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ê

CONHECIMENTO
OBJETIVO
K arl R. R opper

O maior milagre do universo


é possivelmente o conhecimento
humano. Como, porém, o homem
adquire conhecimento e o faz cres­
cer? De que modo, especialmente,
age a ciência para progredir, subs­
tituindo teorias antigas por outras
novas e melhores, em incessante
procura no rumo da verdade?
No passado, e até recentemente,
a teoria do conhecimento humano
tem sido principalmente subjetivis-
ta. Mesmo o conhecimento cientí­
fico vinha sendo encarado como
um tipo especial de crença humana,
um tipo, aliás, muito bem alicerça­
do. Karl Popper rompe com esta
secular tradição, que pode ser data­
da de Aristóteles. Sendo realista e
falibilista, o autor considera o
conhecimento científico, expresso
em linguagem humana, não como
uma parte de nós mesmos, mas
como sujeito, e sempre assim
devendo ser, à crítica objetiva.
Esta age como uma espora, para
levar-nos sempre à frente, e como
uma rédea, para impedir que saia­
mos voando em abstrações vagas.
E é por meio da constante seleção
crítica, num processo evolucioná-
rio, que o conhecimento pode
aumentar e ser renovado.
Esta é a tese fundamental deste
livro, que o autor debate com argu-
COLEÇÃO ESPIRITO DO NOSSO TEMPO

1. A SOCIEDADE ABERTA E SEUS INIMIGOS (2 vols.) -


Karl R. P oppek
Tradução de Milton A mado.
2. A CONDUTA DA VIDA — Lewis Mumford
Tradução de N eil - R. da Silva.
3. A LIBERDADE DO HOMEM — P aul Weiss
Tradução de Neil R. da Silva.
4. O ROMANCE AMERICANO — Carl Van Doren
Tradução de N eil R. da Silva.
5. PANORAMA DO ROMANCE AMERICANO — E dward
W agnekncht
Tradução de E sther de Carvalho.
6. HARMONIA POLÍTICA — J oão Camilo de Oliveira T orres.
7. MANIFESTO DEMOCRÁTICO — F erdinand P eroutka
Tradução de N eil R. da Silva.
8. A CULTURA DAS CIDADES — Lewis Mumford
Tradução de N eil R. da Silva.
9. O NOME SECRETO — Lin Y utang
Tradução de M. T. L ima T orres.
10. A FORÇA DA TERRA — Alfred Kazin
Tradução de Arthur L. S m ith .
11. A RECONSTITUIÇÃO DA SOCIEDADE — Walter Lipp -
mann
Tradução de N eil R. da Silva.
12. A CIDADE NA HISTÓRIA (2 vols.) — Lewis Mumford
Tradução de N eil R. da S ilva.
13. CONHECIMENTO OBJETIVO — Karl R. P opper
Tradução de Milton A mado
Obra publicada
com a colaboração da

U N I V E R S I D A D E DE S Ã O P A U L O

Reitor: Prof. Dr. Orlando Marques de Paiva

EDITORA DA UNIVERSIDADE DF. SÃO PAULO

Presidente: Prof. Dr. Mário Guimarães Ferri


Comissão Editorial:
Presidente: Prof. Dr. Mário Guimarães Ferri (Instituto
de Biociências). Membros: Prof. Dr. Antonio Brito da
Cunha (Instituto de Biociências), Prof. Dr. Carlos da
Silva Lacaz (Faculdade de Medicina), Prof. Dr. Pérsio
de Souza Santos (Escola Politécnica) e Prof. Dr. Roque
Spencer Maciel de Barros (Faculdade de Educação).
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PICHA CATALOGRAFICA
[Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte,
CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP]

Popper, Karl Raimund, 1902-


P866c Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária;
tradução de Milton Amado. Belo Horizonte, Ed. Ita­
tiaia; São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1975.
(Espírito do nosso tempo, v.13)

Bibliografia.
1. Indução (Lógica) 2. Teoria do conhecimento
I. Título.
CDD-121
-161
75-0232

índices para o catálogo sistemático:


1. Conhecimento : Teoria : Metafísica : Filosofia 121
2. Epistemologia : Metafísica : Filosofia 121
3. Indução : Lógica 161
4. Teoria do conhecimento : Metafísica : Filosofia 121
COLEÇÃO ESPÍRITO DO NOSSO TEMPO

13

Capa de
CLÁUDIO MARTINS

LIVRARIA ITATIAIA EDITORA LIMITADA


BELO HORIZONTE: Rua da B ahia, 902 — Fones: 22-8630 e 22-9238
Av. Afonso Pena, 276 — Fones: 22-6140 e 24-5151
SIR KARL R. POPPER

CONHECIMENTO
OBJETIVO
Uma Abordagem Evolucionária

Tradução de
MILTON AMADO

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


EDITORA ITATIAIA LIMITADA
Título da ediçáo original inglesa:
OBJECTIVE KNOWLEDGE
A n E volucionary A pproach

(Traduzido da edição de 1973, corrigida.


Publicado pela OXFORD UNIVERSITY PRESS — LONDON)

© KARL R. POPPER, 1972

Dedicado a
ALFRED TARSKI

19 7 5
Direitos autorais para a língua portuguesa adquiridos pela
EDITORA ITATIAIA LIMITADA
de Belo Horizonte
IMPRESSO NO BRASIL
PR1NTED IN B R A Z I l
t

PREFACIO

O FENÔMENO do conhecimento humano é, sem dúvida, o


maior milagre de nosso universo. Constitui um problema que
não será resolvido em breve e estou longe de pensar que o pre­
sente volume dê à sua solução uma contribuição ainda que
pequena. Espero, porém, ter ajudado a reiniciar um debate que
há três séculos tem estado atolado em preliminares.
Desde Descartes, Hobbes, Locke, e sua escola, que inclui
não só David Hume mas também Thomas Reid, a teoria do
conhecimento humano tem sido amplamente subjetivista: o co­
nhecimento tem sido encarado como um tipo especialmente se­
guro de crença humana, e o conhecimento científico como um
tipo especialmente seguro de conhecimento humano.
Os ensaios deste livro rompem com uma tradição que pode
ser rastreada até Aristóteles — a tradição dessa teoria do co­
nhecimento, de senso comum. Sou grande admirador do senso
comum, que, afirmo, é essencialmente autocrítico. Mas, se estou
disposto a sustentar até o fim a verdade essencial do realismo
do senso comum, considero a teoria de senso comum do conhe­
cimento como uma asneira subjetivista. Essa asneira tem domi­
nado a filosofia ocidental. Tenho tentado erradicá-la e substi­
tuí-la por uma teoria objetiva do conhecimento, essencialmente
conjectural. Isto pode ser uma pretensão audaciosa, mas não
peço desculpas por ela.
Sinto, porém, que devo desculpar-me por certas sobrepo­
sições: deixei os vários capítulos, publicados anteriormente ou
não, quase no próprio estado em que foram escritos, mesmo
quando se sobrepunham parcialmente. Esta é também a razão
de falar aqui, nos Capítulos 3 e 4, em “primeiro", “segundo”
e “terceiro mundo”, embora prefira agora falar em “mundo 1”,
“mundo 2” e “mundo 3", tal como no Capítulo 2, seguindo
uma sugestão de Sir John Eccles em seu Facing Reality,
K arl R. P opper
Penn, Buckinghamshire
24 de julho de 1971

7
0

SUMÁRIO

1. CONHECIMENTO CONJECTURAL: MINHA SOLUÇÃO


DO PROBLEMA DA INDUÇÃO ............................................ 13
1 — O Problema de Senso Comum da Indução, 14. 2 —
Os Dois Problemas de Indução, de Hume, 15. 3 — Con-
seqüências Importantes dos Resultados de Hume, 16. 4—
Meu Modo de Abordar o Problema da Indução, 17. 5— O
Problema Lógico da Indução: Reformulação e Solução,
18. 6 — Comentários à Minha Solução do Problema Ló
gico, 19. 7 — Preferência por Teorias e a Procura da
Verdade, 23. 8 — Corroboração: Os Méritos da Impro­
babilidade, 28. 9 —■Preferência Pragmática, 31. 10 —
Bases de Minha Reformulação do Problema Psicológico de
Indução de Hume, 33. 11 — Reformulação do Problema
Psicológico de Indução, 36. 12 — O Problema Traci-
onal do Indução ea Invalidade de Todos os Princípios ou
Regras de Indução, 37. 13 — Além dos Problemas e In­
dução e Demarcação, 39.

2. DUAS FACES DO SENSO: ARGUMENTO A FAVOR DO


REALISMO DE SENSO COMUM E CONTRA A TEORIA
DE SENSO COMUM DO CONHECIMENTO ...................... 41

1 — Em Desculpa da Filosofia, 41. 2 — O Ponto de


Partida Inseguro: Senso Comum e Crítica, 42. 3 — Con­
traste com Outros Processos, 44. 4 — Realismo, 45.
5 — Argumentos em Prol do Realismo, 46. 6 — Obser­
vações sobre a Verdade, 51. 7 — Conteúdo, Conteúdo de
Verdade eConteúdo d Falsidade, 53. 8 — Observações
sobre a Verossimiitude, 58. 9 — Verossimilitude e e
Procura da Vrdade, 59. 10 — Verdade e Verossimilitude
como Alvos, 63. 11 — Comentários sobre as Noções de
Verdade e Verossimilitude, 63. 12 — A Errônea Teoria
de Senso Comum do Conhecimento, 66. 13 — Crítica da
Teoria de Senso Comum do Conhecimento, 68. 14 — Crí­
tica da Teoria Subjetivista do Conhecimento, 70 15 —
O Caráter Pré-Darwiniano da Teoria de Sneso Comum do
Conhecimento, 71. 16 — Esboço de uma Epistemologia
Evolucionária, 72. 17 — Conhecimento de Base e Pro­
blemas, 75. 18 — Todo Conhecimento é Impregnado de
Teoria, Inclusive Nossas Observações, 75. 19 — Retros­
pecto sobre a Epistemologia Subjetivista, 77. 20 — Co-

9
nhecimento no Sentido Objetivo, 77. 21 — A Procura da
Certeza e a Principal Fraqueza da Teoria de Senso Comum
do Conhecimento, 79. 22 — Observações Analíticas sobre
a Certeza, 81. 23 — O Método da Ciência, 84. 24 —
Discussão Critica, Preferência Racional e o Problema da
Análise de nossas Escolhas e Prediçeõs, 85. 25 — Ciên­
cia: o Crescimento do Conhecimento através de Crítica e
Inventiva, 88. TJma Reflexão Ulterior sobre a Indução, 88.
26 — Os Problemas de Causação e Indução, de Hume, 88.
27 — Por que o Problema Lógico da Indução de Hume é
mais Profundo do que seu Problema da Causação, 93.
28 — Intervenção de Kant: Conhecimento Objetivo, 94.
29 — A Solução do Paradoxo de Hume: Restauração da
Racionalidade, 95. 30 — Confusões Ligadas ao Problema
da Indução, 98. 31 — Que Resta do Errôneo Problema
de Justificar a Indução?, 99. 32 — Ceticismo Dinâmico:
Confrontação com Hume, 101. 33 — Análise de um Ar­
gumento Provindo da Improbabilidade de Acidentes, 103.
34 — Sumário: Uma Filosofia Crítica de Senso Comum, 105

3. EPISTEMOLOGIA SEM UM SUJEITO CONHECEDOR . . 108

1 — Três Testes sobre Epistemologia e o Terceiro Mundo,


108. 2 — Uma Abordagem Biológica do Terceiro Mun­
do, 114. 3 — A Objetividade e a Autonomia do Terceiro
Mundo, 116. 4 — Linguagem, Crítica e o Terceiro Mun­
do, 121. 5 — Observações Históricas, 123. 6 ■— Apre­
ciação e Crítica da Epistemologia de Brouwer, 129. 7—
Subjetivismo em Lógica, Teoria da Probabilidade e Ciência
Física, 138. 8 — A Lógica e a Biologia da Descoberta,
141. 9 — Descoberta, Humanismo e Autotranseendên-
cia, 144.

4. SOBRE A TEORIA DA MENTE OBJETIVA .................. 151

1 —Pluralismo e a Tese dos Três Mundos, 151. 2 — As


Relações Causais Entre os Três Mundos, 152. 3 — A
Objetividade do Terceiro Mundo, 153. 4 — O Terceiro
Mundo como Produto Feito pelo Homem, 155. 5 — O
Problema da Compreensão, 157. 6 — Processos Psico­
lógicos de Pensamento e Objetos do Terceiro Mundo, 159.
7 — Compreensão e Solução de Problemas, 161. 8 —
Um Exmeplo Muito Trivial, 163. 9 — Um Caso de Com­
preensão Histórica Objetiva, 164. 10 — O Valor de
Problemas, 172. 11 — Compreensão (“Hermenêutica”) nas
Humanidades, 174. 12 — Comparação com o Método da
Representação Subjetiva de Collingwood, 177

5. A META DA CIÊNCIA ............................................................ 180


Bibliografia Selecionada, 191. Nota Bibliográfica, 192

10
i

6. DE NUVENS E RELÓGIOS • ■................................................ 193


Uma Abordagem do Problema da Racionalidade e da Liber­
dade do Homem.

7. A EVOLUÇÃO E A ÁRVORE DO CONHECIMENTO . . . . 234


1 — Algumas Observações sobre Problemas e o Crescimen­
to do Conhecimento, 235. 2 — Observações sobre Mé­
todos em Biologia e Especialmente na Teoria da Evolução,
242. 3. — Uma Conjectura: “Dualismo Genético”, 248.
Adendo. O Esperançoso Monstro Comportamental, 257.

8. UMA VISÃO REALISTA DA LÓGICA, DA FÍSICA E DA


HISTÓRIA • • .............................................................................. 261
1 — Realismo e Pluralismo: Redução versus Emersão,
265. 2 — Pluralismo e Emersão na História, 271.
3 — Realismo e Subjetivismo em Física, 276. 4 — Rea­
lismo em Lógica, 279.

9. COMENTÁRIOS FILOSÓFICOS SOBRE A TEORIA DA


VERDADE DE TARSKI ................................................ . . . . 2 9 4
Adendo. Uma Nota sobre a Definição de Verdade, de Tars-
ki, 309.

APÊNDICE. O BALDE E O HOLOFOTE :DUAS TEORIAS


DO CONHECIMENTO ............................................................ 313

NOTAS ............... 333


Capíutlo 1, 333. Capítulo 2, 335. Capítulo 3, 342.
Capítulo 4, 345. Capítulo 5, 354. Capítulo 6, 356.
Captíulo 7, 363. Adendo, 365 Capítulo 8, 365.
Capítulo 9, 365. Adendo, 367. Apêndice, 369.
ÍNDICE DE NOMES .............................................. 371
NDICE DE ASSUNTOS ............ 375

11
1 — CONHECIMENTO CONJECTURAL:
MINHA SOLUÇÃO DO PROBLEMA
DA INDUÇÃO

0 irracionalismo crescente em
todo o século 19 e no que já passou
do século 20 é uma seqüência na­
tural da destruição do empirismo
por Hume.
B ertrand R ussel

Julgo haver resolvido importante problema filosófico: o


problema da indução. (Devo ter chegado à solução de 1927
ou por aí. O) Essa solução tem sido extremamente frutífera,
capacitando-me a resolver bom número de outros problemas
filosóficos.
Poucos filósofos, contudo, apoiariam a tese de que resolvi
o problema da indução. Poucos filósofos têm-se dado ao incô­
modo de estudar — ou mesmo de criticar — minhas concepções
de tal problema, ou de tomar conhecimento do fato de haver
eu feito algum trabalho a esse respeito. Muitos livros publi­
cados bem recentemente não fazem a menor referência a minha
obra, embora muitos deles dêem mostras de ter sido influen­
ciados por alguns ecos bastante indiretos de minhas idéias. E
as obras que tomam conhecimento de minhas idéias costumam
atribuir-me opiniões que nunca sustentei, ou criticar-me com
base em evidentes incompreensões ou interpretações errôneas,
ou com argumentos inválidos. Este capítulo é uma tentativa de
explicar minhas concepções de novo e de um modo que conte­
nha plena resposta a meus críticos.
Minhas duas primeiras publicações sobre o problema da
indução foram minha nota em Erkenntnis, em 1933,(2) na qual
apresentei em síntese minha formulação do problema e minha
solução, e meu livro Logik der Forschung (L.d.F.), em 1934.(3)
A nota e também o livro foram muito concentrados. Esperei,
um pouco otimistamente, que os leitores descobrissem, com a

13
ajuda de umas sugestões históricas que fiz, a razão de ser deci­
siva minha reformulação peculiar do problema. Penso que o
fato de haver reformulado o problema filosófico tradicional foi
o que tornou possível sua solução.
Por problema filosófico tradicional da indução quero dizer
uma formulação como a seguinte (que chamarei Tr):
Tr — Qual é a justificativa para a crença de que o futuro
será (amplamente) como o passado? Ou, talvez, qual é a justi­
ficativa para as inferências indutivas?

Formulações como estas estão erroneamente feitas, por


várias razões. Por exemplo, a primeira supõe que o futuro será
como o passado, suposição que, de início, considero errada, a
menos que a palavra “como” seja tomada em sentido tão fle­
xível que torne a suposição vazia e inócua. A segunda formu­
lação supõe que há inferências indutivas e normas para extrair
inferências indutivas e esta, mais uma vez, é uma suposição que
não deveria ser feita sem crítica e que também considero errada.
Penso, portanto, que ambas as formulações são simplesmente
destituidas de crítica e observações semelhantes aplicar-se-iam a
muitas outras formulações. Minha tarefa principal será, assim,
formular outra vez o problema que penso estar por trás do que
chamei problema filosófico tradicional da indução.
As formulações que agora se tornaram tradicionais são,
historicamente, de data bem recente: brotam da crítica feita
por Hume à indução e de seu impacto sobre a teoria de senso
comum do conhecimento.
Voltarei a mais detalhado exame das formulações tradi­
cionais depois de apresentar, primeiro, a concepção de senso
comum, a seguir a concepção de Hume e, por fim, minhas pró­
prias reformulações e soluções do problema.

1 — O Problema de Senso Comum da Indução

A teoria de senso comum da indução (que também apelidei


“teoria do balde mental”) é a teoria mais famosa, na forma da
asserção de que “nada há em nossa inteligência que não haja
entrado nela por meio dos sentidos”. (Tenho tentado mostrar
que esta opinião foi formulada primeiro por Parmênides com
intuito satírico: Muitos mortais nada têm em sua inteligência
transviada que ali não tenha chegado através de seus sentidos
transviados.)(1*4)

14
i
I

Contudo, temos expectativas e fortemente acreditamos em


certas regularidades (leis da natureza, teorias). Isto leva ao
problema de senso comum da indução (que chamarei Sc) :
Sc — Como podem ter surgido essas expectativas e crenças?

A resposta de senso comum é: Por meio de observações


repetidas feitas no passado: acreditamos que o sol nascerá
amanhã porque ele assim tem feito no passado.
Na concepção de senso comum é simplesmente tido como
certo (sem que quaisquer problemas se suscitem) que nossa
crença nas regularidades é justificada por aquelas observações
repetidas que são responsáveis por sua gênese. (Gênese cum
justificativa — ambas devidas à repetição — é o que os filó­
sofos, desde Aristóteles e Cícero, têm chamado epagõgê ou
indução .)( 6)

2 — Os Dois Problemas de Indução, de Hume

Hume interessava-se pela situação do conhecimento hu­


mano ou, como podería ter dito, por indagar se alguma de
nossas crenças — e qual delas — podería ser justificada por
razões suficientes.(«)
Levantou ele dois problemas: um problema lógico (H l )
e um problema psicológico (H ps). Um dos pontos importantes
é que suas duas respostas a esses dois problemas de certo modo
se entrechocam.
O problema lógico de Hume é :(7)
H l — Somos justificados em raciocinar partindo de exem­
plos (repetidos), dos quais temos experiência, para outros
exemplos (conclusões), dos quais não temos experiência?

A resposta de Hume a H l é: Não, por maior que seja o


número de repetições.
Hume também mostrou que a situarão lógica permanecia
exatamente a mesma se em H l a palavra prováveis fosse inse­
rida depois de “conclusões”, ou se as palavras “para exemplos”
fossem substituídas por “para a probabilidade de exemplos”.
O problema psicológico de Hume é :(8)
H ps — Por que, não obstante, todas as pessoas sensatas
esperam, e creem que exemplos de que não têm experiências
conformar-se-ão com aqueles de que têm experiência? Isto é:
Por que temos expectativas em que depositamos grande con­
fiança?

15
A resposta de Hume a H ps é: Por causa do “costume ou
hábito”; isto é porque somos condicionados pelas repetições e
pelo mecanismo da associação de idéias, mecanismo sem o
qual, diz Hume, dificilmente poderiamos sobreviver.

3 — Consequências Importantes dos Resultados de Hume

Por esses resultados, o próprio Hume — uma das mentes


mais racionais que já houve — transformou-se num cético e,
ao mesmo tempo, num crente: crente numa epistemologja irra-
cionalista. Seu resultado de que a repetição não tem qualquer
força como argumento, embora domine nossa vida cognitiva ou
nosso “entendimento”, levou-o à conclusão de que o argu­
mento, ou a razão, desempenha apenas um papel menor em
nosso entendimento. Nosso “conhecimento” é desmascarado
como sendo não só da natureza de crença, mas de crença ra­
cionalmente indefensável — de uma fé irracional?
Tornar-se-á óbvio na secção seguinte e nas secções 10 e 11
que tal conclusão irracionalista não pode ser derivada de minha
solução do problema da indução.
A conclusão de Hume foi ainda mais vigorosa e desespe­
radamente expressa por B. Russell, no capítulo sobre Hume de
sua “História da Filosofia Ocidental”, publicada em 1946 (trinta
e quatro anos antes de seu “Problemas da Filosofia”, que con­
tinha uma exposição belamente clara do problema da indução
sem referência a Hume).(10) A respeito do tratamento dado
por Hume à indução, diz Russell: “A filosofia de H um e.. .
representa a bancarrota da racionalidade do século 18”; e
“Assim, é importante descobrir se há alguma resposta a Hume
dentro de uma filosofia que seja inteira ou principalmente em­
pírica. Se não houver, não há diferença intelectual entre a sen­
satez e a demência. O lunático que acredita ser um ovo escal­
dado só será condenado com base em que pertence a uma
minoria” . . .
Russell prossegue asseverando que se a indução (ou o prin­
cípio de indução) for rejeitada, “qualquer tentativa para chegar
a leis científicas gerais partindo de observações particulares é
ilusória e o ceticismo de Hume é inevitável para um em­
pírico”^ 11)
Assim, Russell acentua o choque entre a resposta de Hume
a H l e (a) a racionalidade, (b) o empirismo e (c) os proce­
dimentos científicos.
Tornar-se-á óbvio, nas secções 4 e 10 a 12, que todos esses
choques desaparecem se for aceita minha solução do problema t

16
t

da indução: não há choque entre minha teoria de não-indução


e a racionalidade, ou o empirismo, ou o procedimento da
ciência.

4 — Meu Modo de Abordar o Problema da Indução

(1) Considero de extrema importância a distinção, implí­


cita no tratamento dado por Hume, entre um problema lógico
e um problema psicológico. Mas não penso que seja satisfa­
tória a concepção que Hume tem do que me inclino a chamar
“lógico”. Ele descreve, com bastante clareza, processos de infe­
rência válida; mas encara-os como processos mentais “ra­
cionais”.
Em contraposição, um d© meus principais métodos de abor­
dagem, sempre que estejam em jogo problemas lógicos, é tra­
duzir todos os termos subjetivos ou psicológicos, especialmente
“crença” etc., em termos objetivos. Assim, em vez de falar de
uma “crença”, falo, digamos, de uma “asserção” ou de uma
“teoria explanativa”; em vez de uma “impressão” falo de uma
“asserção de observação” ou de uma “asserção de teste” ; e
em vez de “justificativa de uma crença” falo de “justificativa
da alegação de que uma teoria é verdadeira”, etc.
Este processo de colocar as coisas no modo de falar obje­
tivo, ou lógico, ou “formal” será aplicado a H l , mas não a H ps ;
contudo:
(2) Uma vez resolvido o problema lógico, H l, a solução é
transferida para o problema psicológico, H ps, com base no se­
guinte princípio de transferência: o que é verdadeiro em lógica é
verdadeiro em psicologia. (Princípio análogo se sustenta de
modo geral para o que habitualmente se chama “método cientí­
fico” e também para a história da ciência: o que é verdadeiro
em lógica é verdadeiro no método científico e na história da
ciência.) Isto é confessadamente uma conjectura algo ousada
na psicologia da cognição ou dos processos de pensamento.
(3) Ficará claro que meu princípio de transferência asse­
gura a eliminação do irracionalismo de Hume: se posso res­
ponder a seu principal problema de indução, incluindo H ps,
sem violar o princípio de transferência, então não pode haver
choque entre lógica e psicologia e, portanto, nenhuma conclusão
de que nosso entendimento é irracional.
(4) Tal programa, juntamente com a solução dada por
Hume a H ., implica que se pode dizer, a respeito das relações

17
lógicas entre teorias científicas e observações, mais do que é
dito em H l.
(5) Um de meus principais resultados é que, estando
Hume certo quanto a não existir indução por repetição em ló­
gica, pelo princípio de transferência não pode existir tal coisa
em psicologia (ou em método científico, ou na história da
ciência): a idéia de indução por repetição deve ser produto de
um erro — uma espécie de ilusão ótica. Em suma: isto de
indução por repetição não existe.

5 — O Problema Lógico da Indução: Reformulação e Solução

Em vista do que acaba de ser dito (ponto (2 ) da prece­


dente secção 4 ), tenho de reformular o H l de Hume num modo
de falar objetivo ou lógico.
Para isto, substituo “exemplos de que temos experiência”,
de Hume, por “asserções de teste”, isto é, asserções isoladas
que descrevem acontecimentos observáveis (“asserções de obser­
vação”, ou “asserções básicas”) e “exemplos de que não temos
experiência” por “teorias explanativas universais”.
Formulei o problema lógico de indução de Hume do se­
guinte modo:
Li — Pode a alegação de que uma teoria explanativa uni­
versal é verdadeira se justificada por “razões empíricas” ; isto
admitindo a verdade de certas asserções de teste ou asserções de
observação (que, pode-se dizer, são “baseadas em experiência” )?

Minha resposta ao problema é a mesma de Hume: Não,


não pode. Nenhuma quantidade de asserções de teste verdadei­
ras justificaria a alegação de que uma teoria explanativa uni­
versal é verdadeira. (12)
Mas há um segundo problema lógico, L2, que é genera­
lização de Lj. Obtém-se de Lx simplesmente substituindo as
palavras “é verdadeira” por “é verdadeira, ou é falsa” :
1^ — Pode a alegação de que uma teoria explanativa uni­
versal é verdadeira, ou é falsa, ser justificada por “razões em­
píricas”; isto é, pode a admissão da verdade de asserções de
teste justificar a alegação de que uma teoria universal é verda­
deira, ou a alegação de que é falsa?

A este problema, minha resposta é positiva: Sim, a admis­


são da verdade de asserções de teste às vezes nos permite justi­
ficar a alegação de que uma teoria explanativa universal é falsa.

18
i

Esta resposta se torna muito importante se refletirmos


sobre a situação de problema em que se ergue o problema da
indução. Tenho em mente uma situação em que estejamos em
face de várias teorias explanativas que concorrem com várias
soluções de um problema de explanação — por exemplo, um
problema científico; e também em face do fato de precisarmos,
ou pelo menos desejarmos, escolher entre elas. Como vimos,
Russell diz que, sem resolver o problema da indução, não pode­
mos decidir entre uma teoria científica (boa) e uma obsessão
(má) de um demente. Hume também tinha em mente teorias
concorrentes. “Suponhamos (escreve ele) que uma pessoa. ..
apresente proposições com as quais não concordo,. . . que a
prata é mais fusível do que o chumbo, ou que o mercúrio é
mais pesado do que o o u ro .. ,” (13)
Esta situação de problema — a de escolher entre várias
teorias — sugere terceira reformulação do problema da indução:
L3 — Pode uma preferência, com respeito à verdade ou
à falsidade, por algumas teorias universais em concorrência com
outras ser alguma vez justificada por tais “razões empíricas”?

À luz de minha resposta a L2 a resposta a L3 torna-se


óbvia: Sim; à vezes pode, se tivermos sorte. Pois pode acontecer
que nossas asserções de teste refutem algumas — mas não todas
— teorias concorrentes; e como estamos procurando uma teoria
verdadeira, preferiremos aquelas cuja falsidade não foi esta­
belecida.

6 — Comentários à Minha Solução do Problema Lógico

(1) De acordo com minhas reformulações, a questão cen­


tral do problema lógico da indução é a validez (verdade ou
falsidade) de leis universais relativas a algumas “dadas” asser­
ções de teste. Não suscito a indagação: “Como decidimos sobre
a verdade ou a falsidade de asserções de teste?”, isto é, de
descrições isoladas de acontecimentos observáveis. Esta inda­
gação, sugiro, não podería ser encarada como parte do pro­
blema da indução, pois a indagação de Hume era se somos
justificados em raciocinar partindo de “exemplos” experimenta­
dos para outros não experimentados. ( 14) Que eu saiba, nem
Hume nem qualquer outro escritor sobre o assunto passou daqui
para as indagações subsequentes: Podemos ter como certos os
“exemplos experimentados? E são eles realmente anteriores às
teorias? Embora estas indagações subsequentes constituam alguns
dos problemas a que fui levado por minha solução do problema

19
da indução, elas vão além do problema original. (Isto é claro,
se considerarmos o tipo de coisa que os filósofos estiveram pro­
curando ao tentar resolver o problema da indução: se um “prin­
cípio de indução”, que nos permitisse derivar leis universais
de asserções isoladas, pudesse ser encontrado, e se sua alegação
de verdade pudesse ser defendida, então o problema da indução
seria encarado como resolvido.)
(2) Li é uma tentativa de transpor o problema de Hume
para um modo de falar objetivo. A única diferença está em
que Hume fala de exemplos futuros (isolados) de que não temos
experiência — isto é, de expectativas — ao passo que L, fala
de leis ou teorias universais. Tenho pelo menos três razões para
esta modificação. Em primeiro lugar, de um ponto de vista ló­
gico, os “exemplos” são relativos a alguma lei universal (ou pelo
menos a uma função de asserção que possa ser universalizada).
Em segundo lugar, nosso método costumeiro de raciocinar par­
tindo de “exemplos” para outros “exemplos” vale-se da ajuda
de teorias universais. Em terceiro lugar, desejo, como Russell,
ligar o problema da indução às leis ou teorias universais da
ciência.
(3) Minha resposta negativa a L, deve ser interpretada
como significando que devemos encarar todas as leis ou teorias
como hipotéticas ou conjecturais; isto é, como suposições.

Esta opinião é atualmente bem popular, (15) mas levou


bastante tempo para chegar a este ponto. É explicitamente com­
batida, por exemplo, pelo Professor Gilbert Ryle, em artigo
de 1937, excelente quanto ao mais.(16) Ryle argumenta (p. 36)
que é errado dizer “que todas as proposições gerais da ciên­
cia. .. são meras hipóteses”; e usa o termo “hipótese” exata­
mente no mesmo sentido em que sempre o usei e em que o
estou usando agora: como uma “proposição.. . que apenas se
conjectura ser verdadeira” (loc. cit.). Assevera, contra uma
tese como a minha: “Muitas vezes temos certeza, e com segu­
rança a temos de uma proposição de lei” (p. 38). E diz que
certas proposições gerais estão “firmadas” : “Estas se chamam
leis, e não hipóteses
A opinião de Ryle, em verdade, era quase o padrão “fir­
mado” na ocasião em que escrevi L.d.F. e não está morta de
modo algum. Voltei-me contra ela primeiramente por causa
da teoria da gravidade de Einstein: nunca houve uma teoria
tão bem “firmada" quanto a de Newton e é improvável que
venha a haver outra; mas, seja o que for que alguém possa
pensar a respeito da situação da teoria de Einstein, ela certa­

20
mente nos ensinou a olhar a de Newton como “mera” hipótese
ou conjectura.
Segundo caso foi a descoberta em 1931, por Urey, do
deutério e da água pesada. Naquela época, a água, o hidrogênio
e o oxigênio eram as substâncias que a química melhor conhecia
e os pesos atômicos do hidrogênio e do oxigênio formavam os
próprios padrões de todas as medições químicas. Aí estava
uma teoria em favor de cuja verdade qualquer químico aposta­
ria a própria vida, pelo menos antes da conjectura do isótopo
feita por Soddy em 1910 e de fato muito tempo depois. Mas
foi aí que Urey encontrou uma refutação (e assim foi corrobo­
rada a teoria de Bohr).
Isto me levou a olhar mais minuciosamente outras “leis
firmadas” e especialmente os três exemplos típicos dos indu-
tivistas:(1T)
(a) que o sol nascerá e pôr-se-á uma vez em 24 horas
(ou aproximadamente 90.000 pulsações),
(b) que todos os homens são mortais,
(c) que o pão alimenta.

Em todos os três casos verifiquei que essas leis firmadas


eram de fato refutadas no sentido de seu significado original.
(a) O primeiro foi refutado quando Pitéias de Marselha
descobriu “o mar gelado e o sol da meia-noite”. O fato de que
(a) pretendia significar que “onde quer que se vá o sol nascerá
e por-se-á uma vez em 24 horas” é mostrado pela extrema
descrença com que a informação dele foi acolhida e pelo fato
de que essa afirmação tornou-se o paradigma de todas as fábulas
de viajantes.
(b) O segundo foi também refutado, embora não tão
obviamente. O predicado “mortal” é má tradução do grego:
thnetos significa “tendente a morrer” ou “susceptível de mor­
rer”, e não simplesmente “mortal”; e (b) é parte da teoria de
Aristóteles segundo a qual toda criatura gerada tende a decair
e a morrer após um período que variará um pouco de acordo
com circunstâncias acidentais, embora sua extensão seja parte
da essência da criatura. Mas essa teoria foi refutada pela des­
coberta de que as bactérias não são tendentes a morrer, pois
a multiplicação por fissão não é morte, e mais tarde pela veri­
ficação de que a matéria viva não é, em geral, tendente a
decair e morrer embora pareça que todas as formas possam
ser mortas por meios suficientemente drásticos. (Células can­
cerosas, por exemplo, podem continuar vivendo.)
(c) O terceiro exemplo — favorito de Hume — foi refu­
tado quando pessoas que comiam seu pão quotidiano morreram
de ergotismo, como aconteceu não faz muito tempo, em catas­
trófico caso numa aldeia francesa. Sem dúvida, originariamente
(c) significava que o pão adequadamente cozido, feito com fa­
rinha adequadamente preparada de trigo ou milho, adequada­
mente semeados e colhidos de acordo com práticas de longa
data firmadas, alimentaria as pessoas em vez de envenená-las.
Mas elas foram envenenadas.

Assim, a resposta negativa de Hume a H l e a minha res­


posta negativa a Li não são apenas atitudes filosóficas for­
çadas, como implicam Ryle e a teoria de senso comum do co­
nhecimento, mas se baseiam em realidades muito práticas. De
um jeito otimista similar ao do Professor Ryle, escreve o Pro­
fessor Strawson: “Se há um problema de indução e . .. Hume
o propôs, deve-se acrescentar que ele o resolveu” ; isto é, resol-
veu-o pela resposta positiva de Hume a H ps, que Strawson
parece aceitar, assim dizendo: “nossa aceitação dos “cânones
básicos” (da indução) é-nos imposta pela Natureza. . . A razão
é, e deveria ser, escrava das paixões”.(18) (Hume dissera: “de­
veria apenas ser”.)
Nada vi antes que ilustre tão bem a citação da História
da Filosofia Ocidental (p. 699) de Bertrand Russell que escolhi
como lema para o presente debate.
Contudo, é claro que a “indução” — no sentido de uma
resposta positiva a H l ou Li — é indutivamente inválida e
mesmo paradoxal. Uma resposta positiva a L, implica que nossa
descrição científica do mundo só toscamente é verdadeira. (Com
isto concordo, apesar de minha resposta negativa a Lj.) Mas
daí decorre que somos animais muito argutos, precariamente
colocados num ambiente que difere grandemente de quase qual­
quer outro ponto do universo: animais que lutam corajosamente
para descobrir, por algum método, as verdadeiras regularidades
que regem o universo e, portanto, o nosso ambiente. É claro que,
seja qual for o método que possamos usar, nossas oportunidades
de encontrar regularidades verdadeiras são escassas, e nossas
teorias conterão muitos enganos que nenhum misterioso “cânon
de indução”, básico ou não nos impedirá de cometer. Mas é isto
justamente o que diz minha resposta negativa a Lx. Assim, uma
vez que a resposta positiva acarreta sua própria-negação, ela
deve ser falsa.
Se alguém quisesse extrair a moral desta história, poderia
dizer: a razão crítica é melhor que a paixão, especialmente em

22
*

assuntos referentes à lógica. Mas disponho-me inteiramente a


admitir que nada jamais se realiza sem uma dose de paixão.
(4) L2 é simplesmente uma generalização de Lj; e Ls é
simplesmente formulação alternativa de L2.
(5) Minha resposta a e L3 proporciona uma resposta
clara às questões de Russell. Porque posso dizer: sim, pelo
menos algumas das alucinações do lunático podem ser enca­
radas como refutadas pela experiência; isto é, por asserções de
teste. (Outras podem não ser testáveis e, consequentemente,
distinguidas das teorias da ciência; isto suscita o problema da
demarcação.) (19)
( 6) Mais importante, como acentuei em meu primeiro ar­
tigo sobre o problema da indução: minha resposta a L-2 está
de acordo com a seguinte forma, um tanto fraca, do principjo
do empirismo: só a “experiência” nos pode ajudar a decidir sobre
a verdade ou jalsidade de asserções factuais. Pois verifica-se
que, em vista de -Li e da resposta a L u podemos determinar no
máximo a falsidade de teorias; e isto pode realmente ser feito,
em vista da resposta a L^.
(7) Similarmente, não há choque entre minha solução e
os métodos da ciência; ao contrário, somos levados por ela aos
rudimentos de uma metodologia crítica.
( 8) Não só a minha solução lança muita luz sobre o
problema psicológico da indução (ver a secção 1 1 , adiante)
como também elucida as formulações tradicionais do problema
da indução e a razão da fraqueza dessas formulações (ver sec-
ções 12 e 13, adiante).
(9) Minhas formulações e minhas soluções de L1; L2 e
L3 inserem-se inteiramente no âmbito da lógica dedutiva. Mostro
que, generalizando o problema de Hume, podemos acrescen­
tar-lhe Ls e La, o que nos permite formular uma resposta algo
mais positiva do que a dada a Li. E isto porque, do ponto de
vista da lógica dedutiva, há uma assimetria entre verificação e
falsificação por experiência. Isto leva à distinção puramente
lógica entre hipóteses que foram refutadas e outras que não o
foram e à preferência por estas últimas — ainda que só de
um ponto de vista teórico, que as faz objetos teoricamente mais
interessantes para novos testes.

7 — Preferência por Teorias e a Procura da Verdade


Já vimos que nossa resposta negativa a Lx significa que
todas as nossas teorias continuam sendo suposições, conjec­

23
turas, hipóteses. Aceitando plenamente este resultado puramente
lógico, surge a questão de ver se há argumentos puramente racio­
nais, inclusive argumentos empíricos, para preferir umas con­
jecturas ou hipóteses a outras.
Pode haver vários modos de encarar esta questão. Dis-
tinguirei o ponto de vista do teórico — do que procura a ver­
dade e, especialmente, teorias explanativas verdadeiras — do
ponto de vista do homem prático de ação; isto é, distinguirei
entre preferência teórica e preferência pragmática. Nesta secção
e na seguinte preocupar-me-ei apenas com a preferência teórica
e a busca da verdade. A preferência pragmática e o problema
da “fidedignidade” serão debatidos na secção 9.
Admitirei que o teórico se interessa essencialmente pela
verdade e, em especial, por encontrar teorias verdadeiras.
Quando, porém, ele digeriu inteiramente o fato de que nunca
podemos justificar empiricamente — isto é por asserções de
teste — a alegação de que uma teoria científica é verdadeira,
achando-nos, portanto, no melhor dos casos, em face da questão
de preferir tentativamente umas suposições a outras, poderá ele
então considerar, do ponto de vista de quem busca teorias ver­
dadeiras, as questões: Que princípios de preferência devemos
adotar? São algumas teorias “melhores” do que outras?
Estas questões suscitam as seguintes considerações:
( 1 ) É claro que a questão de preferência surgirá princi­
palmente, e talvez mesmo exclusivamente, com respeito a um
conjunto de teorias concorrentes, isto é, teorias oferecidas como
soluções para os mesmos problemas. (Ver também o ponto
( 8), adiante.)
(2 ) O teórico interessado pela verdade deve estar também
interessado pela falsidade, porque descobrir que uma asserção
é falsa é o mesmo que descobrir que sua negação é verdadeira.
Assim, a refutação de uma teoria será sempre de interesse teó­
rico. Mas a negação de uma teoria explanativa não é, por sua
parte, uma teoria explanativa (nem tem como regra o “caráter
empírico” da asserção de teste de que é derivada). Por inte­
ressante que seja não satisfaz o interesse do teórico em encon­
trar teorias explanativas verdadeiras.
(3) Se o teórico tem esse interesse, descobrir onde uma
teoria se esfacela, além de fornecer informação teoricamente
interessante, propõe então um problema novo e importante para
qualquer teoria explanativa nova. Qualquer teoria nova deverá
não só ter êxito onde sua predecessora refutada o teve, mas
também ter êxito onde essa predecessora falhou, isto é, onde foi
refutada. Se a nova teoria tiver êxito em ambos os casos, ela

24
*

será, de qualquer modo, de mais êxito e, portanto, “melhor”


do que a anterior.
(4) Além disso, admitindo que essa nova teoria não seja
refutada no tempo í por um novo teste, ela será, pelo menos
no tempo t, “melhor” do que a teoria refutada em outro sentido
ainda. Isto é, não só explanará tudo quanto a teoria refutada
explanou, e mais, como terá de ser também encarada como
possivelmente verdadeira, pois no tempo t não se mostrou que
fosse falsa.
(5) O teórico contudo, avaliará essa nova teoria não só
em razão de seu êxito e de ser talvez uma teoria verdadeira,
mas também em razão de poder talvez ser falsa: é interessante
como objeto de novos testes, isto é, de novas tentativas de re­
futação que, se tiverem êxito, estabelecerão tanto uma nova
negação de uma teoria quanto um novo problema teórico para
a teoria seguinte.
Podemos resumir os pontos (1) a (5) assim:
O teórico, por várias razões, interessar-se-á por teorias
não refutadas, especialmente porque algumas delas podem ser
verdadeiras. Preferirá uma teoria não refutada a uma refutada
desde que esta explique os êxitos e as falhas da teoria refutada.
( 6) Mas a nova teoria, como todas as teorias não refu­
tadas, pode ser falsa. O teórico, portanto, tentará ao máximo
descobrir qualquer teoria falsa no conjunto das concorrentes
não refutadas; tentará “apanhá-la”. Isto é, com respeito a qual­
quer teoria não refutada que exista, tentará pensar em casos
ou situações em que ela seja susceptível de falhar, se for falsa.
Assim, tentará elaborar testes severos e situações de teste cru­
ciais. Isto importará na elaboração de uma lei de falsificação,
isto é, uma lei que talvez tenha um nível de universalidade
tão baixo que possa não conseguir explicar os êxitos da teoria
a ser testada mas que, não obstante, sugerirá uma experiência
crucial: uma experiência que possa refutar, dependendo de seu
resultado, ou a teoria a ser testada, ou a teoria de falsificação.
(7) Por este método de eliminação podemos dar com uma
teoria verdadeira. Mas em nenhum caso o método pode esta­
belecer sua verdade, ainda que seja verdadeira, pois o número
de teorias possivelmente verdadeiras continua infinito, a qualquer
tempo e após qualquer número de testes cruciais. (Este é outro
modo de enunciar o resultado negativo de Hume.) As teorias
realmente propostas serão, sem dúvida, em número finito; e bem
pode acontecer que refutemos todas elas e não consigamos
pensar em uma nova.
25
Por outro lado, entre as teorias realmente propostas pode
haver mais de uma que não seja refutada num tempo t,, de modo
que não poderemos saber qual delas devemos preferir. Mas se
num tempo t uma pluralidade de teorias continuar a concorrer
de tal modo, o teórico tentará descobrir que experiências cruciais
podem ser traçadas entre elas, isto é, experiências que possam
mostrar falsidade e eliminar assim algumas das teorias con­
correntes.
( 8) O processo descrito pode levar a um conjunto de
teorias que sejam “concorrentes” no sentido de oferecerem so­
luções a, pelo menos, alguns problemas comuns, embora cada
qual ofereça além disso soluções a alguns problemas dos quais
não participa com as outras. De fato, embora exijamos que uma
nova teoria resolva os problemas que sua predecessora resolveu
e aqueles que ela falhou em resolver, sem dúvida sempre pode
acontecer que se proponham duas ou mais teorias concorrentes
novas cada uma das quais satisfaça estas exigências e, além
disso, resolva alguns problemas que as outras não resolvem.
(9) Em qualquer tempo t, o teórico interessar-se-á espe­
cialmente por encontrar a mais testável das teorias concor­
rentes a fim de submetê-la a novos testes. Já mostrei que esta
será a que tiver, ao mesmo tempo, o maior conteúdo de infor­
mação e a maior força explanativa. Será a teoria mais digna de
ser submetida a novos testes; em suma, “a melhor” das teorias
concorrentes num tempo t. Se sobreviver a seus testes, será
também a melhor das testadas dentre todas as teorias até então
consideradas, inclusive todas as suas predecessoras.
(10) No que acaba de ser dito a respeito da “melhor”
teoria inclui-se a admissão de que uma boa teoria não é ad hoc.
As idéias de “ad-hocidade” e sua oposta, que talvez possamos
chamar “ousadia”, são muito importantes. Explanações ad hoc
são explanações não testáveis independentemente; isto é, inde­
pendentemente do efeito a ser explanado. Podem ser tidas como
gratuitas e, portanto, de pouco interesse teórico. Tenho debatido
a questão dos graus de independência dos testes em vários
locais;(20) é um problema interessante e liga-se aos problemas
de simplicidade e de profundidade. Desde então, tenho também
acentuado(21) a necessidade de referí-lo ou relacioná-lo ao pro­
blema da explanação que nos dedicamos a resolver e às situações
de problema sob debate, porque todas estas idéias têm ligação
com os graus de “bondade” das teorias concorrentes. Além
disso, o grau de ousadia de uma teoria também depende de
sua relação com suas predecessoras.

26
»

O principal ponto de interesse, julgo, é que para graus


muito elevados de ousadia ou de não-ad-hocidade tenho podido
dar um critério objetivo. É o de que a nova teoria, embora
tenha de explanar o que a velha teoria explanava, corrige a
velha teoria, de modo que de fato contradiz a velha teoria:
contém a velha teoria, mas só como aproximação. Assim indi,-
quei que a teoria de Newton contradiz as teorias de Kepler e de
Galileu — embora as explane, pelo fato de contê-las, como
aproximações; e similarmente a teoria de Einstein contradiz a
de Newton, que igualmente explana e contém como apro­
ximação.
( 1 1 ) O método descrito pode ser chamado método crítico.
É um método de experiências e eliminação de erros, de propor
teorias e submetê-las aos mais severos testes que possamos pro­
jetar. Se, em vista de certas admissões limitadoras, só é consi­
derado possível um número finito de teorias concorrentes, este
método pode levar-nos a isolar a teoria verdadeira pela elimi­
nação de todas as suas concorrentes. Normalmente — isto é,
em todos os casos em que o número de teorias possíveis é infi­
nito — este método não pode verificar qual das teorias é verda­
deira; nem o pode fazer qualquer outro método. Ele permanece
aplicável, embora inconclusivo.
( 1 2 ) O enriquecimento dos problemas por meio da refu­
tação de teorias falsas e as exigências formuladas no ponto (3)
tornam certo que a predecessora de cada teoria nova — do
ponto de vista da nova teoria — terá o caráter de uma aproxi­
mação na direção desta nova teoria. Nada, sem dúvida, pode
tornar certo que, para cada teoria que foi mostrada falsa, encon­
traremos uma sucessora “melhor” ou uma aproximação melhor
— uma que satisfaça aquelas exigências. Não há certeza de que
consigamos jazer progresso na direção de teorias melhores.
(13) Mais dois pontos podem ser aqui acrescentados. Um
é que aquilo que até aqui foi dito pertence, de certo modo, à
lógica puramente dedutiva — a lógica dentro da qual foram
propostos Li, L2 e La. Contudo, ao tentar aplicar isto a situa­
ções práticas que surgem em ciência, vamos de encontro a pro­
blemas de tipo diferente. Por exemplo, a relação entre asserções
de teste e teorias pode não ser tão nítida quanto aqui se admite;
ou as próprias asserções de teste podem ser criticadas. Este é
o tipo de problema que sempre surge quando queremos aplicar
a lógica pura a qualquer situação da vida. Em conexão com a
ciência, isto leva ao que tenho chamado regras metodológicas,
as regras da discussão crítica.
27
O outro ponto é que estas regras podem ser encaradas
como sujeitas ao alvo geral da discussão racional, que é chegar
mais perto da verdade.

8 — Corroboração: Os Méritos da Improbabilidade

Minha teoria da preferência nada tem a ver com a prefe­


rência pela hipótese “mais provável”. Ao contrário, tenho mos­
trado que a testabilidade de uma teoria aumenta e diminui com
seu conteúdo informativo e, portanto, com sua improbabilidade
(no sentido do cálculo de probabilidade). Assim, a hipótese
“melhor”, ou “preferível”, com maior frequência será a mais
improvável. (Mas é engano dizer, como faz John C. Harsanyi,
que eu haja alguma vez proposto um “critério de improbabili­
dade para a escolha de hipóteses científicas”: (22) além de não
ter qualquer “critério” geral, muitas vezes ocorre que não posso
preferir a hipótese logicamente “melhor” e mais improvável,
porque alguém conseguiu refutá-la experimentalmente.) Este
resultado, sem dúvida, tem sido encarado por muitos como per­
verso, mas meus principais argumentos são muito simples (con­
teúdo = improbabilidade) e recentemente têm sido aceitos até
por alguns proponentes do indutivismo e de uma teoria proba­
bilista da indução, como Camap.(2s)
(2) Apresentei originalmente a idéia de corroboração, ou
"grau de corroboração”, com o fito de mostrar claramente que
qualquer teoria probabilista de preferência (e portanto qualquer
teoria probabilista de indução) é absurda.
Por grau de corroboração de uma teoria entendo um relato
conciso avaliando o estado (num certo tempo í) da discussão
crítica de uma teoria, com respeito ao modo por que ela resolve
seus problemas; seu grau de testabilidade; a severidade dos testes
que experimentou; e o modo pelo qual reagiu a esses testes.
Assim, a corroboração (ou grau de corroboração) é um avalia­
dor relato de atuação passada. Como a preferência, é essencial­
mente comparativo: em geral, pode-se dizer apenas que a teoria
A tem um grau de corroboração maior (ou menor) do que a
teoria concorrente B, à luz da discussão crítica, que inclui os
testes até certo tempo t. Sendo apenas um relato de atuação
passada, relaciona-se com uma situação que pode levar a pre­
ferir umas teorias em vez de outras. Mas nada diz, em absoluto
a respeito da atuação futura, ou da “fidedignidade” de uma teo­
ria. (Isto, naturalmente, não seria afetado de modo algum se
alguém conseguisse mostrar que, em certos casos muito espe­

28
i

ciais, minhas fórmulas ou as de outrem para o grau de corro­


boração poderíam receber uma interpretação numérica.) (24)
O propósito principal das fórmulas que propus como defi­
nições do grau de corroboração foi o de mostrar que, em muitos
casos, a hipótese mais improvável (improvável no sentido do
cálculo de probabilidade) é preferível, e mostrar claramente
os casos em que isto vigora e aqueles em que não vigora. Deste
modo, pude mostrar que a preferibilidade não pode ser uma pro­
babilidade no Sentido do cálculo de probabilidade. Sem dúvida,
pode-se dizer que a teoria preferível é a mais “provável” : as
palavras não importam, desde que não nos levem a erro.
Resumindo: podemos às vezes dizer de duas teorias con­
correntes, A e B, que à luz do estado da discussão crítica no
tempo t e da evidência empírica (asserções de teste) disponível
por ocasião da discussão, a teoria A é preferível à teoria B, ou
tem melhor corroboração do que esta.
Evidentemente, o grau de corroboração no tempo t (que é
uma asserção sobre a preferibilidade no tempo 0 nada diz a
respeito do futuro — por exemplo, a respeito do grau de corro­
boração num tempo posterior a t. É apenas um relato a res­
peito do estado da discussão no tempo t, referente à preferibi­
lidade lógica e empírica das teorias concorrentes.
(3) Devo dar ênfase a isto porque o trecho seguinte de
meu livro Lógica do Descobrimento Científico (L. Sc. D.) tem
sido interpretado (ou antes, mal interpretado) como mostrando
que eu estava usando a corroboração como um indicador da
atuação futura de uma teoria: “Em vez de discutir a “probabi­
lidade” de uma hipótese devemos tentar avaliar que testes, que
provas ela experimentou; isto é, devemos tentar avaliar até onde
ela foi capaz de provar sua aptidão para sobreviver resistindo
aos testes. Em suma, devemos tentar avaliar até onde ela foi
corroborada.”(25)
Certas pessoas pensaram(26) que a expressão “provar sua
aptidão para sobreviver” mostra que eu aqui pretendia falar de
uma aptidão para sobreviver no futuro, para resistir a testes
futuros. Lastimo se induzi alguém a erro, mas só posso dizer
que não fui eu quem misturou a metáfora darwiniana. Ninguém
espera que uma espécie que sobreviveu no passado sobreviva no
futuro em razão disso: todas as espécies que deixaram de sobre­
viver em certo período após um tempo t sobreviveram até esse
tempo t. Seria absurdo sugerir que a sobrevivência darwiniana
envolva, de algum modo, uma expectativa de que cada espécie
que até aqui sobreviveu continue a sobreviver. (Quem diria que
é muito alta a expectativa de sobrevivência de nossa própria
espécie?) ~
29
(4) Talvez possa ser útil acrescentar aqui um ponto a
respeito do grau de corroboração de uma asserção a que per­
tence a uma teoria T, ou dela decorre logicamente, mas é logi­
camente muito mais fraca do que a teoria T.
Tal asserção a terá conteúdo menos informativo do que a
teoria T. Isto significa que a t o sistema dedutivo A de todas as
asserções que decorrem de a serão menos testáveis e menos
corroboráveis do que T. Mas se T houver sido bem testada,
então podemos dizer que seu alto grau de corroboração se
aplica a todas as asserções que são por ela acarretadas, e por­
tanto a a e A, ainda que a, por causa de sua baixa corrobora-
bilidade, nunca possa alcançar por si mesma tão alto grau de
corroboração.
Esta regra pode ser sustentada pela simples consideração
de que o grau de corroboração é um meio de asseverar prefe­
rência com relação à verdade. Mas se preferirmos T com re­
lação à sua alegação de verdade, então teremos de preferi-la
com todas as suas conseqüências; pois, st T é verdadeira, tam­
bém o devem ser as suas conseqüências, ainda que separada­
mente possam ser menos bem testadas.
Assim, assevero que, com a corroboração da teoria de
Newton e com a descrição da Terra como um planeta que gira,
o grau de corroboração da asserção a — “O sol nasce em Roma
uma vez em cada vinte e quatro horas” — aumentou grande­
mente. Por si própria, a não é muito bem testável; mas a teoria
de Newton t a teoria da rotação da Terra são bem testáveis. E
se estas são verdadeiras, a também o será.
Uma asserção a derivável de uma teoria T bem testada,
até onde for encarada como parte de T, terá o grau de corro­
boração de T; t se a for derivável, não de T, mas da conjun­
ção de duas teorias, digamos 7 \ e T2, terá a parte qua do mesmo
grau de corroboração que têm as duas teorias, referentemente
à menos bem testadas das duas. Contudo, tomada em si mesma,
a pode ter um grau de corroboração muito baixo.
(5) A diferença fundamental entre meu processo e o pro­
cesso para o qual apresentei há muito tempo a etiqueta de
“indutivista” está em que dou ênfase a argumentos negativos,
tais como exemplos negativos ou contra-exemplos, refutações e
tentativas de refutações — em suma, crítica —, ao passo que
o indutivista dá ênfase a “exemplos positivosf‘, dos quais extrai
“inferências não demonstrativas”, (27) esperando que assegurem
a “fidedignidade” das conclusões dessas inferências. A meu ver,
tudo quanto pode ser possivelmente “positivo” em nosso conhe­
cimento científico só t positivo até onde certas teorias, em
certos momentos do tempo, sejam preferidas a outras, à luz de

30
ê

nossa discussão crítica, que consiste de refutações tentadas, in­


clusive testes empíricos. Assim, mesmo o que pode ser chamado
“positivo” só o é com respeito a métodos negativos.
Este processo negativo esclarece muitos pontos; por exem­
plo, as dificuldades encontradas para explicar satisfatoriamente
o que é um “exemplo positivo” ou um “exemplo apoiador” de
uma lei.

9 — Preferência Pragmática

Até aqui, examinei por que o teórico terá preferência —


se tiver alguma — pela teoria “melhor”, isto é, a mais testável,
e pela que houver sido testada melhor. Sem dúvida o teórico
pode não ter preferência nenhuma: pode ser desencorajado pela
solução “céticá” de Hume, e pela minha aos problemas H l
e L i, pode dizer que, não podendo ter certeza de encontrar a
teoria verdadeira entre as teorias concorrentes, não está inte­
ressado em qualquer método como o descrito — nem mesmo
caso o método torne razoavelmente certo que, se uma teoria
verdadeira deve estar entre as teorias propostas, estará entre as
sobreviventes, as preferidas, as corroboradas. Contudo, um teó­
rico “puro” mais otimista ou mais curioso bem poderá ser en­
corajado, por nossa análise, a propor reiteradamente novas
teorias concorrentes, na esperança de que uma delas possa ser
verdadeira — mesmo que nunca consigamos ter certeza de qual­
quer uma que seja verdadeira.
Assim, ao teórico puro está aberto mais de um caminho de
ação; e ele escolherá um método tal como o da experiência e
da eliminação de erro apenas se sua curiosidade exceder seu
desapontamento na incerteza e no inacabamento inevitáveis a
todos os nossos empreendimentos.
Ocorre-lhe diferentemente como homem de ação prática,
pois um homem de ação prática tem sempre de escolher entre
alternativas mais ou menos definidas, já que mesmo a inação é
um tipo de ação.
Cada ação, porém, pressupõe um conjunto de expectativas,
isto é, de teorias a respeito do mundo. Que teoria escolherá o
homem de ação? Existe algo que seja uma escolha racional?
Isto nos conduz aos problemas pragmáticos de indução:
Pri — Em que teoria confiaremos, para ação prática, de
um ponto de vista racional?
Pr2 — Que teoria preferiremos para ação prática, de um
ponto de vista racional?
31
Minha resposta a Prx é: De um ponto de vista racional,
não podemos “confiar” em teoria alguma, pois nunca se mos­
trou, nem se pode mostrar, que qualquer teoria é verdadeira.
Minha resposta a Pr2 é: Podemos preferir, entretanto, como
base de ação, a teoria mais bem testada.
Em outras palavras, não há “confiança absoluta” ; desde,
porém, que tenhamos de escolher, será “racional” escolher a
teoria mais bem testada. Será “racional” no sentido mais óbvio
que conheço dessa palavra: a teoria mais bem testada é aquela
que, à luz de nossa discussão crítica, parece ser a melhor até
agora, e não conheço coisa mais “racional” do que uma dis­
cussão crítica bem conduzida.
Sem dúvida, ao escolher a teoria mais bem testada como
base de ação “confiamos” nela, e certo sentido da palavra.
Pode ser mesmo descrita, portanto, como a teoria disponível mais
“fidedigna”.Contudo, isto não afirma que seja “fidedigna”. Não
é “fidedigna”, pelo menos no sentido de que sempre faremos bem,
mesmo em ação prática, prevendo a possibilidade de que algo
possa sair errado em nossas expectativas.
Mas não é apenas esta precaução trivial que devemos
extrair de nossa resposta negativa a L x e Pri. Antes, da máxima
importância para a compreensão do problema inteiro, e espe­
cialmente do que denominei problema tradicional, é o fato de
que, apesar da “racionalidade” de escolher a teoria mais bem
testada com base de ação, esta escolha não é "racional” no
sentido de basear-se em boas razões para esperar que, na prá­
tica, seja uma escolha de êxito: pode não haver boas razões
neste sentido; tal é precisamente o resultado de Hume. (Nisto
concordam todas as nossas respostas a H l , L x e Prx.) Ao con­
trário, ainda que nossas teorias materiais fossem verdadeiras, é
perfeitamente possível que o mundo, como o conhecemos, com
todas as suas regularidades pragmaticamente pertinentes, possa
desintegrar-se completamente no próximo segundo. Isto é óbvio
hoje para qualquer pessoa, mas eu o disse(28) antes de Hiro-
shima: há, infinitamente, muitas possibilidades de desastre local,
parcial ou total.
De um ponto de vista pragmático todavia, muitas dessas
possibilidades evidentemente não merecem que nos incomo­
demos com elas, porque nada podemos fazer a seu respeito:
estão além do domínio da ação. (Sem dúvida, não incluo a
guerra atômica entre os desastres que estão além do domínio da
ação humana, embora na maioria pensemos assim porque, na
maioria, não podemos fazer a seu respeito mais do que a res­
peito de um ato de Deus.)

32
t

Tudo isto seria exato ainda que pudéssemos ter certeza de


que nossas teorias materiais e biológicas eram verdadeiras. Mas
não sabemos disto. Ao contrário, temos razão para suspeitar
até mesmo das melhores delas; e isto, naturalmente, acrescenta
mais infinidades às infinitas possibilidades de desastre.
É este tipo de consideração que torna tão importante a
resposta negativa de Hume, e a minha própria. Podemos ver
agora muito claramente o motivo de nos devermos acautelar
para que nossa teoria do conhecimento não prove demais. Mais
precisamente: nenhuma teoria do conhecimento deve tentar ex­
plicar os motivos de termos êxito em nossas tentativas de expli­
car coisas.
Mesmo admitindo que tenhamos tido êxito — que nossas
teorias materiais são verdadeiras — podemos aprender em
nossa cosmologia quanto esse êxito é infinitamente improvável:
nossa teorias nos dizem que o mundo é quase completamente
vazio e que o espaço vazio está repleto de radiação caótica. E
quase todos os lugares que não estão vazios são ocupados por
poeira caótica, ou por gases, ou por estrelas quentíssimas —
tudo em condições que parecem tomar localmente impossível
a aplicação de qualquer método de adquirir conhecimento
material.
Em suma, há muitos mundos, mundos possíveis e reais, nos
quais falharia uma busca de conhecimento e de regularidades.
E mesmo no mundo que efetivamente conhecemos segundo as
ciências, a ocorrência de condições em que a vida e uma busca
de conhecimentos possam surgir — e ter êxito — parece ser
quase infinitamente improvável. Mais ainda: parece que, mesmo
que aparecessem tais condições, estariam elas fadadas a desa­
parecer de novo, após um tempo muito curto, cosmologica-
mente falando.

10 ■— Bases de Minha Reformulação do Problema


Psicológico de Indução de Hume

Historicamente, encontrei minha nova solução do proble­


ma psicológico de indução de Hume antes de minha solução
do problema lógico: foi aí que observei primeiro que a indução |
— a formação de uma crença por meio de repetição — é um
mito. Primeiramente em animais e crianças, mas depois também
em adultos, foi que observei a imensamente forte necessidade de
regularidade — a necessidade que os leva a procurar regula­
ridades; que às vezes os faz experimentar regularidades mesmo
onde não há nenhuma; que os faz aferrar-se dogmaticamente a
33
suas expectativas; e que os faz aferrar-se dogmaticamente a suas
suas expectativas; e que os toma infelizes e pode mesmo impeli-
los ao desespero e à beira da loucura se certas regularidades
admitidas ruírem. Quando Kant disse que nossa inteligência
impõe suas leis à natureza, estava certo — só que não notou
quantas vezes nossa inteligência falha ao tentá-lo: as regularida­
des que tentamos impor são psicologicamente a priori, mas não
há a menor razão para admitir que sejam válidas a priori, como
pensou Kant. A necessidade de tentar impor tais regularidades
a nosso ambiente é claramente inata e baseada em impulsos, ou
instintos. Há a necessidade geral de um mundo que se con­
forme com nossas expectativas; e há muitas necessidades mais
específicas; por exemplo, a necessidade de correspondência
social normal, ou a necessidade de aprender uma língua com
regras para asserções descritivas (e outras). Isto levou-me pri­
meiro à conclusão de que expectativas podem surgir sem qual­
quer repetição, ou antes de qualquer uma; e depois levou-me
a uma análise lógica que mostrou que elas não podem surgir
de outra forma, porque a repetição pressupõe similaridade e a
similaridade pressupõe um ponto de vista — uma teoria, ou
uma expectativa.
Decidi, assim, que a teoria indutiva de Hume sobre a for­
mação de crenças não tinha possibilidade de ser verdadeira, por
razões lógicas. Isto levou-me a ver que considerações lógicas
podem ser transferidas para considerações psicológicas; e levou-
-me depois à conjectura heurística de que, muito geralmente,
o que se mantém em lógica também se mantém — desde que
adequadamente transferido — em psicologia. (Este princípio
heurístico é o que agora chamo “princípio de transferência”.)
Suponho ter sido amplamente este resultado que me fez aban­
donar a psicologia e voltar-me para a lógica do descobrimento.
Inteiramente fora disto, senti que a psicologia devia ser
encarada como uma disciplina biológica e que, especialmente,
assim devia ser encarada qualquer teoria psicológica da aquisi­
ção de conhecimento.
Ora, se transferirmos para a psicologia humana e animal
aquele método de preferência que é o resultado de nossa so­
lução de L3, chegaremos claramente ao bem conhecido método
de experiência e de eliminação de erros: as várias experiências
correspondem à formação de hipóteses concorrentes; e a elimi­
nação de erro corresponde à eliminação ou refutação de teorias
por meio de testes.
Isto me levou à formulação: a principal diferença entre
Einstein e uma ameba (tal como descrita por Jennings(29) é
que Einstein busca conscientemente a eliminação do erro. Ele
34
procura matar suas teorias: é conscientemente crítico de suas
teorias, as quais, por isto, procura formular nitidamente e não
vagamente. Mas a ameba não pode ser crítica vis-à-vis de suas
expectativas ou hipóteses; não pode ser crítica porque não pode
enfrentar suas hipóteses; estas fazem parte dela. (Só o conhe­
cimento objetivo é criticável: o conhecimento subjetivo só se
torna criticável quando se toma objetivo* E toma-se objetivo
quando dizemos o que pensamos; e mais ainda quando o escre­
vemos, ou imprimimos.)
É claro que o método de experiência e eliminação de erros
se baseia amplamente em instintos inatos. E é claro que alguns
desses instintos se ligam àquele fenômeno vago que alguns filó­
sofos denominam “crença”.
Eu costumava orgulhar-me pelo fato de não ser um filó­
sofo de crença: interesso-me primordialmente por idéias, por
teorias, e acho comparativamente sem importância que alguém
“creia” nelas ou não. E suspeito que o interesse de filósofos
por crenças resulte daquela filosofia errônea que chamo “indu-
tivismo”. São teóricos do conhecimento e, partindo de experiên­
cias subjetivas, deixam de distinguir entre o conhecimento obje­
tivo e o subjetivo. Isto os leva a crer na crença como o gênero
do qual o conhecimento é uma espécie (a diferença específica é
fomecidá pela “justificação”, ou talvez por um “critério de ver­
dade” tal como clareza e nitidez, ou vivacidade, (30) ou “razão
suficiente” ).
Por isto é que, como E. M. Foster, não creio em crença.
Há, porém, outras razões, e mais importantes, para des­
confiar das crenças. Disponho-me totalmente a admitir que exis­
tem alguns estados psicológicos que podem ser chamados “ex­
pectativas” e que há matizes de expectativas, desde a animada
expectativa de um cão que está prestes a ser levado a passear
até a expectativa quase inexistente de um escolar que sabe, mas
realmente não crê, que se viver por tempo bastante longo será
um dia um velho. Mas é discutível que a palavra “crença” seja
usada por filósofos para descrever estados psicológicos neste
sentido. Parece que na maioria das vezes eles a usam para
denotar, não estados momentâneos, mas sim o que podemos
chamar crenças “fixas”, incluindo as incontáveis expectativas
inconscientes que formam nosso horizonte de expectativas.
Destas para hipóteses formuladas vai grande distância, e também
portanto, para asserções da forma “Creio q u e .. . ”
Ora, quase todas as asserções formuladas podem ser consi­
deradas criticamente; e os estados psicológicos que resultam de
uma consideração crítica me parecem de fato muito diferentes
de uma expectativa inconsciente. Assim, mesmo uma crença

35
“fixa” se transforma quando é formulada e volta a transfor­
mar-se depois de ter sido formulada. Se o resultado de sua con­
sideração crítica for a “aceitação”, esta pode ir daquela aceita­
ção fanática que tenta suprimir dúvidas e escrúpulos até aquela
aceitação experimental que se dispõe prestamente à reconsidera­
ção e à revisão e pode mesmo ligar-se a uma busca ativa de
refutações.
Não penso que tais distinções entre “crenças” diferentes
sejam de qualquer interesse para minha teoria objetivista do
conhecimento; mas podem ser interessantes para quem tome
a sério o problema psicológico da indução — o que não faço.

11 — Reformulação do Problema Psicológico de Indução

Pelas razões acabadas de explanar, não encaro o problema


psicológico de indução como parte de minha própria teoria ( ob­
jetivista) do conhecimento. Mas penso que o princípio de trans­
ferência sugere os seguintes problemas e respostas:
Psi — Se encararmos criticamente uma teoria, do ponto
de vista da evidência suficiente e não de qualquer ponto de vista
pragmático, teremos sempre o sentimento de completa segu­
rança ou certeza de sua verdade, mesmo com respeito às teorias
mais bem testadas, como a de que o sol nasce todos os dias?

Penso que aqui a resposta é: Não. Sugiro que o senti­


mento de certeza — a crença forte — que Hume tentou expli­
car era uma crença pragmática; algo estreitamente ligado à
ação e à escolha entre alternativas, ou ainda à nossa necessidade
instintiva e à nossa expectativa de regularidades. Mas se admi­
tirmos que estamos em condições de refletir sobre a evidência e
sobre o que ela nos permite asseverar, então teremos de admitir
que o sol pode não nascer amanhã em Londres de modo algum
— por exemplo, porque o sol pode explodir dentro de meia
hora e, assim, não haverá amanhã. Sem dúvida, não considera­
remos esta possibilidade “seriamente” — isto é, pragmatica-
mente — porque ela não sugere qualquer ação possível: sim­
plesmente, nada podemos fazer a tal respeito.
Assim somos levados a considerar nossas crenças pragmá­
ticas. E estas podem ser realmente muito fortes. Podemos
perguntar:
Ps-2 — Essas “crenças pragmáticas fortes”, que todos
temos, como a crença de que haverá um amanhã, são resul­
tados irracionais da repetição?

