proeminentes fisicistas são meus amigos: Rudolf Carnap,
o mundo 1 pode actuar sobre o mundo 3. Herbert Feigl e Willard Van Orman Quine. Quine, que reconhece a
Um exemplo semelhante, mas ao contrário, seria o sistema de sua dependência em relação a Carnap e a Feigl, discute a matéria de
comando automático de uma fábrica de produtos químicos. Também modo assaz conciso. Falando de comportamento humano, interroga-
aqui, o mundo 3 — o que equivale a dizer certos planos e determinados se quanto à vantagem de colocar os estados mentais nos bastidores
fins objectivos existentes no mundo 3 — regula, de certo modo, o do comportamento. E expõe o assunto laconicamente, dizendo: «Seja
que acontece na fábrica de químicos do mundo 1 por meio de como for, os estados corpóreos existem; para quê juntar-lhes os
máquinas automáticas. Porém, estas máquinas automáticas têm que outros?». Citei o seu Word and Object, página 264. É interessante
ser instaladas por nós e só através de nós é que os fins em causa que perguntas idênticas sejam formuladas por filósofos como Berke-
influenciarão o mundo 1. ley e Mach, que disse: «As sensações existem; porquê acrescentar-
Se a minha tese estiver correcta, só nos aproximaremos da solução lhes coisas materiais?».
do problema corpo-mente se considerarmos o mundo 3. Com efeito, Devo admitir que negar os estados mentais simplifica o problema.
a questão corpo-mente será o problema do relacionamento entre os Por exemplo, a difícil questão corpo-mente desaparece pura e
mundos 1 e 2; se um elemento importante deste relacionamento for o simplesmente, o que sem dúvida não deixa de convir: poupa-nos o
facto de o mundo 2 funcionar como intermediário entre os mundos 1 trabalho de resolvê-la. Porém, penso que Quine não é coerente quando
e 3, então o problema corpo-mente ficará assim incompleto se não pergunta: «Para quê juntar-lhes os outros?». A quem dirige ele a
alargarmos o seu âmbito de forma a cobrir as relações recíprocas dos interrogação? Aos nossos coipos? Aos nossos estados físicos? Ao
três mundos. nosso comportamento? Quine argumenta. E os argumentos, sustento
Compreenderão agora por que motivo afirmei ser não só dualista, eu, pertencem ao mundo 3. Os argumentos podem ser compreendidos
mas também pluralista. Neste aspecto, estou decididamente fora de ou apreendidos e compreensão ou apreensão são assuntos do mundo 2;
moda. O estilo prevalecente em Filosofia é de um notório monismo e os nossos coipos podem apreender uma pedra ou um pau, mas não
assim tem sido desde há muito. Têm existido diferentes espécies de apreender ou compreender um raciocínio.
monismo. Até há bem pouco tempo, era de bom tom as escolas Também tenho a certeza de que o propósito de Quine (de novo um
interpretarem as coisas físicas como conjuntos de fenômenos, termo do mundo 2) é convencer-nos por meio de argumentos ou, pelo
possibilidades de observação, teorias de observações ou dados dos menos, dar-nos algo em que pensar (mais dois termos do mundo 2).
sentidos. Isto é, era moda procurar converter o primeiro mundo no Mas é evidente que ele não ficaria satisfeito (ainda um termo do
segundo. Esta forma de monismo foi designada de diversas maneiras, mundo 2) se apenas suscitasse em nós um certo tipo de comportamento
«fenomenismo», por exemplo. — chamemos-lhe comportamento concordante —- tal como os sons
Presentemente, está mais em voga outra forma de monismo, o «exactamente», «isso mesmo!» ou «muito bem!».
cham ado «fisicism o» ou, por vezes, «behaviorism o» ou Com isto termino a.minha crítica a Quine.
«materialismo», segundo o qual aceitar o que eu chamo «mundo 2» é Seja como for, o pluralismo, tal como o conhecimento objecti vo,
introduzir complicações desnecessárias, visto ser mais simples e está fora de moda, assim como também estará a maior parte do que
conveniente dizer que apenas as coisas e os estados físicos existem. direi nestas lições (e espero que assim aconteça).
Postula que que ao falar convosco, produzo ruídos físicos e que a Referindo-me ao nosso primeiro problema, o do conhecimento,
minha fisiologia tem que estar nas condições próprias para o fazer. perguntei atrás por que razão seria um problema importante.

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE CONHECIMENTO OBJECTIVO E SUBJECTIVO

E respondi com uma lista daquilo a que chamei «grandes questões» mundo. Sob o ponto de vista da evolução biológica, ele evoluiu
(racionalidade, por exemplo). Do mesmo modo, há também outras originalmente devido ao seu enorme valor para a sobrevivência. Caso
grandes questões que subjazem ao problema corpo-mente e à sua se recordem do que significa o mundo 3 para o problema corpo-mente,
forma alargada: a questão dos três mundos. Por exemplo, há as verificarão que também existe aqui um indício para se compreender
questões fundamentais da liberdade do Homem e do domínio que a evolução da mente humana em termos biológicos: evoluiu em
temos sobre a nossa vida; a da criatividade humana e, talvez a mais conjunto com o mundo 3 e com o conhecimento objectivo.
importante de todas, a das nossas relações com aquilo que executamos, Assim, a via para a resolução de tais problemas, sobretudo a de
em especial com o trabalho, e de como progredir através dele. No acesso ao mundo 3, será biologicamente orientada: fará uso de idéias
entanto, recordem por favor o que eu disse acerca dos perigos das evolucionárias. Isto talvez vos surpreenda, considerando que esta
grandes questões. noção de mundo 3 é bastante abstracta e, de facto, «filosófica».
Com isto e por ora, concluo o esboço das principais matérias a
Aflorámos muito rapidamente dois temas principais do curso analisar nesta série de lições.
projectado para seis lições. Na verdade, foi quase uma corrida e acho
que talvez estejamos com certa falta de fôlego. Completada a introdução ao curso, passo de imediato ao tópico
Assim, façamos uma pausa para recapitularmos. Mas lembrem- particular da lição de hoje — «Conhecimento objectivo e subjectivo».
se onde ficámos — aproximamo-nos apenas do fim da introdução ao Como de costume, começarei por apresentar tanto o problema como
curso, no sentido de uma panorâmica geral. Limitei-me a esboçar os a solução.
dois principais problem as (A) e (B), respectivam ente o do O problema é o seguinte: como evolui o conhecimento?
conhecimento e corpo-mente. Informei-vos também sobre o rumo a A solução é o esquema quadripartido algo simplista de um método
seguir. Quanto à questão do conhecimento (A), salientei a importância de ensaio e de eliminação de erros:
do conhecimento objectivo; na questão corpo-mente (B), acentuei a
importância do mundo 3. Em resumo, este foi o programa discutido P ! -> TE —>EE —> P2
até ao momento.
Porém, nada disse acerca da relação existente entre os dois onde P representa o problema de partida — que pode ser prático ou
problemas (A) e (B). Evidentemente que tal relação é muito importante teórico; TE é a teoria experimental proposta e destinada a resolver o
e pode apresentar-se deste modo: problema; EE significa o processo de eliminação de erros por meio
de ensaios ou discussões críticas; P, representa os problemas finais
O conhecimento objectivo pertence ao mundo 3. Constitui aparte — os que emergem das discussões e dos ensaios.
biológica mais importante do mundo 3 e é a que tem repercussões O esquema global indica que partimos de um problema, quer de
mais significativas sobre o mundo 1. natureza prática quer teórica; tentamos resolvê-lo elaborando uma
teoria possível na qualidade de solução possível — é o nosso ensaio;
O conhecimento objectivo consiste em suposições, hipóteses ou em seguida, ensaiamos a teoria, procurando fazê-la abortar — é o
teorias, habitualmente publicadas sob a forma de livros, revistas ou método crítico de eliminação de erros; em resultado deste processo,
palestras. Consiste também em problemas não-resolvidos e em surge um novo problema, P, (ou, quem sabe, vários novos problemas).
argumentos pró ou contra diversas teorias rivais. Por consequência, Em geral, o progresso alcançado ou o aumento de conhecimentos
é óbvio que o conhecimento objectivo forma parte do mundo 3 dos conseguido calcula-se pela distância que medeia entre P, e P2,
produtos da mente. Deste modo, o progresso do conhecimento sabendo-se assim se progredimos. Resumindo, o esquema diz-nos
objectivo representará parte do crescimento do mundo 3, o que nos que o conhecimento parte de problemas e desemboca em problemas
fornece uma pista para compreender como evoluirá este terceiro (até onde for possível ir),

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE CONHECIMENTO OBJECTIVO E SUBJECTIVO

P é muitas vezes uma questão prática, mas também pode ser rivais será suficientemente forte para sobreviver e qual deverá ser
teórica. O mesmo acontece com P . inteiramente eliminada.
Este esquema é aplicável tanto ao conhecimento objectivo como O esquema mostra que a evolução do conhecimento pode ser
ao subjectivo. Mas, como veremos, o seu campo de aplicação é ainda encarada como uma luta pela sobrevivência entre teorias em
muito mais vasto. competição; apenas as mais aptas sobrevivem, embora possam
Um exemplo do conhecimento objectivo que começa e termina também ser eliminadas a qualquer momento.
num problema prático foi o problema original de Henry Ford: como Se compararmos este caso com a selecção natural darwiniana,
prover de transportes o vasto território dos Estados Unidos? Era o salta à vista a tremenda vantagem biológica da evolução de um mundo
seu Pr Como teoria, propôs que se construísse automóveis baratos. 3 de conhecimento objectivo.
Após diversas tentativas experimentais e diversos erros, isso conduziu Um indivíduo ou uma espécie serão eliminados se propuserem
a um novo problema: como providenciar estradas e locais de uma solução errada para determinado problema. Isto é válido tanto
estacionamento para os carros? O problema original, Pr foi o dos para as mutações erradas (as chamadas mutações letais) como para
transportes; o novo problema, P2, o do trânsito — um problema os conhecimentos errados no sentido subjectivo; o denominado «erro
frustrante. de cálculo» pode facilmente conduzir à eliminação da pessoa que o
Os problemas são predominantemente teóricos. Um problema cometeu (e, tratando-se de um automobilista, levar outros consigo).
típico deste gênero é a existência desses curiosos astros que erram Uma história que conto muitas vezes é a de uma comunidade indiana
pelo céu em vez de se manterem fixos e rodarem com ele, como que considerava que a vida era sagrada, mesmo a dos tigres. Em
acontece com a maior parte das estrelas. O nome grego para as estrelas consequência disto, a comunidade desapareceu e com ela a teoria de
errantes era «planetas». O problema passou por muitas fases e que a vida dos tigres é sagrada. Porém, o conhecimento objectivo é
transferiu-se de Ptolomeu a Copérnico, a Kepler e à teoria de New- diferente: em vez de nós, podemos deixar morrer as nossas teorias
ton, que foi o primeiro a unificar a Física do espaço e da Terra. Mas objectivas. Na verdade, fazemos o possível por matá-las, experi-
não terminou aqui; como o próprio Newton fez notar na sua Óptica, mentando-as com rigor antes de as pormos em prática. Deste modo,
várias perguntas ficaram sem resposta, problemas que, após mais mil teorias podem morrer diariamente sem que ninguém seja
duzentos anos, conduziríam a Einstein. E este, por sua vez, salientou prejudicado.
outros problemas que a sua própria teoria não solucionou. E, assim, a Estas considerações apontam para uma aplicação mais ampla do
história vai-se repetindo. nosso esquema quadripartido original:
O nosso esquema quádruplo pode elaborar-se de diversos modos.
Por exemplo, podemos substituí-lo pelo seguinte: P, -> TE -> EE -> P,

^ TE„* -4 EE<*—»P-,■*■*» v Podemos aplicá-lo não apenas ao conhecimento, mas à evolução


Pt -^ TEb->EEb-*P 2h-+ DCÁ biológica — de certas espécies de mariposa, por exemplo. O problema
será de ordem prática para a mariposa, talvez resultante de uma
TE„ —> EEn -a P2n *
mudança no meio ambiente ou talvez devido à industrialização. Neste
caso, TE não representará uma teoria experimental, mas sim uma
Temos aqui várias teorias concorrentes, cada uma delas dando mutação — uma alteração na cor, por exemplo. EE constitui a
origem a novas experiências — a tentativas de fazer fracassar as eliminação de erros através da selecção natural — até que surja o
teorias — e a novos problemas. DCA significa «debate crítico próximo problema, apenas sobrevivem as mutações mais adequadas.
apreciativo», por meio do qual procuramos decidir qual das teorias Assim, é possível considerar-se a formação da teoria humana,

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE CONHECIMENTO OBJECTIVO E SUBJECTIVO

isto é, do conhecimento objectivo, como algo de semelhante a uma diferenciar e integrar — adquiriu, conhecimento disposicional.
mutação exterior ao nosso invólucro ou, como é chamada, uma O mesmo se passa com o conhecimento de línguas.
«mutação exossomática». Neste aspecto (mas não em todos), as De modo sem elhante, o conhecim ento que consiste em
teorias são como instrum entos, já que os instrum entos se informação, em saber que as coisas são deste ou daquele modo (por
assemelham a órgãos exossomáticos. Em vez de desenvolvermos exemplo, que o presidente dos Estados Unidos é Richard Nixon e
olhos m elhores, criam os binóculos e óculos; em vez de que a actual rainha de Inglaterra é Isabel II) é essencialmente a
desenvolverm os melhores ouvidos, produzim os m icrofones, tendência ou disposição para recordar o que lemos ou ouvimos sobre
altifalantes e auxiliares de audição; e em vez de desenvolvermos determinado assunto e a tendência para esperar uma coisa e não outra.
pernas mais rápidas, fabricamos automóveis. Se, nos jornais de amanhã, lermos que o presidente Humphrey, depois
Tudo isto diz respeito ao conhecimento objectivo. Quanto ao de uma visita à Europa, voltou à Casa Branca, ficaremos chocados e
subjectivo, grande parte dele deriva simplesmente do conhecimento confusos porque a notícia vai contra aquilo que esperaríamos, isto é,
objectivo. Aprendemos muito nos livros e nas universidades. Porém, contra determinada tendência.
o oposto não é verdadeiro: embora o conhecimento objectivo seja Assim, podemos descrever todo o tipo de conhecimento
um produto do homem, raramente surge do conhecimento subjectivo. subjectivo como a tendência para reagir de certo modo a certa situação.
Não é habitual formar opiniões com base na experiência pessoal e Nos homens e nos animais, a maior parte destas disposições é inata;
depois divulgá-las e serem objectivamente aceites como se fossem e se são adquiridas, tal deve-se à utilização ou modificação de
uma espécie de «É sabido que...». Em regra, o conhecimento tendências inatas. Por exemplo, falar inglês ou francês é uma
objectivo resulta de teorias rivais apresentadas experimentalmente disposição adquirida, mas a base — a tendência para aprender uma
em relação a um problema objectivo conhecido e aquele só é admitido linguagem humana — constitui uma característica inata apenas da
no domínio objectivo ou no domínio público após longos debates espécie humana.
críticos baseados em experiências. Tanto quanto se sabe, todas as tendências inatas foram adquiridas
Sendo este o caso, então o conhecimento subjectivo raramente pelas espécies por selecção natural, que na essência é um método de
se torna objectivo e, além disso, nenhuma teoria do conhecimento experimentação e de eliminaçãode erros, um método descrito de forma
subjectivo explicará o conhecimento objectivo. Há que desenvolver muito simplificada no nosso esquema quádruplo.
o seguinte ponto: um elemento do conhecimento subjectivo (mundo 2) Dei-vos uma ideia resumida da teoria do conhecimento, a qual
torna-se objectivo (mundo 3 crítico) ao ser formulado numa se afasta muito do que habitualmente é ensinado.
linguagem. A maior parte das teorias filosóficas do conhecimento continua
O nosso esquema quádruplo, pelo contrário, pode explicar os dois. a ser pré-darwiniana, não considerando o conhecimento como
Já se disse que uma parte importante do conhecimento subjectivo resultado da selecção natural. O que apresentarei de seguida será um
é formada pelo conhecimento objectivo adquirido por determinado tanto irônico, mas de modo nenhum desactualizado. Além disso, é
sujeito. No entanto, é fácil demonstrar que quase todo o conhecimento aceite pelo bom senso e também por muitos filósofos.
subjectivo consiste em potencialidades inatas — em tendências ou
disposições ou em modificações de tendências inatas.
Primeiro que tudo, a maioria-daquilo que o ser humano sabe diz
respeito às suas disposições gerais. Se sabe andar de bicicleta ou tocar
violino, estes conhecimentos consistem claramente em tendências
para fazer bem as coisas em determinada situação. Se afirmamos que
alguém sabe cálculo diferencial e integral, queremos dizer que sabe

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE CONHECIMENTO OBJECTIVO E SUBJECTIVO

Trata-se da «teoria da mente do conhecimento inato, no amadurecimento da tendência para a


como recipiente», como lhe chamo, aprendizagem de uma linguagem humana. E uma vez aprendida a
e pode ser representada por meio do linguagem, podem mergulhar, por assim dizer, no mundo 3. Com
seguinte diagrama: isto, todos os mundos se lhes abrem.
O ponto decisivo é a tendência inata para aprender uma^
linguagem: é isso que nos fornece a chave de acesso ao mundo 3.
Inicia-se com a pergunta: «como
é que eu sei?». A resposta é: «adquiro
conhecimento através dos sentidos: dos olhos, ouvidos, nariz e língua; DEBATE
é através deles que o conhecimento entra no meu recipiente». Claro
que também entra através do sentido do tacto, não representado no Interlocutor 7: A pergunta é curta. Penso poder afirmar que
esquema. ninguém o considera um «instrumentalista», no sentido em que o
termo é habitualmente usado. No entanto, de certo modo deu a
De que maneira adquiro conhecimentos por meio dos sentidos? entender que o era ao definir o conhecimento em termos de analogia
A resposta habitual é: estímulos vindos do mundo exterior atingem com a evolução e como teorias concorrentes, dando a impressão de
os sentidos, transformando-se em dados sensoriais, em sensações ou que as teorias são instrumentos de sobrevivência.
percepções. Depois de recebermos muitos estímulos, descobrimos Popper: A minha opinião é que, entre outras coisas, as teorias
similitudes no nosso material sensorial, e deste modo a repetição é são instrumentos, mas não apenas isso. A principal diferença consiste
possível, e através dela chegamos a generalizações ou regras e, pelo no facto de não se poder dizer se um instrumento é verdadeiro ou
hábito, somos então levados a contar com a regularidade. falso, mas apenas se é bom ou mau para determinado fim. Por
Esta é, em resumo, a teoria elaborada e apurada pelos grandes exemplo, uma bicicleta é um óptimo instrumento para certos fins,
filósofos ingleses Locke, Berkeley e Hume, que viveram antes de embora para outros seja suplantada pelo automóvel, o que não quer
Darwin. Mas não me parece que, depois dele, alguém tenha o direito dizer que não se preste para determinadas coisas. Claro que existe
de continuar a pensar deste modo. competição entre instrumentos, ninguém duvida. Mas acontece
Primeiro que tudo, as expectativas'precedem de facto as também que os instrumentos obsoletos podem revelar-se úteis se não
semelhanças e as repetições. O recém-nascido, criança ou vitelo, tivermos outros. Damo-nos por muito felizes se dispusermos de uma
espera ser alimentado; sabe mamar e conta que lhe seja oferecido chave de fendas mesmo que não seja das mais modernas. E assim por
algo para esse fim. Nos gatos recém-nascidos, isso surge muito antes diante.
de abrirem os olhos. No que toca às teorias, a situação é diferente. As teorias não se
Em segundo lugar, existem razões lógicas para crer que sem limitam a ser instrumentos. Uma teoria pode ser verdadeira ou falsa
disposições inatas (tendências para aprender) seríamos incapazes de e talvez não consigamos decidir-nos entre as duas possibilidades. Mas
aprendizagem . muitas vezes podemos julgá-la do ponto de vista de se aproximar
Em terceiro lugar, há crianças que nascem cegas e surdas e que mais da verdade do que uma outra teoria.
não só aprendem a falar em termos de linguagem táctil, como também Assim, por exemplo, os físicos e os astrônomos concordam
se tornam grandes escritores e seres humanos totalmente capazes. realmente que a teoria de Newton é uma maior aproximação à verdade
Sabemos que têm necessidade de um ou outro sentido, como o tacto, do que, digamos, as teorias de Ptolomeu, Kepler ou Galileu. Isto
por exemplo, mas o ponto essencial é o facto de o seu intelecto e a suscita um novo problema, o da relação entre as teorias e a verdade.
sua imaginação não precisarem de olhos nem de ouvidos para E é de facto este problema, o da verdade e o da possibilidade de
funcionar. A base do seu desenvolvimento reside no amadurecimento

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE CONHECIMENTO OBJECTIVO E SUBJECTIVO

contestar a verdade de uma teoria, que revela uma área do mundo 3 objectivo e que o ideal é que uma proposição seja verdadeira — é
que é completa e caracteristicamente humana. Aparte mais importante preferível ser verdadeira do que falsa — , isso não dará lugar a um
do mundo 3 consiste em teorias, problemas e argumentos. Esta parte quarto reino, a um reino de normas? Em tal caso, surge o problema
é dominada por idéias como verdade ou aproximação à verdade — a de saber se esse reino é obra do homem, como acontece com o seu
validade ou invalidade de argumentos. Por isso não me considero terceiro mundo, ou se na natureza das coisas existe um certo carácter
instrumentalista se o instrumentalismo sustentar que as teorias não normativo a que tentamos dar cumprimento através do conhecimento
passam de instrumentos. Toda a gente concorda que as teorias são subjectivo ou objectivo.
instrumentos. O que está em causa é se são apenas isso; é este o Popper: Na realidade, a designação «mundo 3» constitui apenas
problema do chamado «instrumentalismo». um modo de expressão. Podemos referir-nos a ele como um mundo
Interlocutor 1: É verdade. Porém, muitas das nossas teorias do ou apenas como uma certa área. Chamo-lhe «real» porque interage
mundo 3 não são grande coisa como instrumentos de sobrevivência... connosco e com os objectos físicos.
[risos]. Essa interacção parece-me um critério de realidade talvez não
Popper: Certamente! Não é caso para rir, é mesmo assim. De necessário, mas suficiente. Quando observamos uma máquina a
facto, falarei mais tarde sobre o modo como toda a espécie de coisas nivelar o solo, vemos muito claramente a acção do mundo 3 a exercer-
(não explicáveis apenas sob o ponto de vista da sobrevivência) surgem, se sobre o mundo 1, pois houve uma planificação prévia, mesmo se
por assim dizer, no mundo 3 e nele se desenvolvem. Discutirei aos nossos olhos tudo parece desorganizado. Porém, sabemos que
sobretudo a maneira de criar novos objectivos ou propósitos. Em si cada movimento da máquina tende a executar um projecto, um campo
mesma, esta criação pode não ter nenhum valor de sobrevivência. de aviação ou seja lá o que for. Sendo humanos, estes planos pertencem
Mas uma. vez criados tais objectivos, todas essas coisas tornam-se obviamente ao mundo 3 e actuam sobre o primeiro mundo dos
importantes no mundo 3 por se relacionarem com eles. objectos físicos. O mesmo sucede quando se constrói uma casa ou
Por outras palavras, não sou in strum entalista pois o outra coisa qualquer.
instrumentalismo afirma que as teorias não passam de instrumentos. Portanto, considerar ou não outras áreas ou mundos resume-se a
É esta a questão fundamental. Acho que, seriamente, ninguém negará uma questão de conveniência. Como afirmei atrás, os objectivos agem
que as teorias sejam instrumentos. Porém, são também mais do que sobre o mundo 1 através de nós e pertencem ao mundo 3. Mas
isso. Digamos que as teorias podem ser instrumentos, mas que nem podemos colocá-los num mundo próprio, o que não me incomodará
todas o serão. nem contestarei; é apenas uma questão de conveniência. Para certos
Interlocutor 2: Creio que muitos filósofos sistematizadores fins, pode mesmo convir transferi-los; para outros, é melhor deixá-
americanos que lidam com «o que há» estão convencidos de que o los onde estão. Depende dos problemas em análise e não há
seu pluralismo é a resposta correcta a essas tentativas monísticas. E, necessidade de nos precipitarmos antes do seu aparecimento. O caso
à luz deste princípio, pergunto-lhe se pode provar que existem somente relaciona-se com aquilo que você disse a propósito de definição. Não
três mundos. Disse haver pelo menos três, mas não que havia três e tenho a certeza, mas serei talvez o único filósofo que abomina
só três. Faço a pergunta especificamente na óptica da filosofia definições. Penso que a definição constitui um problema lógico em
americana que se ocupa de «modos de ser» ou «reinos de ser», tal si e que se lhe associa uma grande dose de superstição. As pessoas
como Santayana e Weiss, que postulam um «quarto reino» onde acham que um termo só tem significado se tiver sido definido. Porém,
existem normas como a verdade e ideais. Impressionou-me o facto mediante algumas considerações lógicas é possível demonstrar que
de ter usado a palavra «bem» ao falar de conhecimento subjectivo isso não faz sentido. Não digo que as definições não influenciem
relativamente ao empenho em falar ou tocar bem violino. Já que a certos problemas, mas sim que para a maior parte deles é irrelevante
verdade entra provavelmente na sua definição de conhecimento saber se se pode ou não definir um termo ou como o definir. O que é

30 31

J
O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE CONHECIMENTO OBJECTIVO E SUBJECTIVO

necessário é fazermo-nos entender e a definição não é por certo o Pode dizer-se que, ao inventarem uma linguagem suficientemente
melhor meio para o conseguir. rica, os Babilônios foram os primeiros, tanto quanto sabemos, a
Aristóteles define «homem» de várias maneiras, sendo uma delas conceber um sistema numérico capaz de prosseguir indefini-damente.
que «o homem é um bípede sem penas». Ora, tenho a certeza de que Dispomos de um sistema numérico semelhante, a série interminável
«bípede sem penas» não é tão inteligível como «homem». Diz ainda de números naturais: 1,2, 3,4, etc. Este sistema comporta um método
que «o homem é um animal racional», e também acho que «racional» que nos permite ir sempre mais além de qualquer número determinado.
é um termo bem mais complicado do que «homem». Assim, pode dizer-se que o sistema numérico é um produto humano.
Portanto, e de um modo geral, as definições não facilitam a Mas houve quem o considerasse de origem divina. O matemático
compreensão nem tornam as coisas mais claras. Falo nisto porque Kronecker disse que os números naturais foram feitos por Deus e
em quase todas as minhas lições sou obrigado a pôr de parte o que tudo o mais em Matemática é obra do homem. Consideremos os
problema da definição. Ora bem, você sugeriu que devo definir números ímpares e pares. Não os fizemos, eles surgiram da série dos
«verdade», «mundo 3», «conhecimento», etc. — mas não o farei. A números naturais. Não podemos fazer uma série de números naturais
verdade é algo de muito importante. Aliás, um amigo meu, Alfred sem criarmos números ímpares e pares. Talvez não o notemos, talvez
Tarski, forneceu uma definição de verdade, mas apenas porque o não saibamos que os criámos, mas a verdade é que o fizemos. Isto é
conceito de verdade sofria as investidas de filósofos e de lógicos: o que eu definiria como a autonomia do sistema. Cada objecto do
alguns diziam que a verdade era uma ideia sem sentido. Num caso mundo 3 tem uma autonomia deste gênero, ou seja, algo que não
destes, é claro que se trata de salvar a honra da ideia suspeita, se produzimos, mas que é uma consequência não-intencional daquilo
conseguirmos provar que ela é definível em termos insuspeitos. E que fizemos. Entre as consequências não-intencionais contam-se,
este o significado filosófico da definição de verdade feita por Tarski evidentemente, não só os números ímpares e pares, mas também os
que, por assim dizer, salvou a verdade da infâmia. interessantes números primos. Sabem por certo o que são números
Digamos que, em circunstâncias deste gênero, será proveitoso primos — números apenas divisíveis por si próprios e pela unidade.
providenciar definições. Porém não há necessidade de definir Assim, 2, 3, 5, 7, 11, 13 e por aí adiante são números primos. Os
«verdade», embora possamos explicar o que entendemos por esse números primos não foram feitos por nós, e de certo modo estão
termo. Fazê-lo numa conversa mais ou menos informal depende não completamente fora do nosso domínio. Pouco se sabe acerca da sua
só do orador mas também dos ouvintes. O primeiro perguntar-se-á: distribuição e ainda não foi estabelecida uma fórmula geral. Só com
«Estão satisfeitos com a explicação?». Isto é muito diferente de nos a ajuda de métodos de tentativa e erro se poderá dizer se um número
atirarem com uma definição, que nos limitamos a aceitar, muito grande é primo. Em primeiro lugar há que dividi-lo por 2, o
cambaleando sob o impacto. que é fácil; depois por 3, também ainda fácil. Porém, quando se chega
Neste sentido, nem sequer penso em definir conceitos como à divisão por números maiores — 23, por exemplo — , a facilidade já
mundo 1, mundo 2 ou mundo 3. Explico-os através de exemplos; e não será a mesma, tornando-se talvez bem difícil verificar se um dado
se estes não bastarem, acrescentarei outros e procurarei saber onde número é divisível por 23. Só depois de muitas tentativas com números
se situa a dificuldade. Porém, nem sempre darei definições. primos, qualquer coisa como a quinta ou a sétima parte do número
Como é evidente, o mundo 3. consiste em muitas zonas diferentes. sujeito a verificação, é que saberemos se ele é primo.
De certo modo, as artes são distintas das ciências; mas, por outro Este exemplo revela algo importante. Embora os números sejam
lado, são semelhantes. De uma maneira ou de outra, tudo se assemelha, feitos por nós, existem neles certas particularidades que não são obra
tal como acontece com tudo o que é produzido pelo homem, e num nossa, mas que temos possibilidade de descobrir. A isto chamo a
certo sentido tudo se constitui como elemento autônomo. Discutirei «autonomia» do mundo 3, que é diferente daquilo que designei como
mais tarde aquilo a que chamo «autonomia» do mundo 3, mas não a sua «realidade», a qual se liga ao facto de podermos interagir com
vejo motivos para não mencioná-lo agora.

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE
CONHECIMENTO OBJECTIVO E SUBJECTiVO

ele. Porém, o terceiro mundo é ao mesmo tempo autônomo e real. Shakespeare pudesse elaborar a obra Hamlet sem a escrever primeiro.
É este um dos meus argumentos principais. O cérebro não concebe um texto definitivo e perfeito que depois é
Mas tem toda a razão. Houve vários filósofos americanos que passado para o papel. Trata-se sempre de um processo de criação,
foram pluralistas, e a minha posição aproxima-se de Peirce em par­ semelhante ao do pintor que dispõe de uma tela onde coloca uma
ticular. No entanto, devo dizer que descobri Peirce já bastante tarde e mancha de cor e que depois recua para ver o efeito; talvez elimine
portanto, infelizmente, não me é muito familiar. essa mancha, ou verifique que o ponto colorido altera a ideia primitiva,
Interlocutor 3: Antes de prosseguir, gostaria que me esclarecesse sugerindo-lhe uma mudança de planos. E talvez novas idéias lhe
sobre dois possíveis mal-entendidos. Trabalho em artes visuais e notei surjam no espírito. Há aqui um dar e receber que considero uma das
que gosta de diagramas, e por isso queria ter a certeza de que não me minhas idéias fundamentais, ou seja, o intercâmbio permanente entre
engano ao pensar que o seu diagrama do primeiro, segundo e terceiro o segundo e o terceiro mundos. Esta dádiva e recebimento ocorre
mundos não é hierárquico. Ou será que coloca o segundo mundo sempre durante o processo criativo. A maioria dos escritores altera
numa posição intermédia à qual por assim dizer os outros dois se constantemente o que escreveu e efectua repetidas modificações. Nem
subordinariam? todos o fazem porém. Bertrand Russell mostrou-m e alguns
Popper: Não, o segundo mundo está de facto numa posição manuscritos seus nos quais existirá apenas uma pequena correcção
intermédia, mas os outros não se subordinam a ele de modo nenhum. por página. Mas há poucos escritores como ele; em regra — é o que
De certo modo porém, e começando de baixo — primeiro, segundo, se passa comigo — , começo a escrever quando penso ter o assunto
terceiro — , entendo que há uma hierarquia evolucionária. Tanto completo na cabeça. Mas quando o texto surge após inúmeras
quanto se sabe, o mundo 1 já existia antes do segundo; e pelo menos correcções, é um pouco diferente daquilo que tive em mente; e aprendi
os rudimentos do mundo 2 já existiam antes do terceiro. Porém, acho muito ao tentar escrevê-lo, corrigi-lo e aperfeiçoá-lo. Por isso,
que o pleno desenvolvimento do mundo 2 interage apenas com o dificilmente se poderá dizer que a peça Hamlet existiu na mente de
mundo 3. Aliás, pretendo discutir este assunto mais em pormenor. E Shakespeare antes de ter sido criada, antes de passar para o papel —
havendo subordinação, díria que o mundo 2 tem uma posição é possível, mas dificilm ente poderemos ter a certeza. Muito
subordinada relativamente cio terceiro e não o inverso; subordina-se provavelmente, tratou-se de um processo em que o desenvolvimento
mesmo ao primeiro, sobretudo se considerarmos certos tipos de vida natural da obra sugeriu a Shakespeare novas idéias que não tivera
animal e pressupusermos que existe neles um mundo 2. São tudo antes. É quase certo que houve um dar e receber entre o processo e o
problemas que tenciono debater. autor. Na verdade, só se pode dizer que existe uma entidade chamada
Interlocutor 4: Há dois aspectos que gostaria de ver esclarecidos. Hamlet não constituída pelo livro nem pela escrita, pois que, afinal,
A peça Hcmilet existiu de facto na mente de Shakespeare? E se assim o livro não passa do volume com uma peça e a escrita é o redigir de
foi, existiu simultaneamente nos mundos 3 e 2? uma peça. Nem tão-pouco se trata de uma representação particular.
Popper. Pergunto a mim próprio se a obra Hainlet, como um Tal como a reprodução de um quadro (que pode ser muito má) é
todo, existiu na mente de Shakespeare. É muito difícil saber. Ou seja, diferente do original, o mesmo acontece com a reprodução de uma
o que é a obra Hamlet como um todo? Trata-se sem dúvida do produto peça. De uma maneira ou de outra, no terceiro mundo existe a ideia
da mente de Shakespeare. Cada uma das suas partes existiu por certo de Hamlet corno peça, sendo interpretada de modos diferentes por
em determinada fase. Porém, é muito duvidoso que Shakespeare espíritos diferentes.
tivesse a peça inteira na cabeça durante as fases da sua elaboração. Interlocutor 4: Há um segundo aspecto a que atrás aludi e sobre
Diz-se que Mozart — o próprio, aliás, menciona o caso numa carta o qual tenho algumas dúvidas: penso que existem aqui dois problemas
— teve em mente a totalidade de uma abertura ou sinfonia, não me intimamente relacionados. Um deles baseia-se no conceito de mundo
recordo ao certo. Felizmente provou-se que a referida carta era falsa, 3. Por vezes, o senhor refere-se-lhe como produto da mente, outras
apesar de ainda surgir em muitos livros de arte. Não creio que como produto da mente humana. Pretende limitá-lo à mente humana?

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE
CONHECIMENTO OBJECTIVO E SUBJECTIVO

O outro problema é o seguinte: o comportamento instintivo ou inato esse mundo. Os problemas teóricos pertencem certamente ao
fará parte do mundo 3? mundo 3.
Popper Eis um assunto muito interessante e difícil. Talvez seja Interlocutor 5: A outra pergunta é a seguinte: os computadores
melhor responder «não»; mas certamente que poderiamos construir podem ampliar o mundo 3 e acrescentar-lhe teorias, ou seja, trazer
um conceito do mundo 3 onde a resposta fosse «sim». Depende. Ou novas teorias? São coisas pensantes? Ou aumentam ainda mais o
talvez seja possível estender a ideia de mundo 3 ao reino animal — mundo 3?
uma questão que também tenciono discutir. Uma aranha constrói uma Popper. Não. Também eles são produzidos pelo homem. Têm
teia; logo, a teia é um produto da aranha; e o mel é produzido por grande interesse e importância, mas não devem ser sobrestimados.
abelhas. Se quisermos, podemos acrescentar ao mundo 3 todos os Antes da era do computador, Einstein dissera: «O meu lápis é mais
produtos animais, excepto excrementos. Se assim fosse, poderiamos inteligente do que eu» — uma frase assaz clara: não usaria o lápis se
ampliar o conceito, mas o mundo 3 humano continuaria a ser uma este fosse mais inteligente que ele. Ora, eu diria que um computador
importante área desse terceiro mundo. De facto —- digo-o agora — , não é mais do que um lápis endeusado. Portanto, derrubemos do
alimentei a ideia desse mesmo mundo 3 durante muitos anos, mas pedestal não só o homem como também, para variar, o computador.
não me atrevi a publicar nada sobre este assunto tão absurdo e abstruso. Ficamos por aqui? Obrigado.
Depois, porém, concluí que era possível explicá-lo em termos
evolutivos, relacionando-o com produtos animais e demonstrando
que, afinal, a arquitectura se assemelha aos ninhos das aves ou aos
favos das abelhas, só que um pouco mais complicada; e também
menos instintiva. Tudo isto é importante, extremamente importante,
quando se trata do homem. Mas também o é a possibilidade de alargá-
-lo à generalidade dos animais de maneira a eliminar o carácter
obscuro que de outro modo o conceito teria, sobretudo em casos como
o de Hamlet.
Interlocutor 5: Tenho duas perguntas a fazer. A primeira: qual
será, nos seus três mundos, aposição do «problemaou problemática»?
Percebo quando a teoria é uma criação do espírito humano. Mas e a
«problemática»? Qual é a sua natureza?
Popper. Inicialmente foi o problema corpo-mente.
Interlocutor 5: Não, refiro-me à problemática em si. Onde
devemos situar um problema?
Popper. No mundo 3.
Interlocutor 5: Tenho dificuldade em entender que existam
problemas no mundo 3. Admito que uma questão acerca de um
problema exista no mundo 3, mas o problema em si localiza-se no
mundo I .
Popper. Digamos que um problema teórico se situa no mundo 3.
Um problema prático pode não existir nele, mas o problema teórico
é produto do homem, e este gera novos problemas, como no caso dos
números primos: têm origem no mundo 3, e portanto pertencem a

36
A AUTONOMIA DO MUNDO 3

Começarei lembrando-lhes os dois temas principais que pretendo


discutir neste curso. Ao primeiro dei o nome de «problema do
conhecimento», especificam ente centrado na relação entre o
conhecimento em sentido objectivo e o conhecimento em sentido
subjectivo. O segundo é o problema corpo-mente ou mente-corpo,
ou seja, a relação entre os estados físicos e os mentais ou, como lhes
chamei, entre os estados do «mundo 1» e os do «mundo 2». Este
segundo problema também abarca o que eu chamo de «mundo 3»,
isto é, o mundo dos produtos do espírito humano.