36
Minha resposta é: Não. A teoria da repetição é insusten­
tável de qualquer maneira. Aquelas crenças são em parte inatas
e em parte modificações de crenças inatas resultantes do método
de experiência e eliminação de erro. Mas este método é per-
feitamente “racional”, pois corresponde precisamente àquele
método de preferência cuja racionalidade foi debatida. Mais es­
pecialmente, uma crença pragmática nos resultados da ciência
não é irracional, porque nada é mais “racional” do que o mé­
todo da discussão crítica, que é o método da ciência. E embora
seja irracional aceitar qualquer de seus resultados como certo,
nada é “melhor” quando se trata de ação prática: não há método
alternativo que possa ser proclamado mais racional.

12 — O Problema Tradicional da Indução e a Invalidade de


Todos os Princípios ou Regras de Indução

Volto agora ao que chamo problema filosófico tradicional


da indução.
O qüe assim denomino é, sugiro, o resultado de ver a con­
cepção de senso comum da indução por repetição desafiada
por Hume, sem levar o desafio tão a sério quanto deveria ser
levado. Mesmo Hume, afinal, era um indutivista; não se pode
esperar que todos os indutivistas desafiados por Hume vejam
que o desafio de Hume se dirige ao indutivismo.
O esquema fundamental do problema tradicional pode ser
exposto de vários modos; por exemplo:
Tri — Como pode ser justificada a indução (apesar de
Hume)?
Tr2 — Como pode ser justificado um princípio de indução
(isto é, um princípio não-lógico justificando a indução)?
Tra — Como se pode justificar um princípio de indução,
tal como “o futuro será semelhante ao passado” ou talvez o
suposto “princípio da uniformidade da natureza”?

Como indiquei sucintamente em meu livro Logik der Fors-


chung, penso que o problema de Kant — “Como podem ser vá­
lidas a priori asserções sintéticas?” — foi uma tentativa para
generalizar Trt ou Tr2. Por isso é que encaro Russel como
kantiano, pelo menos em algumas de suas fases, pois ele tentou
achar uma solução para Tr3 por meio de alguma justificação
a priori. Em Problemas da Filosofia, por exemplo, a formulação
dada por Russell a Tr<, foi: “ . . . que tipo de crenças gerais
bastaria, se verdadeiras, para justificar o julgamento de que o
sol nascerá amanhã, . . ?”
37
Do meu ponto de vista, todos estes problemas estão mal
formulados. (E também o estão todas as versões probabilísticas,
como a implícita no princípio de indução de Thomas Reid: “O
que virá a ser, provavelmente será igual ao que tem sido em
circunstâncias similares”.) Seus autores não levaram suficiente­
mente a sério a crítica lógica de Hume; e jamais consideraram
a possibilidade de que podemos e devemos agir sem indução
por repetição, e de que efetivamente agimos sem ela.
Parece-me que todas as objeções à minha teoria que
conheço vêm abordá-la indagando se minha teoria resolveu o
problema tradicional da indução— isto é, se justifiquei a infe­
rência indutiva.
Sem dúvida não o fiz. E daí meus críticos deduzem que
falhei em resolver o problema de indução de Hume.
Entre outras razões, e especialmente pela razão exposta na
secção 9, as formulações tradicionais do princípio de indução
têm de ser rejeitadas. Pois todas admitem não só que nossa
busca de conhecimento tem tido êxito, mas também que sere­
mos capazes de explicar a razão de tal êxito.
Contudo mesmo admitindo (o que também faço) que nossa
procura de conhecimento tem tido muito êxito até agora e que
agora conhecemos alguma coisa de nosso universo, este êxito
se toma miraculosamente imptovável e, portanto, inexplicável,
pois um apelo a uma série sem fim de acidentes improváveis
não é uma explanação. (O melhor que podemos fazer, suponho,
é investigar a história evolucionária quase incrível desses aci­
dentes, desde a formação dos elementos até a formação dos
organismos.
Uma vez que isto se veja, tornam-se perfeitamente óbvias
tanto a tese de Hume, de que um apelo à probabilidade não
pode mudar a resposta a H l (e portanto a í i e a P rj), como
também a invalidade de qualquer “princípio de indução”.
A idéia de um princípio de indução é a de uma asserção
— a ser encarada como um princípio metafísico, ou como válida
a príori, ou como provável, ou talvez como mera conjectura —
a qual, se verdadeira, daria boas razões para nossa confiança em
regularidades. Se por “confiança” se entender simplesmente uma
confiança pragmática (no sentido de Pr2) na racionalidade de
nossas preferências teóricas, então, claramente, não é necessá­
rio nenhum princípio de indução: não precisamos confiar em
regularidades — isto é, na verdade de teorias — para justi­
ficar esta preferência. Se, por outro lado, se entender a “con­
fiança” no sentido de Pru então qualquer princípio de indução
seria simplesmente falso. De fato, no sentido seguinte seria
mesmo paradoxal. Autorizar-nos-ia a confiar na ciência; ao

38
«

passo que a ciência de hoje nos diz que apenas sob condições
muito especiais e improváveis podem surgir situações nas quais
é possível observar regularidades, ou exemplos de regularidades.
De fato, como nos diz a ciência, tais condições dificilmente
ocorrem em qualquer parte do universo e, se ocorrerem em
alguma parte (digamos, na Terra), tendem a ocorrer por perío­
dos que serão curtos de um ponto de vista cosiüológico.
Claramente, esta crítica se aplica não só a qualquer prin­
cípio que justificasse a inferência indutiva baseada em repeti­
ção como também a qualquer princípio que justificasse a “con­
fiança” (no sentido de Prx) no método de experiência e elimi­
nação de erros ou em qualquer outro método .concebível.

13 — Além dos Problemas de Indução e Demarcação


Minha solução do problema da indução ocorreu-me con­
siderável tempo depois de haver resolvido, pelo menos para
minha satisfação própria, o problema da demarcação (a demar­
cação entre a ciência empírica e a pseudo-ciência, especialmente
a metafísica).
Só depois da solução do problema da indução encarei o
problema da demarcação como objetivamente importante, pois
eu supeitava que ele apenas desse uma definição de ciência.
Parecia-me isto de significação duvidosa (talvez devido à minha
atitude negativa para com definições), embora eu o houvesse
achado muito útil para esclarecer minha atitude em relação à
ciência e à pseudo-ciência.
Vi que o que deve ser abandonado é a busca da justificação
no sentido de justificar a alegação de que uma teoria é verda­
deira. Todas as teorias são hipóteses; todas podem ser der­
rubadas.
Por outro lado, estava eu bem longe de sugerir que aban­
donássemos a procura da verdade: nossas discussões críticas de
teorias são dominadas pela idéia de encontrar uma teoria ex-
planativa verdadeira (e vigorosa); e justificamos nossas pre­
ferências por um apelo à idéia de verdade; a verdade desem­
penha o papel de uma idéia reguladora. Testamos pela verdade,
eliminando a falsidade. O fato de não podermos dar a nossas
suposições uma justificativa — ou razões suficientes — não sig­
nifica que o suposto possa não ser verdade; algumas de nossas
hipóteses bem podem ser verdadeiras. (81)
A verificação de que todo conhecimento é hipotético leva
à rejeição do “princípio de razão suficiente”, na forma de que
“pode ser dada uma razão para cada verdade” (Leibniz), ou
na forma mais forte que encontramos em Berkeley e Hume, os

39
quais sugerem que há uma razão suficiente para descrer “quando
não vemos qualquer razão (suficiente) para crer”.(32)
Tendo resolvido o problema da indução e verificando sua
estreita conexão com o problema da demarcação, interessantes
e novos problemas e soluções surgiram em sucessão rápida.
Antes de tudo, verifiquei logo que o problema da demar­
cação e a minha solução, tal como acima exposta, eram um
tanto formais e irrealistas: as refutações empíricas podiam ser
sempre evitadas. Era sempre possível “imunizar” qualquer teoria
contra a crítica. (Esta excelente expressão, que, penso, deve
substituir meus termos “estratagema convencionalista” e “torção
convencionalista”, deve-se a Hans Albert.)
Fui levado assim à idéia de regras metodológicas e da im­
portância fundamental de uma abordagem crítica; isto é, de uma
abordagem que evitasse a política de imunizar nossas teorias
contra a refutação.
Ao mesmo tempo, verifiquei também o oposto: o valor de
uma atitude dogmática; alguém teria de defender uma teoria
contra a crítica, ou ela sucumbiría com demasiada facilidade,
antes de poder dar suas contribuições ao crescimento da ciência.
O passo seguinte foi a aplicação da abordagem crítica às
asserções de teste, à “base empírica” : acentuei o caráter con­
jectural e teórico de todas as observações e de todas as asser­
ções de observação.
Levou-me isto à concepção de que todas as línguas são im­
pregnadas de teoria, o que significava, sem dúvida uma revisão
radical do empirismo. Isto me fez também encarar a atitude
crítica como característica da atitude racional; e conduziu-me
a ver a significação da função argumentativa (ou crítica) da
linguagem, à idéia da lógica dedutiva com o sistema de inves­
tigação da crítica e a acentuar a retransmissão da falsidade a
partir da conclusão para as premissas (corolário da transmissão
da verdade a partir das premissas para a conclusão). E condu­
ziu-me depois a verificar que só uma teoria formulada (em con-
tradistinção com uma teoria crida) pode ser objetiva, bem como
à idéia de que esta formulação ou objetividade é que torna a
crítica possível; e assim cheguei à minha teoria de um “ter­
ceiro mundo” (ou, como Sir John Eccles prefere chamá-la,
“mundo 3”) .( 33)
São estes apenas alguns dos muitos problemas que a nova
abordagem suscitou. Há outros problemas que são de caráter
mais técnico, como os muitos problemas ligados à teoria da pro­
babilidade inclusive seu papel na teoria do quantum, e a co­
nexão entre minha teoria de preferência e a teoria de Darwin
da seleção natural.

40
*

2 — DUAS FACES DO SENSO COMUM:


ARGUMENTO A FAVOR DO
REALISMO DE SENSO COMUM E
CONTRA A TEORIA DE SENSO
COMUM DO CONHECIMENTO

1 — Em Desculpa da Filosofia

É muito necessário nestes dias pedir desculpas por ter


interesse pela filosofia, seja de que forma for. Excetuados talvez
alguns marxistas, a maioria dos filósofos profissionais parece
ter perdido o contacto com a realidade. E quanto aos marxistas
— “Os marxistas têm simplesmente interpretado o marxismo
de vários modos; a questão, porém, é mudá-lo”.f 1)
Em minha opinião, o maior escândalo da filosofia é que,
enquanto em todo o nosso redor o mundo da natureza perece
— e não só o mundo da natureza — os filósofos continuam a
falar, às vezes brilhantemente e às vezes não, sobre a questão
de saber se este mundo existe. Envolvem-se em escolasti-
cismo,(2) em enigmas linguísticos tais como, por exemplo, se
há ou não diferenças entre “ser” e “existir”. (Como na arte
contemporânea não há padrões nesses mundos de filosofia.)
Dispensável é dizer que a difundida atitude anti-intelectual
que era tão forte entre os nacional-socialistas e que de novo
se está tornando forte entre os jovens desiludidos, especialmente
estudantes, é exatamente tão má quanto esse tipo de escolasti-
cismo e, se possível, um pouco pior até do que a verbosidade
presunçosa e espúria, embora às vezes bem brilhante, de filó­
sofos e outros intelectuais. Mas é apenas um pouquinho pior,
pois a traição dos intelectuais evoca o anti-ínteíectualismo como
reação quase inevitável. Se aos jovens se derem pedras para
comer, em vez de pão, eles se revoltarão, ainda que, ao fazê-lo
confundam um padeiro com um apedrejador.
Em tais circunstâncias, é necessário pedir desculpas por
ser filósofo e, mais particularmente, por reafirmar (como pre­
41
tendo fazer, mesmo que só de passagem) o que deveria ser
uma trivialidade, tal como o realismo, a tese da realidade do
mundo. Qual é minha desculpa?
Minha desculpa é esta. Todos nós temos nossas filosofias,
estejamos ou não conscientes desse fato, e nossas filosofias não
valem grande coisa. Mas o impacto de nossas filosofias sobre
nossas ações e nossas vidas é muitas vezes devastador. Isto torna
necessário que testemos melhor nossas filosofias por meio da
crítica. Esta é a única desculpa que sou capaz de oferecer pela
continuada existência da filosofia.

2. — O Ponto de Partida Inseguro: Senso Comum e Critica

A ciência, a filosofia, o pensamento racional, todos devem


partir do senso comum.
Não, talvez, por ser o senso comum um ponto de partida
seguro: a expressão “senso comum” que estou aqui usando é
muito vaga, simplesmente porque denota uma coisa vaga e
mutável — os instintos, ou opiniões de muitas pessoas, às vezes
adequados ou verdadeiros e às vezes inadequados ou falsos.
Como nos pode fornecer um ponto de partida uma coisa
tão vaga e insegura como o senso comum? Minha resposta é:
porque não pretendemos nem tentamos construir (como fize­
ram, digamos, Descartes ou Spinoza, ou Locke, Berkeley, ou
Kant) um sistema seguro sobre esses “alicerces”. Qualquer de
nossas muitas suposições de senso comum — nossa base de
senso comum de conhecimento, como poderiamos dizer — da
qual partamos pode ser contestada e criticada a qualquer tempo;
frequentemente tal suposição é criticada com êxito e rejeitada
(por exemplo, a teoria de que a terra é plana). Em tal caso,
o senso comum é modificado pela correção, ou é transcendido
e substituído por uma teoria que, por menor ou maior período
de tempo, pode parecer a certas pessoas como mais ou menos
“maluca”. Se tal teoria necessitar de muito adestramento para
ser compreendida, poderá mesmo deixar para sempre de ser
absorvida pelo senso comum. Contudo, mesmo assim, podemos
exigir que tentemos chegar o mais perto possível do ideal: Toda
ciência e toda filosofia são senso comum esclarecido.
Deste modo começamos com um ponto de partida vago e
construímos sobre alicerces inseguros. Mas podemos progredir:
podemos às vezes, após alguma crítica, ver que estivemos erra­
42
*

dos; podemos aprender com os nossos enganos, com a com­


preensão de que fizemos um erro.
(Incidentemente, tentarei mostrar mais adiante que o senso
comum tem sido especialmente desencaminhador na teoria do
conhecimento. Pois parece haver uma teoria de senso comum do
conhecimento: é a teoria enganosa de que adquirimos conhe­
cimento a respeito do mundo abrindo nossos olhos e olhando
para ele, ou, mais geralmente, por observação.)
Minha primeira tese é, pois, que nosso ponto de partida é
o senso comum e que nosso grande instrumento para progredir
é a crítica.
Mas esta tese suscita ao mesmo tempo uma dificuldade.
Foi dito que, se quisermos criticar uma teoria, digamos Tlt
seja ela ou não de caráter de senso comum, precisamos então
de alguma outra teoria, T2, que nos forneça a necessária base,
ou ponto de partida, ou fundamento para criticar 7V Só no
caso muito especial de podermos mostrar que Ti é incoerente
(caso chamado “crítica imanente”, onde usamos 7\ para mos­
trar que T1 é falsa) poderemos proceder diversamente, isto é,
mostrando que conseqüências absurdas decorrem de Tx.
Acho que esta crítica do método de crítica não é válida. (O
que ela alega é que toda crítica deve ser “imanente” ou “trans­
cendente” e que, no caso da crítica “transcendente” não proce­
demos de modo crítico, pois temos de admitir dogmaticamente
a verdade de T2. Pois o que realmente acontece é isto. Se
achamos que podemos fazer alguma crítica de Tu que po­
demos supor uma teoria coerente, então, ou mostramos que
Ti leva a conseqüências não pretendidas e indesejáveis (não
importando muito que sejam logicamente incoerentes), ou
mostramos que há uma teoria concorrente T2 que se choca
com Ti e que, tentamos mostrar, tem certas vantagens sobre
7\. Eis tudo o que é necessário: tão logo tenhamos teorias
concorrentes, há um vasto campo para a discussão crítica, ou
racional: exploramos as conseqüências das teorias e, em espe­
cial, tentamos descobrir seus pontos fracos — isto é, conse­
qüências que pensamos possam ser erradas. Este tipo de dis­
cussão crítica ou racional pode às vezes levar a uma nítida
derrota de uma das teorias; mais freqüentemente, apenas ajuda
a revelar as fraquezas de ambas, incitando-nos assim a pro­
duzir mais outra teoria.
O problema fundamental da teoria do conhecimento é a
clarificação e a investigação deste processo, pelo qual, aqui se
afirma, nossas teorias podem desenvolver-se ou progredir.

43
3 — Contraste com Outros Processos

O que eu disse até aqui pode parecer bem trivial. Para


realçá-lo, contrastalo-ei muito sucintamente com outros pro­
cessos.
Descartes foi talvez o primeiro a dizer que tudo depende
da segurança de nosso ponto de partida. A fim de tomar esse
ponto de partida realmente seguro, sugeriu ele o método da
dúvida: só aceitar o que é absolutamente indubitável.
Partiu então de sua própria existência, que lhe parecia
indubitável, pois mesmo duvidar de nossa própria existência
parece pressupor a existência de um duvidador (um sujeito
duvidante).
Ora, não sou mais cético a respeito da existência de meu
próprio ser do que Descartes o era da sua. Mas também penso
(como Descartes) que morrerei em breve e que isto fará pouca
diferença para o mundo, à exceção de mim mesmo e de dois
ou três amigos. Obviamente, as consequências da vida e da
morte de alguém são de certa significação, mas conjecturo (e
penso que Descartes concordaria) que minha própria exis­
tência chegará a um fim sem que o mundo chegue a um fim
também.
Isto é uma opinião de senso comum e é o princípio
central do que se pode denominar “realismo” . (O realismo
será em breve discutido mais amplamente.)
Admito que a crença na existência de si mesmo é muito
forte. Mas não admito que ela possa suportar o peso de qual­
quer coisa semelhante ao edifício cartesiano; como plataforma
de partida, é estreita demais. Nem incidentemente, penso que
seja tão indubitável quanto Descartes (desculpavelmente)
acreditava. No admirável livro de Hugh Routledge, Everest
1933, lemos a respeito de Kipa, um dos sherpas, que subiu
mais alto do que lhe era conveniente: “A mente transtor­
nada do pobre velho Kipa ainda se aferrava obstinadamente à
idéia de que estava morto.” (8) Não assevero que a idéia do
pobre velho Kipa fosse de senso comum, ou mesmo razoável,
mas ela lança dúvida sobre a retidão e a indubitabilidade que
Descartes alegava. De qualquer modo, não pretendo fazer
nenhuma alegação semelhante de certeza, embora prazerosa­
mente admita que é de bom e sadio senso comum acreditar
alguém na existência de seu próprio ser pensante. Não é a
verdade do ponto de partida de Descartes que desejo contes­
tar, mas sua suficiência para o que tenta fazer com ele e,
incidentemente, sua alegada indubitabilidade.
44
ê

Locke, Berkeley e mesmo o “cético” Hume, e seus muitos


sucessores, especialmente RusselI e Moore,(4) partilhavam
com Descartes da opinião de que as experiências subjetivas
eram especialmente seguras e, portanto, adequadas como es­
tável ponto de partida, ou alicerce; mas confiavam principal­
mente em experiências de caráter observacional. E Reid, com
quem me associo na adesão ao realismo e ao senso comum,
pensava que tínhamos alguma percepção muito direta, ime­
diata e segura da realidade externa e objetiva.
Em oposição a isto, sugiro que nada há de direto ou
imediato em nossa experiência: temos de aprender que temos
um ser, prolongado no tempo e continuando a existir mesmo
no sono e na inconsciência total, e temos de aprender a res­
peito de nosso próprio corpo e dos outros. Tudo é decifração,
ou interpretação. Aprendemos a decifrar tão bem que, para
nós, tudo se torna muito “direto” ou “imediato”; mas o mesmo
se dá com quem aprendeu o código Morse, ou, para ter um
exemplo mais familiar, com quem aprendeu a ler um livro:
este lhe fala “diretamente”, “imediatamente”. Não obstante,
sabemos que há um complicado processo de decifração em
marcha; o direto e o imediato aparentes são resultados do
adestramento, como o tocar piano ou o dirigir automóvel.
Temos razão para conjecturar que há uma base heredi­
tária em nossa capacidade decifradora. De qualquer modo, às
vezes cometemos erros na decifração, especialmente durante o
período de aprendizado, e também depois, especíalmente se
ocorrem situações insólitas. O que há de imediato ou direto
nos bem aprendidos processos de decifração não garante fun­
cionamento infalível; não há certeza absoluta, embora haja
certeza bastante para muitos fins práticos. A busca de certeza
para ser base segura de conhecimento tem de ser abandonada.
Assim, vejo o problema do conhecimento de modo dife­
rente de meus predecessores. A segurança e a justificação de
alegações de conhecimento não são meu problema. Em vez
disso, meu problema é o crescimento do conhecimento. Em
que sentido podemos falar de crescimento ou de progresso do
conhecimento, e como podemos conseguí-lo?

4 — Realismo

O realismo é essencial ao senso comum. O senso comum,


ou senso comum esclarecido, distingue entre a aparência e a
realidade. (Isto pode ser ilustrado por exemplos tais como:

45
“Hoje o ar está tão claro que as montanhas parecem muito
mais próximas do que realmente estão”. Ou talvez: “Ele pa­
rece fazer isto sem esforço, mas confessou-me que a tensão é
quase insuportável” ). Mas o senso comum também verifica
que as aparências (digamos, um reflexo num espelho) têm
uma espécie de realidade; ou, em outras palavras, que pode
haver uma realidade de superfície — isto é, uma aparência —
e uma realidade de profundidade. Mais ainda, há muitos tipos
de coisas reais. O tipo mais óbvio é o dos víveres (conjecturo
que produzem a base do sentimento de realidade), ou objetos
mais resistentes (objectum = o que está no caminho de nossa
ação) como pedras, árvores e seres humanos. Mas há muitos
tipos de realidade que são inteiramente diferentes, como nossa
decifração subjetiva de nossas experiências com víveres, pedras,
árvores e corpos humanos. O gosto e o peso de víveres e de
pedras é ainda outra espécie de realidade, como o são as pro­
priedades de árvores e corpos humanos. Exemplos de outros
tipos neste multivariado universo são: uma dor de dentes, uma
palavra, um idioma, um sinal rodoviário, um romance, uma
decisão governamental; uma prova válida ou inválida; talvez
forças, campos de forças, propensões, estruturas; e regulari-
dades. (Minhas observações aqui deixam inteiramente em
aberto se, e como, essas muitas espécies de objetos podem ser
relacionados entre si.)

5 — Argumentos em Prol do Realismo

Minha tese é a de que o realismo não é demonstrável nem


refutável. O realismo, como qualquer outra coisa fora da lógica
e da aritmética finita, não é demonstrável; mas, embora as
teorias científicas empíricas sejam refutáveis,(5) o realismo nem
sequer é refutável. (Desta irrefutabilidade ele participa com
muitas teorias filosóficas ou “metafísicas” e em particular tam­
bém com o idealismo.) Mas é discutível e os argumentos pesam
esmagadoramente em seu favor.
O senso comum está inquestionavelmente do lado do rea­
lismo; há, decerto, mesmo antes de Descartes — sempre, de
fato, desde Heráclito —, algumas insinuações de dúvida a res­
peito de que nosso mundo comum talvez seja apenas nosso
sonho, sim ou não. Mas mesmo Descartes e Locke eram rea­
listas. Uma teoria filosófica concorrentes do realismo não come­
çou seriamente antes de Berkeley, Hume e Kant.(«) Incidente­
mente, Kant, chegou a fornecer ao realismo uma prova. Mas

46
*

não foi uma prova válida; e julgo importante que vejamos cla­
ramente por que nenhuma prova válida do realismo pode existir.
Em sua mais simples forma, o idealismo diz: o mundo (que
inclui minha audiência presente) é apenas meu sonho. Ora, é
claro que esta teoria (embora saibais que é falsa) não é refu­
tável: tudo quanto vós, da minha audiência, puderdes fazer para
convencer-me de vossa existência — falando-me, escrevendo
uma carta ou dando-me um pontapé — não tem possibilidade
de assumir a força de uma refutação; pois eu continuaria di­
zendo estar sonhando que me falais, ou que recebi uma carta,
ou levei um pontapé. (Poder-se-ia dizer que todas essas res­
postas são, de vários modos, estratagemas imunizadores. Assim
é, e isto é um forte argumento contra o idealismo. Mas, também,
o fato de uma teoria ser auto-imunizante não a refuta.)
O idealismo é, portanto, irrefutável; e isto quer dizer, sem
dúvida, que o realismo é indemonstrável. Mas estou disposto a
aceitar que o realismo não só é indemonstrável mas também,
como o idealismo, irrefutável; que nenhum acontecimento des-
critível e nenhuma experiência concebível podem ser tomados
como refutação efetiva do realismo.(7) Assim, nesta questão,
como em tantas outras, não haverá argumento conclusivo. Mas
há argumentos em favor do realismo; ou antes, contra o idea­
lismo.
(1) Talvez o argumento mais forte consista de uma com­
binação de dois: (a) que o realismo é parte do senso comum,
e (b) que os argumentos alegados contra ele não só são filo­
sóficos no sentido mais depreciativo deste termo, mas ao mesmo
tempo se baseiam numa parte do sensó comum aceita sem crí­
tica; isto é, naquela parte errada da teoria de senso comum do
conhecimento que denominei “teoria do balde mental” ; ver,
adiante, as secções 12 e 13.
(2) Embora para algumas pessoas a ciência esteja hoje
um tanto fora de moda, por motivos que, lastimavelmente, estão
longe de ser negligíveis, não devemos ignorar sua relevância
para o realismo, apesar do fato de haver cientistas que não são
realistas, como Emst Mach ou, em nosso próprio tempo, Eugene
P. Wigner;(8) seus argumentos caem muito claramente na classe
que acabamos de caracterizar em (1). Mas esqueçamos por um
momento a física atômica (mecânica do quantum). Podemos
asseverar que quase todas, senão todas, as teorias físicas, quí­
micas ou biológicas implicam realismo, no sentido de que, se
forem verdadeiras, também o realismo deve ser verdadeiro. Esta
é uma das razões pelas quais certas pessoas falam de “realismo
científico”. E é uma razão muito boa. Em vista de sua (apa­

47
rente) falta de testabilidade, acontece que eu mesmo prefiro
chamar ao realismo “metafísico” em vez de “científico”.(9)
Como quer que isto se encare, há excelentes razões para
dizer que o que tentamos em ciência é descrever e (até onde
possível) explicar a realidade. Fazemo-lo com a ajuda de teorias
conjecturais; isto é, teorias que esperamos sejam verdadeiras
(ou próximas da verdade), mas que não podemos firmar como
certas, ou mesmo como prováveis (no sentido do cálculo de
probabilidade), ainda que sejam as melhores teorias que somos
capazes de produzir, podendo assim ser chamados “prováveis”
enquanto este termo se mantiver fora de qualquer associação
com o cálculo de probabilidade.
Há um sentido estreitamente relacionado e excelente no
qual podemos falar de “realismo científico”: o processo que
adotamos envolve (enquanto não sucumbe, por exemplo, em
razão de atitudes anti-racionais) êxito no sentido de que nossas
teorias conjecturais tendem progressivamente a chegar mais
perto da verdade, isto é, de descrições verdadeiras de certos
fatos ou aspectos da realidade.
(3) Mesmo, porém, que abandonemos todos os argumen­
tos extraídos da ciência, permanecem os argumentos tirados
da linguagem. Qualquer discussão do realismo, e especialmente
todos os argumentos contra ele, têm de ser formulados em al­
guma linguagem. Mas a linguagem humana é essencialmente des­
critiva (e argumentativa),(10) e uma descrição sem ambigui­
dade é sempre realista: é de alguma coisa — de algum estado
de coisas, que pode ser real ou imaginário. Assim, se o estado
de coisas for imaginário, então a descrição é simplesmente falsa
e sua negação é uma descrição verdadeira da realidade, no sen­
tido de Tarski. Isto não refuta logicamente o idealismo, ou
solipsismo; mas torna-o pelo menos irrelevante. Racionalidade,
linguagem, descrição, argumento, todos se referem a alguma
realidade e se dirigem a uma audiência. Tudo isto pressupõe
realismo. Sem dúvida, este argumento em favor do realismo não
é logicamente mais conclusivo do que qualquer outro, pois eu
posso simplesmente sonhar que estou usando linguagem descri­
tiva e argumentos; não obstante, este argumento em prol do
realismo é forte e racional. É tão forte quanto a própria razão.
(4) Para mim, o idealismo parece absurdo por implicar
também algo assim: que é minha mente que cria este belo
mundo. Mas eu sei que não sou seu Criador. Afinal, a famosa
observação de que “a beleza está nos olhos do contemplador”,
embora talvez não seja uma observação extrèmamente estúpida,
nada mais significa além de que há um problema de apreciação
48
0

da beleza. Sei que a beleza dos auto-retratos de Rerabrandt não


está nos meus olhos, nem a das paixões de Bach em meus
ouvidos. Ao contrário, posso firmar quanto me satisfaça, abrindo
e fechando meus olhos e ouvidos, que meus olhos e ouvidos não
são bastante bons para apreender toda a beleza que aí existe.
Além disso, há outras pessoas que são juizes melhores — mais
capazes do que eu para apreciar a beleza de pinturas e da mú­
sica. Negar o realismo importa em megalomania (a mais difun­
dida doença ocupacional do filosofo profissional).
(5) Dentre muitos outros argumentos de peso, embora in­
conclusivos, desejo mencionar somente um. É este. Se o rea­
lismo é verdadeiro — mais especialmente, algo que se aproxime
do realismo científico — então é óbvia a razão da impossibili­
dade de prová-lo. A razão é que nosso conhecimento subjetivo,
mesmo o conhecimento perceptivo, consiste de disposições para
agir, e é assim uma espécie de adaptação experimental à reali­
dade; somos, no máximo, investigadores e de qualquer modo
falíveis. Não há garantia contra o erro. Ao mesmo tempo, toda
a questão da verdade e da falsidade de nossas opiniões e teo­
rias torna-se claramente sem sentido se não houver realidade,
mas apenas sonhos ou ilusões.

Em suma, proponho que se aceite o realismo como a única


hipótese sensata — como uma conjectura à qual jamais se
ofereceu qualquer alternativa sensata. Não quero ser dogmático
a respeito desta questão, nem a respeito de qualquer outra. Mas
penso que conheço todos os argumentos epistemológicos —- são
principalmente subjetivistas — que têm sido oferecidos em favor
de alternativas para o realismo, tais como o positivismo, o idea­
lismo, o fenomenalismo, a fenomenologia, etc.; e embora não
seja inimigo da discussão de ismos em filosofia, considero todos
os argumentos filosóficos que (quanto conheço) já têm sido
oferecidos a favor de minha lista de ismos como claramente
errôneos. Na maioria são os resultados da enganosa procura de
certeza ou de bases seguras sobre as quais construir. E são,
todos, erros típicos de filósofos, no pior sentido desse termo:
são todos derivados de uma errônea, embora tirante a senso
comum, teoria do conhecimento, que não suporta qualquer crí­
tica séria. (O senso comum, tipicamente, desaba quando apli­
cado a si mesmo; ver a secção 12 adiante.)
Concluirei esta secção com a opinião dos dois homens que
considero os maiores de nosso tempo: Albert Einstein e Winston
Churchill.
“Não vejo — escreve Einstein — qualquer “perigo meta­
físico” em aceitarmos as coisas, isto é, os objetos da física. . .

49
juntamente com as estruturas espacial-temporais que a elas
pertencem”. ( 11)
Esta foi a opinião de Einstein após cuidadosa e simpática
análise de uma brilhante tentativa para refutar o realismo in­
gênuo, devida a Bertrand Russell.
As opiniões de Winston Churchill são muito caracterís­
ticas e, penso, um comentário bem justo a respeito de uma filo­
sofia que pode, desde então, ter mudado de cores, cruzando o
limiar do idealismo para o realismo, mas que permanece tão
sem sentido como sempre foi. Escreve Churchill: “Alguns de
meus primos que haviam tido a grande vantagem de uma edu­
cação universitária costumavam provocar-me com argumentos
para provar que nenhuma coisa tem qualquer existência, exce­
tuado o que pensamos d e la .. . ” E continua:
“Sempre me apoiei no seguinte argumento, que arquitetei
para mim mesmo há muitos an o s... Lá está esse grande sol
aparentemente firmado em base não melhor do que nossos sen­
tidos físicos. Mas felizmente há um método, inteiramente à parte
de nossos sentidos físicos, para testar a realidade do sol.. . As­
trônomos. . . predisseram por (matemática e) razão pura que
um ponto negro passará sobre o sol num certo dia. Olhamos e
nosso sentido da visão imediatamente nos diz que os cálculos
deles estão confirmados... Utilizamos o que se chama em
feitura de mapas militares uma “posição cruzada”. Obtivemos
testemunho independente da realidade do sol. Quando meus ami­
gos metafísicos me dizem que os dados com os quais os astrô­
nomos fizeram seus cálculos foram obtidos originalmente, neces­
sariamente, pela evidência de seus sentidos, digo “Não”. Eles
poderíam, de qualquer forma em teoria, ser obtidos por má­
quinas calculadoras automáticas postas em movimento pela luz
caída sobre elas sem qualquer mistura dos sentidos humanos em
qualquer e tap a... Reafirmo com ênfase... que o sol é real,
e também que é quente — de fato, quente como o inferno e
que, se os metafísicos disso duvidam, devem ir lá e ver.” ( 12)
Posso talvez acrescentar que considero o argumento de
Churchill, especialmente os trechos importantes que pus em
grifo, não só uma crítica válida dos argumentos idealísticos e
subjetivistas, mas também o mais acertado e engenhoso argu­
mento que conheço contra a epistemologia subjetivista. Não sei
de qualquer filósofo que não tenha ignorado esse argumento
(exceto alguns de meus alunos cuja atenção chamei para ele).
O argumento é altamente original; publicado pela primeira vez
em 1930, é um dos mais antigos argumentos filosóficos que
fazem uso da possibilidade de observatórios automáticos e de
máquinas calculadoras (programados pela teoria newtoniana).
50
»

E contudo, quarenta anos depois de sua publicação, Winston


Churchill é ainda de todo desconhecido como epistemologista:
seu nome não aparece em qualquer das muitas antologias de
epistemologia e até mesmo falta na Enciclopédia de Filosofia.
Por certo, o argumento de Churchill é apenas uma exce­
lente refutação dos argumentos dos subjetivistas: não prova o
realismo. Pois o idealista pode sempre argüir que ele, ou nós,
estamos sonhando o debate, com máquinas calculadoras e tudo.
Este, porém, é um argumento que considero simplório em vista
de sua aplicabilidade universal. De qualquer forma, a menos
que algum filósofo produza algum argumento inteiramente novo,
sugiro que o subjetivismo pode, no futuro, ser ignorado,

6 — Observações sobre a Verdade


Nossa principal preocupação em filosofia e em ciência deve
ser a procura da verdade. A justificação não é um alvo; e o
brilhantismo e a habilidade, como tais, são tediosas. Devemos
procurar ver ou descobrir os problemas mais urgentes e devemos
tentar resolvê-los propondo teorias verdadeiras (ou asserções
verdadeiras, ou proposições verdadeiras; não é preciso, aqui,
distinguir entre elas); ou, de qualquer modo, propondo teorias
que cheguem um pouco mais perto da verdade do que as de
nosso predecessores.
Mas a busca da verdade só é possível se falarmos clara e
simplesmente e se evitarmos tecnicalismos e complicações des­
necessárias. A meu ver, visar à simplicidade e à lucidez é um
dever moral de todos os intelectuais: a falta de clareza é um pe­
cado e a presunção é um crime. (A concisão também é impor­
tante, em vista da explosão das publicações, mas é de menor
premência e às vezes é incompatível com a clareza.) Freqüen-
temente somos incapazes de corresponder a esses requisitos e
deixamos de dizer as coisas claras e compreensivelmente, mas
isto apenas mostra que todos não somos suficientemente bons
como filósofos.
Aceito a teoria de senso comum (defendida e aprimorada
por Alfred Tarski(13)) de que a verdade é a correspondência
com os fatos (ou com a realidade); ou, mais precisamente, que
uma teoria é verdadeira se, e apenas se, corresponder aos fatos.
Entremos um pouquinho em tecnicalismos que, graças a
Tar&ki, agora se tornaram quase trivialidades: a verdade e a
falsidade são encaradas e essencialmente como propriedades, ou
classes, de asserções, isto é, de teorias ou proposições (ou “sen­
tenças significativas) ( 14) (formuladas sem ambiguidade) de
certa linguagem L x (por exemplo, o alemão) a respeito da qual

SI
podemos falar bem desembaraçadamente em outra linguagem
Lm, também chamada metalinguagem. As frases de Lm que se
refiram total ou exclusivamente a L x são chamadas “metalin-
güísticas”.
Abreviemos com “P” um dos nomes em inglês (Lm) da
frase em alemão (Lj) “Der Mond ist aus griinen Kãse gemacht”
(a lua é feita de queijo verde” ). (Note-se que, com a adição
dos sinais ingleses de citação — ou aspas —, esta frase alemã
tornou-se um nome metalingüísticamente inglês — um chamado
nome de citação — da frase alemã.) Assim, a asserção de
identidade P = “Der Mond ist aus grünem Kãse gemacht” é
evidentemente uma asserção metalingüística em inglês; e pode­
mos dizer: “A asserção em alemão “Der Mond ist aus grünem
Kãse gemacht’ corresponde aos fatos, ou ao estado real das
coisas, se, e apenas se, a lua for feita de queijo verde.”
Apresentemos agora a regra geral de que, se P é uma asser­
ção, então “p” é uma abreviatura da descrição inglesa do estado
de coisas descrito pela asserção P. Podemos dizer então, de
modo mais geral: “A frase P da linguagem-objeto é uma asser­
ção correspondente aos fatos se, e apenas se, p.”
Em inglês diriamos que “P é verdade em L ”, ou “P é
verdade em alemão”. Não obstante, a verdade não é uma noção
relativa à linguagem; pois, se Pi for uma asserção de qualquer
linguagem L u e se P2 for uma asserção de qualquer lingua­
gem L2, então é válido o seguinte (d:gamos, em Lm): Se P2
traduz Pi de Li para L 2, então Pi e P2 devem ser ambos ver­
dadeiros ou ambos falsos; devem ter o mesmo valor de verdade.
Mais ainda, se uma linguagem for bastante rica para possuir
uma operação de negação, ( 15) então podemos dizer que ela
contém, para cada asserção falsa, uma asserção verdadeira.
(Assim sabemos que há, falando a grosso modo, “tantas” asser­
ções verdadeiras quantas sejam as asserções falsas em cada lin­
guagem que possua uma operação de negação).
A teoria de Tarski torna mais particularmente claro jus­
tamente a que fato uma asserção P corresponderá, se correspon­
der a algum fato: a saber, o fato que p. E resolve também o
problema das asserções falsas; pois uma asserção falsa P é falsa
não porque corresponde a alguma entidade excêntrica como um
nõo-fato, mas simplesmente porque não corresponde a algum
fato: não se sustenta na relação peculiar de correspondência com
um fato para com qualquer coisa real, embora se sustente numa
relação como a que “descreve” o estado de coisas espúrio que
p. (Não há valor em evitar expressões como “um estado de
coisas espúrio”, ou mesmo “um fato espúrio”, enquanto tivermos
em mente que um fato espúrio simplesmente não é real.)
52
4

Embora fosse necessário o gênio de Tarski para torná-lo


claro, agora se tornou deveras perfeitamente claro que, se
queremos falar a respeito da correspondência de uma asserção
com um fato, precisamos de uma metalinguagem em que possa­
mos asseverar o fato (ou o fato alegado) a respeito do qual
fala a asserção em questão, e além disso podemos também falar
a respeito da asserção em questão (usando certo nome conven­
cional ou descritivo dessa asserção). E vice-versa: é claro que,
desde que possuamos tal metalinguagem em que podemos falar
a respeito (a) dos fatos descritos pelas asserções de alguma
linguagem (objeto), pelo simples método de asseverar esses
fatos, e também a respeito (b) das asserções dessa linguagem
(objeto) usando nomes dessas asserções), então podemos falar
também nessa metalinguagem a respeito da correspondência de
asserções com fatos.
Uma vez que possamos asseverar deste modo as condições
sob as quais cada asserção da linguagem Li corresponde aos
fatos, poderemos definir, de modo puramente verbal, mas em
consonância com o senso comum: ( 16) Uma asserção é verda­
deira se, e apenas se, corresponder aos jatos.
Isto, como indica Tarski, é uma noção objetivista ou abso-
lutista da verdade. Mas não é absolutista no sentido de permitir
que falemos com “absoluta certeza ou segurança”. Pois isto não
nos proporciona um critério de verdade. Ao contrário, Tarski
pode provar que, se L i for suficientemente rica (por exemplo,
se contiver aritmética), então não pode existir um critério geral
de verdade. Só em linguagens artificiais extremamente pobres
pode haver um critério de verdade. (Aqui Tarski é devedor de
Gõdel.)
Assim, a idéia da verdade é absolutista, mas não se pode
fazer qualquer alegação de certeza absoluta: somos buscadores
da verdade mas não somos seus possuidores. ( 17)

7 — Conteúdo, Conteúdo de Verdade e Conteúdo de Falsidade

A fim de esclarecer o que estamos fazendo quando pro­


curamos a verdade, devemos, pelo menos em alguns casos, ser
capazes de dar razões para a alegação intuitiva de que che­
gamos mais perto da verdade, ou de que alguma teoria T1 é su­
perada por alguma nova teoria, digamos T2, porque T2 é mais
âêmelhante à verdade do que 7V
A idéia de que uma teoria Tx pode estar mais distante da
verdade do que uma teoria T2, de modo que T2 é uma aproxi­
mação melhor da verdade (ou simplesmente uma teoria melhor)

53
do que Tu tem sido usada, intuitivamente, por muitos filóso­
fos, inclusive eu mesmo. E tal como a noção de verdade tem
sido encarada com suspeita por muitos filósofos (não de todo
sem certo grão de verdade ou razão, como se tornou claro com
a análise dos paradoxos semânticos feita por Tarski), assim o
tem sido a noção de melhor abordagem ou aproximação da ver­
dade, ou de proximidade da verdade, ou (como tenho dito)
de maior “verossimilitude”.
Para minorar essas suspeitas, apresentei uma noção lógica
de verossimilitude combinando duas noções, ambas originaria-
mente apresentadas por Tarski: (a) a noção de verdade e (b)
a noção do conteúdo (lógico) de uma asserção; isto é, a classe
de todas as asserções logicamente acarretadas por ela (sua
“classe de conseqüência”, como costuma chamá-la Tarski).(18)
Toda asserção tem um conteúdo ou classe de conseqüência,
a classe de todas aquelas asserções que decorrem dela. (Pode­
mos descrever a classe de conseqüência de asserções tautoló-
gicas, acompanhando Tarski, como a classe zero, de forma que
as asserções tautológicas têm um conteúdo zero.) E cada con­
teúdo encerra um subconteúdo, que consiste da classe de todas,
e apenas todas, as suas conseqüências verdadeiras.
A classe de todas as asserções verdadeiras que decorrem
de uma dada asserção (ou que pertencem a um dado sistema
dedutivo) e que não são tautológicos pode ser chamada seu
conteúdo de verdade.
O conteúdo de verdade de tautologias (de asserções logi­
camente verdadeiras) é zero: consiste só de tautologias. Todas
as outras asserções, inclusive todas as asserções falsas, têm um
conteúdo de verdade não-zero.
A classe de asserções falsas acarretadas por uma asserção
— a subclasse de seu conteúdo que consiste exatamente de todas
aquelas asserções que são falsas — poderia ser chamada (por
cortesia, por assim dizer) seu “conteúdo de falsidade” ; não tem,
contudo, as propriedades características de um “conteúdo”, ou
de uma classe de conseqüência tarskiana. Não é um sistema
dedutivo tarskiano, pois de qualquer asserção falsa é possível
deduzir logicamente asserções verdadeiras (A disjunção de uma
asserção falsa e qualquer asserção verdadeira é uma daquelas
asserções que são verdadeiras e decorrem da asserção falsa.)
Na parte restante desta secção pretendo explanar as idéias
intuitivas de conteúdo de verdade e conteúdo de falsidade com
um pouco mais de minúcia, a fim de preparar uma discussão
mais de perto da idéia de verossimilitude; pois a verossimilitude
de uma asserção será exposta como aumentando com seu con­
teúdo de verdade e decrescendo com seu conteúdo de falsidade.

54
*

Nisto, utilizarei amplamente idéias de Alfred Tarski, especial­


mente sua teoria da verdade e sua teoria das classes de conse­
qüência e dos sistemas dedutivos (ambas aqui mencionadas na
nota 18; ver também o Cap. 9 deste volume para um trata­
mento mais detalhado).
É possível expressar o conteúdo de falsidade de uma
asserção a (como distinto da classe de asserções falsas que de­
correm de a) de modo tal que (a) seja um conteúdo (ou uma
classe de conseqüência tarskiana), (b) contenha todas as asser­
ções falsas que decorrem de a, e (c) não contenha nenhuma
asserção verdadeira. A fim de fazer isto, precisamos apenas rela-
tivizar o conceito de um conteúdo, o que pode ser feito de
modo muito natural.
Demos ao conteúdo ou classe de conseqüência de uma
asserção a o nome de "A” (de modo que, em geral, X seja o
conteúdo da asserção x). Chamemos, com Tarski, o conteúdo
de uma asserção logicamente verdadeira pelo nome de “L ”. L
é a classe de todas as asserções logicamente verdadeiras e õ
conteúdo comum de todos os conteúdos e de todas as asserções.
Podemos dizer que L é o conteúdo zero.
Relativizemos agora a idéia de conteúdo de modo que fale­
mos do conteúdo relativo da asserção a, dado o conteúdo Y,
e denotemos isto pelo símbolo “a, Y ”. Esta é a classe de todas
as asserções dedutíveis de a em presença de Y, mas não de Y
sozinho.
Vemos ao mesmo tempo que, se A é o conteúdo da asser­
ção a, então temos, no modo relativizado de escrever, A = a, L;
o que é dizer que o conteúdo absoluto A de uma asserção a
equivale ao conteúdo relativo de a, dado “lógico” (= conteúdo
zero).
Caso mais interessante do conteúdo relativo de uma con­
jectura a í o caso a, Bt, onde Bt é o nosso conhecimento de
base no tempo t; isto é, o conhecimento que no tempo t é admi­
tido sem discussão. Podemos dizer que o interessante numa nova
conjectura a é, em primeira instância, o conteúdo relativo a, B;
isto é, aquela parte do conteúdo de a que vai além de B. Assim
como o conteúdo de uma asserção logicamente verdadeira é
zero, assim também o conteúdo de uma conjectura a, dado B,
é zero, se a contiver apenas conhecimento de base e nada
além disso: podemos dizer, em geral, que, se a pertence a B, ou,
o que dá no mesmo, se A a B, então a,B = O. Assim, o con­
teúdo relativo de uma asserção x,Y, é a informação pela qual x
em presença de Y transcende Y.
Podemos agora definir o conteúdo de falsidade de a, que
denotamos por A F , como o conteúdo de a, dado o conteúdo

55
de verdade de a (isto é, a intersecção A t de A e T, sendo T
o sistema tarskiano de asserções verdadeiras). Desse modo, po­
demos definir:
F
. a,/i T .
O assim definido Ap responde a nossos desideratos ou
condições de adequação: (a) A p é um conteúdo, ainda que
um conteúdo relativo; afinal, conteúdos “absolutos” também são
conteúdos relativos, dada a verdade lógica (ou admitindo que
L é logicamente verdadeiro); (b ) A contém todas as asserções
falsas que decorrem de a, pois é o sistema dedutivo de asser­
ções que decorrem de a, tomando as asserções verdadeiras
como nosso zero (relativo); (c) A„ não “contêm” nenhuma
F
asserção verdadeira no sentido de que suas asserções verdadei­
ras não são tomadas como conteúdo, mas como seu conteúdo
zero (relativo).
Os conteúdos são às vezes logicamente comparáveis e às
vezes não: formam sistemas parcialmente ordenados, ordena­
dos pela relação de inclusão, exatamente como as asserções são
parcialmente ordenadas pela relação de acarretamento. Os con­
teúdos absolutos A e B são comparáveis desde que A cz B ou
B c A. Com os conteúdos relativos, as condições de compa-
rabilidade são mais complicadas.
Se X for um conteúdo, ou sistema dedutivo, finitamente
axiomatizável, então existe uma asserção x tal que X é o con­
teúdo de x.
Assim, se Y for finitamente axiomatizável, poderemos es­
crever:
x,Y =* x,y.
Ora, neste càso pode-se ver que x,Y equivale ao conteúdo
absoluto da conjunção x,y menos o conteúdo de y.
Considerações como esta mostram que a,B e c,D serão
comparáveis se
(A + B) — B for comparável com {C + D) ~D,
onde "+ " é a adição de sistemas dedutivos de Tarski: se ambos
forem axiomatizáveis, A + B ê o conteúdo da conjunção a.b.
Assim a comparabilidade será rara nesses sistemas parcial­
mente ordenados. Mas há um método que mostra que esses sis­
temas parcialmente ordenados podem ser “em princípio” —
isto é, sem contradição — ordenados linearmente. O método é
a aplicação da teoria formal da probabilidade. (Afirmo sua
aplicabilidade aqui apenas para sistemas axiomatizáveis; ver
também o Cap. 9 adiante.)
56
«

Podemos escrever “p (x,Y)” ou ainda


P (X,Y)
para ler a “probabilidade de x dado Y”, e aplicar o sistema de
axiomas formal para a probabilidade relativa que dei em outra
parte (por exemplo, em meu livro Lógica da Descoberta Cien­
tífica, novos apêndices *iv e *v).(19) O resultado é que p(x,Y)
será um número entre 0 e 1 — usualmente não temos idéia de
que número — e que podemos afirmar, muito geralmente, que
p(a,B) e p(c,D) são comparáveis em princípio.
Embora normalmente tenhamos insuficiente informação a
nosso dispor para decidir se
p(a,B) < p(c,D) ou p(a,B) ^ p(c,D),
podemos afirmar que pelo menos uma dessas relações deve
manter-se.
O resultado de tudo isto é podermos dizer que os conteú­
dos de verdade e os conteúdos de falsidade podem ser tornados
comparáveis em princípio com a ajuda do cálculo de proba­
bilidade.
Como mostrei em vários locais, quanto maior for o con­
teúdo A de a, nenor será a probabilidade lógica p(a) ou p(A).
Pois, quanto mais informação traga uma asserção, menor será a
probabilidade lógica de que seja verdadeira (acidentalmente, por
assim dizer). Podemos portanto introduzir uma “medida” do
conteúdo (pode ser mais usada topologicamente, isto é, como
um indicador de ordem linear),
ct(a),
isto é, o conteúdo (absoluto) de a, e também medidas rela­
tivas
ct(a,b) e ct(a,B),
isto é, o conteúdo relativo de a dado b ou B respectivamente.
(Se B for axiomatizável, teremos então sem dúvida ct(a,b) -
ct(aji).) Estas “medidas” ct podem ser definidas com o auxílio
do cálculo de probabilidade; isto é, com a ajuda da definição
ct(a,B) = 1 — p(a,B).
Temos agora à nossa disposição os meios de definir (medidas
de) o conteúdo de verdade, ctT(a) e o conteúdo de falsidade,
ctF(«):
57
ctT(a) = ct(Ar ),
sendo A T novamente a intersecção de A e do sistema tarskiano
de todas as asserções verdadeiras; e
ctp (a) = ct(a,AT),
isto é, o conteúdo de falsidade (sua medida) é o conteúdo rela­
tivo de a (sua medida), dado o conteúdo da verdade ás A T de
a; ou, ainda em outras palavras, o grau a que a vai além daque­
las asserções que (a) decorrem de a e (b) que são verdadeiras.

8 — Observações sobre a Verossimilitude

Com a ajuda destas idéias podemos explicar agora mais


claramente o que entendemos intuitivamente por verossimi­
lhança ou verossimilitude. Intuitivamente falando uma teoria Tx
tem menos verossimilitude do que uma teoria T2 se, e apenas
se, (a) seus conteúdos de verdade e de falsidade (ou suas me­
didas) forem comparáveis, ou se (b) o conteúdo de verdade,
mas não o conteúdo de falsidade, de Ti for menor que o de T2,
ou ainda se (c) o conteúdo de verdade de T1 não for maior
que o de T2, mas seu conteúdo de falsidade for maior. Em suma,
dizemos que T2 está mais perto da verdade, ou é ma;s seme­
lhante à verdade, do que Tu se, e apenas se, mais asserções ver­
dadeiras decorrerem dela, porém não mais asserções falsas, ou
pelo menos igualmente tantas asserções verdadeiras, porém
menos asserções falsas.
Em geral, podemos dizer que só teorias concorrentes —
tais como as teorias da gravitação de Newton e de Einstein —
são intuitivamente comparáveis com respeito a seus conteúdos
(não medidos); mas há também teorias concorrentes que não
são comparáveis.
A comparabilidade intuitiva dos conteúdos da teoria de
Newton (N) e da de Einstein (E) pode ser estabelecida da se­
guinte forma: (20) (a) para cada questão a que a teoria de
Newton apresente uma resposta a teoria de Einstein apresenta
uma resposta que é, pelo menos, igualmente precisa; isto toma
o conteúdo (sua medida), em sentido levemente mais amplo que
o de Tarski,(21) de N menor do que ou igual ao de E; (b) há
questões a que a teoria de Einstein E pode dar uma resposta
(não tautológica), ao passo que a teoria de Newton N não a dá;
isto toma o conteúdo de N definitivamente menor que o de E.
Assim podemos comparar intuitivamente os conteúdos
destas duas teorias e a de Einstein tem o conteúdo maior. (Pode-
58
-se mostrar que esta intuição é corroborada pelas medidas de
conteúdo ct(N) e ct{E). Isto toma a teoria de Einstein poten­
cialmente ou virtualmente a melhor teoria; pois mesmo antes
de qualquer teste podemos dizer: se verdadeira, ela tem maior
poder explicativo. Além disso, desafia-nos a realizar maior varie­
dade de testes. Assim, oferece-nos novas oportunidades para
aprender mais a respeito dos fatos: sem o desafio da teoria de
Einstein, nunca teríamos medido (com o maior grau de pre­
cisão necessário) a distância aparente entre as estrelas que
rodeiam o sol durante um eclipse, ou o desvio vermelho da luz
emitida pelas chamadas “anãs brancas”.
São estas algumas das vantagens de uma teoria (logica­
mente) mais forte, existentes mesmo antes que ela haja sido
testada; isto é, de uma teoria com maior conteúdo. Elas tomam
uma teoria potencialmente melhor, uma teoria mais desafiadora.
Mas a teoria mais forte, a teoria de maior conteúdo, será
também a de maior verossimilitude a menos que seu conteúdo de
falsidade seja também maior.
Esta asserção forma a base lógica do método da ciência
— o método de conjecturas ousadas e de refutações tentadas.
Uma teoria é tanto mais ousada quanto maior for seu con­
teúdo. É também a mais arriscada: é a mais provável de come­
çar com o que será falso. Tentamos encontrar seus pontos fracos,
para refutá-la. Se falharmos em refutá-la, ou se as refutações
que encontramos forem ao mesmo tempo também refutações
da teoria mais fraca que a precedeu, (22) então temos razão para
suspeitar, ou para conjecturar, que a teoria mais forte não tem
conteúdo de falsidade maior que o de sua predecessora mais
fraca e que, portanto, tem o maior grau de verossimilitude.

9 — Verossimilitude e a Procura da Verdade


Tomemos um quadrado como representando a classe de
todas as asserções e dividamo-lo em duas sub-áreas iguais, a
das asserções verdadeiras (T) e a das falsas ( F ) :

59
Agora, mudemos um pouco este arranjo, juntando a classe
das asserções verdadeiras num círculo no centro do quadrado.

F ig. 2

A tarefa da ciência é, metaforicamente falando, cobrir com


acertos o máximo possível do alvo (T) das asserções verda­
deiras, pelo método de propor teorias ou conjecturas que nos
pareçam promissoras, e cobrir o mínimo possível da área
falsa (F ).
Ê muito importante que procuremos conjecturar teorias ver­
dadeiras; mas a verdade não é a única propriedade importante
de nossas teorias conjecturais, pois não estamos particularmente
interessados em propor trivialidade ou tautologias. “Todas as
mesas são mesas” é certamente verdade — é certamente mais
verdadeiro do que as teorias de Newton e de Einstein — mas
intelectualmente não é emocionante: não é o que procuramos
em ciência. Wilhelm Busch produziu certa vez o que chamei
canção para o berçário epistemológico:(23)

Duas vezes dois são quatro: é certo,


mas é trivial, sem importância.
O que procuro é um rumo aberto
para questões de mais substância.

Em outras palavras, não estamos simplesmente procurando


a verdade, estamos procurando uma verdade interessante e es­
clarecedora, teorias que ofereçam soluções a problemas interes­
santes. E, se possível, estamos à busca de teorias profundas.
Não estamos tentando meramente acertar um ponto dentro
de nosso alvo T, mas uma área de nosso alvo tão ampla e
interessante quanto possível duas vezes dois são quatro, embora
verdade, não é, no sentido aqui pretendido, uma “boa aproxi­
mação da verdade”, simplesmente porque encerra uma verdade
pequena demais para cobrir o alvo da ciência ou mesmo uma
60
parte importante dele. A teoria de Newton é uma “aproximação
da verdade” muito melhor, ainda que seja falsa (como prova­
velmente é), por causa do tremendo número de conseqüências
verdadeiras interessantes e informativas que contém: seu con­
teúdo de verdade é muito grande.
Há uma infinidade de asserções verdadeiras e são de valo­
res muito diferentes. Um modo de avaliá-las é lógico: calcu­
lamos o tamanho ou medida de seu conteúdo (que no caso das
asserções verdadeiras, mas não das falsas, coincide com seu con­
teúdo de verdade). Uma asserção que transmita mais informa­
ção tem maior conteúdo informativo ou lógico; é a asserção
melhor. Quanto maior for o conteúdo de uma asserção verda­
deira, melhor será ela como abordagem de nosso alvo T, isto é,
da “verdade” (mais precisamente, da classe de todas as asser­
ções verdadeiras). Pois não desejamos aprender apenas que
todas as mesas são mesas. Se falamos de abordagem ou aproxi­
mação da verdade referimo-nos à “verdade inteira”, isto é,
a toda a classe de asserções verdadeiras, a classe T.
Ora, se uma asserção for falsa a situação é similar. Cada
asserção não ambígua é verdadeira ou falsa (embora possamos
não saber se é uma coisa ou outra); a lógica que aqui consi-
dero(24) só tem estes dois valores de verdade e não há ter­
ceira possibilidade. Contudo, uma asserção falsa pode parecer
mais próxima da verdade do que outra asserção falsa: “são
agora 9 horas e 45” parece mais perto da verdade do que “são
agora 9 horas e 40”, se de fato forem 9 horas e 48 quando se
faz a observação.
Nesta forma, porém, a impressão intuitiva é errônea: as
duas asserções são incompatíveis e, portanto, não comparáveis
(a menos que introduzamos uma medida como ct). Contudo, há
certo núcleo de verdade na intuição errada: se substituirmos as
duas asserções por asserções de intervalo (ver o parágrafo se­
guinte), então a primeira está realmente mais perto da verdade
do que a segunda.
Podemos proceder assim: a primeira asserção é substi-
tuida por “Estamos agora entre 9 horas e 45 e 9 e 48”, e a
segunda por “Estamos agora entre 9 horas e 40 e 9 e 48”. Deste
modo, substituímos cada asserção por uma que admite uma
consecutiva escala de valores, uma escala de erros. Agora as
duas asserções substituídas se tornam comparáveis (pois a pri­
meira acarreta a segunda) e a primeira está de fato mais perto
da verdade do que a segunda; e isto se deve aplicar a qualquer
coerente função de medida de conteúdo, como ct e ctT. Mas
visto como num sistema com uma função de medida como ctT
nossas primeiras asserções eram comparáveis (num tal sistema,

61
em princípio, todas as asserções são comparáveis), podemos
concluir que a medida do conteúdo de verdade c t pode ser
definida de modo que ctT da primeira asserção é de fato, pelo
menos, tão grande como — ou maior do que — o da segunda
asserção; e isto justifica até certo ponto nossa primeira intuição.
Note-se que a palavra “entre” nas asserções substituídas
pode ser interpretada de modo a incluir ou excluir qualquer dos
limites. Se a interpretarmos como incluindo o limite mais alto,
então ambas as asserções são verdadeiras e assim ct =. ctT
vale para ambas. São verdadeiras, mas a primeira asserção tem
maior verossimilitude porque tem um conteúdo de verdade maior
que o da segunda. Se, por outro lado, interpretamos “entre”
como excluindo o limite maior, então ambas as asserções se
tornam falsas (embora pudessem ser chamadas “quase verda­
deiras” ); mas permanecem comparáveis (no sentido de não-me-
dida) e podemos ainda afirmar que a primeira tem maior veros­
similhança que a segunda. (Ver também meus livros Conjec-
tures and Refutations, pgs. 397 seg. e Logic of Scientific Dis-
covery, secção 37.)
Assim, sem violar a idéia da lógica de dois valores ( “toda
asserção não ambígua é verdadeira ou falsa e não há terceira
possibilidade” ), podemos às vezes falar de asserções falsas que
são mais ou menos falsas, ou mais afastadas da verdade, ou
mais próximas dela. E esta idéia de verossimilitude maior ou
menor é aplicável tanto às asserções falsas quanto às verdadei­
ras: o ponto essencial é seu conteúdo de verdade, que é um
conceito inteiramente dentro do campo da lógica de dois valores.
Em outras palavras, é como se pudéssemos identificar a
idéia intuitiva de aproximação da verdade com a de alto con­
teúdo de verdade, e baixo “conteúdo de falsidade”.
Isto é importante por duas razões: alivia as dúvidas que
alguns lógicos têm tido a respeito de operar com a idéia intui­
tiva de aproximação da verdade, e nos permite dizer que o
alvo da ciência é a verdade, no sentido de melhor aproximação
da verdade, ou maior verossimilitude.

10 — Verdade e Verossimilitude como Alvos

Dizer que o alvo da ciência é a verossimilitude tem consi­


derável vantagem sobre a formulação, talvez mais simples, de
que o alvo da ciência é a verdade. Esta última pode sugerir
que o alvo é completamente atingido quando se diz a verdade
indubitável de que todas as mesas são mesas, ou de que
62
1 + 1 = 2 . Obviamente, ambas essas asserções são verdadeiras;
e, também obviamente nenhuma delas pode ser tida como um
tipo de façanha científica.
Além disso, os cientistas visam a teorias como a teoria da
gravidade de Newton, ou a de Einstein; e embora estejamos alta­
mente interessados na questão da verdade dessas teorias, as
teorias conservam seu interesse ainda que tenhamos razão para
crer que sejam falsas. Newton nunca acreditou que sua teoria
fosse a última palavra realmente, e Einstein nunca acreditou
que sua teoria fosse mais do que uma boa aproximação da
teoria verdadeira — a teoria do campo unificado, a cuja busca
esteve desde 1916 até sua morte em 1955. Tudo isto indica
que a idéia de “procura da verdade” só é satisfatória se (a)
entendemos por “verdade” o conjunto de todas as proposições
verdadeiras — isto é, nosso inatingível conjunto alvo é T (a
classe das proposições verdadeiras de Tarski) — e se (b) que­
remos admitir, em nossa busca, asserções falsas como aproxi­
mações, desde que não sejam “demasiado falsas” ( “não tenham
um conteúdo de falsidade demasiado grande”) e encerrem um
grande conteúdo de verdade.
Deste modo, a procura da verossimilitude é um alvo mais
nítido e mais realista do que a procura da verdade. Mas pretendo
mostrar um pouco mais. Pretendo mostrar que, embora possa­
mos nunca ter argumentos suficientemente bons, nas ciências
empíricas, para alegar que alcançamos de fato a verdade, po­
demos ter argumentos fortes e razoavelmente bons para alegar
que é possível termos feito progresso no rumo da verdade; isto
é, que a teoria T é preferível à sua predecessora T , pelo menos
à luz de todos os argumentos racionais conhecidos.
Mais ainda, podemos explanar o método da ciência, e
muito da história da ciência, como o processo racional de chegar
mais perto da verdade. (Outra claríficação importante pode ser
conseguida com a ajuda da idéia de verossimilitude em conexão
com o problema da indução; ver especialmente a secção 32,
adiante.)

11 — Comentários sobre as Noções de Verdade e


Verossimilitude

Minha defesa da legitimidade da idéia de verossimilitude


tem sido às vezes grandemente mal entendida. A fim de evitar
essas incompreensões é aconselhável ter em mente minha opinião
de que não só todas as teorias são conjecturais, mas também o
são todas as avaliações de teorias, incluindo as comparações
de teorias do ponto de vista da sua verossimilitude.
É estranho que este ponto, que é de total importância para
minha teoria da ciência, haja sido mal entendido. Como tenho
acentuado muitas vezes, creio que todas as avaliações de teorias
são avaliações do estado de sua discussão crítica. Creio por­
tanto que a clareza é um valor intelectual visto como, sem ela,
a discussão crítica é impossível. Mas não creio que a exatidão
ou a precisão sejam valores intelectuais em si mesmas; pelo
contrário, nunca devemos tentar ser mais exatos ou precisos do
que o requerido pelo problema que nos defronta (e que é sempre
um problema de discriminar entre teorias concorrentes). Por
esta razão tenho frisado que não estou interessado em defini­
ções; como todas as definições devem usar termos indefinidos,
não importa, via de regra, que usemos um termo como um termo
primitivo ou como um termo definido.
Por que, então, tenho tentado mostrar que a verossimilitude
pode ser definida, ou reduzida a outros termos (conteúdo de
verdade, conteúdo de falsidade e, em última instância, proba­
bilidade lógica)?
Certas pessoas têm imaginado que meu alvo era algo como
a exatidão ou a precisão; ou mesmo a aplicabilidade: que eu
esperava encontrar uma função numérica que se pudesse aplicar
a teorias e que nos dissesse, em termos numéricos, qual a sua
verossimilitude (ou pelo menos seu conteúdo de verdade; ou
talvez seu grau de corroboração).
De fato, nada pode estar mais afastado de meus objetivos.
Não penso que graus de verossimilitude, ou uma medida de
conteúdo de verdade, ou de conteúdo de falsidade (ou, digamos,
grau de corroboração, ou mesmo de probabilidade lógica) jamais
possam ser determinados numericamente, exceto em certos casos
limitadores (como 0 e 1). E embora a introdução de uma função
de medida torne todos os conteúdos comparáveis em princípio,
ou em teoria, creio que na aplicação efetiva dependemos in­
teiramente daqueles raros casos que são comparáveis em terreno
não-métrico e, por assim dizer, qualitativo ou de lógica geral,
tais como os casos de teorias concorrentes logicamente mais
fortes e mais fracas; isto é, teorias que visam a resolver os
mesmos problemas. Pois a comparação efetiva depende inteira­
mente desses casos (paradoxalmente, poder-se-ia dizer, visto
como as funções de medida tais como as probabilidades tomam
seus argumentos em princípio geralmente comparáveis).
Qual então, poder-se-ia perguntar, é o sentido de minhas
tentativas para mostrar que a verossimilitude é definível em
64
0

termos de probabilidade lógica? Meu objetivo é conseguir (num


nível de precisão mais baixo) para a verossimilitude algo si­
milar ao que Tarski conseguiu para a verdade: a reabilitação
de uma noção de senso comum que se tornou suspeita mas que
a meu ver é muito necessária para qualquer realismo crítico
de senso comum e para qualquer teoria crítica da ciência. Gos­
taria de poder dizer que a ciência visa à verdade no sentido de
correspondência com os fatos ou com a realidade; e também
gostaria de dizer (com Einstein e outros cientistas) que a teoria
da relatividade é — ou assim conjecturamos — melhor apro­
ximação da verdade do que a teoria de Newton, tal como esta
última é melhor aproximação da verdade do que a teoria dê
Kepler. E gostaria de poder dizer estas coisas sem temer que o
conceito de proximidade da verdade ou verossimilitude seja logi­
camente mal concebido, ou “sem significação”. Em outras pa­
lavras, meu alvo é a reabilitação de uma idéia de senso comum
da qual preciso para descrever as metas da ciência e a qual,
assevero, alicerça como princípio regulador (mesmo que apenas
inconsciente e intuitivamente) a racionalidade de todas as dis­
cussões científicas críticas.
Tal como o vejo, o principal mérito da invenção, por Tarski,
de um método de definir a verdade (com respeito a linguagem
formalizadas de ordem finita) é a reabilitação da noção de ver­
dade ou correspondência com a realidade, noção que se tornara
suspeita. Definindo-a em termos de noções lógicas não suspeitas
(não semânticas) ele estabeleceu sua legitimidade. Tendo-o
feito, mostrou também que é possível introduzir, por via de
axiomas, uma noção de verdade materialmente equivalente com
respeito a linguagens formalizadas de ordem infinita, embora
neste caso não possa ser dada uma definição explícita. Em minha
opinião, ele reabilitou assim o uso crítico da noção indefinida de
verdade em linguagens comuns ou de senso comum não forma­
lizadas (que são de ordem infinita) bastando que as tornemos
levemente artificiais tomando o cuidado de evitar as anti­
nomias. Eu descrevería tal linguagem como de senso comum crí­
tico: lembro-me de como Tarski acentuou com grande força, em
1935, que para construir uma linguagem formalizada é inevitá­
vel o uso de uma linguagem natural, ainda que seu uso não crí­
tico leve a antinomias. Assim temos, por assim dizer, de refor­
mar a linguagem ordinária enquanto a usamos, como foi dito
por Neurath em seu metáfora do navio que temos de reconstruir
enquanto tentamos manter-nos a seu bordo. (2B) Esta é real­
mente a situação do senso comum crítico, tal como o vejo.