Mundo 3
Mundo 2
Mundo 1

Este sumário cobre a primeira metade da última lição. Na segunda


discuti em termos breves o problema do conhecimento. Distingui
conhecimento objectivo — composto por problemas, teorias e
argumentos — de conhecimento subjectivo — que consiste em
disposições ou tendências e, entre estas, a tendência para esperar ou
expectativa. Além disso, expliquei em especial o meu esquema da
evolução do conhecimento:

Pj TE EE —*■P.,

39
O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE A AUTONOMIA DO MUNDO 3

Depois, fiz uma crítica sucinta à teoria do conhecimento pretenda, podemos distinguir mais de três mundos; por exemplo,
tradicional; é uma teoria de conhecimento subjectivo e tem ainda separando o mundo do conhecimento objectivo do mundo das artes
muitos seguidores. Pode ser representada esquematicamente como a ou fazendo outras distinções possíveis. Porém, não quero enredar-
teoria da mente como recipiente, bem conhecida na História da me em mais pormenores do que os necessários aos nossos propósitos
Filosofia como teoria da tabula rasa ou «quadro vazio», no qual a fundamentais.
experiência grava as suas descobertas. Quando afirmo que «mundo 3» é uma metáfora, não digo tudo a
E sbocei-a no diagram a seu respeito pois é um pouco mais do que isso. É também algo mais
seguinte: do que um mundo de produtos do espírito. Na minha primeira lição e
Segundo esta teoria, os no debate subsequente debrucei-me um pouco sobre o assunto, mas
quatro sentidos representados no explicá-lo-ei melhor agora.
esquema, bem como o tacto, Tomemos como exemplo a Geometria. É um óbvio produto
constituem as fontes de todo o humano, existindo mesmo uma tradição histórica que situa a sua
conhecimento. Apresentei-vos origem no Egipto e na Babilônia. Serviu primeiro o fim prático de
algumas razões pelas qüais acho medição da Terra, provavelmente no propósito de ajudar a estabelecer
a teoria totalmente errada. São um imposto fundiário.
elas, entre outras: a maior parte A ideia de em Geometria se utilizar sempre que possível apenas
das tendências que formam o linhas rectas e círculos, constitui uma tradição humana; assim como
nosso conhecimento é inata ou hereditária; a maioria das não-inatas a ideia do ângulo recto. Porém, não foi o homem que originou o facto
é a modificação de tendências inatas; e a parte restante provém do de aplicar a seguinte proposição ou teorema a todos os círculos: trace-
conhecimento objectivo, não sendo de modo nenhum subjectiva. se um diâmetro; escolha-se qualquer ponto sobre a circunferência
Assim, de facto, nada resta da «teoria do recipiente» — que se revela excepto os das duas extremidades do diâmetro; una-se o ponto a essas
totalmente errada. Fiz uma crítica sucinta a esta teoria e era minha extremidades através de linhas rectas e as duas linhas formarão um
intenção continuá-la hoje, prosseguindo também a análise da minha ângulo recto no ponto escolhido.
própria teoria da evolução do conhecimento. Uma proposição ou teorema geométrico como este é um caso
Porém, o debate que tivemos após a primeira lição fez-me mudar típico de algo que não foi feito pelo homem. Surge como consequência
de ideia acerca das seguintes, e em particular sobre a lição de hoje. não-intencional de ele ter inventado a Geometria, os compassos e os
De facto, quase todas as perguntas incidiram sobre o mundo 3. Seja círculos, e também de haver arestas e ângulos rectos. E claro que
como for, eu previrajá uma possível mudança de planos. Continuarei existem centenas destes teoremas e alguns bem mais complicados.
a discutir o mundo 3, em parte resumindo a conversa que tivemos no Contudo, todos eles suscitam novos problemas: por exemplo, como
fim da última lição, e depois, até onde o tempo o permitir, referirei os demonstrar um teorema? (Só depois de provada a sua autenticidade é
antecedentes biológicos e evolutivos do mundo 3. que se poderá chamar-lhe «teorema»; antes disso é apenas uma
Regressemos então ao mundo 3. «conjectura»). Ou seja, de que modo se relaciona ele com outras
Tal como disse na primeira lição, aquilo a que chamo «mundo 3» proposições geométricas? Na realidade, o teorema citado decorre
pode descrever-se, grosso modo como o mundo dos produtos da mente quase imediatamente das duas proposições seguintes: a soma dos
humana. Pertencem-lhe os produtos da arquitectura, da arte, da ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos rectos (que em conjunto
literatura, da música, da erudição e, bem mais importantes que estes, formam uma linha recta). Segundo Aristóteles, esta preposição
os problemas, teorias e discussões críticas das ciências. evidencia a essência do triângulo; se dois lados de um triângulo forem
Claro que a expressão «mundo 3» é uma metáfora. Caso se

40 41
O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE A AUTONOMIA DO MUNDO 3

iguais, também os dois ângulos formados por eles com o terceiro estabeleceram contacto com um produto do mundo 3 do filósofo Tales;
lado serão iguais. trata-se de um caso de interacção entre duas mentes por meio de um
produto do mundo 3.

Mundo 3: Demonstração

Assim, A + 2C = 2R
Mundo 2: Tales os senhores

A prova provém destas duas proposições e da definição de círculo,


que diz que todos os seus raios são iguais, e a sua autoria (embora Mundo 1:
seja uma interpretação dúbia da tradição) é atribuída a Tales, o
fundador da filosofia grega:
Porém, o que importa é que, para a vossa compreensão do
A + B = 2R argumento, Tales e o seu espírito deixaram de ter qualquer
A + 2C = 2R importância. De facto, é até muito provável que a interpretação
B = 2C histórica que o atribui a Tales esteja errada. Ou talvez o filósofo tenha
/.-.C = B/2 feito uma demonstração diferente. Mas tudo isto é irrelevante para
compreenderem o raciocínio; fazem-no através da ligação ao mundo
3, ou seja, seguindo o argumento do mundo 3 como tal. A
De igual modo: demonstração que fiz pode ser considerada
uma prova discursiva. Compreende uma
A+B = 2R série de operações definidas, uma
B + 2C = 2R conjectura, e termina numa espécie de
/+ A = 2C’ surpresa ou talvez na sensação de que nos
C = Á/2 pregaram uma partida.
/:. C + C = A/2 + B/2= IR Mas há também provas menos
discursivas, que parecem ser mais intuitivas.
Começamos por observar que todos os
E assim, os teoremas, os problemas e, claro, os argumentos a rectângulos, isto é, figuras com quatro
que chamamos «demonstração» são todos eles consequências não- ângulos rectos, podem ser circunscritos por
intencionais da invenção da Geometria. um círculo: basta traçar as diagonais para
Podemos descobrir estas consequências não-intencionais tal verificá-lo.
como se descobre rios ou montanhas, o que prova que já existiam Obviamente, qualquer das diagonais é
antes de serem descobertos. um diâmetro do círculo circunscritivo, e
Se acompanharam a demonstração é porque, à vossa maneira metade do rectângulo cortado pela diago­
subjectiva, seguiram um argumento do mundo 3. Digamos que nal é sem dúvida um triângulo rectângulo

42
O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE A AUTONOMIA DO MUNDO 3

do tipo a que nos referimos atrás; trata-se de uma constatação imediata. ou a dificuldade constituída por um problema por resolver. Embora
Para demonstrá-lo, há apenas que inverter o processo e observar que possa ter sido inventado ou descoberto em determinada altura, só
nenhum outro paralelogramo, excepto o rectângulo, tem diagonais depois, em qualquer ocasião, é que porventura será absorvido ou
iguais. subjectivamente compreendido. Como ocupante do mundo 3, torna-
Esta demonstração é mais -se, por assim dizer intemporal; a sua história é, porém, temporal.
intuitiva: as simetrias em causa Afirmei atrás que surgem novas questões e argumentos que são
são im ediatamente captadas. consequências não- intencionais da invenção da Geometria.
Digamos que a compreensão De maneira semelhante, como já disse, podemos conceber um
depende menos do argumento. método para designar os números naturais de modo a que, em
Só temos que com pletar o princípio, seja possível adicionar-lhes sempre mais um, até ao infinito.
paralelogram o a partir do triângulo. O carácter intuitivo da Tal invenção é nossa, neste caso dos Babilônios. Desta invenção,
demonstração percebe-se do seguinte modo: converte-se mais porém, decorrem consequências inesperadas e inevitáveis que nós
facilmente em conhecimento subjectivo do que a prova discursiva. não criámos, mas que descobrimos. Por exemplo, existem números
No entanto, continua a ser uma descoberta do mundo 3, e resolve um ímpares e pares; ou existem números divisíveis e números primos
problema do mundo 3 tanto quanto a primeira. Além disso, necessita tais como 2, 3,5,7, 11, 13, 17, 19, 23, 29 e 31. Estes números primos
de um argumento ou prova acessória que, na verdade, ainda não suscitam muitos problemas, alguns já solucionados e muitos mais
fornecí: a de que nenhum paralelogramo pode circunscrever-se num ainda por resolver. Por exemplo, Euclides achou a resposta à seguinte
círculo a menos que possua quatro ângulos rectos. Contudo, mesmo pergunta: «a sequência de números primos tem um fim ou estes
sem recurso a este argumento acessório, o nosso argumento intuitivo prosseguem infinitamente?». Embora eles ocorram cada vez mais
é bastante convincente. distanciados à medida que avançamos, nunca terminam, não têm fim.
O facto de apresentar estes problemas simples não significa que A demonstração de Euclides é muito simples e bela, mas não tenho
quero ensinar Geometria, longe de mim tal ideia. De qualquer modo, tempo para apresentá-la aqui. Existem muitos outros problemas por
não seria a forma correcta de o fazer. Pretendo apenas debater o papel resolver, por exemplo: «os números primos gêmeos têm um fim?»
do mundo 3, ou seja, o papel dos problemas objectivos, dos («Primos gêmeos» são números primos separados por um número
argumentos e das teorias. Importa-me discutir a importância do facto par, tal como 3 e 5, 5 e 7, 11 e 13, 17 e 19, 29 e 31, assim designados
de esses problemas e teorias poderem ser descobertos, encontrados, por se acharem tão próximos uns dos outros quanto dois primos).
e que esta compreensão ou entendimento é diferente do modo como O problema de os números primos gêmeos terem um fim é um dos
compreendemos as pessoas e respectivas intenções; ou seja, é uma problemas da teoria numérica ainda não solucionados. Simplesmente
outra forma peculiar de compreensão de um problema, de um não sabemos. Continuam por muito tempo, mas desconhecemos se
argumento ou de uma teoria objectivos. infinitamente. Para sabê-lo ao certo, teríamos que prová-lo, ou seja,
Assirn, será fácil distinguir os dois sentidos de pensamento, o investigá-lo a partir da estrutura dos números naturais. Muitos outros
objectivo e o subjectivo: problemas como este permanecem em aberto. Primeiro que tudo há
Pensamento no sentido subjectivo é um processo mental que pode que descobri-los. Feito isso, procurar-se-á resolvê-los, isto é, provar
diferir muito consoante a ocãsião e a pessoa. No caso do' nosso a sua autenticidade. O próprio facto de ser necessário descobrir um
exemplo, consistirá em perceber que as três linhas são raios, e por problema — é preciso talento para tanto e não apenas para a sua
conseguinte tendo o mesmo comprimento. Acontece num determinado demonstração — evidencia o aparecimento de consequências
momento. inesperadas na construção do sistema numérico.
Pensamento no sentido objectivo é o conteúdo de uma afirmação Os problem as que descobrim os surgem portanto como
(ou asserção ou proposição) ou o encadeamento de um argumento, consequências não intencionais dos produtos do mundo 3; por

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE A AUTONOMIA DO MUNDO 3

conseguinte, só constituem produtos mentais indirectamente. Foi por Esta mesma ideia surge na já referida frase de Einstein: «’Omeu
este motivo que apiiquei a palavra «grosso modo» ao dizer que o lápis é mais inteligente do que eu». O que o cientista pretendeu
mundo 3 consiste mais ou menos em produtos da nossa mente. significar, claro, foi que ao dar forma escrita ao pensamento e ao
D esignarei estes residentes do mundo 3 como produtos efectuar os cálculos no papel, obtinha muitas vezes resultados
«autônomos», ou seja, os problemas por resolver que emergem deste imprevistos. Digamos que, ao servir-se de lápis e papel, Einstein
próprio mundo sem contribuirmos para o seu aparecimento e que se contactava com o mundo 3 do conhecimento objectivo, objectivando
furtam ao nosso domínio. Direi ainda que, conquanto tenha origem assim as idéias subjectivas. Uma vez isso feito, associava-as a outras
em nós, o mundo 3 é em grande parte autônomo; existirão inúmeros idéias objectivas, e deste modo chegava a consequências remotas e
problemas autônomos, argumentos e teoremas de que até agora nos não-intencionais que transcendiam em muito o seu ponto de partida.
não apercebemos e que tal vez nunca cheguemos a descobrir. Há um comovente episódio a respeito do compositor Joseph
Este último ponto é de importância decisiva pois demonstra o Haydn: já na velhice, Haydn compôs A Criação, que apresentou pela
seguinte: muito embora tenhamos dado início à Geometria e à primeira vez em Viena, na Aula Magna da antiga universidade, um
Aritmética (quer dizer, à teoria numérica), os problemas e os teoremas edifício destruído durante a II Guerra Mundial. Depois de escutar o
terão existido antes de alguém os descobrir, sendo por isso impossível maravilhoso coro introdutório, disse por entre lágrimas: «Não acredito
pertencerem ao mundo 2 — não podem ser estados mentais ou que fui eu quem compôs isto. Não posso tê-lo feito». Penso que toda
pensamentos subjectivos. Tal facto determina com rigor aquilo a que a grande obra de arte transcende o artista. Durante o processo de
dou o nome de «autonomia» do mundo 3, uma expressão adequada criação, o artista e a obra influenciam-se mutuamente: a obra oferece-
mas não importante, ao contrário do que afirmo a seguir: Não obstante lhe constantes sugestões, que visam suplantar o projecto inicial do
os vários domínios ou áreas do mundo 3 surgirem como invenções criador. Se este possuir a humildade e a autocrítica suficientes para
humanas, aparecem também, na qualidade de consequências atender a tais alvitres e seguir-lhes os ensinamentos, criará uma obra
involuntárias destas, os problemas autônomos e as suas possíveis que transcenderá as suas capacidades pessoais.
soluções. Tais problemas existem independentemente da consciência Estes exemplos ilustram o facto de a minha teoria do mundo 3
que temos deles mas podemos descobri-los no mesmo sentido em conduzir a uma ideia da criação humana, sobretudo da criação artística,
que descobrimos outras coisas, novas partículas elementares ou bastante diferente das posições comummente aceites: por exemplo,
montanhas e rios desconhecidos, por exemplo. afasta-se da ideia de que a arte é auto-expressão ou de que o artista
Quer dizer que temos possibilidade de extrair mais do mundo 3 recebe inspiração —já não das Musas, as deusas gregas da inspiração,
do que aquilo que introduzimos nele. Ocorre uma acção de dádiva e mas sim dos seus próprios estados fisiológicos, também designados
recebimento entre nós próprios e o mundo 3, recebendo-se muito por «inconsciente», que vieram substituir as musas.
mais do que aquilo que se dá. As referidas teorias da arte evidenciam facilmente o seu vazio
Isto é válido tanto no sector das ciências como no das artes. Na de conteúdo perante a crítica baseada em simples fundamentos
verdade, há fundamentaimente o mesmo gênero de intercâmbio intelectuais, e por isso estão a grande distância de teorias como a do
quando um pintor coloca na tela uma pincelada de tinta e depois mundo 3.
recua para observar e avaliar o efeito produzido. Este efeito pode ser E isto pode ser alargado à generalidade das relações do homem
intencional ou não. No último caso, o pintor corrigirá ou eliminará a com o respectivo trabalho, um assunto ao qual regressaremos mais
mancha colorida. Porém, o efeito involuntário sugerir-lhe-á também tarde. Por ora, pretendo discutir o mundo 3 do ponto de vista da
novas idéias: por exemplo, um outro equilíbrio de cores mais atraente evolução biológica.
do que o originalmente pretendido, ou fá-lo-á encarar a obra de Até agora procurei fornecer uma imagem bastante intuitiva
maneira diferente, suscitando-lhe diversos problemas, vendo ele o daquilo a que chamo «mundo 3». No que se refere ao conhecimento
quadro a uma luz distinta e alterando assim o plano inicial. objectivo, poderá dizer-se que abrange o universo das bibliotecas,

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE
A AUTONOMIA DO MUNDO 3

dos livros e dos jornais, assim como o do relato verbal e da tradição


imensamente abstracto, filosófico e vago. Como já disse, sou alérgico
oral. Como é óbvio, a linguagem desem penha um papel
importantíssimo no mundo 3 do conhecimento objectivo; mas também a palavras empoladas e não tinha certezas quanto ao facto de nesse
tem papel relevante nas artes. Como se compreende, tanto eu como a mundo não existir mais do que isso. Tornei-me mais confiante ao
maioria dos filósofos modernos, teremos muito a dizer sobre a descobrir que mesmo algo de análogo ao mundo 3 humano. Isso
linguagem. Estes últimos, porém, estão mais interessados nas palavras proporcionou-me uma visão menos superficial do assunto e a
e nos seus significados, o que não acontece comigo. Prefiro as teorias possibilidade de fazer uma abordagem biológica e evolutiva do mundo
e o problema da sua verdade (ou aproximação à verdade), pois 3. Compreendí também que, em certo sentido, o mundo 3 é obra
humana (embora autônomo em outro sentido) e que, seja como for, é
considero as palavras destituídas de importância. Represento o caso
tão real como o mundo 1, visto que, por intermédio da acção do mundo
no quadro seguinte:
2, pode agir não só sobre a nossa mente como também sobre o corpo
e, deste modo, sobre o mundo 1.
QUADRO DOS DOIS ASPECTOS DA LINGUAGEM
Apercebi-me ainda de que o mundo 3 tem grande importância
Afirmações para o problema mente-corpo bem como para a questão de uma teoria
Palavras
podem form ular
da mente humana, a teoria das suas principais características: a
consciência selectiva, a memória selectiva, a atitude inquisitiva face
Proposições, teorias, hipó­ ao mundo e, em última análise, face ao ego que remonta ao passado
Conceitos, designações
teses ou asserções
e tem expectativas para o futuro.
ou termos
p odem ser
Contudo, e iniciando agora a referência à evolução, terei de fazer
algumas observações prévias de ordem geral. Sou uma espécie de
Verdadeiras
«admirador relutante de Darwin». Admiro-o imenso e considero que
Significativas
e o respectivo
a chamada «síntese moderna do darwinismo» é um importante passo
no caminho da verdade. Todavia, ao mesmo tempo tenho uma aguda
Verdade consciência do carácter vago do darwinismo e das suas dificuldades,
Significado
pode se r redu­
já que está bem longe de constituir uma explicação satisfatória do
zido p o r m eio de
que aconteceu ou acontecerá. Apesar dos muitos problemas que deixa
em suspenso, fornece-nos certos esclarecimentos intuitivos.
Derivações Mencionarei em primeiro lugar alguns precursores animais da
Definições
a
peculiar tendência humana para evoluir exossomaticamente mediante
a criação de dispositivos externos ao organismo, e não apenas
Proposições primitivas endossomaticamente através da mutação e da evolução de órgãos
Conceitos primitivos
novos e cada vez mais perfeitos. Tal como disse na lição anterior, em
Eis o que penso deste quadro: embora os dois lados sejam vez de aperfeiçoarmos os olhos e os ouvidos, criamos óculos e
totalmente análogos, o da esquerda não importa, enquanto o da direita aparelhos acústicos, e em vez de pernas mais velozes desenvolvemos
é de suma importância. bicicletas, automóveis e aviões.
Durante muito tempo tive relutância em publicar fosse o que Existem anim ais que também fabricam ferram entas
fosse acerca do mundo 3. E nem sequer me apercebí de que podia exossomáticas, como é o caso das teias das aranhas, dos ninhos das
caracterizá-lo como o universo dos produtos humanos. Encarei-o aves e das represas dos castores. Mas nenhum animal excepto o
apenas como o mundo das teorias e dos argumentos, e tudo me parecia homem produz algo que se assemelhe a conhecimento objectivo —
problemas, argumentos e teorias objectivas.

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE A AUTONOMIA DO MUNDO 3

Os animais desenvolveram linguagens. De acordo com certas uma descoberta no mundo 3, ou uma descoberta no mundo físico,
teorias modernas, o canto das aves significa «Propriedade privada. pois acabou de perguntar se eu sabia o significado de ângulo recto,
Os transgressores serão castigados!». Também isto constitui um apenas em termos do seu aspecto. Se me mostrarem algo, dizendo
instrumento exossomático e, tal como todos os outros instrumentos «isto é um ângulo recto» e depois desenharem um círculo com um
animais, possui uma base genética inata. diâmetro...
O conhecim ento dos anim ais, porém, é essencialm ente Popper: Eu disse que os ângulos rectos pertencem àquilo que
endossomático, consistindo em tendências ou disposições congênitas nós próprios fizemos ao criar o mundo 3. Como se recordará, eliminei
ou adquiridas, e portanto muito similares ao conhecimento subjectivo o problema do meu desenho. Apresentarei outro. Desenhamos um
humano. ângulo recto de acordo com determinado método, segundo uma dada
Como é evidente, haverá uma característica especial da maneira de proceder: uma aresta, um ângulo recto, o que constitui
linguagem humana que nos proporciona um conhecimento susceptível uma realização humana. Mas surge o problema dos ângulos rectos,
de assumir forma externa a nós, tornando-se assim debatível ou da sua relaçãocom o círculo. À primeira vista, os círculos e os ângulos
criticável. O problema seguinte será o de descobrir a diferença sin­ rectos são coisas completamente distintas. Porém, relacionam-se
gular entre linguagem animal e linguagem humana. ambos com a descoberta, com uma surpresa. Também surge o
problema de saber se se relacionam e como se relacionam.
Interlocutor I: Não contesto aquilo a que dá o nome de
DEBATE «autonomia» dos objectos do mundo 3. No entanto, que importância
atribui à distinção entre verdade necessária, que exige provas
Interlocutor 7: O senhor afirmou que as descobertas ocorridas discursivas, e verdade contingente, que apenas requer atenção ao
no mundo 3 se processam exactamente da mesma maneira que no facto?
mundo natural. Disse que descobrir algo nesse mundo é como Popper: Se não se importa, seria melhor não empregarmos
descobrir uma montanha ou um rio desconhecidos. Será mesmo demasiados termos técnicos pois este debate está aberto a outras
assim? Ou dar-se-á o caso de estar a servir-se desse facto para validar pessoas que não apenas alunos de Filosofia e matemáticos. Diria que
uma descoberta no mundo 3 e assim exibir uma prova necessária a o caso de uma dada proposição ser ou não demonstrável constitui um
priori, ao passo que para tornar válida uma descoberta no mundo problema do mundo 3. Sendo demonstrável, é problema do mundo 3
natural basta conduzir alguém pela mão até junto dela e apontar- verificar que gênero de provas fornece. Podem existir diversas provas
-lha? e interessa ao mundo 3 descobri-las e conferi-las, mas não se cinge,
Popper: Não, não preciso de provas. O problema em si é de modo nenhum, a proposições necessárias e demonstráveis. Engloba
suficiente. Quando se diz «Repare, é curioso, mas as linhas traçadas todos os tipos de teorias — teorias físicas não passíveis de
sobre o diâmetro parecem ângulos rectos. Parecem ângulos rectos, demonstração — e toda a espécie de coisas.
mas não tenho a certeza», isto é a descoberta de um problema, um Claro que, de uma maneira ou de outra, somos nós que iniciamos
problema do mundo 3, que é o seguinte: por que motivo não são o processo. Por exemplo, a Geometria tem de receber o nosso impulso
rectângulos todos estes triângulos? Trata-se de um problema, e a sua inicial, mas uma vez em curso é ela que gera os seus próprios
descoberta é suficiente; não há necessidade de apresentar provas. Se problemas. Temos de dar início também à Física, que de igual modo
acaso houver descoberta, talvez seja a da solução do problema, que originará os seus problemas específicos. O mesmo sucede com todas
pode constituir a prova. Mas referi-me à descoberta de problemas e as ciências, e fundamentalmente com as artes. Alguém começará a
estes são tão residentes do mundo 3 quanto os argumentos, os cantar ou a fazer qualquer coisa no campo da música até que surjam
teoremas, as provas ou aquilo que se quiser chamar-lhes. problemas musicais: por exemplo, o problema de saber terminar uma
Interlocutor I : Não tenho a certeza se isso se poderá considerar peça (a caclenza), talvez um dos problemas mais óbvios da música.

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE A AUTONOMIA DO MUNDO 3

Claro que não afirmo que todas estas coisas são exactamente iguais lição. Devemos admitir que este sério e interessantíssimo mundo 3
ou que descobrimos todos os problemas exactamente da mesma existe, mas também é necessário desfazer certos excessos. Isso pode
maneira. Se fizermos uma reflexão demorada, observaremos certas ser feito até certo ponto, demonstrando que não havería coisas desse
diferenças entre os problemas. Referi atrás que detectamos a presença gênero se não houvesse seres humanos. E, em particular, não
de um problema do mesmo modo que descobrimos uma montanha existiríam Babilônios que as inventassem. Ou seja: não havería coisas
ou um rio, e com isto quero que de certo modo encontramos algo que como números primos se não existissem seres humanos que criassem
existe; ao descobri-lo, mostramo-nos criativos e produtivos, não o o sistema numérico. E este sistema não necessitaria de ser muito
nego. Mas trata-se ainda da descoberta de um problema e por isso extenso, pelo menos até que surgissem os números primos. Se não
não se pode dizer que ele não existia antes de o termos descoberto. tivéssemos inventado toda a infinita sequência numérica, não havería
Falarei deste problema temporal relacionado com o mundo 3 problemas sobre a teoria dos números primos.
quando for oportuno. Todavia, o que está aqui em causa é a autonomia Interlocutor 3: Nesse caso, quando criamos os objectos do mundo 3,
do mundo 3 e você sugeriu que não deveriamos discutir o facto de criamos usualmente mais do que aquilo de que nos apercebemos?
ser pelo menos consideravelmente autônomo, ou seja, que existem Popper. Sim. E aqui o principal «criador» é a linguagem. O próprio
nele habitantes cuja presença nunca ninguém imaginou. Dou-lhe outro sistema numérico é basicamente uma questão linguística. Trata-se de
exemplo bastante simples: por vezes introduzimos um problema um método linguístico de descoberta de novos nomes para mais, mais
matemático no computador e ele soluciona-o. Nesse caso, suponhamos e mais números reais. A linguagem é de facto essencial na globalidade
que o computador imprime a solução e que colocamos de imediato dos casos. E de enorme importância no campo artístico, mesmo nas
essa folha na biblioteca, aí permanecendo esquecida. Ninguém repara artes visuais e também na música. Mas adquire suma importância no
nela! Existe um problema resolvido por computador e ninguém lhe que se refere às ciências, ou seja, no campo do conhecimento
presta atenção! E certo que a mente humana esteve envolvida no objectivo, do conhecimento no sentido objectivo. Penso que é lícito
processo de conceber o computador. Mas todos desconhecem isso e pressupor que o mundo 3 humano surge primeiro no campo do
a maneira como ocorreu a solução desse problema particular. Está lá conhecimento, mais do que no das artes, e nisso reside a essência da
na biblioteca, à espera que alguém o descubra. questão. Também discutirei este aspecto em termos evolutivos, tal
Isto mostra-nos a existência de objectos do mundo 3 que não são como prometi.
autênticos produtos da m ente hum ana no sentido directo. Interlocutor I: O que vou dizer é fundamental para o tópico a
Indirectamente, sim, admito. Quando criámos a Geometria, criámos que me referi antes: Será que se pode dizer que os Babilônios
problemas geométricos de maneira indirecta. Há aqui uma diferença procederam mais a uma invenção do que a uma descoberta do sistema
em relação ao exemplo das montanhas, visto que, indirectamente, numérico, já que antes deles havia um sistema de contagem unitário?
fomos nós os autores, conquanto apenas indirectamente. O mais Nesse caso, surgiría então o problema de justificar os números primos
importante é o facto de recebermos mais do que damos. Daí a frase e os números «superiores» ou «prioritários». E não existiría a solução
de Einstein «o meu lápis é mais inteligente do que eu». O cientista para a base decimal e para as outras bases se os Babilônios a tivessem
extraiu do mundo 3 mais do que nele colocou. descoberto? E não será lícito dizer-se que a contagem unitária existia,
interlocutor 2: Os Babilônios inventaram o sistema numérico, que teve origem no mundo físico e que, por consequência, tornou o
havendo assim números primos como consequência involuntária, que mundo 3 dependente do mundo 1, em vez de se dizer que constitui
já existiam antes de os Gregos (ou seja quem for) os descobrirem. um produto da mente?
Acha que o sistema numérico existia antes de ser inventado pelos Popper. Isso está errado. Não há dúvida de que em regra uma
Babilônios? nova invenção soluciona, de facto, um problema anterior; e quanto
Popper. Não disse isso. Esse é um dos meus pontos principais, mais recuamos, há sempre um problema. Neste sentido, trata-se mais
muito importante aliás, que tenciono discutir lá mais para o fim da de descoberta do que de invenção. Isto refere-se ao primeiro ponto,

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE A AUTONOMIA DO MUNDO 3

sobre o qual estamos inteiramente de acordo. Como é óbvio, houve tudo, P2 é diferente de Pr o que tem já grande importância para o
pessoas insatisfeitas com os sistemas numéricos anteriores e que caso. Em segundo lugar, aqui a relação não é de determinismo ou
descobriram o problema de que a invenção desse método poderia causalidade, ou seja, pode acontecer de maneira distinta. Sempre
representar de facto a solução de um problema precedente. Suponho que se dispõe deste esquema, há nele conexões que serão tudo menos
que isso aconteça por toda a parte. Mas não acho possível aplicar seguras. Talvez se recorde de eu ter dito que, ao nível animal, uma
isto ao mundo físico, pois não constitui um problema ou uma teoria de ensaio consiste porventura numa mutação. Esta nova
resposta. Na verdade, os problemas relacionam-se com o mundo mutação pode ocorrer ou não. É possível inventar uma nova teoria.
biológico. Os animais têm problemas de sobrevivência, mas não Por conseguinte, e onde quer que se verifiquem tais erros, existem
necessariamente conscientes. Contudo, se um determinado animal pontos frouxos intermédios e não se descobre no primeiro animal
se adapta a certo meio ambiente e se o meio ambiente se altera, tudo aquilo que se lhe seguirá. É fácil apercebermo-nos do seguinte:
verifica-se o problema da sobrevivência de uma espécie particular. ainda sobrevivem certos animais que já existiam numa fase evolutiva
Mas não vejo como os problemas possam ocorrer antes do apare­ muito recuada. Alguns sobreviveram, mas a grande maioria não.
cimento da vida animal. Desconhece-se quase por completo os motivos de tal sobrevivência
Interlocutor 1: Mas quando surgiram as espécies e assim que ou extinção, e não é possível descobri-los. Novas adaptações talvez
existiu um ser capaz de reagir ao meio ambiente, apareceram de sobrevivam, outras não.
imediato os problemas originais. Portanto, a mera existência de Interlocutor 1: Creio ter compreendido agora a razão da minha
qualquer animal e respectivo meio ambiente será a base inicial do discordância. Conquanto haja inúmeras possibilidades, penso que
mundo 3, e todos os problemas surgem a partir daí. Deste modo, não todas elas existiram desde o início e a única coisa que porventura se
há autêntica dependência da mente, conquanto ela dê conta dos modificou foi qual dessas possibilidades passou a fazer parte do
problemas. Estes existem, quer a mente os aperceba ou não. conhecimento. Todas elas existiam no mundo 3. Contudo, as teorias
Popper: Sim, concordo. Sublinho apenas que tal evolução não é ou as teorias experimentais que utilizamos e os novos problemas que
de modo algum mágica. Ou seja, podem existir animais assaz se nos deparam restringiram a área do mundo 3 que podemos atribuir
complexos sem que haja um mundo 3 no sentido que lhe atribuímos, ao conhecimento.
isto é, sem haver linguagem humana, sem argumentos, sem aquilo Popper: Acho melhor interromper aqui esta questão específica,
que especificamente designamos por «humano». Mas as suas pois suscita novos problemas. Diria que, num sentido trivial, essas
considerações (relativas à nossa primeira aula, como se recordará) possibilidades existem, mas apenas num sentido bastante trivial. E o
levaram-me a encarar a global idade do assunto sob o ponto de vista mesmo se aplica a possibilidades vindouras, pois não se sabe
biológico e evolutivo. antecipadamente quais surgirão. É esta a principal resposta à sua
Interlocutor 1: No caso de uma presa e de um predador e vendo pergunta.
o primeiro que outro indivíduo da mesma espécie é comido, pondo-se Interlocutor 4: Segundo o modo como entendo o mundo 3, o
por isso em fuga, achamo-nos perante um problema e uma solução. homem dita as regras do jogo — a linha recta, o círculo, o ângulo
Servindo-me da ênfase que conferiu à evolução, penso que lhe será recto — e, dentro dessas regras, existe uma espécie de relação lógica
difícil separar o mundo 3 humano do mundo 3 animal. A evolução é que o homem descobre: o mundo 3. Será assim?
contínua. Popper: Muitas relações lógicas e algumas regras do jogo são
Popper: Ainda não abordámos esse aspecto, mas creio que destituídas do mínimo interesse; outras revelam-se muitíssimo
conseguiremos fazer tal separação. O problema é muito interessante, interessantes e produtivas, conduzindo a todo o tipo de descobertas.
tem a ver com a função argumentativa da linguagem e pode dar-se- Mas, fora disso, estou inteiramente de acordo consigo, desde que
-lhe o título de «evolução emergente», explicando-se também pelo compreenda que o xadrez é menos produtivo que a Geometria, pois
esquema a que já me referi: P t -> TE -> EE Pr Primeiro que embora possibilite toda a espécie de combinações, é menos eficaz do

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que esta. Além disso, a sua aplicação é quase nula, ao contrário do Também produz efeitos no mundo 2, mas o mundo 3 — com-parado
que sucede com a Geometria. com o mundo 2 — é um tremendo amplificador dos poderes deste
Interlocutor 4: Considere-se a Natureza, por exemplo, onde existe último sobre o mundo 1. Compreende? Produz efeitos muitíssimo
matéria e energia. Será que ambas constituem regras do jogo? Há maiores sobre este.
relações lógicas que são regras da Natureza: é o caso do movimento Interlocutor 5: Gostaria que me esclarecesse a respeito de uma
das partículas. Estará este gênero de regra natural de algum modo verdade de enorme relevância — «uma coisa é o que é e não outra
relacionado com o nosso conceito de mundo 3? Haverá na Natureza coisa», para utilizar a frase do bispo Butler. Há pouco disseram que
algum tipo de necessidade lógica? nós «inventamos as regras do jogo» e desejo saber se a afirmação
Popper: Fala de matéria e energia. Trata-se de conceitos humanos «uma coisa é o que é» será uma regra. Fomos nós que a inventámos?
por meio dos quais se descreve a Natureza. Claro que há nela algo Nesse caso, como se explica a sua universalidade e necessidade
que lhes corresponde mas que não sabemos indicar. Não é possível lógica? E se ela se aplica tão intimamente ao mundo 1, levando o
separá-lo e dizer: isto é matéria e isto é energia. Não só é impossível próprio bispo Butler a fazer essa afirmação — não na qualidade de
como também o exemplo particular que escolheu não é o melhor, tautologia nem como verdade lógica, mas sim como se se referisse a
visto que, segundo Einstein, toda a matéria é energia, energia uma verdade acerca de cadeiras ou mesmo acerca da própria verdade
concentrada de certa forma, pelo que não se pode diferenciá-las. E como ideia concebida no mundo 2 — , como se explica a sua
possível estabelecer a diferença entre energia sob a forma de matéria necessidade e universalidade se fomos nós que a inventámos, se
e energia sob a forma de radiação. Estas coisas acontecem mesmo e constitui uma regra? Ou, pelo contrário, tratar-se-á de uma descoberta?
são conceitos humanos. Mas sabemos encontrar na Natureza E, se o for, será uma descoberta apenas sobre a necessidade lógica só
determinadas coisas que são energia sob a forma de matéria, outras no mundo 3? Não será algo também verdadeiro para o segundo e
que são energia sob a forma de radiação e ainda outras que são ambas. primeiro mundos e mesmo um quarto mundo? Para um qualquer
Tanto quanto compreendí, a sua pergunta foi: «Quanto disto foi mundo possível?
inventado por nós e quanto pertence à própria Natureza?». Foi esta a Popper: Não sei se entendi totalmente o que disse. Aquilo que
pergunta? considero inventado por nós é a linguagem, mas não de modo
Interlocutor 4: O que pretendo saber é se existe de facto o mesmo consciente. Surgiu de algum modo. A especificidade da linguagem
gênero de necessidade lógica tanto no mundo 3 como no 1. humana é que podemos dizer coisas como «uma coisa é o que é».
Popper: A necessidade lógica só existe no mundo 3. Conexão Isto faz parte da linguagem humana e fomos nós que o inventamos.
lógica, relação lógica, necessidade lógica e incompatibilidade lógica, O aparecimento de algo que podemos designar por «verdade» e que
tudo isto existe apenas nele. Portanto, acha-se presente nas nossas é susceptível de descrição também faz parte da evolução da linguagem
teorias sobre a Natureza, mas nesta tais coisas não existem. humana. Enfaticamente, trata-se de um elemento do mundo 3. A lin­
Interlocutor 4: Nesse caso, os mundos 3 e 1 são diferentes? guagem em si — sobretudo a humana — constitui já matéria desse
Popper: São realmente distintos, sim. O mundo 2 insere-se entre mesmo mundo e a verdade ainda mais. A verdade, tal como outros
ambos. O mundo 3 pode produzir efeitos sobre o mundo 1, efeitos temas do mundo 3, possui uma certa autonomia. Isto significa que
muito significativos. Consideremos a bomba atômica, uma invenção não é possível tornar algo verdadeiro com uma simples penada, como
apenas do mundo 3. Nada dé semelhante ocorria na Natureza e por vezes pretendem fazer os ditadores, por exemplo, reescrevendo
compreende-se que assim fosse porque, antes mesmo da construção o passado histórico. Coisas deste gênero não podem transformar-se
da bomba, já a Natureza se teria desintegrado. Por isso constitui uma em verdadeiras. Assim, se bem entendi o que disse, a sua pergunta
invenção somente do mundo 3. E que consequências isso acarretou, será a seguinte: «Poderemos alterar a verdade?». E a resposta é: Claro
tanto para o segundo como para o primeiro mundo! Assim, o mundo que sim, conquanto ela deixe de o ser. A verdade é um conceito cir­
3 exerce influência sobre o mundo 1, uma influência muito forte. cular tal como uma prova ou.como a validade desta prova. A verdade

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE A AUTONOMIA DO MUNDO 3

e a validade de um argumento são conceitos do mundo 3 e podemos por que não explicar o sucedido afirmando que o mundo 3 teve algo
dar-lhes nomes diferentes sem que por isso deixem de pertencer-lhe. a dizer ao artista e que agiu sobre ele?
Se tiver tempo retomarei o assunto, mas há aqui algo de muito Popper. Foi o que eu disse.
importante. A ideia de verdade objectiva e a ideia de verdade absoluta Interlocutor 6: Isso é possível? [risos] Qual será a sensação?
(explicarei depois ambas) passaram de moda em certos círculos, em O que é que se sente? Que outras experiências análogas...?
parte por serem consideradas pretensiosas. E são-no. Concordo que Popper. Para quem se aplica com afinco a um assunto, a escrever
é presunção afirmar que somos donos da verdade objectiva ou da uma dissertação ou para qualquer outro fim, não serão necessárias
verdade absoluta. Mas só é presunção quando pretendemos ser donos explicações. É estudante?
delas; não somos, conquanto elas existam no mundo 3. Se nos Interlocutor 6: Sou.
considerarmos detentores delas devido à sua existência nesse mundo, Popper: Quando as pessoas se dedicam a um assunto com
então não será presunçoso declarar «tenho a verdade objectiva e a empenho, certamente verificam que vão emergindo novos problemas
verdade absoluta» (o que nunca deve dizer-se). Inverte-se assim a do trabalho escrito e que dantes nunca notara. Quando isso resulta, a
posição de quem pretende abandonar a verdade objectiva ou a verdade dissertação pode ser melhor do que o autor imaginou ou previu ao
absoluta. A primeira é bastante clara — um conceito do mundo 3. planeá-la. E uma experiência comum para quase toda a gente; no
Quanto à segunda, certas pessoas afirmam que a verdade como tal meu caso é diária. Ponhamos as coisas deste modo: desconheço se a
não existe, apenas a verdade relativa a certas assunções que, por seu minha lição é muito boa, mas é certamente melhor do que há dias
turno, não são realmente verdadeiras mas apenas aceites. (Aliás, atrás porque procurei aperfeiçoá-la. Contudo, isso não provém apenas
planifiquei já uma lição sobre este assunto). Chamo a esta opinião de mim e sim da interacção entre mim e aquilo que fiz. Verifico que
«mito do referente». Este mito reveste-se de diversas formas: por houve algumas dificuldades, que são porventura evitáveis e que devo
exemplo, não se pode discutir um determinado tema sem que primeiro burilar. O mesmo sucede no caso dos compositores. Não sei ao certo
se assuma um dado referencial. No entanto, por vezes é difícil de­ o que se passa no campo da música mais recente, mas é óbvio que o
bater um assunto se não dispusermos de um conjunto de assunções compositor extrai bastante do meio, não do meio como tal, mas sim
comuns; será bastante difícil, mas é interessante e proveitoso, já que do trabalho específico que realiza, que lhe sugere novas possibilidades.
as próprias dificuldades originam autênticos progressos e novos Julgo que isso acontece diariamente. Uma das minhas idéias básicas
esclarecimentos. Deste modo, a chamada verdade «relativa», por é a de que não só agimos sobre o mundo 3, como também este reage
oposição a «absoluta», constitui a doutrina de que toda a verdade sobre nós. E, de facto (como dizê-lo sem soar a sermão?), as minhas
tem de ser relativa a um conjunto de suposições, não existindo verdade palavras contêm uma mensagem, a de que as modernas teorias da
de outra forma. Ora, rejeito tal doutrina e com ela o mito do sistema arte, e em boa verdade do trabalho em geral, negligenciam esse
de referência ou referente. A verdade objectiva constitui simplesmente intercâmbio de dádiva e de recebimento entre nós e o nosso mundo.
um elemento do mundo objectivo, e por isso é possível distinguir os Tal negligência manifesta-se sobretudo na teoria de que a arte é auto-
dois conceitos. Não sei se esta elucidação foi suficiente. expressão, uma teoria largamente aceite que esquece por completo
Interlocutor 5: Foi-me imensamente útil. É bem verdade o que que o artista, enquanto cria, recebe da obra ensinamentos constantes.
disse. Interlocutor 6: Portanto, pode falar-se de ligação ao mundo 3.
Popper: Ficamos por aqui" ou há mais perguntas? Será possível que este dê início a si mesmo sem que o homem o
Interlocutor 6: Uma pergunta: gostaria que me dissesse se o principie? Poder-se-á imputar uma intenção própria a esse mundo
mundo 3 é autônomo e se é possível dar-se-lhe a volta dizendo que, autônomo?
por vezes, esse mundo autônomo reivindica a sua própria pertença Popper: Creio que não. Penso que existe necessariamente um
ao mundo 2. Por exemplo, no caso da pincelada de tinta, quando o dar e receber. De algum modo, somos nós a começar; mas, tal como
pintor comete um erro que lhe abre súbitas e novas possibilidades, disse, recebemos mais do que damos.

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE
A AUTONOMIA DO MUNDO 3

Interlocutor 6: Mas é o homem que tem de principiar? Geometria e da arte, mas não aludiu ao campo moral da reflexão
Popper. Tem de fazê-lo, de uma forma ou de outra. Mas isso não sobre as relações entre seres humanos.
é muito difícil, pois é possível demonstrar que o início possui Popper. Se pretende tal referência, encontrá-la-á no segundo
fundamentos genéticos. Todos os seres humanos possuem a volume do meu livro A Sociedade Aberta', a adenda no fim desse
capacidade inata e o desejo de aprender uma linguagem, e este facto tomo procura investigar o assunto. Claro que é um assunto muitíssimo
é vividamente testemunhado pela comovente descrição que Helen importante e também muito difícil. Penso que a Ética ou Moral, ou
Keller nos dá sobre a sua aprendizagem da linguagem. Conhecem como queira se chamar-lhe, é um produto humano — tal como a
Helen Keller por certo, que era cega, surda e muda. Deveriam ler Geometria — e origina os seus próprios problemas, cuja solução
esse relato, no qual transparece com clareza o quanto essa conduz a novas descobertas. Acredito na existência desse pluralismo,
aprendizagem se deveu a ela, pois trata-se de dádiva e recebimento. mas há um bom motivo para não ter tocado nesse ponto. Prefiro
Não dispunha da capacidade inata e da base genética para interpretar mencioná-lo numa fase posterior. O problema é que — como direi?
como símbolos os símbolos bastante artificiais, o do nome da água, — num debate deste gênero a introdução de temas morais e éticos
por exemplo; enquanto esta lhe corria sobre as mãos, a professora torna-nos de certo modo suspeitos, pois há interesses pessoais em
escrevia nelas a palavra «água». Tal relação abriu-lhe de súbito a jogo, além de que toda a análise tem apenas por objectivo demonstrar
porta para todo um mundo de linguagem e de entendimento. É óbvio algum aspecto de natureza ética. Quero evitar isso e por esse motivo
que nada disso teria sucedido se não houvesse uma necessidade não citei exemplos desse gênero. Mas penso que o caso tem certas
imperiosa e inata e a capacidade de interpretar símbolos, além da semelhanças. Ainda não abordámos esta questão, mas também acho
ânsia congênita para se servir de uma linguagem. Assim, o que não existe finalidade no campo moral, assim como não existe no
desenvolvimento da linguagem constitui uma predisposição humana campo científico. Toda esta matéria apresenta grandes dificuldades,
e, na posse desta, todos compartilham do mundo 3, e também mas não creio, por exemplo, que haja coisas como grandes ideais e
contribuem para ele; quando vocês me fazem perguntas, estão a dar o leis morais.
vosso contributo ao mundo 3, e recebem em geral mais do que aquilo Vivemos num mundo em que temos de pensar e de rever
com que contribuíram. E isso o que se passa com todos nós. constantemente não só as afirmações científicas, mas também as
Interlocutor 5: Pergunto-lhe se o seu mundo 3 contém a atitudes morais. Surgem sempre novos problemas que abalam aquilo
possibilidade de descoberta de estruturas morais. Colocarei a questão que se acreditou ser um preceito moral geralmente aceite, etc. Há
nestes termos: tanto nos antigos escritos hebraicos como gregos, tanto dar e receber entre nós e o mundo 3 como, sobretudo, entre nós
descobre-se o binômio da prática do bem visando os amigos e do e as situações em que as outras pessoas se encontram. Por todos estes
mal visando os inimigos; ou, como por vezes é dito, «ama os teus motivos, acho preferível não me alargar em considerações sobre o
amigos e odeia os inimigos». Tanto no pensamento hebraico como caso durante este curso. Seja como for, se quiser consultar tal matéria,
no grego existem críticas a isto: por exemplo, que se odiarmos os remeto-o para a adenda do segundo volume de A Sociedade Aberta.
inim igos e inten tarm o s p reju d icá-lo s, nós próprios nos
corrompemos. Além disso, tanto na Bíblia como em Platão, nega-
se o referido binômio, dizendo—se mesmo que é mau odiar os
inimigos ou lesá-los. Dar-se-á o caso de esses profetas da cultura
hebraica e de esses filósofos gregos terem descoberto a mesma
estrutura no mundo 3, existindo assim um certo paralelismo entre
uma verdade moral e uma verdade lógica tal como «uma coisa é o
que é e não outra coisa»? O seu munclo 3 admite tal possibilidade?
Ó senhor utilizou por diversas vezes exemplos extraídos da

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O MUNDO 3 E A EVOLUÇÃO EMERGENTE

Na primeira lição expus o problema corpo-mente e procurei


apresentar algumas idéias para a sua solução. Também falei da ideia
básica a que recorri para debater esse problema, a ideia daquilo que
designo por «mundo 3», o domínio dos produtos da mente humana,
constituídos por automóveis, arranha-céus, livros, e sobretudo
problemas e teorias.

Munclo 3: produtos da mente humana (teorias)


Mundo 2: experiências mentais (conscientes)
Munclo 1: objectos físicos, incluindo organismos

Devo salientar que considero que os produtos da mente humana


são reais; não só os que também são físicos — arranha-céus e
automóveis, por exemplo, a que toda a gente chamará «reais» — mas
também os livros ou as teorias. A teoria em si, a própria coisa abstracta,
tenho-a como real porque nos possibilita interagir com ela — podemos
produzi-la — e porque ela faz o mesmo connosco. Basta isso para
considerá-la real. Pode agir sobre nós — concebemo-la, utilizamo-la
e, por meio dela, modificamos o mundo. Também aludi ao propósito
de me servir de considerações de natureza biológica, e em particular
evolucionistas, a fim de procurar entender o mundo 3, sobretudo a
sua área biológica mais importante — o conhecimento no sentido
objectivo — e cujo conteúdo principal são teorias.
Na segunda lição discuti na generalidade o que denomino como

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE _____________________________O MUNDO 3 E A EVOLUÇÃO EMERGENTE

«autonomia» do mundo 3. Ou seja, que uma vez iniciada a produção especificamente humana. Neste capítulo discutirei ainda o papel pe­
de algo — de uma casa, digamos — , não podemos prosseguir a nosso culiar do conhecimento objectivo.
bel-prazer se quisermos que o telhado não desabe e nos mate. Assim, O quarto e último ponto compreenderá a emergência das idéias
há que descobrir certas leis estruturais, inalteráveis e autônomas. ou modelos de descrição genuína e de argumentação válida, ou seja,
Como procurei demonstrar, isso acontece na Geometria e na teoria a verdade no seu sentido objectivo, em contraste com verdade no
numérica. As relações entre o ângulo recto e o círculo são inesperadas sentido subjectivo, que equivale a veracidade ou sinceridade.
e não-intencionais. Também os números primos se furtam ao nosso A minha teoria pessoal sobre o mundo 3 tem uma longa e
domínio, pois constituem consequências involuntárias do facto de interessante pré-história, mas não falarei disso neste curso, pois os
termos inventado a sequência infinita de números naturais. Esta pormenores levar-nos-iam demasiado longe. Da extensa lista de nomes
invenção, por seu turno, terá sido porventura induzida por anteriores de filósofos que sustentaram teorias semelhantes à do mundo 3 —
problemas de uma sequência numérica restrita e, por conseguinte, Hesíodo, Xenófanes, Heráclito, Parménides, Platão, Aristóteles, os
trata-se mais de uma descoberta do que de uma invenção. Mas isso Estóicos, Plotino, Leibnitz, Bolzano, Frege e talvez Husserl —
pouco importa, porém. O único motivo que me levou a sublinhar a mencionarei apenas três: Platão, Bolzano e Frege.
diferença entre invenção e descoberta foi a tentativa de explicar a Platão acreditava em três mundos. O primeiro, o único que
autonomia do mundo 3. Para tanto, interessa demonstrar que certos considerava inteiramente real — e divino, em boa verdade —
problemas e certas relações são consequências intencionais daquilo corresponde ao meu mundo 3. Todavia não continha problemas, nem
que inventamos; portanto, pode dizer-se que descobrimos e não que argumentos nem teorias. Em termos aproximados, consistia apenas
inventámos os referidos problemas e relações; não inventámos os em conceitos, como a Beleza em si ou o Bem em si; chamou-lhes
números primos, por exemplo. Todavia, e em relação à maioria das «Formas» ou «Idéias», que se destinavam claramente a ser objectivas
outras finalidades, não devemos acentuar a diferença entre invenções e visíveis à intuição intelectual, quase do mesmo modo como os
e descobertas; ambas estão intimamente relacionadas, visto que toda objectos físicos são visíveis aos olhos.
a descoberta se assemelha à invenção no sentido de conter um factor O segundo mundo de Platão era o da alma ou espírito, afim do
de imaginação criativa. Isto também é válido no que se refere aos seu mundo das Formas ou Idéias: antes do nascimento, a alma humana
números primos. habitava este domínio das Formas e distinguia-as com nitidez.
Estas últimas considerações resultam do debate subsequente à O nascimento constituía uma espécie de perda da graça, uma queda
última lição e aproveito a oportunidade para vos dizer que essas duas mediante a qual penetravamos no terceiro mundo dos corpos físicos.
discussões me deram um enorme prazer. Mas regressemos ao que A queda fazia-nos esquecer o conhecimento intuitivo das Formas ou
importa. Idéias, mas podíamos recuperá-lo em parte por meio da exercitação
A minha ideia para hoje era dissertar sobre aquilo que denominei filosófica.
«mito do referente». Mas tudo se alterou. E assim, em primeiro lugar, Compreenderão de imediato as similitudes e as diferenças
explicarei um pouco o motivo por que considero importante esclarecer existentes entre essa filosofia e a minha teoria pessoal.
o mundo 3 em termos evolucionistas. Nesse intuito, fomecer-vos-ei Uma das diferenças consiste no facto de a teoria platônica
as opiniões de outras pessoas acerca do tópico que procuro englobar representar uma teoria de queda ou degenerescência — a queda dos
sob a denominação de «mundo 3». seres humanos — , ao passo que na minha se dá a ascensão
Em seguida debruçar-me-ei um pouco sobre a teoria da evolução evolucionista para o mundo 3. Esta diferença tem a sua importância;
e sobre evolução emergente; é este o meu segundo ponto. contudo, não será tão im portante como a diferença entre os
O terceiro será a evolução da linguagem humana a partir do nível «habitantes» do primeiro mundo de Platão e os do meu terceiro
da linguagem animal e versará também sobre os motivos da mundo.
importância biológica, da evolução das funções da linguagem O primeiro mundo platônico é formado por conceitos deificados

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE O MUNDO 3 E A EVOLUÇÃO EMERGENTE

ou por palavras divinizadas. Já o meu mundo 3, no que toca à sua Acontece quase o mesmo com Gottlob Frege, que em 1902
área do conhecimento objectivo, compõe-se de teorias e, além disso, sublinhou a necessidade de distinguir com rigor os aspectos
de argumentos e de problemas em aberto. psicológicos dos aspectos lógicos do pensamento:
Estarão recordados de que apresentei o quadro das duas facetas
da linguagem, onde constavam: Psicológicos Lógicos

Palavras Afirmações Processos do pensam ento C onteúdos do pensam ento


subjectivo ou actos de reflexão objectivo ou conteúdos de actos
Conceitos Teorias ou pensamentos no sentido de reflexão ou pensamentos no
e as respectivas subjectivo sentido objectivo
Significado Verdade

Esta distinção é muito importante, mas permaneceu quase isolada


Disse também que, considerava a coluna da esquerda destituída na sua obra até 1919, altura em que, num artigo intitulado «O Pen­
de importância e a direita como sumamente importante. samento: Um Exame. Lógico», Frege propôs aquilo a que chamou
Reside aqui a diferença mais relevante entre o mundo de Platão «o terceiro reino» (das dritte Reich), ou seja, o domínio do pensamento
e o meu. De entre todos, Platão foi o filósofo de maior mérito, mas ao no sentido objectivo. O terceiro mundo de Frege, ou «terceiro reino»,
colocar em primeiro plano a coluna esquerda deste quadro — ou era formado por conceitos e por proposições verdadeiros e falsos.
seja, palavras, conceitos e significados — , confundiu toda a tradição Mas não mencionava problemas nem argumentos, que aparentemente
filosófica. A maioria dos filósofos, incluindo os antiplatónicos (os não cabiam aí. Além disso, e embora se aproxime de Bolzano ao
chamados «nominalistas»), sofreu a influência dessa tradição. Nem afirmar que esse terceiro reino era real, Frege não teve mais êxito
mesmo a Filosofia mais recente foge à regra, como a filosofia da que ele em tal reivindicação. Assim, não é de admirar que o terceiro
análise linguística ou análise do significado — não é uma filosofia reino de Frege não conquistasse muitos adeptos; mas granjeou
da linguagem, mas sim das palavras («The New Way of Words»). bastantes inimigos, que o consideraram pura fantasia.
Não tenciono justificar agora estas alegações, mas fá-lo-ei com agrado E muito extensa a lista dos detractores destas três teorias, bem
no debate posterior. De momento interessa-me apenas assinalar mais extensa do que a dos seus partidários. Aos primeiros pertence
semelhanças e diferenças. toda a escola nominaiista, desde Antístenes; também Descartes,
O filósofo Bolzano povoou a área correspondente ao meu Fíobbes, Eocke, Berkeley, Hume e Mill; a posição de Russell é
mundo 3 com «afirmações como tal» (Sütze an sich), como lhes ambígua, embora acredite certamente na verdade objectiva; e quase
chamou. A meu ver, tratou-se de um enorme progresso, como poderão todos os estudiosos de Linguística se opõem às teorias do terceiro
verificar se se recordarem das duas colunas do quadro. mundo, salvo alguns, tais como Bíihler, que não se mostra muito
Mas Bolzano ficou perplexo face à condição do seu mundo de explícito. Hegel e Husserl tenderam para o Psicologismo e com eles
«afirmações como tal». Disse que esse mundo era real, mas referiu também Dilthey, assim como outros Geisteswissenschaftler.
que não possuía o mesmo gênero de realidade do mundo físico. Não Lembro-vos, em especial, as duas fortes correntes monísticas
conseguiu explicar os elos existentes entre ambos. Sentiu estas da Filosofia moderna mencionadas na primeira lição: os filósofos da
dificuldades com grande agudeza pois era extremamente claro e mente, que procuram reduzir tudo a estados mentais, insistindo em
lúcido. Por consequência, gerou-se a ideia de que o mundo de que, em última análise, só conhecemos as nossas próprias experiências
«afirmações como tal» de Bolzano não era realmente real, mas uma mentais (uma versão recente e algo dissimulada deste ponto de vista,
invenção ou ficção resultante da fantasia de um filósofo. é a escola que se autodenomina «fenomenista»); e ainda os filósofos

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE
O MUNDO 3 E A EVOLUÇÃO EMERGENTE

materialistas, fisicistas ou behavioristas, que reivindicam que existem Isto leva-me ao segundo ponto da lição de hoje. Farei alguns
apenas estados físicos — incluindo o comportamento físico das comentários à teoria da evolução em geral.
pessoas — e que afirmam que a hipótese da existência de estados Não duvidamos da importância da teoria de Darwin sobre a
mentais constitui um entrave desnecessário a estes estados físicos. evolução por meio da selecção natural. Mas tal teoria continua
Estas duas escolas monísticas, claro, concordam em que é indubitavelmente insatisfatória em relação a diversos pontos.
desnecessário, fantasioso e descabido somar-lhes um terceiro mundo, A teoria da evolução possui um carácter algo vago. Por exemplo,
o que parece ser corroborado pelos poucos dualistas sobreviventes, recorre à hereditariedade e à mutabilidade, ou seja, ao facto de a prole
que acreditam no primeiro e no segundo mundos. se assemelhar aos progenitores na maioria dos aspectos, não só pela
Como sabem, sou um pluralista que propõe a existência de, pelo natureza humana comum a filhos e pais, mas também porque os
menos, três mundos, e por isso é inútil debruçar-me sobre essas primeiros se parecem com os segundos quanto a características
discrepâncias com os monistas. Quero no entanto explicar o motivo individuais. No entanto, os filhos também diferem dos pais em maior
por que durante vários anos pouco falei do mundo 3; aliás, a primeira ou menor grau. Deste modo, por um lado, a teoria assume uma elevada
vez que utilizei esta expressão em caracteres de imprensa foi em 1966, dose de estabilidade e de hereditariedade material e, por outro lado,
se bem que em material publicado a partir de 1933-1934 sustentasse um certo grau de mutabilidade. Ambas as teses estão sem dúvida
já uma teoria do conhecimento que postulava a condição de correctas. Contudo, e sempre que isso se tome conveniente, permitem
conhecimento objectivo e a inviabilidade das tentativas de o reduzir explicar que certos fenômenos se devem à estabilidade hereditária e
a conhecimento subjectivo. que outros resultam da mutabilidade, o que não satisfaz como
A minha relutância em escrever sobre o mundo 3 deveu-se ao explicação, mesmo que as suposições sejam inquestionavelmente
facto de ser alérgico a palavras sem sentido, e a tudo quanto se lhes verdadeiras. O carácter insatisfatório da explicação reside no facto
assemelhe. Não dispunha ainda de uma teoria explicativa da condição de este gênero de hipótese permitir explicar um número excessivo de
de mundo 3 e do seu vínculo com o mundo 2, e por isso achei que coisas — quase tudo o que é possível e mesmo impossível de
tudo soava a fantasia filosófica (muitos filósofos pensaram o mesmo acontecer. E quando se explica demasiadas coisas, a explicação
acerca das teorias de Bolzano e de Frege). autêntica torna-se duvidosa.
Assim, só me referi explicitamente ao mundo 3 quando encontrei Uma outra fraqueza da teoria é a explicação de Darwin sobre
o enunciado simples mas algo tosco de que os objectos do mundo 3 aquilo que podemos designar por «ascensão evolutiva», ou seja, a
são produtos humanos, da mesma maneira que o mel é um produto emergência ou aparecimento de formas orgânicas mais elevadas a
das abelhas; mas mesmo depois disso não utilizei a denominação partir de outras inferiores. Recorrendo à terminologia de Herbert
«mundo 3» em letra de imprensa durante mais de um ano, não obstante Spencer e falando de «sobrevivência dos mais aptos», a explicação
aplicá-la com frequência em seminários. de Darwin poderá ser resumida nestes termos: há ascensão evolutiva
Duas idéias decisivas encorajaram-me a dar tal passo, idéias que, quando de entre todas as mutações ou formas de vida só as mais
por fim e com bastante clareza, me demonstraram que o terceiro aptas sobrevivem. Isto ajuda a explicar a ascensão evolutiva apenas
mundo não representava apenas algo sem significado. Compreendí, se lhe acrescentarmos que em regra uma forma superior tende a tornar-
em primeiro lugar, que o mundo 3, conquanto autônomo, era obra se mais apta do que uma inferior.
humana, sendo perfeitamente real visto podermos agir sobre ele, tal No entanto, esta proposição — em regra, uma forma, superior
como ele também agia sobre nós, ocorrendo pois uma acção de dádiva tende a tornar-se mais apta do que uma inferior — é claramente
e recebimento, uma espécie de efeito de transferência energética. Em insustentável. Com efeito, sabe-se que algumas formas inferiores
segundo lugar, apercebi-me de que no reino animal existia já um existiam há muitíssimo tempo — desde épocas muito anteriores ao
análogo do mundo 3 e que, portanto, seria possível estudar a aparecimento de formas mais elevadas — e que ainda sobrevivem.
globalidade do problema à luz da teoria da evolução. Por outro lado, e após existirem durante consideráveis períodos de

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tempo, extinguiram-se muitas formas superiores surgidas bastante moderada. Não consegue explicar a ascensão evolutiva, embora talvez
depois das inferiores ainda sobreviventes. Desconhece-se os motivos explique um aumento gobal de formas diferentes, sobretudo
do seu desaparecimento, que taivez se devesse à acção de bactérias recorrendo à hereditariedade associada à mutabilidade, o que constitui
ou vírus, isto é, devido à interferência de formas de vida bastante um modo explicativo bastante vago. Perante tudo isto, não será de
mais inferiores. Seja como for, estas formas mais elevadas revelaram- adm irar que eu considere ridículos os sonhos eugenistas de
se menos aptas do que muitas das inferiores. Tais considerações aperfeiçoamento da população humana por meio da manipulação
demonstram a impossibilidade de sustentar uma conexão íntima entre genética. Claro que não me oponho a certas medidas modernas
formas de vida superiores e aptidão, e uma conexão assim débil tem tendentes a reduzir as doenças hereditárias. Mas quem poderá ajuizar
pouco valor explicativo. o que é bom para a humanidade no sentido positivo? Quem decidirá
O método explicativo da aptidão é ainda pior, contudo. Há muito o que serão tipos hereditários sempre melhores? Quem poderá prever
que os biólogos pensam que é impossível investigar o grau de aptidão as condições que produzirão tipos melhores do que outros?
de uma espécie. Também não é possível comparar a aptidão de dois É inconcebível que alguns homens se intrometam na formação do
tipos concorrentes. Q único processo de determinação é verificar gênero humano apenas porque possuem conhecimentos superficiais
qual dos dois tipos rivais diminui ou aumenta em número de de Genética.
indivíduos. Depois de todos estes comentários, torno a salientar a nossa
Isto implica porém que os biólogos (sobretudo Fisher) se vêem gratidão para com Darwin e os seus sucessores por terem ao menos
forçados a definir como «mais aptos» os que sobrevivem com maior suscitado alguns problemas do máximo interesse. Além disso,
frequência. Portanto, revela-se bastante débil aquilo que ante- transmitiram-nos a convicção intuitiva de que só em termos evolutivos
riormente pareceu uma promissora teoria explicativa. O enunciado será possível explicar muitos fenômenos importantes. Neste campo,
«a evolução tende a produzir formas superiores porque só as mais todavia, ainda há muito a fazer.
aptas sobrevivem» soará como explicação. Mas se substituirmos a Com o auxílio do nosso esquema, P ->■ TE -> EE —> P
expressão «mais aptos» pela maneira como ela se define, teremos: «a proponho-vos agora um ponto de vista que encaro como um ligeiro
evolução tende a produzir formas superiores porque as formas que aperfeiçoamento da teoria de Darwin.
sobrevivem mais frequentemente, sobrevivem mais frequente-mente». Inicialm ente disse que este esquema formava teorias —
Assim, a frase degenera em tautologia e uma tautologia não explica principiamos pelos problemas, adiantamos teorias experimentais
nada. As tautoiogias equivalem a afirmar que «todos os meses são juntamente com processos e análises críticos destinados a eliminar
meses» ou que «os que vivem mais tempo são os que vivem mais erros e, por fim, deparamos com novos problemas. De momento,
tempo» (este fenômeno degenerativo ocorre com frequência quando utilizá-lo-ei de maneira muito mais geral, nomeadamente que todos
permitimos que as definições se infiltrem nas explicações). os organismos estão permanentemente comprometidos na resolução
E xplicar através da aptidão também não tem poder de dos seus próprios problemas. Confrontam-se com eles e procuram
antecipação. Na verdade, se na geração seguinte um tipo até então solucioná-los, mesmo durante o sono. Mesmo parado como estou
sobrevivente ou apto não conseguir sobreviver para além dela, é neste momento, há centenas de músculos em actividade no meu corpo
porque não se adaptou a novas condições ambientais, que se alteram para me manterem direito mediante uma espécie de método de ensaio
de maneira constante, modificadas pelo próprio processo evolutivo. e erro e de transferência de energia, impedindo-me assim de pender
Verifica-se claramente que a aptidão é sempre relativa às condições demasiado para a esquerda ou para a direita. Embora aparentemente
existentes, podendo afirmar-se apenas «o que é apto aqui e agora é o eu permaneça imóvel, os fisiólogos dirão que, em boa verdade, no
que sobrevive aqui e agora». meu corpo funciona um piloto-automático de enorme envergadura
Menciono estes aspectos a fim de esclarecer que a teoria da destinado a conservar a postura correcta. Mesmo estando imóvel,
evolução não é inteiramente bem sucedida, e esta é uma apreciação todos estes factores operam de modo a manter-me em equilíbrio. Por

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conseguinte, a primeira tese é a permanente resolução de problemas comportamentos de ensaio não são aleatórios ou acidentais visto
por parte de todos os organismos, e o mesmo se aplica às suas partes alguns deles serem eliminados com rapidez e também porque se
constitutivas. relacionam sempre com a resolução de um problema específico,
O facto de que os organismos resolvem problem as será retirando-lhes assim o carácter fortuito. O mesmo se passa no caso
porventura explicável pela selecção natural. Ou seja, numa fase de da produção de indivíduos pelas espécies, que também não é aleatória,
desenvolvimento muito recuada, num estádio evolutivo assaz dado que a selecção natural — ou outro processo qualquer — faz
primitivo, os organismos incapazes de resolver problemas foram desaparecer certos tipos genéticos. Deste modo, existem inúmeros
eliminados; hoje em dia restam apenas aqueles que os resolvem. indivíduos diferentes. Podemos até encarar cada um deles como
Aflorei apenas de maneira simples o tema de que todos os ensaio, arma ou como quisermos chamar-lhe, e a espécie recorre a
organismos solucionam problemas. Mas irei desenvolvê-lo. eles para conquistar o respectivo meio ambiente.
Se acaso se recordam da árvore evolutiva, lembrar-se-ão daquilo Generalizando o darwinismo, diria que, primeiro que tudo, não
a que os biólogos chamam «phylum»; famílias, gêneros, espécies e só lutamos pela vida como também pela sobrevivência, pois
indivíduos. Cada um destes grupos resolve problemas e, ao resolvê- deparamos com problemas a que temos de dar resposta. Por exemplo,
los, elabora TE, sendo estas tentativas experimentais muito diferentes o problema de manter-me de pé não é de simples sobrevivência, já
a níveis diferentes. Principiarei pelos indivíduos. O indivíduo está que o facto de me sentar não implica que estou necessariamente morto.
permanentemente a efec-tuar ensaios, e corrige-os eliminando os erros; Assim, o nosso problema é bastante diferente. Até certo ponto, também
estes ensaios são experiências comportamentais, comuns aos seres escolhemos os vários problemas. O problema de permanecer de pé
humanos, às amibas, às bactérias, etc. A amiba comporta-se de será um deles, sendo outros o de me levantar ou sentar-me. Como é
determinada maneira — projectando pseudópodes, etc. — e estes evidente, os indivíduos confrontam-se a todo o momento com
movimentos comportamentais representam de facto tentativas inúmeros problemas, problemas comportamentais. E a espécie
destinadas a resolver problemas: de ordem alimentar, de fuga a outras enfrenta muitíssimos problemas de adaptação ao meio ambiente
amibas ou a outras espécies e assim por diante. Portanto, e a fim de servindo-se das suas armas, enquanto os genes utilizam as diversas
solucionarem problem as, os organismos individuais exibem espécies. Regressando ao tronco principal da árvore evolutiva,
comportamentos de ensaio, num processo experimental sujeito à observamos que todas as formas desenvolvidas pela evolução
eliminação de erros. Mas há sempre novos problemas. Discutirei o representam as armas vivas actuais que, de uma maneira ou de outra,
caso com alguma minúcia. Antes disso, contudo, proponho a tentam implantar-se no meio ambiente, no mundo e mesmo no que
denominação «armas», apenas por uma questão de clareza intuitiva: se situa para além do globo terrestre.
as armas da adaptação individual são os vários modelos de O facto de os organismos terem de solucionar constantes
comportamento ensaiados pelo indivíduo. O indivíduo utiliza os problem as de sobrevivência constitui uma generalização do
referidos modelos de comportamento como armas por meio das quais pensamento darwiniano. De acordo com a minha teoria, há imensos
procura penetrar e conquistar o seu meio ambiente. Por conseguinte, problemas alheios à sobrevivência. Quando uma árvore lança raízes
os modelos comportamentais constituem as experiências ou armas à terra ou dispõe a respectiva copa, resolve problemas locais
exibidas pelo indivíduo. De modo semelhante, os indivíduos são as específicos suscitados pela presença de pedras no solo e pelas
armas — de experiência e'"eliminação de erros ou ensaios condições de acesso à luz. Um organismo pode desenvolver
experimentais —- usadas pelas espécies. A espécie, algo de abstracto preferência por certo tipo de alimentos, mas sobrevive alimentando-
que abrange todos os indivíduos do mesmo grupo taxionómico, produz -se de outros de tipo diferente. Obter o alimento preferido apresenta-
indivíduos misturando o material hereditário de que dispõe e -lhe um problema que, no entanto, não é necessariamente de
ensaiando todo o gênero de formas individuais. Isto não ocorre de sobrevivência. Desenvolverá a preferência por um certo alimento
modo inteiramente aleatório ou acidental. Devo dizer que os porque lhe é mais acessível ou por qualquer outro motivo semelhante.

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Seja como for, tal preferência manter-se-á porventura mesmo alterarem, já que uma dieta circunscrita a um determinado tipo de
após diminuir a referida acessibilidade. A preferência por um certo alimento representa a condenação quando o seu fornecimento se
tipo de alimento constitui uma nova característica comportamental, esgota. Por conseguinte, a implantação hereditária de uma dada
que pode desenvolver-se e perdurar apesar de se alterarem as característica poderá conduzir a esta situação.
condições que a originaram. Claro que o organismo enfrenta agora o Pode afirmar-se — pode mesmo predizer-se — que certa espécie
problema da obtenção do alimento preferido, sobretudo se as altamente adaptada e bem sucedida se extinguirá na próxima grande
condições se modificaram ao ponto de esse alimento estar menos m udança de condições am bientais devido ao excesso de
disponível. O problema tornar-se-á de sobrevivência se esse alimento especialização. Isto prova que é possível ter-se uma antevisão do
escassear bastante; e para os organismos dessa espécie, abdicar ou futuro. Desconhece-se o momento exacto em que se dará essa
manter tal preferência transforma-se assim num verdadeiro caso de mudança de condições, mas sabe-se que o referido organismo se
vida ou de morte. especializou em excesso e que momentaneamente revelou um enorme
Se o organismo tem dificuldade em abdicar, pode dizer-se que êxito; um êxito enganoso, porém, que fará desaparecer a espécie na
desenvolveu um tipo de especialização — especializou-se nesse primeira oportunidade, ou seja, na primeira grande alteração das
alimento. Tal especialização formará uma tradição (e se for apenas condições ambientais.
isso, o organismo tem possibilidade de pôr de parte o alimento) ou Apresento-vos agora um resumo que mostra os aspectos em que
desenvolver-se-á uma característica genética, o que quer dizer que me afasto de Darwin:
passou a fazer parte da hereditariedade.
O que nos importa nesta teoria, porém, é que a arma comporta­ 1. Os meus problemas são bastante específicos, tais como obter
mental constitui o verdadeiro motor de todo o desenvolvimento, a ou dispor de certo tipo de alimento ou outro problema do gênero;
genuína entrada por onde tentamos penetrar. Assim, o comportamento trata-se de problemas bem específicos, enquanto Darwin se refere
tem maior importância do que a anatomia. Acho que os biólogos se sobretudo à sobrevivência em geral.
têm alheado deste aspecto. Para explicar a evolução, a arma 2. O método de eliminação de erros não representa uma mera
comportamental representa o elemento mais importante, e tudo o mais luta pela sobrevivência entre indivíduos, que termina com a morte
deriva daí por acréscimo. São decisivas, em particular, as nossas prematura de alguns deles. Também inclui, por exemplo, evitar
preferências. com portam entos que se revelem irnprofícuos para atingir
Segundo ponto: se uma característica ou uma especificação determinados objectivos.
comportamental perdurar por muito tempo, transformando-se em 3. Proponho a teoria da emergência de novas formas, explicadas
tradição, poderá acontecer aquilo a que dou o nome de «implantação como soluções experimentais tendentes a resolver novos problemas.
hereditária» de tal característica. É fácil explicá-lo: desde que constitua É muito importante este aparecimento de novos problemas. Como já
apenas uma tradição, a especialização não se aperfeiçoa visto haver vimos nas duas lições anteriores, P7é em regra muito diferente de P
sempre outras hipóteses viáveis, e porque tais possibilidades impedem Através deste esquema, observa-se que a novidade pode e tem mesmo
o aperfeiçoamento máximo dessa especialidade. Mas se ela se de surgir no âmbito da evolução, havendo assim uma teoria do
implantar de modo hereditário através de mutações, estas ocuparão o aparecimento de novas formas de vida.
papel da tradição e das suas funções, rumando assim em direcção à 4. Dou particular ênfase ao papel crucial que o comportamento
perfeição. Portanto, a curto ou mesmo a longo prazo, a implantação e as descobertas comportamentais desempenham na evolução: o
hereditária de uma especialização adquirirá valor de sobrevivência. comportamento é a verdadeira arma evolutiva.
A implantação hereditária poderá superiorizar-se e sobreviver durante 5. Destaco o papel desempenhado pelo desenvolvimento de
um considerável período de tempo. Contudo, poderá revelar-se novos objectivos comportamentais, preferências e capacidades.
porventura uma autêntica armadilha mortal se as condições se 6. Sublinho também o papel do alargamento ou redução do

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espectro dos modelos e possibilidades comportamentais, assim como preferência se manter na qualidade de tradição ou, pelo contrário, de
a ampliação ou estreitamento da base genética do comportamento. se implantar hereditariamente.
Cada um destes elementos exerce uma influência distinta e — se Ao falar de tradição, refiro-me a um modelo de comportamento
bem se recordam do meu exemplo anterior — ocorre um problema que permanece inalterado durante um considerável lapso de tempo,
de sobrevivência quando uma preferência específica se transforma conquanto estejam disponíveis outros modelos de comportamento
na incapacidade da espécie sobreviver com outros alimentos que não ou soluções relativas à composição genética do organismo. Por outro
os seus preferidos. A este processo dou o nome de «especialização lado, um modo de comportamento implanta-se genética ou heredita­
genética» ou «implantação genética». riamente se não estiverem disponíveis outros modelos, ou seja, se o
tipo de organismo se tornou geneticamente especializado.
Este exemplo é bastante simples e podemos extrair grandes
ensinamentos dele. Por isso, talvez seja conveniente uma segunda Portanto, a especialização pode fundamentar-se numa tradição
abordagem. que pode ser interrompida, visto que a hereditariedade não depende
Regressemos ao organismo individual. A sua composição do comportamento do indivíduo, ao passo que o comportamento
genética quase única é uma tentativa de resolução de problemas por depende da hereditariedade em maior ou menor grau.
parte da espécie, originando uma larga gama de indivíduos diferentes R egressem os ao e s­
que possuem uma constituição hereditária ou genética algo distinta. quema quádruplo de reso­
Cada um destes diferentes indivíduos pode ser visto como uma TE, lução de problem as e
um ensaio experimental. Se este ensaio se revelar improíícuo e for observemos a árvore gené­
portanto eliminado, diminuirá a probabilidade de nova experiência tica.
com uma composição genética semelhante. Neste caso, trata-se ainda De m aneira incons­
de darwinismo (ou, como agora se diz, «nova síntese»). Pode dizer- ciente, tanto os indivíduos
se que a espécie utilizou o organismo individual como arma na como as espécies, os gêneros
tentativa de penetrar ou conquistar o respectivo meio ambiente. ou phyla, estão permanen­
Observemos agora o comportamento do organismo individual, temente a solucionar pro­
que em parte é determinado pela hereditariedade, ou seja, pela blemas. O comportamento ou
composição genética. Mas há nele uma certa amplitude — em casos talvez a tradição constituem
problemáticos semelhantes ou diferentes, o indivíduo dispõe de as TE ou arm as dos
diversas reacções comportamentais possíveis, que poderão ser indivíduos. Estes, por seu
encaradas como TE. E por meio do processo de eliminação de erros, turno, são as TE ou armas das
o organismo individual aprenderá porventura o modo de solucionar espécies ou raças; estas as
os seus problemas: a maneira de obter o alimento preferido, por dos gêneros, e assim por
exemplo. Portanto, o comportamento representa as armas do diante.
organismo individual. Assim — comportamento: indivíduo = Passemos agora a outro problema: uma tradição comportamental
indivíduo: espécie. pode também tornar-se na arma de uma implantação genética, ou
Mas o desenvolvimento, no indivíduo ou num certo número de seja, de uma mudança genética na espécie de um grupo.
indivíduos, da preferência por um certo alimento foi já uma solução A implantação genética do que previamente era tradição explica-
comportamental para determinada situação problemática. Essa -se com relativa facilidade, pois um modelo de comportamento
preferência dever-se-á apenas à relativa abundância do alimento em tradicional assaz rígido será, em regra, menos bem sucedido do que
causa ou por qualquer outro motivo; porém, é crucial o facto de a outro modelo (talvez ainda mais rígido, mas semelhante em todos os