65
12 — A Errônea Teoria de Senso Comum do
Conhecimento

O senso comum, disse eu, é sempre nosso ponto de par­


tida, mas deve ser criticado. E, como se podería esperar, não
é muito bom quando vem a refletir-se sobre si mesmo. De fato,
a teoria de senso comum do conhecimento de senso comum é
uma trapalhada ingênua. Contudo, tem fornecido o alicerce
sobre o qual se erigem até mesmo as mais recentes teorias filo­
sóficas.
A teoria de senso comum é simples. Se você ou eu quiser­
mos conhecer alguma coisa ainda não conhecida a respeito do
mundo, temos de abrir os olhos e olhar em redor. E temos de
aguçar nossos ouvidos e ouvir ruídos, especialmente os feitos
por outras pessoas. Assim nossos vários sentidos são nossas
fontes de conhecimento — as fontes ou os acesso para nossas
mentes.
A esta teoria tenho dado muitas vezes o nome de teoria do
balde mental. A teoria do balde mental é melhor representada
por um diagrama:

Fig. 3 — O balde,

Nossa mente é um balde que primitivamente se acha vazio


ou mais ou menos assim, e nesse balde entra material através
de nossos sentidos (ou talvez por um funil para enchê-lo ou
atingi-lo por cima), e se acumula, e é digerido.
No mundo filosófico, esta teoria é melhor conhecida pelo
nome mais nobre de teoria da tabula rasa da mente: nossa mente
é uma lousa vazia na qual os sentidos gravam suas mensagens.
Mas o ponto principal da teoria de tabula rasa vai além da teoria
de senso comum do balde: refiro-me à sua ênfase sobre a per­
feita vacuidade da mente no nascimento. Para nossa discussão,
este é apenas um ponto menor de discrepância entre as duas
teorias, pois não importa que tenhamos ou não nascido com
algumas “idéias inatas” em nosso balde — mais talvez no caso

66
de crianças inteligentes, menos no caso de imbecis. A tese im­
portante da teoria do balde é que aprendemos a maior parte,
se não tudo, de quanto aprendemos por meio da entrada da
experiência pelas aberturas de nossos sentidos; de modo que
toda experiência consiste de informação recebida através de
nossos sentidos.
Nesta forma, essa teoria inteiramente errônea está ainda
muitíssimo viva. Ainda desempenha um papel em teorias de
ensino, ou na “teoria de informação”, por exemplo, embora se
admita agora que o balde não está vazio no nascimento, mas
vem dotado de um programa de computador.
Minha tese é que a teoria do balde é totalmente ingênua
e completamente errônea em todas as suas versões, e que
admissões inconscientes dela, em certa forma ou em outra, ainda
exercem devastadora influência especialmente sobre os chama­
dos behavioristas, sugerindo a ainda poderosa teoria do reflexo
condicionado e outras teorias que gozam da mais alta reputação.
Entre as muitas coisas erradas na teoria do balde mental
estão as seguintes:
( 1 ) O conhecimento é concebido como consistindo de
coisas, ou entidades semelhantes a coisas, em nosso balde (tais
como idéias, impressões, sensações, dados de sentidos, elementos,
experiência atômica, ou — talvez um pouquinho melhor —
experiências moleculares ou “Gestalten”) .
(2 ) O conhecimento está, antes de tudo, em nós: consiste
de informação que nos atingiu e que conseguimos absorver.
(3) Há conhecimento imediato ou direto, isto é, os ele­
mentos puros e não adulterados de informação que penetraram
em nós e ainda não estão digeridos. Nenhum conhecimento po­
dería ser mais elementar e certo do que este,
O ponto (3) pode ser elaborado da seguinte forma:
(3a) Todo erro, todo conhecimento errôneo, de acordo
com a teoria de senso comum, vem de má digestão intelectual,
que adultera esses elementos de informação finais ou “dados”
interpretando-os mal, ou ligando-os erradamente com outros ele­
mentos; as fontes de erro são nossas misturas subjetivas aos
puros ou dados elementos de informação, os quais, por sua vez,
não só são livres de erro mas são os padrões de toda verdade,
de modo que seria completamente sem propósito suscitar sequer
a questão de serem talvez errôneos.
(3b) Assim, o conhecimento, até onde é livre de erro, é
em essência um conhecimento recebido passivamente; ao passo
que o erro é sempre ativamente (embora não por força intcn-
67
cionalmente) produzido por nós, ou interferindo com “o dado”
ou talvez por algum outro mau tratamento: o cérebro perfeito
nunca erraria.
(3c) O conhecimento que vai além da pura recepção dos
elementos dados é sempre, portanto, menos certo do que o co­
nhecimento dado ou elementar, o qual de fato constitui o padrão
de certeza. Se duvido de alguma coisa, tenho só de abrir de novo
os olhos e observar com olhar franco, excluindo todos os pre­
conceitos. Tenho de purificar minha mente das fontes de erro.
(4) Não obstante, temos necessidade prática de conheci­
mento de nível um tanto mais alto: de conhecimento que vá
além dos meros dados ou dos meros elementos. Pois necessi­
tamos, especialmente, de conhecimento que estabeleça expecta­
tivas ligando dados existentes com elementos iminentes. Este
conhecimento mais elevado estabelece-se por meio de associação
de idéias ou de elementos.
(5) As idéias ou elementos se associam se ocorrem juntos.
E, mais importante, a associação é fortalecida pela repetição.
( 6) Deste modo estabelecemos expectativa (se a idéia a
é fortemente associada à idéia b, então a ocorrência de a des­
perta uma alta expectativa de b).
(7) Do mesmo modo, emergem crenças. A crença verda­
deira é a crença numa associação infalível. A crença errônea é
a crença numa associação entre idéias que, embora ocorressem
juntas, talvez nalgum tempo passado, não se repetem juntas infa­
livelmente.

Em suma: o que chamo teoria de senso comum do conheci­


mento é algo muito próximo do empirismo de Locke, Berkeley
e Hume e não muito distante do de numerosos positivistas e
empiristas modernos.

13 — Crítica da Teoria de Senso Comum do


Conhecimento

Quase tudo está errado na teoria de senso comum do co­


nhecimento. Mas talvez o erro central seja a suposição de estar­
mos empenhados no que Dewey chamou a procura da certeza.
É isto que leva à seleção de dados ou elementos, ou dados
de sentidos, ou impressões de sentidos, ou experiências ime­
diatas, como base segura de todo conhecimento. Mas, longe de
ser isto, esses dados ou elementos não existem em absoluto.

68
São inventos de filósofos esperançosos, que conseguiram legá-
los aos psicólogos.
Quais são os fatos? Quando crianças, aprendemos a deci­
frar as mensagens caóticas que nos chegam de nosso ambiente.
Aprendemos a peneirá-las, a ignorar a maioria delas, a sele­
cionar aquelas que são de importância biológica para nós, quer
desde já, quer num futuro para o qual estamos sendo prepa­
rados por um processo de amadurecimento.
Aprender a decifrar as mensagens que nos chegam é extre­
mamente complicado. É coisa que se baseia em disposições
inatas. Somos, conjecturo, inatamente dispostos a relacionar as
mensagens com um sistema parcialmente regular ou ordenado;
com a “realidade”. Em outras palavras, nosso conhecimento
subjetivo da realidade consiste em amadurecer disposições inatas.
(Isto, em minha opinião, incidentemente é uma construção por
demais sofisticada para poder ser usada como forte e indepen­
dente argumento em favor do realismo.) Seja como for, apren­
demos a decifrar por eliminação de experiências e erros, e em­
bora nos tornemos extremamente bons e rápidos nas experiên­
cias de decifrar mensagens como se fossem “imediatas” ou
“dadas”, há sempre alguns enganos, corrigidos por mecanismos
especiais de grande complexidade e de considerável eficiência.
Assim, toda a história dos “dados”, dos elementos verda­
deiros a que se junta a certeza, é uma teoria errônea, embora
faça parte do senso comum.
Acredito que experimentamos muito disto como se nos
fosse imediatamente dado e como se fosse perfeitamente certo.
Deve-se tal coisa a nosso complicado aparelhamento decifrador,
com suas muitas instrumentações inseridas, usando o que
Winston Churchill chamaria “localizações transversais”, siste­
mas que conseguem eliminar grande parte dos erros que come­
temos em decifração, de modo tal que, de fato, nos casos que
sentimos como imediatos, rarissimamente erramos. Nego, porém,
que essas experiências bem adaptadas possam ser identificadas
em qualquer sentido com padrões “dados” de fidedignidade ou
de verdade; à nossa incrível eficiência como sistemas biológicos
é que se devem casos tais, pois eles, em verdade, não estabele­
cem padrões de “imediatilidade” ou “certeza” nem mostram
que nunca podemos errar em nossas percepções imediatas. (Um
fotógrafo bem treinado raramente fará más focalizações. Isto
se deve a seu treinamento e não ao fato de que suas fotos
sejam tiradas como “dados” ou “padrões de verdade”, ou talvez
como “padrões de focalização correta”.)
Quase todos nós somos bons observadores e bons perce-
bedores. Mas este é um problema a ser explicado por teorias

69
biológicas e não para se tomar como base de qualquer dogma~
tismo de conhecimento direto, ou imediato, ou intuitivo. E,
afinal, nós todos falhamos às vezes; nunca devemos esquecer
nossa falibilidade.

14 — Crítica da Teoria Subjetivista do Conhecimento

Tudo isto, sem dúvida, não refuta o idealismo ou a teoria


subjetivista do conhecimento. Pois tudo o que eu disse a res­
peito da psicologia (ou da fisiologia) da percepção pode ter
sido meramente um sonho.
Há, contudo, um argumento muito bom contra as teorias
subjetivista e idealista, que ainda não usei. É o seguinte:
Muitos subjetivistas afirmam, com Berkeley, que suas teo­
rias concordam, em todos os sentidos práticos, com o realismo e
especialmente com as ciências; apenas, dizem, as ciências não
nos revelam padrões de verdade, nada mais sendo do que ins­
trumentos perfeitos de predição. Não pode haver padrões mais
altos de certeza (exceto a revelação feita por D eus).(28) Mas
então chega a fisiologia e prediz que nossos “dados” são falíveis,
em vez de padrões de verdade ou de certeza. Assim, se essa
forma de instrumentalismo subjetivo é verdadeira ela leva à
sua própria refutação. Portanto, não pode ser verdadeira.
Isto, sem dúvida, não refuta um idealista, que replicaria
que estamos apenas sonhando que refutamos o idealismo.
Posso mencionar talvez, de passagem, que um argumento
formalmente semelhante de Russell contra o “realismo ingênuo”,
argumento que impressionou grandemente a Einstein, é inacei­
tável. É o seguinte: “O observador, quando acha consigo estar
observando uma pedra, está realmente, se a física (a fisiologia)
deve ser crida, observando os efeitos da pedra sobre si mesmo.
Assim, a ciência parece estar em guerra consigo m esm a.. . O
idealismo ingênuo leva à física, e a física, se verdadeira, mostra
que o realismo ingênuo é falso. Portanto, o realismo ingênuo,
se verdadeiro, é falso. Portanto, é falso”. (27)
O argumento de Russell é inaceitável, porque o trecho que
grifei é errôneo. Quando o observador observa uma pedra, ele
não observa o efeito da pedra sobre si mesmo (embora possa
fazê-lo se estiver, digamos, contemplando um dedo machucado),
ainda que decifre alguns sinais que lhe cheguem vindos da pedra.
O argumento de Russell está no mesmo nível do seguinte: “O
leitor, quando acha consigo que está lendo Russell, está real­
mente observando os efeitos de Russell sobre si mesmo e, por­
tanto, não está lendo Russell”. A verdade é que ler (isto é,
decifrar) Russell baseia-se em parte em observações do texto
I
70
de Russell; mas aqui não há problema digno de análise; todos
sabemos que a leitura é um processo complexo em que fazemos
ao mesmo tempo vários tipos de coisas.
Não creio que valha a pena persistir nesses exercícios de
destreza; e repito que, enquanto não se oferecerem novos argu­
mentos, aceitarei ingenuamente o realismo.

15 — O Caráter Pré-Darwiniano da Teoria de Senso


Comum do Conhecimento

A teoria de senso comum do conhecimento está radical­


mente errada em todos os pontos. Seus erros fundamentais talvez
possam ser aclarados como se segue.
(1) Há conhecimento no sentido subjetivo, que consiste
de disposições e expectativas.
(2) Mas há também conhecimento no sentido objetivo, co­
nhecimento humano, que consiste de expectativas formuladas
lingüisticamente submetidas a discussão crítica.
(3) A teoria de senso comum deixa de ver que a diferença
entre ( 1 ) e ( 2 ) é de significação do mais longo alcance. O co­
nhecimento subjetivo não é sujeito à crítica, embora possa ser
alterado por vários meios — por exemplo, pela eliminação
(morte) do portador do conhecimento subjetivo, ou disposição,
em foco. Assim, o conhecimento no sentido subjetivo cresce ou
obtém melhores ajustamentos pelo método darwiniano de mu­
tação e eliminação do organismo. Em oposição a isto, o conhe­
cimento objetivo pode alterar-se e crescer pela eliminação
(morte) da conjectura lingüisticamente formulada: o “porta­
dor” pode sobreviver — , pode até, se for uma pessoa autocrí­
tica, eliminar sua própria conjectura.
A diferença está em que as teorias formuladas lingüística-
mente podem ser discutidas criticamente.
(4) Além deste erro importantíssimo, a teoria de senso
comum está errada em diferentes pontos. É, essencialmente, uma
teoria da gênese do conhecimento: a teoria do balde é uma
teoria de nossa aquisição de conhecimento — de nossa aquisi­
ção de conhecimento amplamente passiva — e assim é também
uma teoria do que chamo crescimento do conhecimento. Mas
como teoria do crescimento do conhecimento é extremamente
falsa.
(5) A teoria de tabula rasa é pré-darwiniana: para qual­
quer pessoa que tenha algum senso de biologia deve ser claro

71
que muitas de nossas disposições são inatas, ou no sentido de
que nascemos com elas (por exemplo, as disposições para res­
pirar, engulir, etc.) ou no sentido de que, no processo de amadu­
recimento, o desenvolvimento da disposição é elidido pelo am­
biente (por exemplo a disposição para aprender uma língua).
(6) Mas mesmo que esqueçamos tudo a respeito de teorias
de tabula rasa(2S) e admitamos que o balde, no nascimento,
está cheio pela metade, ou que muda sua estrutura com o pro­
cesso de amadurecimento, ainda assim a teoria é muito enga­
nadora. E isto não só porque todo conhecimento subjetivo é
disposicional, mas principalmente porque não é uma disposição
do tipo associativo (ou do tipo de reflexo condicionado). Para
firmar minha posição clara e radicalmente: não há essa coisa de
associação ou reflexo condicionado. Todos os reflexos são não-
-condicionados; os reflexos supostamente “condicionados” são
os resultados de modificações que eliminam parcial ou total­
mente os começos falsos, isto é, os erros no processo de expe­
riência e erros.

16 — Esboço de uma Epistemologia Evolucionária

Até onde sei, a expressão “epistemologia evolucionária” é


devida a meu amigo Donald T. Campbell. A idéia é pós-darwi-
niana e remonta ao fim do século dezenove — a pensadores
como J. M. Baldwin, C. Lloyd Morgan e H. S. Jennings.
Minha própria abordagem tem sido um tanto independente
da maioria dessas influências, embora eu lesse com grande inte­
resse não só Darwin, sem dúvida, mas também Lloyd Morgan
e Jennings durante os anos que precederam a redação de meu
primeiro livro. Contudo, como muitos outros filósofos, acentuei
grandemente a distinção entre dois problemas de conhecimento:
sua gênese ou história de um lado e, do outro, os problemas
de sua verdade, validez e “justificação”. (Assim, por exemplo,
acentuei no Congresso de 1934 em Praga: “As teorias científicas
nunca podem ser “justificadas” ou verificadas. Mas, apesar
disto uma hipótese A pode, sob certas circunstâncias, alcançar
mais do que uma hipótese B. . ,” (29)) Acentuei mesmo bem
antes que as questões de verdade ou de validez, não excluindo
a justificação lógica da preferência por uma teoria sobre outra
(a única espécie de “justificação” que creio possível), devem
ser nitidamente distinguidas de todas as questões genéticas, his­
tóricas e psicológicas.
Contudo, já quando escrevia meu livro Logik der Fors-
chung, cheguei à conclusão de que nós, epistemologistas,- pode-
72
*

mos reivindicar precedência sobre os geneticistas: investigações


lógicas de questões de validez e de aproximação da verdade
podem ser da maior importância para investigações genéticas e
históricas, ou mesmo psicológicas. São, em qualquer caso, logi­
camente anteriores a este último tipo de questão, ainda que in­
vestigações na história do conhecimento possam propor muitos
problemas importantes ao lógico da descoberta científica. (30)
Assim falo aqui de epistemologia evolucionária, embora
sustente que as idéias condutoras da epistemologia são lógicas
em vez de factuais; apesar disto, todos os seus exemplos, e
muitos de seus problemas, podem ser sugeridos por estudos da
gênese do conhecimento.
Esta atitude é de fato precisamente o oposto daquela da
teoria de senso comum e da epistemologia clássica de, digamos,
Descartes, Locke, Berkeley, Hume e Reid; para Descartes e
Berkeley, a verdade é garantida pela origem das idéias, que
em última instância é supervisionada por Deus. Traços da opi­
nião de que a ignorância e pecado são encontráveis não só em
Locke e Berkeley, mas mesmo em Hume e Reid. Pois, aí, é a
linha direta ou o imediato de nossas idéias, ou impressões, ou
percepções que é seu selo divino de verdade e que oferece a
melhor segurança para o crente, ao passo que a meu ver enca­
ramos às vezes teorias como verdadeiras, ou até “imediata­
mente” verdadeiras, porque são verdadeiras e nosso equipamento
mental é bem adaptado a seu nível de dificuldade. Mas nunca
estamos “justificados” ou “capacitados” a alegar a verdade de
uma teoria ou de uma crença em razão do que se alega como
imediato ou direto na crença. Isto, creio eu, é colocar o carro
adiante dos bois: o imediato ou o direto podem ser o resultado
do fato biológico de que uma teoria é verdadeira e também (em
parte por este motivo) muito útil para nós. Mas argumentar que
o imediato ou o direto estabeleçam verdade, ou sejam critério
de verdade, é o erro fundamental do idealismo.(31)
Partindo do realismo científico é bem claro que, se nossas
ações e reações fossem mal ajustadas a nosso meio ambiente,
não sobreviveriamos. Sendo a “crença” estreitamente ligada à
expectativa e à presteza em agir, podemos dizer que muitas de
nossas crenças mais práticas são provavelmente verdadeiras, en­
quanto sobrevivermos. Tornam-se elas a parte mais dogmática
do senso comum, que, embora não seja de modo algum fide­
digno, verdadeiro, ou certo, é sempre um bom ponto de partida.
Contudo, também sabemos que alguns dos animais de maior
sucesso desapareceram e que o êxito passado está longe de asse­
gurar o êxito futuro. Isto é um fato; e, claramente, embora pos­
samos fazer algo a tal respeito não podemos fazer muita coisa.
73
Menciono este ponto a fim de tornar inteiramente claro que o
êxito biológico passado nunca assegura o êxito biológico futuro.
Assim, para o biólogo, o fato de que teorias tiveram sucesso no
passado não traz qualquer garantia de sucesso no futuro.
Qual é a situação? Uma teoria refutada no passado pode
ser conservada como útil apesar de sua refutação. Assim pode­
mos usar as leis de Kepler para muitos fins. Mas uma teoria
refutada no passado será inverídica. E não procuramos êxito
biológico ou instrumental. Em ciência, procuramos a verdade.
Problema central da teoria evolucionária é o seguinte: de
acordo com esta teoria, os animais que não estão bem adaptados
a seu ambiente em mutação perecem; conseqüentemente, os que
sobrevivem (até um certo momento) devem estar bem adapta­
dos. Esta fórmula quase chega a tautológica, porque “bem
adaptada para o momento” significa bastante o mesmo que “tem
aquelas qualidades que o fizeram sobreviver até então”. Em
outras palavras, considerável parte do darwinismo não é da na­
tureza de uma teoria empírica, mas é um truísmo lógico.
Tornemos claro o que é empírico do darwinismo e o que
não é. A existência de um ambiente com certa estrutura é em­
pírica. O fato de que esse ambiente se altera, mas não com
demasiada rapidez por longos períodos de tempo e não radical­
mente demais, é empírico; se fosse demasiado radical, o sol po­
dería explodir numa nova amanhã e toda a vida na terra, e toda
adaptação, chegariam a um fim. Em suma, não há coisa alguma
em lógica que explique a existência de condições no mundo sob
as quais a vida e a adaptação lenta (seja o que for que “lenta”
possa significar aqui) ao ambiente se tomam possíveis.
Mas considerando organismos vivos sensíveis a mudanças
ambientais e a condições em mutação e admitindo que não há
harmonia preestabelecida entre as propriedades dos organismos
e as do ambiente em mutação,(32) podemos dizer algo como o
seguinte. Só se os organismos produzirem mutações, algumas das
quais sejam ajustamentos a mudanças iminentes e assim envol­
vam mutabilidade, poderão eles sobreviver; e deste modo vere­
mos, enquanto virmos organismos vivos num mundo mutável,
que aqueles que acontece estarem vivos estão muito bem ajus­
tados a seu ambiente. Se o processo de ajustamento foi bastante
longe, então a velocidade, a finura e a complexidade do ajusta­
mento podem impressionar-nos como miraculosas. E todavia
pode-se dizer que o método de experiências e da eliminação de
erros que leva a tudo isto não é um método empírico, mas per­
tence à lógica da situação. Isto, penso, explica (talvez um tanto
sucintamente demais) os componentes lógicos ou a priori do
darwinismo.

74
»

O tremendo avanço biológico da invenção de uma lingua­


gem descritiva e argumentativa(33) pode ser visto agora mais
precisamente do que antes: a formulação linguística de teorias
permite-nos criticá-las e eliminá-las sem eliminar a raça que as
carrega. Este é o primeiro êxito. O segundo êxito é o desenvol­
vimento de uma atitude consciente e sistemática de crítica com
relação a nossas teorias. Aí começa o método da ciência. A
diferença entre a ameba e Einstein é que, embora ambos façam
uso do método de experiências e eliminação de erros, a ameba
detesta errar, ao passo que Einstein é acicatado por isto: cons­
cientemente procura seus erros na esperança de aprender com
sua descoberta e eliminação. O método da ciência é o método
crítico.
Assim, a epistemologia evolucionária nos permite com­
preender melhor a evolução e a epistemologia, até onde coinci­
dem com o método científico. Permite-nos compreender melhor
estas coisas em bases lógicas.

17 — Conhecimento de Base e Problemas

A meta da ciência é o aumento da verossimilitude. Como


tenho argumentado a teoria de tabula rasa é absurda: em cada
etapa da evolução da vida e do desenvolvimento de um orga­
nismo temos de admitir a existência de algum conhecimento em
forma de disposições e expectativas.
Concordantemente, o crescimento de todo conhecimento
consiste na modificação de conhecimento prévio — ou sua alte­
ração, ou sua rejeição em ampla escala. O conhecimento nunca
começa do nada, mas sempre de algum conhecimento de base —
conhecimento que no momento é tido como certo — juntamente
com algumas dificuldades, alguns problemas. Estes, via de regra,
surgem do choque entre, de um lado, expectativas inerentes a
nosso conhecimento de base e, do outro lado, algumas novas
descobertas, tais como nossas observações ou alguma hipótese
sugeridas por elas.

18 — Todo Conhecimento é Impregnado de Teoria,


Inclusive Nossas Observações

O conhecimento em suas várias formas subjetivas é dispo-


sicional e expectacional. Consiste de disposições de organismos
e essas disposições são o aspecto mais importante da organi­
zação de um organismo. Um tipo de organismo só pode viver
75
hoje dentro d’água, outro só na terra; como sobreviveram até
agora, sua própria ecologia determina parte de seu “conheci­
mento”. Se não fosse absurdo fazer qualquer estimativa, eu diria
que, de mil unidades do conhecimento de um organismo, 999
são herdadas ou inatas e a única unidade restante só consiste
das modificações desse conhecimento inato; e sugiro, ainda, que
a plasticidade necessária para essas modificações é também
inata.
Disto decorre o teorema fundamental:
Todo conhecimento adquirido, todo aprendizado, consiste
da modificação (possivelmente da rejeição) de alguma forma de
conhecimento, ou disposição, que existia previamente, e em últi­
ma instância de disposições inatos.(s'>)

Ao mesmo tempo, decorre daí segundo teorema:


Todo crescimento de conhecimento consiste no aprimora­
mento do conhecimento existente, que é mudado com a espe­
rança de chegar mais perto da verdade.

Por serem todas as nossas disposições, em certo sentido,


ajustamentos a condições ambientais que não variam, ou se al­
teram lentamente, elas podem ser descritas como impregnadas
de teoria, adotando-se um sentido suficientemente amplo da pa­
lavra “teoria”. O que tenho em mente é que não há observação
que não se relacione com um conjunto de situações típicas —
regularidades — entre as quais ela tenta encontrar uma decisão.
E penso podermos asseverar ainda mais: não há órgão de sen­
tido em que não se achem incorporados geneticamente teorias
antecipadoras. O olho de um gato reage de modos distintos a
diversas situações típicas para as quais há mecanismos prepa­
rados e embutidos em sua estrutura: correspondem estes às si­
tuações biologicamente mais importantes entre as quais ele tem
de distinguir. Assim, a disposição para distinguir entre essas
situações é embutida no órgão do sentido e, com ela, a teoria
de que essas, e somente essas, são as situações relevantes para
cuja distinção o olho deve ser usado. (35)
O fato de que todos os nossos sentidos são, desse modo,
impregnados de teoria mostra muito claramente a falência radi­
cal da teoria do balde e, com esta, de todas as outras teorias que
tentam rastrear a origem de nosso conhecimento em nossas ob­
servações, ou no abastecimento (input) do organismo. Ao con­
trário, o que pode ser absorvido (e encontrar reação) como abas­
tecimento relevante e o que é ignorado como irrelevante depen­
dem completamente da estrutura inata (a “programação”) do
organismo.
76
*

19 — Retrospecto sobre a Epistemologia Subjetivista

Do ponto de vista aqui alcançado, devemos rejeitar como


completamente sem base qualquer epistemologia subjetivista que
proponha escolher como ponto de partida o que lhe parece total­
mente não-problemático; isto é, nossas experiências observacio-
nais “diretas” ou “imediatas”. Admite-se que essas experiências,
em geral, são perfeitamente “boas” e de sucesso (do contrário
não teriam sobrevivido); mas não são “diretas” nem “ime­
diatas”, e absolutamente não são fidedignas.
Parece não haver razão para que não devamos fazer de
experiências observacionais nosso “ponto de partida” provisó­
rio — um ponto de partida como o senso comum, que não en­
volva compromisso com a verdade ou a certeza. Enquanto esti­
vermos inclinados criticamente, não importa muito onde ou
como começamos. Mas, partindo daí (o que pode ser talvez
aquilo que Russell chama “realismo ingênuo” ), chegamos, atra­
vés da física e da biologia, ao resultado de que nossas observa­
ções são altamente complexas e nem sempre fidedignas ainda
que sejam decifrações admiravelmente excelentes dos sinais que
nos chegam do ambiente. Não devem portanto, ser elevadas a
um ponto de partida no sentido de um padrão de verdade.
Assim, o que parecia uma epistemologia subjetivista livre
de pressuposição, ou teoria de tabula rasa, desintegra-se comple­
tamente. Em seu lugar temos de erigir uma teoria de conheci­
mento na qual o sujeito conhecedor, o observador, desempenha
papel importante, mas só muito restrito.

20 — Conhecimento no Sentido Objetivo

A teoria de senso comum do conhecimento, e com ela


todos os filósofos até pelo menos Bolzano e Frege, admitiu como
certo, erroneamente, que só havia uma espécie de conheci­
mento — o conhecimento possuído por algum sujeito conhe­
cedor.
A esse tipo de conhecimento chamarei “conhecimento sub­
jetivo” apesar do fato de que simplesmente não existe conheci­
mento subjetivo puro, ou genuíno, ou não adulterado.
A teoria do conhecimento subjetivo é muito antiga; más
torna-se explícita com Descartes: “conhecer” é uma atividade e
pressupõe a existência de um sujeito conhecedor. Ê o ser subje­
tivo quem conhece.
Ora, quero distinguir entre duas espécies de “conheci­
mento” : conhecimento subjetivo (que se poderia chamar melhor

77
conhecimento organísmico, pois consiste das disposições de or­
ganismos), e conhecimento objetivo, ou conhecimento no sen­
tido objetivo, que consiste do conteúdo lógico -de nossas teorias,
conjecturas, suposições (e, se preferirmos, do conteúdo lógico
de nosso código genético).
Exemplos de conhecimento objetivo são teorias publicadas
em revistas e livros e conservadas em bibliotecas; discussões
dessas teorias; dificuldades ou problemas apontados em conexão
com essas teorias;(36) etc.
Podemos dar ao mundo físico o nome de “mundo 1” ; ao
mundo de nossas experiências conscientes o de “mundo 2”; e
ao mundo dos conteúdos lógicos de livros, bibliotecas, memórias
de computador e similares o de “mundo 3” .
A respeito deste mundo 3 tenho várias teses:
(1) Podemos descobrir no mundo 3 problemas novos que
lá estavam antes de ser descobertos e antes mesmo de se torna­
rem conscientes; isto é, antes que qualquer coisa correspondente
a eles aparecesse no mundo 2. Exemplo: descobrimos os números
primos e surge como consequência o problema de Euclides de
saber se a seqüência dos números primos é infinita.
(2) Assim, há um sentido em que o mundo 3 é autônomo:
neste mundo podemos fazer descobertas teóricas de modo seme­
lhante àquele por que fazemos descobertas geográficas no
mundo 1 .
(3) Tese principal: quase todo o nosso conhecimento sub­
jetivo (conhecimento do mundo 2) depende do mundo 3, isto
é, de teorias formuladas lingüisticamente (pelo menos virtual­
mente). Exemplo: nossa “autoconsciência imediata”, ou o “co­
nhecimento de si mesmo”, que é muito importante, depende
muito amplamente de teorias do mundo 3: de nossas teorias a
respeito do nosso corpo e de sua existência continuada quando
dormimos ou ficamos inconsciente; de nossas teorias a respeito
do tempo (sua linearidade); de nossa teoria de podermos captar
nossa lembrança de experiências passadas com vários graus de
clareza; e assim por diante. Com essas teorias estão ligadas
nossas expectativas de acordar depois de dormir. Proponho a
tese de que a piena consciência de si mesmo depende de todas
essas teorias (mundo 3) e de que os animais, embora capazes
de sentimentos, sensações, memória e, portanto, de consciência,
não possuem a plena consciência do próprio ser, que é um
dos resultados da linguagem humana, e o desenvolvimento do
mundo 3, especificamente humano.
78
21 — A Procura da Certeza e a Principal Fraqueza da Teoria
de Senso Comum do Conhecimento

A teoria de senso comum do conhecimento não se dá conta


do mundo 3 e assim ignora a existência de conhecimento no
sentido objetivo. Esta é uma grande fraqueza da teoria, mas
não é sua fraqueza maior.
A fim de explicar o que considero como a maior fraqueza
da teoria de senso comum do conhecimento, formularei pri­
meiro duas asserções, (a) e (b), que são características dessa
teoria de conhecimento.
(a) O conhecimento é um tipo especial de crença ou de
opinião; é um estado especial da mente.
(b) A fim de que um tipo de crença, ou um estado da
mente, chegue a mais do que “mera” crença e seja capaz de sus­
tentar a alegação de que importa num item de conhecimento,
requer-se que o crente esteja de posse de razões suficientes para
estabelecer que o item de conhecimento é verdadeiro com
ceríetfl.
Dessas duas formulações, (a) pode ser facilmente reformu­
lada de modo a tornar-se parte — pequena parte — de uma
teoria biológica de conhecimento aceitável; pois podemos dizer:
(a’) O conhecimento subjetivo é um tipo de disposição da
qual o organismo às vezes pode tornar-se consciente na forma
de uma crença, ou uma opinião, ou um estado da mente.
Esta é uma asserção perfeitamente aceitável e pode-se ale­
gar que ela simplesmente diz com exatidão maior o que (a)
pretendia dizer. Além disso (a’) é perfeitamente compatível com
uma teoria do conhecimento que dá pleno peso ao conhecimento
objetivo; isto é, ao conhecimento como parte do mundo 3.
A posição de (b) é totalmente diferente. Tão logo levemos
em conta o conhecimento objetivo, podemos dizer que, no
melhor, apenas parte pequenina de (b) pode receber algo
como razões suficientes de certa verdade: é aquela pequena
parte (se alguma houver) que pode ser descrita como conhe­
cimento demonstrável e que compreende (se algo compreende)
as proposições de lógica formal e de aritmética (finita).
Tudo mais — e é de longe a parte mais importante do co­
nhecimento objetivo e a parte que compreende as ciências natu­
rais, como a física e a fisiologia — é essencialmente conjectural
e hipotético em seu caráter; simplesmente não há razões sufi­
cientes para sustentar que essas hipóteses são verdadeiras, e
muito menos certamente verdadeiras.
Assim, (b) indica que, se fôssemos generalizar assim a
teoria de senso comum do conhecimento, de modo a cobrir o
79
conhecimento objetivo, então só o conhecimento demonstrável
(se tal houver) poderia ser admitido como conhecimento obje­
tivo. Todo o vasto e importante campo das teorias que podemos
descrever como “conhecimento científico”, em face de seu
caráter conjectural, não se qualificaria em absoluto como conhe­
cimento. Pois, de acordo com a teoria de senso comum do co­
nhecimento, o conhecimento é crença qualificada — crença tão
qualificada que é certamente verdadeira. E é precisamente esse
tipo de qualificação que falta no vasto e importante campo do
conhecimento conjectural.
De fato, pode-se alegar que a expressão “conhecimento
conjectural” é uma contradição em termos, se a questão for
assim abordada do lado da teoria de senso comum. Pois a teoria
de senso comum não é muito completa em seu subjetivismo;
ao contrário, a idéia de “razão suficiente” foi originariamente,
sem dúvida, uma idéia objetivista: originariamente requeriam-se
razões suficientes para provar ou demonstrar o item em questão,
de modó a realmente tornar-se (b) uma extensão da idéia obje­
tivista dé conhecimento demonstrável no mundo 2, o mundo da
disposição ou “crença”. Em consequência, toda generalização
adequada ou tradução objetivista (b’) em linhas análogas a (a’)
teria de limitar o conhecimento objetivo ao conhecimento de­
monstrável e, assim, teria de abandonar o conhecimento con­
jectural. Com isto, porém, teria de abandonar o conhecimento
científico, o tipo mais importante e o problema central de qual­
quer teoria do conhecimento.
Isto indica, julgo, a maior fraqueza da teoria de senso
comum do conhecimento. Não só ela ignora a distinção entre
conhecimento objetivo e subjetivo, como ainda aceita, consciente
ou inconscientemente, o conhecimento objetivo demonstrável
como o paradigma de todo conhecimento, pois só realmente aí
é que temos, no todo, “razões suficientes” para distinguir “o
conhecimento verdadeiro e certo” da “mera opinião” ou da
“mera crença”.(8T)
Contudo, a teoria de senso comum do conhecimento per­
manece essencialmente subjetivista. Assim, cai na dificuldade
de admitir algo como razões suficientes subjetivas; isto é, tipos
de experiência pessoal, ou crença, ou opinião, que, embora
subjetivos, são certa e infalivelmente verdadeiros, podendo, por­
tanto, passar como conhecimento.
A dificuldade é grande, pois como podemos distinguir no
reino das crenças? Quais são os critérios pelos quais podemos
reconhecer a verdade ou uma razão suficiente? Ou pela força
da crença (Hume), que racionalmente é difícil defender, ou
por sua clareza e nitidez, que é defendida (por Descartes) como

80
*

indicação de sua origem divina; ou, mais diretamente por sua


origem ou gênese, isto é, pelas “fontes” de conhecimento. Deste
modo, a teoria de senso comum do conhecimento é levada a
aceitar algum critério do conhecimento “dado” (revelado?);
dado pelos sentidos, ou dado dos sentidos; ou a um sentimento
do imediato, ou ao direto, ou à intuitividade. É a pureza da
origem que garante a liberdade contra o erro e, assim, a pureza
do conteúdo. (38)
Mas todos esses critérios são claramente espúrios. O bió­
logo admitirá que nossos órgãos dos sentidos tenham êxito na
maioria das vezes e pode mesmo explicar sua eficiência com
argumentos darwinianos. Mas negará que eles tenham êxito
sempre e necessariamente e que possam merecer confiança como
critérios de verdade. O que têm de “direito” ou “imediato” é
apenas aparente: é apenas outro aspecto da facilidade e efi­
ciência miraculosas com que funcionam; mas de fato eles fun­
cionam de modo altamente indireto, usando muitos mecanismos
complicados de controle inseridos no sistema.
Nada há, assim, que se assemelhe à certeza absoluta em
todo o campo de nosso conhecimento. Mas a doutrina (b) iden­
tifica a procura do conhecimento com a procura da certeza.
Esta é outra razão para que (b) seja a parte mais fraca da
teoria de senso comum do conhecimento.
O que temos de fazer é partir do fato de que o conheci­
mento científico objetivo é conjectural, para então procurar o
que lhe é análogo no campo do conhecimento subjetivo. Este
análogo pode ser facilmente identificado. Minha tese é que o
conhecimento subjetivo faz parte de um aparelho de ajusta­
mento altamente complexo e complicado mas (num organismo
sadio) espantosamente acurado, e que funciona, no principal,
como conhecimento conjectural objetivo: pelo método de expe­
riências e eliminação de erros, ou por conjectura, refutação e
correção própria (“autocorreção”).
O senso comum, parece, faz parte deste aparelho e sua
posição não é extremamente diferente da de outro conhecimento
aparente “direto” ou “imediato”. (Aqui Thomas Reid estava
certo, embora superestimasse grandemente a força do argu­
mento derivado do direto ou imediato.)

22 — Observações Analíticas sobre a Certeza

Não tenho o mínimo interesse por definições ou pela aná­


lise lingüística de palavras ou conceitos. Mas, em conexão com
a palavra “certeza”, tanta ooisa de tão pouco valor tem sido
dita que algo devemos dizer aqui em prol da clareza.

81
Há uma noção de senso comum da certeza que significa,
em resumo, “bastante certo para fins práticos”. Quando olho
meu relógio, que é muito merecedor de confiança, e ele me
mostra que são oito horas, e lhe posso ouvir o tiquetaque (indi­
cação de que o relógio não parou), então estou “razoavelmente
certo”, ou “certo para todos os fins práticos”, de que é bem
perto de oito horas. Quando compro um livro e recebo do ven­
dedor duas moedinhas de troco, então estou “completamente
certo” de que as duas moedinhas não são falsas. (Minhas
“razões” para isto são muito complexas: relacionam-se com a
inflação, que tornou desvalioso para os falsificadores forjarem
moedinhas, até mesmo se as moedas em questão pudessem ser
peças antigas dos bons tempos de outrora em que era lucrativo
falsificar florins.)
Se alguém me perguntasse “Você está certo de que a moeda
em sua mão é uma moeda de dez centavos?”, eu talvez olhasse
para ela de novo e respondesse “Sim”. Mas se muita coisa de­
pendesse da verdade de meu julgamento acho que tomaria o
trabalho de ir ao banco mais próximo e pedir ao caixa para exa­
minar bem a moeda; e se dela dependesse a vida de um homem,
eu tentaria mesmo chegar ao Tesoureiro Chefe do Banco para
pedir-lhe que atestasse a legitimidade da moeda.
Que quero dizer com isto? Que a “certeza” de uma crença
não é tanto questão de sua intensidade, mas da situação: de
nossa expectativa das consequências possíveis. Tudo depende da
importância que se der à verdade ou à falsidade da crença.
A “crença” está ligada à nossa vida prática de cada dia.
Agimos segundo nossas crenças. (Um behaviorista poderia dizer:
uma “crença” é uma coisa com a qual agimos.) Por esta razão,
basta, na maioria dos casos, certo grau bem baixo de certeza.
Mas se muita coisa depender de nossa crença, então não só a
intensidade da crença se altera, mas toda a suá função biológica.
Existe uma teoria subjetivista de probabilidade que admite
podermos medir o grau de nossa crença numa proposição pelos
riscos que estivermos dispostos a aceitar numa aposta. (39)
Esta teoria é incrivelmente ingênua. Se eu gosto de apostar
e se as paradas não forem altas, posso aceitar quaisquer riscos.
Se as paradas forem muito altas, posso não aceitar aposta al­
guma. Se não puder evitar a aposta, digamos, por estar em jogo
a vida de meu melhor amigo, posso sentir necessidade de estar
seguro da proposição mais trivial.
Com as mãos nos bolsos, estou completamente “certo” de
que tenho cinco dedos em cada mão; mas se a vida de meu
melhor amigo dependesse da verdade desta proposição, eu po­
deria (e penso que o faria) tirar as mãos dos bolsos para ficar

82
t*

“duplamente” seguro de que não havia perdido um ou outro


de meus dedos miraculosamente.
Qual é a conclusão de tudo isto? É que a “certeza absoluta”
é uma idéia limitadora e que a “certeza” experimentada ou
subjetiva não depende meramente de graus de crença e de evi­
dência, mas também da situação — da importância do que está
em jogo. Além disso, a evidência em favor até mesmo de uma
proposição que sei ser trivialmente verdadeira pode ser revista
radicalmente se o que estiver em jogo for de suficiente impor­
tância. Isto mostra que não é impossível melhorar mesmo a
mais certa das certezas. A “certeza” não é uma medida de
crença — num sentido direto. Antes, é uma medida de crença
relativa a uma situação instável, pois a urgência geral da situa­
ção em que estou agindo tem muitos aspectos e posso mudar
de um para outro. Assim, a plena certeza não tem O’ caráter de
um máximo ou um limite. Pode haver sempre uma certeza que
seja ainda mais segura.
Com exclusão de provas válidas e simples no mundo 3, a
certeza objetiva simplesmente não existe. E a certeza do mundo
2 é sempre apenas a sombra de uma experiência a sombra da
força de uma crença, dependendo não só da “evidência” mas
de muitas outras coisas, como a seriedade da situação do pro­
blema no qual estamos agindo (ou talvez meramente dos
“nervos” ).
É importante observar a tal respeito que há muitas situa­
ções nas quais a recusa a agir importa numa ação: na vida
comum temos de agir todo o tempo e temos de fazê-lo sempre
com base em certeza imperfeita (pois dificilmente haverá uma
certeza perfeita). Via de regra, a evidência com que estamos
agindo é aceita após a investigação mais superficial: e a dis­
cussão crítica de teorias concorrentes que é característica da
boa ciência vai {via de regra) bem além do tipo de coisa com
que nos satisfazemos perfeitamente na vida prática.
(A ciência — que é essencialmente crítica — é também
mais conjectural e menos certa de si mesma do que a vida
comum, porque elevamos conscientemente ao nível de um pro­
blema algo que normalmente pode ter feito parte de nosso co­
nhecimento de base.)
Mas isto não quer dizer que alcancemos sempre o estágio
em que um engenhoso pensador científico possa deixar de des­
cobrir brechas em nossos argumentos: possibilidades em que
ninguém pensara até então e que, portanto, ninguém tentara
incluir ou excluir.
Do ponto de vista do conhecimento objetivo, todas as
teorias, por conseguinte, permanecem conjecturais. Do ponto de
vista da vida prática, elas podem ser muito melhor discutidas,

83
criticadas e testadas do que qualquer coisa sobre a qual este­
jamos acostumados a agir e a encarar como certa.
Não há choque entre a tese de que todo conhecimento
objetivo é objetivamente conjectural e o fato de aceitarmos
muito dele não só como “praticamente certo” mas como certo
num sentido de qualificação extraordinariamente alta; isto é,
como muito melhor testado do que muitas teorias às quais cons­
tantemente confiamos nossas vidas (como a de que o soalho
não ruirá ou a de que não iremos ser picados por uma cobra
venenosa).
As teorias são verdadeiras ou falsas e não meramente ins­
trumentos. Mas sem dúvida são também instrumentos, para a
ciência prática ou aplicada assim como para mim e para nós
pessoalmente, quando desejamos formar opinião a respeito de
uma teoria, à luz do relato de sua discussão crítica, incluindo os
testes relatados. Se recebemos relatos dos resultados desses
testes e se repetirmos nós mesmos, talvez, um ou dois desses
testes, poderemos então usar esses relatos e resultados para
formar nossas próprias convicções subjetivas e para determinar
o grau de certeza com que mantemos nossas crenças pessoais.
(Este é um modo pelo qual poderia ser explicado o funciona­
mento do princípio de transferência: (40) usamos conhecimento
objetivo na formação de nossas crenças subjetivas pessoais; e
embora as crenças subjetivas pessoais sempre possam ser des­
critas como “irracionais” em certo sentido, este uso do conhe­
cimento objetivo mostra que não é necessário haver aqui qual­
quer conflito Humeano com a racionalidade.)

23 — O Método da Ciência

Tantas vezes tenho descrito o que considero como o método


de autocorreção por meio do qual a ciência procede que posso
ser aqui muito sucinto: o método da ciência é o método de con­
jecturas ousadas e de tentativas engenhosas e severas para re­
futá-las.
Conjectura ousada é uma teoria com um grande conteúdo
— maior, de qualquer forma, que a teoria que, esperamos, será
superada por ela.
Deverem ser ousadas nossas conjecturas é decorrência ime­
diata do que tenho dito a respeito do alvo da ciência e da
aproximação da verdade: a ousadia, ou grande conteúdo, liga-se
a grande conteúdo da verdade; por isto o conteúdo de falsidade
pode ser ignorado a princípio.

84
0

Mas um aumento no conteúdo de verdade não é, em si


mesmo, suficiente para garantir um aumento de verossimilitude;
como o acréscimo no conteúdo é uma questão puramente lógica,
e como o acréscimo no conteúdo de verdade marcha com o
acréscimo de conteúdo, o único campo deixado ao debate cien­
tífico — e especialmente a testes empíricos — é haver também
aumentado, ou não, o conteúdo de falsidade. Esta nossa pro­
cura competitiva da verossimilitude transforma-se, especial­
mente do ponto de vista empírico, numa comparação competi­
tiva de conteúdos de falsidade (fato que certas pessoas encaram
como paradoxo). Parece que também em ciência é certo (como
certa vez disse Winston Churchill) que as guerras nunca são
ganhas, mas sempre perdidas.
Nunca podemos tornar absolutamente certo que nossa
teoria não está perdida. Tudo quanto podemos fazer é procurar
o conteúdo de falsidade de nossa melhor teoria. Fazemo-lo ten­
tando refutar nossa teoria, isto é, tentando testá-la severamente
à luz de nosso conhecimento objetivo e de nosso engenho.
Sempre é possível, sem dúvida, que a teoria possa ser falsa,
mesmo que passe por todos os testes; isto é, uma concessão
devida a nossa busca de verossimilitude.- Mas, se ela passar por
todos esses testes, então temos boa razão para confecturar que
nossa teoria, que sabemos ter conteúdo de verdade maior do que
sua predecessora, pode não ter maior conteúdo de falsidade.
E se falharmos em refutar a nova teoria, especialmente em
campos em que sua predecessora haja sido refutada, então po­
demos alegar isto como uma das razões objetivas para a con­
jectura de que a nova teoria é uma aproximação da verdade
melhor do que a velha teoria.

24 — Discussão Crítica, Preferência Racional e o Problema da


Analiticidade de nossas Escolhas e Predições

Assim visto, testar teorias científicas faz parte de sua dis­


cussão crítica; ou, como podemos dizer, faz parte de sua dis­
cussão racional pois neste contexto não conheço sinônimo
melhor para “racional” do que “crítico”. A discussão crítica
nunca pode firmar razão suficiente para alegar que uma teoria
é verdadeira; nunca pode “justificar” nossa alegação de conhe­
cimento. Mas, se formos felizes, a discussão crítica pode firmar
razões suficientes para a seguinte alegação:
“Esta teoria parece, presentemente, à luz de uma cuida­
dosa discussão crítica e de severos e engenhosos testes, ser, em
muito, a melhor (a mais forte, a mais bem testada); e assim

85
parece ser a mais próxima da verdade entre as teorias con­
correntes”.
Sintetizando: nunca podemos justificar racionalmente uma
teoria — isto é, uma alegação de conhecer sua verdade — mas
podemos, se formos felizes, justificar racionalmente uma prefe­
rência por uma teoria dentre um conjunto de teorias concorren­
tes, por enquanto; isto é, com respeito ao estado presente da dis­
cussão. E nossa justificação, embora não alegue que a teoria
é verdadeira, pode ser a alegação de haver todas as indicações
de que, neste estágio da discussão, a teoria é uma aproximação
melhor da verdade do que qualquer teoria concorrente até então
proposta.
Consideremos agora duas hipóteses concorrentes, hx e h2.
Abreviemos em dt uma descrição do estado da discussão dessas
hlipóteses no tempo t, incluindo naturalmente a discussão de
relevantes resultados experimentais e outros observacionais. De­
notemos por
(1) c(hu dt) < c(h2, d t)
a asserção de que o grau de corroboração de hu à luz da dis­
cussão dt) é inferior ao de h2. E indaguemos que tipo de asser­
ção é ( 1 ).
Efetivamente, (1) será uma asserção um tanto incerta, ao
menos pela razão de que ofhi, dt) muda com o tempo t, e pode
mudar tão depressa quanto o pensamento. Em muitos casos, a
verdade ou a falsidade de ( 1 ) será somente uma questão de
opinião.
Admitamos, porém, circunstâncias “ideais”. Suponhamos
que uma discussão prolongada levou a resultados estáveis, e
especialmente a um acordo sobre todos os componentes de evi­
dência, e suponhamos que não há mudança de opinião em t por
certo período considerável.
Em tais circunstâncias, podemos ver que, sendo natural­
mente empíricos os elementos de evidência de dt, a asserção
(1 ) pode ser, desde que dt seja suficientemente explícita, lógica
ou (a menos que não gosteis do termo) "analítica
Isto é particularmente claro se c(hu dt) fosse negat:vo,
porque o acordo da discussão no tempo í é que a evidência
refuta hu sendo c(h2, d,) positivo, pois a evidência sustenta h2.
Exemplo: tomemos hx como sendo a teoria de Kep'er e h2 como
sendo a teoria de Einstein. Pode-se concordar em que a teoria
de Kepler está refutada no tempo t (em razão das perturbações
newtonianas), e pode-se concordar em que a teoria de Einstein,
no tempo t, é sustentada pela evidência. Se dt for suficiente­
mente explícita para acarretar tudo isto, então

86
*

(1) cfhudt) < c(h2, d t)


importa na asserção de que um número negativo não especi­
ficado é menor do que um número positivo não especificado, e
esta é a espécie de asserção que pode ser descrita como “lógica”
ou “analítica”.
Sem dúvida, haverá outros casos; por exemplo, se "d"
for apenas um nome como “o estado da discussão em 12 de
maio de 1910”. Mas tal como se diria que o resultado da com­
paração de duas magnitudes conhecidas era analítico, também
podemos dizer que o resultado da comparação de dois graus de
corroboração, se suficientemente bem conhecido, será analítico.
Somente, porém, se o resultado da comparação for suficien­
temente bem conhecido é que se pode dizer ser ele a base de
uma preferência racional; isto é, apenas se ( 1 ) se sustentar é
que podemos dizer que h2 é racionalmente preferível a hx.
Tudo isto me parece direito e antes trivial. Mas tem sido
criticado pelas razões que se seguem.
Se (1) for analítico, então a decisão de preferir h2 a hx
também é analítica e, portanto, nenhumas novas predições sin­
téticas podem provir da preferência por h2 sobre hx.
Não estou de todo certo, mas parece-me que o seguinte
resume a crítica que foi apresentada primeiro pelo Professor
Salmon contra minha teoria da corroboração: ou todos os
passos descritos são analíticos — não podendo haver então pre­
dições científicas sintéticas; ou há predições científicas sintéticas
— não podendo então alguns passos ser analíticos, mas de­
vendo ser genuinamente sintéticos ou ampliativos e, portanto,
indutivos.
Tentarei mostrar que o argumento é inválido como crítica
de m nhas opiniões; h-, é, como geralmente se admite, sintética,
e todas as predições (não tautológicas) são derivadas de h2 e
não da desigualdade (1). Isto basta para responder à crítica. A
questão do motivo de preferirmos h2 a hx tem resposta na refe­
rência a d t, que, se suficientemente específica, também é não-
-analítica.
Os motivos que levaram à nossa escolha de h2 não podem
alterar o caráter sintético de h2. Os motivos — em contraste
com motivos psicológicos comuns — são preferências racional­
mente justificáveis. Por isto é que proposições lógicas e analí­
ticas desempenham neles um papel. Se gostardes, podeis chamar
“analíticos” os motivos. Mas esses motivos analíticos para es­
colher h2 nunca tornam h2 verdadeira, para nada dizer de “ana­
lítica”; são, no máximo, razões logicamente inconclusivas para
conjecturar que esta é a mais verossímil das hipóteses concor­
rentes no tempo t.

87
25 — Ciência: o Crescimento do Conhecimento através
de Crítica e Inventiva

Vejo na ciência uma das maiores criações da mente


humana. É um passo comparável à emergência de uma lingua­
gem descritiva e argumentativa, ou à invenção da escrita. É
um passo no qual nossos mitos explicativos ficam abertos à crí­
tica consciente e coerente e no qual somos desafiados a inventar
novos mitos. (É comparável ao passo conjectural nos primi­
tivos dias da gênese da vida, quando tipos de mutabilidade se
tornaram objeto de evolução por meio de eliminação.)
Muito antes da crítica houve crescimento de conhecimento
— de conhecimento incorporado ao código genético. A lingua­
gem permite a criação e a mutação de mitos explicativos, e
isto é ainda mais ajudado pela linguagem escrita. Mas é só a
ciência que substitui a eliminação do erro, na luta violenta pela
vida, pela crítica racional não-violenta, e que nos permite subs­
tituir a morte (mundo 1 ) e a intimidação (mundo 2 ) pelos
argumentos impessoais do mundo 3.

UMA REFLEXÃO ULTERIOR SOBRE A INDUÇÃO

26 — Os Problemas de Causação e Indução, de Hume

Até aqui(41) foi-me possível dar um perfil da epistemologia


e dos métodos usados em ciência para promover o crescimento
do conhecimento sem sequer mencionar a indução — nem a
palavra, nem o alegado fenômeno. Penso que isto é significa­
tivo. A indução é uma trapalhada e como o problema da indução
pode ser resolvido, de maneira negativa mas não menos direta,
vê-se que a indução não representa parte integral em epistemo­
logia ou no método da ciência e no crescimento do conheci­
mento.
Em meu livro Logik der Forschung (1934) escrevi: “Se,
seguindo Kant, podemos chamar o problema da indução “pro­
blema de Hume”, poderemos chamar “problema de Kant” ao
problema da demarcação”. (42) Este trecho foi, que eu saiba, o
primeiro em que o problema da indução foi chamado “problema
de Hume” : o próprio Kant não o chamou assim, ao contrário
do que pareço dizer na passagem acabada de citar.
O que aconteceu foi isto. Kant apresentou originariamente
o nome “problema de Hume” (“Das Humésche Problem”)(43)
para a questão da situação epistemológica da causação; e depois

88
t

generalizou o nome para cobrir toda a questão de poderem ter


válidas a priori proposições sintéticas, visto como encarava o
princípio da causação como o mais importante dos princípios
sintéticos que eram válidos a priori.
Procedi diferentemente. Considerei o modo de Hume en­
carar o problema da causação como inútil. Baseava-se ampla­
mente em sua insustentável psicologia empirista — sua versão
da teoria do balde mental, cujo conteúdo subjetivista e psicolo-
gista pouco oferecia que eu achasse importante como contri­
buição a uma teoria de conhecimento objetivo. Mas, compri­
mida no meio dessas poucas contribuições subjetivistas, encon­
trei uma que considerei como gema de valor inapreciável para
a teoria do conhecimento objetivo: uma refutação simples, di­
reta, lógica a qualquer alegação de que a indução poderia ser
um argumento válido ou um meio justificável de raciocinar.
Este argumento humeano da invalidez da indução era, ao
mesmo tempo, o âmago de sua contestação da existência de um
elo causai. Mas como tal não o achei muito importante, nem
válido.
Assim, para mim, o que Kant chamara “problema de
Hume”, o problema da causação, partiu-se em dois: o problema
causai (a respeito do qual discordei tanto de Kant quanto de
Hume) e o problema da indução, a respeito do qual concordei
completamente com Hume, até onde se tratava de sua lógica.
(Havia também um aspecto psicológico do problema da indução
onde sem dúvida discordei de Hume.)
Meu passo seguinte foi encarar mais de perto a situação
do problema de Kant; e aqui achei que o decisivo entre seus
princípios sintéticos a priori não era (como ele pensava) o prin­
cípio de causação, mas sim o modo por que ele o usava pois ele
o usava como um princípio de indução.
A indução, mostrara Hume, era inválida porque levava a
um regresso infinito. Ora, à luz da análise de Kant (e de minha
rejeição de princípios sintéticos válidos a priori) fui conduzido
à formulação: a indução ê inválida porque leva ou a um re­
gresso infinito ou ao apriorismo.
Esta foi a fórmula com que iniciei o argumento de meu
livro L.d.F. E ela me levou a batizar o centro lógico de toda a
questão — o problema da indução — como “problema de
Hume”, atribuindo este nome a Kant, que denominara “pro­
blema de Hume” o problema da causação (e sua generalização).
Mas acho que deveria, pelo menos rapidamente, entrar em
mais detalhes.
Hume, sugiro, é um homem de senso comum. Como indica
em seu “Tratado” (Treatise), é um convicto realista de senso

89
comum. Apenas sua pior metade, sua teoria de senso comum do
conhecimento, sua forma da teoria do balde mental, é que o
torna “cético” em relação à realidade e o impele para aquela
forma radical de idealismo — o “monismo neutro” (como o
chamaram Mach e Russell). Hume, talvez até mais do que Locke
e Berkeley, é o paradigma do filósofo que começa com um forte
senso comum realista, mas é pervertido por sua teoria de senso
comum do conhecimento para uma filosofia idealista, que ele
acha racionalmente inevitável, ainda que lhe parta a mente ao
meio; é a esquizofrenia entre o realismo de senso comum e a
teoria de senso comum do conhecimento que dirige o empirismo
sensualista para um idealismo absurdo, que apenas um filósofo
poderia aceitar; mas dificilmente um tão razoável como Hume.
Essa esquizofrenia é exposta por Hume, mais claramente,
no famoso trecho:
“Como a dúvida cética brota naturalmente (= pelo senso
comum) de uma reflexão profunda e intensa sobre esses assun­
tos, ela sempre cresce quanto mais levamos adiante nossas re­
flexões, em oposição ou em conformidade com ela. Só a indi­
ferença e a desatenção nos podem dar algum remédio. Por esta
razão, confio inteiramente nelas; e tenho por certo, seja qual
possa ser a opinião do leitor neste momento presente, que daqui
a uma hora ele estará persuadido de que há tanto um mundo
externo quanto um interno; . . . (44)
Mas Hume estava completamente convencido de haver es­
tabelecido que sua teoria do conhecimento era a mais profunda
e a mais verdadeira filosoficamente. Para mostrar que ele assim
pensava, cito, dentre uma imensidade de trechos, o seguinte,
do “Tratado”, em que ele argumenta contra o “erro” (4B) de
nossa crença num mundo externo:
“De tudo isto pode-se inferir que nenhuma outra faculdade
é requerida, além dos sentidos, para convencer-nos da existên­
cia externa do corpo. Mas, para evitar esta inferência, precisa­
mos apenas levar em conta as três seguintes considerações. Pri­
meira, que, adequadamente falando, não é o nosso corpo que
percebemos quando olhamos nossos membros, mas certas im­
pressões que entram pelos sentidos; de modo que atribuir uma
existência real e corpórea a essas impressões, ou a seus objetos,
é um ato da mente tão difícil de explicar como aquele que exa­
minamos presentemente. Segunda, sons, e sabores, e cheiros,
embora comumente encarados pela mente como qualidades in­
dependentes contínuas, parecem não ter qualquer existência em
extensão e conseqüentemente não podem aparecer aos sentidos
como situados externamente ao corpo. A razão pela qual lhes
atribuímos um lugar será considerada mais adiante. Terceira,
mesmo nossa visão não nos informa da distância ou extemidade
90
A

(por assim dizer) imediatamente e sem certo raciocínio e expe­


riência, como é reconhecido pelos filósofos mais racionais”.
Isto é com toda a pureza a teoria do balde: nosso conhe­
cimento consiste de nossas percepções ou “impressões” que
entram pelos sentidos”. E estes, visto constituírem conhecimento,
devem estar em nós e não pode haver distância ou exterioridade.
(Sem dúvida, esta profundidade filosófica é toda errada.
Desde que partamos da primeira parte do senso comum, do rea­
lismo, descobrimos que somos animais dotados de órgãos de
sentidos que nos ajudam a decifrar os sinais do mundo exterior.
Fazemos isto admiravelmente bem, com a cooperação de, prati­
camente, todo o nosso corpo “externo”. Mas não é este o nosso
problema aqui.)
Esbocei em síntese a esquizofrenia de Hume e o esmagador
papel desempenhado em sua opinião pela teoria do balde mental.
Sobre este fundo venho agora explicar sua teoria da causalidade.
Esta teoria é complexa e longe de ser coerente, e só acen­
tuarei um aspecto dela.
Hume considera a causação como (a) uma relação entre
eventos, (b) como uma “CONEXÃO NECESSÁRIA” (as
maiúsculas são de Hume).(48)
Mas (diz ele) quando aqui “torno a virar o objeto de
todos os lados para descobrir a natureza desta conexão necessá­
ria” não encontro relações, “mas. . . contigüidade e suces­
são” ^ 47) não há base de sensação para a idéia de necessidade:
a idéia é sem base.
O que mais se aproxima do que é observável é a sucessão
regular. Mas se a sucessão regular de dois eventos fosse “ne­
cessária”, então ela teria de verificar-se com certeza, não só
entre os exemplos observados mas também entre os não obser­
vados. Este é, essencialmente, o modo pelo qual o problema
lógico da indução entra na discussão subjetivista que Hume faz
da causação, em sua procura com a teoria do balde da origem
ou da base da idéia de necessidade.
Considero este tipo de indagação como completamente mal
concebido; mas encaro a formulação de Hume e seu tratamento
do problema lógico da indução (ele nunca usa este termo) como
uma gema sem jaça. Cito uma das passagens características:
“Sejam todos desde logo plenamente persuadidos destes
dois princípios, Que nada há em qualquer objeto, considerado
em si mesmo, que nos possa oferecer uma razão para tirar uma
conclusão além dele; e Que mesmo após a observação da fre­
quente ou constante conjunção de objetos, não temos razão para
extrair qualqUer inferência concernente a qualquer objeto além
daqueles com os quais temos tido experiência;. . .” (48) Esses

91
“dois princípios” de que Hume nos tenta persuadir contêm sua
solução negativa do problema da indução. Eles (e muitos trechos
semelhantes) não falam mais de causa ou efeito, ou de conexão
necessária. São, a meu ver, as gemas lógicas sepultadas no
lodo psicológico do balde. E, a fim de homenagear Hume por
esta descoberta fundamental, mudei levemente o significado da
expressão de Kant, “problema de Hume”, para ligá-la ao pro­
blema da indução e não ao problema da causação.
Neste sentido, o problema lógico da indução, de Hume, é
o problema de estarmos ou não capacitados a inferir casos não
observados de casos observados, sejam quantos forem ou asser­
ções “desconhecidas” (não aceitas) de asserções “conhecidas”
(aceitas), sejam quantas forem. A resposta de Hume a este
problema é claramente negativa; e, como ele aponta, perma­
nece negativa ainda que nossa inferência meramente se refira à
probabilidade de uma conexão que não foi observada e não à
sua necessidade. Esta extensão à probabilidade é formulada no
“Tratado” : “De acordo com esta explicação das coisas, que é,
penso, inquestionável em todos os pontos, a probabilidade se
baseia na presunção de uma semelhança entre aqueles objetos
com os quais temos tido experiência e aqueles com os quais não
a tivemos; e portanto é impossível que esta presunção possa
brotar da probabilidade”. (49)
O argumento contra a indução probabilística é, como ve­
remos, puramente formal; e ainda o é mais claramente numa
passagem do Abstrato de Hume que citei em meu livro L.Sc.D.,
1959.(so) Isto é, Hume mostra que seu raciocínio contra a vali­
dade da inferência indutiva permanece o mesmo, quer tente­
mos inferir a “necessidade”, n, das conclusões, quer simples­
mente sua “probabilidade”, p. (As letras “n” e “p” seriam va­
riáveis que podem ser substituídas reciprocamente no argumento
de Hume.) (81)
Além deste problema lógico da indução, que, afirmo, Hume
resolveu completamente (embora sua solução seja negativa), há
outro problema lógico da indução que certas pessoas chamam
“problema da indução de Hume”. Este é o problema: Como se
pode mostrar que inferências indutivas (pelo menos as proba-
bilísticas) são válidas ou podem ser válidas?
Este problema é uma trapalhada típica, pois pressupõe, não
criticamente, a existência de uma solução positiva do que chamei
“problema de Hume” ; mas Hume provou que não existe solução
positiva.
Por fim, temos o problema psicológico da indução, de
Hume. Pode ser exposto assim: por que muitas pessoas, e
pessoas perfeitamente racionais também, acreditam na validade

92
da indução? A resposta de Hume é aquela a que Russell alude,
na epígrafe de nosso primeiro capítulo: o mecanismo psico­
lógico da associação força tais pessoas a acreditarem, por cos­
tume ou hábito, que aquilo que aconteceu no passado aconte­
cerá no futuro. Este é um mecanismo biologicamente útil —
talvez não pudéssemos viver sem ele — mas não tem qualquer
base racional. Assim, o homem não só é um animal irracional,
com aquela parte de nós que julgamos racional — o conheci­
mento humano, inclusive o conhecimento prático — é extrema­
mente irracional.
Deste modo, o choque entre a solução negativa dada por
Hume ao problema lógico da indução e sua solução positiva do
problema psicológico destruiu tanto o empirismo quanto o ra-
cionalismo.

27 — Por que o Problema Lógico da Indução de Hume é mais


Profundo do que seu Problema da Causação

Poderia facilmente haver pequena disputa sobre a questão


de qual é o problema mais profundo: o problema da causação,
de Hume, ou o que chamei seu problema da indução.
Poder-se-ia argumentar que, se o problema da causação
fosse resolvido positivamente — se pudéssemos mostrar a exis­
tência de um elo necessário entre causa e efeito — , o problema
da indução também estaria resolvido, e positivamente. Assim,
poder-se-ia dizer, o problema da causação é o mais profundo.
Argumento eu inteiramente ao contrário: o problema da
indução está resolvido negativamehte; nunca podemos justificar
a verdade de uma crença numa regularidade. Mas constante­
mente usamos regularidades, como conjecturas, como hipóteses;
e às vezes temos boas razões para preferir certas conjecturas
a outras de suas concorrentes.
De qualquer modo, à luz de uma conjectura podemos não
só explicar causa e efeito muito melhor do que o fez Hume,
como podemos mesmo dizer de que consiste o “elo causai ne­
cessário”.
Dadas certas regularidades conjecturadas e certas condições
iniciais que nos permitem deduzir predições de nossa conjectura,
podemos dizer que as condições são a causa (conjecturada) e
que o evento predito é o efeito (conjecturado). E a conjectura
que os liga por necessidade lógica é o longamente procurado
elo necessário (conjectural) entre causa e efeito. (Tudo isto
pode ser chamado uma “explicação causai”, como o chamei em
L.d.F„ secção 12.)
93
Isto indica que vamos muito mais longe por meio da so­
lução negativa de Hume ao problema da indução do que por
meio de sua solução negativa ao problema da causação; de modo
que podemos descrever o primeiro problema como o “mais pro­
fundo”, aquele que está “por trás” do outro.

28 — Intervenção de Kant: Conhecimento Objetivo

Kant compreendeu que a solução negativa dada por Hume


ao problema da indução destruía a racionalidade dos fundamen­
tos da dinâmica de Newton. Como todos os seus contemporâ­
neos instruídos, Kant não duvidava da verdade da teoria de
Newton. A análise d© Hume reduziu-a a “costume” ou “hábito”
— posição de todo inaceitável.
Hume mostrara que a indução era ameaçada por um re­
gresso infinito. Kant indicou que Hume, com seu dogmatismo
empírico, não considerara a possibilidade de haver um prin­
cípio de causalidade (ou melhor um princípio de indução) que
fosse válido a priori. Esta foi a posição que Kant tomou (como
expliquei na seção I de L.d.F.) e que Bertrand Russell adotou
depois dele: ambos tentaram salvar a racionalidade humana do
irracionalismo de Hume.
Kant dividiu todas as sentenças, de acordo com sua forma
lógica, em analíticas e sintéticas, sendo analíticas as que são
susceptíveis de decisão como verdadeiras ou falsas apenas com
o auxílio da lógica. Dividiu-as ainda mais, de acordo com sua
validade a priori ou a posteriori: segundo sua alegação de ver­
dade ou falsidade não precisasse de apoio empírico {a priori),
ou dele precisasse (a posteriori).
Visto como, por definição, todas as sentenças analíticas
eram a priori, chegamos assim ao quadro seguinte:

D ivisão de Sentenças

conforme a forma lógica:


analítica sintética
Conforme a
base de alegação a priori 9
à verdade ou
falsidade: a posteriori -► — *+-
(As setas significam “se. . . então” ; por exemplo, se analítica,
então a priori.)

94
*

O quadro indica que a analiticidade implica um caráter a


priori e, portanto, um caráter a posteriori implica sinteticidade.
Mas isto deixa em aberto a questão: há ou não há sentenças
sintéticas que possam ser válidas a primi? Kant diz que há e
proclamou a aritmética, a geometria, o princípio da causalidade
(e uma parte principal da física de Newton) como sintéticas e
válidas a priori.
Para ele, isto resolveu o problema de Hume. Mas era uma
teoria sustentável? Como podia a verdade do princípio de
causalidade (por exemplo) ser estabelecida a priori?
Aqui Kant entrou com sua “Revolução de Copérnico” : foi
o intelecto humano que inventou, e impôs, suas leis sobre o pân­
tano dos sentidos, criando assim a ordem da natureza.
Era uma teoria ousada. Mas ruiu logo que se verificou que
a dinâmica de Newton não era válida a priori, mas uma hipó­
tese maravilhosa, uma conjectura.
Do ponto de vista do realismo de senso comum, um bom
pedaço da idéia de Kant podería reter-se. As leis da natureza
são invenção nossa, são de feitura animal e de feitura humana,
geneticamente a priori embora não válidas a priori. Tentamos
impô-las sobre a natureza. Muitas vezes falhamos e perecemos
com as nossas conjecturas errôneas. Mas às vezes chegamos bas­
tante perto da verdade para sobreviver com nossas conjecturas.
E no nível humano, quando está à nossa disposição uma lin­
guagem descritiva e argumentativa, podemos criticar sistemati­
camente nossas conjecturas. É este o método da ciência.
É importante compreender a grande contribuição dada por
Kant a esta solução, embora Kant não rejeitasse plenamente o
subjetivismo na teoria do conhecimento. Talvez o maior passo
fosse sua discussão constante de teorias, asserções, proposições
e princípios científicos e dos argumentos pró e contra eles,
quando seus precursores ainda falavam principalmente de sensa­
ções, ou impressões, ou crenças.

29 — A Solução do Paradoxo de Hume:


Restauração da Racionalidadef52)

Desde os dias em que escrevi o trecho em que denominei


“problema de Hume” o problema da indução, esta terminologia
tem sido universalmente adotada. Em vão pesquisei a literatura
na tentativa de verificar se alguém antes de mim chamara “pro­
blema de Hume” ao problema da indução. Todos os exemplos
que pude encontrar podiam ser rastreados até escritores que
haviam lido meu livro mais ou menos cuidadosamente (tais
como Russell ou Von Wright). Naturalmente posso ter passado

95
sobre algum autor antigo e nada podería ser menos importante
do que alegar prioridade por apresentar o nome de um pro­
blema. Menciono o assunto apenas porque tornou-se moda
também denominar “problema de Hume” um problema inteira­
mente diferente e porque alguns autores recentes tentaram dizer-
-me que o “problema da indução, de Hume” é de fato diferente
daquele a que dei tal nome.
Evidentemente há vários problemas diferentes que pode­
ríam ser assim denominados e referir-me-ei a dois grupos: (BS)
Grupo A — Como podemos justificar a indução?
Grupo B — É a indução justificável de algum modo? E
há qualquer razão para que a julguemos justificável?
Ver-se-á desde logo que o Grupo B é a questão mais fun­
damental: se for resolvido recebendo uma resposta claramente
negativa, então a questão do Grupo A não pode surgir.
Alego ter resolvido a questão do Grupo B neste sentido.
Em outras palavras alego ter resolvido o problema da indução,
de Hume, em sua mais profunda forma. Digo isto explicitamente
porque vários filósofos têm chamado “problema da indução, de
Hume” ao Grupo A e me têm atribuído erroneamente a ale­
gação de que o problema da indução, de Hume, é insolúvel, ao
passo que minha alegação foi a de que eu o havia solucionado
completamente, embora negativamente.
O problema da indução, de Hume, consiste de dois ele­
mentos:
(a) A questão da justificação da validade da alegação de
haver estabelecido com certeza, ou pelo menos com probabili­
dade, a verdade de uma regra ou de uma generalização, ou
pelo menos sua provável verdade, a partir de evidência singular;
(b) A tese de que a indução está ligada à repetição (e de
que a repetição se liga ao fortalecimento de associações).