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demais aspectos) resultante de especialização genética. Isto deve se variedade, para espécies cada vez mais diferentes, à medida que novos
ao simples facto de a especialização atingir um nível superior e, desde problemas surgem e são solucionados, e que por sua vez dão origem
que o indivíduo disponha de diferentes modelos de comportamento, a outros. Portanto, talvez devamos desenhar a árvore evolutiva na
tais possibilidades restringem o aperfeiçoamento do comportamento. horizontal:
O aumento de eficácia torna provável o sucesso dos mutantes que
im plantem geneticam ente o com portam ento. Os m utantes
especializados no alimento favorito podem revelar certa vantagem
momentânea sobre os tipos não-especializados. Deste modo altera-
-se a composição genética da espécie e aumenta a frequência de tipos
mutantes, até ser impossível, ou mesmo difícil e demasiado lento,
efectuar uma reversão destinada a impedir que a espécie se extinga.
Este tipo de implantação constitui um mecanismo hereditário bem
conhecido; a novidade desta tese é que tal mecanismo, conquanto em
geral muito bem sucedido, é bastante arriscado, pois representa uma O nosso esquema quadripartido indica com nitidez que, em geral,
armadilha mortal para a espécie. Embora esse mecanismo possibilite os novos problemas só muito vagamente dependem dos anteriores
à espécie ter maior êxito ou tornar-se «mais apta para sobreviver», — as soluções experimentais criam uma nova situação. Além disso,
impende sobre ela a ameaça da inadaptação se se der uma mudança as condições externas podem alterar-se devido a mudanças ocorridas
significativa nas condições ambientais: por exemplo, no momento noutras espécies ou no meio ambiente.
em que se esgotem as reservas alimentares em que a espécie se Esta frouxa conexão implica que um novo problema pode ser de
especializou. facto novo no sentido de que antes não existia nada que se lhe
Assim, embora a minha teoria não contenha a ideia de previsão assemelhasse. Deste modo, o esquema torna compreensível o
da adaptabilidade, implica contudo uma ideia da inadaptabilidacle aparecimento da novidade. A expressão «evolução emergente», que
previsível a longo prazo, isto é: todci a implantação genética de uma os críticos encaram como palavras ocas, torna-se assim sólida e
especialização pode tornar-se letal no futuro, se bem que possa ser significativa devido à teoria e ao esquema que proponho. Com efeito,
extremamente bem sucedida em dado momento e talvez mesmo em vez de uma mera denominação, dispomos agora de uma teoria da
durante um extenso período. evolução emergente.
Outros casos de especialização geneticamente implantada Em vez de falarmos de organismos superiores, falaremos de
referem-se a espécies que dispõem de uma vasta gama de modelos organismos mais complexos, e o aumento de complexidade entender-
de comportamento. Apesar de as suas perspectivas parecerem mais se-á como consequência do acréscimo de variedade, explicável pela
promissoras, não é possível prever o seu futuro, pois surgem sempre nossa teoria da emergência.
mudanças imprevisíveis (novos vírus, por exemplo), talvez fatais para Claro que o aumento de complexidade em si mesmo não tem
as espécies. Temos o caso exemplar dos cedros do Líbano, que nada a ver com adaptabilidade. De facto, qualquer mudança
permaneceram de boa saúde e bem adaptados até que o mundo 3 catastrófica no meio ambiente, como o choque de um meteorito de
humano concebeu o plano de os utilizar para a construção naval, o enorme tamanho, provavelmente destruindo todos os organismos
que os fez desaparecer quase por completo. com plexos de uma dada área, poderá muito bem perm itir a
Como encarar o velho problema darwiniano da ascensão genética sobrevivência das formas de vida mais simples.
à luz da minha teoria? Em primeiro lugar, transparece o facto de ter Era minha intenção desenvolver mais estes aspectos nesta lição,
sido mal formulado, já que ascensão genética geral é coisa que não mas é já um pouco tarde e talvez seja preferível deixarmos para a
existe. Existe, pelo contrário, a tendência para um aumento de próxima a evolução da linguagem humana e o aparecimento das idéias

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O MUNDO 3 E A EVOLUÇÃO EMERGENTE

de verdade e de validade. Mas tornemos a resumir a nossa teoria, dos modelos comportamentais e ampliação ou estreitamento da base
com base no esquema quadripartido, a teoria da evolução emergente genética do comportamento na evolução.
por meio da resolução de problemas. A emergência da novidade
evolutiva explica-se pelo aparecimento de novos problemas. A teoria
diz respeito a todos os organismos e espécies (e mesmo a toda a phila), DEBATE
permanentemente empenhados em solucionar problemas a vários
níveis: o indivíduo inventa outros modelos de comportamento Interlocutor 1: Se bem percebi o seu esquema P TE -> EE -> P7,
recorrendo ao método experimental e à eliminação de erros; a raça os problemas são suscitados tanto por TE como por EE. Compreendo
ou phylum cria novos indivíduos ao inventar novos modelos genéticos, que eles resultem de TE e que esta teoria experimental seja
que constituem novas composições genéticas, incluindo novas problemática em si mesma, exigindo o ensaio e a eliminação de erros.
mutações. Mas, uma vez isso feito, não vejo como a eliminação de erros conduza
Num mundo em constante mudança, o facto de a evolução de também a novos problemas. O senhor nao se referiu a este ponto.
uma espécie possuir ampla base genética representará uma vantagem,
possibilitando-lhe um largo espectro de indivíduos diferentemente Popper: Os problemas originam-se tanto em TE como em EE.
dotados e um vasto leque de comportamentos. Claro que a eliminação de erros ocasiona outros problemas. Se se
Este alargamento de possibilidades vantajosas será talvez eliminar o erro em TE, este P/ e esta TE desaparecem, mas surge
conseguido inventando novas preferências e novos objectivos mais outro problema distinto do anterior. Quer isto dizer que nós (ou o
específicos do que a mera sobrevivência (este problema é analisado organismo) dispomos de uma vantagem, pelo menos a de saber que
na minha lição sobre Spencer). Contudo, os novos objectivos podem tal TE não constitui a solução. Por conseguinte, depara-se-nos nova
também fazer dim inuir as possibilidades de com portamento situação problemática. O problema original permitiu que a TE fosse
hereditário através da especialização. uma solução, coisa que a eliminação de erros suprime. Portanto,
achamo-nos perante um novo problema, nomeadamente o de procurar
Eis alguns dos pontos em que a minha teoria se afasta do resolvê-lo, mas não por essa via; trata-se de um novo problema.
darwinismo: Contradizendo a eliminação de erros ...
1) O novo problema pode ser bastante específico e relacionar-se
apenas vagamente com problemas de sobrevivência. Interlocutor I: Eu próprio e também outras pessoas talvez
2) O método de eliminação de erros não constitui uma simples tenhamos dúvidas, porque o senhor ilustrou melhor as TE do que as
luta pela sobrevivência entre indivíduos; inclui, por exemplo, o EE. Não forneceu exemplos tão completos de EE como o fez
afastamento de comportamentos que se revelem ineficazes para atingir relativamente às TE.
um resultado particular.
3) Propõe-se uma teoria da emergência de novas formas que são Popper. Tem razão. Um caso típico de eliminação de erros seria,
tentativas experimentais destinadas a resolver novos problemas. por exemplo, se TE fosse a preferência implantada (ou não) por
4) É destacado o papel crucial do comportamento e das determinado alimento e este se esgotasse; isso significaria que tal TE
descobertas comportamentais na evolução — o comportamento era um erro. Assim, este seria eliminado e surgiria um novo problema,
constitui a verdadeira arma da evolução. tendo essa TE deixado de representar a solução. Acho que esclareci o
5) Sublinha-se a influência que o desenvolvimento de novos assunto.
objectivos comportamentais, preferências e capacidades exerce sobre
a evolução. In terlocutor 2: Q uando diz que novas form as têm
6) Também se frisa o papel do alargamento, redução do espectro necessariamente de aparecer em P,, será extemporâneo utilizá-lo como

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metáfora relativamente à cultura humana? Ocorrerão necessariamente saber qual é o centro do universo? E isto para não falar da Terra, do
novas formas na sociedade ou na cultura humanas? Poderá usar-se Sol, etc.; ou seja, o problema global deixou de existir. Hoje talvez
tal metáfora ou é apenas...? tenhamos outros problemas: observar, através de meios terrestres, a
rotação da nossa própria galáxia, um problema semelhante e
Popper: Não empregaria o termo «necessariamente», mas quanto aproximado desse outro antigo problema, mas já totalmente diferente.
ao resto está correcto. Novas formas emergem, embora não se saiba Por exemplo, ninguém pergunta se a nossa galáxia se situa no centro;
como nem quando. Assim, o «necessariamente» terá de interpretar- o problema é antes o de saber se a galáxia efectua a rotação e de que
-se como... modo o faz relativamente às outras galáxias. O centro deixou de estar
em causa e foi substituído pela rotação, que não tem nada a ver com
Interlocutor 2: O motivo por que pergunto isto, é o seguinte: leu uma posição central. Trata-se portanto de uma verdadeira mudança
a crítica que Ernst Gombrich escreveu sobre Disintegration ofForm qualitativa, algo que de momento me ocorreu como resposta a esta
de Erich Kahler? Gombrich cita-o a si em vão (acho eu) e, concor­ pergunta particular. Não penso que seja uma resposta muito adequada,
dando de certo modo com Kahler, diz que é possível fazer um juízo mas os melhores exemplos são sempre proporcionados pela evolução
qualitativo acerca de novas formas. Mas, segundo me parece, quanto da ciência, por serem os mais concretos.
a isto o senhor não sugere nenhum tipo de juízo qualitativo.
Interlocutor 3: Não compreendi completamente a sua crítica a
Popper. Não percebi a sua pergunta. Poderá explicar-se melhor Darwin. Concordo com a que fez a Spencer, que — penso eu —
de modo a que todos compreendam? deturpou Darwin; mas, quanto à crítica a Darwin, não entendo. Em
primeiro lugar, parece-me que Darwin só se debruçou sobre a
Interlocutor 2: Menciono o livro de Kahler, Disintegration o f explicação da ascensão evolutiva para o caso do homem. Nos seus
Forin, porque o autor diz que a sociedade moderna — sobretudo a escritos consagra-se com maior frequência à tarefa de explicar os
arte moderna — reflecte a desintegração de valores. E na sua crítica motivos por que existem diferentes formas em diferentes nichos
ao livro, Gombrich concorda com tal parecer e cita-o a si, embora ecológicos, o que constitui um problema bem distinto do de descrever
não me recorde em que termos. Mas, perante esta metáfora, não vejo a ascensão evolutiva.
como isso possa implicar a existência de mudança qualitativa em
novas formas derivadas da categoria Pr Pergunto se haverá um Popper: Não concordo com a forma geral como descreve os
momento em que tal aconteça. problemas de que Darwin se ocupou, como você diz. O que Darwin
pretendeu explicar na essência foi o seguinte. Disse-se repetidas vezes
Popper. A mudança qualitativa verifica-se com muita frequência. que o problema deixado em suspenso por Darwin foi o da origem da
Em regra, P e P acham-se vagamente relacionados e este frouxo elo vida. Desde que se lhe atribua isso, ele procura explicar a evolução...
entre ambos explica até certo ponto o carácter de novidade de P, e,
por conseguinte, a sua emergência. Esta significa que algo completa Interlocutor 3: Acho que o avô se interessou por esse problema,
e qualitativamente diferente pode surgir em tal processo. O melhor pois Erasmus Darwin acreditava que tudo provinha de um único
exemplo disto será a evolução da ciência. Após cada mudança elemento vivo. Mas tenho a impressão de que Charles Darwin não
estrutural da teoria científica, os problemas serão totalm ente lhe dedicou igual interesse. Não entendi por que o atacou quanto a
diferentes. Lembremo-nos, por exemplo, do problema de saber se o esse ponto. Não está em causa o facto de continuarem a existir formas
centro do universo é a Terra ou o Sol. E um problema já ultrapassado. inferiores de vida, pois uma forma inferior, dado o seu lugar no
Os nossos problemas são assaz prementes, mas já não se assemelham esquema ecológico global, poderá muito bem sobreviver apenas por
em nada a este problema específico. Quem é que hoje em dia quer

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ser uma forma inferior ou por achar-se perfeitamente adaptada às tipos de bacilos que foram eliminados para fins científicos em condições
condições habituais. de elevada assepsia, mas que produziram estirpes diferentes capazes
de sobrevivência. Não são o mesmo organismo, passando-se com
Popper: Claro, se fosse esse o caso. Mas quando falo de Darwin, eles algo de muito semelhante ao que acontece com o seu P — P
refiro-me em parte ao que agora costuma chamar-se darwinismo,
nomeadamente àquilo que Huxley designou por «nova síntese», como Popper: Trata-se de um organismo que pode originar o anterior
também lhe chamam os actuais biólogos em voga. Tudo remonta a e, nesse sentido, não constitui um organismo inteiramente novo, pois
esse livro de Huxley que talvez conheçam. Na verdade, deveria ter contém a memória de ser também o antigo organismo. Mas isso pouco
esclarecido que quando falo de Darwin refiro- me ao que até há alguns importa. As bactérias nunca morrem da maneira habitual que é gerar
anos atrás se chamou «neodarwinismo» e agora se denomina «nova uma progénie e morrendo depois; pelo contrário, produzem outros
síntese». indivíduos dividindo-se a si próprias. Assim, e considerando uma
bactéria actual, nenhuma das suas antepassadas morreu. Por outras
Interlocutor 3: É uma coisa bem diferente. palavras, continua a ser a mesma «coisa» que a bactéria original de
onde proveio. Portanto, poderá dizer-se o oposto do que o senhor
Popper: Quanto ao nicho ecológico, a característica mais sin­ disse: não se trata de um novo organismo, mas sim de um antiquíssimo
gular de certos organismos é o facto de o seu nicho ecológico ser organismo sob uma forma algo modificada de um organismo
quase ilimitado. Isso está bem patente na conhecida polêmica sobre extremamente antigo, tão velho quanto o são os organismos. O pro­
a contaminação dos planetas, da Lua e das estrelas devido à presença blema da individualidade é diferente no que respeita a bactérias devido
de naves espaciais americanas e russas. Teme-se que os Russos não a inúmeros aspectos, mas o ponto principal é o seguinte: certas pessoas
sejam suficientemente cuidadosos no que respeita a contágios. Que tendem a dizer «o Homem é admirável!». São pessoas que possuem
significa isto? Significa que atribuímos a alguns organismos inferiores critérios biológicos objectivos, não éticos — critérios biológicos
uma adaptabilidade quase universal. São capazes de viver sob as segundo os quais o homem é o organismo mais elevado. Claro que o
condições mais severas e extremas; os seres humanos resistem-lhes homem se adapta a toda a espécie de circunstâncias a que outros
apenas quando resguardados no interior de naves espaciais. Mas organismos não conseguem ajustar-se, salvo os mais ínfimos; portanto,
certos organismos inferiores quase não têm nicho ecológico e pensa- a capacidade de adaptação a todo o gênero de coisas não constitui
-se que consigam viver em qualquer lugar. Também é muito um critério de complexidade. Refiro-me a critérios biológicos, mas
interessante... na próxima lição apresentarei outros critérios recorrendo ao mundo
3. No entanto, acho que não existem critérios biológicos que permitam
Interlocutor 3: Talvez seja um puro erro. afirmar que certos organismos são superiores a outros. Pode dizer-se
que são mais complexos, mas essa maior complexidade pode ser
Popper: Não é erro. Descobriu-se que certos seres vivem e atribuída a outros critérios — à inadaptabilidade, etc. Assim, quando
sobrevivem mesmo depois de congelados ou liofilizados. Vivem quase o organismo se torna muito complexo, então quase todas as mutações
indefinidamente sob as condições mais rigorosas. Não será errado genéticas — quero dizer, quase todas as mutações — são letais. Devido
afirmar-se que se essas formas se introduzissem numa nave espacial, à complexidade do organismo, qualquer desequilíbrio provocado pela
poderiam sobreviver ao voo; é muito possível. Por isso se discutiu o mutação revela-se fatal. O mesmo é dizer que a grande maioria das
problema recentemente. mutações é letal. Aquilo que o senhor disse acerca da modificação do
organismo demonstra que a capacidade de mudança dos organismos
Interlocutor 3: Disse que talvez fosse puro erro porque já não se inferiores é maior devido à sua menor complexidade. Portanto, do
tratava do mesmo organismo. Refiro-me especificamente a certos ponto de vista biológico, esta complexidade representa uma enorme

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desvantagem e não necessariamente uma vantagem. Depende do Interlocutor 4: Como estabelece a diferença entre aplicá-la num
caminho a que a complexidade nos conduz. Claro que não afirmo caso e não noutro?
que esta seja prejudicial ou algo de semelhante, mas sim que, em si
mesma, não constitui uma vantagem. Assim, como se recordarão, Popper. Porque as previsões da teoria de Einstein são muito
recorri a um pequeno diagrama da árvore evolutiva, colocando-a na concretas e também porque até agora não foi possível fazer quaisquer
horizontal e não na na vertical e disse: estamos perante um aumento previsões no que toca a teorias evolucionistas. Penso que uma
de diversidade, o que, entre outras coisas, significa também aumento vantagem da minha teoria é conter pelo menos um certo grau de
de com plexidade. Tudo começa pelas coisas simples e elas previsão; isto é, conquanto a especialização hereditariamente
sobrevivem. Além destas, porém, surgem ainda as coisas complexas. implantada possa ser bem sucedida no presente, desaparecerá de
Chega-se assim a um aumento de diversidade, mas não cada vez mais uma maneira ou de outra se as condições se alterarem. Proponho
elevada. Penso que isto é uma afirmação objectiva, ao passo que falar também a teoria sobre o modo como se verifica essa especialização
de evolução de formas superiores significa trazer à cena uma espécie hereditária. Além disso, na sua formulação constam ainda outras
de antropomorfismo. Julgo-o justificável, mas não precisamente numa previsões, que não posso referir neste momento. O ponto básico da
perspectiva biológica. Ou seja, justifica-se uma visão antropomórfica minha teoria consiste em que as mutações só têm êxito quando
e o facto de se considerar o homem como o animal mais elevado, concordam com modelos de comportamento já estabelecidos. Quer
embora isso não constitua um pensamento com carácter biológico. isto dizer que uma mudança comportamental antecede a mutação.
Por exemplo, não há muito tempo gerou-se a ideia —■ainda em vigor O caso é verificável e, em princípio, também a previsão. Dou-lhe
e bastante enraizada — de que a vida foi trazida para a Terra por um bom exemplo, pois acho preferível concretizar o que digo: a
meteoritos contaminados. Foi uma ideia muito persistente há cem evolução do bico e da língua do pica-pau. Pergunte a si próprio o
anos, digamos, ou talvez há um pouco menos, pelo menos há setenta que surgiu primeiro, se uma mudança de paladar ou de anatomia, e
anos. Hoje em dia perdeu algum interesse, apesar de se continuar a verá de imediato que se a modificação anatômica ocorresse antes
investigar os meteoritos também sob esse aspecto, mas as opiniões da do paladar, o pica-pau não saberia o que fazer com o seu novo
dividem-se sobre se infectam ou não a Terra. Isto mostra que apetrecho, que se revelaria mesmo fatal. Porém, se ocorresse antes
atribuímos às formas de vida interiores um enormíssimo raio de acção a mudança de gosto por um novo gênero de alimento e se, devido a
que, no presente, se encontra para além do alcance humano; talvez tal mudança, o pica-pau picasse a madeira muito antes de dispor de
um dia rivalizemos com elas neste campo. Mas se acaso dispõem de bico, então as mutações que o ajudassem a perfurá-la com maior
tal capacidade, as formas de vida inferiores operam de modo muito facilidade e eficácia seriam de imediato seleccionadas. Podemos
simples. O seu método é bem mais simples do que o nosso e não tão generalizar o caso e afirmar que o factor predominante na evolução
dependente de aptidões especiais ou de folgança monetária. é o comportamento e este é regido por novos objectivos, de seguida
há novas aptidões e só depois surgirá a modificação anatômica. Esta
Interlocutor 4: Criticou a tese darwiniana — ou hipótese ou como modificação ocorre depois do comportamento, o que também explica
queira chamar-lhe — por se revelar insatisfatória porque explica em parte as tendências evolutivas. Como se vê, a minha teoria
demasiadas coisas. Também estende essa crítica à teoria do campo, à contém diversos pormenores susceptíveis de verificação experimen­
teoria geral ou restrita da relatividade e a qualquer outra teoria tal. Não sei se ela está. correcta, mas penso que é verificável.
especificada?
Interlocutor 5: Qual é a diferença relativamente ao que é proposto
Popper: Não, não! por Lamarck?

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE O MUNDO 3 E A EVOLUÇÃO EMERGENTE

Popper. Numa conferência realizada em Oxford há anos, sobre é diferente da que temos quando acordados; totalmente diferente, na
Herbert Spencer, disse que o problema de quase todas as sequências verdade. A relação com o tempo (tal como assinalarei quando discutir
de teorias reside no facto de uma nova teoria ter de imitar a anterior. a consciência) revela-se sobretudo muitíssimo importante nas formas
Assim sendo, a teoria darwiniana imita os efeitos lamarckianos. Por de consciência mais elevadas, estando talvez ausente por completo
assim dizer, Lamarck explica-se servindo-se de Darwin. A diferença nas formas inferiores. Assim, existirá porventura um número quase
é enorme no entanto, porque, de acordo com a minha teoria e a de ilimitado de graus de consciência. É deveras difícil concluir se os
Darwin, o lamarckismo está errado ao afirmar que os caracteres animais inferiores possuem consciência. Jennings, autor de um livro
comportamentais não são herdados e que apenas estimulam um sobre o comportamento dos animais inferiores, fornece imagens muito
modelo de selecção e não a herança em si própria. Isto significa que vividas de perseguições entre amibas, tomando-se quase impossível
o com portam ento cria um novo nicho ecológico! Um novo negar que a amiba não seja consciente em certo sentido, mas nunca
comportamento origina um novo nicho ecológico e depois a pressão no mesmo sentido atribuído aos seres humanos. Não se sabe nada
selectiva opera de modo a preenchê-lo. Trata-se apenas de uma sobre a consciência dos animais, é uma matéria de que temos apenas
simulação de Lamarck e não de uma teoria lamarckiana. E este de uma visão algo impressionista, o que não quer dizer que seja inútil
facto o ponto crucial do assunto: temos de simular a teoria de Lamarck, abordá-la. Assim sendo, não responderei à sua pergunta. Afirmo
mas há que saber fazê-lo. apenas que há ainda muito a dizer sobre o nosso esquema; por
Um dos aspectos da minha teoria pode ser exposto directamente exemplo, que explica a novidade de múltiplas maneiras. Aponto-lhe
desta maneira (muito simplificada e genérica, claro): em primeiro uma delas: a elaboração de qualquer nova TE muda todo o caso. Além
lugar surgem os novos objectivos; em segundo as novas aptidões; e disso, a situação em si modifica-se porque existem outros animais
em terceiro as novas tradições; cria-se assim um nicho biológico interactuantes. O meio ambiente altera-se permanentemente —
preenchido por pressões selectivas, o que se revela assaz perigoso. mesmo que não haja nenhum motivo, há sempre as alterações no ciclo
das manchas solares. O clima muda, todas as coisas mudam. Nós
interlocutor 6: De onde provêm esses novos objectivos? O que próprios modificamos as condições por meio de adaptação, e tudo
motiva esses novos modelos de comportamento? muda a toda a hora. Por conseguinte, as mudanças verificam-se de
modo constante, sendo impossível predizer o rumo que tomam. Oque
Popper. Resultam do esquema P , - y TE -*■EE P9 significa que Pl e P2 estão ligados por vínculos pouco estreitos, e é
daí que emerge a novidade. Teci anteriorm ente abundantes
Interlocutor 6: Será que esse novo objectivo — do pica-pau por comentários a propósito deste problema e disse que a ideia de evolução
exemplo — é consciente? emergente despertou sempre certas suspeitas nos cientistas, que
consideram que «emergência» é um conceito muito vago. Mas o nosso
Popper: Consciente? Falarei de consciência depois da próxima esquema fornece de facto um significado definido, permitindo explicar
lição. Mas, em termos aproximados, creio que existem muitos graus por que motivo a novidade surge ou emerge. E assim a evolução
de consciência, e é possível observar isso em nós próprios. O sonho emergente assenta agora sobre bases mais sólidas do que quando não
é sem dúvida consciente, mas de modo distinto da consciência em tinha o referido esquema. Sempre foi muitíssimo difícil compreender
estado de vigília, é consciente num sentido bem distinto. Por exemplo, a possibilidade de aparecimento de algo inteiramente novo. Claro
no sonho a memória quase nunca se mostra organizada. Embora o que as mutações ocorreram sempre, mas ficamos desapontados
sonho se alimente da memória, não temos memória do sonho nem quando examinamos os trabalhos realizados, pois verifica-se que
memória autêntica, apenas nenhuma memória. Não sonhamos que sucedem sempre as mesmas mutações. Na maioria das experiências
nos lembramos de algo ou só o fazemos por vezes, o que é com a Drosophila, o principal organismo utilizado na obtenção de
extremamente raro. No sonho, a nossa relação com o espaço e o tempo mutações, ocorrem repetidamente as mesmas mutações e são tão

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE O MUNDO 3 E A EVOLUÇÃO EMERGENTE

conhecidas que já lhes atribuíram nomes. Daí a questão de saber se completa? Não seria preferível que, em vez de propor um primeiro
será possível que algo de novo surja por meio da mutação, pois esta problema P/ e depois P propusesse posições intermédias com P
revela-se algo insatisfatória para explicar o aparecimento da novidade. p1 /Ae P
r o-?
É possível dizer-se apenas que, com o tempo, haverá novas mutações
ou outros fenômenos semelhantes. Mas quando se aponta o motivo Popper. Na realidade, na primeira lição apresentei algo desse
por que há uma mudança de circunstâncias que pode ser sistemática gênero. Posso mostrar-lhe. Escrevi o esquema no quadro.
— sobretudo existindo novos objectivos — a presença destes
objectivos faz com que a modificação de todas as coisas seja Interlocutor 8: Nesse caso, simplificou-o.
sistemática. Digamos que quando existe um novo objectivo resultante
da preferência por um novo alimento a pressão selectiva sistematizar- Popper: Claro, disse-o na altura. Trata-se de simplificação, mas
-se, e assim as mutações representam uma verdadeira vantagem. é suficiente para ilustrar a emergência da novidade.
O caso do pica-pau constitui um exemplo ilustrativo. Interrogamo-
nos com frequência sobre a razão da letalidade de todas as grandes Interlocutor 8: O senhor referiu-se a problemas, mas não disse
mutações. Além disso, não sabemos se as variações muito pequenas absolutamente nada sobre pseudoproblemas. Gostaria de saber se acha
produzem efeitos letais ou por que razão originam mudanças tão o conceito «pseudoproblema» demasiado simplista e se concorda com
significativas. Direi que o motivo é a existência de pressão selectiva o facto de pseudoproblema ser usado em termos absolutos quando
sistemática, proveniente de mudanças no meio ambiente ou de novos deveria sê-lo sempre em termos relativos; e ainda se a sua fórmula
objectivos. Mas, mesmo no primeiro caso, a pressão só funcionará se não é mais sugestiva, porque se PMrepresenta um problema em T
se desenvolverem de imediato novos objectivos. Um biólogo com então PN(ao qual ainda não se chegou) constitui um pseudoproblema
quem conversei há dias apresentou-me um bom exemplo: de que modo nesse sentido relativo; e se, partindo de TQ(quando PQé o problema),
os peixes desenvolveram pernas? Eis a resposta: quando certas áreas PMe PNtambém não serão pseudoproblemas. Trata-se de anacronismo
marinhas estavam na iminência de secar, os peixes foram obrigados com dois sentidos temporais: é tanto um velho problema ultrapassado
a deslocar-se de charco em charco, o que alguns ainda fazem hoje. como um novo problema ainda não abordado. Ou então é uma outra
Deu-se uma mudança ambiental, mas o facto decisivo foi os peixes forma de relatividade, visto ocupar-mo-nos de organismos sempre
terem respondido à alteração criando o objectivo de procurarem outras inseridos num meio ambiente. Será que o pseudoproblema de um
poças de água. Aqueles que não optaram por tal objectivo foram organismo num determinado meio ambiente pode ser um problema
provavelmente eliminados; os que responderam daquele modo criaram real para outro organismo desse mesmo meio ou para um tipo de
um novo objectivo. E eorn a mínima melhoria no âmbito da locomoção organismo semelhante num meio ambiente diferente?
em solo seco, com todos os elementos de aperfeiçoamento, este novo
objectivo terá constituído de imediato um novo e significativo dado Popper: Há aqui duas coisas distintas. Concordo consigo em
suplementar. Assim principiam a acumular-se as modificações geral, mas não tive tempo.de desenvolver o problema dos problemas,
ínfimas, mas apenas quando se reage a uma grande mudança ambiental ou seja, o problema dos diferentes gêneros de problemas, sobretudo
com uma mudança de comportamento e só quando esta última o dos diferentes sentidos. Aliás, quando falei de evolução biológica,
representa um novo objectivo. Claro que isto pode resultar de um dei ao «problema» o seguinte sentido: nós, seres humanos,
comportamento acidental de ensaio e erro, mas, seja como for, o observamos esses pobres animais e percebemos qual foi o seu
processo é o mesmo. problema. Como é óbvio, o animal não fazia a mínima ideia de que
havia um problema. Nós podemos empregar o termo «problema»,
Interlocutor 7: Posso perguntar-lhe se a sua fórmula está o animal não. E no caso dos cientistas passa-se algo de muito

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE O MUNDO 3 E A EVOLUÇÃO EMERGENTE

semelhante. O cientista pode ocupar-se de um problema, solucioná- inversamente relacionada com a sua velocidade; quanto maior for a
-lo e, ex postfacto, depois do facto, verificamos que o problema que distância, menor será a velocidade. Ora, esta formulação particular é
lhe interessava era bastante diferente. O exemplo de Schrõdinger é incorrecta em termos matemáticos; a única correcta é que o raio vector
elucidativo, mas há muitos mais e citarei um deles depois. Schrõdinger descreve áreas iguais em tempos iguais. A primeira constitui apenas
procurou resolver um problema, que em termos gerais era o seguinte: uma aproximação grosseira mas incorrecta. Na verdade, Kepler
como elaborar uma teoria de continuidade em Mecânica Quântica ou dispunha da formulação correcta mas desagradava-lhe porque
uma teoria em termos de continuidade matemática? Foi mais ou menos contrariava a sua ideia de harmonia em teimos de simplicidade, além
este o problema, e foi resolvido pela Mecânica Ondulatória. Anos de que a proporcionalidade era mais simples. Assim, e embora
depois — dois anos após Schrõdinger haver escrito diversos artigos dispusesse da lei correcta, exprimiu-a muitas vezes sob a forma errada,
sobre M ecânica O ndulatória — , Max Born forneceu a sua mas mais próxima do seu conceito de harmonia. Como devem saber,
interpretação pessoal. Aquilo que Schrõdinger considerara como na época grega a harmonia e a proporcionalidade achavam-se
distribuição contínua da carga eléctrica, era agora visto como a intimamente ligadas e, portanto, a lei da proporcionalidade adequava-
probabilidade de descobrir um electrão num determinado ponto. A se melhor à harmonia que Kepler esperava encontrar no mundo. Isto é
carga eléctrica deixava de ser continuamente distribuída, passando a um indício bastante claro do facto de ele não se ter apercebido de que
sê-lo a probabilidade de haver algures uma carga eléctrica — e os essa lei, e não a da harmonia, lhe solucionava o problema. Antes de
electrões, claro, eram descontínuos e não contínuos. Desaparecia Newton não se consideraria tal lei muito harmoniosa, e só a sua magistral
assim o problema de Schrõdinger, podendo agora dizer-se que ele e simples derivação da lei mostra como é possível derivá-la de maneira
solucionou um problema cuja existência desconhecia — o problema fácil e harmoniosa. Newton demonstrou que essa lei era válida para
da probabilidade de um electrão se achar num dado local. Mas este todos os movimentos em que uma força actue sobre um corpo a partir
problema particular foi descoberto por Bom apenas ex postfacto, de determinado centro. Não importa que tal força seja intensa ou igual
sem que Schrõdinger intentasse alguma vez solucioná-lo. a zero, constante ou fraca ou variável, repulsiva ou atractiva; importa,
Outro exemplo semelhante é o de Kepler, empenhado em re­ sim, a sua direcção para o centro. E daqui deriva a segunda lei de Kepler,
solver o problema da harmonia do universo. Aplicou-se bastante nesse uma lei de carácter extremamente geral e que Newton deduziu com
sentido e é do máximo interesse tudo quanto disse. Hoje em dia, mestria. Kepler, porém, desconheceu as suas implicações e por isso
porém, é mais conhecido por haver solucionado o problema das leis não lhe agradava a lei que ele próprio elaborara. Isto revela o que
que têm o seu nome. O seguinte indício mostra-nos quão pouco essas acontece com os problemas e por isso só muito depois é que nos
leis constituíram o seu verdadeiro problema: a segunda lei de Kepler apercebemos do verdadeiro problema que o cientista solucionou na
sustenta que o raio vector — ou seja, a linha entre o Sol e um realidade. Apercebemo-nos também da situação problemática com que
planeta — descreve áreas iguais em tempos iguais. Mas se traçarmos se confrontou, verificando-se portanto um hiato entre as duas: a maneira
uma elipse — o Sol aqui e o planeta ali — , verifica-se que quanto como ele viu a situação problemática é bem diferente da situação
maior for a distância entre o planeta e o Sol — isto é, deslocando-se problemática objectiva de que o cientista se ocupou. Esta diferença
o planeta a velocidade constante, maior ou menor — mais amplas tem grande importância.
serão as áreas descritas pelo raio vector. Como esta segunda lei de Quanto à sua outra pergunta sobre pseudoproblemas, trata-se de
Kepler postula que o raio vector descreve áreas iguais em tempos uma pergunta acerca das diferentes maneiras de empregar o termo
iguais, o planeta terá de mover-se mais devagar quando se encontrar «problema», nomeadamente do ponto de vista da percepção tardia
a maior distância do Sol do que quando está mais próximo. Kepler da natureza de um facto e do ponto de vista da pessoa ou do animal
compreendeu-o e formulou essa lei mas não lhe agradava porque não que actua sob determinadas pressões. Há muito a dizer acerca do
a considerava suficientemente harmoniosa. Assim, passou a designar assunto. Mas o facto de ninguém ter ainda chegado a um problema
essa lei do seguinte modo: a distância do planeta ao Sol está

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE O MUNDO 3 E A EVOLUÇÃO EMERGENTE

— não o ter descoberto ainda — , não significa que este seja um simples motivo de não conseguirmos resolvê-los. Uma teoria é
pseudoproblema. Pode ser bem real e importante, embora estando verdadeira ou falsa independentemente da possibilidade de podermos
ainda por descobrir. Em boa verdade, porventura levará anos a determinar a sua verdade ou falsidade, assim como um problema
reconhecê-lo e a formulá-lo de modo a poder lidar com ele, ou até pode ser real mesmo sendo insolúvel. É demasiado simples e
nunca se chegar a descobri-lo. Talvez a pessoa tenha a vaga sensação conveniente dizer que um problem a não existe quando não
de que algo está errado na sua teoria, experimentando tal sensação encontramos a resposta para ele. Talvez nem sequer se possa afirmar,
durante muitos anos sem saber ao certo do que se trata ou sem ser mesmo em princípio, o que se considera a solução de um problema.
capaz de explicitá-la de maneira a que ela própria ou outras pessoas Afirmar o que é válido como solução exige grande dose de gênio, e
resolvam o caso. Todavia, o problema não deixará de ser importante mesmo isso é muito diferente de apresentar de facto a solução. Estará
e nunca será anacrônico. Para a pessoa representará um problema porventura para além das nossas capacidades pessoais, ou mesmo
muito oportuno no momento em que elabora a teoria, e talvez seja para além das capacidades de todas as pessoas, ainda por muitos
mesmo o problema de que devia ocupar-se, embora não saiba dizer anos ou até para sempre. No entanto, o problema continuará a ter
que problema é esse. solução, mesmo que não saibamos indicá-la.
Há aqui todo um conjunto de possibilidades que também se Assim sendo, para quê estabelecer a diferença entre problemas
relacionam com o problema da demarcação. Portanto, não emprego metafísicos e problemas da ciência empírica? Para eliminar a
o termo «pseudoproblema» da mesma maneira que os filósofos Metafísica? Que pretendo significar quando falo de problemas
positivistas. Carnap, por exemplo (no seu Scheinprobleme in der «pseudo-cienííficos»? Por vezes afirma-se que um dado problema
Philosophie — Pseudoproblemas em Filosofia — e também no pertence à ciência empírica, embora a teoria proposta para o resolver
volume de Schilpp sobre ele), afirma que os problemas metafísicos não seja demonstrável mediante observações, isto é, não existem
são pseudoproblemas e que as afimações metafísicas são pseudo- observações possíveis que ajudem a decidir se a teoria é verdadeira
afirmações. Foi este o motivo que o levou a procurar um critério de ou falsa, embora o cientista que propõe a teoria pense que existam de
demarcação — para eliminar a Metafísica — e isto faz-nos recuar até facto. Freud, por exemplo, sustentou que a sua teoria psicanalítica
Wittgenstein, que diz que o significado de uma frase é o método da — originalm ente apresentada para solucionar o problema da
sua verificação; aliás, no Tractatus escreve que a ciência pode dizer histeria —- pertencia à ciência empírica. Porém não podia confrontá-
tudo quanto pode ser dito, e por isso não haverá questões sem resposta. -la com observações, visto que explicava o comportamento humano
Estas questões sem resposta foram denominadas «pseudo-questões» em termos de desejos inconscientes reprimidos, que eram compatíveis
ou «pseudoproblemas»; assim, quando Carnap e outros positivistas com tudo quanto é possível observar-se. Para muita gente, a solidez
atestam que um problema é um pseudoproblema, isso significa que da teoria freudiana consiste nesta compatibilidade com todas as
ainda não foram resolvidos porque ainda não se verificou se é possível observações possíveis, mas eu encaro-a como uma enorme fraqueza,
dar-lhes uma resposta. pois impede que seja testada e, portanto, impede também aprender
Concordo consigo em que tudo isto é demasiado simplista e talvez com eventuais erros. Designo estes problemas e teorias como
mesmo demasiado absoluto. Mas discordo que o significado de uma «pseudocientíficos»: a teoria pseudocientífica é empírica mas não
frase possa constituir o seu método de verificação, como também verificável através de observações, pois estas não ajudam a determinar
discordo que se possa — ou se procure — eliminar a Metafísica. se é verdadeira ou falsa. Contudo, é totalmente diferente dizer que a
Esta oposição tem sobretudo a ver com a existência de inúmeros teoria não é. verdadeira nem falsa. Com efeito, a teoria de Freud pode
problemas impossíveis de resolver, mesmo problemas científicos. Tais ser verdadeira a despeito da impossibilidade de ser testada — como
problemas não serão certamente solucionados recorrendo ao método também é diferente afirmar que não se pode resolver o problema.
proposto pelos positivistas, nem é possível verificar-lhes as soluções, Como é óbvio, esta diferença entre os problemas passíveis ou
dado que os problemas não se transformam em pseudoproblemas pelo não de confronto com a observação não visa eliminar problemas nem