Pode-se, sem dúvida, dar o nome de “indução” ao que se


quiser. Pode-se dizer que minha teoria da crítica e do cresci­
mento do conhecimento é minha teoria da indução. Contudo,
acho que isso contribuiría pouco para a clareza e muito para a
confusão. Pois, dos dois elementos, a questão (a), se a in­
dução é uma inferência válida — isto é, se produz alegações
válidas em apoio da verdade da proposição induzida — parece-
-me característica do problema de Hume e de sua resposta nega­
tiva (lógica); e (b), o elemento da repetição e da associação
parece-me característico do problema de Hume e torna possível
a parte positiva (psicológica) de sua resposta.
96
4

Hume, de fato, respondeu de dois modos essencialmente


diferentes às questões suscitadas por (a) e (b).
(a’) Disse ele que a indução é completamente inválida
como uma inferência. Não há sombra dè argumento lógico que
sustente a inferência para uma generalização partida de asser­
ções acerca do passado (tais como repetições passadas de al­
guma “evidência”).
(b’) Disse ele que, apesar de sua falta de validade ló­
gica, a indução desempenha papel indispensável na vida prá­
tica. Vivemos confiando na repetição. A associação fortale­
cida pela repetição é o mecanismo principal de nosso intelecto,
pelo qual vivemos e agimos.

Assim, existe aqui um paradoxo. Mesmo o nosso inte­


lecto não funciona racionalmente. O hábito, que é racional­
mente indefensável é a força principal que guia nossos pen­
samentos e ações.
Isto levou Hume, um dos pensadores mais racionais de
todos os tempos, a abandonar o racionalismo e a encarar o
homem não como dotado de razão, mas como produto de
cego hábito.
De acordo com Russell, esse paradoxo de Hume é res­
ponsável pela esquizofrenia do homem moderno. Tenha ou
não Russell razão nisso, alego que o resolvi.
A solução do paradoxo é que não só raciocinamos racio­
nalmente, e portanto contrariamente ao princípio da indução,
estabelecido por Hume como inválido, mas também agimos
racionalmente: de acordo com a razão e não com a indução.
Não agimos baseados em repetição ou “hábito”, mas basea­
dos nas mais bem testadas de nossas teorias, as quais, como
já vimos, são aquelas para que temos boas razões racionais;
não, sem dúvida, boas razões para crer que sejam verdadeiras,
mas para crer que são as de melhor aproveitamento do ponto
de vista de uma busca da verdade ou da «erossimilitude —
as melhores entre as teorias concorrentes, as melhores aproxi­
mações da verdade. Para Hume, a questão central era: agimos
ou não de acordo com a razão? E minha resposta é: sim.
Com isto está resolvido o paradoxo de Hume. Estava ele
certo em sua crítica lógica da possibilidade de uma indução
válida. Onde estava errado era em sua associação psicológica,
em sua crença de que agíamos com base no* hábito e de que
o hábito era o resultado da pura repetição.
Esta solução do paradoxo de Hume, sem dúvida, não diz
que somos criaturas completamente racionais. Diz somente que

97
não há conflito entre a racionalidade e a ação prática em nossa
constituição humana.
Tem-se de acrescentar, naturalmente, que o padrão racio­
nal de nossas ações práticas muitas vezes fica bem para trás
do padrão aplicado às fronteiras do conhecimento: muitas vezes
agimos baseados em teorias que desde muito foram superadas,
em parte porque muitos de nós não compreendemos o que acon­
tece nas fronteiras do conhecimento. Não creio, porém, que
valha a pena prosseguir nestas observações.

30 — Confusões Ligadas ao Problema da Indução

O próprio Hume confundiu o problema da indução com o


problema da conexão necessária entre causa e efeito; e Kant
viu no problema da validade a priori da lei causai um dos mais
fundamentais problemas de metafísica. Mas Hume deve ter a
seu crédito a formulação do puro problema lógico da indução e
de suas soluções (e ufana-me ter sido eu o primeiro, até onde
sei, a creditar-lhe isto). Escreve ele, por exemplo, que não temos
razão para acreditar que “aqueles exemplos de que não tivemos
qualquer experiência (tenham probabilidade de) assemelhar-se
àqueles de que tivemos experiência.” (55)
A formulação não podia ser separada mais claramente do
problema da necessidade causai, que tantas vezes atormenta a
clareza do pensamento de Hume. Também está a formulação in­
teiramente livre do elemento confundidor da inferência do pas­
sado para o futuro. Tudo quanto está admitido é que temos
evidência empírica da verdade de certos exemplos, e é asseve­
rado que isto não nos capacita a concluir ou a extrapolar para
experiências análogas em outros exemplos (seja no passado ou
no futuro).
Isto, pois, em toda a sua pureza, é o que batizei como “pro­
blema (lógico) da indução, de Hume”.
A resposta de Hume é a mais clara possível: não há argu­
mento de razão que permita uma inferência de um caso para
outro, por mais similares que possam ser as condições; e con­
cordo plenamente com ele a este respeito.
Creio, porém, que Hume está errado quando pensa que, na
prática, fazemos tais inferências, com base na repetição ou
hábito. Assevero que sua psicologia é primitiva.(Be) O que fa­
zemos na prática é saltar para uma conclusão (muitas vezes na
forma de uma “gravura” Lorenziana); isto é, para hipóteses
inteiramente inconclusivas a que muitas vezes nos aferramos e
com as quais poderemos perecer, a menos que sejamos capazes

98
t

de corrigi-las, o que é possível especialmente se, no nível


humano, forem formuladas extrassomaticamente em forma es­
crita e submetidas a crítica.
A asserção de que temos uma inclinação irracional para
impressionar-nos com o hábito e a repetição é algo inteiramente
diferente da asserção de que temos tendência para experimentar
hipóteses ousadas que poderemos ter de corrigir se não quiser­
mos perecer. A primeira descreve um processo de instrução
tipicamente lamarckiano; a segunda, um processo de seleção
darwiniano. A primeira é irracional, como observou Hume, en­
quanto a segunda não parece ter em si nada de irracional.

31 — Que Resta do Errôneo Problema de Justificar a Indução?

O errôneo problema do Grupo A — o problema de justi­


ficar a indução — é suscitado por pessoas impressionadas com
a “Uniformidade da Natureza”; com o fato de que o sol surge
todos os dias (uma vez em vinte e quatro horas, ou uma vez
em cerca de 90.000 pulsações); de que todos os homens e
todos os animais estão fadados a morrer;(57) e com o famoso
exemplo de Hume de que o pão alimenta. Mas todos os três
exemplos são refutados na forma em que foram originariamente
entendidos.
“O sol surge todos os dias” queria dizer “para onde quer
que fores o sol surge todos os dias. Que este era seu signifi­
cado de origem, mostra-o o fato de que Pitéias de Marselha, o
primeiro viajante que se sabe ter atravessado o círculo polar e
descrito “o mar gelado e o sol da meia-noite”, foi tido durante
séculos como o paradigma do mentiroso, derivando-se dele a
expressão, “história de viajantes”. O destino de todos os homens
morrerem inevitavelmente foi derivado por Aristóteles do fato
de que tudo quanto é gerado, e especialmente todas as criaturas
vivas, devem decair — tese que de modo algum já não é mais
aceita geralmente pelos biólogos (que até agora têm conservado
um coração de galinha in vitro a bater por mais de meio século).
E o exemplo de Hume de que o pão alimenta foi tragicamente
refutado quando pão saído do forno do modo costumeiro pra­
ticamente exterminou uma aldeia francesa em vista de uma de­
flagração de ergotismo. .
Isto é tudo, porém? É. É simplesmente o fato (seja o que
for que possam dizer os filósofos) de estarmos certos, por senso
comum, de que o sol surgirá sobre Londres amanhã. Contudo,
não o sabemos com certeza. Há milhões de possibilidades ca­
pazes de impedí-lo. Quem quer que tente dar-nos razões positi­

99
vas para crer nisso não apreendeu o problema. Todos admiti-
damente, humanos ou não, esperamos que o sol continuará a
surgir. Admitidamente, esta esperança é uma esperança necessá­
ria — necessária para a ação, para a vida. Mas mesmo uma
esperança necessária não é conhecimento objetivo, embora nos
possa dispor a crer.
Em outras palavras, as regras que ainda são usadas por
filósofos como exemplos padrões de regras indutivas e de sua
fidedignidade são todas falsas, mesmo quando são muito boas
aproximações da verdade, parece.
Mas isto é só para mostrar a inafiançabilidade da suposta
indução. Indução genuina por repetição não existe. O que pa­
rece indução é raciocínio hipotético, bem testado e bem corro­
borado e de acordo com a razão e o senso comum. Pois há um
método de corroboração — a tentativa séria de refutar uma
teoria quando uma refutação parece provável. Se essa tenta­
tiva falhar pode-se conjecturar, em terreno racional, que a teoria
é uma boa aproximação da verdade — melhor, de qualquer
forma, do que sua predecessora.
Mas não podemos chegar a algo como a segurança? Não
podemos chegar, à segurança na indução em casos incontáveis
de repetição?
A resposta é não. (Foi isto o que Hume disse.) Podemos
chegar facilmente ã segurança de senso comum — não tanto
pela repetição como por testes severos. Tanto quanto qualquer
outro, sinto confiança em que o sol surgirá sobre Londres
amanhã, ou em que terei de morrer embora o pão continue a
alimentar-me. Mas sei, como teórico, que outras coisas podem
acontecer. Sei mesmo que o sol não surge diariamente em todas
as partes da Europa, que bactérias nem sempre morrem, mas
se dividem, e que o pão, a água, o ar e nossas circunvizinhanças
mais comuns e mais dignas de confiança contêm (e teme-se
que em breve conterão) venenos letais.
Pode-se também perguntar: por que temos êxito com a
nossa feitura de teorias? Resposta: temos tido êxito até aqui,
mas podemos fracassar amanhã. Qualquer argumento mostrando
que devemos ter êxito provaria longe demais. Tudo quanto po­
demos fazer é conjecturar que vivemos numa parte do cosmos
onde as condições de viver e de ter êxito em nosso empreendi­
mento de conhecimento parecem ser favoráveis no momento.
Mas, se sabemos alguma coisa, então sabemos que em quase
todas as demais partes deste cosmos as condições de vida e de
conhecimento são altamente •desfavoráveis, pois nossa cosmo-
logia nos diz que o mundo em quase toda parte é completa-

100
»

mente vazio e, onde não é vazio, é quase em toda parte quente


demais.
E o fato de que veículos puxados a cavalo puderam ser
vistos em Londres todos os dias durante muitos séculos não
impediu seu desaparecimento e sua substituição pelos automó­
veis. A aparente “uniformidade da natureza” é inteiramente des-
merecedora de fé; e embora possamos dizer que as leis da
natureza não mudam, isto se acha perigosamente perto de dizer
que há em nosso mundo algumas conexões abstratas que não
mudam (o que é muito trivial, se admitirmos que não sabemos,
mas no máximo conjecturamos, o que sejam essas conexões) e
que as chamamos “leis da natureza”.

32 — Ceticismo Dinâmico: Confrontação com Hume

A posição aqui defendida é radicalmente diferente daquilo


que se tem chamado “ceticismo” em tempos modernos, pelo
menos desde a Reforma. De fato, nos tempos modernos, o
ceticismo é descrito como a teoria que é pessimista com res­
peito à possibilidade de conhecimento. Mas a opinião aqui pro­
posta adere esperançosamente à possibilidade do crescimento do
conhecimento e, portanto, do conhecimento. Remove simples­
mente a qualidade de certeza que o senso comum admitia como
essencial ao conhecimento e mostra que tanto a certeza como
o conhecimento são diferentes daquilo que a teoria de senso
comum supunha. Dificilmente será descrito como cético quem
crê na possibilidade do ilimitado crescimento do conhecimento.
Por outro lado, certos céticos clássicos tais como Cícero e
Sexto Empírico não estavam muito afastados da posição aqui
defendida. “Scepsis” bem se podería traduzir (embora rara­
mente o seja) por “indagação crítica” e “ceticismo dinâmico”
podería identificar-se com “indagação crítica enérgica” ou, por
assim dizer, “indagação crítica • esperançosa”, por pouco que
a própria esperança tenha uma base inteiramente racional. Isto
certamente muito pouco tem a ver com o desejo de conhecer
onde nada pode ser conhecido.
Nesta conexão, parece-me de certa importância voltar a
nosso ponto de partida — senso comum mais argumentação crí­
tica — e lembrar-nos do resultado de que o senso comum en­
volve realismo — talvez algo não muito distante de “realismo
científico” — e que todos os argumentos conhecidos contra o
realismo (89) se mostram criticamente insustentáveis — ou, mais
precisamente, disparates insustentáveis da, parte mais fraca do
O .U L .,0 \
101
senso comum: a teoria de senso comum do conhecimento.
Assim, não temos razão alguma para abandonar o realismo.
Mas isto significa uma alteração radical na situação de
meu “ceticismo esperançoso”, especialmente quando compa­
rado com o de David Hume.
Hume argumenta:
(1) A indução (isto é, a indução pela repetição) é, racio­
nalmente, de todo inválida.
(2) Efetivamente, em nossas ações (e assim em nossa
crença), confiamos na existência de alguma realidade que não
é completamente caótica.
(3) Esta nossa confiança, em vista de (1), é irrepara­
velmente irracional.
(4) Assim, a natureza humana é essencialmente irracional.

Aceito plenamente as teses (1) e (2) de Hume. Mas rejeito


sua tese (3), a tese da irracionalidade. Posso fazê-lo porque
não tento basear (2) em (1), mas afirmo ser o realismo uma
parte de tal modo intocada do senso comum que não temos
razão para render-nos. Hume acreditava — por causa de sua
errônea teoria de senso comum do conhecimento — que só
pode ser razoável aceitar (2) quando o “conhecemos” — isto
é, quando temos razão suficiente para acreditar nisso; e pensava
que tal crença se baseia de fato na indução (que ele acertada-
mente rejeitava como irracional). Mas não existe apenas o co­
nhecimento humano de razão suficiente; existe também o conhe­
cimento conjectural objetivo (e seu análogo subjetivo, discu­
tido atrás, na secção 20). A posição de nossa visão de senso
comum da realidade não difere essencialmente daquela das per­
cepções ou impressões imediatas que Hume aceitava; trata-se
de conhecimento conjectural; e torna-se parte de nosso equi­
pamento orgânico pelo método de experimentação e eliminação
de erros. Assim, não há razão alguma para basear (2) em (1)
ou para vê-lo como necessitando de um apoio positivo diverso
do da ausência de argumentos críticos sustentáveis contra ele.
Em suma, não precisamos argumentar, como fez Hume
partindo da indução para o realismo; nada há de irracional na
conjectura do realismo; e os argumentos gerais contrários, em
cuja validez Hume acreditava, fazem parte de sua errônea epis-
temologia de senso comum.
Temos, assim, perfeita liberdade para rejeitar as teses (3)
e (4) de Hume.

102
t

Mais um ponto pode ser assentado acerca de (3) e (4).


Cremos esperançosamente no realismo e esta esperança não é
racional, por haver pelo menos alguns argumentos de “realismo
científico” que nos fazem predizer a destruição final de toda
a vida.
Mas mesmo isto não apoia as teses (3) e (4) de Hume.
Pois não é irracional ter esperança enquanto vivermos — e
ações e decisões nos são constantemente impostas.

33 — Análise de um Argumento Provindo da


Improbabilidade de Acidentes

Como indiquei rapidamente (na secção 22), a probabili­


dade subjetiva como medida de "crença racional” parece-me um
engano que nada tem de bom a oferecer à teoria do conhe­
cimento.
Visto que, porém, nada depende de palavras, não faço
objeções, naturalmente, a que se chame o que aqui chamei de
“boa” ou “a melhor” conjectura. Uma conjectura “provável”
(ou a mais provável das conjecturas conhecidas), enquanto a
palavra “probabilidade” não for interpretada no sentido do
cálculo de probabilidade. Pois a probabilidade no sentido do
cálculo de probabilidade nada tem a ver, em minha opinião, com
a bondade de uma hipótese. (Só sua improbabilidade, como já
foi explicado, pode ser usada como medida de seu conteúdo e,
assim, de um aspecto de sua bondade.)
Há, contudo, um velho argumento com um núcleo fraca­
mente plausível que pode ser ligado ao cálculo de probabili­
dade, como se segue.
Admitamos que temos uma hipótese H e que essa hipótese
seja logicamente muito improvável, isto é, que tenha conteúdo
muito grande e faça asserções num número de campos até então
completamente desligados. (Exemplo: a teoria gravitacional de
Einstein predisse não só os movimentos planetários de Newton,
mas também um pequeno desvio na órbita de Mercúrio, um
efeito no caminho dos raios de luz quando roçam um corpo
pesado e um desvio vermelho das linhas espectrais emitidas em
campos gravitacionais fortes.) Se todas essas predições forem
testadas com êxito, então parece intuitivamente bom e razoável
o argumento que se segue.
(1) Dificilmente poderá ser um acidente que a teoria pre­
diga essas predições extremamente improváveis se não for ver­

103
dadeira. Daí, argumenta-se que há uma probabilidade tão grande
de sua verdade quanto há uma improbabilidade de que esses
sucessos sejam devidos a uma acumulação de acidentes.
Não penso que este argumento (1) possa ser tido como
perfeitamente válido nesta forma, mas creio, não obstante, haver
nele alguma coisa. Vejamo-lo mais de perto.
Admitamos que o argumento (1) seja válido. Poderemos
então calcular a probabilidade de ser verdadeira a teoria como
1 menos a probabilidade de se ter verificado apenas acidental­
mente; e se os efeitos preditos forem logicamente muito impro­
váveis — por exemplo, em vista de seu montante numérico ser
predito muito precisa e corretamente — então os produtos
desses números muito pequenos seriam o número a ser dedu­
zido da unidade. Em outras palavras, obteríamos, por este mé­
todo de cálculo, para uma boa conjectura, uma probabilidade
muito próxima da unidade. (61)
O argumento a princípio parece convincente, mas é obvia­
mente inválido. Tomemos a teoria de Newton (N). Ela faz tantas
predições precisas que de acordo com o argumento em questão
deveria alcançar uma probabilidade muito próxima da unidade.
A teoria de Einstein (E) alcançaria uma probabilidade ainda
maior. Mas, pelo cálculo de probabilidade, temos (escrevendo
“v” para significar “ou” ) :
p(N v E) = p(N) + p(E) — p(NE);
e como as teorias são incompatíveis, de modo que p(NE) = 0,
obtemos
p(N v E) = p(N) + p(E) =. 2
(isto é, muito próximo de 2), o que é absurdo.
A solução do problema é que esse argumento (1) é racio­
cínio especioso. Pois é possível o seguinte:
(2) O bom acordo com o resultado improvável observado
não resulta de um acidente nem se deve à verdade da teoria,
mas simplesmente à sua verossimilhança.
Este argumento (2) explicaria por que razão muitas teorias
incompatíveis podem concordar em muitos pontos delicados em
que, intuitivamente, seria altamente improvável que concordas­
sem por mero acidente.
Assim, o argumento (1) pode ser exposto um pouco mais
corretamente deste modo:
(T ) Aí há algo de verossimilitude e um acordo aciden­
talmente muito improvável entre uma teoria e um fato pode

104
/

ser interpretado como indicador de que a teoria tem uma ve-


rossimilitude (relativamente) alta. Falando de modo geral, um
acordo melhor em pontos improváveis pode ser interpretado
como indicação de maior verossimilitude.
Não penso que se possa dizer muita coisa contra este ar­
gumento, mesmo que não me agrade seu desenvolvimento em
ainda outra teoria de indução. Mas quero tornar inteiramente
claro que o grau de corroboração de uma teoria (que é algo
com a medida da severidade dos testes pelos quais ela passou)
não pode ser interpretado simplesmente como medida de sua
verossimilitude. No máximo, é apenas um indicador (como ex-
pliquei em 1960 e 1963, quando pela primeira vez apresentei
a idéia de verossimilitude; ver por exemplo meu livro Conjec­
turas and Refutations, págs. 234 segs.) de verossimilitude, tal
como esta aparece no tempo t. Para o grau até o qual uma
teoria foi severamente testada apresentei o termo “corrobora­
ção”. Deve ele ser usado principalmente para fins de compara­
ção: por exemplo, E é testada mais severamente do que N. O
grau de corroboração de uma teoria tem sempre um índice
temporal: é o grau no qual uma teoria parece bem testada no
tempo t. Isto não pode ser uma medida de sua verossimilitude,
mas pode ser tido como indicação de como suas verossimilitudes
aparece no tempo t, em comparação com outra teoria. Assim,
o grau de corroboração é um guia para a preferência entre duas
teorias em certa etapa da discussão com respeito à sua então
aparente aproximação da verdade. Mas só nos diz que uma das
teorias oferecidas parece — à luz da discussão — a mais pró­
xima da verdade.

34 — Sumário: Uma Filosofia Crítica de Senso Comum

Desde que tenhamos visto a necessidade de uma filosofia


crítica, surge o problema de um ponto de partida. De onde co­
meçaremos? A questão parece importante, pois há um perigo
aparente de que um engano inicial possa ter as mais graves con­
sequências.
Com referência a esse ponto de partida, as opiniões man­
tidas por muitos filósofos clássicos e contemporâneos e as con­
cepções que aqui tenho mantido, como uma filosofia semi-aca-
rinhada de senso comum diferem radicalmente umas das outras.
Tentarei agora sintetizar as principais diferenças em forma
tabular.

105
Filósofos Anteriores Minha Opinião Crítica
(1) A escolha de nosso pon­ (T ) A escolha de nosso
to de partida é decisivamente ponto de partida não é deci­
importante: devemos cuidar sivamente importante porque
de não cair em erro logo no pode ser criticada e corrigi­
início. da, como tudo.
(2) Nosso ponto de partida (2’) Não há meio de encon­
deve, se possível, ser verda­ trar um ponto de partida tal
deiro e certo. como este.
(3) Ele pode ser encontrado (3’) Como não pode ser en­
na experiência pessoal do ser contrado no subjetivismo nem
(subjetivismo) ou na pura no objetivismo, pode ser me­
descrição do comportamento lhor começar com ambos e
(objetivismo)^68) criticar ambos.
(4) Aceitando este tipo de (4’) É aconselhável começar
subjetivismo ou então este partindo do senso comum,
tipo de objetivismo, os filó­ por mais vagas que possam
sofos aceitaram, sem crítica, ser as opiniões por ele com­
uma forma da teoria de senso preendidas, mas sendo crítico
comum do conhecimento — de tudo que possa ser alega­
teoria que se pode dizer que do em nome do senso co­
forma o ponto mais fraco do mum.
senso comum.
(5) A teoria que os subje- (5’) Pequena reflexão crítica
tivistas aceitaram é que o nos convence de que todo o
conhecimento mais certo que nosso conhecimento é im­
podemos ter é acerca de nós pregnado de teoria, e (qua­
mesmos e de nossas experiên­ se) todo de caráter conjec­
cias observacionais ou per- tural.
ceptuais. (Na ênfase sobre a
certeza de experiências pre-
ceptuais coincidem subjeti-
vistas e objetivistas.)
(6) Há certos fatos sólidos (6’) Visto ser todo conheci­
sobre os quais pode ser edi- mento impregnado de teoria,
ficado o conhecimento, tais todo ele se edifica sobre
como nossas sensações claras areia; mas pode ser melho­
e distintas, ou dados dos sen­ rado cavando-se criticamente
tidos; experiências diretas ou mais fundo e não admitindo
imediatas não podem ser como certos quaisquer “da­
falsas. dos” alegados.
106
0

(7) Isto é um resultado (7’) Aqui é que a teoria


qlaro da teoria de senso de senso comum do conheci­
comum do conhecimento. mento fracassa; ela despreza
o caráter indireto e conjectu­
ral do conhecimento. Mesmo
nossos órgãos de conheci­
mento (para não falar da in­
terpretação de suas transmis­
sões) são impregnados de
teoria e abertos ao erro,
ainda que só ocasionalmente
em organismos sadios.
(8) Mas a teoria de senso (8’) R e c o n h e c e m o s que
comum do conhecimento, mesmo o realismo e sua teo­
que sempre começa com o ria (biológica) do conheci­
uma forma de realismo, ter­ mento são duas conjecturas;
mina sempre no atoleiro do e argumentamos que o pri­
idealismo epistemológico ou meiro é conjectura muito me­
do operacionalismo. lhor do que o idealismo.
(9) O senso comum, tendo (9’) A teoria de senso co­
partido do realismo e termi­ mum do conhecimento é re­
nado no subjetivismo, desa­ provada como autocontradi-
prova a si mesmo. (Pode-se tória; mas isto não afeta a
dizer que isto é parte da opi­ teoria de senso comum do
nião de Kant.) mundo, isto é, o realismo.
Uma tentativa de manter a teoria de senso comum um
todo integral, — realismo mais epistemologia de senso comum
— tende a ruir. Assim, pelo método de ser cético acerca do
ponto de partida que se adota, a teoria de senso comum se
rompe pelo menos em duas partes — realismo e epistemologia
— e esta última pode ser rejeitada e substituída por uma teoria
objetiva que utilize o primeiro.
(Este longo ensaio, até agora não publicado, é uma versão am­
pliada e revista de uma palestra que fiz em meu antigo Semi­
nário em 1970. Pretende ser uma resposta bem completa às
críticas de minhas opiniões sobre ciência. Muito devo a John
Watkins, que leu uma versão primitiva do ensaio e me apontou
sério erro que, felizmente, não se mostrou importante para meu
argumento principal. David Miller, muito generosamente, deu-
-me seu tempo para ler completa e repetidamente o ensaio, eco­
nomizando-me não só três erros similares pelo menos, mas
também incontáveis deslizes menores de assunto e estilo. Por
isto, sou-lhe imensamente devedor.)

107
3 — EPISTEMOLOGIA SEM UM SUJEITO
CONHECEDOR

Seja-me permitido começar com uma confissão. Embora eu


seja um filósofo muito feliz, não tenho, após uma vida inteira
de conferências, ilusões a respeito do que posso transmitir numa
palestra. Por esta razão, não tentarei convencer-vos nesta pa­
lestra. Em vez disso, tentarei desafiar-vos e, se possível, pro­
vocar-vos.

1 — Três testes sobre Epistemologia e o Terceiro Mundo

Eu podería ter desafiado os que ouviram falar de minha


atitude adversa para com Platão e Hegel denominando minha
conferência "Uma teoria do mundo platônico" ou “Uma teoria
do espírito objetivo
O principal tópico desta palestra será o que costumo
chamar, por falta de melhor nome, “o terceiro mundo". Para
explicar esta expressão, indicarei que, sem levar demasiado a
sério as palavras “mundo” ou “universo” podemos distinguir
os três mundos ou universos seguintes: primeiro, o mundo de
objetos físicos ou de estados materiais; segundo, o mundo de
estados de consciência ou de estados mentais, ou talvez de dis­
posições comportamentais para agir; e, terceiro, o mundo de
conteúdos objetivos de pensamento, especialmente de pensamen­
tos científicos e poéticos e de obras de arte.
Assim, o que chamo “terceiro mundo” tem, admitidamente,
muito em comum com a teoria de Formas ou Idéias de Platão
e, portanto, também com o espírito objetivo de Hegel, embora
minha teoria difira radicalmente das de Platão e de Hegel em
alguns sentidos decisivos. Tem ela ainda mais em comum com a
teoria de Bolzano de um universo de proposições em si mesmas
e de verdades em si mesmas, embora difira também da de
Bolzano. Meu terceiro mundo se assemelha mais de perto ao
universo de conteúdos objetivos de pensamento de Frege.
108
0

De minha opinião ou de meu argumento não faz parte que


possamos não enumerar nossos mundos de modos diferentes, ou
não enumerá-los em absoluto. Poderiamos, especialmente, dis­
tinguir mais de três mundos. Minha expressão “terceiro mundo”
é só uma questão de conveniência.
Ao sustentar um terceiro mundo objetivo, espero provocar
os que chamo “filósofos de crença”: aqueles que, como Des­
cartes, Locke, Berkeley, Hume, Kant ou Russell estão interessa­
dos em nossas crenças subjetivas e em sua base de origem.
Contra esses filósofos de crença insisto em que o nosso pro­
blema é encontrar teorias melhores e mais ousadas; e tem im­
portância a preferência crítica, mas não a crença.
Quero confessar, porém, logo de início, que sou um rea­
lista; sugiro, um tanto como um realista ingênuo, que há mundos
materiais e um mundo de estados de consciência, e que estes
dois interagem. E creio que há um terceiro mundo, num sentido
que explicarei mais amplamente.
Entre os habitantes de meu “terceiro mundo” há, mais es­
pecialmente, sistemas teóricos; mas habitantes de igual modo
importantes são problemas e situações de problema. E argu­
mentarei que os moradores mais importantes desse mundo são
argumentos críticos e o que pode ser chamado — em analogia
com um estado material ou um estado de coflsciência — o es­
tado de uma discussão ou o estado de um argumento crítico; e,
naturalmente, os conteúdos de revistas, livros e bibliotecas.
Muitos opositores da tese de um terceiro mundo objetivo
admitirão sem dúvida que há problemas, conjecturas, teorias,
argumentos, revistas e livros. Mas costumam dizer que todas
essas entidades são, essencialmente expressões simbólicas ou
lingüísticas de estados mentais subjetivos, ou talvez de disposi­
ções comportamentais para agir; mais ainda, que essas entida­
des são meios de comunicação — quer dizer, meios simbólicos
ou lingüísticos de evocar, em outros, estados mentais similares
ou disposições comportamentais para agir.
Contra isto, tenho argumentado muitas vezes que não se
pode relegar todas essas entidades e seu conteúdo ao segundo
mundo.
Deixai-me repetir um de meus argumentos padrõesC1)
acerca da existência (mais ou menos) independente do terceiro
mundo.
Considero duas experiências de pensamento:
Experiência (1 ): Todas as nossas máquinas e equipamen­
tos são destruídos, bem como todo o nosso aprendizado subje­
tivo, incluindo nosso conhecimento subjetivo de máquinas e equi­
pamentos e de como usá-los. Mas sobrevivem bibliotecas e nossa
109
capacidade de aprender com elas. Claramente, depois de muito
sofrimento, nosso mundo pode continuar a andar.
Experiência (2 ): Como antes, máquinas e equipamentos
são destruídos, bem como nosso aprendizado subjetivo, incluindo
nosso conhecimento subjetivo de máquinas e equipamentos e de
como usá-los. Mas, desta vez, todas as bibliotecas também foram
destruídas, de modo que nossa capacidade para aprender com
os livros tomou-se inútil.
Se pensardes nessas duas experiências, a realidade, a signi­
ficação e o grau de autonomia do terceiro mundo (bem como
seus efeitos sobre o segundo e o primeiro mundos) talvez possam
tornar-se um pouco mais claros para vós. Pois, no segundo
caso, não haverá reaparecimento de nossa civilização por muitos
milênios.
Quero defender nesta palestra três teses principais, que
se referem todas à epistemologia. Considero a epistemologia
como a teoria do conhecimento científico.
Minha primeira tese é esta: A epistemologia tradicional
tem estudado o conhecimento ou o pensamento num sentido
subjetivo — no sentido comum das expressões “sei” ou “estou
pensando”. Isto, afirmo, tem levado estudiosos de epistemolo­
gia a irrelevâncias: enquanto pretendiam estudar o conhecimento
científico, estudavam de fato algo que não tem significação para
o conhecimento científico. Pois o conhecimento científico sim­
plesmente não é conhecimento no sentido do uso comum da
palavra “sei”. Enquanto o conhecimento no sentido de “sei”
pertence ao que chamo “segundo mundo”, o mundo de sujeitos,
o conhecimento científico pertence ao terceiro mundo, ao mundo
de teorias objetivas, problemas objetivos e argumentos obje­
tivos.
Assim, minha primeira tese é que a epistemologia tradicio­
nal, de Locke, Berkeley, Hume e mesmo de Russell, é sem im­
portância num belo senso estrito da expressão. Corolário desta
tese é que grande parte da epistemologia contemporânea é sem
importância também. Isto inclui a moderna lógica epistêmica,
se admitirmos que ela visa a uma teoria de conhecimento cien­
tífico Contudo, qualquer lógico epistêmico pode imunizar-se por
completo e facilmente de minha crítica, simplesmente deixando
claro que não visa a contribuir para a teoria do conhecimento
científico.
Minha tese envolve a existência de dois sentidos diferentes
de conhecimentos ou de pensamento: (1) conhecimento ou
pensamento no sentido subjetivo, constituído de um estado de
espírito ou de consciência ou de uma disposição para reagir; e
(2) conhecimento ou pensamento num sentido objetivo, consti-
tuido de problemas, teorias e argumentos como tais. Neste sen­
110
t

tido objetivo, o conhecimento é totalmente independente de


qualquer alegação de conhecer que alguém faça; é também inde­
pendente da crença ou disposição de qualquer pessoa para con­
cordar; ou para afirmar, ou para agir. O conhecimento no sen­
tido objetivo é conhecimento sem conhecedor; é conhecimento
sem sujeito que conheça.
Frege escreveu a respeito do pensamento no sentido obje­
tivo: “Por pensamento entendo não o ato subjetivo de pensar,
mas o seu conteúdo objetivo.. . ” (2)
Os dois sentidos do pensamento e suas interessantes inter-
relações podem ser ilustradas pela seguinte citação altamente
convincente de Heyting (1962, p. 195), que diz a respeito do
ato de Brouwer inventar sua teoria do contínuo:
“Se antes houvessem sido inventadas funções recursivas,
ele (Brouwer) talvez não tivesse formado a noção de uma se-
qiiência de escolha, o que, penso, teria sido infeliz”.
Esta citação refere-se de um lado a alguns processos de
pensamento subjetivo de Brouwer e diz que eles poderíam não
ter ocorrido (o que seria infeliz) se houvesse sido diferente a
situação de problema objetiva. Assim Heyting menciona certas
injluências possíveis sobre os processos de pensamento subje­
tivo de Brouwer e também manifesta sua opinião sobre o valor
desses processos de pensamento subjetivo. Ora, é interessante
que influências, como influências, devam ser subjetivas: só a
familiaridade subjetiva de Brouwer com funções recursivas po­
dería ter tido o efeito infeliz de impedí-lo de inventar seqüências
de livre escolha.
Por outro lado, a citação de Heyting aponta para certa
relação objetiva entre os conteúdos objetivos de dois pensa­
mentos ou teorias: Heyting não se refere às condições subjetivas
ou à eletroquímica dos processos cerebrais de Brouwer, mas
a uma situação de problema objetivo em matemática e suas
possíveis influências sobre os atos de pensamento subjetivos de
Brouwer que se empenhavam em resolver esses problemas obje­
tivos. Eu descrevería isto dizendo que a observação de Heyting
é a respeito da lógica situacíonal objetiva ou de terceiro mundo
da invenção de Brouwer, e que a observação de Heyting implica
que a situação de terceiro mundo pode afetar o segundo mundo.
De igual modo, a sugestão de Heyting de que teria sido infeliz
se Brouwer não tivesse inventado seqüências de escolha é um
modo de dizer que o conteúdo objetivo do pensamento de Brou­
wer era valioso e interessante; isto é, valioso e interessante no
modo por que mudava a situação de problema objetivo no
terceiro mundo.
Para colocar simplesmente o assunto, se eu disser que “o
pensamento de Brouwer foi influenciado por Kant” ou mesmo

111
que “Brouwer rejeitou a teoria do espaço de Kant”, então
estarei falando, pelo menos em parte, de atos de pensamento
no sentido subjetivo: a palavra “influência” indica um contexto
de processos de pensamentos ou atos de pensar. Se eu disser,
porém, que “o pensamento de Brouv/er difere vastamente do
de Kant”, então é claríssimo que falo principalmente a respeito
de conteúdos. E, por final, se eu disser que “os pensamentos de
Brouwer são incompatíveis com os de Russell”, então, por
usar um termo lógico tal como “incompatível”, torno claro sem
ambigüidade que estou usando a palavra “pensamento” apenas
no sentido objetivo de Frege, e que estou falando apenas a res­
peito do conteúdo objetivo, ou do conteúdo lógico, de teorias.
Assim como a linguagem comum não tem, infelizmente,
termos separados para “pensamento” no sentido do segundo
mundo e no sentido do terceiro mundo, também não tem termos
separados para os dois sentidos correspondentes de “eu sei” e
de “conhecimento”.
A fim de mostrar que ambos os sentidos existem, mencio­
narei primeiro três exemplos subjetivos ou do segundo mundo:
(1) Sei que você está tentando provocar-me, mas não
serei provocado.
(2) Sei que o último teorema de Fermat não foi provado,
mas creio que será provado um dia.
(3) De “The Oxford English Dictionary” sobre o verbete
“Conhecimento” : conhecimento é um “estado de estar ciente
ou informado”.

Menciônarei agora três exemplos objetivos, ou do terceiro


mundo:
(1) De The Oxford English Dictionary sobre o verbete
“Conhecimento” : conhecimento é um “ramo de aprendizado;
uma ciência; uma arte”.
2) Levando em conta o estado atual do conhecimento ma­
temático, parece possível que o último teorema de Fermat possa
ser indecisível.
(3) Atesto que esta tese é uma contribuição ao conheci­
mento original e significativa.

Estes exemplos bem triviais têm apenas a função de ajudar


a esclarecer o que quero dizer quando falo de “conhecimento no
sentido objetivo”. Minha citação do Oxford English Dictionary
não se deve interpretar como uma concessão à análise de lin­
guagem ou uma tentativa de apaziguar seus adeptos. Não é

112
*

ele citado numa tentativa para provar que o “uso comum” cobre
o “conhecimento” no sentido objetivo de meu terceiro mundo.
De fato, surpreendeu-me encontrar no Oxford English Dictio­
nary exemplos de usos objetivos de “conhecimento”. (Surpre­
endeu-me mais ainda encontrar alguns usos pelo menos par­
cialmente objetivos de “saber” : “distinguir. . . ser conhecedor
de (uma coisa, um lugar, uma pessoa);. . . compreender”. O
fato de poderem ser parcialmente objetivos esses usos emer­
girá do que se seguirá.)(3) De qualquer forma, meus exemplos
não pretendem ser argumentos. Pretendem apenas ser ilus­
trações.
Minha primeira tese, até aqui não discutida mas só ilus­
trada, era a de que a epistemologia tradicional, com sua con­
centração no segundo mundo, ou no conhecimento no sentido
subjetivo, é irrelevante para o estudo do conhecimento cien­
tífico.
Minha segunda tese é que o relevante para a epistemologia
é o estudo de problemas científicos e situações de problema,
de conjecturas científicas (que tomo como simplesmente outra
expressão para hipóteses ou teorias científicas), de discussões
científicas, de argumentos críticos e do papel desempenhado
pela evidência em argumentos; e, portanto, de revistas e livros
científicos, e de experiências e sua avaliação em argumentos
científicos; ou, em suma, que o estudo de um terceiro mundo de
conhecimento objetivo amplamente autônomo é de importância
decisiva para a epistemologia.
Um estudo epistemológico como o descrito em minha se­
gunda tese mostra que os cientistas muitíssimas vezes não ale­
gam que suas conjecturas são verdadeiras, ou que “sabem”
delas no sentido subjetivo de “saber”, ou que acreditam nelas.
Embora em geral não aleguem saber, no desenvolvimento de
seus programas de pesquisas agem com base em suposições
acerca do que é e do que não é frutífero e de que linha de
pesquisa promete mais resultados no terceiro mundo do conhe­
cimento objetivo. Em outras palavras, os cientistas agem com
base numa suposição ou, se preferirdes, numa crença subjetiva
(pois assim podemos chamar a base subjetiva de uma ação)
referente ao que é promissor de crescimento iminente no ter­
ceiro mundo do conhecimento objetivo.
Isto, sugiro, fornece um argumento em favor de minha
primeira tese (da irrelevância de uma epistemologia subjetivista)
e também de minha segunda tese (da relevância de uma episte­
mologia objetivista).
Mas tenho uma terceira tese. É esta. Uma epistemologia
objetivista que estuda o terceiro mundo pode ajudar a lançar

113
imensa soma de luz sobre o segundo mundo de consciência sub­
jetiva, especialmente sobre os processos subjetivos de pensa­
mento dos cientistas; mas o inverso não é verdadeiro.
São estas minhas três teses principais.
Além de minhas três teses principais, ofereço três teses de
apoio.
A primeira delas é que o terceiro mundo é um produto
natural do animal humano, comparável a uma teia de aranha.
A segunda tese de apoio (e, penso, uma tese quase crucial)
é que o terceiro mundo é amplamente autônomo, mesmo embora
constantemente atuemos sobre ele e sejamos atuados por ele:
é autônomo apesar do fato de ser produto nosso e de ter um
forte efeito de retrocarga sobre nós; isto é, sobre nós como
habitantes do segundo mundo e mesmo do primeiro.
A terceira tese de apoio é que através desta interação entre
nós e o terceiro mundo é que o conhecimento objetivo cresce,
e que há estreita analogia entre o crescimento do conhecimento
e o crescimento biológico, isto é, a evolução de plantas e animais.

2 — Uma Abordagem Biológica do Terceiro Mundo

Na presente secção de minha palestra tentarei defender a


existência de um terceiro mundo autônomo por meio de uma
espécie de argumento biológico ou evolucionário.
Um biólogo pode estar interessado no comportamento de
animais; mas pode também estar interessado em algumas das
estruturas não-vivas que atoimais produzem, tais como teias de
aranha, ninhos construídos por vespas ou formigas, tocas de
texugos, barragens feitas por castores, ou caminhos abertos por
animais em florestas.
Distinguirei entre duas categorias principais de problemas
surgidos do estudo dessas estruturas. A primeira categoria con­
siste de problemas concernentes aos métodos usados pelos ani­
mais ou aos modos de se comportarem os animais quando cons­
tróem essas estruturas. A primeira categoria, assim, consiste
de problemas referentes aos atos de produção; às disposições
comportamentais do animal; e às relações entre o animal e o
produto. A segunda categoria de problemas ocupa-se das pró­
prias estruturas. Ocupa-se da química dos materiais usados na
estrutura; de suas propriedades geométricas e físicas; de suas
mudanças evolucionárias, dependentes de condições ambientais
especiais; e de sua dependência dessas condições ambientais ou
de seus ajustamentos a elas. Muito importante é a relação de
retrocarga das propriedades da estrutura com o comportamento
dos animais. Lidando com esta segunda categoria de problema
114
*

— isto é, com as próprias estruturas — teremos também de


encarar as estruturas do ponto de vista de suas funções bioló­
gica?. Assim, alguns problemas da primeira categoria surgirão
admitidamente quando discutirmos problemas da segunda cate­
goria; por exemplo: “Como foi construído o ninho” e “Que
aspectos de sua estrutura são típicos (e portanto presumivel­
mente tradicionais ou herdados) e que aspectos são variantes
ajustadas a condições especiais?”
Como meu último exemplo de um problema mostra pro­
blemas da primeira categoria — isto é, problemas concernentes
à produção da estrutura — serão às vezes sugeridos por pro­
blemas da segunda categoria. Assim deve ser, pois ambas as
categorias de problemas dependem do fato de que existem tais
estruturas, fato que em si mesmo pertence à segunda cate­
goria. Assim, a existência das próprias estruturas pode ser tida
como criadora de ambas as categorias de problemas. Podemos
dizer que a segunda categoria de problemas — problemas li­
gados às próprias estruturas — é mais fundamental, tudo que
ela pressupõe da primeira categoria é o mero fato de que as
estruturas são de algum modo produzidas por alguns animais.
Ora, estas simples considerações podem sem dúvida ser
também aplicadas a produtos da atividade humana, tais como
casas ou ferramentas, e também a obras de arte. Especial­
mente importante para nós é que se aplicam ao que chamamos
“linguagem” e ao que chamamos “ciência”.(4)
A conexão entre estas considerações biológicas e o tópico
de minha presente palestra pode tornar-se clara com a refor­
mulação de minhas três teses principais. Minha primeira tese
pode ser exposta dizendo que, na situação de problemas atuais
em filosofia, poucas coisas são tão importantes como a cons­
ciência da distinção entre as duas categorias de problemas —
problemas de produção de um lado e problemas ligados às
próprias estruturas produzidas, do outro. Minha segunda tese é
que deveriamos compreender que a segunda categoria de pro­
blemas, aqueles concernentes aos produtos em si mesmos, é,
quase a todos os respeitos, mais importantes do que a primeira
categoria, os problemas de produção. Minha terceira tese é a
de que os problemas da segunda categoria são básicos para com­
preender os problemas de produção: contràriamente às pri­
meiras impressões, podemos aprender mais a respeito do com­
portamento de produção estudando os próprios produtos do
que podemos aprender a respeito dos produtos estudando o
comportamento de produção. Esta terceira tese poderá ser des­
crita como anti-behaviorista e anti-psicológica.
Em sua aplicação ao que se pode chamar “conhecimento”
minhas três teses podem ser formuladas de modo seguinte:
115
(1) Devemos constantemente ter consciência da distinção
entre problemas ligados a nossas contribuições pessoais à pro­
dução de conhecimento científico de um lado e problemas liga­
dos à estrutura dos vários produtos, tais como teorias científicas
ou argumentos científicos, do outro lado.
(2) Devemos verificar que o estudo dos produtos é vasta­
mente mais importante do que o estudo da produção, mesmo
para uma compreensão da produção e de seus métodos.
(3) Podemos aprender, acerca da heurística e da meto­
dologia e até a respeito da psicologia de pesquisa, estudando
teorias apresentadas pró e contra elas, mais do que por qual­
quer abordagem direta behavioristica ou psicológica ou socio­
lógica. De modo geral, podemos aprender muito a respeito do
comportamento e da psicologia partindo do estudo dos produtos.

No que se segue, chamarei a abordagem partida do lado


dos produtos — as teorias e os argumentos — a abordagem
“objetiva” ou a abordagem do “terceiro mundo” E chamarei a
abordagem behaviorista, a psicológica e a sociológica do conhe­
cimento científico, a abordagem “subjetiva” ou abordagem do
“segundo mundo”.
A atração da abordagem subjetiva deve-se amplamente ao
fato de ser ela causai. Pois admito que as estruturas objetivas
para as quais reclamo prioridade são causadas por comporta­
mento humano. Sendo causai, a abordagem subjetiva, pode pa­
recer mais científica do que a abordagem objetiva, que, por
assim dizer parte de efeitos e não de causas.
Embora eu admita que as estruturas objetivas são pro­
dutos de comportamento, sustento que o argumento é errôneo.
Em todas as ciências a abordagem comum vem dos efeitos para
as causas. O efeito suscita o problema — c problema a ser ex­
planado, o que se vai explicar — e o cientista tenta resolvê-lo
construindo uma hipótese explicativa.
Minhas três teses principais, com sua ênfase sobre o pro­
duto objetivo, portanto, não são teológicas nem anticientíficas.

3 — A Objetividade e a Autonomia do Terceiro Mundo

Uma das principais razões para a errônea abordagem sub­


jetiva do conhecimento é o sentimento de que um livro nada
é sem um leitor: só se torna um livro se for realmente enten­
dido; sem isto, é apenas papel com sinais pretos.
Esta concepção é errada em muitos modos. Um ninho de
vespa é um ninho de vespa mesmo depois de ter sido abandona­
116
do; até mesmo que nunca mais volte a ser usado por vespas como
ninho. Um ninho de passarinho é um ninho de passarinho, mes­
mo que nunca se haja vivido nele. Do mesmo modo, um livro
continua a ser um livro — um certo tipo de produto — mesmo
que nunca seja lido (como hoje facilmente pode acontecer).
Além disso, um livro, ou até uma biblioteca, não pre­
cisa sequer ter sido escrito por qualquer pessoa: uma série
de livros de logaritmos, por exemplo, pode ser produzida por
um computador. Pode ser a melhor série de livro de loga­
ritmos — pode conter, digamos, logaritmos até cinqüenta lu­
gares decimais. Pode ser enviada a bibliotecas, mas pode ser
achada muito incômoda para o uso; de qualquer modo, anos
podem fluir até que alguém a use; e muitos números dela (que
representam teoremas matemáticos) podem nunca ser olhados
enquanto viverem homens na terra. Contudo, cada um desseis
números contém o que chamo “conhecimento objetivo” ; e a
questão de estar eu capacitado ou não a dar-lhe este nome não
tem qualquer interesse.
O exemplo desses livros de logaritmos pode parecer for­
çado. Mas não é. Eu diria que quase todo livro é assim: contém
conhecimento objetivo, verdadeiro ou falso, útil ou inútil; e se
alguém chegar a lê-lo e a aprender seu conteúdo isto é quase
acidental. Quem lê um livro com entendimento é uma criatura
rara. Mas, mesmo se fosse um ser mais comum, sempre haveria
multidão de incompreensões e de más interpretações; e não é o
ato efetivo e um tanto acidental de evitar essas incompreensões
o que transforma riscos pretos num papel branco em um livro,
ou num exemplo de conhecimento no sentido objetivo. Em vez
disso, é algo mais abstrato. É sua possibilidade ou potenciali­
dade de ser entendido, seu caráter disposicional de ser compre­
endido ou interpretado, ou desentendido ou mal interpretado, o
que faz de uma coisa um livro. E esta potencialidade ou dispo­
sição pode existir sem jamais haver sido efetivada ou realizada.
Para ver isto mais claramente, podemos imaginar, que
depois de haver perecido a raça humana, alguns livros ou bi­
bliotecas possam ser encontrados por alguns sucessores nossos
civilizados não importa que sejam animais terrestres, que se
hajam civilizado ou alguns visitantes do espaço exterior). Esses
livros podem ser decifrados. Podem ser aquelas tábuas de loga­
ritmos nunca antes lidas, só para argumentar. Isto torna inteira­
mente claro que nem sua composição por animais pensantes nem
o fato de não haverem sido realmente lidos ou entendidos é coisa
essencial para fazer de algo um livro, sendo suficiente que
possa ser decifrado.
Assim, admito que a fim de pertencer ao terceiro mundo
do conhecimento objetivo, um livro — em princípio ou virtual­

117
mente — deve ser oapaz de ser apreendido (ou decifrado, ou
entendido, ou “sabido” ) por alguém. Mas não admito mais.
Podemos dizer assim que há um tipo de terceiro mundo
platônico (ou bolzanoesco) de livros em si mesmos, teorias em
si mesmas, problemas em si mesmos, situações de problemas em
si mesmas, argumentos em si mesmos e assim por diante. E
assevero que, mesmo embora este terceiro mundo seja um pro­
duto humano, há muitas teorias em si mesmas, e argumentos
em si mesmos, e situações de problema em si mesmas que nunca
foram produzidos ou entendidos e podem nunca ser produzidos
ou entendidos por homens.
A tese da existência desse terceiro mundo de situações de
problema impressionará a muitos como extremamente metafí­
sica ou dúbia. Mas pode ser defendida apontando-se sua ana­
logia biológica. Por exemplo, tem ela plena analogia no reino
dos ninhos de passarinhos. Há uns anos, ganhei um presente
para meu jardim — uma caixa de ninhos para pássaros. Era
um produto humano, sem dúvida, não um produto de pássaros
— tal como nossa tábua de logaritmos era um produto de com­
putador em vez de um produto humano. Mas, no contexto do
mundo dos pássaros, era parte de uma situação de problema
objetivo mais do que de uma oportunidade objetiva. Por alguns
anos os pássaros nem mesmo pareceram notar a caixa de ninho.
Mas após alguns anos, ela foi cuidadosamente inspeccionada por
algumas cotovias azuis que mesmo começaram a aninhar-se nela,
mas muito depressa a abandonaram. Obviamente havia ali uma
oportunidade aproveitável, ainda que não fosse, parece, parti­
cularmente valiosa. De qualquer modo, estava aí uma situação
de problema. E o problema pode ser resolvido em outros anos
por outros pássaros. Se não for, outra caixa pode mostrar-se
mais adequada. Por outro lado, uma caixa mais adequada pode
ser removida antes de ser usada qualquer vez. A questão da
adequação da caixa é claramente objetiva; e ser a caixa usada
alguma vez é parcialmente acidental. O mesmo se dá com todos
os nichos ecológicos. São potencialidades e podem ser estuda­
dos como tais de modo objetivo, até um ponto independente da
questão de serem essas potencialidades algum dia efetivadas
por qualquer organismo vivo. Um bacteriólogo sabe como pre­
parar tal nicho ecológico para o cultivo de certas bactérias ou
bolores. Pode ele ser perfeitamente adequado a seu fim. Se
alguma vez será usado ou habitado é outra questão.
Grande parte do terceiro mundo objetivo de teorias efe­
tivas e em potencial e de livros e argumentos surge como um
subproduto não pretendido dos livros e argumentos efetiva­
mente produzidos. Podemos dizer também que é um subpro­
duto da linguagem humana. A própria linguagem, como um

118
t

ninho de ave, é um subproduto não pretendido de ações que


se dirigiam a outros alvos.
Como surge uma trilha de animal na selva? Algum animal
pode romper entre as moitas a fim de alcançar um lugar para
beber. Outros animais acham mais fácil usar a mesma trilha.
Assim ela pode ser alargada e melhorada pelo uso. Não é pla­
nejada — é uma consequência não pretendida da necessidade
de movimento fácil ou rápido. É assim que originariamente se
faz um caminho — talvez mesmo por homens — e como podem
surgir a linguagem e quaisquer outras instituições que são úteis;
e eis como podem dever sua existência e desenvolvimento à sua
utilidade. Não são planejadas ou pretendidas e talvez não hou­
vesse necessidade delas antes de começarem a existir. Mas
podem criar uma nova necessidade, ou um novo conjunto de
alvos: a estrutura-alvo de animais ou homens não é “dada”,
mas se desenvolve com o auxílio de certo tipo de mecanismo de
retrocarga, saído de alvos antigos e de resultados que eram
visados ou não.(5)
Deste modo, pode surgir todo um novo universo de poten­
cialidade ou possibilidade: um mundo que é autônomo em larga
extensão.
Exemplo muito óbvio é um jardim. Ainda que possa ter
sido planejado com grande cuidado, via de regra ele sairá em
parte de modos inesperados. Mas mesmo que saia tal como foi
planejado, algumas relações inesperadas entre os objetos plane­
jados podem dar origem a um universo inteiro de possibilidades,
de novos alvos possíveis e de novos problemas.
O mundo da linguagem, das conjecturas, teorias, argu­
mentos — em suma o universo do conhecimento objetivo — é
um dos mais importantes desses universos criados pelo homem,
mas ao mesmo tempo amplamente autônomos.
A idéia de autonomia é central em minha teoria do ter­
ceiro mundo: embora o terceiro mundo seja um produto hu­
mano, uma criação humana, ele cria por sua vez, como o fazem
outros produtos animais, seu próprio domínio de autonomia.
Há exemplos incontáveis. Talvez os mais impressionantes,
e de qualquer modo os que deveriamos conservar em mente
como os nosso padrões de exemplos, podem ser encontrados
na teoria dos números naturais.
Diversamente de Kronecker, concordo com Brouwer em
que a sequência dos números naturais é uma construção humana.
Mas, embora criemos essa sequência, ela por sua vez cria seus
próprios problemas autônomos. A distinção entre números ím­
pares e pares não é criada por nós: é uma conseqüência não
pretendida e inevitável de nossa criação. Os números primos,
119
sem dúvida, são fatos autônomos e objetivos similarmente não
pretendidos; e em seu caso é óbvio que há aí, para nós, muitos
fatos a descobrir: há conjecturas como a de Goldbach. E essas
conjecturas, embora se refiram indiretamente a objetos de cria­
ção nossa, referem-se diretamente a problemas e fatos que de
algum modo emergiram de nossa criação e que não podemos
controlar ou influenciar: são fatos árduos e a verdade a seu
respeito é muitas vezes de árduo descobrimento.
Isto exemplifica o que entendo quando digo que o terceiro
mundo é amplamente autônomo, embora criado por nós.
Mas a autonomia é apenas parcial: os novos problemas
levam a novas criações ou construções — tais como as funções
recursivas, ou as seqüências de livre escolha de Brouwer — e
podem assim acrescentar novos objetos ao terceiro mundo. E
cada um de tais fatos criará novos fatos não pretendidos, novos
problemas inesperados e muitas vezes também novas refu­
tações. (8)
Há também um efeito de retrocarga muito importante de
nossas criações sobre nós mesmos; do terceiro mundo sobre o
segundo mundo. Pois os novos problemas emergentes nos esti­
mulam a novas criações.
O processo pode ser descrito pelo esquema seguinte, um
tanto supersimplificado (ver o Cap. 6 adiante, especialmente a
secção XVIII):
Pj -* TT -> EE -» P2.

Isto é, partindo de algum problema ? , passamos a uma


teoria experimental ou uma solução experimental TT, que pode
ser errônea (parcial ou totalmente); em qualquer caso, será
submetida à eliminação de erros EE, que pode consistir de dis­
cussão crítica ou de testes experimentais; de qualquer forma,
novos problemas ? 2 brotarão de nossa própria atividade cria­
dora; e esses novos problemas não são em geral criados inten­
cionalmente por nós, mas emergem autonomamente do campo
de novas relações que não podemos deixar de trazer à exis­
tência com cada ação, por pouco que o pretendamos fazer.
A autonomia do terceiro mundo e a retrocarga do terceiro
mundo sobre o segundo e mesmo o primeiro estão entre os
fatos mais importantes do crescimento do conhecimento.
Acompanhando nossas considerações biológicas, é fácil ver
que elas são de importância geral para a teoria darwiniana da
evolução: explicam como podemos elevar-nos por nosso próprio
esforço. Ou, em terminologia mais requintada, ajudam a expli­
car a “emersão”.

120
t

4 — Linguagem, Crítica ? o Terceiro Mundo

As mais importantes criações humanas, com os mais impor­


tantes efeitos de retrocarga sobre nós mesmos e especialmente
sobre nossos cérebros, são as funções mais altas da linguagem
humana; mais especialmente, a função descritiva e a função ar-
gumentativa.
As linguagens humanas compartilham com as linguagens
animais as duas funções inferiores da linguagem: (1) a auto-
expressão e (2) a sinalização. A função auto-expressiva ou
função sintomática da linguagem é óbvia: toda linguagem ani­
mal é sintomática do estado de algum organismo. A função sina-
lizadora, ou de liberação, é igualmente óbvia: não denomina­
mos linguístico qualquer sintoma a menos que admitamos que
ele pode liberar uma resposta em outro organismo.
Todas as linguagens animais e todos os fenômenos linguís­
ticos compartilham dessas duas funções inferiores. Mas a lin­
guagem humana tem muitas outras funções. (7) Bastante estra­
nhamente, a mais importante das funções superiores tem sido
negligenciada por quase todos os filósofos. A explicação desse
fato estranho é que as duas funções inferiores sempre estão pre­
sentes quando as superiores estão presentes, de modo que é
sempre possível “explicar” qualquer fenômeno linguístico, em
termos das funções inferiores, como uma “expressão” ou uma
“comunicação”.
As duas funções superiores mais importantes das lingua­
gens humanas são (3) a função descritiva e (4) a função argu-
mentativa.f8)
Com a função descritiva da linguagem humana, emerge a
idéia reguladora de verdade, isto é, de uma descrição que se
ajusta aos fatos.(9)
Outras idéias reguladoras ou avaliadoras são as de con­
teúdo, conteúdo de verdade e verossimilitude.f10)
A função argumentativa da linguagem humana pressupõe
a função descritiva: os argumentos, fundamentalmente, são
acerca de descrições; criticam descrições do ponto de vista das
idéias reguladoras de verdade, de conteúdo e de verossimilitude.
Agora, dois pontos são aqui de toda importância:
(1) Sem o desenvolvimento de uma linguagem descritiva
exossomática — uma linguagem que, como uma ferramenta, se
desenvolve fora do corpo — nenhum objeto pode haver para
nossa discussão crítica. Mas com o desenvolvimento de uma
linguagem descritiva (e mais, de uma linguagem escrita) pode
emergir um terceiro mundo linguístico; e é só deste modo, e só
121
neste terceiro mundo, que se podem desenvolver os problemas
e os padrões da crítica racional.
(2) A este desenvolvimento das funções superiores da lin­
guagem é que devemos nossa humanidade, nossa razão. Pois
nossos poderes de raciocinar nada mais são que poderes de
argumentação crítica.

Este segundo ponto mostra a futilidade de todas as teorias


de linguagem humana que se focalizam em expressão e comu­
nicação. Como veremos, o organismo humano, que muitas vezes
se diz propositado para expressar-se, depende em sua estrutura,
muito amplamente, da emersão das duas funções mais altas da
linguagem.
Com a evolução da função argumentativa da linguagem,
torna-se a crítica o instrumento principal de maior crescimento
(A lógica pode ser considerada como o sistema de investigação
científica, ou órganon, da crítica; ver, atrás, a página final do
Cap. 1.) O mundo autônomo das funções superiores da lingua­
gem torna-se o mundo da ciência. E o esquema, originariamente
válido para o mundo animal assim como para o homem pri­
mitivo,
Pi -* TT - > EE - > P2,

torna-se o esquema do crescimento do conhecimento através da


eliminação de erros por meio da crítica racional sistemática.
Torna-se o esquema da procura da verdade e do conteúdo por
meio da discussão racional. Descreve o modo de nos elevarmos
por nossa própria força. Dá uma descrição racional da emer­
são evolucionária e de nossa autotranscendência por meio da
seleção e da crítica racional.
Para resumir, embora o significado de “conhecimento”,
como o de todas as palavras, não tenha importância, é impor­
tante distinguir entre diversos sentidos da palavra.
(1) Conhecimento subjetivo, que consiste de certas dispo­
sições inatas para agir e de suas modificações adquiridas.
(2) Conhecimento objetivo, por exemplo, conhecimento
científico, que consiste de teorias conjecturais, problemas aber­
tos, situações de problemas, e argumentos.
Todo trabalho em ciência é trabalho dirigido para o cres­
cimento do conhecimento objetivo. Somos trabalhadores que
estamos aumentando o crescimento do conhecimento objetivo
tal como pedreiros trabalham numa catedral.
Nosso trabalho é falível, como todo trabalho humano.
Constantemente cometemos erros e há padrões objetivos que po­
122
*

demos não atingir — padrões de verdade, conteúdo, validez e


outros.
A linguagem, a formulação de problemas, a emersão de
novas situações de problemas, teorias concorrentes, crítica
mútua por meio de argumentação, tudo isto são os meios in­
dispensáveis do crescimento científico. As funções ou dimensões
mais importantes da linguagem humana (que as linguagens ani­
mais não possuem) são a função descritiva e a argumentativa.
O crescimento dessas funções é, naturalmente, obra nossa, em­
bora elas sejam consequências não pretendidas de nossas ações.
Só dentro de uma linguagem assim enriquecida é que a argumen­
tação crítica e o conhecimento no sentido objetivo se tornam
possíveis.
As repercussões, ou os efeitos de retrocarga, da evolução
do terceiro mundo sobre nós mesmos — nossos cérebros, nossas
tradições (se alguém fosse começar onde Adão começou, não
chegaria mais longe do que chegou Adão), nossas disposições
para agir (isto é, nossas crenças),(u ) e nossas ações — difi­
cilmente poderíam ser superestimadas.
Em oposição a tudo isto a epistemologia tradicional se in­
teressa pelo segundo mundo: pelo conhecimento como uma certa
espécie de crença — crença justificável, tal como a crença ba­
seada em percepção. Em conseqüência, este tipo de filosofia da
crença não pode explicar (e nem mesmo tenta explicar) o fenô­
meno decisivo de que os cientistas criticam suas teorias e assim
as matam. Os cientistas tentam eliminar suas teorias falsas,
tentam deixar que elas morram em lugar deles. O crente — seja
animal ou homem — perece com suas crenças falsas.

5 — Observações Históricas

5.1 — Platão e Neoplatonismo


Pelo que sabemos, Platão foi o descobridor do terceiro
mundo. Como observou Whitehead, toda a filosofia ocidental
consiste de anotações a Platão.
Farei apenas três breves observações a respeito de Platão,
duas das quais críticas.
(1) Platão descobriu não só o terceiro mundo, mas parte
da influência ou retrocarga do terceiro mundo sobre nós mesmos;
compreendeu que tentamos apreender as idéias de seu terceiro
mundo; e também que as usamos como explicações.
(2) O terceiro mundo de Platão era divino; era imutável
e, sem dúvida, verdadeiro. Assim, há um grande vácuo entre seu

123
terceiro mundo e o meu; meu terceiro mundo é feito pelo homem
e mutável. Contém não só teorias verdadeiras, mas também
falsas, e especialmente problemas abertos, conjecturas e refu­
tações.
E enquanto Platão, o grande mestre da argumentação dia­
lética, via nisto meramente um caminho que levava ao terceiro
mundo, encaro os argumentos como habitantes dos mais im­
portantes do terceiro mundo; para não falar dos problemas
abertos.
(3) Platão acreditava que o terceiro mundo de Formas e
Idéias nos fornecería explicações finais (isto é explicações por
essência, ver Cap. 3 e Cap. 5). Assim, por exemplo, ele es­
creve: “Penso que se qualquer outra coisa fora da idéia da
beleza absoluta é bela, então é bela pela única razão de que tem
alguma participação na idéia da beleza absoluta. E este tipo de
explicação se aplica a tudo”. (Platão, Fedon, 100 c.).
Esta é uma teoria de explicação final; isto é, de uma expli­
cação cujo explicando não é capaz nem necessita de mais expli­
cação. E é uma teoria de explicação por essências; isto é, por
palavras hipostizadas.
Em conseqüência, Platão abrangeu os objetos do terceiro
mundo como algo semelhante a coisas não materiais ou, talvez,
como estrelas ou constelações — para serem fitadas e intuídas,
embora não susceptíveis de ser tocadas por nossas mentes. Por
isto é que os habitantes do terceiro mundo — as formas ou
idéias — se tornam conceitos de coisas em vez de teorias, ou
argumentos, ou problemas.
Isto teve as consequências de mais longo alcance para a
história da filosofia. Desde Platão até hoje, muitos filósofos
têm sido nominalistas(12) ou, então, o que tenho chamado essen-
cialistas. Estão mais interessados no significado (essencial) de
palavras do que na verdade e falsidade de teorias.
Muitas vezes apresento o problema em forma de uma ta­
bela (ver adiante).
Minha tese é que o lado esquerdo desta tabela não tem
importância, em comparação com o lado direito: o que nos deve
interessar são teorias, verdade, argumento. Se tantos filósofos
e cientistas ainda pensam que conceitos e sistemas conceituais
(e problemas de sua significação ou o significado de palavras)
são comparáveis em importância a teorias e a sistemas teóricos
(e a problemas de sua verdade, ou a verdade de suas asserções),
então .estão ainda sofrendo do erro principal de Platão. Pois os
conceitos são parcialmente meios de formular teorias, e parcial­
mente meios de sintetizar teorias. De qualquer modo, sua signi­
ficação é principalmente instrumental; e eles podem ser sempre
substituídos por outros conceitos.

124
ã

IDÉIAS
isto é
DESIGNAÇÕES ou TERMOS ASSERÇÕES ou PROPOSI-
ou CONCEITOS ÇÕES ou TEORIAS
podem ser formuladas em
PALAVRAS AFIRMAÇÕES
que podem ser
SIGNIFICATIVAS VERDADEIRAS
e seu
SIGNIFICADO VERDADE
pode ser reduzido por meio de
DEFINIÇÕES DERIVAÇÕES
ao de
CONCEITOS INDEFINIDOS PROPOSIÇÕES PRIMITIVAS

A tentativa de estabelecer (em vez de reduzir) por esses meios


seu
SIGNIFICADO VERDADE
leva a um regresso infinito

Conteúdos e objetos de pensamento parecem ter desem­


penhado importante papel no estoicismo e no neplatonismo: Plo-
tino manteve a separação de Platão entre o mundo empírico e
o mundo platônico de Formas ou Idéias. Entretanto, como
Aristóteles,!14) Plotino destruiu a transcendência do mundo de
Platão colocando-o na consciência de Deus.
Plotino criticou Platão por deixar de distinguir entre a
Primeira Hipóstase (Unidade) e a Segunda Hipóstase (a inte­
ligência divina). Contudo, acompanhou Aristóteles ao identifi­
car os atos de pensamento de Deus com seus próprios conteúdos
ou objetos; e elaborou esta concepção tomando as Formas ou
Idéias do mundo inteligível de Platão para serem os estados ima-
nentes de consciência da inteligência divina. ( 15)
125
5.2 — H egel

Hegel era um platônico (ou antes, um neoplatônico) me­


díocre e, como Platão, um heracliteano medíocre. Era um pla­
tônico cujo mundo de idéias estava mudando, envolvendo. As
“Formas” ou “Idéias” de Platão eram objetivas e nada tinham
a ver com idéias conscientes numa mente subjetiva; habitavam
num mundo divino, imutável, celestial (superlunar no sentido de
Aristóteles). Em contraste, as Idéias de Hegel, como as de Plo-
tino, eram fenômenos conscientes: pensamentos que pensavam
a si mesmos e habitavam em certa espécie de consciência, certa
espécie de mente ou “Espírito”; e juntamente com esse “Es­
pírito” mudavam ou evolviam. O fato de serem sujeitos à mu­
dança o “Espírito Objetivo” e o “Espírito Absoluto” de Hegel
é o único ponto em que seus Espíritos são mais semelhantes a
meu “terceiro mundo” do que o mundo de Idéias de Platão
(ou o mundo de “sentenças em si mesmas” de Bolzano).
As diferenças mais importantes entre o “Espírito Objetivo”
e o “Espírito Absoluto” de Hegel e o meu “terceiro mundo” são
estas:
(1) De acordo com Hegel, embora o Espírito Objetivo
(compreendendo a criação artística) e o Espírito Absoluto
(compreendendo a filosofia) consistam ambos de produções
humanas, o homem não é criador. É o Espírito Objetivo hiposta-
tizado, é a divina autoconsciência do Universo o que move o
homem: “os indivíduos.. . são instrumentos”, instrumentos do
Espírito da época e seu trabalho, seu “ofício substancial”, é
“preparado e determinado independentemente deles”. (Comp.
Hegel, 1830, parágrafo 551). Assim, o que chamei autonomia
do terceiro mundo e seu efeito de retrocarga tornam-se onipo­
tentes com Hegel: é somente um dos aspectos de seu sistema
em que sua formação teológica se manifesta. Contra isto, afirmo
que o elemento criativo individual, a relação de dar-e-tomar
entre um homem e sua obra, é da maior importância. Em Hegel
isto degenera na doutrina de que o grande homem é algo como
um agente em que se expressa o Espírito da Época.
(2) Apesar de certa similaridade superficial entre a dia­
lética de Hegel e meu esquema evolucionário.
Pi -» TT -» EE -» P2
há uma diferença fundamental. Meu esquema funciona através
da eliminação de erros, e no nível científico através da crítica
consciente sob a idéia reguladora da procura da verdade.
A crítica, sem dúvida, consiste na procura de contradições
e em sua eliminação: a dificuldade criada pela demanda de sua
126
*

eliminação constitui o novo problema (P2). Assim, a eliminação


do erro leva ao crescimento objetivo de nosso conhecimento —
de conhecimento no sentido objetivo. Leva ao crescimento de
verossimilitude objetiva: torna possível a aproximação da ver­
dade (absoluta).
Hegel, por outro lado, é um relativista.(16) Não vê nossa
tarefa como uma procura de contradições com o fito de elimi­
ná-las, pois pensa que as contradições são tão boas como (ou
melhores do que) os sistemas teóricos não-contraditórios: pro­
porcionam o mecanismo pelo qual o Espírito se propulsiona.
Assim, a crítica racional não desempenha qualquer papel no
automatismo hegeliano, tal como a criatividade humana. ( 16)
(3) Enquanto Platão deixa suas idéias hipostatizadas habi­
tarem em algum céu divino, Hegel personaliza seu Espírito
numa consciência divina; nela as idéias habitam, como as idéias
humanas habitam numa consciência humana. Sua doutrina é,
inteiramente, a de que o Espírito é não só consciente, mas um
ser. Contrariamente a isto, meu terceiro mundo não tem qual­
quer similaridade com a consciência humana; e embora seus
primeiros habitantes sejam produtos da consciência humana, são
totalmente diferentes de idéias conscientes ou de pensamentos
no septido subjetivo.

5.3 — Bolzano e Frege

As sentenças em si mesmas e as verdades em si mesmas


de Bolzano são, claramente, habitantes de meu terceiro mundo.
Mas ele estava longe de ser claro a respeito de sua relação com
o resto do mundo. ( 18)
A dificuldade central de Bolzano é, de certo modo, o que
tentei solucionar, comparando a situação e a autonomia do ter­
ceiro mundo com as de produtos animais e apontando como ele
tem origem nas funções superiores da linguagem humana.
Quanto a Frege, não pode haver dúvida a respeito de sua
clara distinção entre os atos subjetivos de pensamentos, ou pen­
samento no sentido subjetivo, e pensamento objetivo, ou con­
teúdo de pensamento. ( 19)
Admitidamente, seu interesse pelas cláusulas subordinadas
de uma sentença e pela fala indireta fazem dele o pai da mo­
derna lógica epistêmica.(20) Mas creio que ele não é de modo
algum afetado pela crítica da lógica epistêmica que vou apre­
sentar (ver secção 7, adiante): até onde posso ver, ele não
estava pensando nesses contextos de epistemologia no sentido
de uma teoria de conhecimento científico.

127
5 .4 — E m p ir is m o

O empirismo — digamos, de Locke, Berkeley e Hume —


tem de ser compreendido em seu cenário histórico: seu prin­
cipal problema era, simplesmente, religião versus irreligião; ou,
mais precisamente, a justificação racional, ou a justificabilidade,
da cristandade em comparação com o conhecimento científico.
Isto explica por que o conhecimento é completamente en­
carado como uma espécie de crença — crença justificada por
evidência, especialmente por evidência perceptual, pela evi­
dência de nossos, sentidos.
Embora suas posições com respeito à relação de ciência
e religião difiram amplamente, Locke, Berkeley (21) e Hume
concordam essencialmente na demanda (que Hume às vezes
julga um ideal inatingível) de que rejeitemos todas as pro­
posições — e especialmente as proposições com significado
existencial — para as quais a evidência é insuficiente, só acei­
tando aquelas proposições para as quais temos evidência sufi­
ciente: as que podem ser provadas, ou verificadas, pela evidên­
cia de nossos sentidos.
Esta posição pode ser analisada de vários modos. Análise
um tanto abrangente seria a seguinte cadeia de equações ou
equivalências, muitas das quais podem ser apoiadas por textos
dos empíricos ingleses e mesmo de Bertrand Russell.(22)
p é verificado ou demonstrado por experiência dos sen­
tidos = há razão suficiente ou justificação para crermos em
p = cremos ou julgamos ou asseveramos ou assentimos ou sa­
bemos que p é verdadeiro = p é verdadeiro = p.
Coisa notável a respeito desta posição, que junta a evi­
dência, ou prova, e a asserção a ser provada, é que quem quer
que a sustente deveria rejeitar a lei do centro excluído. Pois é
óbvio que pode surgir a situação (de fato, seria praticamente a
situação normal) de que nem p nem não-p possam ser ple­
namente sustentados, ou demonstrados, pela evidência dispo­
nível. Contudo, parece que isto não foi notado por ninguém
antes de Brouwer.
Esta falha em rejeitar a lei do centro excluído é particular­
mente impressionante em Berkeley; pois se
esse = percipi
então a verdade de qualquer sentença a respeito da realidade
só pode ser estabelecida por sentenças de percepção. Contudo,
Berkeley, muitíssimo como Descartes, sugere em seus Diálo-
gos(23) que devemos rejeitar p se “não houver razão para crer
nele”. A ausência de tais razões pode, entretanto, ser compa­
tível com a ausência de razões para crer em não-p.

128
t

6 — Apreciação e Crítica da Epistemologia de Brouwer

Na presente secção, desejo render homenagem a L.E.J.


Brouwer. (24)
Seria presunçoso de minha parte tentar louvar e ainda mais
presunçoso tentar criticar Brouwer como matemático. Mas pode-
-me ser permissível tentar criticar sua epistemologia e sua filo­
sofia de matemática intuicionista. Se ouso fazê-lo, é com a espe­
rança de dar uma contribuição, ainda que escassa, ao esclare­
cimento e ao maior desenvolvimento das idéias de Brouwer.
Em sua Preleção Inaugural (1912) Brouwer parte de
Kant. Diz ele que a filosofia intuicionista da geometria de Kant
— sua doutrina da pura intuição do espaço — tem de ser aban­
donada à luz da geometria não-euclideana. Mas, diz Brouwer,
não precisamos disso, pois podemos aritmetizar a geometria:
podemos ficar francamente a favor da teoria da aritmética de
Kant e de sua doutrina de que a aritmética se baseia na pura
intuição do tempo.
Sinto que esta posição de Brouwer não pode mais ser sus­
tentada; pois se dissermos que a teoria do espaço de Kant é
destruída pela geometria não-euclideana então estamos obrigados
a dizer que sua teoria do tempo é destruída pela relatividade
especial. Pois Kant diz explicitamente que só há um tempo e que
a idéia intuitiva de simultaneidade (absoluta) é decisiva para ele.
Poder-se-ia argumentar — em linhas um tanto paralelas
a uma observação de Heyting — que Brouwer podería não ter
desenvolvido suas idéias epistemológicas e filosóficas a respeito
da matemática intuicionista se, na época, tivesse conhecido a
analogia entre a relativização do tempo, de Einstein, e a geo­
metria não-euclideana. Parafraseando Heyting, isto teria sido
infeliz.
Contudo, é improvável que Brouwer ficasse super-impres-
sionado com a relatividade especial. Ele poderia ter deixado
de citar Kant como um precursor de seu intuicionismo. Mas
poderia ter conservado sua própria teoria de um tempo pessoal
um tempo de nossa própria experiência íntima e imediata. (Ver
Brouwer, 1949). E isto de modo algum seria afetado pela rela­
tividade, ainda que a teoria de Kant fosse afetada.
Assim, não precisamos tratar Brouwer como um kantiano.
Mas não podemos desprendê-lo de Kant muito facilmente. Pois
a idéia de intuição de Brouwer e seu uso do termo “intuição”
não podem ser compreendidos plenamente sem analisar sua for­
mação kantiana.
Para Kant, a intuição é uma fonte de conhecimento; e a
intuição “pura” (“a pura intuição de espaço e tempo”) é uma
129
fonte infalível de conhecimento: dela brota certeza absoluta.
Isto é muito importante para a compreensão de Brouwer, que
claramente adota de Kant esta doutrina epistemológica.
É uma doutrina que tem uma história. Kant tirou-a de Plo-
tino, Santo Tomás, Descartes e outros. Originariamente, intuição
significava, evidentemente, percepção: era o que vemos, ou per­
cebemos, se olhamos, ou dirigimos a vista para algum objeto.
Mas, pelo menos de Plotino em diante, desenvolveu-se um con­
traste entre intuição, de um lado, e pensamento discursivo, do
outro. Intuição é o modo de Deus conhecer tudo de um relance,
num relâmpago, infinitamente. Pensamento discursivo é o modo
humano: como num discurso, argumentamos passo a passo, o
que toma tempo.
Ora, Kant sustentava (contra Descartes) a doutrina de que
não possuímos uma faculdade de intuição intelectual e que, por
esta razão, nosso intelecto — nossos conceitos — permanece
vazio ou analítico, a menos realmente que esses conceitos sejam
aplicados a manter o que nos é dado pelos nossos sentidos (in­
tuição dos sentidos), ou a menos que sejam ‘‘conceitos cons­
truídos em nossa pura intuição de espaço e tempo”. (2T) Só deste
modo podemos obter conhecimento sintético a priori: nosso in­
telecto é essencialmente discursivo; é forçado a proceder por
lógica, que é vazia — “analítica”.
De acordo com Kant, a intuição dos sentidos pressupõe
intuição pura: nosso sentidos não podem fazer seu trabalho sem
ordenar suas percepções na estrutura de espaço e tempo. Assim,
o espaço e o tempo são anteriores a todas as intuições dos sen­
tidos; e as teorias de espaço e tempo — geometria e aritmética
— são válidas a priori. A fonte de sua validade a priori é a
faculdade humana de intuição pura, que se limita estritamente a
este campo e que é estritamente distinta do modo intelectual ou
discursivo de pensar.
Kant sustentava a doutrina de que os axiomas de matemá­
tica eram baseados em intuição pura (Kant, 1778, pgs. 760 s.):
podiam ser “vistos” ou “percebidos” como verdadeiros, num
modo não-sensitivo de “ver” ou “perceber”. Além disso, a in­
tuição pura estava envolvida em cada passo de cada prova em
geometria (e na matemática em geral) :(28) para seguir uma
prova precisamos olhar para uma figura (traçada). Este “olhar”
não é intuição dos sentidos, mas intuição pura, como o mostra
o fato de que a figura podería muitas vezes ser convincente ainda
que traçada de maneira muito tosca e o fato de que o desenho
de um triângulo poderia representar para nós, em um desenho,
uma infinidade de variantes possíveis — triângulos de todas as
formas e tamanhos.
130
ê

Considerações análogas servem para a aritmética, que, de


acordo com Kant, é baseada na contagem; processo que por sua
vez é baseado essencialmente na intuição pura do tempo.
Ora, esta teoria das fontes de conhecimento matemático
sofre, em sua forma kantiana, de severa dificuldade. Ainda que
admitamos tudo quanto Kant diz, permanecemos intrigados.
Pois a geometria de Euclides, quer use ou não intuição pura,
certamente faz uso de argumentação intelectual, de dedução
lógica. É impossível negar que a matemática use o pensamento
discursivo. O discurso de Euclides move-se através de propo­
sições e de livros inteiros, passo a passo. E ainda que admita­
mos, para fins de argumentação, a necessidade de intuição pura
em cada um dos passos sem exceção (e é difícil, para nós, mo­
dernos, fazer tal admissão), o processo passo a passo, discur­
sivo e lógico das derivações de Euclides é tão inconfundível,
e era tão geralmente conhecido e imitado (Spinoza, Newton),
que é difícil crer que Kant pudesse ignorá-lo. Mas sua posição
lhe era imposta (1) pela estrutura da Crítica na qual a “Estética
Transcendental” precede a “Lógica Transcendental”, e (2) por
sua distinção nítida (eu sugeriría distinção ínsustentavelmente
nítida) entre pensamento intuitivo e pensamento discursivo.
Desse modo, fica-se quase inclinado a dizer que não há- sim­
plesmente uma lacuna aqui onde Kant exclui da geometria e
da aritmética os argumentos discursivos, mas uma contradição.
Que assim não é foi mostrado por Brouwer, que preencheu
a lacuna. Estou aludindo à teoria de Brouwer da relação entre
a matemática de um lado e a linguagem e a lógica do outro.
Brouwer resolveu o problema fazendo nítida distinção entre
a matemática como tal e sua expressão e comunicação linguís­
tica. Via ele a matemática em si mesma como uma atividade
extra-lingüística, essencialmente uma atividade de construção
mental com base em nossa intuição pura do tempo. Por meio
dessa construção criamos em nossa intuição, em nossa mente,
os objetos de matemática que mais tarde — após sua criação
— podemos tentar descrever e transmitir a outros. Assim, a
descrição linguística e o argumento discursivo com sua lógica
vêm depois da atividade essencialmente matemática sempre vêm
depois de ter sido construido um objeto de matemática — tal
como uma prova.
Isto resolve o problema que descobrimos na Critica de
Kant. O que à primeira vista parece ser uma contradição em
Kant é removido, de modo muito engenhoso, pela doutrina de
que devemos distinguir nitidamente entre dois níveis, um nível
intuitivo e mental e essencial para o pensamento matemático, o
outro discursivo e linguístico e essencial para a comunicação
somente.
131
Como toda grande teoria, esta teoria de Brouwer mostra
seu valor por sua fertilidade. Resolveu, na filosofia da mate­
mática, três grandes conjuntos de problemas de um só golpe:
(1) Problemas epistemológicos concernentes à fonte de
certeza matemática; à natureza da evidência matemática; e à na­
tureza da prova matemática. Esses problemas foram resolvidos,
respectivamente, pela doutrina da intuição como fonte de co­
nhecimento; pela doutrina de que podemos ver intuitivamente
os objetos matemáticos que construímos; e pela doutrina de
que uma prova matemática é uma construção seqüencial, uma
construção de construções.
(2) Problemas ontológicos concernentes à natureza dos
objetos matemáticos e à natureza de seu modo de existência.
Esses problemas foram resolvidos por uma doutrina que tinha
dois lados: de um lado havia construtivismo e do outro havia
um mentalismo que situava todos os objetos matemáticos na­
quilo que chamo “segundo mundo”. Os objetos matemáticos
eram construções da mente humana e existiam exclusivamente
como construções na mente humana. Sua objetividade — seu
caráter como objetos e a objetividade de sua existência — re­
pousava inteiramente na possibilidade de repetir à vontade sua
construção.
Assim Brouwer, em sua preleção inaugural, pôde tornar
implícito que, para o intuicionista, os objetos matemáticos exis­
tiam na mente humana, ao passo que, para o formalista, exis­
tiam “no papel”.(29)
(3) Problemas metodológicos concernentes a provas ma­
temáticas.
Podemos bem ingenuamente distinguir dois meios princi­
pais de ter interesse pela matemática. Um matemático pode estar
interessado principalmente em teoremas — na verdade ou falsi­
dade de proposições matemáticas. Outro matemático pode estar
interessado em provas, principalmente: em questões de exis­
tências de provas de um ou outro teorema, e no caráter das
provas. Se o primeiro interesse for preponderante (o que parece
ser, por exemplo, o caso de Polya), então ele se liga habitual­
mente com um interesse pela descoberta de “fatos” matemá­
ticos e, assim, com uma heurística matemática platonizante. Se
prepondera o segundo tipo de interesse, então as provas não
são meramente meios de ter segurança de teoremas acerca de
objetos matemáticos, mas são, elas próprias, objetos matemá­
ticos. Este, parece-me, foi o caso de Brouwer: aquelas cons­
truções que eram provas não só estavam criando e estabelecendo
objetos matemáticos; eram elas próprias, ao mesmo tempo, obje­

132
tos matemáticos — talvez mesmo os mais importantes. Assim,
afirmar um teorema era afirmar a existência de uma prova para
ele, e negá-lo era afirmar a existência de uma refutação, isto é,
uma prova de seu absurdo. Isto leva imediatamente à rejeição
por Brouwer, da lei do centro excluído, à sua rejeição de provas
indiretas e à demanda de que a existência só pode ser provada
pela construção efetiva — a feitura visível, por assim dizer, do
objeto matemático em questão.
Leva também à rejeição, por Brouwer, do “platonismo”,
que podemos entender como a doutrina de que os objetos ma­
temáticos têm o que chamo um modo “autônomo” de exis­
tência: podem existir sem ter sido construídos por nós e, assim,
sem ter sido provado que existem.
Até aqui tentei compreender a epistemologia de Brouwer,
principalmente conjecturando que ela brota de uma tentativa
para resolver uma dificuldade na filosofia da matemática de
Kant. Passo agora ao que anunciei no título desta secção — a
uma apreciação e crítica da epistemologia de Brouwer.
Do ponto de vista do presente trabalho, uma das grandes
realizações de Brouwer é ter visto que a matemática — e talvez,
posso aduzir, o terceiro mundo — é criação do homem.
Esta idéia é tão radicalmente antiplatônica que se com­
preende não ter Brouwer visto que ela pode ser combinada com
uma espécie de platonismo. Refiro-me à doutrina da autonomia
(parcial) da matemática, e do terceiro mundo, como foi esbo­
çado na secção 3, atrás.
Outra grande realização de Brouwer, de um ponto de vista
filosófico, foi seu antiformalismo: seu reconhecimento de que
objetos matemáticos devem existir antes que possamos falar a
respeito deles.
Permita-se-me, porém, passar a uma crítica da solução
dada por Brouwer aos três conjuntos principais de problemas
da filosofia da matemática já discutidos na presente secção.
(1’) Problemas epistemológicos: Intuição em geral e a
teoria do tempo em particular.
Não proponho mudar o nome “Intuicionismo”. Como o
nome sem dúvida será mantido, o mais importante é abandonar
a filosofia errônea da intuição como fonte infalível de conhe­
cimento.
Não há fontes autorizadas de conhecimento e nenhuma
“fonte” é particularmente digna de fé.(30) Tudo é bem-vindo
como fonte de inspiração, inclusive a “intuição” ; especialmente
se nos sugerir problemas novos. Mas nada é seguro e somos
todos falíveis.

133
Além disso, a nítida distinção de Kant entre intuição e
pensamento discursivo não pode ser sustentada. A “intuição”,
seja o que possa ser, é amplamente o produto de nosso desen­
volvimento cultural e de nossos esforços em pensamento dis­
cursivo. A idéia de Kant de um tipo padrão de intuição pura
compartilhado por todos nós (talvez não por animais, apesar
de um equipamento perceptual similar) dificilmente pode ser
aceita. Pois, após nos havermos adestrado em pensamento dis­
cursivo, nossa apreensão intuitiva torna-se extremamente dife­
rente do que era antes.
Tudo isto se aplica à nossa intuição do tempo. Pessoal­
mente, acho convincente o relato de Benjamin Lee Whorf sobre
os índios hopi e sua intuição do tempo extremamente diferente.
Mesmo, porém, que este relato seja incorreto (o que julgo im­
provável), ele .mostra possibilidades que nem Kant nem Brouwer
jamais consideraram. Estando Whorf certo, então nossa apreen­
são intuitiva do tempo — o modo pelo qual “vemos” relações
temporais — dependería parcialmente de nossa linguagem e das
teorias e mitos nela incorporados: nossa intuição européia do
tempo deveria muito às origens gregas de nossa civilização, com
sua ênfase sobre o pensamento discursivo.
De qualquer modo, nossa intuição do tempo pode mudar
com nossas teorias mutáveis. As intuições de Newton, Kant e
Laplace diferem das de Einstein; e o papel do tempo na física
de partículas difere do papel na física de massa contínua, espe­
cialmente a óptica. Enquanto a física de partículas sugere um
instante inestendido, como uma navalha, um “punctum tempo-
ris” que separa o passado do futuro, e assim uma coordenada
de tempo que consiste de (uma série contínua de) instantes
inestendidos, e um mundo cujo “estado” pode ser dado para
qualquer desses instantes inestendidos, a situação em óptica é
muito diferente. Assim como há em óptica grades especialmente
estendidas cujas partes cooperam sobre considerável distância
de espaço, assim há eventos temporalmente estendidos (ondas
possuidoras de frequências) cujas partes cooperam sobre consi­
derável distância de tempo. Portanto, devido à óptica, não pode
haver em física um estado do mundo num instante de tempo.
Este argumento deveria fazer, e faz, grande diferença para nossa
intuição: o que se tem chamado o presente especioso da psico­
logia não é especioso nem confinado à psicologia, mas é ge­
nuíno e já ocorre na física.(32)
Assim, não só a doutrina geral da intuição como fonte
infalível de conhecimento é um mito, como nossa intuição do
tempo, mais especialmente, é tão sujeita a crítica e correção
com o é, de acordo com a própria admissão de Brouwer, nossa
intuição do espaço.

134
O principal ponto aqui, devo-o à filosofia da matemática
de Lakato. É a de que a matemática (e não só as ciências na­
turais) cresce através da crítica de suposições e de provas in­
formais ousadas. Isto pressupõe a formulação linguística dessas
suposições e prova, assim, sua posição no terceiro mundo. A
linguagem, a princípio mero meio de comunicar descrições de
objetos prelingüísticos, torna-se por isso uma parte essencial do
empreendimento científico, mesmo em matemática, o qual por
sua vez se toma parte do terceiro mundo. E há camadas, ou
níveis, na linguagem (sejam ou não formalizados numa hierar­
quia de metalinguagens).
Fosse correta a epistemologia intuicionista, a competência
matemática não seria problema. (Fosse correta a teoria de
Kant, não seria ela compreensível, porque tivemos — ou mais
precisamente tiveram Platão e sua escola — de esperar tanto
tempo por Euclides.(33) ) Contudo, é um problema, visto que
matemáticos intuicionistas altamente competentes podem discor­
dar sobre alguns pontos difíceis. (34) Não é necessário inda­
garmos que lado está certo no desacordo. É suficiente indicar
que, desde que uma construção intuicionista pode ser criticada,
o problema suscitado só pode ser resolvido pelo uso de lingua­
gem argumentativa num modo essencial. Sem dúvida, o uso
crítico essencial da linguagem não nos obriga ao uso de argu­
mentos banidos por matemáticos intuicionistas (embora aqui
haja um problema, como será mostrado). Meu ponto, no mo­
mento, é apenas este: desde que possa ser questionada a admis­
sibilidade de uma construção matemática intuicionista proposta
— e sem dúvida pode ser questionada — a linguagem se torna
mais que um mero meio de comunicação que em princípio se
poderia dispensar: torna-se, em vez disso, o meio indispensável
de discussão crítica. Assim, não é mais somente a construção
intuicionista “que é objetiva no sentido de ser irrelevante qual
o sujeito que faz a construção” ;(35) antes, a objetividade,
mesmo da matemática intuicionista, repousa, tal como a de toda
ciência, na criticabilidade de seus argumentos. Mas isto signi­
fica que a linguagem se torna indispensável como o meio de ar­
gumentação, de discussão crítica. (36)
Por esta razão é que encaro como errôneas a epistemolo­
gia subjetivista de Brouwer e a justificação filosófica de sua
matemática intuicionista. Há um dar-e-tomar entre construção,
crítica, “intuição” e mesmo tradição que ele deixa de considerar.
Estou, porém, disposto a admitir que mesmo em sua visão
errônea da posição da linguagem Brouwer estava parcialmente
certo. Embora a objetividade de toda ciência, inclusive a mate­
mática, esteja inseparavelmente ligada à sua criticabilidade,
e portanto à sua formulação lingüística, Brouwer estava certo
135
ao reagir fortemente contra a tese de que matemática nada
mais é do que um jogo de linguagem formal ou, em outras
palavras, de que não há coisas tais como objetos matemáticos
extralingüísticos; isto é, pensamentos (ou a meu ver, mais pre-
cisamente, conteúdos de pensamento). Como ele insistiu, fala-se
em! matemática acerca desses objetos; e neste sentido a lingua­
gem matemática é secundária a esses objetos. Mas isto não sig­
nifica que possamos construir matemática sem linguagem: não
pode haver construção sem constante controle crítico, nem crí­
tica sem pôr nossas construções em forma lingüística e tratá-las
como objetos do terceiro mundo. Embora o terceiro mundo não
seja idêntico ao mundo de formas linguísticas, ele surge junta­
mente com a linguagem argumentativa: é um subproduto da
linguagem. Isto explica por que, desde que nossas construções se
tomem problemáticas, sistematizadas e axiomatizadas, a lingua­
gem pode tornar-se também problemática, e por que a forma­
lização pode tomar-se um ramo da construção matemática. Isto,
penso, é o que quer dizer o Professor Myhill quando diz que
nossas formalizações corrigem nossas intuições, enquanto
nossas intuições dão forma a nosSas formalizações”. (37) O que
faz particularmente digna de citação esta observação é que,
tendo sido feita em conexão com a prova intuicionista brouwe-
riana, ela parece, de fato, fornecer uma correção da epistemo-
logia brouweriana.
(2’) Problemas ontológicos: Várias vezes foi visto pelo
próprio Brouwer que os objetos de matemática devem sua exis­
tência parcialmente à linguagem. Assim, escrevia ele em 1924:
“A matemática é baseada em (“Der Mathematik liegt zugrunãe”)
uma sequência ilimitada de sinais ou símbolos (“Zeichen”) ou
de seqüências finitas de símbolos.. ,” (â8) Não é preciso ler isto
como uma admissão da prioridade da linguagem; sem dúvida o
termo crucial é “seqüência” e a idéia de sequência se baseia na
intuição do tempo e numa construção baseada nessa intuição.
Contudo, isso mostra que Brouwer estava ciente de que sinais ou
símbolos eram necessários para efetuar a construção. Minha
própria opinião é a de que o pensamento discursivo (isto é, se­
quências de argumentos linguísticos) tem a mais forte influência
sobre nossa consciência do tempo e sobre o desenvolvimento de
nossa intuição de uma ordem seqüêncial. Isto não se choca, de
modo algum, com o construtivismo de Brouwer, mas choca-se
com seu subjetivismo e mentalismo. Pois os objetos de mate­
mática podem agora tornar-se cidadãos de um terceiro mundo
objetivo: embora originariamente construídos por nós — o ter­
ceiro mundo origina-se como produto nosso — os conteúdos de
pensamento levam consigo suas próprias consequências não pre­
136
*

tendidas. A série de números naturais que construímos cria nú­


meros primos — que descobrimos — e estes por sua vez criam
problemas com que nunca sonhamos. 2í£y como se torna possível
a descoberta matemática. Além disso, os mais importantes obje­
tos matemáticos que descobrimos — os cidadãos mais férteis do
terceiro mundo — são problemas e novos tipos de argumentos
críticos. Surge assim uma nova espécie de existência matemá­
tica; a existência de problemas; e uma nova espécie de intuição;
a intuição que nos faz ver problemas e nos faz compreender pro­
blemas antes de resolvê-los. (Pense-se no próprio problema cen­
tral da série contínua, de Brouwer.)
O modo por que a linguagem e o pensamento discursivo
interagem com construções intuitivas mais imediatas (interação
que, diga-se de passagem, destrói aquele ideal de certeza evi­
denciai absoluta que se supunha a construção realizasse) foi
descrito por Heyting da maneira mais esclarecedora. Posso
talvez citar o começo de um texto seu do qual extraí não só
estímulo como também encorajamento: “Tem-se provado não
ser intuitivamente claro o que é intuitivamente claro em mate­
mática. É mesmo possível construir uma escala descendente de
graus de evidência. O grau mais alto é o de asserções como
2 + 2 = 4. 1002 + 2 = 1004 pertence a um grau mais baixo;
mostramos isto, não por uma contagem efetiva, mas por um
raciocínio que mostra que em geral (n + 2) + 2 = « + 4. . .
(Asserções como esta) já têm o caráter de uma implicação: “Se
um número natural n é construído, então podemos efetuar a
construção expressa por (n + 2) + 2 = n + 4”.(39) Em nosso
presente contexto, os “graus de evidência” de Heyting são de
interesse secundário. De primeira importância é sua análise be­
lamente simples e clara da inevitável ação recíproca entre a
construção intuitiva e a formulação linguística, que necessaria­
mente nos envolve em raciocínio discursivo — e, portanto, ló­
gico. Esse ponto é acentuado por Heyting, quando continua:
“Este nível é formalizado no cálculo “das variáveis livres”.
Uma última palavra pode ser dita a respeito de Brouwer
e do platonismo matemático. A autonomia do terceiro mundo é
inegável e, ante ela, deve ser abandonada a equação de Brouwer
“esse ~ construi”; pelo menos para problemas. Isto pode levar-
-nos a olhar novamente o problema lógico do intuicionismo:
sem abandonar os padrâes intuicionistas de prova, pode ser im­
portante para a discussão crítica racional distinguir nitidamente
entre uma tese e a evidência para ela. Mas essa distinção é des­
truída pela lógica intuicionista que resulta da fusão da evidência,
ou prova, com a asserção a ser provada. (4Q)

137
(3’) Problemas metodológicos: O motivo original da ma­
temática intuicionista de Brouwer era a segurança: a procura
de métodos mais seguros de prova; realmente, de métodos infa­
líveis. Ora, quando alguém quer provas mais seguras, deve ser
mais severo com respeito à admissibilidade de um argumento de­
monstrativo: deve usar meios mais fracos, suposições mais
fracas. Brouwer confinou-se ao uso de meios lógicos que eram
mais fracos que os da lógica clássica.(41) Provar um teorema
por meios mais fracos é (e sempre foi) uma tarefa intensamente
interessante e uma das grandes fontes de problemas matemá­
ticos. Daí o interesse da metodologia intuicionista.
Mas sugiro que isto só vale para provas. Para a crítica,
para a refutação, não queremos uma lógica pobre. Se um sis­
tema de demonstração pode ser mantido fraco, um sistema de
crítica deve ser forte. Na crítica não desejamos ficar limitados
a demonstrar impossibilidade: não alegamos infalibilidade para
nossa crítica e muitas vezes nos contentamos quando podemos
mostrar que uma teoria tem conseqüências contra-intuitivas.
Num sistema de crítica, a fraqueza e a parcimônia não são vir­
tudes, pois a virtude está numa teoria que pode suportar crítica
forte. (Parece, portanto, plausível que no debate crítico — no
metadebate — da validez de uma construção intuicionista, o
uso da plena lógica clássica pode ser admissível.)

7 — Subjetivismo em Lógica, Teoria da Probabilidade


e Ciência Física

Em vista do que foi dito na secção 5, especialmente sobre


o empirismo, não é de surpreender que o esquecimento do ter­
ceiro mundo — e conseqüentemente uma epistemologia subje-
tivista — ainda esteja amplamente difundido no pensamento
contemporâneo. Mesmo onde não há conexão com a matemá­
tica brouweriana, muitas vezes há tendências subjetivistas a en­
contrar dentro dos vários especialismos. Citarei aqui algumas
dessas tendências em lógica, na teoria da probabilidade e na
ciência física.

7.1 — Lógica epistêmica

A lógica epistêmica lida com fórmulas tais como “a co­


nhece p” ou “a conhece que p” e “a crê que p”. Isto costuma
ser simbolizado por “Kap” ou “Bap”, onde “K” e “B", res­
pectivamente, representam as relações de conhecer e crer, sendo
138
*

a o sujeito conhecedor ou crente e p a proposição, ou estado de


coisas, conhecida ou crida.
Minha primeira tese na secção 1 implica que isto nada tem
a ver com o conhecimento científico: que o cientista (ohamá-
-Io-ei "S” ) não conhece nem crê. Que faz ele? Darei uma lista
muito curta:
“5 tenta compreender p”.
“S tenta pensar em alternativas para p".
“S tenta pensar em críticas de p”.
“S propõe um teste experimental para p”.
“S tenta axiomatizar p”.
“S tenta derivar p de q”.
“S tenta mostrar que p não é derivável de q”.
“S propõe um novo problema x surgido de p”.
“5 propõe uma nova solução do problema x surgido de p”.
“5 critica sua última solução do problema x ”.
A lista podia ser ampliada a certa extensão. Está bem
afastada, em caráter, de “S conhecer p” ou “5 crê p”, ou mesmo
de “S erradamente crê p” ou “S duvida p”. De fato, é ponto
inteiramente importante o de que podemos duvidar sem criticar
e criticar sem duvidar. (Que assim podemos fazer foi visto por
Poincaré em Ciência e Hipótese, que neste ponto pode ser con­
trastado com o Nosso Conhecimento do Mundo Externo de
Russell.)

7.2 — Teoria da Probabilidade

Em parte alguma tem a epistemologia subjetivista posição


mais forte do que no campo do cálculo de probabilidade. Esse
cálculo é uma generalização da álgebra de Boole (e assim da
lógica de proposições). É ainda vastamente interpretado num
sentido subjetivo, como um cálculo de ignorância, ou de conhe­
cimento subjetivo incerto; mas isto importa em interpretar a
álgebra de Boole, inclusive o cálculo de proposições, como um
cálculo de conhecimento certo — de conhecimento certo no sen­
tido subjetivo. Esta é uma consequência que poucos bayesianos
(como agora se chamam os aderentes à interpretação subjetiva
do cálculo de probabilidade) afagarão.
Tenho combatido esta interpretação subjetiva do cálculo
de probabilidade durante trinta anos. Fundamentalmente, ela
brota da mesma filosofia epistêmica que atribui à asserção “eu
139
sei que a neve é branca” uma dignidade epistêmica maior do
que à asserção “a neve é branca”.
Não vejo qualquer razão para não atribuirmos dignidade
epistêmica ainda maior à asserção “à luz de toda a evidência
de que posso dispor acredito ser racional crer que a neve é
branca”. O mesmo podería ser feito, sem dúvida, com asser­
ções de probabilidade.

7.3 — Ciência Física

A abordagem subjetiva tem tomado muita dianteira na


ciência desde por volta de 1926. Primeiro tomou conta da me­
cânica do quantum. Aqui tornou-se tão poderosa que seus opo­
sitores foram encarados como patetas que com toda razão
deviam ser silenciados. Depois apoderou-se da mecânica esta­
tística. Aqui Szilard propôs em 1929 a opinião, agora quase
universalmente aceita, de que temos de pagar a informação
subjetiva com aumento de entropia física; isto foi interpretado
como prova de que a entropia física é falta de conhecimento e,
assim, um conceito subjetivo, e de que o- conhecimento ou
informação é equivalente à negentropia física. Esse desenvol­
vimento foi limpamente combinado com um desenvolvimento
paralelo na teoria da informação, que começou como uma teoria
de canais de comunicação perfeitamente objetiva, mas foi mais
tarde ligada ao conceito de informação subjetivista de Szilard.
Assim a teoria subjetiva do conhecimento entrou na ciên­
cia por larga frente. O ponto original de entrada foi a teoria
subjetiva de probabilidade. Mas o mal espalhou-se pela mecâ­
nica estatística, pela teoria da entropia, pela mecânica do quan­
tum e pela teoria da informação.
Sem dúvida não é possível refutar nesta palestra todas
essas teorias subjetivistas. Nada mais posso fazer senão men­
cionar que as tenho combatido por anos (mais recentemente no
meu ensaio de 1967 em Quantum Theory and Reality, ed. Mario
Bunge). Mas não abrigo quaisquer ilusões. Muitos anos mais
podem passar antes da mudança da maré (esperada por Bunge,
1967) — se ela um dia mudar.
Há ainda apenas dois pontos finais que desejo traçar.
Primeiro: tentarei indicar o que a epistemologia, ou a ló­
gica da descoberta, parece de um ponto de vista objetivo e como
pode ser capaz de lançar alguma luz sobre a biologia da des­
coberta.
Segundo: tentarei indicar, na última secção desta palestra,
o que a psicologia da descoberta parece, do mesmo ponto de
vista objetivista.

140
0

8 — A Lógica e a Biologia da Descoberta

De um ponto de vista objetivista, a epistemologia torna-se


a teoria do crescimento do conhecimento. Torna-se a teoria da
solução de problemas ou, em outras palavras, da construção,
discussão crítica, avaliação e teste crítico de teorias conjectu­
rais concorrentes.
Penso agora que, com respeito a teorias concorrentes,
talvez seja melhor falar de sua “avaliação” ou “apreciação”, ou
da “preferência” por uma delas, do que de sua “aceitação”.
Não que as palavras importem. O uso de “aceitação” não faz
mal enquanto se tiver em mente que toda aceitação é experimen­
tal e, como a crença, é de significação transitória e pessoal em
vez de objetiva e impessoal. ( 42)
A avaliação ou apreciação de teorias concorrentes é par­
cialmente anterior ao teste (a priori, se se quiser, embora não
no sentido kantiano do termo, que significa “válido a priori” )
e parcialmente posterior ao teste (a posteriori, também num
sentido que não implique validade). Igualmente anterior ao
teste é o conteúdo (empírico) de uma teoria, que se relaciona
ectreitamente com sua força explanatória (virtual), isto é, sua
força para resolver problemas preexistentes — aqueles pro­
blemas que dão origem à teoria e com relação aos quais as
teorias são teorias concorrentes.
Só com respeito a algum conjunto preexistente de pro­
blemas podem ser avaliadas (a priori) teorias e seus valores
comparados. Sua suposta simplicidade também só pode ser
comparada com respeito aos problemas para cuja solução con­
correm.
Conteúdo e força explanatória virtual são as idéias regula­
doras mais importantes para a avaliação a priori de teorias.
Relacionam-se estreitamente com seu grau de testabilidade.
A idéia mais importante para uma avaliação a posteriori
é a verdade ou, visto precisarmos de um conceito comparativo
mais accessível, o que tenho denominado “proximidade da ver­
dade” ou “verossimilitude”.(43) É importante que, enquanto
uma teoria sem conteúdo pode ser verdadeira (tal como uma
tautologia), a verossimilitude é baseada na idéia reguladora
do conteúdo de verdade; isto é, na idéia do montante de conse-
qüências verdadeiras, interessantes e importantes, de uma teo­
ria. Assim, uma tautologia, embora verdadeira, tem conteúdo
de verdade zero e verossimilitude zero. Sem dúvida tem a pro­
babilidade um. Falando de modo geral, o conteúdo, a testa­
bilidade e a verossimilitude(44) podem ser medidos por im­
probabilidade.

141
A avaliação a posteriori de uma teoria depende inteira­
mente do modo por que resistiu a testes severos e engenhosos.
Mas testes severos, por sua vez, pressupõem alto grau de tes-
tabilidade ou conteúdo a priori. Assim a avaliação a posteriori
de uma teoria depende amplamente de seu valor a priori:
teorias que são a priori desinteressantes — de pequeno con­
teúdo — não precisam ser testadas, pois seu baixo grau de
testabilidade exclui a priori a possibilidade de poderem ser
submetidas a testes realmente significativos e interessantes.
Por outro lado, teorias altamente testáveis são interes­
santes e importantes ainda que deixem de passar em seu teste;
podemos aprender imensamente com seu insucesso. Seu ma­
logro pode ser frutífero, pois realmente pode sugerir como
construir uma teoria melhor.
Contudo, toda esta ênfase sobre a importância funda­
mental da avaliação a priori talvez pudesse ser interpretada
como devida finalmente a nosso interesse por altos valores a
posteriori — por obter teorias que tenham alto. conteúdo de
verdade e verossimilitude, embora, sem dúvida, sempre per­
maneçam conjecturais, ou hipotéticos, ou experimentais. Nosso
alvo são teorias que sejam não só intelectualmente interessan­
tes e altamente testáveis, mas também que tenham passado
de fato por testes severos, melhor do que suas concorrentes;
e que, caso se torne manifesto seu caráter conjectural por sua
refutação, dêem origem a problemas novos, inesperados e
frutíferos.
Assim, podemos dizer que a ciência começa com proble­
mas e passa daí para teorias concorrentes, que avalia critica­
mente. Especialmente significativa é a avaliação de sua verossi­
militude. Isto requer severos testes críticos e, portanto, pressu­
põe altos graus de testabilidade, que são dependentes do con­
teúdo da teoria e por isso podem ser avaliados a priori.
Em muitos casos, e nos casos mais interessantes, a teoria
acabará ruindo e assim suscitará novos problemas. E o avanço
realizado pode ser avaliado pela lacuna intelectual entre o
problema original e o novo problema resultante do colapso
da teoria.
Este ciclo pode novamente ser descrito pelo nosso dia­
grama repetidamente usado:
Pi -* TT -» EE -» P 2;

isto é: problema Pi — teoria experimental — eliminação de


erro avaliadora — problema P2.
A avaliação é sempre crítica e tem por alvo a descoberta
e a eliminação de erro. O crescimento do conhecimento — ou
142
o processo de aprender — não é um processo repetitivo ou
cumulativo, mas um processo de eliminação de erro. Ê uma
seleção darwiniana, em vez de uma instrução lamarckiana.
Isto é uma breve descrição da epistemologia, de um ponto
de vista objetivo: o método, ou lógica, de visar ao crescimento
do conhecimento. Mas, embora descreva o terceiro mundo,
pode ser interpretado como uma descrição de evolução bio­
lógica. Animais, e mesmo plantas, são solucionadores de pro­
blemas. E resolvem seus problemas pelo método de soluções
experimentais concorrentes e eliminação de erro.
As soluções experimentais que animais e plantas incor­
poram em sua anatomia e em seu comportamento são aná­
logos biológicos de teorias; e vice-versa: as teorias correspon­
dem (tal como muitos produtos exossomáticos como favos de
mel, e especialmente instrumentos endossomáticos como teias
de aranha) a órgãos endossomáticos e seus modos de fun­
cionamento. Assim como as teorias, os órgãos e suas funções
são adaptações experimentais ao mundo em que vivemos. E
assim como as teorias, ou como os instrumentos, novos órgãos
e suas funções, e também novos tipos de comportamento, exer­
cem sua influência sobre o primeiro mundo, que podem ajudar
a mudar. (Uma nova solução experimental — uma teoria, um
órgão, um tipo novo de comportamento — podem descobrir
um novo nicho ecológico virtual e, assim, podem transformar
um nicho virtual num efetivo.) Novo comportamento ou órgãos
novos podem também levar à emersão de novos problemas.
E deste modo podem influenciar o curso seguinte da evolução,
inclusive a emersão de novos valores biológicos.
Tudo isto vale também para os órgãos dos sentidos. Eles
incorporam, mais especialmente, expectativas semelhantes a
teorias. Os órgãos dos sentidos, como os olhos, estão prepa­
rados para reagir a certos eventos ambientais selecionados —
àqueles eventos que “esperam”, e somente a tais eventos. Como
as teorias (e os preconceitos) em geral serão cegos aos demais,
àqueles que não entendem, que não podem interpretar (porque
não correspondem a qualquer problema específico que o orga­
nismo esteja tentando resolver).(45)
A epistemologia clássica, que toma nossas percepções de
sentido como “dadas”, como os “dados” com os quais nossas
teorias têm de ser construídas por algum processo de indução,
só pode ser descrita como pre-darwiniana. Deixa ela de levar
em conta o fato de que os dados alegados são realmente rea­
ções adaptativas e, portanto, interpretações que incorporam
teorias e preconceitos e que, como teorias, estão impregna­
das de exipectativas conjecturais; de que não pode haver per­
cepção pura, dado puro; exatamente como não pode haver lin­
143
guagem observacional pura, visto estarem todas as linguagens
impregnadas de teorias e mitos. Assim como nossos olhos são
cegos para o imprevisto ou inesperado, assim nossas lingua­
gens são incapazes de descrevê-lo (embora nossas linguagens
possam crescer — como podem nossos órgãos dos sentidos,
tanto endossomaticamente quanto exosomaticamente).
Esta consideração do fato de que as teorias ou as ex­
pectativas são construídas dentro de nossos próprios órgãos
dos sentidos mostra que a epistemolgia da indução desaba
mesmo antes de dar seu primeiro passo. Não pode partir de
dados de sentidos ou percepções e sobre eles construir nossas
teorias, pois não há coisas tais como dados de sentidos e per­
cepções que não sejam construídos sobre teorias (ou expecta­
tivas — isto é, os predecessores biológicos de teorias formu­
ladas lingüisticamente). Assim os “dados” não são base nem
garantia para as teorias: não são mais seguros do que qual­
quer de nossas teorias ou “preconceitos”, mas bem menos, se
alguma coisa forem (admitindo, para argumentar, que os
dados dos sentidos existam e não sejam invenções de
filósofos). Os órgãos dos sentidos incorporam o equivalente
de teorias primitivas e aceitas sem crítica, que são menos am­
plamente testadas do que as teorias científicas. Além disso,
não há linguagem livre de teorias para descrever os dados,
porque os mitos (isto é, as teorias primitivas) brotam junta­
mente com a linguagem. Não há coisas vivas, nem animais nem
plantas, sem problemas e sem suas soluções experimentais, que
são equivalentes a teorias; embora bem possa haver, ou assim,
parece, vida sem dados de sentidos (pelo menos em plantas).
Assim a vida, como a descoberta científica, passa de
velhos problemas para a descoberta de problemas novos e
inimaginados. E este processo — o da invenção e seleção —
contém em si mesmo uma teoria racional de emersão. Os
passos de emersão que levam a um nível novo são, em primeira
instância, os novos problemas (P2) que são criados pela eli­
minação de erro (EE) de uma solução teórica experimental
(TT) de um problema velho (Pi).

9 — Descoberta, Humanismo e Autotranscendência

Para um humanista, nossa abordagem pode ser importante


porque sugere um modo novo de encarar a relação entre nós
mesmos — os sujeitos — e o objeto de nossos esforços: o
conhecimento objetivo crescente, o terceiro mundo crescente.
A velha abordagem subjetiva de interpretar o conheci­
mento como uma relação entre a mente subjetiva e o objeto

144
conhecido — relação que Russell chama “crença” ou “julga­
mento” — tomou essas coisas que encaro como conhecimento
objetivo simplesmente como elocuções ou expressões de esta­
dos mentais ( ou como o comportamento correspondente).
Esta abordagem pode ser descrita como um expressionismo
epistemológico, porque é estreitamente paralela à teoria ex-
pressionista da arte. A obra de uma pessoa é encarada como
expressão de seu estado íntimo: a ênfase recai inteiramente
sobre a relação causai e sobre o fato admitido, mas superes­
timado, de que o mundo do conhecimento objetivo, como o
mundo de pintura ou da música, é criado por homens.
Esta concepção deve ser substituída por uma muito dife­
rente. Deve-se admitir que o terceiro mundo, o mundo do
conhecimento objetivo (ou, mais geralmente, do espírito obje­
tivo) é de feitura humana. Mas deve-se acentuar que esse
mundo existe em ampla extensão autonomamente; que ele gera
seus próprios problemas, especialmente aqueles ligados a mé­
todos de crescimento; e que seu impacto sobre qualquer um
de nós, mesmo sobre o mais original dos pensadores criativos,
excede vastamente o impacto que qualquer de nós possa pro­
duzir sobre ele.
Mas seria um erro deixar as coisas nisso. O que encaro
como o ponto de mais importância não é a simples autonomia
e anonimato do terceiro mundo, ou o ponto admitidamente
muito importante de que sempre devemos quase tudo a nossos
predecessores e à tradição que eles criaram; que assim devemos
ao terceiro mundo, especialmente, a nossa racionalidade —
isto é, nossa mente subjetiva, a prática de modos críticos e
autocríticos de pensamento e as disposições correspondentes.
Mais importantes do que tudo isto, sugiro, é a relação entre
nós mesmos e nossa obra, e o que pode ser ganho desta re­
lação para nós.
O expressionista crê que tudo quanto pode fazer é deixar
seu talento, seus dotes expressarem-se em sua obra. O resul­
tado é bom ou mau, de acordo com o estado mental ou psi­
cológico do obreiro.
Contra isto sugiro que tudo depende do dar-e-tomar entre
nós mesmos e nossa obra; do produto com que contribuímos
para o terceiro mundo e daquela retrocarga constante que pode
ser amplificada pela autocrítica consciente. A coisa incrível
a respeito da vida, da evolução e do crescimento mental, é
justamente esse método de dar-e-tomar, essa interação entre
nossa ações e seus resultados, por meio da qual constante­
mente transcendemos a nós mesmos, a nossos talentos, nossos
dotes.
145
Esta auto-transcendência é o fato mais notável e impor­
tante de toda vida e de toda evolução, e especialmente da
evolução humana.
Em seus estágios pre-humanos ela é menos óbvia, sem
dúvida, e assim pode realmente ser confundida com algo como
a autoexpressão. Mas, no nível humano, a autotranscendên-
cia só pode ser desdenhada com real esforço. Tal como ocorre
com os nossos filhos, assim ocorre com as nossas teorias:
tendem a tornar-se amplamente independentes de seus pais.
E como pode acontecer com os nossos filhos, assim pode acon­
tecer com as nossas teorias: podemos ganhar deles uma soma
de conhecimentos maior do que aquela que originariamente
lhes transmitimos.
O processo do aprendizado, do crescimento do conheci­
mento subjetivo, é sempre o mesmo fundamentalmente. É crí­
tica imaginativa. Eis como transcendemos nosso ambiente local
e temporal tentando pensar em circunstâncias além de nossa
experiência; criticando a universalidade, ou a necessidade es­
trutural, do que, para nós, possa parecer (ou que filósofos
possam descrever) como “dado” ou “hábito”; tentando achar,
construir, inventar situações novas — isto é, situações de teste,
situações críticas; e tentando localizar, descobrir e desafiar nos­
sos preconceitos e suposições habituais.
Eis com nos erguemos, por nossas próprias forças, do
lodaçal de nossa ignorância; eis como lançamos uma corda
no ar e depois subimos por ela — se houver conseguido pren­
der-se, embora precariamente, em qualquer raminho.
O que faz nossos esforços diferirem dos de um animal ou
de uma ameba é apenas que nossa corda pode pegar onde
prender-se num terceiro mundo de discussão crítica: um mundo
de linguagem, de conhecimento objetivo. Isto nos torna possível
descartar algumas de nossas teorias concorrentes. Assim, se
formos felizes, podemos ter êxito na sobrevivência de algumas
de nossas teorias errôneas (e muitas delas são errôneas),
enquanto a ameba perecerá com sua teoria, sua crença e seus
hábitos.
Vista a esta luz, a vida é solução de problemas e desco­
berta — a descoberta de novos fatos, de novas possibilidades,
por meio de experimentar as possibilidades concebidas em nossa
imaginação. No nível humano, esta experimentação é feita quase
inteiramente no terceiro mundo, por tentativas para representar,
nas teorias desse terceiro mundo, nosso primeiro mundo, e,
talvez, nosso segundo mundo, com sucesso cada vez maior; ten­
tando chegar mais perto da verdade — de uma verdade mais
plena, mais completa, mais interessante, logicamente mais forte
e mais relevante — relevante para nossos problemas.
146
»

O que pode ser chamado segundo mundo — o mundo da


mente — torna-se, no nível humano, cada vez mais o elo entre
o primeiro mundo e o terceiro: todas as nossas ações no pri­
meiro mundo são influenciadas pela apreensão do terceiro
mundo por nosso segundo mundo. Por isto é impossível com­
preender a mente humana e o ser humano sem compreender o
terceiro mundo (a “mente objetiva” ou “espírito” ); e por isso
é impossível interpretar o terceiro mundo como mera expressão
do segundo, ou o segundo como mero reflexo do terceiro.
Há três sentidos do verbo “aprender” que têm sido insufi­
cientemente distinguidos por teóricos do aprendizado: “desco­
brir” ; “imitar” ; “tornar habitual”. Todos os três podem ser en­
carados como forma de descoberta e todos os três operam com
métodos de experiência e erro que contêm um elemento de
acaso (não demasiado importante e costumeiramente muito su­
perestimado). “Tornar habitual” contém um mínimo de desco­
berta — mas limpa o chão para mais descoberta; e seu caráter
aparentemente repetitivo é enganoso.
Em todos esses modos diferentes de aprender ou de adqui­
rir ou produzir conhecimento o método é darwiniano e não la-
marckiano; é seleção em vez de instrução pela repetição. (Mas
não devemos desprezar o fato de que o lamarckismo é uma
espécie de aproximação do darwinismo e de que os produtos de
seleção, portanto, parecem muitas vezes como se fossem pro­
dutos de adaptação lamarckiano, de instrução pela repetição: o
darwinismo, podemos dizer, simula o lamarckismo.) Mas a
seleção é uma espada de dois gumes: não é só o ambiente que
nos seleciona e modifica — também nós selecionamos e modi­
ficamos o ambiente, principalmente por descobrir um novo nicho
ecológico. Fazemos isto, no nível humano, pela cooperação com
um mundo objetivo totalmente novo — o terceiro mundo, o
mundo do conhecimento experimental objetivo, que inclui novos
alvos e valores experimentais e objetivos. Não moldamos ou
“instruímos” expressando-o no estado de nossa mente; nem
ele nos instrui. Ambos, nós e o terceiro mundo, crescemos por
meio de mútua luta e seleção. Isto, parece, vale no nível da
enzima e do gene: pode-se conjecturar que o código genético
opera por seleção ou rejeição, em vez de por instrução ou
comando. E isto parece valer bem em todos os níveis, até à
linguagem articulada e crítica de nossas teorias.
Para explicá-lo mais plenamente, os sistemas orgânicos
podem ser encarados como os produtos ou resultados objetivos
de um comportamento experimental que se achava “livre” —
isto é, não determinado — dentro de certo domínio ou alcance
circunscrito ou limitado por sua situação interna (especialmente
sua composição genética) e sua situação externa (o ambiente).
147
O insucesso em vez do sucesso leva então, por seleção natural,
à fixação comparativa do modo de reagir com sucesso. Pode-se
conjecturar que o código genético guie a síntese das proteínas
pelo mesmo método; pela prevenção ou eliminação de certas
sínteses químicas em potencial em vez de pelo estímulo direto, ou
guia. Isto tornaria compreensível a invenção do código gené­
tico através da seleção. Transformaria suas aparentes instru­
ções em proibições, resultado da eliminação de erro; e, como
uma teoria, o código genético seria não só o resultado da se­
leção, mas também operaria por seleção, ou proibição, ou
prevenção. Isto é sem dúvida uma conjectura, mas sugiro que
é atraente.
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(Este Capítulo< reproduz uma palestra proferida a


2S de agosto de 1967 no Terceiro Congresso Internacio­
nal de Lógica, Metodologia e Filosofia da Ciência, 25
ago./íJ set. 1967, publicado primeiramente nos anais
desse Congresso, eãs. B. van Rootselaar e J, F. Staal,
Amsterdão, 1968, pgs. 383-73.)

150
4 — SOBRE A TEORIA DA
MENTE OBJETIVA

Nossa principal tarefa como filósofo é, penso eu, enrique­


cer nosso quadro do mundo ajudando a produzir teorias ima­
ginativas e, ao mesmo tempo, argumentativas e críticas, prefe­
rivelmente de interesse metodológico. A filosofia ocidental con­
siste muito amplamente de quadros do mundo que são variações
do tema de um dualismo corpo-mente e de problemas de método
ligados a eles. Os principais desvios desse tema dualista ociden­
tal foram tentativas de substituí-los por alguma espécie de
monismo. Parece-me que essas tentativas foram malogradas e
que por trás do véu de protestos monistas ainda se embosca o
dualismo de corpo e mente.

1 — Pluralismo e a Tese dos Três Mundos

Houve, porém, não só desvios monistas, mas também


alguns pluralistas. Isto é quase óbvio se pensarmos no politeís-
mo e mesmo em suas variantes monoteístas. Contudo, para o
filósofo, pode parecer duvidoso que as várias interpretações
religiosas do mundo ofereçam ao dualismo de corpo e mente
qualquer alternativa genuina. Os deuses, muitos ou poucos, ou
são mentes dotadas de corpos imortais, ou então mentes puras,
em contraste conosco.
Certos filósofos, todavia, têm feito sério começo no rumo
de um pluralismo filosófico, apontando a existência de um ter­
ceiro mundo. Estou pensando em Platão, nos Estóicos e em
alguns modernos, tais como Leibniz, Bolzano e Frege (mas
não em Hegel, que incorporou fortes tendências monistas).
O mundo de Formas ou Idéias de Platão era, a muitos
respeitos, um mundo religioso, um mundo de realidades supe­
riores. Contudo, não era um mundo de deuses pessoais nem um
mundo de consciência, e não consistia dos conteúdos de alguma
consciência. Era um terceiro mundo objetivo, autônomo, que
existia em adição ao mundo material e ao mundo da mente.
151
Acompanho os intérpretes de Platão que sustentam serem
as Formas ou Idéias platônicas diferentes não só dos corpos e
das mentes, mas também das “Idéias na mente1’, isto é, das
experiências conscientes ou inconscientes: as Formas ou Idéias
de Platão constituem um terceiro mundo sui generis. Admitida-
mente, são objetos de pensamento virtuais ou possíveis — intelli-
gibilia. Mas, para Platão, essas intelligibilia são tão objetivas
como as visibilia, que são corpos materiais: objetos virtuais ou
possíveis da visão. (x)
Assim, o platonismo vai além da dualidade de corpo e
mente. Introduz um mundo tripartite, ou, como prefiro dizer,
um terceiro mundo.
Não argumentarei aqui, porém, a respeito de Platão; em
vez disso, argumentarei a respeito do pluralismo. E mesmo que
eu e outros estejamos enganados ao atribuir esse pluralismo a
Platão, mesmo então poderia eu apelar para uma interpretação
bem conhecida da teoria de Formas ou Idéias de Platão como
exemplo de uma filosofia que transcende genuinamente o es­
quema dualista.
Desejo fazer dessa filosofia pluralista o ponto de partida
de minha discussão, ainda que eu não seja um platônico, nem
um hegeliano.f2)
Nesta filosofia pluralista, o mundo consiste de, pelo menos,
três submundos ontologicamente distintos; ou, como eu diria,
há três mundos: o primeiro é o mundo material, ou o mundo
dos estados materiais; o segundo é o mundo mental, ou o mundo
de estados mentais; e o terceiro é o mundo dos inteligíveis,
ou das idéias no sentido objetivo; é o mundo de objetos de pen­
samentos possíveis: o mundo das teorias em si mesmas e de suas
relações lógicas, dos argumentos em si mesmos, e das situações
de pípblema em si mesmas.
Um dos problemas fundamentais dessa filosofia pluralista
refere-se à relação entre esses três “mundos”. Os três relacio­
nam-se de tal modo que os dois primeiros podem interagir e os
dois últimos também podem interagir. (3) Assim, o segundo
mundo, o mundo das experiências subjetivas ou pessoais, interage
com cada qual dos outros dois mundos. O primeiro mundo e o
terceiro mundo não podem interagir senão pela intervenção do
segundo mundo, o mundo das experiências subjetivas ou
pessoais.

2 — As Relações Cansais Entre os Três Mundos

Parece-me da maior importância descrever e explicar as


relações dos três mundos desse modo — isto é, com o segundo
152
0

mundo como mediador entre o primeiro e o terceiro. Embora


raramente expressa, essa opinão me parece claramente envolvida
na teoria dos três mundos. Conforme esta teoria, a mente
humana pode ver um corpo material no sentido literal de “ver”,
no qual os olhos participam do processo. Pode também “ver”
ou “apreender” um objeto aritmético ou geométrico; um nú­
mero ou uma figura geométrica. Mas embora, neste sentido,
“ver” ou “apreender” se use de maneira metafórica, isto de­
nota, não obstante, uma relação real entre a mente e seu objeto
inteligível, o objeto aritmético ou geométrico; e a relação é
estreitamente análoga a “ver” no sentido literal. Assim a mente
pode ligar-se a objetos tanto do primeiro mundo quanto do
terceiro mundo.
Por essas ligações a mente estabelece um elo indireto entre
o primeiro e o terceiro mundos. Isto é de extrema importância.
Não se pode negar seriamente que o terceiro mundo das teorias
matemáticas e científicas exerça imensa influência sobre o pri­
meiro mundo. Exerce-a, por exemplo, pela intervenção de tecnó­
logos que efetuam mudanças no primeiro mundo aplicando
certas conseqüências dessas teorias; incidentemente, de teorias
originariamente desenvolvidas por outros homens que podem
não ter percebido quaisquer possibilidades tecnológicas inerentes
a suas teorias. Assim, essas possibilidades estavam ocultas nas
próprias teorias, nas próprias idéias objetivas; e foram desco­
bertas nelas por homens que tentaram compreender essas idéias.
Este argumento, se desenvolvido com cuidado, parece-me
sustentar a realidade objetiva de todos os três mundos. Além
disso, parece-me sustentar não só a tese de que existe um mundo
mental subjetivo de experiências pessoais (tese negada pelos
behavioristas), como também a tese de que uma das principais
funções do segundo mundo é apreender os objetos do terceiro
mundo. Isto é algo que todos nós fazemos: é parte essencial do
ser humano aprender uma linguagem e isto significa, essencial­
mente, aprender e apreender conteúdos de pensamento obje­
tivos (como Frege os chamou).(34)
Sugiro que algum dia teremos de revolucionar a psicologia
encarando a mente humana como um órgão para interagir com
os objetos do terceiro mundo; para compreendê-los, contribuir
para eles, participar deles; e para levá-los a relacionar-se com ó
o primeiro mundo.

3 — A Objetividade do Terôeiro Mundo

O terceiro mundo, ou antes, os objetos pertencentes a ele,


as Formas ou Idéias objetivas que Platão descobriu, tem sido
153
na maioria das vezes confundidos com idéias subjetivas ou pro­
cessos de pensamento; Lto é, com estados mentais, com objetos
pertencentes ao segundo mundo e não ao terceiro.
Esta confusão tem longa história. Começa com o próprio
Platão. Pois, embora Platão reconhecesse claramente o caráter
de terceiro mundo de suas Idéias, parece que ele não chegou
a dar-se conta de que o terceiro mundo continha não só con­
ceitos ou noções universais, tais como o número 7 ou o nú­
mero 77, mas também verdades ou proposições matemáticas,(5)
como a proposição “7 vezes 11 igual a 77”, e mesmo proposi­
ções falsas como “7 vezes 11 igual a 66”; e, além disso, todos
os tipos de proposições ou teorias não matemáticas.
Isto, parece, foi visto primeiramente pelos Estóicos, que
desenvolveram uma filosofia da linguagem maravilhosamente
sutil. A linguagem humana, como eles compreenderam, pertence
a todos os três mundos.(6) Até onde consiste de ações materiais
ou símbolos materiais, pertence ao primeiro mundo. Até onde
exprime um estado subjetivo ou psicológico, ou até onde apreen­
der ou entender uma linguagem envolve uma modificação em
nosso estado subjetivo,(7) pertence ao segundo mundo. E até
onde a linguagem contém informação, ou até onde diz, ou
exprime, ou descreve qualquer coisa, ou transmite qualquer signi­
ficado ou qualquer mensagem significativa que possa acarretar
outra, ou concordar ou chocar-se com outra, pertence ao ter­
ceiro mundo. As teorias, ou proposições, ou asserções são as
entidades linguísticas mais importantes do terceiro mundo.
Se dizemos “vi uma coisa escrita num papiro”, ou “vi uma
coisa gravada em bronze”, falamos de entidades lingüísticas
como pértencentes ao primeiro mundo; não implicamos que po­
demos ler a mensagem. Se dizemos “fiquei grandemente impres­
sionado com a seriedade e a convicção com que o discurso foi
proferido’, ou “isto não é tanto uma afirmação e sim uma explo­
são colérica”, falamos de entidades lingüísticas como pertencen­
tes ao segundo mundo”. Se dizemos “mas James disse hoje
precisamente o contrário do que John disse ontem”, ou “do que
James diz decorre claramente que John está enganado”, ou se
falamos de platonismo, ou da teoria do quantum, então falamos
de alguma significação objetiva, de algum conteúdo lógico obje­
tivo; isto é, falamos da significação de terceiro mundo da infor­
mação ou da mensagem transmitida no que foi dito ou escrito.
Foram os Estóicos que primeiro fizeram a importante dis­
tinção entre o conteúdo lógico objetivo (de terceiro mundo) do
que estamos dizendo e os objetos acerca dos quais estamos fa­
154
lando. Esses objetos, por sua vez, podem pertencer a qualquer
dos três mundos: podemos falar primeiro acerca do mundo
material (acerca de coisas materiais ou de estados materiais),
ou também acerca de nossos estados mentais subjetivos( in­
cluindo nossa apreensão de uma teoria), ou ainda acerca dos
conteúdos de algumas teorias, tais como umas proposições arit­
méticas e, digamos, .sua verdade ou falsidade.
Parece-me altamente aconselhável que procuremos evitar
termos tais como “expressão” ou “comunicação” sempre que
falarmos da fala no sentido do terceiro mundo. Pois “expressão”
e “comunicação”, essencialmente, são termos psicológicos e suas
conotações subjetivistas ou pessoais são perigosas num campo
em que é tão forte a tentação de interpretar os conteúdos de
pensamento do terceiro mundo como processos de pensamento
do segundo mundo.
É interessante que os Estóicos hajam estendido a teoria
do terceiro mundo não só de Idéias platônicas para teorias ou
proposições. Incluiram também, em acréscimo a entidades lin­
güísticas de terceiro mundo tais como sentenças ou asserções de-
clarativas, coisas tais como problemas, argumentos e indagações
argumentativas, e além disso até mesmo ordens, advertências,
preces, tratados e, naturalmente, poesia e narração. Também
distinguiram entre um estado pessoal de veracidade e a verdade
de uma teoria ou proposição; isto é, uma teoria ou proposição
a que se aplique o predicado de terceiro mundo “objetivamente
verdadeira”.

4 — O Terceiro Mundo como Produto Peito pelo Homem

Podemos, principalmente, distinguir entre dois grupos de


filósofos. O primeiro consiste daqueles que, como Platão, acei­
tam um terceiro mundo autônomo e o encaram como sobre­
humano e como divino e eterno. O segundo consiste daqueles
que, como Locke ou Mill ou Dilthey ou Collingwood, indicam
que a linguagem, e o que ela “expressa” e “comunica”, é feita
pelo homem e que, por esta razão, vêem tudo quanto é lingüís-
tico como parte do primeiro e segundo mundos, rejeitando qual­
quer sugestão de que exista um terceiro mundo. É interessante
que a maioria dos que estudam as humanidades pertença a este
segundo grupo que rejeita o terceiro mundo.
O primeiro grupo, o dos platônicos, é apoiado pelo fato
de que podemos falar de verdades eternas: uma proposição é,
infinitamente, verdadeira ou falsa. Isto parece ser decisivo: ver­
dades eternas devem ter sido verdadeiras antes que o homem
existisse. Assim, não podem ser de fabricação nossa.
Os membros do segundo grupo concordam em que ver­
dades eternas não podem ser de nossa própria fabricação; mas
disto concluem que verdades eternas não podem ser “reais”:
“real” é simplesmente nosso uso do predicado “verdadeiro”, bem
como o fato de usarmos “verdadeiro” pelo menos em certos con­
textos, como um predicado independente de tempo. Este tipo
de uso, podem eles argumentar, não é muito surpreendente:
enquanto Paulo, pai de Pedro, pode em certo tempo ser mais pe­
sado do que Pedro e ser menos pesado um ano depois, nada
como isto pode acontecer a dois pedaços de metal enquanto
um permanecer com o peso certo de um quilo e o outro com
o peso certo de dois quilos. Aqui, o predicado “certo” desem­
penha o mesmo papel do predicado “verdadeiro” em conexão
com as asserções; de fato, podemos substituir “certo” por “ver­
dadeiro”. Contudo ninguém negará que os pesos podem ser
feitos pelo homem, poderão indicar esses filósofos.
Acho que é possível manter uma posição que difira da de
ambos esses grupos de filósofos: sugiro que é possível aceitar a
realidade ou (como se pode chamar) a autonomia do terceiro
mundo e ao mesmo tempo admitir que o terceiro mundo terri
origem como produto da atividade humana. Pode-se mesmo ad­
mitir que o terceiro mundo ê feito pelo homem e, num sentido
muito claro, sobre-humano ao mesmo tempo. ( 8) Transcende
seus fabricantes.
Torna-se claro que o terceiro mundo não é uma ficção, mas
existe “em realidade”, quando consideramos seu tremendo efeito
sobre o primeiro mundo, com a mediação do segundo mundo.
Basta pensar apenas no impacto da transmissão de energia elé­
trica ou da teoria atômica sobre nosso ambiente inorgânico e
orgânico, ou no impacto das teorias econômicas sobre a decisão
de construir um barco ou um aeroplano.
De acordo com a posição que estou adotando aqui, o ter­
ceiro mundo (parte do qual é linguagem humana) é produto
dos homens, tal como o mel é produto das abelhas ou como a
teia o é das aranhas. Como linguagem (e como o mel) a lin­
guagem humana, e portanto as maiores partes do terceiro
mundo, são o produto não planejado de ações humanas,(a) em­
bora possam ser soluções para problemas biológicos, ou outros.
Vejamos a teoria dos números. Creio (diversamente de
Kronecker) que mesmo os números naturais são obra do
homem, produto da linguagem humana e do pensamento hu­
mano. Contudo, há uma infinidade desses números, mais do
que jamais será pronunciado pelos homens ou usado por compu­
tadores. E há um número infinito de equações verdadeiras entre
esses números, e de equações falsas, mais do que jamais pode­
remos declarar verdadeiras ou falsas.

156
*

Mas, o que é ainda mais interessante, novos problemas


inesperados surgem como subprodutos não pretendidos da se-
qüência dos números naturais; por exemplo, os problemas não
resolvidos da teoria dos números primos (a conjectura de Gold-
bach, digamos). Esses problemas são claramente autônomos.
Em nenhum sentido são fabricados por nós; em vez disso, são
descobertos por nós; e neste sentido existem, sem ser desco­
bertos, antes de sua descoberta. Além disso, pelo menos alguns
desses problemas não resolvidos podem ser insolúveis.
Em nossas tentativas para resolver esses ou outros pro­
blemas podemos inventar novas teorias. Essas teorias, ainda, são
produzidas por nós: são o produto de nosso pensamento crítico
e criativo, no que somos grandemente ajudados pelas outras
teorias de terceiro mundo existentes. Mas no momento em que
produzimos essas teorias elas criam novos problemas, não pre­
tendidos e inesperados, problemas autônomos, problemas a ser
descobertos.
Isto explica por que o terceiro mundo, que em sua origem
é produto nosso, é autônomo no que se pode chamar seu estado
ontológico. Explica por que podemos agir sobre ele e aumentá-
lo ou ajudar seu crescimento, ainda que não haja homem que
possa dominar sequer um cantinho desse mundo. Todos nós con­
tribuímos para seu crescimento, mas quase todas as nossas con­
tribuições individuais são evanescentemente pequenas. Todos
nós tentamos apreendê-lo e nenhum de nós podería viver sem
estar em contacto com ele, pois todos fazemos uso da fala,
sem a qual dificilmente seríamos humanos. ( 10) Contudo o ter­
ceiro mundo cresceu para muito além da apreensão não só de
qualquer homem, mas mesmo de todos os homens (como o
mostra a existência de problemas insolúveis). Sua ação sobre
nós tomou-se mais importante para o nosso crescimento, e
mesmo para o próprio crescimento dele, do que nossa ação
criativa sobre ele. Pois quase todo o seu crescimento se deve
a um efeito de retrocarga: ao desafio da descoberta de pro­
blemas autônomos, muitos dos quais poderão não ser nunca do­
minados. (u ) E haverá sempre a tarefa desafiadora de descobrir
problemas novos, pois uma infinidade de problemas permane­
cerá sempre sem descobrimento. Apesar, e também por causa,
da autonomia do terceiro mundo, haverá sempre campo para
obra original e criativa.