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O rONHECIMENTO E ü PROBLEMA CORPO-MENTE O MUNDO 3 E A EVOLUÇÃO EMERGENTE

sugerir que as teorias pseudocientíficas são destituídas de significado à tentativa de fornecer na sua Enciclopédia uma explicação a priori
nem tão-pouco que elas não sejam verdadeiras nem falsas. Pretendo dos planetas.
apenas salientar um problema prático deveras importante: poder testar É este o gênero de coisas para o qual desejo chamar a atenção.
a teoria através da observação, porventura um problema de enorme Como é óbvio, Hegel não alegou que a sua teoria fosse empírica nem
importância. Se outro motivo não existisse, poderiamos poupar imenso procurou experimentá-la mediante observações, o que deveria ter
tempo, esforço e dinheiro se se soubesse de antemão que a teoria era feito. Mas não o fez, e isso revela a outra face da moeda.
confrontável com observações. Mas isso é bastante difícil e nem
sempre é possível dizê-lo, mas não deixa de ser muito importante.
Por exemplo, podemos consagrar vários anos à busca de
observações destinadas a demonstrar uma teoria compatível com todas
as observações possíveis, ou, por outro lado, à tentativa de refutar
uma teoria sem sequer pensarmos em compará-la com observações
capazes de refutá-la. O exemplo mais célebre deste caso será o de
Hegel. Como devem saber, na sua dissertação Hegel ocupou-se do
problema das órbitas planetárias. Segundo parece, Hegel acreditava
que era um problema resolúvel mediante o raciocínio puro, visto ter
procurado fornecer a p rio ri a prova das leis de Kepler. Hegel
concordava com Platão no que toca ao numero dos planetas e na
dissertação arquitectou a «prova» da existência de sete planetas
apenas, afirmando em especial a impossibilidade de qualquer planeta
se situar entre Marte e Júpiter. Em finais do século XVIII isto
constituía um problema deveras real pois parecia haver um vazio
muito amplo — bem maior do que o esperado — entre os dois
planetas. O astrônomo Bode assinalara-o e muitos dos seus pares
conjecturavam a existência de um planeta entre os dois astros. Foram
vários os astrônomos que na época se dedicaram ao problema,
chegando mesmo a formar uma organização especial a que deram o
nome de «Polícia Celeste», destinada à pesquisa de planetas
localizados entre Marte e Júpiter. Não se tratava, portanto, de um
pseudoproblema. Hegel, porém, admirava Platão e aparentemente
tentou refutar tal conjectura, não pensando sequer em confrontar a
sua «prova» com as observações. Predisse a impossibilidade da
existência do planeta, uma previsão infeliz, pois na altura em que a
divulgou já se assinalara um asíeróide —um pequeno planeta, na
realidade — entre os dois astros. O asteróide, Ceres, foi descoberto
no começo do ano em que Hegel concluiu a sua dissertação, e por
isso desconhecia a notícia. Mais tarde observaram-se outros asteróides,
e em data posterior foram descobertos os grandes planetas como
Neptuno e Plutão. Embora Hegel reconhecesse o erro, não se eximiu

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DESCRIÇÃO, ARGUMENTAÇAO
E IMAGINAÇÃO

Na última lição falei sobretudo de evolução e fiz um rápido


esboço de uma teoria evolucionista que pode considerar-se uma ligeira
revisão do neodarwinismo ou da «nova síntese», como agora lhe
chamam muitas vezes.
A minha teoria da evolução baseia-se no já referido esquema
quádruplo muito simplificado: Pl TE ->■ EE -> P1
Neste caso, TE pode ser uma teoria experimental ou, em termos
mais gerais, um ensaio experimental. EE, tal como nas vezes
anteriores, é a eliminação de erros, não necessariamente através do
debate crítico, mas também, por exemplo, por meio da selecção natural
ou devido ao fracasso em solucionar o problema P . P7 representa o
novo problema e pode resultar da eliminação de erros ou do ensaio
experimental.
As minhas teses básicas inserem-se nas seis asserções seguintes:

1. Todos os seres vivos estão permanentemente empenhados na


resolução de problemas, nos termos deste esquema quadripartido
muito simplificado.
2. Os organismos individuais solucionam os respectivos
problemas por meio de ensaios experimentais, que se constituem assim
modelos em comportamento.
3. As espécies solucionam os seus problemas compondo modelos
genéticos através de tentativas, incluindo novas mutações que são
ensaiadas em novos indivíduos, intervindo aqui a selecção natural.
4. O esquema quadripartido explica a evolução emergente, ou

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE DESCRIÇÃO, ARGUMENTAÇÃO E IMAGINAÇÃO

seja, o aparecimento ou emergência de algo inteiramente novo. Visto antes do ensaio de novos meios (o uso de barbatanas para locomoção
P e P, estarem relacionados apenas de maneira vaga, P, será em solo seco) e, sobretudo, antes do ensaio de novas capacidades. Só
frequentemente muito diferente — mesmo em termos qualitativos — depois de os novos objectivos com portam entais e as novas
de P . Por exemplo, no que diz respeito à evolução das espécies, P capacidades terem sido descobertos, e só após se tornarem
será talvez o problema do aumento da fertilidade, um dos mais tradicionais, é que as pequenas e propícias mutações genéticas
importantes factores de sobrevivência de um grupo, e P7representará anatômicas adquirirão suficiente relevância e autêntica vantagem,
o novo problema de como fugir à sufocação provocada pela progénie pesando assim na selecção natural.
(compare-se com o problema dos transportes e do trânsito). Ou, a
nível do organismo individual e do seu comportamento, P ; será devido Portanto, a sequência evolutiva típica é a seguinte: em primeiro
ao lento desaparecimento de lençóis de água, o que suscita nos peixes lugar altera-se a estrutura dos objectivos, modificando-se depois a
problemas de escassez alimentar. TE consistirá assim numa mudança das capacidades; só então ocorre a mudança da estrutura anatômica.
de comportamento individual. Por exemplo, o organismo em causa É evidente, porém, que não excluo outras possibilidades. O pro­
descobrirá um novo objectivo comportamental — deslocar-se sobre blema actual de maior importância é a aplicação da teoria da evolução
solo seco de um charco de água para outro, criando assim um novo ao homem. De certo modo, a minha lição de hoje foi sobre a natureza
problema (PJ o de como passar de um para outro. P, foi o problema humana, embora me desagrade o emprego de uma expressão tão vaga.
da obtenção de alimento; P2 o de movimentar-se sobre solo seco. De acordo com a minha primeira tese, o homem diferencia-se
É óbvio que estes dois problemas são muitíssimo distintos em termos dos animais pela peculiaridade da sua linguagem, que é diferente de
qualitativos. Portanto, P? pode ser um problema inteiramente novo, todas as linguagens animais porque preenche pelo menos duas funções
mas que nunca surgiu antes (embora se possa manifestar por fases), que estas últimas não preenchem. Chamar-lhes-ei função «descritiva»
enquanto P era um problema bastante antigo — obter alimento em ou «informativa» e função «argumentativa» ou «crítica». São funções
quantidade suficiente. E assim o nosso esquema explica a emergência típicas superiores, características dos seres humanos.
evolucionária da novidade qualitativa. Com efeito, um problema novo Estas funções formam também a linguagem do homem na
suscitará novas respostas, ou seja, novas tentativas de compor­ qualidade de área primeira e básica do mundo 3 humano.
tamento. Deste modo, a evolução emergente, a evolução da novidade, Por outras palavras, teremos:
explica-se através da possível novidade de P2 relativamente a Pr
5. De acordo com o esquema, os novos objectivos compor- 3. produtos (tal como livros, histórias, mitos: linguagem);
tamentais, como o de atingir outras reservas aquáticas deslocando- 2. disposições ou tendências orgânicas;
-se sobre terra, serão acompanhados de novas aptidões que poderão 1. estados físicos.
tornar-se tradicionais no seio de uma população de peixes. Se tal
acontecer, as mutações anatômicas que confiram maior facilidade, Enquanto as linguagens animais não transcendem a área das
mesmo que mínima, serão imediatamente vantajosas para o exercício disposições ■ — tanto disposições para exprimir certos estados
das novas capacidades, qüe por sua vez serão favorecidas pela selecção emocionais como para reagir a tal expressão — , as linguagens
natural. humanas (que, como é óbvio, também são disposicionais) transcendem
6. Portanto, as mudanças de comportamento revelam-se mais a área das disposições, tornando-se assim indispensáveis ao mundo 3.
importantes do que as anatômicas, pois estas não têm possibilidade A minha segunda tese fundamental é que, por consequência, o
de êxito se não beneficiarem modelos de comportamento pré-existentes poder imaginativo do homem pode desenvolver-se segundo modelos
e bem sucedidos; o comportamento é a grande arma da evolução. completamente novos. De facto, ao inventar a linguagem descritiva,
Observa-se também que na evolução do comportamento o ensaio o homem adquiriu meios para dizer coisas verdadeiras e também
experimental de novos objectivos (determinado tipo de alimento) surge outras que não o são — inventa histórias, contos de fadas e mitos.

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE DESCRIÇÃO, ARGUMENTAÇÃO E IMAGINAÇÃO

Dispõe assim dos meios necessários à invenção imaginativa, criando oportunidade de dizer, em vez de aperfeiçoarmos a acuidade visual
um gênero inteiramente novo de mundo fantástico. O relato verdadeiro ou de aumentarmos a velocidade das pernas, criamos óculos e
explicará uma ocorrência — «O veado morreu porque o atingi com automóveis.
uma flecha» — mas, para o inexplicável, forjar-se-á uma história — Butler teve razão ao sublinhar que a evolução de órgãos
«O rei morreu porque Zeus o fulminou com o seu raio». E assim se exossomáticos, ou seja, de ferramentas, é particularmente caracte­
inventam teorias explanatórias. rístico da espécie humana. Mas, à semelhança de quase todas as
A capacidade de inventar tem raízes na função descritiva peculiaridades humanas, esta evolução tem os seus antecedentes
(hereditariamente implantada) da linguagem humana. animais. O ninho de uma ave, a teia de uma aranha ou as represas
As histórias, os mitos e as teorias explanatórias constituem construídas pelos castores são apenas três exemplos de instrumentos
os primeiros e mais típicos habitantes do mundo 3. Seguem-se-lhe exossomáticos produzidos por animais. E, tal como acabámos de ver,
os relatos através de imagens, tal como as descrições de caçadas a linguagem, mesmo a linguagem escrita, também possui esses
descobertas em cavernas. Durante muito tempo, e além da linguagem antecedentes de natureza animal.
verbal, as imagens representaram os únicos meios narrativos dos Estes produtos do comportamento animal têm uma base genética,
acontecimentos, e deste processo derivam os ideogramas c as conquanto alguns deles também contenham uma componente de
linguagens escritas. Na parte restante da lição ocupar-me-ei da tradição, e constituem o antecedente de animalidade que se
evolução das funções da linguagem específicas dos seres humanos. transformaria no mundo 3 dos seres humanos.
Agora debruçar-me-ei sobre a globalidade do esquema, o que exige Importa notar que estes antecedentes animais — estes terceiros
estabelecer a diferença entre linguagem animal e linguagem mundos animais — equivalem ao nosso próprio mundo 3 autônomo.
humana. A execução da teia pela aranha ou do ninho pela ave, apesar de serem
As linguagens animais, incluindo as humanas, podem ser actos instintivos, adequam-se à situação problemática objectiva gerada
consideradas tipos de conhecimento subjectivo, ou seja, disposições pelos instintos do animal em consonância com as condições
ou tendências para um. determinado comportamento. Também é ambientais específicas que ele não tem possibilidade de alterar. Apesar
possível encará-las na qualidade de al-go físico e objectivo — de de poder optar por um nicho ecológico ou ambiental mais propício,
ferramentas exossomáticas desenvolvidas no exterior do corpo e ainda assim o animal tem de confrontar-se com as consequências
comparáveis a ninhos de aves. involuntárias resultantes da sua escolha.
Esta última interpretação refere-se, claro, à linguagem humana Um exemplo simples é fornecido por um trilho aberto por um
escrita, impressa ou gravada. Mas tem precursores em certas animal no meio da floresta, e que tanto pode ser considerado como
linguagens animais, como no caso dos cepos ou troncos de árvore uma ferramenta ou uma instituição social. Onde quer que o animal
utilizados por diversas espécies caninas ou ursinas como estações de tenha rompido a vegetação rasteira pela primeira vez, a passagem
correio onde depositam os seus odores pessoais destinados a delimitar torna-se mais fácil e, de acordo com algo semelhante à lei do menor
certas áreas tidas como seu território pessoal, deixando nelas avisos esforço, o caminho passa a ser percorrido por um maior número de
de «Propriedade privada. Os intrusos serão punidos!». animais — tanto amigos como inimigos — e deste modo originam-
Segundo os investigadores do comportamento animal, o canto -se novos e inesperados problemas.
das aves possui idêntico significado. Passemos à minha terceira tese principal, que é a seguinte: embora
Na minha primeira lição aludi às ferramentas exossomáticas em os animais tenham desenvolvido o seu próprio mundo 3 formado
termos gerais. Esta ideia deve-se a Samuel Butler, autor de Erewhon, pelas linguagens, nenhum criou algo que se pareça com o
grande admirador e primeiro crítico de Charles Darwin. Butler conhecimento objectivo. Todo o conhecimento animal tem carácter
observou que enquanto os animais desenvolvem novos órgãos, os de disposição. E apesar de algumas disposições evoluírem por
seres humanos desenvolvem novas ferramentas; tal como já tive imitação — ou seja, por tradição, o que se aproxima claramente do

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE DESCRIÇÃO, ARGUMENTAÇÃO E IMAGINAÇÃO

conhecimento objectivo — , continua a haver um grande fosso


relativamente ao conhecimento objectivo humano.
Portanto, a existência do conhecimento objectivo parece ser um Função argumentativa
Funções linguísticas superiores ou crítica
dos poucos factos biológicos importantes que diferenciam com
(base do mundo 3)
bastante nitidez os animais dos seres humanos. Por conseguinte, seria Função descritiva
conveniente investigar a emergência do conhecimento objectivo ou informativa
estudando a sua evolução.
A quarta tese é que não obstante ser manifesto que o homem Função comunicativa
evoluiu mediante o progresso de ferramentas exossomáticas, Funções linguísticas inferiores
nenhuma delas — nem mesmo os paus — possui base hereditária Função expressiva
especializada, ao contrário do que, na aparência, acontece com as
ferramentas exossomáticas desenvolvidas pelos animais. O facto
em si é interes-sante e surpreendente. Todavia, há uma grande As funções da linguagem inferiores propostas por Bühler são as
excepção a esta regra: as funções da linguagem específicas dos seres funções (auto)expressiva e comunicativa; a função superior é
humanos que tornam possível o conhecimento objectivo têm descritiva ou informativa. A segunda função superior imprescindível
fundamentos hereditários especializados e altamente específicos, ao conhecimento objectivo — e que acrescentei ao esquema de Bühler
como em seguida explicarei. — é argumentativa ou crítica.
O conjunto destas quatro teses resulta da conjectura de que a O carácter biológico e evolutivo deste esquema consiste em que
evolução do homem lhe conferiu algo que é típica e especificamente estando presente qualquer destas funções, o mesmo acontece com
humano: o instinto genético de adquirir, por im itação, uma todas as que estão situadas abaixo dela. Portanto, nem o animal nem
linguagem específica e apropriada como veículo do conhecimento o homem podem comunicar sem que exprimam os respectivos estados
objectivo. fisiológicos íntimos. E o homem será incapaz de descrever ou de
Ocupemo-nos do problema da análise das funções inferiores e informar os outros sobre qualquer coisa sem que comunique ou se
superiores da linguagem humana. Por «funções inferiores» entendo exprima. E também lhe é impossível argumentar sem que ao mesmo
aquelas que, apenas fundamentadas em disposições, são comuns à tempo active as três funções que se localizam abaixo do nível
linguagem humana e animal; as «funções superiores» são específicas argumentativo.
do homem e constituem a base do mundo 3. Não pretendo discutir aqui outras funções superiores como a
Karl Bíihler foi o primeiro a propor uma teoria destas funções, admonitória, a exortativa, a estimuladora, a laudatória e a derrogatória.
uma teoria pouco em voga. Que eu saiba, tem sido ignorada tanto A função de comando é, na essência, um aspecto das funções inferiores
por filósofos como por psicólogos, apesar da sua enorm e — «Não entrar nesta propriedade, senão...!».
relevância. Em termos biológicos, a função de comando, como a de certas
Bühler distinguiu três funções, duas inferiores e uma superior. drogas, destina-se a dar vazão a determinadas acções ou reacções ou
A estas, acrescento várias outras superiores, e uma delas é sobretudo sequências de acções e de reacções. Note-se que o emprego de sinais
essencial ao conhecimento objectivo, que contarei como quarta de computador pode ser interpretado como uma espécie de linguagem
função. que nos comanda. O mesmo é válido quanto ao código genético. Em
ambos os casos podemos interpretar a ordem de modo a que também
contenha a descrição daquilo que a ordem pretende conseguir. Mas
há todas as razões para crer que o computador ou a célula não a
interpretem assim.

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE _______________________DESCRIÇÃO, ARGUMENTAÇÃO E IMAGINAÇÃO

Ilustrarei o meu esquema das quatro funções principais da Por conseguinte, a descrição envolve normalmente expressão e
linguagem com alguns exemplos. Quando o homem ou o leão comunicação. Segundo Bíihler, porém, isto não transforma o acto
bocejam, dão expressão a um estado fisiológico do organismo. Se o descritivo num caso comunicativo especial ou a comunicação num
homem o fizer sozinho no seu quarto, o bocejo tem apenas, qua caso expressivo especial, o que é deveras importante. Com efeito, a
linguagem, uma função auto-expressiva; mas se bocejar em auto-expressão inevitável contida na descrição pode ter importância
companhia, poderá transmitir aos outros o seu estado de sonolência. mínima quando comparada com a descrição. E numa boa palestra a
Se fizerem a experiência, verificarão que, por meio de bocejos resposta dos ouvintes pode referir-se sobretudo ao seu conteúdo — a
sugestivos e persistentes — partindo do princípio de que aparentam certos objectos do mundo 3 — e apenas uma parcela ínfima dessa
naturalidade e inconsciência — , não só induzirão outras pessoas a resposta incidirá sobre a inevitável auto-expressão do conferencista.
bocejar, mas também as ajudarão a adormecer de facto. Portanto, a Neste caso, os termos «função descritiva» e «função informativa»
função do bocejo pode não ser apenas função expressiva, mas também devem considerar-se num sentido bastante lato, pois visam um tipo
comunicativa, como se fosse uma espécie de «contágio». De modo de discurso que descreva com verdade ou falsidade determinado
semelhante, a expressão do medo tende a gerá-lo noutros indivíduos. estado de coisas, que poderão ir de tópicos tão concretos como o
Mas nem toda a comunicação é de tipo «contagioso». Os actos estado do tempo em Atlanta ou o vosso estado de saúde, até factos
expressivos podem ser comunicativos de várias maneiras. Por exemplo, tão abstractos como a falta de validade do teorema de Pitágoras na
os sintomas de medo encorajarão porventura um agressor, ao passo Geometria não-euclidiana ou a indiferença de filósofos e psicólogos
que os de coragem o dissuadirão. E as expressões equivalentes a ordens, pela teoria de Bíihler.
como «Está calado!», podem ou não constituir um tipo de comunicação Mas regressemos à tese de Bíihler de que é errado interpretar a
contagiosa, conforme sejam sussurradas ou gritadas. descrição como um caso comunicativo especial e a comunicação como
Segundo Bíihler, na generalidade a comunicação ocorre sempre um caso expressivo especial. O ponto de vista de Bühler pode ser
que um movimento expressivo de um indivíduo actua sobre outro na formulado da seguinte maneira: em termos biológicos, a função
qualidade de sinal libertador da resposta deste último. Como é comunicativa da linguagem é diferente da função expressiva;
evidente, há sinais que não são expressões. Mas é significativo que a acrescentarei a isto que, das duas, a função comunicativa é a mais
maioria dos filósofos da linguagem não tenham ido além da expressão importante no aspecto biológico. Do mesmo modo, a função descritiva
e da comunicação; aliás, só um número reduzido deles estabeleceu a da linguagem é diferente da função comunicativa; acrescentando eu
diferença entre ambas. A tudo chamam «com unicação» ou que esta continua a ter maior importância em termos biológicos.
«expressão», destacando uns a primeira e outros a segunda. Em boa Interessa notar que, conquanto a função descritiva desempenhe o
verdade, ninguém salienta as outras funções. seu papel pleno apenas na linguagem humana, em certas linguagens
Observemos agora a terceira função, afunção descritiva. Enquanto animais parecem ocorrer elementos aproximativos desta função.
falo, como neste momento, descrevo diversas coisas. Descrevo a teoria O melhor exemplo disso é constituído pela dança das abelhas. Uma
de Bíihler e procuro fornecer alguns pormenores sobre ela. Também abelha que dança principia por exprimir excitação face à descoberta de
descrevo vários tipos de expressão do homem e dos animais e a réplica um novo local para recolha de alimento. Em segundo lugar, comunica
que outros homens e outros animais lhes dão. às outras abelhas essa excitação. E, em terceiro lugar, pode dizer-se
Mas é-me impossível falar õu sequer preparar a lição sem que que lhes descreve o rumo reportando-se à posição do sol e até mesmo
exprima um ou outro estado orgânico pessoal. a distância em relação à colmeia — e é esse mmo que as abelhas têm
A minha voz e o meu sotaque, por exemplo, revelam-se por certo de seguir para achar o referido local. Por outras palavras, descreve a
sintomáticos do meu historiai, sendo portanto expressivos. Também posição em termos de coordenadas entre a colmeia e o sol.
não posso falar sem que comunique convosco, ou seja, sem que liberte Todavia, há todas as razões para crer que a abelha é incapaz de
uma resposta emocional em vocês. dizer mentiras ou de contar histórias. Pode cometer erros — podemos

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iludi-la e induzi-la em erro — mas tais erros raramente suscitam Ainda hoje há sinais de que esse passo foi muitíssimo difícil.
problemas biológicos nem as leva a desenvolver qualquer método de Não está assim tão longe o tempo em que discordar de alguém
interrogatório crítico à abelha portadora de informações nem qualquer sobre m atéria de informação factual significava acusá-lo de
debate acerca da sua credibilidade. falsidade, o que equivalia a desafiá-lo para um duelo. O método
Contar histórias e dizer mentiras parece ser apanágio do animal mais primitivo de conviver com informação contraditória parece
humano. Mas não pretendo afirmar que o homem seja o único ani­ ter sido o de deixar que os informadores resolvessem o caso entre
mal capaz de mentir. Tanto Ernest Thompson Seton como Konrad si. Isto explica o motivo por que tardou tanto que a verdade objectiva
Lorenz descreveram comportamentos de cães que poderíam ser ou factual de uma informação — ou seja, a sua correspondência
qualificados como dissimulados. A propósito, o cão estudado por com os factos — se diferenciasse com clareza da veracidade
Lorenz possuía uma personalidade encantadora e só recorreu à subjectiva do informador.
dissimulação para encobrir um erro embaraçoso. Mesmo nos seus estados mais primitivos, o uso descritivo da
A linguagem humana é descritiva no sentido de ser possível linguagem levou-nos a colocar o problema crucial de saber a razão
contar histórias verdadeiras ou falsas. Isto conduz às diversas da sua importância biológica e do seu enorme sucesso ao ponto de se
operações lógicas de negação ou rejeição, quer dizer, ao juízo crítico, ter tornado num traço hereditário. Na verdade, tudo aponta para o
como rejeitar uma reivindicação, um alvitre ou uma informação. facto de esse emprego se haver integrado na nossa hereditariedade
Podemos dizer «esta informação não é verdadeira». Devido ao modo — a diferença de desenvolvimento linguístico entre a criança e o
como os animais superiores treinam as crias, não será excessivo chimpanzé ou o cão não resulta de mero condicionamento. O cão
imaginar que os nossos ancestrais tenham principiado a evoluir quando aprenderá a compreender muito bem alguma linguagem, incluindo o
diziam aos filhos «não façam isso!», o que significa que a negação seu próprio nome e os de diversas pessoas; mas embora perceba o
ou rejeição se iniciam com uma ordem semelhante a «não!». Os cães, significado de «vamos passear», não há razão para inferirmos que tal
por exemplo, compreendem-no com bastante facilidade. Deste gênero significado seja totalmente descritivo, apesar de criar nele certa
de situação passou-se porventura a «não acredito nisso!» ou «não expectativa.
acredito nele!». Á negativa «não» continua a funcionar desta e de As diferenças entre diversas estruturas gramaticais descritivas
outras maneiras. — as diferenças entre perguntas e respostas e entre muitas outras —
Claro que as coisas podem ter evoluído de modo bem diferente. devem possuir algum gênero de base genética inata. É óbvio que não
Há que contar com a influência das perguntas e também da curiosidade poderão desenvolver-se sem estím ulos apropriados ou sem
infantil, que as crianças compartilham com os gatinhos e com os outros oportunidades práticas, ou seja, sem aprendizagem por meio de ensaio
animais jovens. Seja como for, deu-se um grande passo em frente e de erro. Mas a imitação não se verifica na ausência de um impulso
quando uma informação descritiva se tornou problemática e foi instintivo e selectivo para imitar, na falta de um objectivo com-
rejeitada. A função descritiva só se diferencia por completo da função portamental, com carácter de tendência inconsciente. Tal coisa trans­
comunicativa quando se dá o referido passo, um passo que quase parece com enorme clareza no caso de Helen Keller. Claro que
atinge a quarta função. nenhuma linguagem humana particular é hereditária; as linguagens e
Dado que as funções expressiva e comunicativa se acham gramáticas são tradicionais. Porém, o impulso, a necessidade, o
geneticamente mais enraizadas do que a função descritiva, o acto de objectivo e a aptidão ou a capacidade imprescindíveis à aquisição da
escutar uma história — e sobretudo vê-la representada em cena — gramática constituem elementos hereditários; herdamos apenas as
propicia o arrebatamento emocional e tende a gerar uma espécie de potencialidades, o que já é bastante.
aceitação, mesmo sabendo que se trata de simples fantasia. Interessa perguntar por que motivo progrediu esta base genética
A publicidade assenta quase por completo neste efeito comunicativo, específica de aquisição de linguagens descritivas. O problema é tanto
e também no «contágio» comunicativo a que atrás aludi. mais interessante quanto é certo que as linguagens parecem ser a

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE DESCRIÇÃO, ARGUMENTAÇÃO E IMAGINAÇÃO

unica ferramenta exossomática dotada de fundamento genético par­ cultural; o emprego de paus não existe em todas, mas a narrativa oral
ticular. sim. Portanto, diria que a invenção de ferramentas e a sua abundância
Na qualidade de tentativa de resolução de tal problema, e a título e diversidade se associam à capacidade de inventar histórias. Creio
experimental, proponho a seguinte lista dos efeitos biologicamente que os antropólogos estão errados, pois encaram a mão humana, capaz
importantes da evolução da linguagem descritiva: de empunhar um pau e de agarrar uma pedra, como o atributo prin­
cipal do homem (com a possível excepção do cérebro, dada a sua
1. Maior consciência do tempo e, portanto, substituição parcial importância). O comportamento e a função comportamental situam-
da antecipação instintiva por uma previsão mais flexível e consciente -se sempre em primeiro lugar e foram eles que tornaram possível a
dos acontecimentos futuros — esta antevisão resulta da posse do flexibilidade e a incrível riqueza das ferramentas humanas.
conhecimento objectivo. Exemplo: o conhecimento da mudança das Será desnecessário acrescentar mais acerca da quarta função da
estações. linguagem, a crítica e argumentativa, que obviamente emana da função
2. Formulação de perguntas e, com esta, o início da objectivação descritiva e informativa, com a qual se relaciona estreitamente. Não
de problemas até aí apenas sentidos — como fome e frio e a maneira existe grande diferença entre as persistentes perguntas da criança e o
de evitá-los. cerrado interrogatório a um portador de informações suspeitas. Mas
3. Desenvolvimento da faculdade imaginativa (também presente enquanto no primeiro caso as perguntas pertencem à função descritiva,
nos animais), aplicada à elaboração de mitos e ao relato de histórias. no segundo pertencem à função crítica. Toda a conversação ou mesmo
4. Desenvolvimento da capacidade inventiva; o método experi­ a maioria das histórias é em grande parte argumentativa e crítica.
mental com eliminação de erros pressupõe uma reserva de tentativas, Inventa-se mitos na qualidade de teorias explanatórias e esses mitos,
ou seja, de novas idéias. A imaginação aumenta consideravelmente tal como todas as explicações, possuem um aspecto argumentativo,
esta reserva, de modo que o método de ensaio e erro pode conduzir a apesar de assumirem quase sempre uma forma primitiva. Também é
imensos tipos de respostas comportamentais, incluindo a invenção e óbvio que a função descritiva não pode desenvolver-se com pleni­
o emprego de ferramentas e de instituições sociais. Uma delas é a tude na ausência da função crítica — somente possuindo a função
própria linguagem, que forma a base de muitas outras, como a argumentativa e crítica é que surgirá a negação ou algo de semelhante,
instituição religiosa, a jurídica e a científica. e isto, claro, enriquece grandemente a função descritiva e informativa.
5. A implantação tradicional — mais do que a genética — destas Do ponto de vista biológico, a quarta função continua ainda a
formas de comportamento, ferramentas e instituições sociais recém- desenvolver-se, não se achando tão bem implantada na nossa
inventadas. Tais formas tradicionalizaram-se e assim permaneceram hereditariedade como as outras, embora o aparecimento de crianças-
devido a requisitos de flexibilidade. O mesmo é válido quanto às prodígio no campo da Matemática indique a existência de tentativas
diferentes linguagens humanas. genéticas operando nesse sentido. Não há dúvida porém de que,
subjacente ao uso crítico e argumentativo da linguagem, existe uma
A minha lista experimental patenteia algumas vantagens base genética considerável. As vantagens biológicas são mais que
biológicas da linguagem descritiva, todas elas possuidoras de evidentes — o seu emprego permite-nos deixar morrer as teorias em
antecedentes animais. Mas o dado fulcral residirá na terceira alínea vez de nós.
— conquanto se descubra um certo grau de capacidade inventiva em Chegamos agora ao problem a que conclui esta lição: o
animais superiores, é óbvio que esta aumenta imenso com a invenção desenvolvimento de idéias regulamentadoras da verdade objectiva e
da narrativa de histórias; e por isso não é exagerado realçar o papel da validade.
que desempenha no progresso das civilizações mais avançadas. No homem, a virtude subjectiva da veracidade poderá ter sido
Tanto quanto se sabe, o relato de histórias ocorre em todas as percepcionada antes mesmo da evolução da função crítica da
comunidades humanas, independentemente do seu desenvolvimento linguagem. Essa virtude identifica, com certa dose de candura, a

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE DESCRIÇÃO, ARGUMENTAÇÃO E IMAGINAÇÃO

tendência para a sinceridade com a tendência para dizer apenas o qne e teorias. Tal como procuramos avaliar criticamente uma história ou
de facto ocorre. Engloba mesmo, embora de maneira confusa, a ideia uma teoria, também procedemos assim para apreciar um argumento
de verdade objectiva — a ideia de que uma história é verdadeira se crítico a favor ou contra uma história ou uma teoria.
traduz os factos tal como são, tal como na realidade aconteceram. Estamos perante a situação seguinte: a ideia de verdade diz
É esta a ideia de verdade objectiva — a ideia de que o contador de respeito à descrição e à informação, mas surge apenas em presença
histórias fala verdade se narra os factos tal como são ou como do argumento e da crítica, porque afirmar que uma teoria é verdadeira
realmente se passaram — e encontra-se algo misturada com a ideia ou falsa representa fazer um juízo crítico sobre ela. A ideia de validade
de veracidade subjectiva. relaciona-se assim com a função argumentativa ou crítica, do mesmo
A ideia de verdade objectiva emerge ao nível argumentativo ou modo que a ideia de verdade se associa à função descritiva ou
crítico, mas só o faz na presença do nível descritivo ou informativo. informativa — dizer que uma crítica ou argumento é válido ou não
A verdade objectiva é a verdade de histórias, teorias, notícias ou algo consiste em estabelecer um juízo crítico sobre ele. Contudo, no que
de semelhante, de tudo quanto ocorre a nível descritivo. Mas a toca à ideia de validade, há que reforçar ainda mais a crítica e apreciar
avaliação da verdade acontece a nível argumentativo ou crítico; criticamente o argumento ou a crítica a fim de estabelecer a sua
quando avaliamos ou criticamos as descrições, ultrapassamos a função validade.
informativa e a descrição dos acontecimentos. Deste modo, a função Resumindo: as duas funções inferiores da linguagem estão mais
argumentativa ou crítica da linguagem resulta da função descritiva profundam ente im plantadas na com posição genética da
ou informativa. A função argumentativa e a possibilidade de crítica hereditariedade humana do que as funções superiores. Todavia, restam
provêm do nível descritivo, acompanhadas do pressuposto subjacente, poucas dúvidas de que a função descritiva e, com ela, a capacidade
consciente ou inconsciente, de que a história ou a teoria em debate de aprendizagem das regras gramaticais em geral — não de uma
será avaliada do ponto de vista da sua verdade. gramática específica que é tradicional e institucional — e mesmo
Quando me refiro à função argumentativa ou crítica, falo de certas tradições como a narrativa de histórias, possui base genética
crítica sempre no sentido de busca da verdade. Não entendo aqui esta assaz característica. E algo de semelhante se dirá da função
«crítica» como crítica literária, pois na crítica literária o termo possui argumentativa, embora neste caso as diferenças individuais pareçam
maior amplitude: pode-se admitir que a história é falsa depois criticar- bastante maiores, o que é demonstrado pela ocorrência dos prodígios
-Ihe os méritos literários, Na crítica não-literária há que avaliar outros matemáticos.
elementos importantes para além da verdade de uma história, como a Esta função crítica ou argumentativa tornou-se muitíssimo
sua relevância e perfeição. Estes dois pontos pressupõem que se conta importante desde os alvores da ciência na Escola Jónica, por altura
a história a fim de resolver algum problema. Mas mesmo em tais da época de Tales, mais ou menos no ano 500 a.C. Desde então,
casos, a crítica implica inevitavelmente a análise da verdade. Com o conhecimento objectivo transformou-se em conhecimento científico.
efeito, se possuímos espírito crítico, perguntamos sempre se é ou não
verdade que a história tem os referidos méritos literários e se é ou
não verdade que se mostra relevante e perfeita. Portanto, segundo DEBATE
creio, é possível generalizar que a verdade funciona como ideia
orientadora da crítica. Interlocutor 1: A pergunta que vou colocar não é muito específica.
A ideia de validade — nomeadamente a validade do argumento Tenho apenas curiosidade de saber se recebeu bastante informação
ou a crítica — também emana do nível argumentativo ou crítico. — ou crítica — da parte de antropólogos e linguistas profissionais ou
E também funciona como ideia regulamentadora, mas diz respeito a de outras pessoas relativamente às suas conjecturas.
argumentos e a crítica e não a histórias ou teorias. Contudo, opera de
modo totalmente análogo àquele em que a verdade se refere a histórias
O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE DESCRIÇÃO, ARGUMENTAÇÃO E IMAGINAÇÃO

Popper: Tive informações positivas apenas de dois psicólogos de narrativa de histórias, por certo posterior à narrativa oral. O meu
evolucionistas. Um deles interessa-se em p articu lar pelo amigo Ernest Gombrich sugeriu-me algo de muito interessante: o
comportamento animal e o outro dedica-se ao comportamento de desenvolvimento artístico desde os Egípcios aos Gregos, quer dizer,
certos grupos africanos e ao desenvolvimento da linguagem de tendendo para uma arte mais naturalista, deve-se acima de tudo a
algumas tribos africanas; aliás, esteve em África e estudou no local, Homero, em especial à sua descrição de coisas como o escudo de
sobretudo os vocábulos dados às cores e coisas do gênero. Trata-se Aquiles. Ao descrevê-lo, Homero narra em pormenor a maravilhosa
do Professor D. T Campbell. Além dele, também colhi dados positivos obra de arte em que tudo se apresenta de modo natural. Isto constitui
de um jovem estudioso de psicologia animal, que ficou muito o modelo que os pintores gregos depois procuraram concretizar.
entusiasmado com as minhas teorias. Mas, salvo estas duas pessoas, Assim, da descrição de Homero, da descrição feita através da palavra
direi que mais ninguém se interessa pelo assunto. E os filósofos que oral e da influência que esta exerceu, resultou a pintura grega — a
ocasionalmente se ocupam da análise da linguagem nunca se referem pintura de recipientes, quase sempre ilustrativa de cenas homéricas.
à função linguística, dando preferência à palavra, aos jogos linguísticos Por aqui se vê como Homero influenciou o artista. E não será uma
e a coisas semelhantes que, na verdade, não têm nada a ver com o conjectura muito arrojada dizer que as pinturas rupestres também
caso. Isso é muito natural. Porquê esperar uma resposta rápida? As foram precedidas de narrativas orais de caçadas. A pintura de cenas
respostas só aparecem ao fim de uns trinta anos mais ou menos. de caça em grutas ilustra histórias já contadas e, tal como o relato,
Decorreu um lapso de tempo de uns setenta a oitenta anos entre a possui uma poderosa função comunicativa. Quer isto dizer que as
altura em que John Stuart Mill afirmou que o objectivo da política pessoas viveram com o narrador, e partilharam do seu entusiasmo.
moderna é conseguir salários elevados e menos horas de trabalho e a Ninguém contesta que a função expressiva e com unicativa
data em que isso foi posto em prática. Stuart Mill formula com desempenha um papel mais importante na arte do que, talvez, na
perspicácia este ponto do seu programa social, mas só muitos anos ciência. Coritudo, transformá-la na única função da poesia lírica —
depois é que se chegou à sua concretização moderna. Portanto, durante ou de toda a poesia moderna — deriva em boa verdade da teoria
a minha vida não espero nada que se pareça com respostas filosófica errada de que a arte é auto-expressão e comunicação —
verdadeiramente positivas. Claro que existem casos de respostas comunicação imitativa, comunicação ao nível da resposta directa,
positivas e rápidas, mas são raríssimos. como no caso do medo — ou seja, é uma resposta directa que estimula.
Interlocutor 2: Creio que no campo da poesia há uma ampla E esta a teoria estética hoje em voga e, como tal, exerce uma enorme
área que, de entre esses quatro grupos, mais se aproxima do grupo influência, sobretudo nos jornalistas, passando destes para a crítica
comunicativo. Considera esse gênero de poemas pertencentes às de arte e desta para a própria arte.
funções inferiores da linguagem e não às superiores? Interlocutor 2: Da maneira como se referiu à poesia comunicativa,
Popper: Sim, mas com grande influência do desenvolvimento depreciando-a um pouco em relação à descritiva, inferir-se-á um juízo
das funções superiores. Quando se recua até aos primórdios da poesia de valor que atribua à poesia descritiva em geral maior mérito do que
ocidental — ou seja, até Homero —, descobre-se sem dúvida uma à comunicativa?
autêntica poesia descritiva. A poesia lírica porém, sobretudo a actual, Popper: Claro que sim. Poucas obras poéticas são tão meritórias
constitui uma espécie de degradação mesmo aos níveis totalmente como as de Homero ou, digamos, as de Shakespeare. Todas elas se
expressivo e comunicativo. Não se trata de acaso, devendo-se, sim, a inserem substancialmente no nível descritivo, mas ninguém lhes
teorias filosóficas erradas acerca de arte. Estranhamente, a maioria contesta a grandeza no que se refere aos outros níveis. E por que
dos filósofos — nem todos, no entanto — afirma que a arte se situa não? O actor, sobretudo, tem de ser muito bom a nível expressivo e
neste nível, o que é falso, claro. Não se situa nele; não a partir de comunicativo.
Homero, por certo. Tomando o exemplo das pinturas rupestres — a Interlocutor 2: Nesse caso, coloca a música descritiva num nível
mais antiga forma de arte conhecida — , verifica-se a sua qualidade superior a, digamos...?