5 — O Problema da Compreensão

Dei aqui algumas razões para a existência autônoma de


um terceiro mundo objetivo porque espero oferecer uma con­

157
tribuição à teoria da compreensão (“hermenêutica), que tem sido
muito discutida por estudiosos das humanidades ( “Geisteswis-
senschafterí’, “ciências morais e mentais” ) - Começarei aqui par­
tindo da admissão de que a compreensão de objetos perten­
centes ao terceiro mundo é que constitui o problema central das
humanidades. Isto, parece, afasta-se radicalmente do dogma fun­
damental aceito por quase todos os estudiosos das humanidades
(como o termo indica) e especialmente por aqueles que estão
interessados no problema da compreensão. Refiro-me, natural­
mente, ao dogma de que os objetos de nossa compreensão per­
tencem principalmente ao segundo mundo, ou de que devem, de
qualquer modo, ser explicados em termos psicológicos. ( 12)
Admitidamente, as atividades ou processos cobertos pelo
guarda-chuva do termo “compreensão” são atividades subjetivas,
ou pessoais, ou psicológicas. Devem ser distinguidas do pro­
duto (mais ou menos bem sucedido) dessas atividades, de seu
resultado: o “estado final” (por enquanto) da compreensão, a
interpretação. Embora isto possa ser um estado subjetivo de
compreensão, pode ser também um objeto de terceiro mundo,
especialmente uma teoria; e o último caso é, em minha opinião,
o mais importante. Encarada como um objeto de terceiro mundo,
a interpretação será sempre uma teoria; por exemplo, uma expli­
cação histórica apoiada por uma corrente de argumentos e,
talvez, por evidência documentária.
Assim, toda interpretação é uma espécie de teoria e, como
toda teoria, é ancorada em outras teorias e em outros objetos
de terceiro mundo. E deste modo o problema de terceiro mundo
do mérito da interpretação pode ser suscitado e discutido, e
especialmente o seu valor para nossa compreensão histórica.
Mas mesmo o ato subjetivo ou o estado disposicional da
“compreensão” só pode ser compreendido, por sua vez, através
de suas conexões com objetos de terceiro mundo. Pois afirmo
as três teses seguintes referentes ao ato subjetivo de com­
preender.
(1) Que todo ato subjetivo de compreensão está ampla­
mente ancorado no terceiro mundo;
(2) que quase todas as observações importantes que
podem ser feitas acerca de tal ato consistem em apontar suas
relações com objetos de terceiro mundo; e
(3) que tal ato consiste principalmente de operações com
objetos de terceiro mundo: operamos com esses objetos quase
como se fossem objetos materiais.

158
ê

Isto, sugiro, pode ser generalizado e vale para todo ato


subjetivo de “conhecimento” : todas as coisas importantes que
podemos dizer acerca de um ato de conhecimento consistem
em apontar os objetos de terceiro mundo do ato — uma teoria
ou proposição — e sua relação com outros objetos de terceiro
mundo, tais como os argumentos referentes ao problema bem
como os objetos conhecidos.

6 — Processos Psicológicos de Pensamento e


Objetos do Terceiro Mundo

Mesmo alguns dos que admitem a necessidade de ana­


lisar o estado final da compreensão (subjetiva) em termos de
objetos de terceiro mundo rejeitarão (receio) a tese corres­
pondente relativa à atividade subjetiva ou pessoal de apreensão
ou de compreensão: acredita-se geralmente que não podemos
agir sem processos subjetivos tais como compreensão simpática
ou empatia, ou representação de ações de outras pessoas (Col-
lingwood), ou a tentativa de nos colocarmos na situação de
outra pessoa tornando nossos seus alvos e seus problemas.
Contra esta opinião, minha tese é esta: Exatamente como
um estado subjetivo de compreensão finalmente alcançado, assim
também um processo psicológico que leva a ele deve ser ana­
lisado em termos dos objetos de terceiro mundo em que está
ancorado. De fato, somente pode ser analisado nesses termos.
O processo ou atividade de compreensão consiste, essencial­
mente, de uma sequência de estados de compreensão. (Ser ou
não um deles um estado “final” pode depender muitas vezes,
subjetivamente, de algo nada mais interessante do que um sen­
timento de exaustão.) Só se houver sido alcançado um argu­
mento importante ou uma evidência nova — isto é, algum ob­
jeto de terceiro mundo — mais coisas poderão ser ditas a esse
respeito. Até então, a seqüência dos estados precedentes é
que constitui o “processo”, e o trabalho de criticar o estado
alcançado (isto é, de produzir argumentos críticos de terceiro
mundo) é que constitui a “atividade”. Ou, para dizer de outro
modo: a atividade de compreensão consiste, essencialmente, em
operar com objetos de terceiro mundo.
A atividade pode ser representada por um esquema geral
de solução de problemas pelo método de Conjecturas imagina­
tivos e de crítica, ou, como muitas vezes o tenho chamado, pelo
método de conjectura e refutação. O esquema, em sua mais
simples forma, é este: (18)
Pi TT EE -* P-i.
159
Aqui, Pj é o problema do qual partimos, TT (a “teoria
experimental”) é a solução conjectural imaginativa que alcan­
çamos primeiro, por exemplo, nossa primeira interpretação ex­
perimental. EE (“eliminação de erro”) consiste de um severo
exame crítico de nossa conjectura, nossa interpretação experi­
mental: consiste, por exemplo, do uso crítico de evidência do­
cumentária e, se tivermos nesta etapa inicial mais de uma con­
jectura ao nosso dispor, consistirá também de uma discussão
crítica e da avaliação comparativa das teorias concorrentes.
P2 é a situação de problema tal como emerge de nossa pri­
meira tentativa crítica de solucionar nossos problemas. Leva à
nossa segunda tentativa (e assim por diante). Uma compreensão
satisfatória será alcançada se a interpretação, a teoria conjec­
tural, encontrar apoio no fato que esperávamos; ou se achar
apoio no fato de explicar muitos subproblemas, alguns dos quais
não foram vistos no começo. Assim podemos dizer que podemos
avaliar o progresso que fizemos comparando Pi com alguns
de nossos problemas posteriores (Pa, digamos).
Esta análise esquemática é aplicável muito amplamente; e
opera inteiramente com objetos de terceiro mundo tais como
problemas, conjecturas e argumentos críticos. E contudo é uma
análise do que estamos fazendo em nosso segundo mundo sub­
jetivo quando tentamos compreender.
Uma análise mais detalhada mostraria que sempre extraí­
mos nosso problema em confronto com uma base(14) de ter­
ceiro mundo. Essa base consiste de pelo menos uma linguagem,
que sempre incorpora muitas teorias na própria estrutura de seus
usos (como frisou, por exemplo, Benjamin Lee Whorf) e de
muitas outras suposições teóricas, não desafiadas pelo menos até
agora. É apenas sobre uma base como esta que um problema
pode surgir.
Um problema juntamente com sua base (e talvez junta­
mente com outros objetos de terceiro mundo) constitui o que
chamo uma situação de problema. Ainda outros objetos de ter­
ceiro mundo com que operamos podem ser: concorrência e
conflito (entre teorias e problemas, aspectos de conjecturas, in­
terpretações, e posições filosóficas); e comparações ou con­
trastes, ou analogias. É importante notar que a relação entre
uma solução e um problema é uma relação lógica e, assim, uma
relação objetiva de terceiro mundo; a que, se nossa solução
experimental não resolve nosso problema, ela pode resolver um
problema substituto. Isto leva à relação de terceiro mundo que
Lakatos denominou “desvio de problema!’, distinguindo entre
desvios de problema progressivos e degeneradores.(18)

160
7 — Compreensão e Solução de Problemas

Desejo sugerir aqui que a atividade de compreender é


essencialmente a mesma que a de solucionar problemas. Admi-
tidamente, como todas as atividades intelectuais, consiste de
processos subjetivos de segundo mundo. Mas o trabalho subjetivo
envolvido pode ser analisado, e tem de ser analisado, como uma
operação com objetos objetivos de terceiro mundo. É uma
operação que estabelece em alguns casos uma espécie de fami­
liaridade com esses objetos e com o manejo desses objetos. Para
usar uma analogia, pode ela ser comparada às atividades de um
construtor de pontes ou de casas: tentando resolver algum pro­
blema prático, ele trabalha com, ou manipula, unidades estru­
turais simples ou unidades estruturais mais complexas, com a
ajuda de instrumentos simples ou mais complexos.
Substituindo estas unidades estruturais e instrumentos de
primeiro mundo por unidades estruturais e instrumentos de ter­
ceiro mundo, tais como problemas, ou teorias, ou argumentos
críticos, obtemos um quadro do que estamos fazendo quando
tentamos compreender ou apreender uma estrutura de terceiro
mundo, ou quando tentamos dar ao terceiro mundo alguma
outra contribuição de solução de problema. Mas obtemos mais
do que um mero quadro. Minha tese central é que qualquer aná­
lise iníelectualmente significativa da atividade de compreender
tem de proceder principalmente, senão inteiramente, por ana­
lisar nossa manipulação de unidades estruturais e instrumentos
de terceiro mundo.
A fim de tomar esta tese um pouco mais saboreável, posso
lembrar talvez que essas unidades estruturais de terceiro mundo
são inteligíveis; isto é, objetos possíveis (ou virtuais) de nossa
compreensão. Não é de admirar que, se estivermos interessados
no processo de nossa compreensão, ou em algum de seus resul­
tados, teremos de descrever o que estamos fazendo, ou reali­
zando, quase inteiramente em termos desses objetos de com­
preensão, os inteligíveis, e de suas relações. Tudo o mais, como
uma descrição de nossos sentimentos subjetivos, de excitação, ou
decepção, ou satisfação, pode ser muito interessante mas pouco
tem a ver com o nosso problema, isto é, a compreensão de
inteligíveis, de objetos ou estruturas de terceiro mundo.
Estou disposto a admitir, todavia, que há certas experiên­
cias ou atitudes subjetivas que desempenham um papel no pro­
cesso de compreensão. Tenho em mente coisas tais como a
ênfase: a escolha de um problema ou uma teoria como impor­
tante, ainda que possa não ser precisamente o problema oú
teoria sob investigação; ou o oposto: a dispensa de alguma

161
teoria como irrelevante em vez de como falsa; ou, digamos,
como irrelevante para a discussão numa certa etapa, ainda que
possa ser importante em outra etapa; ou talvez mesmo a dis­
pensa de uma teoria como falsa e também como por demais
irrelevante para ser discutida explicitamente. Logicamente con­
siderado, isto vem a dar na proposta de que sua falsidade e
irrelevância devem ser relegadas para o “fundo” da discussão.
Uma proposta para assim relegar uma teoria ou um pro­
blema (ou uma narrativa, ou um “projeto” ) é transmitida, na
maioria das vezes, por meios expressivos e emocionais. ( 16)
Vê-se facilmente que, do ponto de vista de manipular objetos de
terceiro mundo, esses meios operam como uma espécie de taqui-
grafia: em princípio, podem ser substituídos por mais detalhada
análise da situação de problema objetiva. A dificuldade é que
esta análise pode ser complexa, pode tomar longo tempo e pode
ser considerada desvaliosa porque seu problema é somente esta­
belecer o fato de que há irrelevâncias.
Esta esboçada análise de algumas implicações emocionais
tenta ilustrar a alegação de que mesmo tais implicações podem
ser às vezes compreendidas melhor em termos de objetos de
terceiro mundo tais como situações de problema.
Não se deve confundir esta alegação com uma ainda mais
importante — a de que a tarefa de explicar estados psicológicos
tais como emoções cria seus próprios problemas teóricos a serem
resolvidos por suas próprias teorias experimentais; teorias (isto
é, objetos de terceiro mundo) a respeito do segundo mundo.
Mas isto não deve ser tomado como significando que somente,
ou principalmente, podemos entender as pessoas estudando teo­
rias psicológicas a respeito delas; nem pretende desdizer ou
mesmo restringir minha tese de que em toda compreensão, in­
clusive a compreensão de pessoas e de suas ações, e assim tam­
bém na compreensão da história, a análise de situações de ter­
ceiro mundo é nossa tarefa suprema.
Ao contrário, um de meus pontos principais é o de que
as ações, e portanto a história, podem ser explicadas como solu-
cionamento de problemas, e que a isto se pode aplicar minha
análise em termos do esquema de conjecturas e refutações
(Pi -* TT •* EE -*■ P2, como foi explicado na secção 6, atrás).
Antes de passar a este importante ponto, contudo, discu­
tirei primeiro com certa minúcia um exemplo do processo de
compreender um objeto de terceiro mundo: uma simples equa­
ção aritmética.
162
*

8 — Um Exemplo Muito Trivial

Fato aritmético muito trivial é que 777 vezes 111 são


86.247. Isto pode ser escrito como uma equação. Também pode
ser considerado como um teorema muito trivial da teoria dos nú­
meros naturais.
Compreendo eu esta proposição trivial?
Sim e não. Certamente compreendo a asserção — espe­
cialmente quando a vejo por escrito, pois de outro modo eu
podería não ser capaz de manejar ou reter um número tão
grande como 86.247. (Fiz a experiência e confundi-o com
86.427). Mas em algum sentido eu a compreendo, sem dúvida, e
de imediato, ao ouvi-la: 777 e 111 são fáceis de manejar e
compreendo que a proposição em questão é oferecida como
solução do problema: que número no sistema decimal é igual
a 777 vezes 111?
Quanto a solucionar o problema, sei naturalmente que há
muitas pessoas que podem achar sua solução muito facilmente,
de cabeça; eu mesmo posso consegui-lo, com árduo empenho.
Mas se quiser ter certeza de meu resultado, ou mesmo ter cer­
teza de que não o confundirei com um resultado diferente do
minuto seguinte, terei de fazer uso do que Bridgman chama
“operação de lápis e papel” ; tenho de por a coisa toda num
algoritmo em que haja unidades estruturais que possam ser
manejadas facilmente. (Sem dúvida, unidades estruturais de ter­
ceiro mundo.) Um dos pontos aqui é a eliminação de erro: as
operações feitas com papel e lápis facilitam descobrir e eli­
minar erros.
Até aqui utilizamos três dos quatro objetos que ocorrem
em meu esquema de solução de problemas (o esquema Pi -*
TT -» EE -*■ P2 apresentado na secção 6). A fim de com­
preender uma proposição, uma teoria experimental, indagamos
primeiro: qual era o problema? E a fim de eliminar o erro fi­
zemos um cálculo com papel e lápis. Embora tenhamos partido
de uma proposição, ou teoria experimental (TT) passamos daí
para o problema subjacente (para Pi) e depois para um mé­
todo de cálculo destinado a eliminar erros (EE). Um segundo
problema (P2) inseriu-se também? Sim: o método de eliminação
de erro, na verdade, leva a um desvio de problema: em nosso
caso, um desvio de problema muito trivial e degenerador —
a substituição de um problema de multiplicação por três mais
simples e por uma adição. O desvio de problema (de Pi para
P2) é sem dúvida degenerador; obviamente o é, porque não
temos aqui real interesse teórico — estamos apenas aplicando

163
uma rotina cujo fim é tornar mais fácil trabalhar com a solução
e mais fácil conferi-la (isto é, eliminar erros).
Mesmo neste exemplo extremamente trivial, podemios dis­
tinguir vários graus de compreensão.
(1) A simples compreensão do que foi dito, compreensão
no sentido de que também podemos “compreender” a proposi­
ção “777 vezes 111 são 68.427” sem notar que é falsa.
(2) A compreensão de que é uma solução de um pro­
blema.
(3) A compreensão do problema.
(4) A compreensão de que a solução é verdadeira, o que
em nosso caso é trivialmente fácil.
(5) A verificação da verdade, por algum método de eli­
minação de erro, também trivial em nosso caso.
Há, claramente, mais grau de compreensão. Especialmente
(3), a compreensão do problema, pode ser levado além. Pois
alguns podem, e outros não, a julgar que o problema é verbal,
de modo que “777 vezes 111”, embora não escrito no modo
decimal de escrever, é apenas um meio tão bom, ou melhor, de
formar um sinônimo do número “8 vezes 10.000, mais 6 vezes
1.000, mais 2 vezes 100, mais 4 vezes 10, mais 7”; e que
“86.247” é apenas um método taquigráfico de escrever esse
número. Esta espécie de compreensão exemplifica uma tentativa
de compreender a base, que normalmente se tem como assen­
tada. Assim, ela descobre um problema dentro dessa base.
Sem dúvida, esses graus de compreensão ( 17) não podem,
via de regra, ser colocados numa ordem linear; novas possibili­
dades de maior e melhor compreensão podem brotar em quase
todos os pontos, especialmente nos casos menos triviais.
Assim podemos aprender muita coisa com o nosso sim-
plíssimo exemplo. Talvez a coisa mais importante que podemos
aprender é a seguinte. Sempre que tentamos interpretar ou com­
preender uma teoria ou uma proposição, mesmo uma trivial
como a equação aqui discutida, estamos de fato suscitando um
problema de compreensão e isto sempre mostra ser um proble­
ma acerca de um problema, isto é, um problema de nível mais
alto.

9 — Um Caso de Compreensão Histórica Objetiva (ls)

Tudo isto vale para todos os problemas de compreensão, e


especialmente para o problema de compreensão histórica. Minha
164
tese é a de que a meta principal de toda compreensão histórica
é a reconstrução hipotética de uma situação de problema his­
tórica.
Tentarei explicar esta tese em certa minúcia com a ajuda
de outro exemplo: com a ajuda de algumas considerações his­
tóricas sobre a teoria das marés de Galileu. Esta teoria mos­
trou-se “malograda” (porque nega que a lua tenha qualquer
efeito sobre as marés) e mesmo em nosso próprio tempo Galileu
tem sido atacado severa e pessoalmente por seu dogmatismo em
aferrar-se obstinadamente a uma teoria tão obviamente falsa.
Em suma, a teoria de Galileu diz que as marés são um
resultado de acelerações que, por sua vez, são resultados dos
complexos movimentos da Terra. Mais precisamente, quando a
Terra, girando normalmente, está, além disso, a mover-se em
redor do sol, então a velocidade de qualquer ponto de super­
fície localizado no momento do lado oposto ao sol será maior
do que a velocidade do mesmo ponto quando, 12 horas depois,
ficar de frente para o sol. (Pois, se a é a velocidade orbital da
Terra e b é a velocidade rotacional de um ponto no equador,
então a + b é a velocidade desse ponto à meia-noite e a — b
é sua velocidade ao meio-dia.) Assim, a velocidade muda, o
que significa que devem surgir acelerações e retardamentos pe­
riódicos. Mas, diz Galileu, quaisquer retardamentos e acelera­
ções periódicos de uma bacia de água resultam em aspectos se­
melhantes aos das marés. (A teoria de Galileu é plausível, mas
incorreta nesta forma: afora a constante aceleração devida à
rotação da Terra — isto é, a aceleração centrípeta — que tam­
bém sobe se a é zero, não surge mais qualquer aceleração e por­
tanto, especialmente, nenhuma aceleração periódica. ( 19))
Que podemos fazer para melhorar nossa compreensão his­
tórica desta teoria, que tantas vezes tem sido mal interpretada?

Fte. 4.

Minha resposta a este problema de compreensão (que indi­


carei como “Pc”) marcha ao longo de linhas similares às de
165
minha resposta à questão de compreensão discutida antes em
conexão com a nossa trivial equação aritmética.
Alego que o primeiro passo, importantíssimo, é nos per­
guntarmos: qual era o problema (de terceiro mundo) para o
qual a teoria de Galileu era uma solução experimental? E qual
era a situação — a situação de problema lógica — em que esse
problema surgiu?
O problema de Galileu era, muito simplesmente, explicar
as marés. Contudo, sua situação de problema era muitíssimo
menos simples.
É claro que Galileu nem mesmo estava imediatamentè in­
teressado no que acabo de chamar seu problema. Foi outro pro­
blema que o levou ao problema das marés: foi o problema da
verdade ou da falsidade da teoria de Copérnico — o problema
de estar a Terra a mover-se ou em repouso. Galileu esperava
poder usar uma teoria das marés bem sucedida como argumento
decisivo em favor da teoria de Copérnico.
O que chamo situação de problema de Galileu mostra-se
uma questão complexa. Admitidamente, a situação de proble­
ma acarreta o problema das marés, mas o faz num papel espe­
cífico: a explicação das marés deve servir como pedra de toque
da teoria de Copérnico. Mesmo esta observação, porém, não
basta para uma compreensão da situação de problema de Ga­
lileu. Pois a teoria experimental de Galileu não tentava mera­
mente explicar a mudança das marés: tentava explicá-la sobre
certa base e, além disso, dentro de certa estrutura teórica dada.
Se a base não era problemática para Galileu, o que proponho
chamar “estrutura de Galileu” era altamente problemática e
Galileu tinha plena consciência deste fato.
Assim, verifica-se que, a fim de resolver nosso problema
de compreensão (P°) temos de investigar um objeto de terceiro
mundo bem complexo. O objeto consiste do problema das marés
(do qual a teoria de Galileu era uma solução experimental) jun­
tamente com sua montagem — sua base e sua estrutura: é este
objeto complexo que chamo a situação de problema.
A situação de problema de Galileu pode ser assim ca­
racterizada:
Como verdadeiro cosmólogo e teórico, Galileu, desde
muito, fora atraído pela incrível ousadia e simplicidade da
principal idéia de Copérnico, a idéia de que a Terra e os outros
planetas são luas do sol. O poder explicativo desta audaciosa
idéia era muito grande; e quando Galileu descobriu as luas
de Júpiter, reconhecendo nelas um pequeno modelo do sistema
solar, viu nisto uma corroboração empírica dessa ousada con­
cepção, apesar de seu caráter altamente especulativo e quase
a priori. Além de tudo isto, ele havia sido bem sucedido em

166
testar uma predição derivável da teoria de Copérnico: predi­
zia que os planetas interiores mostrariam fases como as da
lua; e Galileu conseguira observar as fases de Vênus.
Como a teoria de Ptolomeu, a teoria de Copérnico era
essencialmente um modelo cosmológico, construído por meios
geométricos (e cinemáticos). Mas Galileu era um físico. Sabia
que o problema real era encontrar uma explicação física me­
cânica (ou transmecânica); e efetivamente descobriu alguns
dos elementos de tal explicação, especialmente as leis da inér­
cia e a correspondente lei da conservação para os movimentos
rotativos.
Ousadamente, Galileu tentou basear sua física somente
nessas duas leis de conservação, embora estivesse bem cons­
ciente do fato de que devia haver grandes lacunas de terceiro
mundo em seu conhecimento físico. Do ponto de vista do mé­
todo, Galileu estava perfeitamente certo em tentar explicar
tudo com esta base estreitíssima; pois só se tentarmos explo­
rar e testar nossas teorias falíveis até o limite é que podere­
mos esperar aprender com seu malogro.
Isto explica por que razão Galileu, apesar de seu conheci­
mento da obra de Kepler, se aferrou à hipótese do movimento
circular dos planetas; e ele estava muito certo ao fazê-lo, em
vista do fato de que esse movimento circular podia ser expli­
cado por suas básicas leis de conservação. Diz-se muitas vezes
que ele tentou dar cobertura às dificuldades dos ciclos de
Copérnico e que supersimplificou a teoria de Copérnico de
modo injustificável; e também que ele deveria ter aceitado as
leis de Kepler. Mas tudo isto mostra uma falha de compreensão
histórica — um erro na análise da situação de problema de
terceiro mundo. Galileu estava muito certo em trabalhar com
supersimplificações ousadas; e as elipses de Kepler eram jus­
tamente supersimplificações tão ousadas quanto os círculos de
Galileu. Mas Kepler foi feliz por ter, em breve, suas supersim­
plificações usadas, e consequentemente explicadas, por Newton,
com um teste de sua solução do problema de dois corpos.
Mas porque Galileu rejeitou a idéia já bem conhecida
de uma influência da lua sobre as marés? Esta pergunta põe
à mostra um aspecto altamente importante da situação de pro­
blema. Em primeiro: lugar, Galileu rejeitou a influência lunar
porque era adversário da astrologia, que essencialmente iden­
tificava os planetas com os deuses; neste sentido, foi um
precursor do Iluminismo; e era também adversário da astro­
logia de Kepler, embora admirasse Kepler. Em segundo lugar,
ele operava coni um princípio mecânico de conservação para
movimentos rotativos e isto parecia excluir influências inter­
planetárias. Sem a tentativa de Galileu de explicar as marés
167
com esta estreitíssima base, poderiamos nunca ter descoberto
que a base era estreita demais e que era necessária outra idéia
— a idéia da atração, de Newton (e com ela a de uma força);
idéias que quase tinham o caráter de astrológicas e que foram
consideradas ocultas por muitos homens esclarecidos, como
Bukeley.(21) Foram mesmo consideradas ocultas pelo próprio
Newton.
Assim, somos levados, pela análise da situação de pro­
blema de Galileu, a justificar a racionalidade do método de
Galileu em diversos pontos nos quais tem sido ele criticado por
vários historiadores; e assim somos levados a uma melhor
compreensão histórica de Galileu. Explicações psicológicas que
têm sido tentadas, como ambição, ciúme ou agressividade, ou
o desejo de criar uma agitação, tornam-se supérfluas. São subs­
tituídas aqui por uma análise situacional de terceiro mundo.
Similarmente, toma-se supérfluo criticar Galileu por “dogma-
tismo”, por haver-se aferrado ao movimento circular, ou in­
troduzir a idéia duma atração psicológica misteriosa no “mis­
terioso movimento circular”. (Dilthey chama-a idéia arqué­
tipo, ou que é psicologicamente atraente. ( 22) ) Pois o método
de Galileu foi correto quando tentou ir tão longe quanto possí­
vel com a ajuda da lei racional de conservação para os movi­
mentos rotativos. (Ainda não havia qualquer teoria dinâmica.)
Este resultado ilustraria como, juntamente com a nossa
compreensão de sua situação de problema objetiva, cresceu
nossa compreensão histórica do papel de Galileu. Podemos
agora indicar esta situação de problema por “Pi”, pois ela de­
sempenha papel análogo ao daquele P2 que tivemos antes. E
podemos indicar a teoria experimental de Galileu por “TT”; e
podemos indicar por “EE” as suas tentativas, e as de outros,
para discutí-la criticamente e eliminar erros. Galileu, embora es­
perançoso, ficou longe de satisfazer-se com o resultado de sua
discussão. Podemos dizer que seu P2 estava muito próximo de
seu P i ; ístô é, o problema continuava em aberto.
Muito mais tarde a questão levou a uma mudança revo­
lucionária (devida a Newton) na situação de problema (P2).
Newton ampliou a estrutura de Galileu — a estrutura das leis
dè conservaçãò dentro da qual fora concebido o problema de
Galileu. Êarte da mudança revolucionária de Newton foi ter
ele rèâáfhitido na teoria a lua, cujo banimento da teoria das
marés fofa conseqüência necessária da estrutura de Galileu (e
dâ frase).
Para resumir o caso rapidamente, a estrutura física de
Galileu era uma forma um tanto simplificada do modelo do sis­
tema solar de Copérnico. Era um sistema de ciclos (e talvez
epiciclos) com velocidade rotacional constante. Mesmo Einstein
168
t

comentou a “fixação (de Galileu) à idéia do movimento cir­


cular”, que considerou “responsável pelo fato de não ter ele
reconhecido plenamente a lei da inércia e sua significação fun­
damental”^ 23) Mas esqueceu que, assim como a teoria de
Newton se baseava na lei da inércia, ou na lei de conservação
de momento, assim também a teoria de ciclo-epicicho, em suas
mais simples formas, que aderiam a velocidades constantes —
foi a forma preferida por Galileu — se baseava originariamente
na lei de momento angular. Ambas as leis de conservação são
sem dúvida sustentadas “instintivamente”, talvez devido a algo
como a seleção de conjecturas sob a pressão de experiência
prática: para a lei de momento angular pode ter sido decisiva
a experiência com rodas de carro bem lubrificadas. Devemos
também lembrar que a antiga teoria da rotação circular dos
céus (que deriva desta experiência) foi finalmente substituída
pela conservação, por parte da Terra, de seu momento angular;
indicação de que os ciclos não eram tão ingênuos nem tão mis­
teriosos como ainda muitas vezes se pensa que fossem. Dentro
desta estrutura —- como oposta à dos astrólogos — não podia
haver interação entre os corpos celestes. Assim a teoria lunar
das marés, afirmada pelos astrólogos, tinha de ser rejeitada por
Galileu. (24)
Podemos aprender alguma coisa com este exemplo? Penso
que sim.
Primeiro: o exemplo mostra a imensa importância da re­
construção da situação de problema de Galileu (Pi) para a com­
preensão da teoria de Galileu (TT). A importância dessa re­
construção é ainda maior para a compreensão de teorias malo­
gradas como a de Galileu do que para as bem sucedidas, pois
sua falha (a falha de TT) pode ser explicável por uma falha
na estrutura ou na base de Pj.
Segundo: no caso presente, toma-se óbvio que a reconstru­
ção da situação de problemas de Galileu (Pj) tem por sua
vez o caráter de uma conjectura (e também de uma supersim-
plificação ou idealização); isto é óbvio, considerando que minha
análise dessa situação de problema (Pi), breve como é, des­
via-se consideravelmente da de outros que tentaram compreen­
der essa malograda teoria de Galileu. Mas se minha recons­
trução de Pi é uma conjectura, qual é o problema que esta con­
jectura tenta resolver? Obviamente, é Pc, o problema de com­
preensão da teoria de Galileu.
Meu terceiro ponto é este: nossd problema de compreen­
são, Pc, está em nível mais alto do que Pj. Isto é, o problema,
de compreensão é um metaproblema: é acerca de TT e também
acerca de Pi. Conseqüentemente, a teoria destinada a resolver

169
o problema de compreensão é uma metateoria, pois é uma teoria
de cuja tarefa é parte descobrir, em cada caso particular, de
que consistem realmente Pi, TT, EE e P2.
Isto, incidentemente, não deve ser tido como implicado
que em cada caso particular somente as estruturas de Pi, TT,
etc., tenham de ser descobertas pela metateoria, enquanto o
próprio esquema (Pi -» TT -» EE -» P2) tem de ser aceito
sem crítica. Ao contrário, o esquema, deve-se acentuar de
novo, é uma supersimplificação e deve ser elaborado ou mesmo
radicalmente modificado sempre que surgir tal necessidade.
Meu quarto ponto é que qualquer tentativa (exceto as
mais triviais) de compreender uma teoria sujeita-se a abrir
uma investigação histórica a respeito dessa teoria e de seu pro­
blema, que assim se torna parte do objeto da investigação. Se a
teoria for científica, a investigação será dentro da história da ciên­
cia. Se a teoria for, digamos, histórica, a investigação será dentro
da história da historiografia. Os problemas que essas investiga­
ções históricas tentam resolver serão metaproblemas, a ser niti­
damente distinguidos dos problemas que são os objetos sob
investigação.
Meu quinto ponto é que a história da ciência não deve ser
tratada como uma história de teorias, mas como uma história
de situações de problema e suas modificações (às vezes imper­
ceptíveis, às vezes revolucionárias) através da intervenção de
tentativas para resolver os problemas. Historicamente, tentati­
vas frustradas podem assim mostrar terem sido tão importantes
para o desenvolvimento ulterior quanto as bem sucedidas.
Meu sexto ponto (que simplesmente elabora o terceiro) é
que temos de distinguir entre os metaproblemas e as meta-
teorias do historiador da ciência (que estão no nível P°) e os
problemas e teorias dos cientistas (qúe estão no nível P j). Ê
fácil por demais misturar os dois, pois, se formularmos o pro­
blema do historiador perguntando “Qual era o problema de
Galileu?”, a resposta parece ser “Pi” ; mas Pi (contrariamente
a “O problema de Galileu era Pi) parece pertencer ao nível
de objeto em vez de ao nivel meta;(2B) e assim os dois níveis
se confundem.
Mas não há, em geral, problemas comuns aos diferentes
níveis. Isto se vê facilmente: duas metateorias experimentais do
mesmo objeto são com frequência muito diferentes. Dois histo­
riadores da ciência que concordam sobre “os fatos” podem
compreendê-los ou interpretá-los de muitos modos diferentes
(às vezes de modos complementares, às vezes de modos con­
flitantes). Podem mesmo discordar sobre o que constitui seus
problemas. Assim, em geral, não compartilharão reciprocamente

170
0

dos problemas, e menos ainda da teoria que é o objeto de sua


investigação e interpretação.
Também, a fim de interpretar uma teoria, o metateórico
tem liberdade para usar qualquer coisa que possa ser útil; por
exemplo, pode contrastar a teoria com algumas teorias con­
correntes radicalmente diferentes^ Assim, algumas das unidades
estruturais de terceiro mundo que constiuem a metateoria podem
ser extremamente dissemelhantes das que constituem a teoria
a ser interpretada ou compreendida.
O ponto é importante. Estabelece a fortiori que, mesmo se
pudermos falar sensatamente (o que estou inclinado a negar)
de coisa tal como uma similaridade entre conteúdos de pensa­
mento de terceiro mundo, de um lado, e, do outro lado, aqueles
processos de pensamento de segundo mundo por meio dos quais
apreendemos esses conteúdos, ainda então eu continuaria a
negar que efetivamente haja, em geral, qualquer similaridade,
em qualquer nível de problemas, entre os conteúdos e os pro­
cessos de pensamento correspondentes. Pois o método de ter­
ceiro mundo de compreensão histórica que estou tentando des­
crever é um método que, sempre onde possível, substitui as
explicações psicológicas pela análise das relações de terceiro
mundo: em vez de princípios explanatórios psicológicos fazemos
uso de considerações de terceiro mundo, principalmente de um
caráter lógico; e minha tese é a de que, com tais análises, nossa
compreensão histórica pode crescer.
Meu sétimo e talvez mais importante ponto refere-se ao
que às vezes tenho descrito como lógica situacional ou análise
situacional. (26) (Este último nome pode ser preferível porque
se pode achar que o primeiro sugere uma teoria determinista
de ação humana; naturalmente, está longe de minha intenção
sugerir algo como isto.)
Por análise situacional quero dizer uma certa espécie de
explicação conjectural ou experimental de alguma ação humana
que recorra à situação em que o agente se encontra. Pode ser
uína explicação histórica: talvez possamos desejar explicar como
e por que certa estrutura de idéias foi criada. Admitidamente,
nenhuma ação criativa pode ser jamais plenamente explicada.
Não obstante, podemos tentar, conjecíuralmenté, dar uma re­
construção idealizada da situação de problema em que o agente
se encontrou e, até essa extensão, tom ar a ação “compreensível”
(ou “racionalmente compreensível” ), isto é, adequada à situa­
ção dele tal como ele a viu. Este método de análise situacional
pode ser descrito como uma aplicação do princípio de racio­
nalidade.
Seria tarefa da análise situacional distinguir entre a situa­
ção tal como o agente a viu e a situação tal como era (ambas,

171
sem dúvida, conjecturadas). (27) Assim, o historiador da ciên­
cia não só tenta explicar pela análise situacional a teoria pro­
posta por um cientista como adequada, mas pode mesmo ten­
tar explicar o malogro do cientista.
Em outras palavras, nosso esquema de solução de pro­
blema por conjectura ou refutação, ou um esquema similar,
podem ser usados como uma teoria explicativa de ações huma­
nas, desde que possamos interpretar uma ação como uma tenta­
tiva para resolver um problema. Deste modo a teoria expli­
cativa de ação consistirá, no principal, de uma reconstrução
conjectural do problema e de sua base. Uma teoria dessa es­
pécie pode muito bem ser testável.
Tenho tentado responder à pergunta: “Como podemos com­
preender uma teoria científica ou melhorar nossa compreensão
dela?” E tenho sugerido que minha resposta, em termos de
problemas e de situações de problemas, pode ser aplicada muito
além da teoria científica. Podemos, pelo menos em alguns casos,
aplicá-la até mesmo a obras de arte: podemos conjecturar qual
era o problema do artista e podemos ser capazes de sustentar
essa conjectura por meio de evidência independente; e esta aná­
lise pode ajudar-nos a compreender a obra.(28)
(Posição um tanto intermediária entre a tarefa de inter­
pretar uma teoria científica e interpretar uma obra de arte pode
talvez ser ocupada pela tarefa de reconstruir uma obra de arte
danificada — digamos reconstruir um poema encontrado em
forma de um papiro danificado.)

10 — O Valor de Problemas

À minha sugerida solução do problema “Como podemos


compreender uma teoria científica ou melhorar nosso conheci­
mento dela?” pode-se objetar que ela simplesmente desvia a
questão; pois simplesmente a substitui pela indagação corre­
lata — “Como podemos compreender um problema científico
ou melhorar nosso conhecimento dele?”
A objeção é válida. Mas, via de regra, o desvio do pro­
blema será progressivo (para usar a terminologia do Professor
Lakato), Via de regra, a segunda indagação — o metaproblema
de compreender um problema — será mais difícil e mais inte­
ressante do que a primeira. De qualquer modo, penso que é a
mais fundamental das duas indagações, porque penso que a
ciência parte de problemas (e não de observações ou mesmo de
teorias, embora, admitidamente, a “base” do problema contenha
teorias e mitos).

172
t

Seja como for, sugiro que este segundo metaproblema é


diferente do primeiro. Naturalmente, podemos e devemos lidar
sempre com ele como lidamos com o primeiro: por meio de
uma reconstrução histórica idealizante. Mas sugiro que isto é
insuficiente.
Minha tese é a de que, a fim de conseguir uma compreen­
são real de qualquer problema dado (digamos,'a situação de
problema de Galileu), é necessário mais do que uma análise
deste problema, ou de qualquer problema para o qual conhe­
çamos uma boa solução: a fim de compreender qualquer pro­
blema assim “morto” devemos, pelo menos uma vez na vida,
ter lutado seriamente com algum problema vivo.
Assim, minha resposta ao metaproblema “Como podemos
aprender a compreender um problema científico?” é: aprenden­
do a compreender algum problema vivo. E isto, afirmo, só
pode ser feito tentando resolvê-lo e fracassando em resolvê-lo.
Imaginemos um jovem cientista que encontre um problema
que não compreende. Que pode ele fazer? Sugiro que, mesmo
que não o compreenda, pode tentar resolvê-lo e criticar a pró­
pria solução que lhe der (ou conseguir que outros a critiquem).
Visto como não entende o problema, sua solução será um ma­
logro, fato que a crítica revelará. Deste modo, será dàdo um
primeiro passo para indicar onde fica a dificuldade. E isto signi­
fica, precisamente, que será dado um primeiro passo para com­
preender o problema. Pois um problema é uma dificuldade e
compreender um problema consiste em descobrir que M uma
dificuldade e onde a dificuldade se acha. E isto só pode ser
feito descobrindo onde certas soluções de “prima facie” não
funcionam.
Assim, aprendemos a compreender um problema tentando
resolvê-lo e fracassando. E quando tivermos fracassado cen­
tenas de vezes, podemos mesmo tornar-nos peritos com relação
a esse problema particular. Isto é, se alguém propuser uma so­
lução, podemos ver de imediato se há alguma perspectiva de
sucesso para essa proposta ou se a proposta fracassará em razão
daquelas dificuldades que conhecemos demasiadamente bem por
causa de nossos fracassos passados.
Aprender a compreender um problema, assim, é questão
de manejar unidades estruturais de terceiro mundo; e conse­
guir uma apreensão intuitiva do problema é familiarizar-se com
essas unidades e com suas inter-relações lógicas. (Tudo isto, sem
dúvida, assemelha-se à apreensão intuitiva de uma teoria.)
Sugiro que apenas alguém que tenha lutado assim com um
problema vivo pode alcançar uma boa compreensão de um
problema como o de Galileu, pois só ele poderá avaliar sua
própria compreensão. E somente ele compreenderá plenamente

173
(no terceiro nível, por assim dizer) a significação de minha
asserção de que o primeiro passo vital para compreender uma
teoria é compreender a situação de problema em que ela surge.
Sugiro também que o muito discutido problema da trans­
ferência de aprendizado de uma disciplina para outra estreita­
mente se liga ao ganho de experiência na luta com problemas
vivos. Os que só aprenderam como aplicar alguma dada estru­
tura teórica à solução de problemas que surgem dentro dessa
estrutura e que são solúveis dentro dela(29) não podem esperar
que seu adestramento os auxilie muito em outra especialização,
Diversamente ocorre com os que têm, eles próprios, lutado com
problemas, especialmente se sua compreensão, esclarecimento e
formulação mostraram ser difíceis. (30)
Assim, penso que os que lutaram com um problema podem
ser recompensados ganhando uma compreensão de campos bas­
tante afastados dos que lhes são próprios.
Pode ser interessante e frutuosò investigar até onde po­
demos aplicar análises situacionais (a idéia de solucionar pro­
blemas) à arte, à música e à põesia, e se isto pode ajudar nossa
compreensão nesses campos. Não duvido de que, em alguns
casos, possa ajudâr. Os Cadernos de notas de Beethoven para o
último movimento da Nona Sinfonia mostram que a introdução
deste movimento conta a história das tentativas do compositor
para resolver um problema -— o problema de romper em pa­
lavras. Ver isto auxilia nossa compreensão da música e do mú­
sico. Se esta compreensão ajuda nosso gozo da música é coisa
diferente.

11 -— Compreensão (“Hermenêutica”) nas Humanidades

Isto me traz áo problema da compreensão nas humani­


dades ( Geisteswissenschaften).
Quase todos os grandes estudiosos deste problema — men­
cionarei apenas Dilthey e Collingwood — sustentam que as
humanidades diferem radicalmente das ciências naturais e que a
diferença mais saliente está nisto: em que a tarefa central das
humanidades é compreender, num sentido de podermos com­
preender homens, mas não a natureza.
Diz-se que a compreensão deve ser baseada em nossa huma­
nidade comum. Em sua forma fundamental, ela é uma espécie
de identificação intuitiva com outras pessoas, na qual somos
ajudados por motivos expressivos, como gestos e fala. É, além
disso, uma compreensão de ações humanas. E é, por fim, uma
compreensão dos produtos da mente humana.

174
t

Deve-se admitir que, no sentido aqui indicado, podemos


compreender pessoas e suas ações e produtos, ao passo que não
podemos compreender a “natureza” — sistemas solares, molé­
culas, ou partículas elementares. Contudo, aqui não há uma
divisão nítida. Podemos aprender a compreender os movimen­
tos expressivos de animais superiores num sentido muito si­
milar àquele em que compreendemos pessoas. Mas, que é um
animal “superior”? E limita-se a eles nossa compreensão? (H. S.
Jennings aprendeu a compreender organismos unicelulares bas­
tante bem para lhes atribuir alvos e intenções.) (31) Na outra
ponta da escala, nossa compreensão intuitiva, mesmo de nossos
amigos, está longe de ser perfeita.
Estou inteiramente disposto a aceitar a tese de que a com­
preensão é a meta das humanidades. Mas duvido de que deva­
mos negar que seja também a meta das ciências naturais. Sem
dúvida, será “compreensão” num sentido ligeiramente diverso.
Mas já há muitas diferenças na compreensão de pessoas e de
suas ações. E não devemos esquecer uma asserção como a
seguinte, feita por Einstein numa carta a Born:
“Você acredita no Deus jogador de dados e eu na per­
feita norma de lei dentro de um mundo de alguma realidade
objetiva que tento apreender de um modo desenfreadamente es­
peculativo.” (32)
Estou certo de que as tentativas desenfreadamente espe­
culativas de Einstein para “apreender” a realidade são tenta­
tivas de compreendê-la, num sentido da palavra “compreender”
em que esta tem pelo menos quatro similaridades com a com­
preensão nas humanidades. (1) Assim como compreendemos
outras pessoas devido à humanidade de que participamos, pode­
mos compreender a natureza porque fazemos parte dela. (2)
Assim como compreendemos pessoas em virtude de uma raciona­
lidade de seus pensamentos e ações, assim podemos compreender
as leis da natureza em razão de alguma espécie de racionalidade
ou de necessidade compreensível(33) inerente a elas. Tem sido
esta uma esperança consciente de quase todos os grandes cien­
tistas, pelo menos desde Anaximandro, para não citar Hesíodo e
Heródoto;(34) e esta esperança encontrou pelo menos algum
cumprimento temporário, primeiro na teoria da gravidade de
Newton e depois na de Einstein. (3) A referência a Deus na
carta de Einstein indica outro sentido compartilhado com as
humanidades —r a tentativa de compreender o mundo da na­
tureza do modo pelo qual compreendemos uma obra de arte:
como uma criação. E (4) há nas ciências naturais aquela cons­
ciência de um malogro final de todas as nossas tentativas para
compreender, que tem sido muito discutido por estudiosos das

175
humanidades e que se tem atribuído à “diversidade” das outras
pessoas, à impossibilidade de qualquer autocompreensão real e
à inevitabilidade de supersimplificação, que é inerente a qual­
quer tentativa para compreender qualquer coisa singular e real.
(Podemos agora acrescentar que parece importar pouco que tal
realidade seja cósmica ou microcósmica.)
Oponho-me assim à tentativa de proclamar o método de
compreensão como característico das humanidades, marca pela
qual as podemos distinguir das ciências naturais. E quando seus
adeptos acusam de “positivista” ou “cientística” uma opinião
como esta minha, (35) então eu talvez possa responder que eles
mesmos parecem aceitar, implicitamente e sem crítica, que o
positivismo ou cientismo é a única filosofia apropriada às ciên­
cias naturais.
Isto é compreensível, considerando que tantos cientistas
naturais hajam aceitado esta filosofia cientística. Contudo, os
estudiosos das humanidades poderíam ter sabido melhor. A
ciência, afinal de contas, é um ramo da literatura; e trabalhar
em ciência é uma atividade humana como construir uma ca­
tedral. Não há dúvida de que há demasiada especialização e
demasiado profissionalismo na ciência contemporânea, que a
tornam desumana; mas isto também é infelizmente certo quanto
à história ou à psicologia contemporâneas, quase tanto como
quanto às ciências naturais.
Além disso, há um campo importante da história — talvez
o mais importante —, a história da opinão humana, do conheci­
mento humano, que compreende a história da religião, da filo­
sofia e da ciência. Ora, há duas coisas acerca da história da
ciência. Uma é que só quem compreende á ciência (isto é, pro­
blemas científicos) pode compreender sua história; e a outra
é que só quem tem alguma compreensão real de sua história
(a história de suas situações de problema) pode compreender a
ciência.
Elaborar a diferença entre a ciência e as humanidades tem
estado em moda desde muito e tornou-se enfadonho. O método
de resolver problemas, o método da conjectura e da refutação,
é praticado por ambas. É praticado na reconstrução de um texto
danificado bem como na construção de uma teoria da radioati­
vidade. (38)
Mas eu iria ainda além e acusaria de “cientismo” pelo
menos alguns historiadores profissionais: de tentarem copiar o
método da ciência natural, não como ele efetivamente é, mas
como erradamente se alega que é. Este método, alegado mas
inexistente, é o de coligir observações e depois “extrair conclu­
sões” delas. É servilmente macaqueado por alguns historia­
dores que acreditam poder coligir evidência documentária que,
176
ê

correspondendo às observações da ciência natural, forme a


“base empírica” de suas conclusões.
Esse alegado método é um que nunca pode ser posto em
efetividade; não se pode coligir observações nem evidência do­
cumentária se primeiro não se tem um problema. (Um rece-
bedor de ingressos recolhe documentos, mas raramente coligirá
evidência histórica.)
Pior ainda do que a tentativa de aplicar um método ina-
plicável é o culto ao ídolo do conhecimento certo, ou infalível,
ou autorizado, que esses historiadores confundem com o ideal
da ciência. (37) Admitidamente, todos nos esforçamos por evitar
erro; e deveriamos ficar tristes ao cometer um engano. Todavia,
evitar erros é um ideal pobre: se não ousarmos atacar proble­
mas tão difíceis que o erro seja quase inevitável, então não
haverá crescimento do conhecimento. De fato, é com as nossas
teorias mais ousadas, inclusive as que são errôneas, que mais
aprendemos. Ninguém está isento de cometer enganos; a grande
coisa é aprender com eles.(38)

12 — Comparação com o Método de Representação


Subjetiva de Collingwood

A fim de ilustrar a aplicação da análise situacional à his­


tória e a fim de contrastá-la com o método de segundo mundo
de compreensão subjetiva, irei citar primeiro uma passagem do
filósofo, historiador e estudioso de historiografia R. G. Col­
lingwood.
Citarei esse trecho de Collingwood porque posso ir a seu
lado por longo caminho, embora não até o fim. Separamo-nos
ao chegar à questão do segundo e terceiro mundos: a questão
de escolher um método subjetivo ou um objetivo. (Concor­
damos sobre a signifcação das situações de problema.) O modo
psicológico de Collingwood pôr as coisas não é, de maneira algu­
ma, simplesmente uma questão de formulação. Em vez disso, é
parte essencial de sua teoria da compreensão (como é da de
Dilthey, embora Dilthey tentasse livrar-se da subjetividade por
temer a arbitrariedade).(39)
Como o trecho de Collingwood ilustra, sua tese é a de que
a compreensão da história pelo historiador consiste em sua re­
presentação de experiências passadas:
“Suponhamos q u e ... ele (o historiador) está lendo o
Código Teodosiano e tem diante de si certo decreto de um im­
perador. A simples leitura das palavras e a capacidade de
traduzí-las não importa em conhecer sua significação histórica.

177
A fim de fazê-lo, ele deve encarar a situação com que o impe­
rador tentava lidar e deve encará-la tal como aquele imperador
a encarou. Depois deve ver por si mesmo, tal como se a situação
do imperador fosse sua própria, como se podería lidar com tal
situação; deve ver as alternativas possíveis e as razões para
escolher uma em vez de outra; e assim deve passar pelo processo
por que o imperador passou para decidir sobre este caso par­
ticular. Está representando assim, em sua própria mente a ex­
periência do imperador; e só até onde ele o fizer terá algum
conhecimento histórico, distinto do conhecimento meramente
filológico, do significado do decreto”. (40)
Vereis que Collingwood dá grande ênfase à situação, es­
treitamente correspondente ao que chamo situação de problema.
Mas há uma diferença. Collingwood deixa claro que a coisa
essencial na compreensão da história não é a análise da própria
situação, mas o processo mental de representação do histo­
riador, a repetição simpática da experiência original. Para Col­
lingwood, a análise da situação serve meramente de auxílio —
ajuda indispensável — para essa representação. Minha con­
cepção é diametralmente oposta. Considero o processo psico­
lógico de representação como não essencial, embora admita
que ele pode às vezes servir de ajuda ao historiador, uma espé­
cie de verificação intuitiva do sucesso de sua análise situacional.
O que considero essencial não é a representação, mas a análise
situacional. A análise da situação pelo historiador é a sua con­
jectura histórica, que, neste caso, é uma metateoria a respeito
do raciocínio do imperador. Por estar em nível diferente do
raciocínio do imperador, não o representa, mas tenta produzir
uma reconstrução dele idealizada e raciocinada, omitindo ele­
mentos não essenciais e talvez aumentando-o. Assim o meta-
problema central do historiador é: quais eram os elementos deci­
sivos na situação de problema do imperador? Até onde o his­
toriador for bem sucedido na solução deste metaproblema, ele
compreenderá a situação histórica.
Assim, o que ele tem de fazer como historiador não é re­
presentar experiências passadas, mas enfileirar argumentos obje­
tivos pró e contra sua análise situacional conjectural.
Este método pode ter muito êxito mesmo naqueles casos
em que qualquer tentativa de representação necessariamente
malogra. Pois pode haver fatos que de muitos modos ficam além
da capacidade de ação do historiador e, portanto, de repre­
sentação. O ato a ser representado pode ser de insuportável
crueldade. Ou pode ser um ato de heroísmo supremo, ou de
desprezível covardia. Ou pode ser uma realização artística, ou
literária, ou científica, ou filosófica, que exceda de longe as ca-
178
t

pacidades do historiador. Admitidamente, se suas capacidades


no campo que tenta analisar forem insuficientes, sua análise
será desinteressante. Mas não podemos esperar (como faz Col­
lingwood) que o historiador combine os dotes de César, Cícero,
Catulo e Teodósio. Nenhum historiador de arte pode ser um
Rembrandt e poucos serão mesmo capazes de copiar uma grande
obra prima.
Enquanto nos casos mais interessantes uma representação
será impraticável para o historiador, em outros casos pode ser
perfeitamente possível, mas completamente supérflua. Estou pen­
sando naqueles incontáveis casos triviais em que, uma vez ana­
lisada a situação, torna-se óbvio que a ação de agente foi
adequada à situação, de modo trivial e comum.
A tarefa do historiador é, portanto, reconstruir a situação
de problema, tal como apareceu ao agente, de modo que as
ações do agente se tornem adequadas à situação. Isto é muito
semelhante ao método de Collingwood mas elimina da teoria
da compreensão e do método histórico precisamente o ele­
mento subjetivo ou de segundo mundo que para Collingwood
e muitos outros teóricos da compreensão (hermeneutas) é seu
ponto saliente.
Nossa reconstrução conjectural da situação pode ser uma
real descoberta histórica. Pode explicar um aspecto da história
até então não explicado; e isto pode ser corroborado por nova
evidência; por exemplo, pelo fato de que pode melhorar nossa
compreensão de algum documento, talvez atraindo nossa aten­
ção para certas alusões previamente desdenhadas ou não ex­
plicadas.
Para resumir: tentei mostrar que a idéia do terceiro mundo
é de interesse para uma teoria da compreensão que vise a com­
binar uma compreensão intuitiva da realidade com a objetividade
da crítica racional.

(Este capítulo representa uma conferência pro­


ferida (em versão alemã abreviada) a 3 de setem­
bro de 1968 em Viena e é reproduzido dos Akten
des X IV Internationalen Kongresses fiir Philosophie,
vol. I, Viena, 1968, pgs. 25-53. Algum material adi­
cional que está sendo agora incluído foi publicado
primeiramente (em alemão) em Schweizer Monat-
shefte, 50. Jahr, Heft 3, 1970, pgs. 207-15).

179
5 — A META DA CIÊNCIA

Falar de “meta” da atividade científica pode talvez parecer


um tanto ingênuo; pois, claramente, cientistas diferentes têm
metas diferentes, e a própria ciência (seja o que for que possa
significar) não tem metas. Admito tudo isto. E contudo parece
que, quando falamos de ciência, sentimos, mais ou menos niti­
damente, que há alguma coisa característica da atividade cien­
tífica; e como a atividade científica tem muito bem o aspecto
de uma atividade racional, e como uma atividade racional deve
ter alguma meta, a tentativa de descrever a meta da ciência
pode não ser inteiramente fútil.
Sugiro que a meta da ciência é encontrar explicações satis­
fatórias de qualquer coisa que nos impressione como necessi­
tando de explicação. Por explicação (ou explicação causai)) en­
tende-se um conjunto de asserções por meio das quais uma
delas descreve o estado de coisas a ser explicado (o explicart-
dum) enquanto as outras, as asserções explicativas, formam
a “explicação” no sentido mais estreito da palavra (o expli-
cans do explicandum.)
Podemos tomar como norma que o explicandum é mais ou
menos bem conhecido como sendo verdadeiro, ou se supõe que
assim seja conhecido. Pois há pouco interesse em pedir uma
explicação de um estado de coisas que possa mostrar-se inteira­
mente imaginário. (Os discos voadores podem representar um
caso desses: a explicação necessária pode não ser de discos
voadores, mas de notícias de discos voadores; contudo, se
existissem discos voadores, então não seria reclamada maior
explicação das notícias.) O explicans, por outro lado, que é o
objeto de nossa pesquisa, via de regra não será conhecido: terá
de ser descoberto. Assim, a explicação científica, sempre que
for uma descoberta, será a explicação do conhecido pelo des-
conhecido. ( 1)
O explicans, a fim de ser satisfatório (ser satisfatório pode
ser uma questão de grau), deve preencher certo número de con­
dições. Primeiro: deve acarretar logicamente o explicandum.
Segundo: o explicans deve ser verdadeiro, embora, em geral,

180
0

não se conheça que é verdadeiro; em qualquer caso, não deve


ser conhecido como sendo falso, mesmo após o mais crítico
exame. Se não se sabe que é verdadeiro (como será habitual­
mente o caso), deve haver evidência independente em seu
favor. Em outras palavras, deve ser testável independentemente;
e vê-lo-emos como tanto mais satisfatório quanto maior for a
severidade dos testes independentes a que sobreviveu.
Ainda tenho de elucidar meu uso do vocábulo “indepen­
dente” com seus opostos, “ad hoc” e (em casos extremos)
“circular”.
Seja a um explicandum, que se sabe ser verdadeiro. Como
a trivialmente provém do próprio a, podemos oferecer sempre a
como uma explicação de si mesmo. Mas isto seria altamente
insatisfatório, ainda que soubéssemos neste caso que o expli­
cans é verdadeiro e que o explicandum provém dele. Assim,
devemos excluir explicações deste tipo por causa de sua cir­
cularidade.
Contudo, o tipo de circularidade que tenho em mente é
uma questão de grau. Considere-se o seguinte diálogo: “Por
que o mar está tão bravo hoje?” — “Porque Netuno está muito
zangado.” — “Com que evidência você pode apoiar sua afir­
mação de que Netuno está muito zangado?” — “Oh,.você não
vê que o mar está muito bravo? E ele não fica sempre bravo
quando Netuno está zangado?” Esta explicação é considerada
insatisfatória porque (tal como no caso da explicação inteira­
mente circular) a única evidência para o explicans é o próprio
explicandum. (2) Achar que este tipo de explicação quase cir­
cular ou ad hoc é altamente insatisfatório e exigir que explica­
ções deste tipo sejam evitadas figuram entre as principais forças
motivador as do desenvolvimento da ciência, creio eu: a insatis­
fação está entre os primeiros frutos da abordagem crítica ou
racional.
A fim de que o explicans não seja ad hoc, ele deve ser
rico em conteúdo: deve ter uma variedade de conseqüências
testáveis e entre elas, especialmente, conseqüências testáveis
que sejam diferentes do explicandum. Estas conseqüências testá-
veís diferentes são as que tenho em mente quando falo de testes
independentes ou de evidência independente.
Embora estas observações talvez possam ajudar a elucidar
um tanto a idéia intuitiva de um explicans independentemente
testável, elas ainda são bem insuficientes para caracterizar uma
explicação satisfatória e independentemente testável. Pois, se
a é nosso explicandum — seja a outra vez “O mar está bravo
hoje” —, então podemos sempre oferecer um explicans alta­
mente insatisfatório que é completamente ad hoc mesmo que
tenha conseqüências independentemente testáveis. Podemos
181
ainda escolher essas consequências como preferirmos. Podemos
escolher, digamos, “Estas ameixas são suculentas” e “Todos
os corvos são pretos”. Seja b sua conjunção. E não podemos
tomar como explicans simplesmente a conjunção de a e b: isto
satisfará todas as nossas exigências até aqui expostas.
Só se exigirmos que as explicações façam uso de asser­
ções universais ou leis da natureza (suplementadas pelas condi­
ções iniciais) poderemos progredir para realizar a idéia de ex­
plicações independentes, ou não ad hoc. Pois as leis universais
da natureza podem ser asserções com rico conteúdo, de modo
que podem ser independentemente testadas em qualquer parte e
a qualquer tempo. Assim, se forem usadas como explicações,
podem não ser ad hoc porque podem permitir que interpre­
temos o explicctndum como um caso de efeito reproduzível.
Tudo isto, porém, só é verdadeiro se nos limitarmos a leis
universais que sejam testáveis, quer dizer, falsificáveis.
A pergunta “Que tipo de explicação pode ser satisfatória?”
leva assim à resposta: uma explicação em termos de leis uni­
versais testáveis e falsificáveis e de condições iniciais. E uma
explicação deste tipo será tanto mais satisfatória quanto mais
altamente testáveis forem essas leis e quanto mais bem testa­
das houverem sido. (Isto também se aplica às condições iniciais.)
Desse modo, a conjectura de que a meta da ciência é
encontrar explicações satisfatórias leva-nos, adiante, à idéia de
melhorar o grau de satisfação das explicações melhorando seu
graii de testabilidade, isto é, passando para teorias mais bem
testáveis; o que significa passar para teorias de conteúdo sempre
mais rico, de mais alto grau de universalidade e de mais alto
grau de precisão.(3) Isto, sem dúvida, está plenamente em
consonância com a prática efetiva das ciências teóricas.
Podemos chegar fundamentalmente ao mesmo resultado
também de outro modo. Se a meta da ciência é explicar então
será também sua meta explicar o que até agora tem sido aceito
com um explicans; por exemplo, uma lei da natureza. Assim a
tarefa da ciência constantemente se renova. Podemos marchar
para sempre, passando a explicações de nível de universalidade
cada vez mais alto — a menos, realmente, que cheguemos a
uma explicação final; isto é, a uma explicação que não seja capaz
de qualquer explicação ulterior nem necessite dela.
Há, porém, explicações finais? A doutrina que tenho cha­
mado “essencialismo” importa na concepção de que a ciência
deve buscar explicações finais em termos de essências: (4) se
pudermos explicar o comportamento de uma coisa em termos
de sua essência — de suas propriedades essenciais — então
não podem ser suscitadas mais questões e nenhuma precisa ser
suscitada (exceto, talvez, a questão teológica do Criador das
182
*

essências). Assim, Descartes acreditava haver explicado a física


em termos da essência de um corpo jísico, que, ensinava, era
a extensão; e alguns newtonianos, acompanhando Roger Cotes,
acreditavam que a essência da matéria era sua inércia e seu
poder de atrair outra matéria e que a teoria de Newton podia
ser derivada dessas propriedades essenciais de toda matéria
e, assim, ter nelas sua explicação final. O próprio Newton era
de opinião diferente. Era uma hipótese referente à explicação
final ou causai essencialista da própria gravidade o que ele
tinha em mente quando escreveu em Scholium generale, no fim
do Principia: “Até aqui tenho explicado os fenômenos... pela
força da gravidade, mas ainda não averiguei a causa da própria
gravidade... e não invento hipóteses arbitrariamente” (ou ad
hoc).(5)
Não creio na doutrina essencialista da explicação final. No
passado, críticos dessa doutrina foram, via de regra, instrumen­
talistas: interpretavam as teorias científicas como nada mais que
instrumentos para predição, sem qualquer força explicativa.
Também não concordo com eles. Mas há uma terceira possi­
bilidade, uma “terceira concepção”, como a chamei. Tem sido
bem descrita como um “essencialismo modificado” — com
ênfase na palavra “modificado”.(8)
Esta “terceira concepção” que eu sustento modifica o essen­
cialismo de maneira radical. Antes de tudo, rejeito a idéia de
uma explicação final: mantenho que qualquer explicação pode
ser ainda mais explicada por uma teoria ou conjectura de mais
alto grau de universalidade. Não pode haver explicação que não
precise de maior explicação, pois nenhuma pode ser uma des­
crição auto-explicativa de uma essência (como uma definição
essencialista de corpo, segundo Descartes sugeriu). Em segundo
lugar, rejeito todas as perguntas de que-é: perguntas indagando
o que uma coisa é, qual é a sua essência, ou sua verdadeira
natureza. Pois devemos abandonar a opinião, característica do
essencialismo, de que em cada coisa isolada há uma essência,
uma natureza, ou princípio, inerente (como o espírito de vinho
no vinho) que necessariamente causa que ela seja o que é e,
assim, aja como age. Esta opinião animista nada explica; mas
tem levado essencialistas (como Newton) a fugir de proprie­
dades relacionais, com a gravidade, e a crer, em terreno con­
siderado válido a priori, que uma explicação satisfatória deve
ser em termos de propriedades inerentes (em oposição a pro­
priedades relacionais). A terceira e última modificação do es­
sencialismo é esta: Devemos abandonar a opinião, estreitamente
ligada ao animismo (e característica de Aristóteles, em opo­
sição a Platão), de que é às propriedades essenciais inerentes
a cada coisa individual ou singular que se pode recorrer como
183
a explicação do comportamento dessa coisa. Pois esta concepção
deixa completamente de lançar qualquer luz sobre a questão:
por que coisas individuais diferentes se comportariam de ma­
neira semelhante? Se se disser ‘‘porque suas essências são seme­
lhantes”, surge nova questão: por que não havería tantas essên­
cias diferentes quantas são as coisas diferentes?
Platão tentou resolver este problema dizendo que coisas
individuais semelhantes são o produto, e assim cópias, da mesma
“Forma” original, que é portanto algo “externo” e “anterior”
e “superior” às várias coisas individuais; e realmente ainda não
temos teoria melhor da semelhança. Mesmo hoje recorremos à
sua origem comum quando desejamos explicar a semelhança
de dois homens, ou de uma ave, e um peixe, ou de duas camas,
ou de dois automóveis, ou duas linguagens, ou dois procedi­
mentos legais; isto é, explicamos a similaridade, de modo prin­
cipal, geneticamente; e se extrairmos disto um sistema metafí­
sico, está ele sujeito a tomar-se uma filosofia historicista. A
solução de Platão foi rejeitada por Aristóteles; mas, como a
versão do essencialismo de Aristóteles não contém sequer su­
gestão de uma solução, parece que ele nunca apreendeu total­
mente o problema. (7)
Escolhendo explicações em termos de leis universais da
natureza, oferecemos uma solução precisamente a este último
problema (platônico). Pois concebemos todas as coisas indi­
viduais e todos os fatos singulares como sujeitos a estas leis.
As leis (que por sua vez têm necessidade de maior explicação)
explicam assim as regularidades ou similaridades de coisas indi­
viduais ou de fatos ou eventos singulares. .. E essas leis não
são inerentes às coisas singulares. (Nem são idéias platônicas
exteriores ao mundo.) As leis da natureza, antes, são concebi­
das como descrições (conjecturais) das propriedades estruturais
da natureza — de nosso próprio mundo.
Aqui, portanto, está a semelhança entre minha própria
opinião (a “terceira concepção” ) e o essencialismo; embora
eu não pense que possamos jamais descrever, por meio de nossas
leis universais, uma essência final do mundo, não duvido de que
podemos investigar cada vez mais fundo na estrutura de nosso
mundo ou, como poderiamos dizer, nas propriedades do mundo
que sejam cada vez mais essenciais ou de profundidade cada
vez maior.
Sempre que passamos a explicar uma lei ou teoria con­
jectural por meio de uma nova teoria conjectural de grau de
universalidade superior, estamos descobrindo mais acerca do
mundo, tentando penetrar mais fundo em seus segredos. E
sempre que conseguimos tomar falsa uma teoria dessa espécie,
fazemos uma nova descoberta importante. Pois estas falsifica­
184
*

ções são mu^to importantes. Elas nos ensinam o inesperado; e


nos confirmam que embora nossas teorias sejam feitas por nós
mesmos, embora sejam invenções de nós mesmos, nem por
isso deixam de ser asserções genuinas acerca do mundo; pois
podem chocar-se com algo que nunca fizemos.
Nosso “essencialismo modificado” é útil, creio, quando se
suscita a questão da forma lógica das leis naturais. Ele sugere
que nossas leis ou nossas teorias devem ser universais, isto é,
devem fazer asserções acerca do mundo — acerca de todas as
regiões espacial-temporais do mundo. Sugere, ainda, que nossas
teorias façam asserções acerca de propriedades estruturais ou
relacionais do mundo; e que as propriedades descritas por
uma teoria explicativa devem ser, num sentido ou noutro, mais
profundas do que aquelas a ser explicadas. Creio que esta
expressão “mais profundas” desafia qualquer tentativa de análise
lógica exaustiva, mas, não obstante, é um guia para as nossas
intuições. (Assim se dá em matemática: todos os seus teoremas
são logicamente equivalentes, em presença dos axiomas, e con­
tudo há grande diferença em “profundidade”, que dificilmente é
susceptível de análise lógica.) A “profundidade” de uma teoria
científica parece estar mais estreitamente relacionada com sua
simplicidade e, assim, com a riqueza de seu conteúdo. (Ocorre
diversamente com a profundidade de um teorema matemático
cujo conteúdo pode ser tido como nada.) Dois ingredientes pa­
recem ser requeridos: um conteúdo rico e uma certa coerência
ou condensação (ou “organicidade”) do estado de coisas des­
crito. Este último ingrediente é que, apesar de ser bem intuiti­
vamente claro é tão difícil de analisar, e que os essencialistas
tentavam descrever quando falavam de essências, em contradis-
tinção a uma mera acumulação de propriedades acidentais. Não
penso que possamos fazer aqui muito mais do que nos refe­
rirmos a uma idéia intuitiva, nem que precisemos de fazer
muito mais. Pois, no caso de qualquer determinada teoria pro­
posta, é a riqueza de seu conteúdo, e assim seu grau de testa-
bilidade, que decide de seu interesse, e são os resultados dos
testes efetivos que decidem de seu destino. Do ponto de vista do
método, podemos encarar sua profundidade, sua coerência e
mesmo sua beleza como mero guia ou estímulo para nossa
intuição e nossa imaginação.
Não obstante, parece haver algo como uma condição sufi­
ciente de profundidade, ou de graus de profundidade, que pode
ser analisada logicamente. Tentarei explicá-lo com a ajuda de
um exemplo da história da ciência.
É bem sabido que a dinâmica de Newton realizou uma
unificação da física terrestre de Galileu e da física celeste de
Kepler. Teín-se dito muitas vezes que a dinâmica de Newton
185
pode ser induzida das leis de Galileu e de Kepler, e tem-se
mesmo asseverado que pode ser estritamente deduzida delas.(8)
Mas não é assim; de um ponto de vista lógico, a teoria de
Newton, estritamente falando, contradiz tanto a de Galileu
quanto a de Kepler (embora estas últimas teorias possaín, sem
dúvida, ser obtidas como aproximações, pois temos a teoria
de Newton para trabalhar com elas). Por esta razão é impossí­
vel derivar a teoria de Newton da de Galileu, ou da de Kepler,
ou de ambas, seja por dedução ou por indução. Pois nem uma
inferência dedutiva nem uma indutiva jamais poderão marchar
de premissas coerentes para uma conclusão que contradiz for­
malmente as premissas de que partiu.
Considero isto um argumento muito forte contra a indução.
Indicarei agora brevemente as contradições entre a teoria
de Newton e as de seus predecessores. Galileu afirma que uma
pedra atirada ou um projétil movem-se numa parábola, exceto
no caso de uma queda vertical livre, quando o movimento é
em linha reta, com aceleração constante. (Em toda esta dis­
cussão desprezamos a resistência do ar.) Do ponto de vista
da teoria de Newton, ambas essas asserções são falsas, por
duas razões distintas. A primeira é falsa porque o rumo de um
projétil de longo alcance, tal como um míssil intercontinental
(atirado para cima ou em direção horizontal) nem mesmo será

F ig. 5.

186
*

aproximadamente parabólico, mas elíptico. Só se torna aproxi­


madamente uma parábola se a distância total do vôo do projétil
for desprezível em comparação com o raio da Terra. Este ponto
foi acentuado pelo próprio Newton, em seus Principia, assim
como em sua versão popularizada, The System of the World,
onde o ilustra com auxílio da gravura reproduzida acima.
A gravura de Newton ilustra sua asserção de que, se a
velocidade do projétil aumentar, e com ela a distância de seu
vôo ele “afinal, ultrapassando os limites da Terra. . ., passará
para o espaço sem tocá-la”.(9)
Assim, um projétil na terra move-se ao longo de uma
elipse e não de uma parábola. Sem dúvida, para lançamentos
curtos, uma parábola será aproximação excelente; mas a trilha
parabólica não é estritamente dedutível da teoria de Newton,
a menos que acrescentemos a esta última uma condição inicial
factualmente falsa (e uma condição que, incidentemente, é irrea-
lizável na teoria de Newton, pois conduz a conseqüências absur­
das, no sentido de que o raio da Terra é infinito. Se não admi­
tirmos esta suposição, ainda mesmo sabendo que é falsa, então
teremos sempre uma elipse, em contradição com a lei de Ga­
lileu, de acordo com a qual deveriamos obter uma parábola.
Uma situação lógica precisamente análoga surge com a se­
gunda parte da lei de Galileu que afirma a existência de uma
aceleração constante. Do ponto de vista da teoria de Newton, a
aceleração dos corpos em queda livre nunca é constante:
aumenta sempre durante a queda, devido ao fato de que o corpo
se aproxima cada vez mais do centro de atração. Este efeito é
muito considerável se o corpo cai de grande altura embora seja
naturalmente desprezível se a altura for desprezível em compa­
ração com o raio da Terra. Neste caso, podemos obter a teoria
de Galileu da de Newton se voltarmos a introduzir a suposição
falsa de que o raio da Terra é infinito (ou de que a altura da
queda é zeto).
As contradições que apontei estão longe de ser desprezíveis
para mísseis de longo alcance. A estes podemos aplicar a teoria
de Newton (naturalmente, com correções para a resistência do
ar), mas não a de Galileu: esta última leva simplesmehte a re­
sultados falsos, como pode ser mostrado com facilidade com
a ajuda da teoria de Newton.
Com respeito às leis de Kepler, a situação é similar. É
óbvio que na teoria de Newton as leis de Kepler são válidas
apenas aproximadamente — isto é, estritamente inválidas —
se Ovarmos em conta a atração mútua entre os planetas. ( 10)
Mas entre as duas teorias há mais contradições do que esta, um
tanto óbvia. Pois mesmo que, em concessão a nossos opo­
sitores, desprezemos a atração mútua entre os planetas, a ter­

187
ceira lei de Kepler, considerada do ponto de vista da dinâmica
de Newton, não pode ser mais do que uma aproximação que é
aplicável a um caso muito especial: a planetas cujas massas
sejam iguais ou, se desiguais, desprezíveis, em comparação com
a massa do sol. Visto como isto não vale sequer aproximada­
mente para dois planetas se um deles for muito leve ao passo
que o outro é muito pesado, é claro que a terceira lei de
Kepler contradiz a teoria de Newton precisamente do mesmo
modo por que o faz a de Galileu.
Isto pode ser facilmente mostrado da maneira seguinte: A
teoria de Newton apresenta para um sistema de dois corpos —
um sistema binário de estrelas — uma lei que os astrônomos
muitas vezes chamam “lei de Kepler” por estar estreitamente
relacionada com a terceira lei de Kepler. Esta suposta “lei de
Kepler” diz que, se m0 é a massa de um dos dois corpos —
digamos, o sol — e se mj é a massa do outro corpo — diga­
mos, um planeta — então, escolhendo unidades apropriadas de
medição, podemos derivar da teoria de Newton
( 1) tf/T * = m0 + mu
onde a é a distância média entre os dois corpos e T o tempo
de uma revolução inteira. Ora, a própria terceira lei de Kepler
afirma que
(2) tf/T * = constante,
isto é, a mesma constante para todos os planetas do sistema
solar. É claro que obtemos esta lei de (1) apenas com a supo­
sição de que mü + mL = constante; e desde que m0 = cons­
tante para o nosso sistema solar; se identificarmos m 0 com a
massa do sol, obtemos (2) de (1), contanto que admitamos que
mi é o mesmo para todos os planetas; ou, se isto for factual­
mente falso (como realmente é, pois Júpiter é várias mil vezes
maior do que os planetas menores), se as massas dos planetas
forem todas zero em comparação com a do sol, de modo que
possamos colocar ml — 0 para todos os planetas. Esta é uma
aproximação muito boa do ponto de vista da teoria de Newton;
mas, ao mesmo tempo, colocar m, = 0 não só é falso, estrita­
mente falando, mas irrealizável do ponto de vista da teoria de
Newton. (Um corpo com massa zero não obedecería mais às leis
de movimento de Newton.) Assim, mesmo que esqueçamos tudo
a respeito da atração mútua entre os planetas, a terceira lei de
Kepler (2) contradiz a teoria de Newton que sustenta (1).
É importante notar que das teorias de Galileu ou de Kepler
não obtemos sequer a mais leve sugestão de como essas teorias
teriam de ser ajustadas — de que premissas falsas teriam de

188
»

ser adotadas ou que condições estipuladas — se tentássemos


passar dessas teorias para outra mais geralmente válida, como
a de Newton. Só depois de estarmos de posse da teoria de
Newton podemos verificar se, em que sentido, as teorias mais
antigas podem ser consideradas aproximações dela. Podemos
expressar este fato em resumo dizendo que, embora do ponto
de vista da teoria de Newton as de Galileu e de Kepler sejam
excelentes aproximações de certos resultados newtonianos, não
se pode dizer que a teoria de Newton, do ponto de vista das
outras duas teorias, seja uma aproximação de seus resultados.
Tudo isto mostra que a lógica, dedutiva ou indutiva, não tem
possibilidade de marchar dessas teorias para a dinâmica de
Newton. (11) Só a engenhosidade pode dar tal passo. Uma vez
dado, pode-se dizer que os resultados de Galileu e de Kepler
corroboram a nova teoria.
Aqui, porém não estou interessado tanto na impossibili­
dade da indução quanto no problema da profundidade. E enca­
rando este problema podemos, em verdade, aprender algo com
o nosso exemplo. A teoria de Newton unifica as de Galileu e
de Kepler. Mas longe de ser uma conjunção destas duas teorias
— que desempenham o papel de explicanda para a de Newton
— ela as corrige enquanto as explica. A tarefa explicativa ori­
ginal foi a dedução dos resultados mais antigos. Contudo, esta
tarefa é desempenhada, não deduzindo esses resultados mais an­
tigos, mas deduzindo algo melhor em lugar deles: novos re­
sultados que, sob as condições especiais dos resultados mais
velhos, chegam numericamente muito perto desses mais velhos
resultados e ao mesmo tempo os corrigem. Assim, o sucesso em­
pírico da velha teoria pode ser considerado como corroborador
da teoria nova; e em acréscimo, as correções podem ser testa­
das por sua vez — e talvez refutadas, ou então corroboradas.
O que é fortemente exibido, pela situação lógica que esbocei,
é o fato de que a nova teoria não tem possibilidade de ser
ad hoc ou circular. Longe de repetir seu explicandum, a nova
teoria o contradiz e o corrige. Deste modo, mesmo a evidência
do explicandum, em si mesma, torna-se evidência independente
para a nova teoria. (Incidentemente, esta análise nos permite
explicar o valor de teorias métricas e da medição; e assim nos
ajuda a evitar o engano de aceitar a medição e a precisão e a
precisão com valores finais e irredutíveis.)
Sugiro que, sempre que nas ciências empíricas uma teoria
nova de nível superior de universalidade explica com sucesso
uma teoria mais antiga, corrigindo-a, isto é então um sinal seguro
de que a nova teoria penetrou mais fundo do que as mais antigas.
A exigência de que uma nova teoria contenha aproximadamente
a velha, para valores apropriados dos parâmetros da nova teoria,

189
pode ser chamada (segundo Bohr) o “princípio de correspon­
dência”.
O cumprimento desta exigência é, como eu disse antes,
condição suficiente de profundidade. Pode-se ver que esta não
é uma condição necessária pelo fato de que a teoria de Maxwell
sobre as ondas eletromagnéticas não corrigiu, neste sentido, a
teoria de Fresnel das ondas de luz. Ela significava um aumento
de profundidade sem dúvida, mas em sentido diferente: “A
velha questão da direção das vibrações da luz polarizada tor-
na-se sem sentido. As dificuldades referentes às condições limí­
trofes para as fronteiras entre dois intermediários foram resol­
vidas pelos próprios alicerces da teoria. Não foram necessárias
mais quaisquer hipóteses ad hoc para eliminar ondas de luz lon­
gitudinais. A pressão da luz, tão importante na teoria da radia­
ção, e só ultimamente determinada experimentalmente, pode ser
derivada como uma das conseqüências da teoria”. (12) Este
treoho brilhante, em que Einstein esboça algumas das principais
realizações da teoria de Maxwell e a compara com a de Fresnel,
pode ser tomado como uma indicação de que há outras condi­
ções suficientes de profundidade que não são cobertas por minha
análise.
A tarefa da ciência, que, tenho sugerido, é encontrar expli­
cações satisfatórias, dificilmente poderá ser compreendida se não
formos realistas. Pois a explicação satisfatória é a que não é ad
hoc, e esta idéia — a idéia independente — dificilmente poderá
ser compreendida sem a idéia da descoberta, de progredir para
camadas mais profundas de explicação: sem a idéia de que
há algo para descobrirmos e algo para discutirmos criticamente.
E parece-me, contudo, que dentro da metodologia não temos
de pressupor o realismo metafísico: nem podemos, creio, extrair
muito auxílio dele, a não ser de uma espécie intuitiva. Pois,
uma vez que nos seja dito que a meta da ciência é explicar, e
que a explicação mais satisfatória será aquela que for mais seve­
ramente testada, sabemos tudo quanto precisamos saber como
metodologistas. Não podemos afirmar que a meta seja reali­
zável, nem com nem sem a ajuda de um realismo metafísico,
que só nos pode dar algum encorajamento intuitivo, alguma
esperança, mas nenhuma segurança de qualquer tipo. E embora
se possa dizer que um tratamento racional da metodologia de­
pende de uma admitida ou conjecturada meta da ciência, isto
certamente não depende da admissão metafísica e mais provavel­
mente falsa de que a verdadeira teoria estrutural do mundo (se
alguma houver) pode ser descoberta pelo homem ou expressa
em linguagem humana.
Se o quadro do mundo que a ciência moderna traça chegar
em alguma parte perto da verdade — em outras palavras, se

190
«

tivermos algo como “conhecimento científico” — então as con­


dições alcançáveis quase em toda parte do universo tornarão
quase impossível a descoberta de leis estruturais do tipo que
estamos procurando — e assim o alcançamento de “conheci­
mento científico”. Pois quase todas as regiões do universo estão
repletas de radiação caótica, e quase todo o restante de matéria
acha-se em estado caótico similar. Apesar disto, a ciência tem
sido miraculosamente bem sucedida em marchar para o que
sugeri que devia ser encarado como sua meta. Este fato es­
tranho não pode, penso eu, ser explicado sem provar em de­
masia. Mas pode encorajar-nos a perseguir essa meta, ainda que
possamos não ter qualquer encorajamento maior para crer que
poderemos em verdade atingí-la, nem partindo do realismo me­
tafísico, nem de qualquer outra fonte.

(Este ensaio é uma versão revista de um estudo


que foi publicado primeiramente em Ratio, vol. 1,
n.° 1, Dez. 1957 pgs. 24-35. Uma breve discussão
da correção dos resultados de Galileu e de Kepler
pela teoria de Newton foi publicada primeiramente
em minha colaboração para Gesetz und Wirklichkeit,
Simon Moser (ed.), 1949, esp. pgs. 57s., reprodu­
zido em Theoria und Realitãt, Hans Albert, 1964
(ver especialmente a p. 100). Uma tradução desse
ensaio será encontrada no Apêndice ao presente
volume.)

BIBLIOGRAFIA SELECIONADA

(Um asterisco mostra que um item aparece neste volume)


Popper, K arl R., Logik der Forschung, 1934 (1935) ; edições am­
pliadas, 1966, 1960.
------------------ The Poverty of Historicism (1944-5), 1957, 1960.
------------------ Conjectures and Refutations, 1963, 1965, 1969.
'------------------ Of Clouds and Clocks, 1965 (Ver Cap. 6 neste vo­
lum e).
1------------------- “Naturgesetze und theoritische Systeme”, em Gesetz
und Wirklichkeit, ed. Simon Moser (1948) 1949. (Traduzido
aqui como Apêndice a este volume.)
------------------- “Die Zielsetzung der Ehrfahrungswissenschaft”, em
Theorie und Realitdt, ed. Hans Albert, 1964, pgs. 73-86.
-------------------“Quantum Mechanics W ithout ‘The Observer”, em
Quantum Theory and Reality, ed. M. Bunge, 1967.
------------------- "Epistemology W ithout a Knowing Subjeet”, em
Logic, Methodology and Philosophy of Science, 3, eds. B. van
Rootselar e J. F. Staal, 1968, pgs. 333-73. (Ver Capítulo 3
deste volume.)

191
------------- “On the Theory o f th e Objective Mind”, em Akte
des 14 Internationalen Kongresses fü r Philosophie, Viena, 1968,
vol. 1, pgs. 25-63. (Ver o Capítulo 4 do presente volume.)

NOTA BIBLIOGRÁFICA

A idéia aqui discutida de que as teorias podem corrigir uma lei


“observacional” ou “fenomenal” que se supõe elas expliquem (como,
por exemplo, a terceira lei de Kepler) foi reiteradamente exposta
em minhas conferências. Uma dessas palestras estimulou a correção
de uma suposta lei fenomenal (ver o ensaio de 1941 citado em meu
Povertry of Historicism, 1957, 1960, anotação à pg. 134). Outra
dessas conferências foi publicada em Gesetz und Wirklichkeit, de
Simon Moser, (1948), 1949. A mesma idéia minha foi também o
ponto de partida (como ele o diz na p. 92) do ensaio de P. K.
Feyerabend, “Explanation, Reduction and Empiricism” (em Minne­
sota Studies in the Philosophy of Science, 3, 1962), cuja referência
(66) é ao presente ensaio (tal como publicado primeiramente em
Ratio, 1, 1957). O agradecimento de Feyerabend parece ter sido
'desdenhado pelos autores de vários ensaios sobre assuntos cor-
relatos.

192
t*

6 — DE NUVENS E RELÓGIOS

UMA ABORDAGEM DO PROBLEMA DA


RACIONALIDADE E DA LIBERDADE DO HOMEM

I
Meu predecessor que fez neste salão a primeira Conferên­
cia em Memória de Arthur Holly Compton, há um ano, foi
mais feliz do que eu. Ele conhecia Arthur Compton pessoal­
mente; eu nunca o encontrei.0 )
Mas tenho sabido de Compton desde meus dias de estu­
dante, lá pelos anos da década de 1920 e especialmente desde
1925, quando a famosa experiência de Compton e Simon(2)
refutou a bela mas efêmera teoria do quantum de Bohr, Kra-
mers e Slater.(3) Esta refutação foi um dos acontecimentos
decisivos na história da teoria do quantum, pois da crise que
ela criou emergiu a chamada “nova teoria do quantum” —
as teorias de Bom e Heisenberg, de Schrõdinger, e de Dirac.
Foi a segunda vez que os testes experimentais de Compton
desempenharam um papel crucial na história da teoria do quan­
tum. A primeira vez fora, sem dúvida, a descoberta do efeito
de Compton, o primeiro teste independente (como o próprio
Compton indicou (4)) da teoria de Einstein dos quanta de luz,
ou fótons.
Anos antes, durante a segunda guerra mundial, descobri,
para minha surpresa e prazer, que Compton não era só um
grande físico, mas também um filósofo genuíno e corajoso; e
mais, que seus interesses e alvos filosóficos coincidiam com os
meus próprios em 'alguns pontos importantes. Descobri-o
quando, quase por acaso, obtive as fascinantes Conferências de
Compton na Fundação Terry, que ele publicara em 1935 num
livro intitulado The Freeãom of Man.(B)
Tereis notado que incorporei o título do livro de Compton,
A Liberdade do Homem, ao meu próprio título de hoje. Assim
fiz para acentuar o fato de que minha conferência será estrei­
tamente ligada a esse livro de Compton. Mais precisamente,
pretendo discutir os mesmos problemas que Compton discutiu
193
nos dois primeiros capítulos desse livro e também no segundo
capítulo de outro de seus livros, The Human Meaning oj
Science.(®)
A fim de evitar incompreensões, devo acentuar, porém,
que minha conferência de hoje não é principalmente a respeito
dos livros de Compton. É antes uma tentativa pafa encarar de
modo novo os mesmos antigos problemas filosóficos com que
ele lutou nesses dois livros,, e uma tentativa para encontrar uma
solução nova desses problemas antigos. A solução esboçada
e muito experimental que aqui vou traçar parece-me adequar-se
bem aos alvos principais de Compton e espero — em verdade,
creio — que ele a teria aprovado.

II
O propósito central de minha palestra é tentar colocar
simples e vigorosamente diante de vós, esses antigos problemas.
Primeiro, porém, devo dizer algo a respeito das nuvens e reló­
gios que aparecem no título de minha conferência.
Minhas nuvens pretendem representar sistemas físicos que,
como gases, são altamente irregulares, desordenados e mais ou
menos imprevisíveis. Admitirei que temos à nossa frente um
esquema ou arranjo em que uma nuvem muito perturbada ou
desordenada é colocada à esquerda. Na outra extremidade de
nosso arranjo, à direita, podemos colocar um relógio de pên­
dulo, muito digno de confiança, um relógio de precisão, com o
intento de representar sistemas físicos que são regulares, or­
deiros e de comportamento altamente previsível.
De acordo com o que posso chamar visão de senso comum
das coisas, certos fenômenos naturais, tais como o estado do
tempo, ou a ida e vinda das nuvens, são de difícil precisão —
falamos das “extravagâncias do tempo”. Por outro lado, fala­
mos de “exatidão de relógio” quando queremos descrever um
fenômeno altamente regular e previsível.
Há multidões de coisas processos naturais e fenômenos na­
turais, que podemos colocar entre esses dois extremos — as
nuvens à esquerda e os relógios à direita. As estações mutáveis
são relógios em que não se pode confiar muito, e podem, por­
tanto, ser colocadas um tanto para a direita, mas não muito
longe. Suponho que possamos concordar facilmente em colocar
os animais não demasiado longe das nuvens e as plantas um
tanto mais perto dos relógios. Entre os animais, um cachorrinho
terá de ser posto mais perto da esquerda do que um cão velho.
Automóveis, também, encontrarão seu lugar nalguma parte de
nosso arranjo, de acordo com a confiança que mereçam: um
Cadillac, suponho, fica bem mais para a direita, e ainda mais

194
*

um Rolls-Royce, que estará bem perto do melhor dos relógios.


Talvez ainda mais para a direita deva ser colocado o sistema
solar. (7)
Como exemplo típico e interessante de uma nuvem farei
algum uso aqui de uma nuvem ou conglomerado de mosqui-
tinhos, ou pernilongos. Como as moléculas separadas num gás,
os pernilongos separados que formam juntos um conglomerado
de pernilongos movem-se de modo espantosamente irregular.
É quase impossível acompanhar o vôo de qualquer pernilongo
isolado, mesmo que cada um deles possa ser bastante grande
para ser claramente visível.
Fora o fato de que as velocidades dos pernilongos não mos­
tram muito ampla extensão, os pernilongos nos apresentam exce­
lente quadro do movimento irregular de moléculas numa nuvem
gasosa ou das gotas miúdas de água numa nuvem de tempes­
tade. Há, sem dúvida, diferenças. O conglomerado não se dis­
solve nem difunde, mas conserva-se coeso muito bem. Isto é
surpreendente, considerando-se o caráter desordenado do mo­
vimento dos vários pernilongos; mas tem seu análogo numa
nuvem gasosa suficientemente grande (como nossa atmosfera,
ou o sol) que se mantém unida por forças gravitacionais. No
caso dos pernilongos sua manutenção em união é facilmente ex­
plicada se admitirmos que, embora voem muito irregularmente
em todas as direções, os que acham que se estão afastando da
multidão retomam para a parte que é mais densa.
Esta suposição explica como o conglomerado se mantém
unido mesmo que não tenha lider nem estrutura — mas só uma
distribuição estatística ao acaso, resultante do fato de que cada
pernilongo faz exatamente o que quer, de um modo sem norma
ou ao acaso, juntamente com o fato de que ele não gosta de
desviar-se muito de seus camaradas.
Penso que um pernilongo filosófico poderia alegar que a
sociedade dos pernilongos é uma grande sociedade, ou pelo
menos uma boa sociedade, pois é a mais igualitária, livre e de­
mocrática sociedade imaginável.
Contudo, como autor de um livro sobre A Sociedade
Aberta, eu negaria que a sociedade dos pernilongos seja uma
sociedade aberta. Pois tenho como uma das características de
uma sociedade aberta o fato de que ela acarinha, além de uma
forma democrática de governo, a liberdade de associação, e que
protege e mesmo encoraja a formação de subsociedades livres,
cada qual mantendo opiniões e crenças diferentes. Mas qualquer
pernilongo razoável teria de admitir que em sua sociedade falta
esta espécie de pluralismo.
Não pretendo, porém, discutir hoje qualquer das questões
sociais ou políticas ligadas ao problema da liberdade; e pretendo
195
usar o conglomerado de pemilongos, não como um exemplo
de um sistema social, mas antes como minha ilustração principal
de um sistema físico semelhante a uma nuvem, como um exem­
plo ou paradigma de uma nuvem altamente irregular ou de­
sordenada.
Como muitos sistemas físicos, biológicos e rociais, o con­
glomerado de pernilongos pode ser descrito como um “todo”.
Nossa conjectura de que ele é mantido unido por um tipo de
atração que sua parte mais densa exerce sobre os pernilongos
isolados que se desviam demasiado da multidão mostra que há
mesmo Uma espécie de ação ou controle que esse “todo” exerce
sobre seus elementos ou partes. Não obstante, esse “todo” pode
ser usado para dissipar a difundida crença “hodística” de que
um “todo” é sempre mais do que a mera soma de suas partes.
Não nego que às vezes possa ser assim.(8) Mas o conglome­
rado de pernilongos é um exemplo de um todo que na verdade
nada mais é do que a soma de suas partes — e num sentido
muito preciso; pois não só ele é completamente descrito des­
crevendo-se os movimentos de todos os pernilongos isolados,
como também o movimento do todo é, neste caso, precisamente
a soma (vetorial) dos movimentos de seus membros constituin­
tes, dividida pelo número dos membros.
Um exemplo (de muitos modos similar) de um sistema
biológico, ou “todo”, que exerce certo controle sobre os movi­
mentos altamente irregulares de suas partes seria o de uma fa­
mília em piquenique — pais com alguns filhos e um cachorro
— vagando pelos bosques durante horas, mas nunca se afas­
tando para longe do carro da família (que, por assim dizer,
age como centro de atração). Pode-se dizer que este sistema é
ainda mais de nuvem — isto é, menos regular no movimento
de suas partes — do que nossa nuvem de pernilongos.
Espero que tenhais agora à vossa frente uma idéia de meus
dois protótipos ou paradigmas, as nuvens à esquerda e os reló­
gios à direita, e do modo pelo qual podemos arranjar entre
eles muitos tipos de coisas e muitos tipos de sistemas. Estou
certo de que tereis apreendido alguma idéia vaga, geral, da
arrumação de que não precisais incomodar-vos se vossa idéia
for ainda um tanto nevoenta, anuviada.

III
A arrumação que descrevi parece ser inteiramente aceitá­
vel para o senso comum e mais recentemente, em nosso próprio
tempo, tem-se tornado aceitável até para a ciência física. Assim
não foi, porém, durante os 250 anos precedentes a revolução
newtoniana, uma das maiores revoluções da história, levou à

196
*

rejeição do arranjo de senso comum que tentei apresentar-vos.


Pois uma das coisas que quase todos(9) pensaram haver sido
estabelecida pela revolução newtoníana foi a seguinte proposição
estonteante:
Todas as nuvens são relógios -— mesmo a mais anuviada
das nuvens.
Esta proposição, “Todas as nuvens são relógios”, pode ser
tomada como uma breve formulação da opinião que chamarei
"determinismo físico’’.
O determinismo físico que diz que todas as nuvens são
relógios dirá também que nossa arrumação de senso comum,
com as nuvens à esquerda e os relógios à direita, é enganadora,
pois tudo deveria ser colocado na extrema direita. Dirá que,
com todo o nosso senso comum, arrumamos as coisas não de
acordo com sua natureza, mas de acordo com a nossa ignorância.
Nossa arrumação, dirá, reflete simplesmente o fato de conhe­
cermos em certo detalhe como funcionam as partes de um
relógio, ou como funciona o sistema solar, ao passo que não
temos qualquer conhecimento a respeito da interação detalhada
das partículas que formam uma nuvem gasosa ou um organismo.
E afirmará que, uma vez tendo obtido este conhecimento, des­
cobriremos que nuvens gasosas ou organismos são tão seme­
lhantes a relógios como nosso sistema solar.
Sem dúvida a teoria de Newton não disse aos físicos que
isto era assim. De fato, ela não tratou absolutamente de nuvens.
Tratou especialmente de planetas, cujos movimentos explicou
como devidos a algumas leis da natureza muito simples; e tratou
também de balas de canhão, e de marés. Mas seu imenso su­
cesso nestes campos virou a cabeça dos físicos; e certamente
não sem razão.
Antes do tempo de Newton e de seu predecessor Kepler,
os movimentos dos planetas haviam escapado a muitas tentati­
vas para explicá-los ou mesmo descrevê-los plenamente. Como
é claro, participavam de algum modo do invariável movimepto
geral do rígido sistema das estrelas fixas; contudo, desviam-se
do movimento desse sistema quase como pernilongos isolados
a se desviarem do movimento geral de um conglomerado de
pernilongos. Assim os planetas, não diversamente das coisas
vivas, pareciam estar numa posição intermediária entre nuvens
e relógios. Mas o sucesso da teoria de Kepler, e mais ainda o
da de Newton, mostrou que haviam tido razão aqueles pensa­
dores que tinham suspeitado de que os planetas eram de fato
perfeitos relógios. Pois seus movimentos mostraram-se precisa­
mente previsíveis com a ajuda da teoria de Newton; previsíveis

197
em todos os detalhes que antes haviam desnorteado os astrô­
nomos por sua apareme irregularidade.
A teoria de Newton foi a primeira teoria científica real­
mente bem sucedida na história humana; e seu êxito foi tre­
mendo. Havia aqui conhecimento autêntico, conhecimento além
dos mais audaciosos sonhos até das mentes mais arrojadas. Eis
uma teoria que explicava precisamente não só os movimentos
de todas as estrelas em seu curso, mas também, com idêntica
precisão, os movimentos dos corpos na terra, tais como maçãs
caindo, ou projéteis, ou pêndulos de relógio. E até mesmo ex­
plicava as marés.
Todos os homens de mentalidade aberta — todos aqueles
ávidos de conhecer e que tinham interesse pelo crescimento do
conhecimento — converteram-se à nova teoria. Muitos homens
de mente aberta e especialmente muitos cientistas pensaram
que no fim ela explicaria tudo, incluindo não só a eletricidade
e o magnetismo como também as nuvens e mesmo os organismos
vivos. Assim, o determinismo físico, a doutrina de que todas
as nuvens são relógios, tomou-se a fé dominante entre os
homens esclarecidos; e todos os que não abraçavam essa nova
fé eram tidos como obscurantistas ou reacionários. ( 10)

IV
Entre os poucos dissidentes ( 11) estava Charles Sanders
Peirce, grande matemático e físico americano e, creio, um dos
maiores filósofos de todos os tempos. Ele não questionou a teo­
ria de Newton; contudo, já em 1892, mostrou que essa teoria,
ainda que verdadeira, não nos dava qualquer razão válida para
acreditar que as nuvens fossem relógios perfeitos. Embora, em
comum com todos os outros físicos de sua época, ele acreditasse
que o mundo era um relógio que funcionava de acordo com
as leis newtonianas, rejeitou a crença de que esse relógio, ou
outro qualquer, fosse perfeito até o mínimo detalhe. Ind:cou
que, de qualquer forma, não teríamos possibilidade de alegar
que conhecíamos por experiência qualquer coisa como um reló­
gio perfeito, ou qualquer coisa que mesmo fracamente se apro­
ximasse dessa perfeição absoluta que o determinismo físico ad­
mitia. Posso talvez citar um dos brilhantes comentários de
Peirce: “ . . . quem aqui está por trás dos cenários.. . ” (Peirce
fala como experimentalista) “ . . . sabe que as comparações mais
requintadas (mesmo) de massas (e) extensões... ultrapassam
em muito em precisão todas as outras medições (físicas).. .
ficam atrás da exatidão das contas bancárias e que a s ... de­
terminações de constantes físicas. . . estão mais ou menos em­
parelhadas com as medições de tapetes e cortinas de um col-
choeiro.. .” ( 12) Daí Peirce concluiu que tínhamos liberdade

198
*

para conjecturar que havia certa frouxidão ou imperfeição em


todos os relógios e que isto permitia a entrada de um elemento
de acaso. Assim, Peirce conjecturou que o mundo não era
regido somente pelas estritas leis newtonianas, mas que era
também regido ao mesmo tempo por leis de acaso,, ou do for­
tuito, ou da desordem: por leis de probabilidade estatística.
Isto fez do mundo um sistema encadeado de nuvens e relógios,
de modo que mesmo o melhor relógio, em sua estrutura mole­
cular, mostraria algum grau de anuviamento. Até onde sei,
Peirce foi o primeiro físico e filósofo post-newtoniano que ousou
adotar assim a concepção de que, até certo grau, todas as nuvens
são nuvens; ou, em outras palavras, que só existem nuvens, em­
bora nuvens de graus muito diferentes de anuviamento.
Peirce apoiou esta concepção indicando, sem dúvida corre­
tamente, que todos os corpos físicos, mesmo os rubis de um
relógio, estavam sujeitos ao movimento molecular de calor,( 13)
movimento semelhante ao das moléculas de um gás ou ao dos
pernilongos isolados num conglomerado de pernilongos.
Estas opiniões de Peirce foram recebidas por seus contem­
porâneos com pouco interesse. Ao que parece, só um filósofo as
notou; e atacou-as. (14) Parece que os físicos as ignoraram;
e mesmo hoje muitos físicos crêem que, se tivermos de adotar
a mecânica clássica de Newton como verdadeira, deveremos ser
compelidos a aceitar o determinismo físico e, com ele, a propo­
sição de que todas as nuvens são relógios. Só com a derrocada
da física clássica e com a ascensão da nova teoria do quantum
foi que os físicos se dispuseram a abandonar o determinismo
físico.
Agora as mesas foram viradas. O indeterminismo, que até
1927 fora emparelhado com o obscurantismo, tornou-se a
moda vigente; e alguns grandes cientistas, como Max Planck,
Erwin Schrõdinger e Albert Einstein, que hesitavam em aban­
donar o determinismo, foram considerados como velhos catur-
ras,(15) embora houvessem estado na vanguarda do desenvol­
vimento da teoria do quantum. Eu mesmo ouvi certa vez um
jovem e brilhante físico descrever Einstein, que então ainda
estava vivo, como “antediluviano”. O dilúvio que se suponha
haver carregado Einstein era a nova teoria do quantum, que
surgira nos anos de 1925 a 1927 e para cujo advento sete
pessoas, no máximo, haviam feito contribuições comparáveis
às de Einstein.

V
Talvez eu possa deter-me aqui por um momento para
expor minha própria concepção da situação e das modas cientí­
ficas. Creio que Peirce estava certo ao sustentar que todos os

199
relógios são nuvens, até certo grau considerável — mesmo o
mais preciso dos relógios. Isto, penso, é uma inversão muito
importante da errônea concepção determinista de que todas as
nuvens são relógios. Acredito, ainda mais, que Peirce estava
certo em sustentar que sua opinião era compatível com a física
clássica de Newton.(16) E creio que essa concepção é ainda
mais compatível com a teoria da relatividáde (especial) de
Einstein e é ainda mais claramente compatível oom a nova teoria
do quantum. Em outras palavras, sou um indeterminista —
como Peirce, Compton e muitos outros físicos contemporâneos;
e acredito, com muitos deles, que Einstein estava errado ao
tentar aferrar-se ao determinismo. (Posso dizer talvez que dis­
cuti este assunto com ele e que não o achei irredutível.) Mas
também creio que estiveram lastimavelmente errados aqueles
físicos modernos que zombaram da crítica de Einstein à teoria
do quantum como antediluviana. Ninguém pode deixar de admi­
rar a teoria do quantum e Einstein a admirou de todo o co­
ração; mas sua crítica da interpretação em moda da teoria — a
teoria de Copenhague — como as críticas apresentadas por De
Broglie, Schrõdinger, Bohm, Vigier, e mais recentemente por
Landé, foram afastadas muito levianamente por muitos físi­
cos. ( 17) Há modas em ciência e certos cientistas sobem no
coreto da banda com tanta presteza como certos pintores e
músicos. Mas embora modas e coretos possam atrair os fracos,
deve-se resistir a eles em vez de animá-los; (18) e uma crítica
como a de Einstein é sempre valiosa; dela sempre se pode apren­
der alguma coisa.

VI
Arthur Holly Compton esteve entre os primeiros que sau­
daram com acolhimento a nova teoria do quantum e o novo
indeterminismo físico de Heisenberg, em 1927. Compton con­
vidou Heisenberg a vir a Chicago para um curso de confe­
rências que Heisenberg proferiu na primavera de 1929. Esse
curso foi a primeira exposição completa que Heisenberg fez
de sua teoria, e suas conferências foram publicadas como seu
primeiro livro, um ano depois, pela Editora da Universidade de
Chicago, com um prefácio de Arthur Compton. ( 19) Neste pre­
fácio, Compton dava acolhida à nova teoria, para cujo advento
suas experiências haviam contribuido, com a refutação de sua
predecessora imediata;(20) contudo, ele também parecia dar um
sinal de advertência. A advertência de Compton precedeu algu­
mas advertências muito semelhantes de Einstein, que sempre
insistiu em que não deveriamos considerar a nova teoria do
quantum — “este capítulo da história da física”, como Comp­
ton sábia e generosamente o denominou — como “completa”.(21)

200
*

E embora esta opinião fosse rejeitada por Bohr, devemos recor­


dar o fato de que a nova teoria falhou, por exemplo, em dar
sequer uma sugestão do neutrônio, descoberto por Chadwick
cerca de um ano depois e que ia tornar-se o primeiro de uma
série de novas partículas elementares, cuja existência não havia
sido prevista pela nova teoria do quantum (ainda que seja
verdade que a existência do positron poderia ter sido derivada
da teoria de D irac).(22)
No mesmo ano, 1931, em suas Conferências da Fundação
Terry, Compton tornou-se um dos primeiros a examinar as
implicações humanas e, mais geralmente, as implicações bioló­
gicas C23) do novo indeterminismo em física. E agora torna-se
clara a razão pela qual saudamos a nova teoria tão entusias­
madamente; ela resolveu para Compton não só problemas de
física como também problemas biológicos e filosóficos, e entre
estes, especialmente, problemas relacionados com a ética.

vn
Para mostrar isto, citarei agora a impressionante passa­
gem de abertura de The Freedom of Man, de Compton:
“A questão fundamental da moralidade, problema vital em
religião e motivo de ativa investigação em ciência, é: É o homem
um agente livre?
S e ... os átomos de nossos corpos seguem leis físicas tão
imutáveis como os movimentos dos planetas, por que tentar?
Que diferença pode fazer, por grande que seja o esforço, se
nossas ações já estão predeterminadas por leis mecâni­
cas. ..? " ( » )
Compton descreve aqui o que eu chamaria “o pesaÂelo do
determinista físico”. Um mecanismo de relógio determinista fí­
sico é, acima de tudo, completamente auto-suficiente: no per­
feito mundo físico determinista simplesmente não há lugar para
qualquer intervenção de fora. Tudo que acontece em tal mundo
é fisicamente predeterminado, incluindo todos os nossos movi­
mentos e, portanto, todas as nossas ações. Assim, todos os
nossos pensamentos, sentimentos e esforços podem não ter in­
fluência prática sobre o que acontece no mundo físico: são,
se não meras ilusões, no máximo subprodutos ( “epifenômenos” )
de eventos físicos.
Deste modo, o devaneio do físico newtoniano que espe­
rava provar serem relógios todas as nuvens ameaçou tornar-se
um pesadelo; e a tentativa de ignorar isto tem levado a algo
como uma dupla personalidade intelectual. Compton, penso,
foi grato à nova teoria do quantum por resgatá-lo desta situação
intelectual difícil. Assim ele escreve, em The Freedom of Man:
“O físico raramente. . . se tem importado com o fato de que,
201
se. . . leis. . . completamente deterministas. . . se aplicarem às
ações do homem, ele próprio é um autômato”.(25) E em The
Human Meaning of Science ele manifesta seu alívio:
“Em meu próprio pensamento a respeito deste assunto
vital estou, portanto, num estado de espírito muito mais satis­
feito do que poderia ter estado em qualquer fase anterior da
ciência. Se as asserções das leis de física fossem admitidas como
corretas, ter-se-ia de supor (como fizeram muitos filósofos) que
o sentimento.de liberdade é ilusório, ou, se uma escolha (livre)
fosse considerada efetiva, que as asserções das leis de física
não eram. . . dignas de confiança. O dilema tem sido des­
confortável. . . ” (26)
Mais adiante, no mesmo livro, Compton sintetiza a situa­
ção vivamente com as palavras: “ .. . não é mais justificável
usar a lei física como evidência contra a liberdade humana”.(27)
Estas citações de Compton mostram claramente que antes
de Heisenberg ele havia sido atormentado pelo que aqui chamei
pesadelo do determinista físico e que tentou escapar desse
pesadelo adotando algo como uma dupla personalidade inte­
lectual. Ou, como ele expõe :“Nós (os físicos) temos preferido
simplesmente não prestar atenção alguma às dificulda­
des. . . ” (28) Compton saudou a nova teoria que o resgatou de
tudo isto.
Creio que a única forma do problema do determinismo
digna de ser discutida seriamente é exatamente o problema que
perturbava Compton: o problema que surge de uma teoria
física que descreve o mundo como fisicamente completo, ou um
sistema fisicamente fechado. Por sistema fisicamente fechado
quero dizer um conjunto ou sistema de entidades físicas, tais
como átomos, ou partículas elementares, ou forças físicas, ou
campos de forças, que interagem reciprocamente — e só entre
si — de acordo com leis definidas de interação ou interferência
com ou de qualquer coisa fora desse conjunto ou sistema fe­
chado de entidades físicas. Este “fechamento” do sistema é que
cria o pesadelo determinista. (30)

vra
Eu gostaria, por um minuto, de fazer aqui uma digressão
a fim de contrastar o problema do determinismo físico, que
considero ser de fundamental importância, com o problema,
longe de ser sério, pelo qual muitos filósofos e psicólogos o
substituíram, acompanhando Hume.
Hume interpretou o determinismo (que ele denominou “a
doutrina da necessidade”, ou “a doutrina de conjunção cons­
tante” ) como a doutrina de que “causas iguais sempre produ­
zem efeitos iguais” e de que “efeitos iguais decorrem necessaria­
mente de causas iguais”.(31) Com respeito às ações e volições
humanas, ele sustentava, mais particularmente, que “um es­
pectador pode inferir çomumente nossas ações de nossos moti­
vos e caráter; e mesmo quando não pode, conclui em geral que
poderia, se estivesse perfeitamente conhecedor de todas as cir­
cunstâncias de nossa situação e temperamento e das fontes mais
secretas de nossa... disposição. Ora, isto é a própria essência
da necessidade.. ,” (32) Os sucessores de Hume expuseram isto
assim: nossas ações, ou nossas volições, ou nossos gostos, ou
nossas preferências, são “causados” psicologicamente por expe­
riências (“motivos” precedentes) e finalmente por nossa here­
ditariedade e nosso ambiente.
Mas esta doutrina, que podemos chamar determinismo
filosófico ou psicológico, não só é uma coisa muito diferente
do determinismo físico, como é também uma doutrina que um
determinista físico que compreende de algum modo este assunto
dificilmente poderá levar a sério. Pois a tese do determinismo
filosófico, de que “efeitos iguais têm causas iguais” ou de que
“cada evento tem uma causa”, é tão vaga que se torna perfei­
tamente compatível com o indeterminismo físico.
O Indeterminismo — ou mais precisamente o indetermi­
nismo físico — é simplesmente a doutrina de que nem todos os
eventos no mundo físico são predeterminados com precisão abso­
luta, em todos os seus infinitesimais detalhes. Fora isto, ela é
compatível praticamente com qualquer grau de regularidade que
se quiser e, portanto, não acarreta a concepção de que há “even­
tos sem causas” ; simplesmente porque os termos “èvento” e
“causa” são bastante vagos para tornar compatível com o inde­
terminismo físico a doutrina de que cada evento tem uma causa.
Enquanto o determinismo físico exige uma predeterminação
física completa e infinitamente precisa e a ausência de qualquer
exceção, o indeterminismo físico assevera somente que o deter­
minismo é falso e que há pelo menos algumas exceções, aqui e
ali, à predeterminação precisa.
Assim, mesmo a fórmula “cada evento físico observável ou
mensurável tem uma causa físioa observável ou mensurável” é
ainda compatível com o indeterminismo físico, simplesmente
porque nenhuma medição pode ser infinitamente precisa: pois
o ponto saliente a respeito do determinismo físico é que, com
base na dinâmica de Newton, ele assevera a existência de um
mundo de precisão matemática absoluta. E embora, ao fazê-lo,
vá além do domínio da observação possível (como foi visto
por Peirce) é, não obstante, testável em princípio, com qualquer
grau de precisão desejado; e tem-se efetivamente suportado tes­
tes surpreendentemente precisos.

203
Em contraste, a fórmula “cada evento tem uma causa”
nada diz a respeito de precisão; e se, mais especialmente, con­
templarmos as leis da psicologia, então nem mesmo haverá uma
sugestão de precisão. Isto vale tanto para uma psicologia “be-
haviorista” quanto para uma “introspectiva” ou “mentalista”.
No caso de uma psicologia mentalista isto é óbvio. Mas mesmo
um behaviorista pode predizer no máximo que, sob dadas con­
dições, um rato levará de vinte a vinte e dois segundos para
correr por um labirinto; ele não terá idéia de como, especifi­
cando condições experimentais cada vez mais precisas, podería
fazer predições que se tomassem cada vez mais precisas — e,
em princípio, precisas sem limite. Isto assim é porque as “leis”
behavioristas não são, como as da física newtoniana, equações
diferenciais e porque qualquer tentativa de introduzir essas equa­
ções diferenciais ultrapassaria o behaviorismo levando para a
fisiologia e assim em instância final para a física; levar-nos-ia
portanto de volta ao problema do determinismo físico.
Como notou Laplace, o determinismo físico implica que
cada evento físico no futuro distante (ou no passado distante)
é predizível (ou retrodizível) com qualquer grau desejado de
precisão, desde que tenhamos conhecimento suficiente a res­
peito do estado presente do mundo físico. A tese de um deter­
minismo filosófico (ou psicológico) do tipo de Hume, por outro
lado, nada mais afirma, mesmo em sua interpretação mais forte,
senão que qualquer diferença observável entre dois eventos é
relacionada, por alguma lei talvez ainda desconhecida, com
alguma diferença — talvez uma diferença observável — no es­
tado precedente do mundo; asserção obviamente muito mais
fraca e, incidentemente, uma asserção que poderiamos continuar
a sustentar ainda que muitas de nossas experiências, realizadas
sob condições, na aparência, “inteiramente iguais”, produzissem
resultados diferentes. Isto foi expresso muito claramente pelo
próprio Hume. “Mesmo quando essas experiências contrárias
são inteiramente iguais — escreve ele — não removemos a
noção de causas e de necessidade, mas. . . concluímos que a
casualidade (ap aren te)... está apenas e m ... nosso conheci­
mento imperfeito e não nas coisas em si mesmas, as quais são
em cada caso igualmente necessárias (isto é, determinadas)
embora em aparência não igualmente constantes ou certas”.(s8)
Por isto é que a um determinismo filosófico à Hume, e
mais especialmente a um determinismo psicológico, falta o agui­
lhão do determinismo físico. Pois na física de Newton as coisas
realmente pareciam como se alguma frouxidão aparente num sis­
tema fosse de fato meramente devida à nossa ignorância, de
modo que, se estivéssemos plenamente informados a respeito

204
do sistema, qualquer aparência de frouxidão desaparecia. A
psicologia, por outro lado, nunca teve este caráter.
Poderiamos dizer em retrospecto que o determinismo físico
foi um devaneio de onisciência que pareceu tomar-se mais real
com cada progresso em física até tomar-se um pesadelo apa­
rentemente inevitável. Mas os devaneios correspondentes dos
psicólogos nunca foram mais do que castelos no ar: eram
sonhos utópicos de atingir igualdade com a física, com seus
métodos matemáticos e suas poderosas aplicações; e talvez
mesmo de atingir superioridade, moldando homens e sociedades.
(Embora tais sonhos totalitários não sejam sérios como já
lidei com esses perigos em outra parte, não me proponho a dis­
cutir aqui o problema.)

IX
Tenho chamado ao determinismo físico um pesadelo. É
um pesadelo porque assevera que o mundo inteiro com tudo
quanto há nele é um vasto autômato e que nada mais somos do
que pequenas engrenagens, ou no máximo subautômatos, dentro
dele.
Assim ele destrói em particular a idéia de criatividade.
Reduz a uma completa ilusão a idéia de que, ao preparar esta
conferência, eu tenha usado meu cérebro para criar algo novo.
Nela não houve mais, de acordo com o determinismo físico,
do que o fato de certas partes de meu corpo haverem colocado
sinais pretos em papel branco: qualquer físico com suficiente
informação detalhada poderia ter escrito minha conferência pelo
método simples de predizer os lugares precisos em que o sis­
tema físico formado por meu corpo (incluindo, naturalmente,
meu cérebro e meus dedos) e por minha caneta colocaria esses
sinais pretos.
Ou, para usar um exemplo mais impressivo: se o determi­
nismo físico é certo, então um físico que seja completamente
surdo e que nunca ouviu qualquer música poderia escrever
todas as sinfonias e concertos escritos por Mozart ou Beethoven,
pelo método simples de estudar os estados físicos precisos de
seus corpos e de predizer onde eles iriam colocar sinais pretos
no seu papel pautado. E nosso físico surdo poderia fazer ainda
mais: estudando os corpos de Mozart ou de Beethoven com
cuidado suficiente, poderia escrever dezenas de obras que nunca
foram efetivamente escritas por Mozart ou Beethoven, mas que
eles teriam escrito se certas circunstâncias externas de sua
vida houvessem sido diferentes: se digamos, tivessem comido
carneiro em vez de frango, ou tomado chá em vez de café.
Tudo isto poderia ser feito pelo nosso físico surdo, se su­
prido de um conhecimento suficiente de condições puramente
205
físicas. Não haveria necessidade de que ele conhecesse coisa
alguma a respeito da teoria da música — embora pudesse ser
capaz de predizer que respostas Mozart ou Beethoven teriam
escrito, sob condições de exame, se lhes apresentassem ques­
tões sobre a teoria do contraponto.
Creio que tudo isto é absurdo;(35) e seu absurdo se torna
ainda mais óbvio, penso, quando aplicamos este método de
predição física a um determinista.
Pois, de acordo com o determinismo, quaisquer teorias —
tais como, digamos, o determinismo — são sustentada em razão
de certa estrutura física de quem as sustenta (talvez de seu
cérebro). Conseqüentemente, estamos enganando a nós mes­
mos (e somos fisicamente determinados a nos enganarmos (sem­
pre que acreditamos que há coisas tais como argumentos ou
razões que nos façam aceitar o determinismo. Ou, em outras
palavras, o determinismo físico é uma teoria que, se verda­
deira, não é argumentável, visto como deve explicar todas as
nossas reações, inclusive o que nos parece ser crenças baseadas
em argumentos, como devidas a condições puramente físicas.
As condições puramente físicas, incluindo nosso ambiente físico,
fazem-nos dizer ou aceitar qualquer coisa que dizemos ou acei­
tamos; e um físico bem treinado que nada sabe de francês e
que nunca ouviu falar em determinismo seria capaz de predizer
o que um determinista francês diria numa discussão francesa
sobre o determinismo; e, sem dúvida, também o que diria o seu
opositor indeterminista. Mas isto significa que, se cremos que
aceitamos uma teoria como o determinismo porque fomos domi­
nados pela força lógica de certos argumentos, então estamos
enganando a nós mesmos, de acordo com o determinismo fí­
sico; ou, mais precisamente, estamos numa condição física que
determina que nos enganamos.
Hume viu muito disto, embora pareça que não viu de todo
o que significava para seus próprios argumentos; pois limi-
tou-se a comparar o determinismo de "nossos julgamentos”
com o de "nossas ações”, dizendo que “não temos mais liber­
dade em um do que no outro”. (88)
Considerações como esta podem ser, talvez, a razão pela
qual há muitos filósofos que recusam levar a sério o problema
do determinismo físico e o descartam como uma “moxinifa-
da”(s'7) Contudo, a doutrina de que o homem é uma máquina
foi debatida muito enérgica e seriamente em 1751, bem antes
de que a teoria da evolução se tomasse geralmente aceita, por
De Lamettrie; e a teoria da evolução deu ao problema um fio
ainda mais aguçado sugerindo que pode não haver distinção
clara entre matéria viva e matéria morta.(S8) E apesar da vi­
tória da nova teoria do quantum e da conversão de tqntos fí­

206
t

sicos ao indeterminismo, a doutrina de Lamettrie de que o


homem é uma máquina tem hoje talvez mais defensores do que
nunca antes entre físicos, biólogos e filósofos; especialmente na
forma da tese de que o homem é um computador. (39)
Pois, se aceitamos uma teoria de evolução (como a de
Darwin), então, mesmo permanecendo céticos a respeito da
teoria de que a vida emergiu de matéria inorgânica, dificil­
mente podemos negar que deve ter havido um tempo em que
entidades abstratas e não-físicas, tais como razões e argumentos
e conhecimento científico, e normas abstratas, tais como regras
para construir ferrovias ou escavadeiras, ou “sputniks” ou, di­
gamos, regras de gramática ou de contraponto não existiam,
ou de qualquer modo não tinham efeito algum sobre o uni­
verso físico. É difícil entender como o universo físico pode
produzir entidades abstratas como essas regras e depois pode
ficar sob a influência dessas regras, de modo que elas, por sua
vez, puderam exercer efeitos muito palpáveis sobre o universo
físico.
Há, todavia, um meio talvez algo evasivo, mas de qual­
quer forma fácil, de sair dessa dificuldade. Podemos simples­
mente negar que essas entidades abstratas existam e que possam
influenciar o universo físico. E podemos afirmar que o que
existe são nossos cérebros e que estes são máquinas como com­
putadores; que as regras alegadamente abstratas são entidades
físicas, exatamente como os cartões perfurados concretos, com
os quais “programamos” nossos computadores; e que a exis­
tência de qualquer coisa não-física é tão só uma “ilusão”, talvez,
e de qualquer forma sem importância, pois tudo continuará
como vai, ainda que não houvesse tais ilusões.
De acordo com esta saída, não precisamos preocupar-nos
com a condição “mental” de tais ilusões. Podem elas ser pro­
priedades universais de todas as coisas : a pedra que atiro pode
ter a ilusão de que salta, assim como tenho a ilusão de que a
atirei; e minha pena ou meu computador podem ter a ilusão
de que funcionam por causa de seu interesse nos problemas que
pensam estar resolvendo— e que eu penso estar resolvendq —
ao passo que de fato nada ocorre de qualquer significação, ex­
ceto interações puramente físicas.
De tudo isto podeis ver que o problema do determinismo
físico que perturbou Compton é realmente um problema sério.
Não é apenas um enigma filosófico, mas afeta, pelo menos,
físicos, biólogos, behavioristas, psicólogos e engenheiros de com­
putador.
Admitidamente, bem poucos filósofos tentaram resolver
(acompanhando Hume ou Schlick) que ele seja meramente um
enigma verbal, um enigma a respeito do uso da palavra “li­
207
berdade”. Mas esses filósofos dificilmente viram a diferença
entre o problema do determinismo físico e o do determinismo
filosófico; e, ou são deterministas como Hume, que explicam
por que para eles a “liberdade” é “apenas uma palavra”, ou
nunca tiveram aquele estreito contacto com as ciências físicas
ou com a engenharia de computadores que os convencesse de
estarem em face de algo mais do que um enigma puramente
verbal.

X
Como Compton, acho-me entre os que levam a sério o
problema do determinismo físico e, como Compton, não creio
que sejamos meras máquinas de computar (embora prontamente
admita que podemos aprender muito das máquinas de com­
putar — mesmo a respeito de nós próprios). Assim, como
Compton, sou um indetermirústa físico: o indeterminismo físico,
creio, é um prerrequisito necessário para qualquer solução de
nosso problema. Temos de ser indeterministas; contudo, ten­
tarei mostrar que o indeterminismo não é bastante.
Com esta asserção, o indeterminismo não é bastante, não
apenas cheguei a um novo ponto, mas ao próprio âmago de meu
problema.
O problema pode ser assim explicado.
Se o determinismo é verdadeiro, então o mundo inteiro é
um relógio que funciona com impecável perfeição, incluindo
todas as nuvens, todos os organismos, todos os animais e todos
os homens. Por outro lado, se é verdadeiro o indeterminismo
de Peirce, ou de Heisenberg, ou alguma outra forma dele, então
o puro acaso desempenha um papel principal em nosso mundo
físico. Mas é o acaso realmente mais satisfatório do que o de­
terminismo?
A questão é bem conhecida. Deterministas como Schlick
téím-na exposto deste modo: “ . . . a liberdade de ação, a res­
ponsabilidade e a sanidade mental não podem chegar além do
reino da causalidade: param onde o acaso começa. .. .Um grau
mais alto de acaso. . . (significa simplesmente) um grau mais
alto de irresponsabilidade”.40
Talvez eu possa colocar esta idéia de Schlick em termos
de um exemplo que já usei antes: dizer que os sinais pretos
que fiz em papel branco, no preparo desta conferência, foram
apenas resultado do acaso, dificilmente é mais satisfatório do
que dizer que eles foram predeterminados fisicamente. De fato,
é ainda menos satisfatório. Pois algumas pessoas talvez possam
estar bem dispostas a acreditar que o texto de minha confe­
rência possa, em princípio, ser completamente explicado por
minha hereditariedade física e meu ambiente físico, incluindo
208
0

minha educação, os livros que tenho lido e as conversas que


tenho ouvido; mas dificilmente alguém acreditará que aquilo que
vos estou lendo nada mais seja do que resultado do acaso —
apenas uma amostragem ao acaso de palavras, ou talvez de
letras, reunidas sem qualquer objetivo, deliberação, plano ou
intenção.
A idéia de que a única alternativa para o determinismo é
só o puro acaso foi tirada por Schlick, juntamente com muitas
de outras opiniões suas a respeito do assunto, de Hume, que
asseverou que “a remoção” do que ele chamou “necessidade
física” deve resultar sempre “na mesma coisa com acaso. Como
os objetos devem ser conjugados ou não, . . . é impossível admi­
tir qualquer intermediário entre o acaso e uma necessidade ab­
soluta”.(41)
Argumentarei depois contra esta importante doutrina, de
acordo com a qual a única alternativa para o determinismo é o
puro acaso. Devo, contudo, admitir que a doutrina parece valer
bem para os modelos de teoria do quantum que têm sido ela­
borados para explicar, ou pelo menos para ilustrar, a possibi­
lidade da liberdade humana. Esta parece ser a razão de serem
tão insatisfatórios esses modelos.
O próprio Compton elaborou um desses modelos, embora
não gostasse particularmente dele. Usa a indeterminação de
quantum e a imprevisibilidade de um salto de quantum como
um modelo de uma decisão humana de grande importância.
Consiste de um amplificador que amplia o efeito de um salto
de quantum isolado de modo tal que possa causar uma explosão
ou destruir o relé necessário para produzir a explosão. Deste
modo, um só salto de quantum pode ser o equivalente de uma
decisão principal. Mas, em minha opinião, o modelo não tem
similaridade com qualquer decisão racional. É, antes, um mo­
delo de um tipo de tomada de decisão em que pessoas que não
podem decidir-se dizer: “Atiremos uma moeda”. De fato, o
aparelho inteiro para ampliar um salto de quantum parece bem
desnecessário: lançar uma moeda e decidir se o resultado do
lançamento é ou não puxar um gatilho daria no mesmo. E há,
sem dúvida, computadores com dispositivos inseridos de atirar
moedas para produzir resultados ao acaso quando estes forem
necessários.
Talvez se possa dizer que algumas de nossas decisões são
como lançamentos de moedas: são decisões repentinas, tomadas
sem deliberação, pois muitas vezes não temos tempo bastante
para deliberar. Um motorista, ou um piloto, tem às vezes de
tomar uma decisão repentina dessas; e se for bem treinado, ou
apenas feliz, o resultado pode ser satisfatório; do contrário, não.
209
Admito que o modelo do salto de quantum possa ser um
modelo para tais decisões instantâneas; e admito mesmo ser
concebível que algo como a amplificação de um salto de quan­
tum possa de fato ocorrer em nossos cérebros quando toma­
mos uma decisão repentina. Mas seião realmente as decisões
repentinas tão interessantes? São elas características de com­
portamento humano — de um comportamento humano ra­
cional?
Não penso assim; e não penso que consigamos muito mais
com saltos de quantum. São eles apenas o tipo de exemplos
que parecem prestar apoio à tese de Hume e Schlick de que o
perfeito acaso é a única alternativa para o perfeito determinis­
mo. O que precisamos para compreender o comportamento
humano racional — e, de fato, o comportamento animal —
é algo de caráter intermediário entre o perfeito acaso e o per­
feito determinismo — algo intermediário entre nuvens perfeitas
e relógios perfeitos.
A tese ontológica de Hume e de Schlick de que não pode
existir qualquer coisa intermediária entre acaso e determinismo
parece-me não só altamente dogmática (para não dizer doutri­
nária), como claramente absurda; e só é compreensível supon­
do-se que eles acreditavam num determinismo completo, no
qual o acaso não tem posição a não ser como um sintoma de
nossa ignorância. (Mas, mesmo assim, parece-me absurda, pois
há, claramente, algo como conhecimento parcial, ou ignorân­
cia parcial.) Pois sabemos que mesmo relógios altamente de
confiança não são realmente perfeitos e Schlick (se não Hume)
deve ter sabido que isto é amplamente devido a fatores tais como
o atrito — isto é, a efeitos estatísticos, ou de acaso. E também
sabemos que nossas nuvens não são perfeitamente fortuitas,
pois muitas vezes podemos predizer o tempo com inteiro êxito,
pelo menos para curtos períodos.
XI
Temos assim de voltar a nosso velho arranjo de nuvens à
esquerda e relógios à direita, com homens e animais nalguma
parte entre eles.
Mas mesmo depois de o termos feito (e há alguns pro­
blemas a serem resolvidos antes de podermos dizer que esse
arranjo está em consonância com a física da atualidade), mesmo
então teremos, no máximo, aberto espaço para nossa questão
principal.
Pois, obviamente* o que queremos é compreender por que
coisas não-físicas tais como objetivos, deliberações, planos, de­
cisões, teorias, intenções e valores podem desempenhar um papel
na produção de mudanças no mundo físico. Que o desempe­
210
0

nham parece-me óbvio, pace Hume e Laplace e Schlick. É


claramente inverídico que todas essas tremendas mudanças fí­
sicas produzidas a cada hora por nossas penas, ou lápis, ou
tratores, possam ser explicadas em termos puramente físicos,
ou por uma teoria física determinista, ou (por uma teoria esto-
cástica) como devidas ao acaso.
Compton estava bem consciente deste problema, como mos­
tra o seguinte trecho encantador de suas Conferências da Fun­
dação Terry:
“Há algum tempo escrevi ao secretário da Universidade de
Yale concordando em proferir uma conferência a 10 de no­
vembro, às 5 horas da tarde. Ele tinha tanta confiança em mim
que anunciou publicamente que eu lá estaria, e o auditório tinha
tanta confiança em sua palavra que foi ao salão à hora especi­
ficada. Considere-se, porém, a grande impossibilidade física de
que sua confiança fosse justificada. Nesse meio tempo, meu
trabalho chamou-me às montanhas Rochosas e a atravessar o
oceano para a ensolarada Itália. Um organismo fototrópico
(como acontece ser o meu) não conseguiría facilmente. . . ar­
rancar-se dali para ir à frígida New Haven. As possibilidades
de estar eu em outra parte nesse momento eram em número
infinito. Considerada como um evento físico, a probabilidade de
atender a meu compromisso era fantasticamente pequena. Por
que, então, era justificada a crença do auditório?. . . Eles co­
nheciam meu propósito, e era meu propósito (que) determinava
que eu estaria lá”.(42)
Compton mostra aqui muito belamente que o mero inde-
terminismo físico não é bastante. Temos de ser indeterministas,
por certo; mas também devemos tentar compreender como os
homens, e talvez os animais, podem ser “influenciados” ou
“controlados” por coisas tais como objetivos, ou propósitos, ou
normas, ou acordos.
Este é, pois, nosso problema central.

XII
Um exame mais de perto mostra, porém, que há dois pro­
blemas neste caso da viagem de Compton da Itália a Yale. Ao
primeiro desses dois problemas chamarei aqui problema de
Compton e, ao segundo, problema de Descartes.
O problema de Compton raramente tem sido visto por
filósofos e, se visto, só indistintamente. Pode ser formulado
assim:
Há coisas tais como cartas aceitando uma proposta para
conferência, e anúncios públicos de intenções; objetivos e pro­
pósitos publicamente declarados; regras morais gerais. Cada
um desses documentos, ou prpnunciamentos, ou regras, tem
211
certo conteúdo, ou significado, que permanece invariável se
o traduzirmos, ou reformularmos. Assim, esse conteúdo, ou sig­
nificado, é algo inteiramente abstrato. Contudo, ele pode con­
trolar — talvez por meio de uma enigmática anotação numa
agenda de compromissos — os movimentos físicos de um homem
de modo a trazê-lo de volta da Itália para Connecticut. Como
pode ser isto?
É o que chamo problema de Compton. É importante notar
que, nesta forma, o problema é neutro com respeito à questão
de adotarmos uma psicologia behaviorista ou mentalista: na
formulação aqui dada, e sugerida pelo texto de Compton, o
problema é posto em termos do comportamento de Compton ao
voltar a Yale; mas faria muito pouca diferença se incluíssemos
eventos mentais como.volição, ou o sentimento de haver apreen­
dido ou apanhado uma idéia.
Mantendo a própria terminologia behaviorista de Compton,
o problema de Compton pode ser descrito como o problema da
influência do universo de significados abstratos sobre p com­
portamento humano (e portanto sobre o universo físico). Aqui,
“universo de significados” é uma expressão taquigráfica com­
preendendo coisas tão diversas como promessas, objetivos e
vários tipos de regras tais como regras de gramática, ou de
procedimento polido, ou de lógica, ou de xadrez, ou de con-
contraponto; e também coisas como publicações científicas (e
outras publicações), apelos a nosso senso de justiça ou de
generosidade, ou a nossa apreciação artística; e assim por diante
ad infinitum.
Creio que o que aqui chamei problema de Compton é um
dos mais interessantes problemas de filosofia, embora poucos
filósofos o tenham visto. Em minha opinião é um problema real­
mente chave, e mais importante do que o clássico problema de
corpo-mente a que estou dando aqui o nome de “problema de
Descartes”.
A fim de evitar incompreensões, posso mencionar talvez
que, formulando seu problema em termos behavioristas, Comp­
ton certamente não tinha a intenção de aderir a um behavio-
rismo completo. Ao contrário, ele não duvidava da existência
de sua própria mente, ou da de outras mentes, ou de expe­
riências tais como volições, ou deliberações, ou prazer, ou dor.
Éle teria, portanto, insistido em que há um segundo problema a
ser resolvido.
Podemos identificar este segundo problema com o clássico
problema de corpo-mente, ou problema de Descartes- Pode ele
ser formulado assim: como pode ser que coisas tais como esta­
dos mentais — volições, sentimentos, expectativas — influen­
ciam ou controlam os movimentos físicos de nossos membros?

212
0

E (embora isto seja menos importante em nosso contexto)


como pode ser que estados físicos de um organismo podem in­
fluenciar seus estados mentais? (43)
Compton sugere que qualquer solução satisfatória ou acei­
tável de qualquer desses dois problemas teria de atender ao
seguinte postulado, que chamarei postulado da liberdade, de
Compton: a solução deve explicar a liberdade; e deve também
explicar como a liberdade não é simplesmente acaso, mas antes
o resultado de uma sutil ação recíproca entre algo quase ao
acaso ou acidental e algo como um controle restritivo ou sele­
tivo — tal como um objetivo ou um padrão — embora não cer-
tamente um controle férreo. Pois é claro que os controles que
guiaram Compton de volta da Itália lhe permitiram copiosa
liberdade: liberdade, digamos, de escolher entre um navio ame­
ricano e ou francês ou italiano; ou liberdade de adiar sua con­
ferência se surgisse alguma obrigação mais importante.
Podemos dizer que o postulado da liberdade, de Compton,
restringe as soluções aceitáveis de nossos dois problemas, exi­
gindo que elas se conformem com a idéia de combinar liberdade
e controle e também com a idéia de um “controle plástico”,
como o chamarei em contradistinção de um “controle férreo”.
O postulado de Compton é uma restrição que aceito ale­
gremente, livremente; e minha própria aceitação livre e deli­
berada, embora não crítica, dessa restrição pode ser tomada
como uma ilustração daquela combinação de liberdade e con­
trole que é o próprio conteúdo do postulado da liberdade, de
Compton.

XIII
Expliquei nossos dois problemas centrais — o problema
de Compton e o de Descartes. A fim de solucioná-los, preci­
samos, creio, de uma nova teoria; de fato uma nova teoria de
evolução e um novo modelo do organismo.
Esta necessidade surge porque as teorias indeterministas
existentes são insatisfatórias. São indeterministas; mas sabemos
que o indeterminismo não é bastante, e não está claro como
escapam à objeção de Schlick ou se se conformam com o pos­
tulado de Compton de liberdade mais controle. Mais uma vez,
o problema de Compton está completamente além delas: difi­
cilmente terão relevância para ele. E embora essas teorias sejam
tentativas de resolver o problema de Descartes, as soluções que
propõem não parecem ser satisfatórias.
As teorias a que estou aludindo podem ser chamadas “mo­
delos de chave-mestra de controle” ou, mais sucintamente, "teo­
rias de chave-mestra”. Sua idéia subjacente é a de que nosso
corpo é uma espécie de máquina que pode ser regulada por
213
uma alavanca ou uma chave, de um ou mais pontos de controle
centrais. Descartes chegou até mesmo a localizar com precisão
o ponto de controle: é disse ele„na glândula pineal que a mente
age sobre o corpo. Alguns teóricos de quantum sugeriram (e
Compton aceitou a sugestão muito experimentalmente) que
nossas mentes agem sobre nossos corpos influenciando ou sele­
cionando alguns saltos de quantum. Estes são então amplifi­
cados por nosso sistema nervoso central, que atua como um
amplificador eletrônico: os saltos de quantum ampliados ope­
ram uma cascata de relés ou de chaves-mestras e por fim efe­
tuam contrações musculares. (44) Há, penso, nos livros de
Compton, algumas indicações de que ele não gostava muito
desta teoria ou modelo particular e de que só a usou para um
objetivo: mostrar que o indeterminismo (ou mesmo a “liber­
dade”) humano não contradiz necessariamente a física do quan­
tum. (4B) Penso que ele estava certo em tudo isto, inclusive em
seu desagrado pelas teorias de chave-mestra.
Pois essas teorias de chave-mestra — quer a de Descartes,
quer as teorias de amplificador dos físicos de quantum — per­
tencem ao que eu talvez possa chamar teorias “bebês miudi­
nhos”. Parecem-me quase tão sem atrativos como tais bebês.
Estou certo de que todos conhecem o caso da mãe sol­
teira que alegava: “Mas é só um bebê tão miudinho.. . ” A
alegação de Descartes parece-me similar: “Mas é tão miudinho:
é apenas um ponto matemático minúsculo no qual nossa mente
pode agir sobre nosso corpo”.
Os teóricos de quantum sustentam uma teoria bebê-miudi-
nho muito similar: “mas é só com um salto de quantum, e pre­
cisamente dentro das incertezas de Heisenberg — e estas são
de fato muito miúdas — que uma mente ppde agir sobre um
sistema físico”. Admito que aqui haja talvez um leve avanço,
até onde é especificado o tamanho do bebê. Mas continuo sem
gostar do bebê.
Pois, por mais miúda que possa ser a chave-mestra, o mo­
delo de chave-mestra-íwn-amplificador sugere fortemente que
todas as nossas decisões são decisões repentinas (como as
chamei na secção X atrás), ou então se compõe de decisões
repentinas. Ora, admito que mecanismos amplificadores são
características importantes de sistemas biológicos (pois a ener­
gia da reação, liberada ou deflagrada por um estímulo biológco,
costumeiramente excede em muito a energia do estímulo defla­
grador)^46) e também admito, sem dúvida, que ocorrem de­
cisões repentinas. Mas diferem acentuadamente do tipo de de­
cisão que Compton tinha em mente; são quase como reflexos
e, assim, não se conformam nem à situação do problema de
Compton da influência do universo de significados sobre nosso
214
comportamento, nem ao postulado da liberdade de Compton
(nem à idéia de um controle “plástico” ). Decisões que se con­
formam com tudo isto são, via de regra, alcançadas quase im-
perceptivelmente por meio de prolongada deliberação. São al­
cançadas por uma espécie de processo amaãureceãor, que não
é bem representado pelo modelo de chave-mestra.
Considerando este processo de deliberação, podemos obter
outra sugestão para nossa nova teoria. Pois a deliberação sempre
funciona por meio de experiência e erro, ou, mais precisamente,
pelo método de experiência e eliminação de erro: por propor
experimentalmente várias possibilidades e eliminar aquelas que
não parecem adequadas. Isto sugere que poderemos usar em
nossa nova teoria algum mecanismo de experiência é eliminação
de erro.
Delinearei agora como pretendo proceder.
Antes de formular minha teoria evolucionária em termos
gerais, mostrarei primeiro como funciona ela em um caso par­
ticular, aplicando-a a nosso primeiro problema, isto é, ao pro­
blema de Compton quanto à influência do significado sobre o
comportamento.
Depois de haver resolvido deste modo o problema de
Compton, formularei a teoria de modo geral. Ver-se-á então que
ela também contém — dentro do arcabouço de nossa nova
teoria, que cria uma nova situação de problema — uma resposta
direta e quase trivial ao clássico problema corpo-mente de
Descartes.
XIV
Abordemos agora nosso primeiro problema — isto é, o
problema de Compton quqnto à influência do significado sobre
o comportamento — através de alguns comentários sobre a
evolução das linguagens, das linguagens animais às linguagens
humanas.
As linguagens animais e as linguagens humanas têm muitas
coisas em comum, mas também há diferenças: como todos sa­
bemos, as linguagens humanas transcendem de algum modo as
linguagens animais.
Usando e estendendo algumas idéias de meu falecido mestre
Karl Bühler,(47) distinguirei duas funções que as linguagens ani­
mais e humanas compartilham e duas funções que somente a
linguagem humana possui; ou, em outras palavras, funções in­
feriores e duas superiores que envolveram com base nas in­
feriores.
As duas funções inferiores da linguagem são estas: Pri­
meiro, a linguagem, como todas as outras formas de compor­
tamento, consiste de sintomas ou expressões; é sintomática ou
215
expressiva do estado do organismo que faz os sinais lingüísticos.
Acompanhando Bühler, chamo a isto a função sintomática ou
expressiva da linguagem.
Em segundo lugar, para que a linguagem ou comunicação
se verifique deve haver não só um organismo produtor de sinais,
ou um “emissor”, mas também um que reage, um “receptor”.
A expressão sintomática do primeiro organismo, o emissor, li­
bera, ou evoca, ou estimula, ou dispara uma reação no segundo
organismo, que responde ao comportamento do emissor, com
isso transformando-o num sinal. Esta função da linguagem para
agir sobre um receptor foi chamada por Bühler a função libe-
radora ou sinalizadora da linguagem.
Para dar um exemplo, uma ave pode estar pronta a sair
voando e pode expressar isto exibindo certos sintomas. Estes
podem então liberar ou disparar certa resposta ou reação numa
segunda ave, que, em conseqüência, também pode ficar pronta
a sair voando.
Note-se que as duas funções, a função expressiva e a função
liberadora, são distintas; pois é possível que exemplos da pri­
meira possam ocorrer sem a segunda, embora não se dê o
inverso: uma ave pode expressar por seu comportamento que
está pronta para sair voando sem com isso influenciar outra ave.
Assim, a primeira função pode ocorrer sem a segunda; o que
mostra que elas podem ser desenredadas apesar do fato de
que, em qualquer caso genuino de comunicação pela lingua­
gem, sempre ocorrem juntas.
Estas duas funções inferiores, a sintomática ou expressiva,
de um lado e a função liberadora ou sinalizadora, do outro, são
comuns às linguagens de .animais e de homens; e estas duas
funções inferiores estão sempre presentes quando qualquer das
funções superiores (que são característicamente humanas) es­
tiver presente. Pois a linguagem humana é muitíssimo mais rica.
Tem muitas funções e dimensões que as linguagens animais não
têm. Duas dessas novas funções são da maior importância para
a evolução do raciocínio e da racionalidade: a função descri­
tiva e a função argumentativa.
Como exemplo da função descritiva eu podería agora des­
crever como, há dois dias, uma magnólia estava florescendo
em meu jardim e o que aconteceu quando começou a cair neve.
Com isto eu poderia expressar meus sentimentos e também li­
berar ou deflagrar algum sentimento em vós; podereis talvez
reagir pensando em vossas magnólias. Assim, as duas funções
inferiores estariam presentes. Mas em acréscimo a tudo isto,
teria eu descrito alguns fatos; teria feito algumas asserções
descritivas; e estas minhas asserções seriam factualmente verda­
deiras ou factualmente falsas.