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Popper: Não. Mas nego que em música o correspondente a isto verdade. O que significa que somos muito inteligentes e capazes de
seja a música descritiva, que o que lhe corresponde a nível descritivo mentir de modo extremamente convincente. Em Homero, este mesmo
seja a música descritiva. A música é outro caso. Em alguns aspectos gênero de virtude é atribuído a Ulisses, homem de muito bom conselho
relaciona-se sem dúvida com a linguagem. Por exemplo, A Paixão e capaz de dizer a verdade. Contudo, se ele quiser mentir, não será
Segundo São Mateus de Bach, ou algo de semelhante, corresponde a fácil descobrirem-lhe a mentira. Por outras palavras, trata-se de um
música descritiva. E esta obra não pode ser designada como «música excelente mentiroso, tal como as Musas, que também mentem muito
descritiva», apesar de ser grandemente descritiva, narrativa e tudo o bem se desejarem fazê-lo. Há aqui nitidamente duas idéias diferentes
mais. Diria, por exemplo, que a ópera é descritiva. Mas há muitos de verdade, a científica e a da literatura de ficção. Quando dizemos
gêneros de música não-descritiva que não pertencem apenas ao nível que os romances de um grande romancista retratam fielmente a
expressivo e comunicativo, música em que, por assim dizer, tem ex­ verdade, repetimos quase à letra aquilo que as Musas disseram a
trema importância aquilo a que poderá chamar-se «a gramática da Hesíodo. Portanto, a verdade no sentido de crítica literária equivale
música» e que não se insere puramente no nível expressivo e ao que as Musas consideram uma boa mentira, uma mentira
comunicativo. indetectável. É isto que designamos por «verdade» em crítica literária.
Interlocutor 3: Não resultará isso do que atrás disse a respeito de Aquilo a que dou o nome de «verdade objectiva» — a ideia de que
Homero, por exemplo? Que, de facto, toda a arte implica a ligação uma afirmação ou um relato é verdadeiro se corresponder aos factos —
aos produtos do mundo 3? Por conseguinte, não se localizará é uma ideia muito antiga. Aristóteles formula-a de modo explícito e,
automaticamente acima do nível comunicativo? a partir de então, viu-se exposta aos ataques dos filósofos, sobretudo
Popper. Claro que toda a arte pertence ao mundo 3. Claro que o dos pragmatistas a partir de William James.
entendimento da arte se reporta a esse mundo e que a obra artística Todavia, tais ataques não têm fundamento e a teoria objectiva da
pressupõe a compreensão da arte, que também se liga... verdade foi defendida e reestruturada por Alfred Tarski, um filósofo
Interlocutor 3: Mas isso não sugerirá a inexistência de algo como que se naturalizou norte-americano e que foi um grande matemático
arte puramente expressiva e arte puramente comunicativa? e lógico. Tarski propôs uma teoria da verdade que demonstra que
Popper: Sim. Ou que a arte puramente expressiva e a arte todas as investidas contra a verdade que afirmem que ela não existe
puramente comunicativa constituem becos sem saída que conduzem são errôneas. Uma consequência interessante e importante da teoria
à dissolução da arte em causa. de Tarski é a seguinte: conquanto a verdade exista, não há qualquer
Interlocutor 4: Pretende com entar alguns m ovim entos critério de verdade. Isto tem grande importância, pois a maioria dos
estruturalistas no que se refere a filósofos, a linguistas e a antropólogos filósofos mistura a ideia de verdade com a de critério de verdade.
e relacionar o assunto com a sua noção de verdade? Dir-se-á que o Esses filósofos pensam que, existindo uma ideia de verdade, temos
senhor fala com segurança de uma noção objectiva de verdade, de se de associar-lhe um critério de verdade. Por outras palavras, são
descrever as coisas tal como são. De facto, houve várias tentativas operacionalistas: haverá uma operação para descobrir se uma coisa é
recentes no sentido de atentar melhor em certos padrões ou disposições verdadeira ou não. Claro que tal operação não existe; se acaso
mentais para estruturar as coisas. existisse, seríamos todos omniscientes. Havendo um critério de
Popper. Direi que existe uma antiquíssima ideia de verdade, que verdade, toda a gente seria dotada de omnisciência. Visto não a
remonta a Hesíodo pelo menos, que afirma que um relato é verdadeiro possuirmos, o critério de verdade não pode existir. Tarski provou-o
se corresponder aos factos. É interessante notar que, nesta antiga ideia recorrendo a meios matemáticos e não aos meios teológicos de que
de verdade, a virtude de falar verdade é um pouco posta em causa agora me servi para procurar demonstrá-lo. Na prova apresentada
como virtude. Em Hesíodo, as Musas anunciam-lhe que o que alguém por Tarski sobre a inexistência de critério de verdade, a teoria de
diz é verdade, embora possamos contar uma história falsa e fazer Gõdel desempenha um papel bastante considerável, resultando disso
com que todos a julguem verdadeira — nós, as Musas, dizemos-te a um conceito de verdade válido. Tarski propôs um método geral de

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O CONHECIMENTO E Q PRQRr ,F.MA CORPO-MENTE DESCRIÇÃO, ARGUMENTAÇÃO E IMAGINAÇÃO

definição de critérios de verdade para todas as linguagens artificiais, Interlocutor 5: Não será preferível dizer que o que mais importa
mostrando que o conceito de verdade pode ser aplicado sem receios não é tanto o conhecimento objectivo, mas sim, tal como o senhor
— embora com um certo cuidado — na linguagem comum. Deste afirma, a nossa ligação ao mundo do conhecimento objectivo?
modo, os ataques dirigidos à verdade não passam de mau palavreado A acuidade mental não será mais importante do que o próprio mundo
filosófico. No entanto, exercemos uma importante influência mar­ objectivo?
ginal sobre este tipo de quase-filosofia estética que não vê a Popper: Sim, se preferir. Aquilo que designo por «conhecimento
necessidade de se mostrar tão cautelosa e bem informada em matéria objectivo» é formado por teorias, conjecturas, hipóteses, problemas,
filosófica pelo facto de se ocupar de arte. etc. Chamo a esta área «território do conhecimento objectivo no seio
Não sei se a resposta o esclareceu. Não compreendí o que quis do mundo 3». O conhecimento objectivo não precisa de ser verdadeiro;
dizer com «estrutural». Penso que é apenas uma dessas palavras ocas pode ser uma conjectura que foi objecto de crítica e já submetida a
hoje em moda. Sei o que é uma estrutura, mas não creio que este alguns ensaios. Pode denominar-se «conhecimento objectivo», de
termo particular contenha qualquer coisa. Se quiser explicar-mo, acordo com a minha terminologia explicada na primeira lição.
escutá-lo-ei com agrado. Interlocutor 5: Gostaria de fazer-lhe outra pergunta sobre o
Aliás, disse que a verdade é uma «ideia regulamentadora» porque, problema que o senhor expôs tão bem: de que maneira todos os níveis
embora não disponhamos de um critério de verdade, existem inúmeros inferiores se situam abaixo do terceiro e do quarto níveis? Ou seja,
critérios de falsidade, que nem sempre são aplicáveis, mas não é difícil de certa forma as artes expressiva e comunicativa são áreas subjectivas
descobrir as coisas falsas. A procura da verdade constitui por isso de conhecimento em que os animais participam. Acho que estou
uma pesquisa crítica. Por exemplo, sabemos que uma dada teoria correcto. Não é verdade que neste sentido o terceiro e o quarto níveis
tem de ser falsa se se contradisser a si mesma. Na realidade, esta são ainda subjectivos?
autocontradição representa o principal critério de falsidade, visto que Popper. Toda a linguagem engloba um componente subjectivo
na crítica tentamos verificar sempre se o objecto criticado não entra e, nesse sentido, também o terceiro e o quarto níveis não deixam de o
em conflito com outra coisa. Durante esta lição mencionei o ter. Mas foi nestes que isolámos o componente objectivo. O ponto da
interrogatório feito a quem relata algo e referi ainda que as abelhas questão é que, na prática, os quatro níveis operam em conjunto. Não
não consideram necessário interrogar uma sua congênere que executa podemos falar sem dar vazão aos sentimentos e não podemos
uma dança informativa. Qual é a finalidade do interrogatório? Apanhar comunicar sem que isso provoque sensações nas outras pessoas. Por
em contradição o narrador interrogado ou descobrir uma afirmação consequência, é impossível descrever sem nos exprimirmos e sem
que contradiga algo que julgamos saber de outra fonte; é esta a suscitar sensações nos outros. Mas isso não quer dizer que a descrição
verdadeira finalidade do interrogatório. Portanto, a contradição em si mesma seja subjectiva; é objectiva no rigoroso sentido de ser
representa o único meio genuíno para descobrir a falsidade, e assim susceptível de crítica do ponto de vista da verdade objectiva. E o
sabemos pelo menos que a teoria é falsa. Claro que também ficamos resultado da crítica, pelo menos em termos ideais, tem de ser
a saber que a sua sua negação é verdadeira. Em regra, isto pouco nos completamente independente do primeiro e do segundo níveis. Nem
diz, dado que negar uma teoria de grande conteúdo informativo tem sempre tal acontece, claro; todavia, isso sucede amiúde em muitos
sempre escasso conteúdo informativo. Quanto maior for o conteúdo casos. Uma discussão científica pode revelar-se bastante acalorada e
informativo de uma teoria, mais reduzido será o conteúdo informativa trazer à baila muitas emoções. Contudo, de modo geral, com o tempo,
da sua negação. Assim, em geral, obtém-se pouca verdade ao refutar com o passar dos séculos, o resultado dessa discussão desliga-se do
uma teoria. Mas pelo menos sabe-se onde a verdade não se encontra, entusiasmo e dos aspectos emotivos que outrora se lhe associaram.
e deste modo podemos prosseguir a pesquisa. Por consequência, a Quem pensaria hoje em dia que a teoria de Newton despertou
verdade funciona sobretudo na qualidade de ideia regulamentadora sentimentos nacionalistas em França? Ora, isso aconteceu mesmo e
ou orientadora da busca da verdade ou da crítica. com grande intensidade, pois os franceses eram adeptos da física
O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE DESCRIÇÃO, ARGUMENTAÇÃO E IMAGINAÇÃO

cartesiana e não da newtoniana, constituindo esta última a crítica «teoria emotiva da Ética», querendo dizer com isso que quando
explícita da primeira. Portanto, em França, a física newtoniana foi afirmamos que algo é bom, significamos «és um bom sujeito»,
rejeitada por razões nacionalistas, até que Voltaire tentou divulgá-la exprimindo um determinado juízo. Possivelmente, diz Stevenson,
num livro, que foi queimado. Mas quem agora está a par de tais procuramos que a outra pessoa repita algo de semelhante, e isso seria
ocorrências? Caíram no esquecimento, ao contrário dos resultados comunicativo, mas chama-lhe «teoria expressiva da Ética». Como
objectivos, que ainda perduram. Já não provoca entusiasmo discutir vêem, a base da «teoria expressiva da Ética» de Stevenson é uma
a teoria de Newton. Enquanto me dirijo aos senhores, é-me impossível pura teoria expressiva da linguagem e praticamente apenas isso. Pode
reprimir sentimentos emocionais e comunicativos. Com o tempo, no dar-se o caso de ser verdade tudo o que afirma, mas nem só isso é
entanto, estes sentimentos serão esquecidos e a teoria será submetida verdade. A Ética é sem dúvida expressiva e comunicativa. Contudo,
a ensaio. não terá também funções superiores? É esta a pergunta a fazer, mas é
Interlocutor 6: Vejamos se entendi bem o caso. As três primeiras um problema em aberto que não desejo ventilar neste momento.
funções da linguagem podem ser subjectivas — ou seja, expressiva, Ocupar-me-ei, porém, do primitivisino do argumento. A pergunta não
comunicativa e descritiva — e só quando surge um quarto elemento inquire tudo quanto deveria inquirir. A pergunta «a Ética não possui
argumentativo e crítico é que se atinge um gênero diferente de nenhuma outra função além das funções expressiva e interrogativa?»
conhecimento, o conhecimento objectivo... equivale a perguntar «a Ética não é mais do que comunicação ani­
Popper: Que poderá situar-se no nível descritivo... mal?» — é de facto este o significado que as pessoas lhe atribuem.
Interlocutor 6: Quer dizer que duas pessoas fornecem a sua A Ética situa-se praticamente nesse tipo de nível animal, no nível do
descrição pessoal e subjectiva de um determinado acto, criticam-na «não!». Não existirá nela algo mais do que esse «não!»? Refiro-me
em conjunto e desta interacção surge um novo tipo de conhecimento, àquilo que o cão aprende, ao «não!» que ele aprende a compreender.
o conhecimento objectivo? Interlocutor 7: A respeito do mesmo ponto anterior, sobre a noção
Popper: Sim. A bem dizer, só se consegue a objectividade do e o debate da teoria da correspondência da verdade. Temos estado a
terceiro nível quando o quarto intervém. A diferença é esta: é possível falar (o senhor talvez não) d&factos e quando conhecemos os factos,
dividir o terceiro nivelem dois, o «descritivo ainda não objectivado» conhecemos proposições ou conhecemos coisas? Terá isto alguma
e o «descritivo objectivado» e assim, recorrendo ao exemplo já importância para a sua descrição da realidade objectiva?
referido, posso dizer que as abelhas atingiram o primeiro, embora Popper: Eu chamar-lhe-ia teorias.
seja sempre ou praticamente sempre verdade o que dizem, a não ser Interlocutor 7: Muito bem. Qual é a relação de uma teoria com
que as enganem. E isto porque o instinto as treina para serem os fenômenos que ocorrem à nossa volta?
verdadeiras e também porque a sua linguagem é muito pobre. Tanto Popper: A teoria procura descrever os fenômenos como são.
quanto se sabe, é de facto muito pobre e faz parte da sua composição É não só uma conjectura acerca de fenômenos, mas também acerca
hereditária. Talvez você esteja certo quanto à possibilidade de do mundo. Não se limita a descrever «fenômenos» quando o termo
subdividir o terceiro nível —- o descritivo — em duas partes, uma em significa apenas o que é visível; faz mais do que isso. Por exemplo, a
que se adquire objectividade e outra em que esta ainda não foi teoria pode não só descrever o fenômeno desta cadeira azul, mas
conseguida. Na verdade, Bíihler teve em mente a objectividade também procurar explicá-la mediante algo como uma teoria química
adquirida, o que me leva a crer que a teoria dele suplanta quase todas óptica relativa a tintas e corantes. Portanto, não se refere apenas a
as teorias da linguagem que não mencionam explicitamente estes fenômenos, vai além deles e geralmente é explanatória, pelo que os
níveis. Dou-lhe apenas um exemplo. A maioria de vocês estudou'um ultrapassa.
pouco de Filosofia e conhece o nome de Stevenson, filósofo da Ética. Interlocutor 7: É possível construir tais explicações ou tais teorias
O seu contributo particular foi descobrir que a Ética é emotiva e (quer dizer, teorias científicas) como modos sim bólicos de
comunicativa, de acordo com o sentido que lhe atribuo. Chamou-lhe representação e, por conseguinte, representar verbalmente a descrição

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o CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE DESCRIÇÃO, ARGUMENTAÇÃO E IMAGINAÇÃO

das propriedades químicas — ou do que se pretenda — de uma cadeira. aos objectos linguísticos como se se tratasse de mesas ou de cadeiras;
Mas o caso é que existe todo um nexo verbal um tanto vago. Qual é há que ter plena consciência disto. A linguagem em que se fala de
a relação entre esse nexo e a realidade física da cadeira? Acho que há objectos linguísticos designa-se por «metalinguagem». Portanto, toda
certas discrepâncias na linguagem humana, que aliás é incompleta, a teoria da verdade tem de ser uma teoria metalinguística, visto referir-
pois não constitui uma ferramenta simbólicapetfeita, uma ferramenta -se às propriedades de uma linguagem — propriedades de afirmações,
exossomática, ou como queira chamar-se-lhe. Qual é a relação entre de objectos linguísticos. As afirmações equiparam-se a mesas ou
a descrição simbólica e a realidade física? cadeiras e as linguagens a fábricas de mobiliário. Dizer que uma
Popper: A linguagem está muito longe de ser perfeita, mas é afirmação é verdadeira assemelha-se um pouco a afirmar que uma
espantosamente eficiente e poderosa. Os matemáticos confrontam- cadeira é confortável. E, ao dizê-lo, temos de exprimir-nos em
se constantem ente com as suas insuficiências, inventando metalinguagem — este é o primeiro ponto a compreender. Temos de
instrumentos cada vez melhores, ferramentas exossomáticas cada vez falar acerca de uma linguagem e, para tanto, temos de utilizar uma
mais adequadas. É verdade que a linguagem se mostrará sempre metalinguagem. A linguagem acerca da qual falamos denomina-se
incompleta, bem como a maneira como descrevemos a realidade. «linguagem -objecto» e aquela em que falam os cham a-se
Existe como que uma deficiência essencial em todas as linguagens, o «metalinguagem». Assim, quando se elabora uma teoria da verdade,
que, uma vez mais, se relaciona com o teorema de Gõdel. Aliás, há que distinguir entre a linguagem em que se fala e a linguagem
conseguiremos atingir o conhecimento completo? Apesar dessa acerca da qual se fala, ou seja, entre metalinguagem (a primeira) e
imperfeição, a linguagem progride sempre e adequa-se de tal modo à linguagem-objecto (a segunda). É este o ponto principal da teoria de
descrição da realidade que há poucas razões para nos lamentarmos e Tarski, esta distinção nítida entre metalinguagem e linguagem-
muitas para nos surpreendermos e sobretudo para nos maravilharmos -objecto, ou linguagem em que falamos e linguagem acerca do que
com o facto de os seres humanos terem produzido uma ferramenta falamos.
tão incrível e poderosa. O seu poder traduz-se em naves espaciais e Este esclarecim ento impunha-se. A m aioria das pessoas
bombas atômicas, mas também em muitas outras coisas. Por desgraça, concordará que a verdade é a correspondência com os factos. Mas o
não se mostra suficientemente poderosa para evitar o seu mau uso problema reside em saber como falar de correspondência com os
por parte dos jornalistas. Porém, acho que não temos muitas razões factos ou em que consiste realmente tal correspondência. Como poderá
de queixa. Creio que ninguém pode afirmar que a linguagem é uma afirmação corresponder aos factos? À primeira vista parece um
suficiente para penetrar toda realidade. Mas penetra-a até certo ponto, problema insolúvel. Há várias teorias a este respeito, entre as quais a
desvendando-a cada vez mais. E quanto à teoria da correspondência, de Schlick, para quem a correspondência com os factos consiste
uma teoria deveras interessante, como entender realmente a naquilo que um matemático designaria por «correspondência de um
correspondência entre a linguagem e um facto? Tarski ocupou-se do para um». Desconheço se todos os presentes sabem o que isto é, mas
assunto e esclareceu-o com grande rigor. Todavia, receio ser quase a Matemática distingue as correspondências de muitos para um, de
infrutífero explicar aqui e agora a teoria da correspondência de Tarski. um para muitos e de um para um. Neste último caso, a correspondência
É bastante trivial em certo sentido, mas por outro lado exige de facto ilustra-se, por exemplo, do seguinte modo: temos aqui certos objectos
o entendimento de uma ideia básica: a metalinguagem, falar acerca e ali outros objectos e a cada objecto do primeiro lote corresponde
de linguagem. Mas vou tentar. O primeiro ponto da teoria de Tarski é um objecto do segundo..Mas uma coisa é certa: em linguagem, a
a referência à verdade das afirmações, ou seja, das entidades verdade não é correspondência de um para um. A um facto podem
linguísticas. Quando falamos da verdade de entidades linguísticas, corresponder muitas descrições verdadeiras, e afirmações ou asserções
estamos a falar sobre entidades linguísticas. Em qualquer teoria deste muito diferentes descreverão porventura com igual fidelidade um
gênero — qualquer teoria como a de Tarski — temos de referir-nos único e mesmo facto. Por exemplo, se for verdadeira a descrição

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n r oNHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE DESCRIÇÃO, ARGUMENTAÇÃO E IMAGINAÇÃO

«Pedro é mais alto que Paulo», também o será a de que «Paulo é mais outras linguagens e acerca de factos — e aqui radica a sua importância.
baixo que Pedro», o que fornece desde logo a prova de que a verdade E sempre que nos referirmos a uma afirmação, devemos ser capazes
não é a correspondência de um para um. Portanto, eliminemos Schlick de falar do facto que tal afirmação descreve.
e passemos a Wittgenstein, para quem a verdade é um quadro ou Quando toda a sofisticação se esgota, atinge-se a trivialidade;
imagem. Uma afirmação é verdadeira se for o quadro fiel dos factos. até aqui foi sofisticado, mas tudo quanto se lhe segue é trivial. Tarski
Trata-se de uma teoria pictórica da linguagem. Mas há aqui dois pontos diz muito simplesmente que a afirmação [cito] «a neve é branca»
mais que óbvios: uma afirmação só é um quadro em sentido corresponde aos factos se, e apenas se, a neve for branca. A única
metafórico; por conseguinte, tal teoria não tem fundamento algum. coisa que aqui importa é que a afirmação «a neve é branca» (falo da
Certamente que uma afirmação não é um quadro no mesmo sentido afirmação) corresponde aos factos se, e apenas se, a neve for branca
em que, por exemplo, uma fotografia o é. Esta pode ser verdadeira (neste caso, falo dos factos). O que está entre aspas é uma
— todas o são, em boa verdade, salvo se depois se deteriorarem ou metalinguagem semântica — linguagem com a qual posso falar acerca
forem falsificadas -— mas uma afirmação não é uma fotografia nem de afirmações utilizando aspas — e, sem aspas, temos uma linguagem
se lhe assemelha. Assim, a teoria de Wittgenstein é apenas metafórica, com a qual falo de factos, como em todas as linguagens, sem recorrer
destituída de utilidade. a elas. Em qualquer linguagem, habitualmente falamos sobre factos
Regressemos a Tarski e à sua teoria da correspondência, uma sem empregarmos aspas; e a maneira mais conveniente para falar de
teoria trivial, como convém, tão simples e tão trivial que duvidamos afirmações é utilizá-las. Assim, temos a afirmação «a neve é branca»
que consiga resolver o problema, e nisto reside uma das suas ou, se preferirem, a afirmação «a neve é verde», o que não faz qualquer
dificuldades. Pensa-se que a teoria não será capaz de solucionar o diferença. Esta última corresponde aos factos se, e apenas se, a neve
problema, mas basta dizer que, se o juiz recomenda à testemunha for verde. Isto explica na generalidade a correspondência com os
que diga a verdade e apenas a verdade, é porque pensa que a factos. Não faz a mínima diferença que eu diga que a neve é verde ou
testemunha sabe perfeitamente o que ele lhe pede; por conseguinte, a branca porque a afirmação «a neve é verde» só lhes corresponderá
verdade tem de ser algo de trivial A teoria de Tarski é trivial e ao se, e apenas se, a neve for verde. A afirmação «a neve é branca»
mesmo tempo muitíssimo sofisticada. A sua sofisticação, porém, re­ corresponde aos factos se, e apenas se, a neve for branca; ou,
side apenas e em exclusivo na diferença entre linguagem-objecto e generalizando, a afirmação «x» corresponde aos factos se, e apenas
metalinguagem. Uma vez entendido tal aspecto, a teoria torna-se se y, desde que «x» seja o nome de uma afirmação que descreva y.
com pletam ente trivial. Tarski afirm a que a verdade é a Não há nada mais fácil do que isto. Estabelecemos assim o
correspondência com os factos; mas se quisermos explicar o que é a significado geral de «correspondência com os factos»; estabelecemo-
correspondência com os factos, temos de utilizar uma linguagem em lo, mas não o definimos. Tarski demonstra também que é possível
que se possa falar acerca de entidades linguísticas, tal como dar uma definição de «correspondência com os factos» em qualquer
afirmações, e de factos. Só através de uma linguagem em que se fale linguagem artificial. Mas isso pouco importa para aqui. No entanto,
tanto de afirmações como de factos é que se poderá explicar a estabelece com grande rigor — se bem que recorrendo a exemplos
correspondência com os factos; de outra maneira não será possível. (mas como estes variam de acordo com o pretendido, a sua variação
Portanto, a linguagem terá de ser uma metalinguagem visto falar sobre é ilimitada) — o significado de «correspondência com os factos», e
afirmações. Porém, terá de ser mais do que metalinguagem apenas, assim consegue precisar.o.significado de «Verdade».
devendo falar também de factos. Tarski chama a esta linguagem uma E esta a a relação entre aquilo que o senhor designou por
«metalinguagem semântica». A expressão será talvez pouco feliz, «descrição simbólica» e «realidade física». A descrição simbólica,
pois a palavra «semântica» é um dos vocábulos perigosos da Filosofia. ou seja, a afirmação, corresponde ou não aos factos da realidade física;
Mas isso é já outro assunto. Tomemos a designação na qualidade de por outras palavras, é verdadeira ou falsa. É esta a relação.
simples rótulo. A linguagem semântica permite-nos falar acerca de

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INTERACÇAO E CONSCIÊNCIA

Como se devem recordar, o tópico principal das minhas lições é


o problema corpo-mente e que o mundo 3, a evolução emergente e a
teoria evolucionista da linguagem constituem os meios mais
importantes para atingir a solução, a título experimental, desse mesmo
problema. Na lição de hoje tentarei esboçar tal solução.
Devo adverti-los, porém, de que a teoria experimental que
tenciono apresentar é apenas uma tentativa e fica muito aquém de
uma teoria quando comparada com teorias do domínio da Física, por
exemplo. Contudo, pode ser testada e ultrapassou certas verificações
de uma forma que excedeu todas as minhas expectativas.
Para aqueles que possuam alguns conhecimentos de História da
Filosofia, será desnecessário dizer quão insatisfatório é tudo quanto
até agora se disse a respeito do problema em causa. Só em comparação
com certas tentativas anteriores é que eu trago algo de novo.
É digno de nota o facto de que o conhecimento sobre a mente
humana, incluindo o conhecimento do indivíduo sobre a sua própria
mente, é extremamente vago. Tem muito maior transparência o
conhecimento do comportamento físico, motivo pelo qual este último
tem sido estudado com mais minúcia.
O termo «behaviorismo» é ambíguo, tal como a maioria dos
termos deste gênero. Poderá significar quer o propósito de nos
centrarmos no comportamento sem que nos importem os estados de
consciência ou, de maneira mais radical, a negação da existência
desses estados. Esta teoria mais drástica também se designa
«fisicismo» («materialismo» é um termo mais antigo) e revela-se

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE
INTERACÇÃQ E CONSCIÊNCIA

bastante conveniente pois, caso a adoptemos, eliminamos muitos refutaria o solipsismo. Com efeito, a referida senhora poderia replicar
problemas intricados. Tem por único inconveniente ser falsa. Os que todo o caso constava do seu sonho, que o seu desejo sonhado era
estados de consciência existem sem dúvida, embora se mostrem a publicação do livro ou, mais precisamente, que o seu desejo sonhado
imprecisos e difíceis de descrever, e também porque a sua existência era sonhar que publicava o livro e que a sua angústia sonhada era
origina problemas bastante complexos. sonhar que nunca publicaria o livro.
A este respeito, acho necessário esclarecer que existe um certo Eis um outro argum ento contra o solipsism o, também
número de teorias filosóficas de natureza radical semelhantes ao inconclusivo, mas que a mim me basta: quando leio Shakespeare,
fisicismo ou materialismo ou behaviorismo extremado nomeadamente quando escuto um grande compositor ou quando admiro uma obra
quanto à sua estrutura e condição; quer dizer, são teorias falsas, embora de Miguel Ângelo, sei que tais obras ultrapassam em muito tudo o
irrefutáveis. Por essa razão procederei primeiro à análise deste caso, que eu porventura possa produzir. Porém, segundo a teoria do
pois muitas pessoas pensam, erradamente, que uma teoria irrefutável solipsismo, apenas eu existo, de modo que, ao sonhar as referidas
tem de ser verdadeira. obras, sou eu na realidade o seu criador — ora, isto é absolutamente
Uma dessas teorias irrefutáveis dá pelo nome de «solipsismo». inaceitável. Portanto, devo concluir que têm de existir outras mentes
O solipsismo é a teoria de que eu e apenas eu existo. Segundo ela, o e que o solipsismo é falso. Claro que tal argumento é inconclusivo.
mundo restante — incluindo todos os que me escutam e também o Mas, como disse atrás, este exemplo basta-me. Em boa verdade, só
meu próprio corpo — não passa de um sonho meu; portanto, os outros quem é megalómano é que acreditará honestamente no solipsismo.
não existem, sendo apenas sonhados. Vocês não têm possibilidade de Um argumento inconclusivo deste gênero denomina-se argumento
refutar tal teoria e garantir que existem, gritando e porventura ad hominenv,; não é conclusivo, sendo por assim dizer um apelo do
agredindo-me para provarem a vossa existência. Tudo isso, claro, homem ao homem.
não refutará o solipsismo. Com efeito, afirmarei sempre que sonho Uma outra teoria, muito diferente do solipsismo quanto ao
que me gritam e agridem. Nada do que sucedesse refutaria a minha conteúdo, mas muito parecida no que se refere à estrutura lógica,
convicção solipsística, se acaso a tivesse. Evidentemente que não consta de uma certa história da autoria do filósofo Josef Popper-
perfilho opiniões deste gênero. Porém, se algum de vocês optar pelo -Lynkeus, de Viena. Trata-se da história de um jovem ateniense que
solipsismo, ser-me-á impossível refutá-lo. os amigos apelidavam de «Pequeno Sócrates» e que, à semelhança
Por que motivo não sou solipsista? Conquanto tal doutrina seja deste último, percorria Atenas desafiando as pessoas para debates
irrefutável, não deixa de ser uma teoria falsa e, quanto a mim, verbais, pedindo-lhes que refutassem a tese de que ele era imortal:
disparatada. Não pode ser refutada, mas podemos aduzir sólidos «Tentem refutar-me. Talvez julguem poder fazê-lo se me matarem.
argumentos contra ela, se bem que muito inconcludentes. Mas, mesmo aceitando provisoriamente a hipótese de me refutarem
Um desses argumentos pode ser ilustrado com a história contada deste modo, a refutação, com base na vossa própria hipótese, chegará
por Bertrand Russell num dos seus livros (creio que no volume de tarde de mais para me refutai».
Biblioteca dos Filósofos Vivos, de Schilpp): Russell recebeu uma carta A cidade de Viena conhecia tal argumento, pois os livros de Pop-
de certa senhora que era uma solipsista convicta que escrevera um per-Lynkeus eram bastante lidos. W ittgenstein sentiu-se tão
livro que continha a prova cabal do solipsismo. Essa senhora estava impressionado com a irrefutabilidade do argumento do «Pequeno
indignada e queixava-se de que o livro fora rejeitado por todos os Sócrates» que o aceitou, .afirmando no seu Tractatus que «a morte
editores a quem o enviara, e por isso pedia a Russell que intercedesse não é um acontecimento da vida», e que «quem vive no presente vive
a seu favor. para sempre». Ao contrário de Wittgenstein, e conquanto todos nós
A piada da história está em que um solipsista não deveria queixar- vivamos no presente, não viveremos para sempre. E, falando em
-se dos editores, visto estes não existirem, tal como não deveria termos gerais, a irrefutabilidade não me impressiona grandemente.
solicitar os bons ofícios de um filósofo inexistente. Todavia, isso não Uma outra versão do solipsismo é a filosofia do bispo Berkeley,

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE INTERACÇÃO E CONSCIÊNCIA

um homem demasiado modesto e britânico e demasiado convicto não pretendes convencer-me. Quando muito, o teu intuito será levares
para ser solipsista, pois Berkeley reconhece que as outras mentes o meu coipo a emitir os sons verbais mais ou menos inteligentes de
têm tanto direito à existência quanto a sua. Mas insiste em que só as «estou convencido». Mas porquê tanta agitação a propósito de
mentes existem e que a existência dos corpos e do mundo material é comportamento verbal? Ou existirá algo como verdade e falsidade?
uma espécie de sonho, sonhado em conjunto por todas as mentes Se toda essa conversa sobre verdade e falsidade não passa de mero
devido à intercessão divina. Por outras palavras, o mundo só existe comportamento verbal, porquê consagrar-lhe tantos argumentos
nas nossas mentes, ou seja, na experiência perceptiva que temos dele. infindáveis?».
Ou, por outras palavras ainda, o mundo físico constitui o nosso sonho, Não sugiro que tais comentários refutam o fisicismo. Digo apenas
tal como no solipsismo ele é o meu sonho. que os ruídos orais dos fisicistas não me despertam interesse suficiente
Porém, e embora a teoria de Berkeley não seja megalómana, para que prossiga neste meu comportamento verbal que nós, os não-
certamente que o bispo se sentiria abalado por outro argumento ad -fisicistas antiquados, apelidaríamos de crítica ad hominem do
hominem, pois a sua teoria é incompatível com o cristianismo, que fisicismo.
ensina que não somos puras mentes ou espíritos, mas sim mentes Já que me alonguei tanto a respeito de fisicismo, direi também
encarnadas; ensina também a realidade do sofrimento corporal. algumas palavras sobre computadores, sobre a afirmação de que o
Todas estas teorias são irrefutáveis, um facto que parece ter cérebro humano (ou talvez a mente) é um computador ou vice-versa;
impressionado bastante alguns filósofos, Wittgenstein por exemplo. ou de que os computadores possuem cérebros tão bons ou mesmo
Mas as teorias que afirmam precisamente o contrário são também melhores do que os nossos, coisa que é asseverada com a maior
irrefutáveis, o que deveria despertar a nossa desconfiança. Como já seriedade.
disse por várias vezes, é errado pensar que numa teoria a Quando Einstein disse «o meu lápis é mais inteligente do que
irrefutabilidade constitui virtude; não é virtude mas vício. Continuo eu», quis dizer que, utilizando tal objecto, chegava a resultados
a achar que se trata de uma boa maneira de expor o caso. No entanto, imprevistos. Tinha razão, pois é precisamente por isso que fabricamos
e porque um antigo aluno meu algo pedante a criticou, vi-me forçado lápis e que os usamos. Se o progresso fosse o mesmo quer
agora, infelizmente, a explicar em pormenor o que quis dizer com dispuséssemos ou não deles, não os utilizaríamos.
isso. Quis dizer, claro, que o facto de uma teoria ser irrefutável não O mesmo sucede com o computador, que não passa de um lápis
deverá impressionar-nos, mas sim levar-nos a suspeitar dela. glorificado, um lápis maior e melhor, mais poderoso e importante, e
Não há dúvida de que tanto o solipsismo como a teoria de Ber­ incrivelmente caro. Como é óbvio, não fabricaríamos estes superlápis
keley — o «idealismo» — solucionam o problema corpo-mente visto dispendiosíssimos se não fossem mais inteligentes do que os seus
ambas afirmarem a não-existência de corpos. O materialismo, vulgares congêneres.
fisicismo ou behaviorismo radical também resolvem o problema, mas Em resumo, o fisicismo nega o óbvio, ou seja, a existência de
mediante o estratagema oposto, dizendo que a mente não existe e estados mentais ou consciência. No conjunto das teorias que não
pondo de lado os estados mentais e os estados de consciência; a negam a existência dos estados mentais, foram propostas diversas
inteligência é inexistente, havendo apenas corpos que se comportam teorias da mente que rivalizam entre si para serem aceites. Em primeiro
como se fossem inteligentes: por exemplo, emitindo elocuções como lugar a teoria de Descartes. Numa forma algo modernizada que evita
se fossem inteligentes ou emitindo elocuções mais ou menos referir-se a «substância»* a teoria de Descartes afirma que os estados
inteligentes ou, com maior rigor, sons verbais. mentais e os estados físicos interectuam, sendo assim denominada
Também esta teoria é irrefutável. Mas contra ela há um novo «interaccionismo». Visto os estados físicos se situarem no espaço e
argumento ad hominem. Pergunte-se ao fisicista: «A quem diriges a no tempo, surge assim o problema de se saber em que local ocorre a
tua teoria? Ao meu corpo? Ou ao meu comportamento mais ou menos interacção. Descartes responde que se verifica «no cérebro, na
inteligente? Desejas obter de mim uma expressão oral? Certamente

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o rn N H H C IM E N T O E O P R O B L E M A C O R P O -M E N T E INTERACÇÃO E CONSCIÊNCIA

glândula pineal», o que foi bastante ridicularizado. Mas a resposta existência da consciência, mas acertam quando a ignoram. Com efeito,
que lhe dou é semelhante. se a mente é um epifenómeno, então tudo o que possui significado
Uma alternativa ao interaccionismo é a teoria de que os estados pode ser formulado em termos behavioristas.
físicos e mentais não são interactuantes mas que ocorrem em paralelo. O epifenomenismo partilha com o paralelismo a convicção de
Tal teoria dá pelo nome de «paralelismo mental-corporal» e na sua que o mundo físico é completo ou, por outras palavras, que em
forma mais simples e célebre, da autoria de Espinosa, reivindica que princípio tudo o que é explicável pode sê-lo em termos puramente
a mente e a matéria constituem dois aspectos da mesma realidade. Se físicos.
observarmos o interior de uma casca de ovo, verificamos que é E este ponto de vista de plenitude do mundo físico que eu procuro
côncava; porém, vista do exterior é convexa. Contudo, a convexidade combater por meio da minha teoria do mundo 3:
e a concavidade são duas facetas do mesmo objecto. Espinosa sugere
que olhando a realidade do interior apercebemos a mente, e se a Mundo 3: teorias, problemas objectivos.
olharmos do exterior distinguimos a matéria. Mundo 2: disposições ou tendências comportamentais.
Trata-se de uma teoria engenhosa e possivelmente verdadeira. Mundo 1: estados físicos.
Pode dar-se o caso de o electrão possuir consciência. De acordo com
a Física Quântica, porém, todos os electrões são exactamente iguais, O facto de existirem problemas objectivos, como a teoria dos
independentemente do seu historiai; por outras palavras, não serão números primos (presente no mundo 3), juntamente com o facto de a
afectados pela sua história. Pressupondo-se o paralelismo, isto descoberta de tais problemas conduzir a grandes e óbvias mudanças
significa que, mesmo sendo dotados de consciência, não serão no mundo 1, demonstra que este último não é estanque nem completo;
afectados pela sua história e que não possuem nenhuma espécie de pelo contrário, abre-se ao mundo 3 e o mundo 2 serve de medianeiro.
memória. A consciência destituída de memória consistiría em Se assim for, o epifenomenismo estará errado; a mente ou
lampejos conscientes que durariam apenas ínfimas parcelas de tempo consciência não representará um epifenómeno insignificante.
e não revelariam ligação entre si. Uma tal forma de consciência é A minha rejeição do epifenomenismo apoia-se também na
verosímil, conquanto totalmente diferente daquilo que se entende por abordagem evolucionista — por que motivo evoluiriamos se a mente
«consciência». Com efeito, esta depende por inteiro da conexão dos ou consciência não passa de um epifenómeno? Por que razão se
estados de consciência ao longo de períodos de tempo não muito tornaria ela cada vez mais notável nos animais superiores?
curtos. Tais perguntas demonstram que para se compreender a mente ou
Assim, não creio ser possível tomar a sério o paralelismo. Mas consciência e a sua relação com a fisiologia orgânica deve adoptar-se
existe outra teoria bem mais séria, que poderá ser considerada uma um ponto de vista biológico e inquirir sobre o significado biológico
variante do paralelismo. Tem o feio nome de «epifenomenismo», da mente e que o contributo presta ao organismo.
podendo ser descrita como segue. Todas estas interrogações levaram-me àquilo a que talvez possa
Por atrito, todos os relógios geram uma certa quantidade de calor, chamar uma nova teoria da mente e do ego.
mas este subproduto não tem nada ou quase nada a ver com o seu Principiarei fazendo notar que o mundo consciente é tão pouco
funcionamento — compreendemos o seu mecanismo sem necessidade homogêneo como o mundo 1 ou como o mundo 3.
de atender ao pouco calor produzido. Dá-se o nome de «epifenómeno» Existe uma diferença genérica, de todos nós conhecida, entre
ao fenômeno irrelevante como o deste calor originado pelo estados de consciência quando estamos acordados e estados de
funcionamento do relógio. No que se refere ao problema corpo-mente, consciência enquanto dormimos ou sonhamos. Há também diferenças
o epifenomenismo é a teoria de que as mentes existem, mas na semelhantes entre sonhos vividos e bem presentes na memória e outros
qualidade de epifenómenos, o que quer dizer que o fisicismo, de que apenas temos uma vaga lembrança.
materialismo ou behaviorismo estão errados quando negam a Pouco se sabe sobre a consciência animal. Mas o comportamento

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O C O N H E C IM E N T O E O P R O B L E M A C O R P O -M E N T E INTERACÇÀO E CONSCIÊNCIA

dos cães quando despertos ou adormecidos — aparentemente nossos olhos; falo de «regulador moldável» quando as reacções
perturbados por sonhos ou mergulhados em sono profundo — abrangem um vasto espectro de possibilidades.
assem elha-se bastante ao com portamento humano e permite A minha próxima conjectura é que todos os animais capazes de
conjecturar que os cães e outros animais superiores também possuem movimento dispõem de elaborados sistemas de aviso, como olhos ou
diversos graus de estados conscientes. tentáculos. Também existe neles o impulso inato para o movimento,
Assim, a minha primeira conjectura básica formula-se como ou seja, para explorarem o meio ambiente, sobretudo em busca de
segue: falar em corpo e mente presta-se a certos equívocos, visto alimento. O sistema de aviso é deveras especializado. Alerta-os para
existirem diferentes gêneros e diferentes graus de consciência no reino possíveis perigos, como a presença de inimigos ou o choque com
animal. Na experiência pessoal dos seres humanos há por vezes vários obstáculos. Avisa-os também quanto a oportunidades em perspectiva,
desses níveis inferiores: por exemplo, nos sonhos ou durante a hipnose. como a proximidade de um objecto susceptível de constituir alimento.
A minha segunda conjectura é que devemos distinguir entre Designemos os perigos e os objectos perigosos como «biologicamente
consciência plena, ou seja, o mais elevado grau de consciência negativos» e as oportunidades como «biologicamente positivas». Os
humana, e formas inferiores, que podem divergir muitíssimo. órgãos da maioria dos animais são formados de molde a distinguir
Há também o problema do significado biológico destes diversos estas duas categorias, o que significa que interpretam ou descodificam
níveis de consciência, um problema bastante difícil de solucionar. os estím ulos presentes. Mas tal sistem a interpretativo ou
Além disso, toda esta matéria é especulativa, até mesmo a existência descodificador, com base anatômica e portanto genética, é de início
de uma forma consciente inferior ou animal. Seja como for, é possível mais rígido do que maleável, não reconhecendo situações inabituais,
negar a total existência da consciência, como o fazem os fisicistas ou como o demonstra o exemplo dos insectos que voam contra painéis
os behavioristas radicais. Por isso, neste campo não se pode esperar de vidro. Segundo a minha conjectura, através da evolução emergente
o aparecimento de argumentos convincentes em prol das nossas principiam por surgir sensações vagas que reflectem as expectativas
especulações. do animal quanto a ocorrências negativas ou positivas ou quanto a
Contudo, as teorias têm sempre uma natureza conjectural, e pelo recuos ou avanços incipientes, e em estádios posteriores da evolução
menos algumas das minhas teorias originam consequências emergente transformam-se em sensações de dor ou de prazer,
verificáveis. sobretudo de carácter antecipatório. Estas, por seu turno, transformam-
A fim de hipoteticamente fornecer uma resposta ao problema do -se na base — ou nível mais elevado — de um ulterior sistema de
significado biológico da consciência, apresento aqui as idéias de interpretação ou descodificação de sinais do animal, isto é, num
hierarquia reguladora e de regulação moldável. sistema interpretativo ou descodificador que vem somar-se ao que já
Todos os organismos superiores dispõem de uma hierarquia de é proporcionado pelos órgãos dos sentidos. Portanto, o segundo mundo
comando. Há dispositivos fiscalizadores que regulam os batimentos pode emergir do primeiro, e vimos já como o terceiro emerge do
cardíacos, a respiração e o equilíbrio orgânico; há reguladores segundo.
químicos e nervosos; existem reguladores dos processos de cura e de Com frequência, em situações inabituais o animal interpreta ou
crescimento; e todos os animais que se deslocam livremente possuem descodifica erradamente os sinais recebidos. E isto, presumo, leva-o
um comando central dos movimentos. Segundo parece, este último a ensaios de interpretação, a oscilar entre a retirada e o avanço ou
ocupa o lugar cimeiro da hierarquia. Presumo que os estados mentais entre sensações de temor e de coragem. Daqui podem surgir
estão associados a este sistema regulador central mais elevado e que interpretações experimentais e antecipatórias de uma situação;
contribuem para uma maior maleabilidade do referido sistema. Dou antecipatórias no sentido de se relacionarem sobretudo com a
o nome de «regulador não-moldável» a um dispositivo como o que inervação motora e não com os próprios movimentos. Isso constituiría
nos leva a pestanejar quando algo se aproxima repentinamente dos um passo decisivo, significando o ensaio experimental de movimentos

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o rONHHCIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE INTERACÇÃO E CONSCIÊNCIA

ou de reacções possíveis, sem o executar simultâneo desses mesmos resíduos de formas conscientes inferiores, como todo o tipo de
movimentos. sensações vagas que se misturam a sensações dolorosas mais
Parece clara a vantagem biológica de um processo deste gênero, pronunciadas. De facto, o ser humano sentirá, por exemplo, dores
podendo conduzir a uma fase em que diversas linhas de compor­ agudas, apreensão ou grande alegria, tudo isso ao mesmo tempo.
tamento viáveis e a respectiva adequação ao caso fossem até certo Portanto, a consciência humana é uma matéria muitíssimo
ponto ensaiadas sem risco de executar de facto os movimentos. complexa. A célebre ideia de corrente ou fluxo de consciência revela-
Mas isso implicaria um certo tipo de imaginação — imaginar o -se demasiado simplista. Existem muitos graus de consciência,
resultado previsível dos movimentos — em conjunto com a fuga a superiores e inferiores, confundindo-se estes últimos com estados
resultados imaginados e previstos biologicamente negativos e a subconscientes ou inconscientes. Por outro lado, a ideia de corrente
aceitação dos que são biologicamente positivos, assim como a acção de consciência é influenciada pela teoria do tempo — a de que o
consequente. E deste modo que a consciência interage com o corpo. tempo flui.
Poderá conjecturar-se que este ensaio antecipatório se relaciona com Não há dúvida, porém, de que quando pensamos adquirimos a
ò ensaio incipiente dos movimentos ou com a inervação incipiente consciência plena, ou seja, o mais elevado estado consciente, em es­
dos órgãos locomotores, tal como a interpretação ou descodificação pecial quando procuramos que o pensamento assuma a forma de
dos sinais também se relacionará porventura com o estado geral do afirmações e de argumentos. Quer o façamos em silêncio falando
organismo, ou seja, com a sua antecipação das reacções ou com a com nós próprios — como todos fazem por vezes, a despeito de se
presteza em reagir, de modo que tais inervações, quase conducentes negar tal facto — ou discutamos com amigos problemas interessantes,
ao movimento, possam induzir à mudança e às interpretações quer passemos para o papel as nossas teorias, poucas dúvidas
experimentais dos sinais recebidos. Assim, um animal esfomeado e subsistirão de que pensar e argumentar ocorrem ao mais alto nível da
de humor agressivo interpretará todo o meio ambiente de maneira consciência. Face ao pensamento articulado, sabemos que possuímos
distinta da de outro animal que se encontre farto, assustado ou ferido: realmente consciência.
o primeiro interpreta-o do ponto de vista das fontes alimentares e o Passo agora a formular a minha teoria de consciência plena do
segundo no sentido de alternativas de fuga. ego ou eu, expondo-a em cinco teses principais:
A este nível, a consciência pode associar-se à interpretação e à
acção implantadas em sensações gerais de prazer e de dor, de 1. A consciência plena alicerça-se no mundo 3, ou seja, liga-se
actividade, curiosidade, empreendimento, retirada ou fuga. intimamente ao domínio da linguagem humana e das teorias. Consiste
Compreensivelmente, isto confere ao organismo o alargamento sobretudo nos processos de raciocínio. Mas estes não existem na
do seu sistema regulador central mediante previsões mais perfeitas ausência do conteúdo mental, que pertence ao mundo 3.
— e mais experimentais — do desenvolvimento da situação ambiental 2. O ego ou eu é impossível sem o entendimento intuitivo de
e das suas próprias reacções comportamentais. certas teorias do mundo 3 e, em boa verdade, sem que, intuitivamente,
O que até agora delineei constitui uma espécie de antecedente se aceitem como verdadeiras tais teorias. Estas dizem respeito ao
evolutivo genérico da minha nova teoria de ensaio da mente e ego espaço e ao tempo, aos corpos físicos em geral, às pessoas e
humanos. Mas antes de me ocupar dela, quero sublinhar que, de acordo respectivos corpos, ao prolongamento dos nossos próprios corpos no
com tal teoria, o elo entre estados mentais e estados físicos é espaço e no tempo e a certas regularidades dos estados de vigília e de
fundamentalmente o mesmo que existe entre sistemas reguladores e sono. Ou, por outras palavras, o ego ou eu resulta do modo como nos
sistemas regulados, sobretudo com transferência de energia dos vemos a partir do exterior, inserindo-nos, portanto, numa estrutura
segundos para os primeiros, tratando-se assim de interacção. objectiva. Uma tal visão só se torna possível com o auxílio da
Falemos agora de consciência humana. Esta contém inúmeros linguagem descritiva.

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3. O problema de Descartes de localizar a consciência plena ou no mundo 3. «Ancorada» é uma metáfora, claro, e para explicá-la
eu pensante está bem longe de ser absurdo. Presumo que a interacção proponho o argumento que esclarece o que pretendo dizer com
do eu com o cérebro se situe no centro da fala. Na próxima e última ancoragem. Esta, contudo, explica-se melhor na outra tese.
lição mencionarei alguns ensaios experimentais relativos a esta A minha quarta tese é a de que o eu ou consciência total regula
conjectura. os nossos movimentos de maneira maleável, e assim regulados
4. O eu ou consciência plena regula com maleabilidade alguns formam as acções humanas. Muitos movimentos expressivos não são
movimentos que, assim fiscalizados, constituem as acções humanas. regulados conscientemente e grande número deles foi objecto de uma
Certos movimentos expressivos não são conscientemente regulados, aprendizagem tão perfeita que foram remetidos para o nível do
sendo muitos deles objecto de uma aprendizagem tão perfeita que controlo inconsciente. Andar de bicicleta serve de exemplo: é um
foram remetidos para o nível do controlo inconsciente. movimento tão bem aprendido que desceu para o nível da regulação
5. Na hieraquia reguladora, o eu não constitui o centro de inconsciente. Posso acrescentar ao caso um dado com interesse:
regulação por excelência, visto que, por seu turno, se sujeita à aprendemos tão bem certos movimentos (que são remetidos abaixo
fiscalização maleável das teorias do mundo 3. Este último regulador, do nível da regulação consciente) que muitas vezes, quando tentamos
porém, à semelhança de todos os reguladores maleáveis, é do tipo acompanhá-los conscientemente, a nossa interferência prejudica-os
transferente ou de dádiva e recebimento, o que quer dizer que podemos a ponto de os interromper. Chamo a isto «efeito de centopeia» devido
mudar — as teorias reguladoras do mundo 3 -—, e fazemo-lo de facto. a uma curiosa história sobre a aranha e a centopeia. A primeira diz à
segunda: «Só tenho quatro patas e posso arranjar oito; mas tu dispões
Regressemos por breves instantes ao velho problema corpo- de cem e não faço a mínima ideia como consegues saber qual delas
-mente, ou seja, à pergunta sobre a existência ou inexistência de uma movimentar». Responde-lhe a centopeia: «É muito simples». E ficou
interacção entre o corpo e a mente ou de um paralelismo. A evolução paralisada desde então. O efeito de centopeia é muito real. O violinista
emergente fornece a resposta. Há sempre acção recíproca entre as Adolph Busch — talvez o conheçam de nome; morreu há cerca de
novas estruturas que emergem e a estrutura básica dos estados físicos doze anos e era meu amigo — contou-me que certa vez em Zurique,
dos quais emanam. O sistema regulador interage com o sistema após interpretar o Concerto para. Violino de Beethoven, foi abordado
regulado; os estados mentais interagem com os estados fisiológicos; pelo violinista Huberman, que lhe perguntou como é que ele executava
o mundo 3 interage com o mundo 2 e, através dele, com o mundo 1. determinado trecho musical. Busch respondeu que era muito simples,
Na última lição ocupar-me-ei do eu, da racionalidade e da mas verificou depois que deixara de conseguir tocá-lo. A tentativa de
liberdade. fazê-lo de modo consciente interferira na dedilhação ou fosse no que
fosse, impedindo-o de executar o trecho. O episódio tem muito
interesse e mostra como funciona o processo que relega as coisas
DEBATE para o inconsciente. Como é óbvio, neste processo apagamos
momentaneamente a ardósia da consciência a fim de torná-la capaz
Interlocutor J: O senhor apresentou cinco hipóteses, mas, de entregar-se a outras coisas. Assim, num violinista exímio o dedilhar
infelizmente, não me apercebí da primeira nem da quarta. do instrumento e tudo o mais que se relaciona com tal técnica funde-se
Popper: A primeira é que a consciência plena se enraiza no com o inconsciente — ou com a fisiologia, como costumo dizer— ,
mundo 3, ou seja, encontra-se estreitamente ligada à área da linguagem podendo o executante concentrar-se apenas na maneira de interpretar
humana e das teorias. A consciência total consiste sobretudo nos a peça e não com a execução técnica, pois conseguirá desenvolver
processos reflexivos. Porém, estes não existem na ausência do todos os elementos dramáticos. E, como é evidente, é esta a função
conteúdo do pensamento, que é pertença do mundo 3. Trata-se assim real — tal como quando se conduz com perícia um automóvel
de uma tese dotada de argumento — a consciência plena está ancorada executando os diversos movimentos inconscientemente, podendo

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assim prestar-se total atenção ao trânsito, o que, claro, tem muito são comandadas de maneira independente, visto existir uma
maior importância. Por conseguinte, todos estes exemplos nos indicam considerável independência de movimentos. Haverá dois dispositivos
que a regulação consciente se superioriza, enquanto as outras reguladores mais ou menos do mesmo nível, mas situados abaixo do
mergulham no subconsciente ou no inconsciente. Também pode dizer- regulador central.
-se que apenas a regulação superior permanece como acção totalmente Interlocutor 2: O que eu queria dizer é que não sei como o senhor
consciente, dando-nos assim a possibilidade de saber o que fazemos. o faria esquematicamente... talvez exista...
Interlocutor 2: Empregamos palavras como «superior» e «infe­ Popper. ... uma espécie de pirâmide?
rior» e coisas do gênero. Mas por que motivo uma acção tornada Interlocutor 2: Um outro nível que incluísse a perícia ou
explicitamente consciente — a perícia de um violinista, por exemplo, competência. Por outras palavras, não a situaria no segundo nível
ou qualquer outra aptidão que a dada altura constituiu uma luta nem a qualificaria de acção recíproca entre o segundo e o terceiro
consciente, sendo depois dominada e incorporada no subconsciente, níveis. Colocá-la-ia num quarto nível.
por assim dizer, transformando-se naquilo a que chamamos «perícia» Popper. Refere-se ao esquema:
por se lhe reconhecer a qualidade -—- é inferior à consciência a que
nos referimos em linguagem vulgar? Na verdade, parece que quando Mundo 3: teorias, problemas objectivos.
transferimos algo dessa área para o domínio de clareza ou para o que Mundo 2: disposições comportamentais.
o senhor designa por «consciência», isso transforma-se num problema Mundo 1: estados físicos?
confuso.
Popper. É inferior em termos de hierarquia reguladora. A Claro que pode subdividir-se. Penso que as aptidões perfeitamente
propósito do sistema de regulação: consideremos por exemplo a dominadas, desde que se incorporem na fisiologia, pertencem a este
criança que aprende a equilibrar-se. Por minha parte, não tenho de segundo nível. Mas a perícia ou competência em abstracto -— quero
atender ao equilíbrio, podendo assim concentrar-me noutras coisas, dizer, as suas regras — pertencem de modo explícito ao terceiro nível.
nas palavras que lhes dirijo, por exemplo. Não preciso de preocupar- Considere a linguagem, por exemplo. A minha competência em
me com o equilíbrio e posso mesmo erguer uma perna sem o perder. matéria de língua inglesa é bastante má. Porém, se dominarmos de
Claro que levantar a perna constitui um movimento consciente. Mas facto as regras, não há necessidade de pensar e a linguagem flui
a manutenção do equilíbrio enquanto o faço é inconsciente. O carácter automaticamente. Neste caso, a pessoa desconhece a maneira como
hierárquico da regulação animal demonstra com nitidez que tais acções está falando; não escolhe os vocábulos nem as regras gramaticais de
são de facto inferiores, ou seja, dependem de um outro dispositivo modo consciente. Concentra-se no conteúdo da conversa. Todavia,
regulador. Todavia, existe sempre um certo grau de interacção, as regras seguidas fazem parte do mundo 3. Nesse momento
sobretudo se as coisas correm mal e se se tropeça, tornando-se a incorporam-se no mundo 2, mas podem tornar-se explícitas. E se a
interacção bastante violenta e de novo acção consciente. O mais pessoa as explicitar, passam a pertencer ao mundo 3, especialmente
provável, porém, é que se trate de uma série reguladora existente ao quando são formuladas; e também quando não possam ser formuladas
mesmo nível, ao passo que o dispositivo regulador superior é sempre mas sim aprendidas. Claro que podemos conceber outros mundos.
único, o mais elevado, constituindo o fulcro, por assim dizer. No que Por exemplo, eu próprio diferencio «estrutura de objectivos» de
toca a reguladores de nível inferior, podem sempre subsistir algumas «estrutura de aptidões». O caso é que, de certo modo, tudo isto surge
sensações vagas que influenciem a regulação do nível superior. Por em duplicado. Quer dizer, pertence ao mundo 3, mas assinala-se
exemplo, o violinista não se concentrará apenas no dedilhar do também no mundo 2, nele se incorporando sob a forma de disposições.
instrumento, tendo também de atender ao manejo do arco. Suponho Esta dualidade está muito fora de moda. A Filosofia moderna pretende
que o problema de Busch fosse apenas o do dedilhar e não o do uso evitá-la. Um dos objectivos do positivismo e do fenomenismo é dispor
da mão direita. No caso do violinista, até certo ponto as duas mãos apenas de uma palavra e não de várias, como provavelmente sabem.

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Uma palavra representativa de outra é algo de terrível! Para eles há não vêem é o facto de tais consequências serem representadas, pelo
só uma. Na realidade, trata-se de matéria muito complicada, sem menos em sentimentos de sucesso ou de fracasso, de dor ou de prazer
dúvida. Quando a criança aprende uma linguagem, desconhece a ou em algo de semelhante, conduzindo depois à acção correspondente.
gramática na qualidade de regras explícitas. Não obstante isso, existe Julgo que este é o ponto mais importante do aparecimento da
uma gramática que ela começa por aprender recorrendo a um misto consciência quase plena, ainda não total, mas muito próxima da pleni­
de imitação e de entendimento inato e que depois se transforma em tude — nomeadamente a possibilidade de imaginar as consequências
caso disposicional. O que ela aprende desta maneira constitui algo de de tais alternativas. De qualquer maneira, trata-se de um acto
objectivo, portanto pertencente ao mundo 3. Fui suficientemente imaginativo, dando-se deste modo um passo decisivo rumo à
claro? Sem dúvida que é possível diferenciar-se. Neste sentido, sou consciência plena. Compreende-se assim que a consciência plena
pluralista e não pugno a favor da teoria de existirem apenas três — e mesmo a consciência quase total — se revela biologicamente
mundos. Estes subdividír-se-ão tanto quanto se queira e, quanto a valiosa e, por conseguinte, susceptível de desenvolvimento. Claro
certos problemas, tais subdivisões talvez sejam muito importantes. que tal teoria é muitíssimo vaga e algo intrincada, dado o óbvio
Mas, para simplificar as coisas, bastam-nos estes três. Para além disto, desconhecimento dos níveis inferiores da consciência, dos níveis da
não dou excessiva importância ao caso. Certa vez, um famoso consciência animal.
especialista em Lógica do Simbolismo disse-me que se acaso eu Esta matéria é assustadoramente especulativa. Por outro lado,
quisesse que a teoria dos três mundos fosse tomada a sério, teria de rejeitando-se o fisicismo ou behaviorismo (bastante cômodo, mas
explicar o conceito de mundo 3 por meio de um sistema axiomático. também muito falso), o problema corpo-mente só poderá ser analisado
No entanto, a seriedade com que eu encaro o assunto não chega a recorrendo à evolução, é a única maneira possível de chegar até ele.
esse ponto de modo nenhum. Trata-se de uma metáfora que nos ajuda Acho preferível valer-me de Descartes do que de Espinosa: mesmo
a compreender determinadas relações. E este gênero de coisas não que este último tenha razão e mesmo que os electrões possuam estados
pode tomar a forma de axioma — é apenas urn sinal e nada mais. subjectivos, não é isso que procuramos. Esse tipo de consciência
O mesmo acontece com muitas outras coisas. momentânea situa-se a enorme distância daquilo que nos interessa,
Interlocutor 3: Afirmaria que a função da consciência é considerar dado que o problema da evolução persiste. O caso consistirá assim
alternativas e que, quando o comportamento envolve a obediência a em saber como se transita do estado de consciência electrónica para
um modelo — por muito pormenorizado ou especializado que seja — o estado de consciência humana, e só a evolução poderá explicá-lo.
funciona melhor se não houver alternativas em vista e se ele se situar Portanto, os problemas subsistem, não solucionados, mesmo
abaixo do nível da consciência? admitindo-se uma teoria paralelística como a de Espinosa. Nunca
Popper: Sim. Claro que terá de dizer-se algo mais a tal respeito, saberemos se ele tinha razão ou não. Nunca conheceremos o
mas esse ponto é o mais importante: existem possibilidades discernimento dos electrões — de facto nem os próprios electrões o
alternativas que são experimentadas de modo a antecipar-lhes as conhecem — porque este gênero de consciência, se acaso existe, é
consequências e tal previsão exige capacidade imaginativa. Isso ocorre distinto de tudo quanto se assemelhe a conhecimento subjectivo.
frequentemente com grande rapidez, mas de facto consegue-se Espero que compreenda a minha argumentação. Havendo
antecipar as consequências das alternativas. As alternativas de nada paralelismo — se a mente e o corpo funcionam em paralelo — , a
servem se não previrmos os resultados, e para tanto há que possuir consciência correspondente seria uma espécie de memória, só tendo
alguma imaginação. Creio que esta opera mais ou menos num nível paralelo num sistema físico dotado de memória. Muitos sistemas
inferior sob a forma de imagens. Mas não cerio que as imagens sejam físicos possuem-na, os ímanes por exemplo. Portanto, há sistemas
realmente necessárias à consciência, como o prova o caso dos cegos, físicos inanimados providos de memória. Provavelmente todos os
privados de imagens visuais e que, não obstante isso, executam tal cristais têm memória e os ímanes têm-na talvez por serem cristais.
processo com êxito. O que é comum às pessoas que vêem e às que Segundo parece, todos os cristais conservam de algum modo a

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memória do respectivo historiai. Mostram-se mais frágeis devido a de relógios incorporados no organismo, possuindo portanto um sentido
certas ocorrências de desenvolvimento verificadas na sua criação e do tempo com fundamentos genéticos, conquanto seja quase certo
na de outras substâncias similares. Por conseguinte, pode falar-se de que não possuem uma teoria do tempo fundamentada do mesmo
memória em sentido físico. Se o paralelismo estiver certo, então, na modo. Ou seja: que se saiba, os animais não têm a noção temporal do
melhor das hipóteses, a memória em sentido subjectivo só emergirá seu próprio prolongamento no passado. Possuem memória, mas esta
onde existir memória em sentido físico e, portanto, não a nível dos apenas os leva a agir de maneira diferente. Ou talvez transformem
electrões e dos átomos — quando muito, a nível molecular. imagens em sonhos ou algo de semelhante. Mas, ao contrário dos
Interlocutor 4: Podemos dizer que a sua teoria anuncia o fim do seres humanos, não têm consciência de si próprios quando recuam
complexo de Edipo proposto por Freud? Por outras palavras, o seu no tempo. Esta teoria é inata na ideia do eu, e por isso é provavelmente
conhecimento das tendências edipianas será de molde a que agora destituída de base genética; no entanto, parte da teoria do corpo tem
actuemos contra elas? E significará isso que o mundo 3 afectou essa base, ao que me parece.
drasticamente o segundo e o primeiro mundos? Interlocutor 5: E se se verificar que essa teoria é falsa? Será
Popper: Se assim preferir. Mas eu di-lo-ei de maneira muito possível que tal suceda?
diferente, pois não sou freudiano. Diria que a teoria de Freud Popper. Será falsa de facto se se atirar um ser humano ao mar.
influenciou tremenclamente o mundo 2. E uma daquelas falsas teorias Ele procurará agarrar-se a algum objecto firme, mas não o conseguirá.
e, se acreditarmos nela, torna-se em parte verdadeira. Mas, quer se Tentará firmar-se instintivamente em qualquer coisa, sem êxito
encare o caso desta maneira ou à sua maneira, a teoria psicanalítica contudo, verificando-se então que a teoria é falsa. No mar não existem
produziu um considerável efeito no mundo 2; pelo menos neste ponto corpos sólidos, desvanecendo-se assim para ele a teoria de que os
estamos de acordo. Quando se fala demasiado em sexo, conferimos- sólidos possuem uma base genética e até o próprio significado destes.
lhe um valor excessivo. Quanto mais se falar dele, maior será o seu O mesmo acontecerá se a pessoa for arremessada para o vazio do
papel na vida, o que constitui parte da influência do mundo 3 sobre o espaço, o que já é possível. Se for largada no espaço envergando
mundo 2. equipamento especial mas se não tiver recebido treino nesse sentido,
Interlocutor 5: O eu depende do terceiro mundo que, por seu tentará inutilmente deitar mão a algo firme. Portanto, embora a teoria
turno, depende da linguagem, tendo esta bases genéticas. Mas na sua seja geneticamente baeada, poderá revelar-se falsa em determinadas
segunda tese o senhor também afirma que o eu está dependente de circunstâncias.
algumas particularidades — o mundo 3 contém certas teorias, e Interlocutor 5: Dpste modo, seremos capazes de criar um
mencionou espaço, tempo, objectos físicos, pessoas, etc. Na quinta dispositivo regulador maleável?
tese, contudo, diz que não estamos à mercê de nenhuma teoria par­ Popper. Claro que o viajante espacial já corrigiu a teoria. E se
ticular do mundo 3. Sustentará porventura que a linguagem, como recebeu treino adequado, então essa correcção passará mesmo a fazer
estrutura geral, possui bases genéticas, mas que nenhuma objectivação parte do seu apetrecho disposicional.
específica no seio da linguagem é geneticamente fundamentada e, Interlocutor 6: Sendo assim, podemos admitir que a correcção
por conseguinte, todas essas teorias são aprendidas... se mantém mesmo se ocorrer uma mutação que lhe retire tais genes
Popper. Algumas talvez. A idéia de objectos físicos — ou seja, a da estrutura?
ideiade um mundo exterior contendo certos elementos invariáveis — Popper. Desconhecemos o que se passa numa mutação; tudo
tem certamente uma base genética. Como é sabido, os animais dotados pode acontecer. A mutação pode até revelar-se fatal.
de locomoção são capazes de evitar obstáculos. Assim sendo, possuem Interlocutor 6: Será que a mutação sem utilidade, a mutação que
uma teoria a tal respeito, o que muito provavelmente tem base elimina o material genético que o indivíduo deixou de utilizar e contra
genética, o mesmo sucedendo quanto a outras teorias. Tomemos um o qual é treinado, é mais susceptível de se impor?
novo exemplo: sabemos que tanto os animais como as plantas dispõem Popper. Talvez. Como já disse, tudo pode suceder na mutação,

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o CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE INTERACÇÃO E CONSCIÊNCIA

que será positiva ou negativa. Certas mutações serão mais frequentes animais. Claro que isto é perfeitamente possível, mas, como já disse,
do que outras. Mas todas as eventualidades são possíveis, umas são essas experiências foram iniciadas com vermes...
benéficas e outras prejudiciais. Respondi à sua pergunta? Não? Nesse Interlocutor 7: São experiências curiosas que visam gravar
caso, não a compreendí. informação genética, é o objecti vo dessa essa gente. Há cá um fisicista
Interlocutor 6: Tento imaginar alguns dos possíveis efeitos que realiza tais trabalhos.
provocados na estrutura humana pelas viagens espaciais ou por outras Popper. Que hei-de dizer? Pode dar-se o caso de ser tão simples
experiências pouco comuns. E, de acordo com a sua teoria, o como isso, mas também pode ser bem mais complicado e que não
comportamento vem primeiro, seguindo-se-lhe as mutações. Isto possa ser injectado. Não se sabe. Talvez essas coisas se transfiram
talvez conduza a um vasto leque especulativo, não é verdade? parcialmente dessa maneira ou talvez não.
Popper: Não, não digo que o comportamento venha primeiro, Interlocutor 8: Gostaria que o senhor me esclarecesse sobre o
seguindo-se-lhe as mutações, mas sim que se lhe segue a selecção significado de «estrutura de objectivos», pois esta ideia parece ter
das mutações. Estas podem sobrevir em qualquer altura e acontecer dois significados, constituindo um deles quase uma duplicação. No
a todo o momento. Mas a selecção de uma mutação depende imenso primeiro caso, parte-se de um sistema de comportamento que seria
do comportamento adoptado. Compreende? Assim, quando as viagens «quase» — que, pelo menos, funcionaria da mesma maneira que a
espaciais se tornarem mais comuns, é possível — é admissível — mutação; neste sentido, a «estrutura de objectivos» será mais livre.
que seja seleccionada uma mutação que altere o que esperamos dos No segundo caso, a mutação é absorvida e melhora as condições ou
corpos. Antes disso, porém, muita coisa se passará ainda; as viagens mesmo o meio am biente m ediante algum tipo de teoria de
espaciais terão de tornar-se banais para que produzam efeitos de ordem aperfeiçoamento, tal como a sobrevivência dos mais aptos ou qualquer
genética. outra coisa. Estes dois sentidos de «estrutura de objectivos» serão
Interlocutor 7: Fisiólogos e fisicistas realizaram certas compatíveis? Ou serão mais do que compatíveis? Serão porventura
experiências com ratazanas, ensinando-as a percorrer um labirinto e complementares?
seguidamente matando-as. Retiram-lhes depois os cérebros e, depois Popper. Se bem percebi o que quis dizer, aquilo que pretende
de serem pulverizados, extrai-se-lhes o ácido ribonucleico por diferenciar é uma estrutura de objectivos geneticamente implantada
centrifugação, que é então injectado noutras ratazanas. Estas de uma outra estrutura de objectivos que representa apenas um novo
percorrem o labirinto da mesma maneira. Como considera isto em tipo de comportamento. Retomemos o exemplo do pica-pau. O que
termos do fisicismo que atrás contestou? sucedeu quanto ao seu desenvolvimento, suponho eu, foi que, por
Popper. Primeiro que tudo, como talvez saiba, tais experiências qualquer razão, terá surgido um dado problema que o animal
foram severamente criticadas. Mas admitamos a sua legitimidade. solucionou alterando a dieta alimentar e criando apetência por outro
Nesse caso, e referindo-me a mergulho no subconsciente, isso gênero de alimento. Há duas hipóteses a considerar aqui. Na primeira,
corresponde ao desenrolar de uma reacção química, como é sugerido a nova preferência implantou-se geneticamente, ou seja, certas
por essas experiências. O mesmo é dizer que, se algo mergulha no mutações, talvez originadoras de efeitos anatômicos ao nível do
inconsciente — falei de mergulho na fisiologia que, neste caso, pode cérebro — desconheço se foi isso, mas foi algo de semelhante— ,
ser a química — , eu não diria.que afectaria a minha opinião. Mas ocasionaram uma mudança duradoira de paladar. Quanto à segunda
tenho certas dúvidas. São experiências ambíguas. Contudo, não me possibilidade, nada disso, sucedeu, alargando-se apenas o espectro de
surpreendem grandemente, pois certamente alguma coisa terá de comportamentos possíveis. Quer isto dizer que houve uma preferência
constituir o veículo desses modelos aprendidos, a química do durante um certo período de tempo, que deixou de existir mais tarde.
organismo ou outro factor. Só no caso da química — algumas grandes Surge assim a pergunta: terá havido especialização ou não? Se esta
moléculas ou seja o que for — é que se poderá injectar noutros se deu, é provável que de seguida veio a implantação genética, e
nesse caso o comportamento constitui a arma da mutação. Por outro

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lado, embora o animal se revele extremamente apto, poderá não descritiva, a imaginação humana terá evoluído imenso em resultado
sobreviver a mudanças drásticas no meio ambiente devido a essa da possibilidade do relato de histórias. Compreende-se assim o
im plantação. Se a situação pende para o alargam ento de aparecimento de uma vasta gama de ferramentas ou de máquinas, ou
com portam entos possíveis — ou seja, para o aum ento da como se queira chamar-lhes, adaptadas ao meio ambiente de maneiras
maleabilidade do dispositivo regulador — , ocorre o contrário, tendo diversas e distintas. Um dos casos mais interessantes de máquinas
o animal mais hipóteses de sobrevivência mesmo havendo mudanças altamente desenvolvidas é-nos fornecido pelos Esquimós. As suas
muitíssimo radicais. Portanto, há duas mudanças possíveis na estrutura ferramentas especializaram-se de modo extraordinário, e os seus
de objectivos, principiando ambas de igual maneira — no caso deste arpões e caiaques são estremamente complicados. Um caiaque é quase
exemplo, com uma alteração de paladar — , muito embora uma delas um submarino: se o virarmos, podemos permanecer debaixo dele sob
se implante nos genes, mas não na outra. O que é notável no homem a superfície da água. Todas estas ferramentas passaram por um
é o facto de que, apesar de nele a linguagem parecer geneticamente desenvolvimento excepcional. Mas, claro, não possuem base genética,
implantada, quase nenhum dos instrumentos exossomáticos que criou constituindo elementos tradicionais deveras diferentes das máquinas
foi objecto de idêntica implantação. Neste sentido, a linguagem utilizadas por todas as outras raças, mas não bastante especializadas
originou assim um grande aum ento de possíveis papéis para o meio ambiente particular habitado pelos Esquimós, ambiente
comportamentais e não a sua diminuição. Julgo que este é um dos onde não vivem há muito tempo, tanto quanto se sabe. Isto demonstra
factores decisivos da evolução humana. Não é concebível que a a plasticidade de tal área e revela o erro de Mumford.
linguagem possa prejudicar-nos de qualquer maneira, pois deixa-nos Interlocutor 8: Muito embora Mumford baseie os argumentos
em aberto os temas a debater e o uso que fazemos disso; pelo contrário, em provas empíricas, suspeito que fale sobretudo em termos de
tem inúmeras maneiras de ajudar-nos. E talvez tenha impedido no­ princípios, talvez por acreditar que a própria linguagem possa ser
vas implantações. Desconheço como. Seja como for, a linguagem instrumentalizada mesmo ao nível mais básico, uma teoria que aliás
não conduziu a nova implantação. já foi proposta.
Interlocutor 8: Haverá alguma coisa entre os objectivos Popper: Claro que também eu penso que a linguagem é instru­
orientados pela linguagem e os que, digamos, talvez se compreendam mental. Não é apenas instrumental, mas é instrumental. Quer dizer:
apenas em termos do aumento da maleabilidade dos reguladores? não há dúvida quanto ao facto de as teorias serem instrumentais.
Estou a pensar na teoria de Lewis Mumford de que as máquinas são A controvérsia do instrumentalismo em confronto com o não-
anteriores à linguagem... ou seja, que as máquinas antecederam a -instrumentalismo não incide sobre o ponto de as teorias serem ou
linguagem. Não concordo com ele. não instrum entais, mas sim sobre o facto de serem apenas
Popper: Isso é quase certamente falso, penso eu. instrumentais e nada mais que isso. Concordo com o carácter instru­
Interlocutor 8: Sim, mas gostaria de saber a sua resposta a este mental das teorias, mas direi que também são algo mais. Mais alguma
caso específico. Mumford situará porventura as máquinas algures pergunta?
entre os objectivos orientados pela linguagem e os que constituem Interlocutor 5: Farei outra pergunta, que será talvez demasiado
simples mutações ou expansão regulada. Entre isto ele colocará... trivial. A propósito do esquema, pergunto-lhe como descreve a
Popper: Acho que tudo aponta para que as máquinas surgissem interacção dos três níveis na tarefa de um médico ao diagnosticar um
bem mais tarde, sobretudo porque nem a mais simples de entre elas problema.
evidencia quaisquer indícios de implantação genética, o que traduz Popper: Na lição de amanhã estará presente um grupo de médicos
um aparecimento muito mais tardio.. Portanto, considero a teoria de e talvez possamos então discutir o assunto. Seja como for, no caso
uma falsidade óbvia. Como a linguagem tem implantação genética, que refere, a competência do médico é quase na totalidade e sem
será provavelmente bastante mais antiga do que qualquer máquina; a sombra de dúvida matéria do mundo 3, sobretudo no diagnóstico,
linguagem terá talvez surgido primeiro. E, de posse de linguagem conquanto para o cirurgião, por exemplo, também se trate de perícia

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE

manual — perícia na ponta dos dedos, por assim dizer; embora para
certos médicos o próprio diagnóstico seja em parte inconsciente e
quase instintivo. Sei de alguns médicos que, ao entrarem numa sala,
«cheiram» logo o diagnóstico, se assim se pode dizer; têm uma espécie
de sexto sentido para diagnosticar. Mas isso não é o mais importante. O EU, A RACIONALIDADE E A LIBERDADE
O que de facto importa é que o diagnóstico é quase inteiramente uma
questão de ensaio e erro proficiente. Constitui um caso de ensaio e
erro que prossegue de maneira sistemática — como acontece com
todos os casos do mesmo gênero, nem todos aleatórios, de modo
nenhum — , de acordo com um plano também ele resultante de ensaios
e erros. O médico aprendeu uma espécie de programa das perguntas
a inquirir, umas de ordem geral sobre a idade, etc., do doente e outras
de natureza específica acerca da zona onde se localiza a dor, sobre as
queixas do paciente e assim por diante. Um certo tipo de rotina leva
O tópico da lição de hoje é o eu, a racionalidade e a liberdade,
a excluir certos elementos. Trata-se, sobretudo, de eliminar erros, de
um tema muito amplo, sendo grande o perigo de que degenere em
um método sistemático de eliminação aprendido em manuais ou em
todos os tipos de generalizações vagas, sobretudo em matéria tão
estabelecimentos hospitalares. Mediante um método sistemático e
propícia ao discurso especulativo.
especial de eliminação de erros, o médico chega a um reduzido número
Em primeiro lugar, sobre o ego ou eu, direi algo mais do que me
de possibilidades. E daí em diante o processo continua geralmente
foi possível dizer aquando da última vez, passando depois à
nos mesmos moldes, eliminando uma a uma essas possibilidades
racionalidade.
através de análises ao sangue ou de qualquer outro exame. Resta fazer
Quanto ao eu, a minha tese fulcral, tal como a formulei
o diagnóstico. Claro que neste processo se parte do princípio de que
anteriormente, é a de que o eu ou ego se encontra «ancorado» no
a fisiologia humana é razoavelmente simples. Quer isto dizer que,
mundo 3, não podendo existir sem ele.
não sendo ela tão simples como se esperava, o diagnóstico será errado,
Antes de discutir esta tese com maior minúcia, torna-se necessário
o que por vezes acontece. Em termos aproximados, é isto o que se
resolver a seguinte dificuldade aparente: como afirmei por diversas
passa. No processo em causa, alguns métodos de eliminação tornam-
vezes, o mundo 3 constitui, em termos aproximados, o universo dos
-se quase disposicionais se forem repetidos muitas vezes. Todavia,
nossos produtos mentais. Mas de que maneira, se, por outro lado, a
foi o mundo 3 que os levou a tomar a forma de disposições, o mundo 3
mente ou eu não pode existir sem o mundo 3?
aliado à rotina, tal como sucede quando se aprende a andar de bicicleta.
A resposta a este aparente obstáculo é simples: o eu, as funções
superiores da linguagem e o mundo 3 apareceram e evoluíram em
conjunto, em permanente acção recíproca. Deste modo, não se verifica
aqui nenhuma dificuldade especial. Falando mais especificamente,
nego que os animais tenham estados de consciência plena, que
possuam um eu consciente. O eu evoluiu a par das funções superiores
da linguagem, a função descritiva e a argumentativa.
Nos animais há um sentido espacial muitíssimo desenvolvido, e
esse sentido de orientação é sem dúvida em grande parte — se não
mesmo na totalidade — a consequência inconsciente do instinto aliado

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE O EU, A RACIONALIDADE E A LIBERDADE

aos resultados da exploração do espaço. De modo semelhante, tanto vemos os outros corpos, na qualidade de elementos invariantes do
o organism o dos anim ais como o das plantas têm relógios meio ambiente e talvez sujeitos a mudanças muito lentas. Também
incorporados, conferindo a ambos o sentido do tempo. Tanto os nos damos conta e compreendemos o ciclo de vigília e de sono e a
animais como as plantas são conscientes, presumo eu. Contudo, falta- interrupção da consciência quando dormimos, enquanto o corpo se
lhes a capacidade de perceber o seu próprio prolongamento e actuação mantém presente. Todo este processo possui um nítido carácter teórico
no tempo e no espaço; mas claro que tudo isto é conjectural. Sendo — depende da linguagem descritiva e mesmo da linguagem
conscientes, os seus estados íntimos orientam-lhes a consciência para argiunentativa.
acontecimentos relevantes que lhes são externos — se não em Em tudo isto, as funções especificamente humanas da memória
exclusivo, pelo menos quase exclusivamente. desempenham um papel de grande importância.
A minha teoria sobre a faculdade de previsão animal é que os No sentido mais lato, a memória é imputável a algo cujo
animais antecipam os movimentos de inimigos ou de presas — o comportamento depende da respectiva história. Neste sentido
caso das rãs e das moscas, por exemplo, inervando-se parcialmente alargado, podemos atribuir memória aos ímanes e, generalizando,
os movimentos de resposta, o que torna a inervação final mais rápida também aos cristais — a estruturas físicas de enorme complexidade,
e adequada. Compartilho com Gomperz e com James e Lange a portanto — e ainda, sem dúvida, a todos os organismos. Tal como
conjectura de que estas inervações parciais estão presentes nas disse na lição anterior, os electrões são destituídos de memória, assim
sensações. como os átomos, tanto quanto sabemos. Com base no comportamento
Ao contrário disto, um dos componentes da total consciência do de um cão adormecido, poderiamos conjecturar que todos os cães
eu comporta um conhecimento de nós mesmos que remonta ao sonham e que os lampejos de memória desempenham um papel
passado, pelo menos até um certo recuo. O nosso sentido de semelhante ao dos nossos próprios sonhos. Mas a evocação voluntária
localização no espaço engloba no mínimo o esboço histórico de como da experiência humana (o caso, por exemplo, do poema aprendido
chegámos até ali. Se a pessoa acordar num local que lhe é de cor há muitos anos que procuramos recordar de maneira consciente)
desconhecido, perguntará a si própria: «Onde estou? Sofri um só se torna possível devido aos elos que nos ligam aos objectos do
acidente? Como vim parar aqui?». mundo 3. Isto também é válido relativamente à evocação de
O ser humano não só possui a consciência pelo menos rudimentar acontecimentos pretéritos, os quais redescobrimos por meio de
do respectivo historiai passado, mas também a consciência pelo menos tentativas de associação a outros retalhos de memória de acordo com
rudimentar das suas expectativas, que em regra incluem objectivos e teorias que sustentamos acerca da nossa história passada. Em toda
propósitos, interesses imediatos e outros mais distantes. esta matéria, recorremos ao conhecimento disposicional ou ao que se
Tudo isto se acha contido em nós sob a forma de disposições, formula através da linguagem, pelo menos em parte.
disposições que trazem o passado à consciência, sendo assim muito Portanto, é evidente que mesmo o papel desempenhado pela
diferentes do sentido de espaço e de tempo igualmente disposicional memória no eu consciente se acha implantado no mundo 3, o universo
dos animais. Com efeito, as disposições humanas associam-se a outras do conhecimento sujeito a crítica, do conhecimento no sentido
dirigidas às teorias: a teoria do tempo com base no ciclo diurno e objectivo. Criticamos constantemente a deficiência de tentativas
nocturno, a teoria do espaço na qualidade de conjunto ordenado de evocativas e reconstituí ivas de certas recordações, procurando
distâncias espaciais invariáveis entre cotpos físicos distintos e a teoria descobrir os elementos que lhes faltam.
dos corpos físicos como elementos conspícuos e invariantes do meio Atingimos assim o resultado a que aludi na última lição — o ego
ambiente. Mas aquilo que constitui o ego ou eu é em parte o facto de ou eu relaciona-se intimamente com as funções superiores da
nos percebermos situados dentro desse sistema de referência e de linguagem, o que revela uma acção recíproca entre a consciência plena
termos atingido os locais onde nos encontramos ao deslocarmo-nos e o centro cerebral da fala.
no seio dele. Além disso, vemos os nossos próprios corpos, tal como

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Apresentarei em seguida três teses que contêm algumas destas Em matéria psicológica factual, o conhecimento do ego ou eu
idéias e outras adicionais: resultante de disposições aparece todavia mais tarde no
desenvolvimento infantil do que o mesmo tipo de conhecimento
1. Na evolução da espécie, o ego, eu ou consciência pessoal surge acerca do mundo exterior e das outras pessoas ou mentes. Com efeito,
em conjunto com as funções superiores da linguagem, ou seja, a o conhecimento do eu segundo moldes disposicionais é obtido pela
descritiva e a argumentativa, e interage com tais funções. criança durante o processo de crescimento, no decurso do qual também
2. No desenvolvimento da criança, o ego, eu ou consciência adquire linguagem descritiva e argumentativa. O desenvolvimento
pessoal progride a par das funções superiores da linguagem e, por da criança ocorre em paralelo com a evolução da espécie — enquanto
conseguinte, só depois de a criança ter aprendido a exprimir-se, a o conhecimento de carácter disposicional do mundo exterior é
comunicar com os outros, a compreender as relações com o seu acessível aos animais, o do eu emerge apenas nos seres humanos.
semelhante e a adaptar-se ao meio ambiente físico. Comentarei agora a minha conjectura anatômica que é susceptível
3. O ego ou eu associa-se, por um lado, à função reguladora de comprovação — e em boa verdade os ensaios são fascinantes e
central do cérebro e, por outro lado, interage com os objectos do desconcertantes. Quando concebi esta conjectura anatômica,
mundo 3. Visto interagir com o cérebro, o local desta acção recíproca desconhecia as experiências em curso, que podem ser interpretadas
é situável em termos anatômicos; sugiro que se localize no centro como ensaios da minha própria conjectura (fiquei a par delas em
cerebral da fala. 1966, durante a palestra de Sir John Eccles em Eddington). Farei um
breve relato dessas experiências.
Sobre a primeira tese, respeitante à evolução linguística da espécie O cérebro humano consiste em duas metades simétricas, servindo
humana, já me ocupei bastante anteriormente, e por isso não a metade esquerda o lado direito do corpo e vice-versa. Em quase
acrescentarei mais nada agora. todas as pessoas —a grande maioria é constituída por indivíduos
Quanto à segunda, sobre o desenvolvimento da consciência dextros — o centro da fala localiza-se no hemisfério cerebral esquerdo.
pessoal da criança, farei apenas um ou dois comentários. As duas metades do cérebro ligam-se por uma espécie de ponte
Acredito no senso comum, de que sou grande admirador. Mas formada por inúmeras ligações entre os dois hemisférios. A esta ponte
por vezes este comete graves erros, nomeadamente no que se refere à dá-se o nome de «grande comissura cerebral».
teoria do conhecimento, pois como se viu esta teoria é subjectivista e Em certas operações cirúrgicas ao cérebro, a ponte é cortada
sensualista. A teoria do conhecimento proposta pelo senso comum é longitudinalmente, interrompendo-se a ligação entre o lado direito e
a teoria da mente como recipiente e afirma que, quanto às nossas o esquerdo.
histórias pessoais, nós — significando «nós» os diversos eus — De início, tal operação realizou-se apenas em animais, incluindo
chegamos ao conhecimento através dos sentidos. primatas, observando-se depois que eles permaneciam normais; o
Os filósofos idealistas adoptaram-na. A filosofia solipsística e a mesmo sucedeu aos pacientes humanos que se submeteram a igual
filosofia de Berkeley — a que é costume dar-se o nome de «idealismo cirurgia no decurso dos últimos quatro ou cinco anos.
subjectivo» — mencionadas na última lição, resultam desta falsa teoria Diga-se a propósito que certos pacientes com graves ataques de
do conhecimento, já que postulam que o conhecimento consiste na epilepsia se sujeitam a essa cirurgia, e aparentemente ficam curados;
experiência pessoal ou na memória de algumas experiências pessoais. sentem-se felizes e comportam-se em todos os aspectos como pessoas
Mas quando se fala de experiências pessoais, surge o ego ou eu. normais, embora por vezes surjam certas diferenças quando
Assim, as filosofias deste gênero tomam como certo o ego, eu ou submetidos a vigilância clínica, diferenças a que aludirei com
sujeito, procurando em seguida construir o mundo exterior — brevidade.
incluindo outras pessoas e outras mentes — com base no ego ou Os operados lêem tão bem como antes, com os dois olhos ou
conteúdo da mente, mas fracassam em tal projecto. com o direito. Mas há um facto curioso, porém: quando não se

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a p e r c e b e (por meio dos órgãos localizados no lado direito do corpo, O que impõe grandes limites à racionalidade não é o simples
como o olho ou a mão) dos movimentos executados pelo braço facto da dificuldade em conseguir tal atitude nem tão-pouco o facto
esquerdo, deixa de ter consciência desses movimentos. Não se trata de sermos animais mais passionais do que racionais. Tais factos são
de personalidade dividida cuja globalidade permanece intacta, mas óbvios, mas o que realmente importa neste caso é que toda a crítica
sim que o paciente apenas tem consciência plena dos sinais recebidos tem um carácter fragmentário, processando-se por partes — acontece
pela metade esquerda do cérebro provenientes da metade direita do também na ciência, e até mesmo com qualquer crítica revolucionária
corpo. que rejeite e reconstrua uma teoria científica.
Um exemplo é o caso de um fumador estar habituado a retirar os A razão é muito simples. A crítica só é crítica se criticar uma
cigarros do maço com a mão esquerda para os colocar no canto dada teoria experimental que formulámos e que propusemos como
esquerdo da boca e utilizar o isqueiro com a esquerda para acendê- objecto de pesquisa e de análise, tal como investigamos, por exemplo,
los; após a operação, um fumador executou todos os gestos como era um relógio que pretendemos adquirir como prenda de anos.
seu hábito, apesar de não ver com o olho direito o que fazia. Contudo, Contudo, o nosso conhecim ento consiste numa enorme
agiu de modo inconsciente, ou seja, foi incapaz de dar respostas quantidade de disposições, expectativas e teorias, mas apenas um
correctas às perguntas feitas acerca dos movimentos executados. reduzido número se apresenta de modo consciente em determinado
Porém, quando colocava o cigarro no canto direito da boca, tinha momento temporal. Com efeito, a cada instante seleccionamos uma
consciência do gesto e dizia-o. só teoria para crítica, uma única ficará sob investigação. Mas na
Em geral, desde que o lado direito não intervenha, a pessoa não pesquisa de qualquer teoria utiliza-se uma enorme quantidade de
se apercebe das reacções ocorridas no lado esquerdo, declarando conhecimento, sobretudo de maneira inconsciente, conhecimento de
desconhecer esses movimentos, que se mantêm inconscientes por não todos os graus de importância. A este conhecimento dei o nome de
se reportarem ao centro da fala. «conhecimento de fundo», aquele que é aceite sem crítica e que é
Concluo assim este esboço superficial de uma nova teoria do eu tomado como certo durante o processo de pesquisa.
ou consciência e da sua função mais importante que é a de estabelecer Isto não quer dizer que o investigador seja forçado a aceitar que
uma espécie de comando remoto bastante maleável do centro da fala totalidade deste conhecimento de fundo está garantida. Pode haver
por intermédio do mundo 3. Passo agora a alguns comentários sobre um erro oculto, não na teoria investigada mas sim em certos elementos
a racionalidade humana. do conhecimento de fundo, e assim o investigador criticará apenas
Sou racionalista, ou seja, procuro sublinhar a importância da uma parte dele. Portanto, esta parcela deixa de constituir conhecimento
racionalidade para o homem. Mas, tal como todos os racionalistas de fundo, transform ando-se em conhecim ento subm etido a
pensantes, não afirmo que o homem seja racional, É óbvio, pelo investigação.
contrário, que mesmo o homem mais racional é altamente irracional Neste caso, o exemplo mais interessante provém de Einstein.
em muitos aspectos. A racionalidade não é patrimônio do homem O cientista examinou certos obstáculos contidos na teoria de Maxwell
nem um facto acerca dele. Trata-se de uma tarefa que o homem tem sobre a interacção electromagnética dos corpos em movimento e
de realizar, uma tarefa dificultosa e cheia de restrições; mesmo que descobriu que era possível ultrapassá-los contestando o tácito
parcial, será difícil conseguir a racionalidade. pressuposto de fundo, e anteriormente nunca notado, de que a
Nunca discuto a propósito de palavras nem as defino, mas sou simultaneidade é um conceito absoluto. Einstein demonstrou como e
obrigado a explicar o que quero dizer com «racionalidade». Por porquê a simultaneidade devia reportar-se a um «referencial de
racionalidade entendo apenas uma atitude crítica face aos problemas inércia» de todos os corpos em repouso dentro de tal sistema; ou, por
— a presteza em aprender com os erros e o propósito consciente de outras palavras, que a simultaneidade de acontecimentos distantes só
assinalar erros e preconceitos. Portanto, «racionalidade» quer dizer era transitiva dentro desse referencial. Antes de Einstein assumia-se
uma atitude consciente e crítica de eliminação de erros. que se um acontecimento A era simultâneo a B, e B a C, então A era

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sempre simultâneo a C. Mas Einstein demonstrou que isso só era não há problema, teoria, preconceito ou elemento do conhecimento
válido para acontecimentos distantes se por um lado A e B, e B e C de fundo que se exima à nossa apreciação crítica.
por outro, fossem simultâneos dentro do mesmo sistema inerte de Deste modo, os limites inerentes da racionalidade só o são no
referência. Segundo Einstein, havia que corrigir — uma correcção sentido de que tais considerações impedem a tendência para uma
muitíssimo sofisticada — esse pressuposto aparentemente óbvio e crítica generalizada de todas as coisas ao mesmo tempo. Pelo
nunca antes formulado em termos explícitos, pertencente àquilo que contrário, não existem limites quanto aos objectos da crítica racional;
eu designo por «conhecimento de fundo». A correcção teve um nada se furta ao escrutínio crítico em nenhum momento.
significado revolucionário e o caso ilustra a impossibilidade de criticar Daqui se depreende como estamos longe de ser racionais.
todo o nosso conhecimento de uma só vez. Falhamos não só em tudo quanto julgamos saber, mas também na
Constitui um desafio ao engenho e à imaginação crítica descobrir abordagem crítica. Somos obrigados a escolher os problemas e as
que dado do conhecimento — possivelmente do conhecimento de teorias a sujeitar à crítica racional. Mas este acto de escolha
fundo — é responsável por determinada dificuldade ou discrepância representa em si mesmo uma conjectura experimental. Deste modo,
em certos problemas ou teorias. As conjecturas experimentais são podemos passar a vida inteira debatendo-nos com o problema errado
sempre arriscadas e frequentemente temerárias, e a proposta de análise — e esta é uma das razões por que somos falíveis mesmo na
crítica de uma suposição até aí incontestada (e talvez mesmo abordagem crítica.
inconsciente) pode revelar-se por si mesma uma conjectura nova e A ideia revolucionária — que Platão concebeu, aliás — da
ousada. necessidade de limpar por completo a tela, de apagar o quadro do
Dado que a maioria do conhecimento subjectivo é inato ou conhecimento para começar de novo desde o início não é praticável.
tradicional — e portanto disposicional —, também não se consegue Se regressássemos ao ponto em que Adão principiou, não haveria a
formulá-lo de modo explícito. Parte deste conhecimento de fundo mínima razão para que fizéssemos melhor do que ele fez ou para que
pode mesmo estar integrado na gramática da linguagem, e por chegássemos mais longe. Nem o próprio Adão principiou com um
conseguinte (à semelhança do ar que se respira) é sempre assumido quadro em branco. Portanto, teríamos que nos libertar de todas as
ou pressuposto nos argumentos, sendo-nos assim difícil assiná-lo ou expectativas e preconceitos, de todo o conhecimento disposicional
criticá-lo. Foi o que aconteceu no caso da simultaneidade. Com efeito, adquirido no decurso da evolução; teríamos que retroceder não a Adão,
a gramática de todas as frases construídas com a palavra «mesmo» mas sim aos bichos, aos animais e, em boa verdade, às amibas. Assim,
— como em «ao mesmo tempo» ou «do mesmo comprimento» — o sonho de uma tela totalmente limpa não se mostra revolucionário
implica transitividade. Einstein demonstrou que esse emprego, aliado ou progressista e sim retrógrado e mesmo reaccionário. Há que ser
a um método de estabelecimento da simultaneidade de ocorrências modesto e estar consciente da falibilidade e ter em mente o avanço
distantes num dado referencial, leva a concluir que qualquer ousado mas sempre tacteante por meio do qual a vida conquista
ocorrência — como a tomada de posse do presidente Johnson — é novas condições ambientais e cria novos mundos passo a passo.
simultânea de qualquer outro acontecimento — por exemplo, a tomada Foi assim que nos emancipámos do mundo semiconsciente dos
de posse do presidente Nixon — , o que é absurdo. O emprego está animais e obtivemos a consciência plena. Foi assim que inventámos
correcto, porém, desde que aplicado à vida comum, visto vivermos e desenvolvemos a ciência, aproximando-nos cada vez mais da
dentro de um sistema aproximadamente inerte. verdade.
Por tudo isto se vê que a crítica só pode ser fragmentada, o que Talvez seja agora a altura de tecer algumas considerações críticas
impõe certos limites à racionalidade, ou seja, ao alcance da crítica. acerca daquilo a que dou o nome de «mito do referente». Por «mito
Todavia, a afirmação seguinte parece válida: conquanto a crítica não do referente» entendo o ponto de vista, muito divulgado e com
possa manusear mais do que um ou dois problemas ou teorias ao frequência aceite de maneira inconsciente, de que todos os argumentos
mesmo tempo — devendo, de preferência, ocupar-se de um só —, racionais têm sempre de funcionar no seio de uma estrutura de

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^ c o n h e c im e n t o e o p r o b l e m a c o r p o - m e n t e O eu,a r a c i o n a l i d a d e e a l ib e r d a d e

suposições. Tal parecer poderá designar-se por «relativismo», pois que, de todas as teorias em causa, essa parece mais próxima da verdade
implica que cada asserção seja tomada em relação a um sistema de do que as outras.
referência de conjecturas. Disse o que penso do justificacionismo e as objecções que lhe
Uma forma bastante comum do mito do referente também faço. O mito do referente também o rejeita, mas de maneira menos
sustenta que todos os debates e confrontos entre pessoas que adoptem drástica. Conserva dele alguma coisa mais do que eu, visto afirmar
referenciais diferentes são vãos e descabidos, visto o debate racional que a justificação tem de se reportar a um sistema de referência que,
funcionar apenas dentro de uma determinada estrutura de suposições. por seu turno, não pode ser justificado.
A prevalência de tal mito é um dos grandes malefícios intelectuais Mas mesmo adm.itindo-se a doutrina de um referente, não
do nosso tempo, pois mina a concórdia da humanidade e afirma esqueçamos que os diversos referentes podem competir entre si. Tal
dogmaticamente que, em regra, o debate racional ou crítico só pode como no caso das teorias, isto quer dizer que os defensores de um
acontecer entre pessoas com opiniões quase idênticas. E encara os referente podem contestar um outro referente. E nós, como
homens que buscam a racionalidade como prisioneiros numa espectadores, porventura procuraremos fazer um juízo racional do
armadilha de crenças irracionais, porque, em princípio, não se sujeitam sistema de referência que apresente a melhor crítica sobre os outros e
à discussão crítica. Poucos mitos haverá que se mostrem tão que se defenda das críticas rivais com maior êxito. Com efeito, em
destrutivos como este. De facto, a alternativa ao debate crítico é a princípio não há qualquer diferença entre um referente e uma teoria.
violência e a guerra, tal como a única alternativa a estas últimas é a Por vezes afirma-se que os diversos referentes de suposições
discussão crítica. são tão diferentes como as linguagens e que as várias linguagens dos
Neste caso, todavia, o ponto principal reside no facto de o mito diferentes referentes não conseguem compreender-se umas às outras,
do sistema de referência constituir um puro erro. Como se sabe, o e assim a crítica torna-se impossível. Este ponto de vista apoia-se no
debate entre pessoas que perfilhem pontos de vista idênticos ou quase estudo de Benjamin Lee Whorf sobre a língua dos índios Hopi. O
idênticos poderá ser mais fácil do que outro entre pessoas que dado mais saliente, porém, é o facto de este autor ter aprendido a
sustentem opiniões diametralmente opostas ou bastante distintas. Mas língua hopi e de eu conhecer hopis que falam inglês bem melhor do
só neste último caso é que a discussão originará algo com interesse. que eu. Por outras palavras, todas as linguagens humanas podem ser
A discussão será complicada, mas requer paciência, tempo e boa dominadas por pessoas dotadas de suficiente capacidade para tanto.
vontade de ambas as partes. Mesmo não se chegando a acordo, as O mesmo sucede quanto aos referentes de suposições, que podem
pessoas sairão mais esclarecidas do debate do que ao iniciá-lo. Por ser estudados, compreendidos e criticados por indivíduos estranhos
«boa vontade» entendo, para começar, admitir a possibilidade de a eles, permitindo assim a competição entre vários sistemas de
estarmos errados e de aprendermos algo com o adversário. O mito do referência.
referente pode ser interpretado como uma forma sofisticada de um Os eventuais ensinamentos a extrair daqui podem ser expressos
ponto de vista designado por «justificacionismo», ou seja, a doutrina como segue: em todos os instantes do seu crescimento mental, o ser
de que a racionalidade consiste na justificação racional das nossas humano permanece, por assim dizer, confinado a um referente
teorias. Mas o justificacionism o é uma doutrina logicamente específico e a uma determinada linguagem, o que lhe limita imenso o
impossível; não existe justificação racional de teorias. pensamento. Mas trata-se de um confinamento ao jeito de Pickwick,
Como vimos, todas as teórias não passam de palpites ou pois a todo o instante é-se.livre de fugir à prisão mediante a crítica do
conjecturas e tudo quanto podemos justificar em termos racionais é a referente em que se está inserido, trocando-o por outro mais amplo e
preferência por uma ou duas teorias concorrentes. Mas há toda uma verdadeiro e adoptando uma linguagem mais rica e menos eivada de
diferença abismai entre justificar uma preferência momentânea por preconceitos.
uma das teorias rivais e justificar a teoria. Mas podemos justificar a O corte com o sistema de referência que nos é próprio porventura
preferência, mesmo por uma teoria falsa, se conseguirmos provar revelar-se-á difícil mas não impossível. E tal ruptura será gerada ou

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE O EU, A RACIONALIDADE E A LIBERDADE

estimulada pelo choque com outro referente, quer dizer, através do problemas P2 que elas suscitam — e como transpor tais obstáculos.
confronto; nada é mais proveitoso do que isto. De facto, a história da Trata-se de um processo infindável, pois toda a teoria origina, no
civilização demonstra quão fértil pode ser o choque com uma cultura mínimo, o problema de ela própria por seu turno se explicar por outra
diferente. A civilização ocidental resulta de um certo número de teoria de nível superior; com efeito, nenhuma teoria constitui a
choques culturais, como os que se verificaram entre a cultura grega e explicação última.
as culturas do Oriente. Homero e Heródoto relatam a história de duas O que se disse mostra que a avaliação de uma teoria não é
dessas colisões, tendo os autores ampla consciência do significado determinada apenas pela lógica ou pela sua estrutura, excepto talvez
dos acontecimentos. Estes choques há muito ocorridos contribuíram se a teoria for obviamente falsa ou faça reivindicações obviamente
para o nascimento da ciência e do racionalismo grego, ou seja, para a falsas — de perfeição ou peremptoriedade, por exemplo — como no
emergência do apreço dos Gregos pelo debate racional e crítico. caso das teorias do fisicismo e do paralelismo. Como se vê, existe
E assim se desfaz o mito dos referentes! um vastíssimo leque de liberdade no relacionamento com o mundo
Para concluir, direi ainda algumas palavras sobre a racionalidade. 3, na compreensão e no cálculo das teorias, e essse leque é ainda
Como já disse, somos sempre prisioneiros dos nossos preconceitos maior no que toca à criatividade humana.
ou do nosso referente de suposições. Mas, recorrendo ao mundo 3 e Como tese principal, afirmei que o eu está «ancorado» no mundo
ao seu método de tornar as teorias e as suposições externas a nós 3. Mas essa maneira de nos ancorarmos admite uma ampla gama de
— quer dizer, formulá-las com clareza de modo a poderem ser possibilidades. Exploramos e ampliamos o mundo 3 em quase tudo o
criticadas — podemos sempre fugir desta cadeia com o auxílio da que fazemos, o que representa não só liberdade mas também grande
crítica racional. responsabilidade.
Sem sombra de dúvida que possuímos tal liberdade; a relação Finalizarei a lição discutindo a relação entre o homem e o seu
m antida com o mundo 3 não se com preende sem ela. Ao trabalho, algo que é de suma importância para toda a gente.
confrontarmo-nos com um objecto do mundo 3, tal como uma teoria, Segundo a teoria da auto-expressão, a qualidade do trabalho feito
a primeira tarefa que se impõe é entender esse objecto. Entender uma depende da aptidão para o executar; depende apenas do talento e dos
teoria, porém, não significa aceitá-la nem considerá-la a melhor entre estados psicológicos e talvez fisiológicos. Esta teoria é falsa, perversa
diversas teorias rivais. Antes de formarmos um juízo sobre o carácter e desanimadora. De acordo com a teoria do mundo 3, esse vínculo
preferencial de uma sobre as outras, há que compreendê-las a todas. não é assim tão simplista. Pelo contrário, verifica-se uma acção
Existem muitos graus de entendimento de teorias. O mais ínfimo recíproca de dar e receber entre a pessoa e o respectivo trabalho.
consiste em compreender-lhes as palavras e as frases do ponto de O trabalho efectuado pode enriquecer o indivíduo no sentido de
vista linguístico. Assim, a propósito de um livro ou de uma palestra, executá-lo ainda melhor, e este ciclo repete-se inúmeras vezes sempre
por exemplo, afirmar-se-á «compreendí todas as palavras»; ou, com vista ao aperfeiçoamento.
prosseguindo, dir-se-á talvez «conquanto tenha compreendido todas O mundo 3 actua sobre nós num permanente circuito de
as palavras, não faço a mínima ideia do que se trata». A fim de transferência energética. E o aspecto mais activo desse mundo é o
entendermos o conteúdo de uma teoria, em primeiro lugar é necessário nosso próprio trabalho, o produto que reverte a favor dele.
compreender o problema que ela procura solucionar; e compreender A autocrítica consciente pode ampliar em muito tal transferência.
também as diversas tentativas feitas de resolução, ou seja, as diferentes A evolução, a coisa mais incrível da vida, e o desenvolvimento mental
teorias rivais. Sem isto, não se abarcará o significado pleno de nenhum constituem esse método de dádiva e recebimento, essa interacção
problema, visto que a compreensão plena equivale a apreciação ou entre os nossos actos e os respectivos resultados, por meio dos quais
avaliação. E, claro, existem graus de entendimento ainda mais nos transcendemos constantemente a nós próprios e aos nossos
elevados, como no caso de a pessoa descobrir por si mesma onde talentos e dons.
residem as dificuldades das várias teorias — ou seja, os novos A transcendência pessoal é o facto mais notável e importante de

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O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE O EU, A RACIONALIDADE E A LIBERDADE

toda a vida e de toda a evolução, sobretudo da humaua, e acha-se sofrem a influência da maneira como o mundo 2 compreende o
contida na passagem de P/ e Pr mundo 3. Por isso, é impossível compreender a mente e o eu humanos
Nos seus estádios pré-humanos, tal transcendência foi menos sem entender o mundo 3, e também não se pode interpretar este
pronunciada, claro, podendo confundir-se com algo como auto- mundo 3 como mera expressão do segundo, ou este último como um
expressão. Mas, ao nível humano, a autotranscendência só se distingue simples reflexo do terceiro.
mediante um verdadeiro esforço. Com as teorias sucede o mesmo O processo de autotranscendência por meio de um mútuo
que com os filhos: também elas tendem a tornar-se independentes desenvolvimento e transferência pode ser conseguido em todas as
dos seus autores. E, tal como pode suceder com os filhos, também áreas e caminhos da vida, nas relações pessoais, por exemplo. Não
assim acontecerá com as teorias: receberemos delas uma dose de dependerá só de nós e provocará desapontamentos, mas há desilusões
conhecimento maior do que o que investimos nelas originalmente. em todas as fases da vida. A tarefa que nos incumbe é evitar o
O processo de aprendizagem — de aumento do conhecimento sentimento de que não recebermos o que nos é devido. Com efeito,
subjectivo — é sempre o mesmo na essência: crítica imaginativa, a pelo simples facto de existirmos, recebemos já mais do que
maneira como transcendemos o meio ambiente local e temporal merecemos; para compreendê-lo, basta sabermos que o mundo não
quando procuramos pensar em circunstâncias para além da nossa nos deve nada.
experiência, tentando descobrir, arquitectar e prever novas situações Todos nós podemos participar de herança do Homem e ajudar a
— ou seja, situações experimentais e criticáveis — e também localizar, preservá-la. Prestemos-lhe o nosso modesto contributo e não
entrever e desafiar os nossos preconceitos e suposições. solicitemos mais do que isso.
Assim nos erguemos do marasmo da ignorância, assim atiramos
ao ar uma corda e trepamos por ela desde que atinja um ponto de
apoio, um ínfimo galho de árvore, por mais precário que seja.
O que distingue os nossos esforços dos dos animais ou das amibas
é o facto de a corda poder chegar ao mundo 3 do debate crítico — o
universo da linguagem e do conhecimento objectivo. Isso permite-
-nos pôr de parte certas teorias concorrentes. Deste modo, com alguma
sorte, sobreviveremos com êxito às teorias falsas — geralmente
erradas — , ao passo que a amiba perecerá em conjunto com as suas
próprias teorias, crenças e hábitos.
Vista a esta luz, a vida constitui exploração e descoberta, a
descoberta de novos factos e de novas possibilidades pela via do ensaio
das hipóteses concebidas pela imaginação. Ao nível humano, este
ensaio processa-se quase por inteiro no mundo 3. Fazemo-lo por meio
das tentativas mais ou menos bem sucedidas de representar o primeiro
e o segundo mundos nas teorias do terceiro. E quando o fazemos ao
aproximamo-nos da verdade, uma verdade mais ampla, completa e
útil, mais logicamente sólida e mais relevante — relevante para os
nossos problemas, claro.
Ao nível humano, aquilo que designei por «mundo 2» — o mundo
da mente — transforma-se cada vez mais no elo de ligação entre o
primeiro e o terceiro mundos. Todos os actos executados no mundo 1

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POSFÁCIO DO ORGANIZADOR

A presente obra baseia-se nas Kenan Lectures que Karl Popper


efectuou na Universidade de Emory na Primavera de 1969. Estas
lições realizaram-se sem notas escritas e o livro deve a sua existência,
pelo menos em parte, aos registos das gravações e também dos de­
bates que se lhes seguiram. As gravações foram aparentemente
transcritas nos começos da década de 70. Karl Popper principiou então
a rever as lições e redigiu um prefácio, porventura no intuito de
transformá-las em livro. Foram elaboraradas várias versões de cada
lição e solicitaou-se e recebeu-se críticas. Mas, segundo parece, o
trabalho pouco progrediu dada a premência de outras tarefas que
obrigaram Karl Popper a pôr de lado o manuscrito; permaneceu na
gaveta até 1986, altura em que a Hoover Institution on War, Revolu-
tion and Peace adquiriu a documentação do autor e criou o Arquivo
Popper na sua biblioteca da Universidade de Stanford.
O texto agora publicado difere quer das Kenan Lectures tal como
se realizaram na Universidade de Emory, quer dos exemplares
dactilografados que descobri no Arquivo Popper. Por isso, conquanto
o presente volume se baseie nas Kenan Lectures, a sua intensçãõ não
é fornecer um registo histórico. Pelo contrário, as cópias dacti-
lografadas encontradas tinham sido já objecto de extensa revisão das
lições originais; o que agora se publica constituí a revisão alargada
do material descoberto. As revisões a que procedi foram sobretudo
de natureza estilística e destinadas a suavizar a passagem do texto
oral para o texto escrito; outras foram mais profundas e, em certos
trechos, vi-me forçado a reconstituir a prosa onde existiam falhas do

167
O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE POSFÁCIO DO ORGANIZADOR

registo original. Karl Popper incentivou-me a proceder de acordo enorme dívida de gratidão, pois o seu trabalho facilitou-m e
com isso e, em especial, a simplificar a expressão onde quer que tal indubitavelmente a tarefa.
fosse possível sem deturpar-lhe o pensamento. As alterações Por último, não há palavras capazes de expressar o que devo a
introduzidas não estão assinaladas no texto a fim de não distrair a Kira Victorova, minha colega e esposa, que, de diversas maneiras,
atenção do leitor. E, visto Karl Popper as ter aprovado como se ele foi co-organizadora do livro.
próprio as fizesse, não vi nenhum motivo para indicá-las. Desejo Karl Popper morreu em 17 de Setembro de 1994, pouco antes da
agradecer ao autor a confiança demonstrada ao confiar-me a obra. publicação deste volume. Sentimos-lhe imensamente a falta.
Estou-lhe sobretudo, grato pelas muitas e estimulantes conversas que
tivemos a respeito dela. M. A. Nottumo
O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente é o segundo vol­ Budapeste, 1995
ume que se publica do material proveniente do Arquivo Karl Popper
e o primeiro constituído por prosa inédita. Assinalo aqui com gratidão
o modo como W. W. Bartley III e a Hoover Institution on War, Revo-
lution and Peace se consagraram à tarefa de fundar o citado arquivo.
Em Março de 1992, a lanus Foundation iniciou o seu apoio
financeiro ao trabalho que realizei no Arquivo Popper. Forneceu-me
microfilmes dos documentos e o equipamento necessário para utilizá-
los, de modo a ser-me possível trabalhar em Chicago. Possibilitou
também a orientação de Karl Popper por meio de demoradas conversas
telefônicas transatlânticas.
Agradeço ao director científico da lanus Foundation, Werner
Baumgartner, a sua opinião sobre a árvore genética de Popper e,
sobretudo, a amizade que me dispensou. Também endereço os meus
agradecimentos a Jim Baer, presidente da mesma fundação, que me
providenciou o melhor equipamento para efectuar o trabalho.
Agradeço ainda a Elisabeth Erdman-Visser (a primeira pessoa a
sugerir a Karl Popper que eu publicasse esta obra), a Ursula Lindner
e a Melitta Mew (que me deram o necessário apoio moral), a Raymond
Mew (que leu o manuscrito, dando muitas e úteis opiniões), a Rich-
ard Stoneman (editor principal na Routledge), a Sue Bilton (que
orientou a publicação do livro pela Routledge) e a Victoria Peters
(que a auxiliou nesta tarefa).
Em Janeiro de 1994, a Soros Foundation e a Centrai European
University assumiram o apoio financeiro ao meu trabalho. Agradeço
o interesse que George Soros dispensou ao projecto, bem como a sua
concordância com a ideia do mundo como sociedade aberta perfilhada
por Karl Popper.
Tal como já disse, planeou-se publicar este volume nos anos 70.
Na altura, Jeremy Shearmur ocupou-se dele, para quem tenho uma

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BIBLIOGRAFIA

São os seguintes os livros de Karl Popper publicados em língua


inglesa:

The Open Society and Its Enemies, volume I: The Spell o f Plato,
Routledge and Kegan Paul, Londres, 1945, revisões em 1952,
1957, 1962 e 1966.
The Open Society and. Its Enemies, volume II: The High Tide ofProph-
ecy: Hegel, Marx and the Aftermath, Routledge and Kegan Paul,
Londres, revisões em 1952, 1957, 1962 e 1966.
The Poverty o f Historicism, Routledge and Kegan Paul, Londres,
1957.
The Logic o f Scientific Discovery, Hutchinson, Londres, 1959;
reeditado por Routledge, Londres, 1992. Tradução de Logik der
Forschung, Julius Springer, Viena, 1934; edição revista, J. C.
B. Mohr, Tübingen, 1989.
Conjectures and Refutations: The Growth o f Scientific Knowledge,
Routledge and Kegan Paul, Londres, 1963, revisões em 1965,
1969, 1972 e 1989.
Objective Knowledge: An Evolutionary Approach, Clarendon Press,
Oxford, 1972, revista em 1983.
Unended Quest: An Intellectual Autobiography, La Salle, Illinois,
1982; edição revista publicada por Routledge, Londres, 1992.
Publicado pela primeira vez como Autobiography ofKarl Pop­
per, Biblioteca dos Filósofos Vivos, org. Paul Arthur Schilpp,
Open Court, La Salle, Illinois, 1974.

171
O CONHECIMENTO E O PROBLEMA CORPO-MENTE

The Selfand Its Brain: An Argument fo r Interactionism, em conjunto


com John C. Eccles, Springer Verlag, Berlim, Heidelberga e ÍNDICE
Londres, 1977; Routledge and Kegan Paul, Londres, 1983.
The Open Universe: An Argument fo r Indeterminism, volume II de
PostScript to The Logic o f Scientific Discovery, org. W. W.
Bartley III, H utchinson, Londres, 1982; publicado por
Routledge, Londres, 1988.
Quantum Theory and the Schism in Physics, volume II de PostScript
to the Logic o f Scientific Discoverv. org. W. W. Bartley III,
Rowman & Littlefield, Totowa, Nova Jérsia, 1983; Unwin
Hyman, Londres, reeditado por Routledge, Londres, 1992.
A Pocket Popper, org. David Milíer, Fontana, Londres, 1983,
reeditado como Popper Selections, Princeton University Press,
Princeton, Nova Jérsia, 1985.
A World o f Propensities, Thoemmes, Bristol, 1990. Agradecimentos........................................................................... 9
In Search o f a Better World: Lectures and Essaysfrom Thirty Years,
Routledge, Londres, 1992. Tradução de Auf der Sache nach einer Nota do A u to r.............................................................................. 11
hesseren Welt, Piper, Munique, 1984 e 1988.
The Myth ofthe Framework, org. M. A. Notturno, Routledge, Londres, 1. CONHECIMENTO OBJECTIVO E SUBJECTIVO.......... 13
1994.
Knowledge and the Body-Mind Problem, org. M. A. Notturno, 2. A AUTONOMIA DO MUNDO 3 ......................................... 39
Routledge, Londres, 1994.
3. O MUNDO 3 E A EVOLUÇÃO EMERGENTE................. 63

4. DESCRIÇÃO, ARGUMENTAÇÃO E IMAGINAÇÃO 99

5. INTERACÇÃO E CONSCIÊNCIA...................................... 127

6. O EU, A RACIONALIDADE E A LIBERDADE............... 151

Posfácio do Organizador............................................................ 167

Bibliografia................................................................................... 171

172 173
Paginação, impressão e acabamento
da
CASAGRAF - Artes Gráficas Unipessoal, Ld
para
EDIÇÕES 70, LDA.
Janeiro de 2002

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