216
*

Sempre que falo não posso deixar de expressar-me; e se


me ouvirdes, dificilmente podereis deixar de reagir. Assim, as
funções inferiores estão sempre presentes. A função descritiva
não precisa estar presente, pois eu posso falar-vos sem des­
crever fato algum. Por exemplo, mostrando ou expressando
preocupação — digamos, dúvida de que que sobrevivais a esta
longa conferência — não preciso descrever nada. Contudo, a
descrição, incluindo a descrição de conjecturados estados de
coisas, que formulamos em forma de teorias ou hipóteses, é
claramente uma função extremamente importante da linguagem
humana; e é esta função que mais claramente distingue a lin­
guagem humana das várias linguagens animais (embora pareça
haver alguma coisa que se aproxime dela na linguagem das
abelhas(48) ). Ela é, sem dúvida, uma função indispensável para
a ciência.
A última e a mais elevada das quatro funções a serem men­
cionadas neste exame é a função argumentativa da linguagem,
como pode ser vista em funcionamento, em sua mais elevada
forma de desenvolvimento, numa bem disciplinada discussão
crítica.
A função argumentativa da linguagem não só é a mais ele­
vada das quatro funções que aqui estou discutindo, mas foi
também a última delas a evolver. Sua evolução tem sido estrei­
tamente ligada à de uma atitude argumentativa, crítica e ra­
cional; e como esta atitude tem levado à evolução da ciência,
podemos dizer que a função argumentativa da linguagem criou
o que é talvez o mais poderoso instrumento de adaptação bio­
lógica que já apareceu no curso da evolução orgânica.
Como as outras funções, a arte da argumentação crítica
desenvolveu-se pelo método de experiência e eliminação de erro
e tem tido a mais decisiva influência sobre a capacidade humana
para pensar racionalmente. (A própria lógica formal pode ser
descrita como um “sistema de argumento crítico”. (49)) Como
o uso descritivo da linguagem, o uso argumentativo tem levado
à evolução de padrões ideais de controle, ou de ‘‘idéias regu­
ladoras” (usando um termo kantiano: a principal idéia regula­
dora do uso descritivo da linguagem é a verdade (em distinção
da falsidade)-, e a do uso argumentativo da linguagem, na dis­
cussão crítica, é a validez (em distinção da invalidez).
Os argumentos, via de regra, são pró ou contra alguma
proposição ou asserção descritiva; eis porque nossa quarta
função — a argumentativa — deve ter emergido mais tarde
do que a função descritiva. Mesmo que eu argumentasse, numa
comissão, que a Universidade não deveria autorizar certa des­
pesa porque não podemos incorrer nela, ou por causa de algum
modo alternativo de usar o dinheiro que seria mais benéfico,
217
estaria argumentando não só pró ou contra uma proposta, mas
também pró e contra alguma proposição — a favor da propo­
sição, digamos, de que o uso proposto não seria benéfico e
contra a proposição de que o uso proposto seria benéfico.
Assim, os argumentos, mesmo os argumentos a respeito de pro­
postas, via de regra, relacionam-se com proposições e, muitas
vezes, com proposições descritivas.
Entretanto, o uso argumentativo da linguagem deve ser
claramente distinguido de seu uso descritivo, simplesmente
porque posso descrever sem argumentar, posso descrever, isto
é, sem dar razões pró ou contra a verdade de minha descrição.
Nossa análise das quatro funções de nossa linguagem —
as funções expressivas, sinalizadora, descritiva e argumentativa
— pode ser sumarizada dizendo que, embora se deva admitir
que as duas funções inferiores — a expressiva e a sinaliza­
dora — estão sempre presentes toda vez que as funções su­
periores estiverem presentes, devemos, não obstante, distinguir
as funções superiores das inferiores.
Todavia, muitos behavioristas e muitos filósofos têm des­
denhado as funções superiores, aparentemente porque as infe­
riores estão sempre presentes, estejam ou não presentes as su­
periores.
XV
Fora as novas funções da linguagem que evolveram e
emergiram juntamente com o homem e com a racionalidade
humana, devemos considerar outra distinção de importância
quase igual, a distinção entre a evolução de órgãos e a de
instrumentos ou máquinas, distinção a ser creditada a um dos
maiores filósofos ingleses, Samuel Butler, autor de Erewhon
(1872).
A evolução animal marcha amplamente, embora não ex­
clusivamente, por meio da modificação de órgãos (ou com­
portamento) ou pela emersão de novos órgãos (ou compor­
tamento). A evolução humana marcha, amplamente, pelo de­
senvolvimento de novos órgãos fora de nossos corpos ou pes­
soas: “exossomaticamente”, como o chamam os biólogos, ou
“extrapessoalmente”. Estes novos órgãos são instrumentos, ou
armas, ou máquinas, ou casas.
Os começos rudimentares deste desenvolvimento exosso-
mático podem, sem dúvida, ser encontrados entre animais. A
construção de luras, ou tocas, ou ninhos é uma realização pri­
mitiva. Posso também lembrar que os castores constroem re­
presas muito engenhosas. Mas o homem, em vez de desen­
volver melhores olhos e ouvidos, desenvolve óculos, microscó­
218
t

pios, telescópios, telefones e aparelhos auditivos. E em vez de


desenvolver pernas cada vez mais velozes, desenvolve cada
vez mais velozes automóveis.
Contudo, o tipo de evolução extrapessoal ou exossomá-
tica que me interessa aqui é este: em vez de desenvolver me­
mórias e cérebros melhores, desenvolvemos papel, canetas,
lápis, máquinas de escrever, ditafones, impressoras e biblio­
tecas.
Estas coisas acrescentam à nossa linguagem — e especial­
mente a suas funções descritiva e argumentativa — o que
pode ser descrito como novas dimensões. O mais recente de­
senvolvimento (usado principalmente em apoio a nossas capa­
cidades argumentativas) é o crescimento dos computadores.

XVI
Como as funções e dimensões superiores se relacionam com
as inferiores? Como vimos, elas não substituem as inferiores,
mas estabelecem sobre elas uma espécie de controle plástico —
um controle com retrocarga.
Tomemos como exemplo uma discussão numa conferência
científica. Pode ser animadora, agradável e dar origens a ex­
pressões e sintomas de ser assim; e essas expressões, por sua
vez, podem liberar sintomas similares em outros participantes.
Mas não há dúvida de que até certo ponto esses sintomas e
sinais de liberação serão originados e controlados pelo conteúdo
científico da discussão; e como esta será de natureza descritiva
e argumentativa, as funções inferiores serão controladas pelas
superiores. Mais ainda, embora uma boa piada ou uma risada
agradável possam deixar as funções inferiores vencerem a curto
prazo, o que importa a longo prazo é um bom argumento —
um argumento válido— e o que ele firma ou refuta. Em outras
palavras, nossa discussão é controlada, embora plasticamente,
pelas idéias reguladoras de verdade e de validez.
Tudo isto é fortalecido pela descoberta e pelo desenvolvi­
mento das novas dimensões de impressão e edição, especial­
mente quando são usadas para imprimir e editar teorias cien­
tíficas e hipóteses e publicações em que estas são discutidas
criticamente.
Não posso fazer justiça aqui à importância dos argumentos
críticos: é um tópico sobre o qual tenho escrito bem extensa-
mente(50) e, assim, não irei agora suscitá-lo de novo. Só desejo
acentuar que os argumentos críticos são um meio de controle:
são um meio de eliminar erros, um meio de seleção. Resolve­
mos nossos problemas propondo experimentalmente várias teo­
rias e hipóteses concorrentes, como balões de ensaio, por assim
219
dizer; e submetendo-as a discussões críticas e a testes empí­
ricos, para o fim de eliminação de erros.
Assim, a evolução das funções superiores da linguagem,
que venho tentando descrever, pode ser caracterizada como a
evolução de novos meios de solucionar problemas, por novas
espécies de experiências e por novos métodos de eliminação
de erros; isto é, novos métodos para controlar as experiências.

XVII
Posso dar agora minha solução de nosso primeiro problema
principal, isto é, o problema de Compton referente à influência
do significado sobre o comportamento. É esta:
Os mais altos níveis de linguagem evoluiram sob a pressão
de uma necessidade para o melhor controle de duas coisas: de
nossos níveis inferiores de linguagem e de nossa adaptação ao
ambiente, pelo método de desenvolver não só novos instrumen­
tos, mas também, por exemplo, novas teorias científicas, novos
padrões de seleção.
Ora, ao desenvolver suas funções superiores, nossa lin­
guagem também desenvolveu significados e conteúdos abstratos;
isto é, aprendemos a abstrair dos vários modos de formular ou
expressar uma teoria, e a prestar atenção a seu conteúdo ou
significado invariável (do qual depende sua verdade).
E isto vale não só para teorias e outras asserções descri­
tivas, como também para propostas, objetivos, ou mais o que
quer que possa ser submetido a discussão crítica.
O que tenho chamado “problema de Compton” era o pro­
blema de explicar e compreender o poder controlador dos signi­
ficados, tais como os conteúdos de nossas teorias, ou de pro­
pósitos, ou de objetivos; propósitos ou objetivos que em certos
casos podemos ter adotado após deliberação e discussão. Mas
isto, agora, não é mais um problema. Seu poder de influen­
ciar-nos é parte e componente desses conteúdos e significados;
pois parte da função de conteúdos e significados é controlar.
Esta solução do problema de Compton está conforme ao
postulado restritivo de Compton. Pois o controle de nós mesmos
e de nossas ações pelas nossas teorias e propósitos é um con­
trole plástico. Não somos forçados a nos submetermos ao con­
trole de nossas teorias, porque podemos discutí-las criticamente
e podemos rejeitá-las livremente se pensarmos que não atingem
nossos padrões reguladores. Assim, o controle está longe de
mostrar parcialidade. Não só nossas teorias nos controlam, como
podemos controlar nossas teorias (e mesmo nossos padrões);
existe aqui uma espécie de retrocarga. E se nos sujeitarmos a
nossas teorias, fa-lo-emos então livremente, após deliberação;

220
isto é, depois da discussão crítica de alternativas e depois de
escolher livremente entre as teorias concorrentes, à luz daquela
discussão crítica.
Apresento isto como minha solução do problema de
Compton; e antes de passar a resolver o problema de Descartes,
irei agora delinear rapidamente a teoria mais geral da evolução,
que já usei, implicitamente, em minha solução.

XVIII
Ofereço minha teoria geral com muitas desculpas. Levei
longo tempo para pensá-la inteiramente e torná-la clara para
mim mesmo. Não obstante, sinto-me ainda longe de estar satis­
feito com ela. Deve-se isto em parte ao fato de que é uma teoria
evolucionária e de que acrescenta apenas um pouco, receio, às
teorias evolucionárias existentes, a não ser talvez uma nova
ênfase.
Enrubesço quando tenho de fazer esta confissão; pois,
quando era mais novo, costumava eu dizer coisas muito desde­
nhosas a respeito das filosofias evolucionárias. Quando, há
vinte e dois anos, o Cônego Charles E. Raven, em seu Science,
Religion anã the Future, descreveu a controvérsia darwiniana
como uma “tempestade numa chávena vitoriana”, concordei,
mas critiquei-o(51) poi dar demasiada atenção “aos vapores que
ainda saiam da chávena”, com o que me referia ao ar quente
das filosofias evolucionárias (especialmente aquelas que nos
diziam haver leis de evolução inexoráveis). Mas agora tenho
de confessar que essa chávena tornou-se, afinal de contas, minha
xícara de chá; e com ela tenho de comer humilde bolo.
Inteiramente à parte das filosofias evolucionárias, a difi­
culdade a respeito de uma teoria evolucionária é seu caráter tau-
tológico, ou quase tautológico: a dificuldade é que o darwi-
nismo e a seleção natural, embora extremamente importantes,
explicam a evolução pela “sobrevivência dos mais aptos” (ex­
pressão devida a Herbert Spencer). Contudo, parece não haver
muita diferença, se alguma houver, entre a asserção “os que
.sobrevivem são os mais aptos” e a tautologia “os que sobrevi­
vem são os que sobrevivem”. Pois não temos, receio, qualquer
outro critério de aptidão além da sobrevivência efetiva, de modo
que concluímos do fato de ter algum organismo sobrevivido que
ele era o mais apto, ou o melhor adaptado às condições de
vida.
Isto mostra que o darwinismo, com todas as suas grandes
virtudes, não é de modo algum uma teoria perfeita. Necessita
de uma reformulação que o tome menos vago. A teoria evolu-
221
cionária que vou esboçar aqui é uma tentativa de tal refor­
mulação.
Minha teoria pode ser descrita como uma tentativa para
aplicar ao conjunto da evolução o que aprendemos quando
analisamos a evolução da linguagem animal para a linguagem
humana. E consiste de uma certa visão da evolução como um
crescente sistema hierárquico de controles plásticos, e de uma
certa visão dos organismos incorporando — ou, no caso do
homem, evolvendo exossomatieamente — esse crescente sis­
tema hierárquico de controles plásticos. É admitida a teoria da
evolução neo-darwinista; mas é reformulada, indicando-se suas
“mutações” como gambitos mais ou menos acidentais de expe­
riência e erro, e a “seleção natural” como um meio de controlá-
las por eliminação de erro.
Exporei agora a teoria em forma de doze teses curtas:
(1) Todos os organismos estão constantemente, dia e
noite, empenhados em resolver problemas; e assim estão todas
aquelas seqüências de organismos evolucionárias — os filos, que
começam com as mais primitivas formas e das quais os organis­
mos ora viventes são os mais recentes membros.
(2) Estes problemas são problemas em sentido objetivo:
podem, hipoteticamente, ser reconstruídos por meio de retro-
visão, por assim dizer. (Adiante, direi mais a este respeito.)
Problemas objetivos neste sentido não precisam ter contraparte
consciente; e onde têm sua contraparte consciente, o problema
consciente não precisa coincidir com o problema objetivo.
(3) A solução de problemas procede sempre pelo método
de experiência e erro: novas reações, novas formas, novos
órgãos, novos modos de comportamento, novas hipóteses, são
experimentalmente postos à frente e controlados por eliminação
de erro.
(4) A eliminação de erro pode proceder pela completa
eliminação de formas malogradas (a morte de formas malo­
gradas por seleção natural) ou pela evolução (experimental) de
controles que modificam ou suprimem órgãos, ou formas de
comportamento, ou hipóteses, mal sucedidos.
(5) O organismo isolado vê por telescópio (S2) dentro de
um corpo, por assim dizer, os controles desenvolvidos durante a
evolução de seu filo — tal como recapitula em parte, em seu
desenvolvimento ontogênico, sua evolução filogenética.
(6) O organismo isolado é uma espécie de ponta de lança
da sequência evolucionária de organismos à qual pertence (seu
filo): é ele próprio uma solução experimental, investigando

222
0

novos nichos ambientais, escolhendo um ambiente e modifican­


do-o. Relaciona-se assim com seu filo quase exatamente como
as ações (comportamento) do organismo individual se rela­
cionam com este organismo: o organismo individual e seu com­
portamento são, ambos, experiências, que podem ser eliminadas
por eliminação de erro.
(7) Usando “P” para problema, “TS” para soluções ex­
perimentais e “EE” para eliminação de erro, podemos descre­
ver a seqüência evolucionária fundamental de eventos como se
segue:
P -> TS -» EE -* P.
Mas esta sequência não é um ciclo: o segundo problema é,
em geral, diferente do primeiro; é o resultado da nova situação
que se ergueu, em parte, por causa das soluções experimentais
que têm sido tentadas e da eliminação de erro que as controla.
A fim de indicar isto, o esquema acima deve ser reescrito:
P i -* T S -> EE -> P 2.
(8) Mesmo nesta forma, porém, ainda está faltando um
elemento importante: a multiplicidade de soluções experimen­
tais, a multiplicidade das experiências. Assim, nosso esquema
final torna-se algo como isto:
/ TSi \
P i -» T S 2 -> EE -» P2
\ /

Conhecimento de Base
(9) Nesta forma, nosso esquema pode ser comparado com
o do neo-darwinismo. De acordo com o neo-darwinismo há de
modo principal um problema: o problema da sobrevivência. Há,
como em nosso sistema, uma multiplicidade de soluções expe­
rimentais — as variações ou mutações. Mas só há um meio de
eliminação de erro — a morte do organismo. E (em parte por
esta razão) o fato de que Px e P2 diferirão essencialmente é
desprezado, ou sua importância fundamental não é reconhecida
com clareza suficiente.
(10) Em nosso sistema, nem todos os problemas são pro­
blemas de sobrevivência: há numerosos problemas e subpro-
blemas muito específicos (ainda que os problemas mais antigos
223
possam ter sido puros problemas de sobrevivência). Por exem­
plo, um problema primitivo Pi pode ser de reprodução: o
problema de matar ou dispersar a prole — os filhos que amea­
çam sufocar o organismo que os gerou e também uns aos
outros. (53)
É talvez de interesse notar que o problema de evitar a
sufocação pela própria prole pode ser um daqueles problemas
que foram resolvidos pela evolução de organismos multicelula-
res: em vez de matar a própria prole, estabelece-se uma econo­
mia comum, com vários métodos novos de viver juntos.
(11) A teoria aqui proposta distingue entre Pt e P2 e
mostra que os problemas (ou as situações de problema) com
que o organismo está tentando lidar são muitas vezes novos e
surgem como produtos da evolução. A teoria, por isso, dá im­
plicitamente uma explicação racional do que se tem costumado
chamar pelos nomes um tanto dübios de "evolução criativa”
ou “evolução emergente”.(54)
(12) Nosso esquema permite o desenvolvimento de con­
troles de eliminação de erro (órgãos de advertência, como os
olhos; mecanismos de retrocarga); isto é, controles que podem
eliminar erros sem matar o organismo; e toma possível, em
última instância, que nossas hipóteses morram em vez de nós.

XIX
Cada organismo pode ser encarado como um sistema hie­
rárquico de controles plásticos — como um sistema de nuvens
controlado por nuvens. Os subsistemas controlados fazem mo­
vimentos de experiência e erro, que são em parte suprimidos e
em parte restringidos pelo sistema controlador.
Já encontramos um exemplo disto na relação entre as
funções inferiores e superiores da linguagem. As inferiores con­
tinuam a existir e a desempenhar seu papel; mas são constran­
gidas e controladas pelas superiores.
Outro exemplo característico é este: Se estou de pé, quieto,
sem fazer qualquer movimento, então (de acordo com os fisió-
logos) meus músculos estão constantemente em função, con­
traindo-se e relaxando-se de um modo quase ao acaso (ver
TS: para TS, na tese (S) da secção precedente), mas contro­
lados, sem que eu esteja consciente disto, por eliminação de
erro (EE), de modo que cada pequeno desvio de minha postura
é quase imediatamente corrigido. Assim, sou mantido de pé,
quieto, mais ou menos pelo mesmo método por que um piloto
aumotático mantém um avião firmemente em seu curso.
224
*

Este exemplo também ilustra a tese (1) da secção prece­


dente — a de que cada organismo está todo o tempo empe­
nhado em resolver problemas por experiência e erro; que reage
a novos e velhos problemas por experiências mais ou menos
ao acaso,(BS) ou à moda de nuvens, que são eliminadas se
mal sucedidas. (Se bem sucedidas, aumentam a probabilidade
da sobrevivência de mutações que “simulam” as soluções assim
alcançadas e tendem a tornar a solução hereditária, ( 58) incor­
porando-a na estrutura ou forma espacial do novo organismo.)

XX
Este é um delineamento muito breve da teoria. Necessita,
sem dúvida, de muita elaboração. Mas desejo explicar um ponto
um tanto mais plenamente — o uso que tenho feito (nas teses
(1) a (3) da secção XVIII) dos termos “problema” e “solução
de problema” e, mais particularmente, minha asserção de que
podemos jalar de problemas m m sentido objetivo, ou não psi­
cológico.
O ponto é importante, pois, claramente, a evolução não é
um processo consciente. Muitos biólogos dizem que a evolução
de certos órgãos resolve certos problemas; por exemplo, que a
evolução dos olhos resolve o problema de dar a um animal em
movimento uma advertência oportuna para que mude sua di­
reção antes de saltar dentro de algo difícil. Ninguém sugere
que este tipo de solução para esta espécie de problema seja
procurado conscientemente. Se falamos de solução de problema,
não é isto, então, apenas uma metáfora?
Não penso assim; antes, a situação é esta: quando falamos
de um problema, assim o fazemos quase sempre por retrovisão.
Quem trabalha num problema raramente pode dizer com cla­
reza o que seu problema é (a menos que tenha encontrado uma
solução); e mesmo que possa explicar seu problema, pode con­
fundí-lo. E isto pode mesmo valer para os cientistas — embora
os cientistas estejam entre aqueles poucos que conscientemente
tentam estar plenamente conhecedores de seus problemas. Por
exemplo, o problema consciente de Kepler era descobrir a
harmonia da ordem mundial; mas podemos dizer que o pro­
blema que ele resolveu foi a descrição matemática do movi­
mento num conjunto de sistemas planetários de dois corpos,
Similarmente, Schrõdinger estava equivocado a respeito do pro­
blema que resolveu encontrando a equação (independente de
tempo) de Schrõdinger: ele pensava que suas ondas eram ondas
com densidade de carga de um mutável campo contínuo de
carga elétrica. Mais tarde, Max Bom deu uma interpretação
estatística da amplitude de ondas de Schrõdinger; interpretação
223
que abalou Schrõdinger e que lhe desagradou enquanto viveu.
Ele havia resolvido um problema — mas não era o que pensava
ter resolvido. Sabemos disto agora, por retrovisão.
Contudo, é claramente na ciência que estamos mais côns-
cios dos problemas que tentamos resolver. Assim, não seria
fora de propósito usar a retrovisão em outros casos e dizer que
a ameba resolve alguns problemas (embora não precisemos
supor que ela esteja, em qualquer sentido, cônscia de seus
problemas): da ameba a Einsteín vai só um passo.

XXI
Compton, porém, nos diz que as ações da ameba não são
racionais, ( 57) ao passo que podemos admitir que as ações de
Einstein o sejam. Assim deve haver alguma diferença, afinal
de contas.
Admito que há uma diferença: ainda que seus métodos de
movimentos de experiência e erro quase ao acaso ou à moda
de nuvens não sejam fundamentalmente muito diferentes,(B8, BB)
há uma grande diferença em suas atitudes para com o erro.
Einstein, diversamente da ameba, conscientemente tentou o
melhor que pôde, sempre que lhe ocorria uma nova solução,
mostrá-la falha e descobrir um erro nela: abordava suas pró­
prias soluções criticamente.
Acredito que esta atitude conscientemente crítica para com
as próprias idéias é a única diferença realmente importante entre
o método de Einstein e o da ameba. Ela possibilitou a Einstein
rejeitar, com rapidez, como inadequadas, centenas de hipóteses,
antes de examinar mais cuidadosamente uma ou outra hipótese
que lhe parecesse capaz de suportar crítica mais séria.
Como disse recentemente o crítico John Arcljibald Whe-
eler, “Todo o nosso problema é cometer os enganos o mais
depressa possível”. (59) Este problema de Wheeler é resolvido
pela adoção consciente da atitude crítica. Isto, creio, é a mais
elevada forma, até agora, da atitude racional, ou da racio­
nalidade.
As experiências e erros do cientista consistem de hipó­
teses. Ele as formula em palavras, e muitas vezes por escrito.
Pode então tentar encontrar brechas em qualquer uma dessas
hipóteses, criticando-a e testando-a experimentalmente, ajudado
por seus colegas cientistas, que ficarão deleitados se puderem
encontrar uma brecha nela. Se a hipótese não suportar essas
críticas e esses testes pelo menos tão bem quanto suas concor­
rentes, ( 80) será eliminada.
226
Ocorre diferentemente com o homem primitivo e com a
ameba. Aí não há atitude crítica, e assim acontece, na maioria
das vezes, que a seleção natural elimina uma hipótese ou expec­
tativa errônea eliminando os organismos que a sustentam ou
nela acreditam. Podemos portanto dizer que o método crítico
ou racional consiste em deixar que nossas hipóteses morram
em vez de nós; é um caso de evolução exossomática.

XXII
Talvez aqui eu possa voltar a uma questão que me deu
muito trabalho, embora no fim eu chegasse a uma solução
muito simples.
A questão é: Podemos mostrar que existem controles plás­
ticos? Há na natureza sistemas físicos inorgânicos que possam
ser tomados como exemplos ou como modelos físicos de con­
troles plásticos?
Parece que esta questão foi respondida implicitamente na
negativa por muitos físicos que, como Descartes ou Compton,
operam com modelos de chave-mestra, e por muitos filósofos
que, como Hume ou Schlick, negam que possa existir qualquer
coisa de intermediário entre o determinismo completo e o puro
acaso. Admitidamente, os cibernéticos e os engenheiros de com­
putador têm tido, mais recentemente, bom sucesso em construir
computadores feitos de ferragens mas incorporando controles
altamente plásticos; por exemplo, computadores com mecanismo
embutido para experiência de tipo ao acaso, conferidas ou ava­
liadas por retroalimentação (à maneira de um piloto automá­
tico ou de um aparelho doméstico automático) e eliminadas se
errôneas. Mas esses sistemas, embora incorporando o que chamei
controles plásticos, consistem essencialmente de complexos relés
de chaves-mestras. O que eu estava buscando, porém, era um
modelo físico simples de indeterminismo peirceano; um sistema
puramente físico semelhante a uma nuvem muito anuviada em
movimento de calor, controlada por algumas outras nuvens anu-
viadas — ainda que um tanto menos anuviadas.
Se voltarmos a nosso velho arranjo de nuvens e relógios,
com uma nuvem à esquerda e um relógio à direita, então po­
demos dizer que o que estamos buscando é algo de interme­
diário, como um organismo ou como nossa nuvem de pernilon-
gos, mas não vivo: um sistema físico puro, controlado plasti-
camente e “suavemente“, por assim dizer.
Admitamos que a nuvem a ser controlada é um gás. Então
podemos por na extrema esquerda um gás não controlado, que
logo se difundirá e deixará de constituir um sistema físico. Co­
locamos na extrema direita um cilindro de ferro cheio de gás:

227
este é nosso exemplo de um controle “duro”, um controle
“férreo”. No meio, mas bem para a esquerda, há muitos siste­
mas controlados mais ou menos “suavemente”, tais como nosso
aglomerado de pernilongos e vastas bolas de partículas, tais
como um gás mantido coeso pela gravidade, um tanto como o
sol. (Não nos importa que o controle esteja longe de ser per­
feito e muitas partículas escapem.) Talvez se possa dizer que
os planetas são ferreamente controlados em seus movimentos
— relativamente falando, sem dúvida, pois mesmo o sistema pla­
netário é uma nuvem, e o mesmo são todas as vias-lácteas, aglo­
merações de estrelas, e aglomerações de aglomerações. Mas há,
à parte sistemas orgânicos e esses vastos sistemas de partículas,
exemplo de quaisquer sistemas físicos pequenos controlados
“suavemente”?
Penso que há, e proponho colocar no meio de nosso dia­
grama um balão de criança, ou, talvez melhor, uma bolha de
sabão; e isto, realmente, mostra ser um exemplo ou modelo,
muito primitivo e a muitos respeitos excelente, de um sistema
peirceano e de um tipo “suave” de controle plástico.
A bolha de sabão consiste de dois subsistemas, ambos os
quais são nuvens e que se controlam reciprocamente; sem o ar,
a película de sabão entraria em colapso e teríamos apenas uma
gota de água saponificada. Sem a película, o ar ficaria descon­
trolado: difundir-se-ia, deixando de existir como um sistema.
Assim o controle é mútuo; é plástico e de um caráter de retro-
carga. Contudo, é possível fazer uma distinção entre o sistema
controlado (o ar) e o sistema controlador (a película): o ar
envolvido não só é mais ahuviado do que a película envolve-
dora, mas também deixa de ser um sistema físico (interatuante)
se a película for removida. Em contraposição a isto, a pelí­
cula, após a remoção do ar, formará uma gotinha que, embora
de forma diferente, pode ainda ser tida como um sistema
físico.
Comparando a bolha com um sistema “de ferragens”,
como um relógio de precisão ou um computador, poderiamos
sem dúvida dizer (de acordo com o ponto de vista de Peirce)
que mesmo esses sistemas de ferragens são nuvens controladas
por nuvens. Mas esses sistemas “duros” são construídos com
o propósito de minimizar, tanto quanto possível, os efeitos
de tipo de nuvem dos movimentos e flutuações moleculares
de calor: embora sejam nuvens, os mecanismos controladores
são feitos para suprimir ou compensar todos os efeitos do
tipo de nuvem, até onde for possível. Isto vale mesmo para
computadores com mecanismos que simulam mecanismos de
experiência e erro do tipo ao acaso.

228
*

Nossa bolha de sabão é diferente a este respeito e, pa­


rece, mais semelhante a um organismo: os efeitos molecu­
lares não são eliminados, mas contribuem essencialmente para
o funcionamento do sistema que é envolvido por uma película
— uma parede permeável(61) que o deixa “aberto” e capaz de
“reagir” às influências ambientais de um modo que é construído,
por assim dizer, dentro de sua “organização” : a bolha de sabão,
quando atingida por um raio de calor, absorve o calor (muito
como uma estufa) e assim o ar encerrado se expandirá, man­
tendo a bolha a flutuar.
Em todos os usos de similaridade ou analogia devemos,
porém, procurar limitações; e aqui podemos indicar que, pelo
menos em certos organismos, as flutuações moleculares são
aparentemente amplificadas e assim usadas para liberar movi­
mentos de experiência e erro. De qualquer modo, os ampli­
ficadores parecem desempenhar importantes papéis em todos os
organismos (que, a este respeito, se assemelham a alguns com­
putadores com suas chaves-mestras e cascatas de amplificadores
e relés). Todavia, não há amplificadores na bolha de sabão.
Seja como possa ser, nossa bolha mostra que existem sis­
temas físicos naturais do tipo de nuvem que são plástica e suave­
mente controlados por outros sistemas do tipo de nuvem. (In­
cidentemente, a película da bolha não precisa ser, naturalmente,
derivada de matéria orgânica, embora tenha de conter grandes
moléculas.)

XXIII
A teoria evolucionária aqui proposta fornece uma solução
imediata ao nosso segundo problema principal — o clássico
problema cartesiano de corpo-mente. E o faz (sem dizer o que
é “mente” ou “consciência”) dizendo algo acerca da evolução e,
com isso, acerca das funções da mente ou consciência.
Devemos admitir que a consciência cresce de começos pe­
quenos; talvez sua primeira forma seja um vago sentimento de
irritação, experimentado quando o organismo tem um problema
a resolver, tal como afastar-se de uma substância irritante. Seja
como possa ser, a consciência assumirá significação evolucioná­
ria — e significação crescente — quando começar a antecipar
meios possíveis de reagir; movimentos possíveis de experiência
e erro e seiis possíveis resultados.
Podemos dizer agora que os estados conscientes, ou as
seqüências de estados conscientes, podem funcionar como sis­
temas de controle, de eliminação de erro: a eliminação, via de
regra, de comportamento (incipiente), que é movimento (inci­
piente). A consciência, deste ponto de vista, surge como so­
229
mente um de muitos tipos .de controle interatuantes; e se lem­
brarmos os sistemas de controle incorporados, por exemplo,
em livros — teorias, sistemas de lei e tudo quanto constitui o
“universo de significados” — então a consciência dificilmente
poderá ser tida como o mais elevado sistema de controle na
hierarquia. Pois ela é, em considerável extensão, controlada por
esses sistemas lingüísticos exossomáticos — ainda mesmo que
se possa dizer que eles são produzidos pela consciência. Pode­
mos conjecturar que a consciência, por sua vez, é produzida
por estados físicos; contudo, ela os controla em considerável ex­
tensão. Assim como um sistema legal ou social é produzido por
nós e, todavia, nos controla, não sendo em qualquer sentido
razoável “idêntico” ou “paralelo” a nós, mas interage conosco,
assim também os estados de consciência (a “mente” ) con­
trolam o corpo e interagem com ele.
Temos portanto um conjunto inteiro de relações análogas.
Como o nosso mundo exossomático de significados é relacio­
nado com a consciência, também a consciência é relacionada
com o comportamento do organismo individual atuante. E o
comportamento do organismo individual é similarmente relacio­
nado com seu corpo, com o organismo individual tomado como
um sistema fisiológico. Este último é similarmente relacionado
com a seqüência evolucionária de organismos — o filo, de que
é, por assim dizer, a mais recente ponta de lança: tal como o
organismo individual é lançado experimentalmente pelo filo
como um instrumento de investigação e todavia controla am­
plamente o destino do filo, assim também o comportamento do
organismo é lançado experimentalmente pelo sistema fisiológico
como um instrumento de investigação e todavia controla ampla­
mente o destino desse sistema. Nossos estados conscientes são
símilarmente relacionados com o nosso comportamento. Anteci­
pam nosso comportamento, elaborando, por experiência e erro,
suas conseqüências prováveis; assim, não só controlam, mas
experimentam, deliberam.
Vemos agora que esta teoria nos oferece uma resposta
quase trivial ao problema de Descartes. Sem dizer o que “a
mente” é, leva imediatamente à conclusão de que nossos esta­
dos mentais controlam (alguns de) nossos movimentos físicos,
e de que há certo dar-e-tomar, certa realimentação, e assim
certa interação, entre a atividade mental e as outras funções
de organismo.(®2)
O controle será novamente do tipo “plástico” ; de fato,
todos nós — especialmente os que tocam um instrumento mu­
sical como o piano ou o violino — sabemos que o corpo nem
sempre faz o que queremos que faça, e que teremos de aprender,
com nosso insucesso, como modificar nossos alvos, levando

230
em conta aquelas limitações que bloqueiam nosso controle: em­
bora sejamos livres em certa extensão considerável, há sempre
condições —■físicas ou outras — que fixam limites ao que
podemos fazer. (Sem dúvida, antes de desistir, somos livres para
tentar transcender esses limites.)
Assim, como Descartes, proponho a adoção de um ponto
de vista dualista, embora, sem dúvida, não recomende falar
de dois tipos de substâncias interatuantes. Mas penso ser útil
e legítimo distinguir dois tipos de estados (ou eventos) intera-
tuantes, os físico-químicos e os mentais. Além disso, sugiro que,
se distinguirmos apenas esses dois tipos de estados, estaremos
ainda tomando uma visão demasiado estreita de nosso mundo:
no mínimo deveriamos distinguir também aqueles artefatos que
são produtos de organismos, e especialmente os produtos de
nossas mentes, e que podem interagir com as nossas mentes e,
assim, com o estado de nosso ambiente físico. Embora esses
artefatos sejam muitas vezes “meros pedacinhos de papel”, talvez
“meros instrumentos”, chegam mesmo a ser, no nível animal,
consumadas obras de arte; e no nível humano os produtos de
nossas mentes são muitas vezes muito mais do que “pedacinhos
de papel” — digamos, pedacinhos de papel marcados; pois esses
pedacinhos de papel podem representar estados de uma dis­
cussão, estados do crescimento do conhecimento, que podem
transcender (às vezes com sérias conseqüências) a apreensão
de muitas ou mesmo de todas as mentes que ajudaram a pro­
duzi-los. Assim, temos de ser não simplesmente dualistas, mas
pluralistas; e temos de reconhecer que as grandes mudanças que
produzimos, muitas vezes inconscientemente, em nosso universo
físico mostram que regras abstratas e idéias abstratas, algumas
das quais só parcialmente apreendidas por mentes humanas,
podem mover montanhas.

XXIV
Como reflexão posterior, eu gostaria de acrescentar um
último ponto.
Seria um engano pensar que, em razão da seleção natural,
a evolução só possa levar ao que se pode chamar resultados
“utilitários” : as adaptações que são úteis para ajudar-nos a
sobreviver.
Assim como, num sistema com controles plásticos, os sub-
sistemas controladores e controlados interagem, assim também
nossas soluções experimentais interagem com os nossos proble­
mas e com os nossos objetivos. Isto significa que nossos objeti­
vos podem mudar e que a escolha de um objetivo pode tornar-
s e um problema; objetivos diferentes podem competir, e novos

231
objetivos podem ser inventados e controlados pelo método de
experiência e eliminação de erro.
Admitidamente, se um novo objetivo colide com o objetivo
de sobreviver, então este novo objetivo pode ser eliminado por
seleção natural. É bem sabido que muitas mutações são letais
e, portanto, suicidas; e há muitos exemplos de objetivos sui­
cidas. Outros são, talvez, neutros com respeito à sobrevivência.
Muitos objetivos que a princípio são subsidiários da .so­
brevivência podem mais tarde tornar-se autônomos e mesmo
opostos à sobrevivência; por exemplo, a ambição de sobrepujar
em coragem, de escalar o Monte Everest, de descobrir um novo
continente ou de ser o primeiro na Lua; ou a ambição de desco­
brir alguma nova verdade.
Outros objetivos podem, desde o próprio começo, ser
saídas autônomas, independentes do objetivo de sobreviver. São
talvez deste tipo os objetivos artísticos, ou alguns objetivos reli­
giosos, e para aqueles que os acarinham eles podem tornar-se
muito mais importantes do que a sobrevivência.
Tudo isto faz parte da superabundância da vida — a quase
excessiva abundância de experiências e erros de que depende o
método de experiência e eliminação de erro.(83)
Talvez não seja desinteressante ver que os artistas, como
os cientistas, usam de fato esse método de experiência e erro.
Um pintor pode pôr na tela, experimentalmente, um pingo de
tinta e recuar para uma avaliação crítica do efeito da cor,(84)
a fim de alterá-la se não solucionar o problema que ele quer
resolver. E pode acontecer que um efeito inesperado ou aci­
dental de sua prova experimental — um pingo de cor ou uma
pincelada — possa mudar seu problema, ou criar um novo pro­
blema, ou um novo objetivo: a evolução dos objetivos artís­
ticos e dos padrões artísticos (que, como as regras de lógica,
podem tornar-se sistemas exossomáticos de controle) marcha
também pelo método de experiência e erro.
Aqui talvez possamos, por um momento, volver os olhos
para o problema do determinismo físico e para nosso exemplo
do físico surdo que nunca conhecera música, mas seria capaz de
“compor” uma ópera de Mozart ou uma sinfonia de Beethoven
simplesmente estudando os corpos de Mozart ou de Beethoven
e seus ambientes como sistemas físicos, e predizendo onde suas
penas colocariam marcas pretas em papel com pautas. Apre­
sentei isto como consequências inaceitáveis do determinismo fí­
sico. Mozart e Beethoven são controlados, parcialmente, por seu
“gosto”, seu sistema de avaliação musical. Mas este sistema não
é férreo e sim, antes, plástico. Responde a novas idéias e pode
ser modificado por experiências e erros novos — talvez mesmo
por um engano acidental, uma discordância não pretendida.(8B)

232
«

Em conclusão, permiti-me sumarizar a situação.


Vimos que é insatisfatório encarar o mundo como um
sistema físico fechado — seja um sistema estritamente determi­
nista ou um sistema em que tudo o que não é determinado estri­
tamente é simplesmente devido ao acaso: em tal concepção do
mundo, a criatividade humana e a liberdade humana só podem
ser ilusões. A tentativa de fazer uso da indeterminação teórica
do quantum é também insatisfatória, porque leva ao acaso em
vez de à liberdade e a decisões instantâneas em. vez de a decisões
deliberadas.
Ofereci aqui, portanto, uma visão diferente do mundo —
uma visão em que o mundo físico é um sistema aberto. Isto é
compatível com a visão da evolução da vida como um pro­
cesso de experiências e eliminação de erros; e permite que com­
preendamos racionalmente, ainda que longe de plenamente, a
emersão de novidades biológicas e o crescimento do conheci­
mento humano e da liberdade humana.
Tentei delinear uma teoria evolucionária que leva em conta
tudo isto e que oferece soluções aos problemas de Compton e
de Descartes. É também, receio, uma teoria que consegue ser
demasiado trivial e demasiado especulativa ao mesmo tempo; e
ainda que eu pense que conseqüências testáveis podem ser deri­
vadas dela, estou longe de sugerir que minha proposta solução
seja a que os filósofos têm estado esperando. Sinto, porém, que
Compton poderia ter dito que ela apresenta, apesar de suas
falhas, uma resposta possível a seu problema — e uma resposta
que poderia levar a maior progresso.
(Esta foi a segunda Conferência em Memória
de Arthur Holly Compton, apresentada na Univer­
sidade de Washington, a 21 de abril de 1965.)

233
7 — A EVOLUÇÃO E A ÁRVORE
DO CONHECIMENTO

Fiquei muito satisfeito com o convite para proferir a Con­


ferência em Homenagem a Herbert Spencer, e não só pela
honra de ser chamado a render preito a um pensador de grande
coragem e originalidade. Agradou-me especialmente a sugestão,
feita pela Diretoria de Administração destas conferências, de
que eu poderia decidir escolher para minha palestra um tema
como “O Método das Ciências Biológicas”. Esta sugestão dá-me
a oportunidade de desenvolver aqui certo número de idéias que,
embora as ache estimulantes e dignas de discussão, poderia
nunca ter apresentado em público se não tivesse recebido este
encorajamento.
Todas as idéias que pretendo expor diante de vós referem-
-se a problemas do método em biologia. Contudo, não irei limi­
tar-me a este campo. Meu plano para as três partes desta con­
ferência é começar com algumas observações sobre a teoria geral
do conhecimento; a seguir, voltar-me para certos problemas de
método relativos à teoria da evolução; e finalmente introme-
ter-me, ou antes, tropeçar, em certas partes da própria teoria da
evolução. Para ser bem específico, exporei diante de vós, na
terceira parte de minha conferência, uma conjectura minha que
pretende resolver, dentro da estrutura de uma teoria darwi-
niana ou neo-darwiniana de seleção natural, algumas das difi­
culdades clássicas com que essa teoria tem lutado até agora.
Chamo “clássicas” tais dificuldades porque elas foram des­
cobertas primitivamente, e sucintamente analisadas, tanto por
Herbert Spencer, pouco depois de aceitar a teoria de seleção na­
tural de Darwin, como por Samuel Butler, logo depois de rejei­
tá-la. Na verdade, o próprio Darwin, como Spencer apontou,
já se preocupara muito com as dificuldades a que estou alu­
dindo. C1)
Meu programa para esta conferência estende-se, portanto,
da teoria geral do conhecimento para os métodos da biologia e
para a própria teoria da evolução. Este programa, receio, é um

234
*

pouco ambicioso para uma conferência; e se além disso fosse


parte de meu programa convencer-vos, minha posição seria de
fato desesperada. É, pois, afortunado que eu não tenha a inten­
ção de convencer ninguém da verdade de qualquer de minhas
teses, e muito menos da verdade de minha conjectura neo-dar-
winiana que vos irei propor no fim desta palestra. Pois, embora
eu espere que esta conjectura talvez possa ajudar-nos a chegar
um pouco mais perto da verdade, nem mesmo ouso esperar
que ela seja verdadeira; de fato, temo que contenha muito
pouca verdade. Certamente não contém nem a verdade final,
nem a verdade inteira da questão. Assim, não desejo conven-
cer-vos, simplesmente porque eu mesmo não estou convencido.
Espero porém, e para isso tentarei o melhor que possa, reavi­
var vosso interesse por estes problemas. Admito que eles têm
ficado por vezes um tanto batidos e até já manifestei em alguma
parte meu acordo com a observação do Professor Raven de
que a controvérsia evolucionária era uma “tempestade numa
chávena vitoriana”. Contudo, embora esta descrição possa ser
inteiramente adequada se pensarmos na tempestade levantada
pela afirmação, por Darwin, de nosso parentesco com os ma­
cacos, outros problemas teóricos, mais estimulantes para meu
espírito, foram suscitados pela controvérsia darwiniana.

1 — Algumas Observações sobre Problemas e o


Crescimento do Conhecimento

Passo agora à primeira parte de minha conferência: à


teoria geral do conhecimento.
A razão por que julgo ter de começar com alguns comen­
tários sobre a teoria do conhecimento é que, a respeito dela,
discordo de quase todos, exceto talvez Charles Darwin e Albert
Einstein. (Einstein, incidentemente, explicou sua visão dessas
questões em sua conferência em honra de Herbert Spencer feita
em 1933.) (2) O principal ponto em debate é a relação entre
observação e teoria. Acredito que a teoria — pelo menos alguma
teoria ou expectativa rudimentar — sempre vem primeiro; que
ela sempre precede a observação; e que o papel fundamental das
observações e dos testes experimentais é mostrar que algumas
de nossas teorias são falsas e, assim, estimular-nos a produzir
outras melhores.
Consequentemente, afirmo que não partimos de observa­
ções, mas sempre de problemas — ou de problemas práticos ou
de uma teoria que caiu em dificuldades. Uma vez que defron­
temos um problema, podemos começar a trabalhar nele. Po­
demos fazê-lo por meio de tentativas de duas espécies: podemos

235
prosseguir tentando primeiro supor ou conjecturar uma solução
para nosso problema; e podemos depois tentar criticar nossa
suposição, costumeiramente fraca. Às vezes, uma suposição ou
uma conjectura podem suportar por certo tempo nossa crítica e
nossos testes experimentais. Mas,, via de regra, logo descobri­
mos que nossas conjecturas podem ser refutadas, ou que não
resolvem nosso problema, ou que só o solucionam em parte; e
verificamos que mesmo as melhores soluções — aquelas capazes
de resistir à crítica mais severa das mentes mais brilhantes e
engenhosas — logo dão origem a novas dificuldades, a novos
problemas. Assim podemos dizer que o crescimento do conheci­
mento marcha de velhos problemas para novos problemas, por
meio de conjecturas e refutações.
Alguns dentre vós, suponho, concordarão em que habitual­
mente partimos de problemas; mas podereis continuar pensando
que nossos problemas devem ter sido o resultado da observação
e da experiência, pois todos estais familiarizados com a idéia de
que nada pode haver em nosso intelecto que não tenha entrado
nele através de nossos sentidos.
Mas é justamente esta venerável idéia que estou comba­
tendo. (8) Afirmo que todo animal nasce com expectativas ou
antecipações que poderão ser enquadradas como hipóteses; uma
espécie de conhecimento hipotético. E assevero que temos, neste
sentido, certo grau de conhecimento inato a partir do qual po­
demos começar, ainda que possa ser completamente indigno de
confiança. Este conhecimento inato, estas expectativas inatas, se
desiludidas, criarão nosso primeiro problema; e o crescimento
seguinte de nosso conhecimento pode, portanto, ser descrito
como consistindo inteiramente de correções e modificações de
um conhecimento prévio.
Estou, assim, virando as mesas sobre aqueles que pensam
que a observação deve preceder as expectativas e problemas;
e afirmo mesmo que, por razões lógicas, a observação não pode
ser anterior a todos os problemas, embora, obviamente, possa
às vezes ser anterior a alguns problemas — por exemplo, àqueles
problemas que surgem de uma observação que desilude alguma
expectativa ou refuta alguma teoria. O fato de que a observação
não pode preceder todos os problemas pode ser ilustrado por
meio de uma experiência simples que desejo realizar, tendo-vos
com vossa licença, como elementos experimentais. (4) Minha ex­
periência consiste em pedir-vos para observar, aqui e agora.
Espero que todos sejais cooperadores e observadores! Contudo,
receio que pelo menos alguns dentre vós, em vez de observar,
sentirão forte impulso para indagar: “Que quer que eu
observe?”

236
*

Se esta for vossa resposta, então minha experiência foi


bem sucedida. Pois o que estou tentando ilustrar é que, a fim
de observar, devemos ter em mente uma indagação definida que
possamos ser capazes de decidir por meio de observação.
Darwin sabia disto quando escreveu: “Como é estranho que
alguém não veja que toda observação deve ser pró ou contra
alguma opinião.. , ” ( 5) Nem “observai!” (sem indicação do
que) nem “observai esta aranha!” são imperativos claros. Mas
“observai se esta aranha sobe ou desce, como espero, que
fará!” seria bastante claro.
Não posso, sem dúvida, esperar convercer-vos da verdade
de minha tese de que a observação vem depois da expectativa
ou hipótese. Mas espero ter sido capaz de mostrar-vos que pode
existir uma alternativa para a venerável doutrina de que o co­
nhecimento, e especialmente o conhecimento científico, sempre
parte da observação.(6)
Vejamos agora um pouco mais de perto este método de
conjectura e refutação que, de acordo com a minha tese, é o
método pelo qual nosso conhecimento cresce.
Partimos, digo, de um problema, uma dificuldade. Pode
ser prático ou teórico. Seja o que for, quando primeiro encon­
tramos o problema não podemos, obviamente, saber muito a
seu respeito. No máximo, temos só uma vaga idéia daquilo
de que realmente consiste, nosso problema. Como, então, po­
demos produzir uma solução adequada? Obviamente, não pode­
mos. Devemos primeiro ficar conhecendo melhor o problema.
Mas, como?
Minha resposta é muito simples: produzindo uma solução
inadequada e criticando-a. Só deste modo podemos chegar a
compreender o problema. Pois compreender um problema signi­
fica compreender suas dificuldades; e compreender suas dificul­
dades significa compreender porque ele não é solucionável fa­
cilmente — por que as soluções mais óbvias; não funcionam.
Devemos, portanto, produzir essas soluções mais óbvias;
e devemos criticá-las a fim de descobrir por que não funcionam.
Assim ficamos conhecendo o problema e podemos passar de
soluções más para outras melhores — sempre, contudo, desde
que tenhamos capacidade criativa para produzir suposições
novas, e mais suposições novas.
Isto, penso, é o que significa “trabalhar num problema”.
E se trabalhamos num problema por bastante tempo e com
bastante intensidade, começamos a conhecê-lo, a compreen­
dê-lo, no sentido de saber que tipo de suposição ou conjectura
ou hipótese não servirá em absoluto, porque simplesmente não

237
atinge o problema, e que tipo de requisitos terão de ser preen­
chidos por qualquer tentativa séria de resolvê-lo. Em outras
palavras, começamos a ver as ramificações do problema, seus
subproblemas e sua conexão com outros problemas. (É só nesta
etapa que uma solução conjecturada deve ser submetida à crí­
tica de outros e talvez mesmo publicada.)
Se considerarmos agora esta análise, veremos que ela se
encaixa em nossa fórmula, que disse que o progresso do conhe­
cimento vem de problemas velhos para novos problemas, por
meio de conjecturas e de tentativas críticas para refutá-las.
Pois mesmo o processo de ficar conhecendo um problema cada
vez melhor marcha de acordo com esta fórmula.
No passo seguinte, nossa solução experimental é discutida
e criticada; todos tentam encontrar nela uma brecha e refutá-
-la; e, seja qual possa ser o resultado dessas tentativas, certa­
mente aprendemos com elas. Se a crítica de nossos amigos, ou de
nossos opositores, for bem sucedida, teremos aprendido muito
a respeito de nosso problema: saberemos mais do que antes
acerca de suas dificuldades inerentes. E se mesmo os nossos
mais afiados críticos não tiverem êxito, se nossa hipótese for
capaz de resistir à sua crítica, ainda uma vez teremos aprendido
muito, tanto a respeito do problema quanto a respeito de nossa
hipótese, de sua adequação, de suas ramificações. E enquanto
nossa hipótese sobreviver, ou pelo menos enquanto se com­
portar melhor, em face da crítica, do que suas concorrentes,
poderá ela, temporária e experimentalmente, ser aceita como
parte do ensinamento científico em vigor.
Tudo isto pode ser expresso dizendo que o crescimento de
nosso conhecimento é o resultado de um processo estreitamente
semelhante ao que Darwin chamou “seleção natural”; isto é, a
seleção natural de hipóteses: nosso conhecimento consiste, a
cada momento, daquelas hipóteses que mostraram sua aptidão
(comparativa) para sobreviver até agora em sua luta pela exis­
tência, uma luta de competição que elimina aquelas hipóteses
que são incapazes.(7)
Esta interpretação pode ser aplicada ao conhecimento ani­
mal, ao conhecimento pre-científico e ao conhecimento cien­
tífico. Peculiar ao conhecimento científico é isto: a luta pela
existência é tomada mais dura pela crítica sistemática e cons­
ciente de nossas teorias. Assim, enquanto o conhecimento ani­
mal e o conhecimento pre-científico crescem principalmente
através da eliminação daqueles que sustentam as hipóteses inca­
pazes, a crítica científica faz muitas vezes nossas hipóteses pe­
recerem em lugar de nós, eliminando nossas crenças errôneas
antes que essas crenças levem à nossa eliminação.
238
*

Esta enunciação da situação pretende descrever como cresce


realmente o conhecimento. Não é para entender-se metaforica­
mente, embora sem dúvida faça uso de metáforas. A teoria do
conhecimento que desejo propor é uma teoria amplamente dar-
winiana do crescimento do conhecimento. Desde a ameba até
Einstein, o crescimento do conhecimento é sempre o mesmo:
tentamos resolver nossos problemas e obter, por um processo de
eliminação, algo que se aproxime da adequação em nossas
soluções experimentais.
E, contudo, algo novo emergiu no nível humano. A fim de
que isto possa ser visto de um relance, contrastarei a árvore
evolucionária com o que se pode chamar a árvore crescente
do conhecimento.
A árvore evolucionária cresce, de um tronco comum, em
mais e mais ramos. É como uma árvore genealógica: o tronco
comum é formado por nossos comuns ancestrais unicelulares,
os ancestrais unicelulares, os ancestrais de todos os organismos.
Os ramos representam desenvolvimentos posteriores, muitos dos
quais, para usar a terminologia de Spencer, se “diferenciaram”
em formas altamente especializadas, cada uma das quais é tão
“integrada” que pode resolver suas dificuldades particulares,
seus problemas de sobrevivência.
A árvore evolucionária de nossas ferramentas e instrumen­
tos parece muito similar. Começou presumivelmente com uma
pedra e uma vara; contudo, sob a influência de problemas cada
vez mais especializados, ramificou-se em vasto número de for­
mas altamente especializadas.
Mas se compararmos agora essas crescentes árvores evolu-
cionárias com a estrutura de nosso conhecimento crescente,
veremos então que a árvore crescente do conhecimento humano
tem uma estrutura extremamente diferente. Admitidamente, o
crescimento do conhecimento aplicado é muito semelhante ao
crescimento de ferramentas e outros instrumentos: há sempre
aplicações cada vez mais diferentes e especializadas. Mas o co­
nhecimento puro (ou “pesquisa fundamental”, como é às vezes
chamado) cresce de modo muito diverso. Cresceu quase em
direção oposta a esta crescente especialização e diferenciação.
Como notou Herbert Spencer, é amplamente dominado por uma
tendência para crescente integração no rumo de teorias unifi­
cadas. (8) Esta tendência tornou-se muito óbvia quando Newton
combinou a mecânica terrestre de Galileu com a teoria de Kepler
sobre os movimentos celestes; e persistiu desde então.
Quando falamos de árvore da evolução admitimos, sem
dúvida, que a direção do tempo aponta para cima — para o
rumo no qual a árvore cresce. Admitindo a mesma direção do

239
tempo para cima, teremos de representar a árvore do conheci­
mento como brotando de incontáveis raízes que crescem no ar
em vez de em baixo e que, no fim de contas, tendem a unir-se
num tronco comum. Em outras palavras, a estrutura evolucioná-
ria do crescimento do conhecimento puro é quase o oposto
daquela da árvore evolucionária de organismos vivos, ou de
implementos humanos, ou de conhecimento aplicado.
Este crescimento integrativo da árvore do conhecimento
puro tem agora de ser explicado. É o resultado de nosso objetivo
peculiar em nossa procura do conhecimento puro — o obje­
tivo de satisfazer nossa curiosidade explicando as coisas. E é,
além disso, o resultado da existência de uma linguagem humana
que nos capacita não só a descrever estados de coisas como
também a argumentar a respeito da verdade de nossas descri­
ções, quer dizer, a criticá-las.
Ao buscar o conhecimento puro, nosso alvo é, muito sim­
plesmente, compreender, responder a perguntas de “como” e
a perguntas de “por quê”. São, estas, perguntas que se respon­
dem dando-se uma explicação. Assim, todos os problemas de
conhecimento puro são problemas de explicação.
Tais problemas bem podem ter origem em problemas prá­
ticos. Assim, o problema prático “Que se pode fazer para com­
bater a pobreza?” levou ao problema puramente teórico “Por
que uma pessoa é pobre?” e, daí, a teoria de salários e prepos
e assim por diante; em outras palavras, a uma pura teoria
econômica, que sem dúvida cria constantemente seus próprios
problemas novos. Nesse desenvolvimento, os problemas com
que se lida — e especialmente os problemas não solucionados
— se multiplicam e se tornam diferenciados, como sempre
fazem quando nosso conhecimento cresce. Contudo, a própria
teoria explicativa mostrou aquela força integradora que Spencer
descreveu primeiro.
Para tomar da biologia um exemplo análogo, temos o
urgentíssimo problema prático de combater epidemias como a
da varíola. Contudo, da praxe da imunização passamos para a
teoria da imunologia -e daí para a teoria da formação de anticor­
pos — campo de biologia pura, famoso pela profundidade de
seus problemas e pela capacidade destes para se multiplicarem.
Os problemas de explicação são resolvidos propondo-se
teorias explicativas; e uma teoria explicativa pode ser criti­
cada mostrando-se que é muito incoerente em si mesma, ou
incompatível com os fatos, ou incompatível com algum outro
conhecimento. Mas esta crítica supõe que o que desejamos en­
contrar são teorias verdadeiras — teorias que concordem com
os fatos. Esta idéia de verdade como correspondência com os
fatos é, creio eu, o que torna possível a crítica racional. Jun­

240
tamente com o fato de que nossa curiosidade, nossa paixão de
explicar por meio de teorias unificadas, é universal e ilimitada,
nosso alvo de chegar mais perto da verdade explica o cresci­
mento integrativo da árvore do conhecimento.
Ao apontar a diferença entre a árvore evolucionária de
instrumentos e a do conhecimento puro, espero oferecer, inci­
dentemente, algo como uma refutação da opinião agora tão em
voga de que o conhecimento humano só pode ser compreendido
como um instrumento da nossa luta pela sobrevivência. O ponto
firmado pode servir como advertência contra uma interpretação
demasiado estreita do que tenho dito a respeito do método de
conjectura e refutação, e da hipótese de sobrevivência dos mais
aptos. Mas não entra em conflito, de modo algum, com o que
tenho dito. Pois não afirmei que a hipótese dos mais aptos é
sempre a única que auxilia nossa própria sobrevivência. Disse,
em vez disso, que a hipótese dos mais aptos é aquela que melhor
resolve o problema que se destinou a resolver e que resiste à
crítica melhor do que as hipóteses concorrentes. Se o nosso
problema é puramente teórico — o de encontrar uma explicação
puramente teórica — então a crítica será regulada pela idéia da
verdade, ou de chegar mais perto da verdade, e não pela idéia
de ajudar-nos a sobreviver.
Ao falar aqui de verdade, quero tomar claro que nosso alvo
é encontrar teorias verdadeiras, ou pelo menos teorias que este­
jam mais perto da verdade do que as teorias que presentemente
conhecemos. Não obstante, isto não significa que possamos
saber com certeza, de qualquer de nossas teorias explicativas,
que ela seja verdadeira. Podemos ser capazes de criticar uma
teoria explicativa e estabelecer sua falsidade. Mas uma boa
teoria explicativa é sempre uma antecipação ousada de coisas
por vir. Deve ser testável e criticáveí, mas não será capaz de
ser mostrada verdadeira. E se tomarmos a palavra “provável”
em qualquer dos muitos sentidos que satisfaçam ao cálculo de
probabilidades, então nunca poderá ser mostrada “provável”
(isto é, mais provável do que sua negação).
Este fato está longe de surpreender. Pois, embora tenha­
mos adquirido a arte da crítica racional e a idéia reguladora de
que uma explicação verdadeira é aquela que corresponde aos
fatos, nada mais mudou; o processo fundamental do crescimento
do conhecimento permanece sendo o de conjectura e refutação,
de eliminação das explicações ineptas; e como a eliminação de
um número finito de tais explicações não pode reduzir a infi­
nidade das possíveis explicações sobreviventes, Einstein pode
errar, precisamente como a ameba pode errar.

241
Não podemos, assim, atribuir verdade, ou probabilidade,
a nossas teorias. O uso de padrões tais como a verdade e a
aproximação da verdade só desempenha papel dentro de nossa
crítica. Podemos rejeitar uma teoria como inverídica; e podemos
rej'eitar uma teoria como sendo uma aproximação menos che­
gada da verdade do que uma de suas predecessoras, ou con­
correntes.
Talvez eu possa juntar o que estive dizendo em forma de
duas breves teses:
(i) Somos falíveis e propensos ao erro; mas podemos
aprender com os nossos enganos.
(ii) Não podemos justificar nossas teorias, mas podemos
criticá-las racionalmente e adotar experimentalmente aquelas
que parecem suportar melhor nossa crítica e que têm a maior
força explicativa.
Isto conclui a primeira parte de minha conferência.

2 — Observações sobre Métodos em Biologia e


Especialmente na Teoria da Evolução
Na segunda parte de minha conferência — que tive de
podar severamente para dar espaço à terceira parte — propo­
nho-me a discutir em resumo certo número de problemas con­
cernentes aos métodos da biologia.
Começarei com duas teses gerais. Minha primeira tese é
esta:
(1) Se alguém pensar no método científico como um meio
que leva ao êxito em ciência, ficará decepcionado. Não há
estrada real para o êxito.
Minha segunda tese é esta:
(2) Se alguém pensar no método científico, ou no Método
Científico, como um meio de justificar resultados científicos,
também ficará decepcionado. Um resultado científico não pode
ser justificado. Só pode ser criticado e testado. E nada mais se
pode dizer em seu favor senão que, depois de todas essas crí­
ticas e testes, ele parece melhor, mais interessante, mais forte,
mais promissor e melhor aproximação da verdade do que seus
competidores.
Apesar destas duas teses intencionalmente desencorajado­
ras, algo mais positivo pode ser dito. Há algo como um segredo
de sucesso e irei revelá-lo, É este:

242
Em qualquer etapa de vossas pesquisas, sede tão claros
quanto puderdes a respeito de vosso problema e vigiai o modo
por que ele se altera e se torna mais definido. Sede tão claros
quanto puderdes a respeito das várias teorias que sustentais e
tende consciência de que todos nós sustentamos teorias incons­
cientemente, ou as tomamos como certas, embora quase com
certeza muitas delas sejam falsas. Tentai reiteradamente for­
mular as teorias que estais sustentando e criticai-as. E tentai
construir teorias alternativas — alternativas mesmo para com
aquelas teorias que vos parecem inevitáveis; pois só deste modo
compreendereis as teorias que sustentais. Sempre que uma teoria
vos aparecer como a única possível, tende isto como um sinal
de que não compreendestes a teoria nem o problema que ela
pretendia resolver. E encarai vossas experiências sempre como
testes de uma teoria — como tentativas de encontrar faltas nela
e derrubá-la. Se uma experiência ou observação parecer sus­
tentar uma teoria, lembrai-vos de que o que ela faz realmente
é enfraquecer alguma teoria alternativa — talvez uma em que
antes não pensastes. E seja vossa ambição refutar e substituir
vossas próprias teorias; isto é melhor do que defendê-las e deixar
que outros as refutem. Mas lembrai-vos também de que uma
boa defesa de uma teoria contra a crítica é parte necessária de
qualquer discussão frutífera, pois só defendendo-a podemos des­
cobrir sua força e a força da crítica dirigida contra ela. Não há
sentido em discutir ou criticar uma teoria a menos que ten­
temos todo o tempo colocá-la em sua mais forte forma e argu­
mentar contra ela somente nessa forma.
O processo de descobrimento ou de aprendizado a respeito
do mundo, que aqui descreví, pode ser chamado evocativo em
vez de instrutivo, para usar uma expressão explicada e utilizada
nas Conferências de Reith, de Sir Peter Medawar. (l)) Apren­
demos a respeito de nosso ambiente, não atrayés de ser instruí­
dos por ele, mas através de ser desafiados por ele; nossas res­
postas (e, entre elas, nossas expectativas, ou antecipações, ou
conjecturas) são evocadas por ele e aprendemos através da
eliminação de nossas respostas mal sucedidas — isto é, apren­
demos com os nossos enganos. Um método evocativo desta es­
pécie, todavia, pode imitar ou simular instrução: seu resultado
pode ter o aspecto de termos obtido nossas teorias partindo da
observação e prosseguindo por indução. Esta idéia de um pro­
cesso evocativo de evolução simulando um processo instrutivo
é característica do darwinismo e desempenha importante papel
no que aqui se vai seguir.
A descoberta, por Darwin, da teoria da seleção natural tem
sido comparada muitas vezes à descoberta, por Newton, da
teoria da gravitação. Isto é um erro. Newton formulou um con­

243
junto de leis universais que pretendiam descrever a interação e
o comportamento conseqüente do universo físico. A teoria da
evolução de Darwin não propôs tais leis universais. Não há
leis darwinianas de evolução. De fato, foi Herbert Spencer quem
tentou formular leis universais de evolução — as leis de “dife­
renciação” e de “integração”. Como tentei indicar, elas não são
sem interesse e podem ser de todo verdadeiras. Mas são vagas;
em comparação com as leis de Newton, são quase desprovidas
de conteúdo empírico. (O próprio Darwin achou que as leis
de Spencer eram de pequeno interesse.)
Não obstante, a influência revolucionária de Darwin sobre
o nosso quadro do mundo que nos rodeia foi pelo menos tão
grande, embora não tão profunda, quanto a de Newton. Pois
a teoria da seleção natural de Darwin mostrou que é possível,
em princípio, reduzir a teleologia à causaçao, explicando, em
termos puramente físicos,. a existência de desígnio e propósito
no mundo.
O que Darwin nos mostrou foi que o mecanismo da se­
leção natural pode, em princípio, simular as ações do Criador
e seu propósito e desígnio e que pode também simular a ação
humana racional dirigida para um propósito ou um alvo.
Se isto é correto, podemos então dizer, do ponto de vista do
método biológico: Darwin mostrou que estamos todos comple­
tamente livres para usar explicação teleológica em biologia —
mesmo aqueles dentre nós que aconteça acreditarem que toda
explicação deveria ser causai. Pois o que ele mostrou foi, prin­
cipalmente, que em princípio qualquer explicação teleológica
em particular pode, algum dia, ser reduzida, a uma explicação
causai ou, mais ainda, explicada por ela.
Embora esta fosse uma grande realização, temos de acres­
centar que a expressão em princípio é uma restrição muito
importante. Nem Darwin nem qualquer darwiniano deu até
agora uma explicação causai efetiva da evolução adaptativa de
qualquer organismo isolado ou de qualquer órgão isolado. Tudo
quanto tem sido mostrado — e isto é muitíssimo — é que tais
explicações podem existir (isto é, que não são logicamente
impossíveis).
Não é preciso dizer que meu modo de encarar o darwi-
nismo terá fortes objeções da parte de muitos biólogos que acre­
ditam que explicações teleológicas em biologia são precisamente
tão más, ou quase tão más, quanto explicações teológicas. Sua
influência foi bastante forte para levar um homem como Sir
Charles Sherrington a alegar, de maneira altamente apologé-
tica, que “não tiramos o proveito devido do estudo de qualquer
reflexotipo em particular, a menos que discutamos seu pro­
pósito imediato como um ato adaptado”. (10)

244
*

Um dos pontos mais óbvios do darwinismo — mas ponto


que é importante para a terceira parte de minha conferência —
é que só um organismo que exiba em seu comportamento uma
forte tendência, ou disposição, ou propensão para lutar por
sua sobrevivência será, de fato, susceptível de sobreviver. Assim,
tal disposição tenderá a tornar-se parte da estrutura genética de
todos os organismos; mostrar-se-á em seu comportamento e em
muita parte, se não no total, de sua organização. Isto significa
certamente não apenas simular, mas explicar, ainda que só em
princípio, a teleologia pela seleção natural.
Similarmente, pode-se dizer que o lamarckismo, e espe­
cialmente a doutrina de que os órgãos evolvem sob a influên­
cia de seu uso e degeneram sob a influência de seu desuso, tem
sido em certo sentido explicada em termos de seleção natural
por J. M. Baldwin (um filósofo de Princeton), por Waddington
e Simpson e por Erwin Schrõdinger. (n ) Seu método de expli­
cação é mais desenvolvido e, parece-me, consideravelmente am­
pliado na hipótese que irei apresentar na terceira parte de minha
conferência e, por esta razão, não o analisarei agora. Mas
desejo deixar claro que aquilo que Baldwin, Waddington, Simp­
son e Schrõdinger mostraram é como a evolução lamarckiana
por meio da instrução pode ser simulada pela evolução dar-
winiana por meio da seleção natural.
Este é um tipo de explicação que também existe em física.
Um exemplo simples seria a hipótese, primeiramente proposta
por Kant e depois por Laplace, que tenta explicar o fato de que
todos os planetas de nosso sistema planetário se movem em
planos mais ou menos similares, que não estão demasiado sepa­
rados, na mesma direção à volta do sol. Esta “Hipótese Nebu-
lar” (como Spencer costumava chamá-la) admite, como si­
tuação inicial típica, uma nebulosa rotativa, da qual os pla­
netas se formam por certo processo de condensação (ou, de
acordo com Spencer, de diferenciação e integração). Deste
modo, a teoria explica, ou simula, o que pode parecer primei­
ramente como sendo um arranjo conscientemente planejado.
Poder-se-ia mencionar aqui que a hipótese nebular de Kant e
de Laplace poderia ser aumentada, ou até possivelmente subs­
tituída, por uma hipótese do tipo de “sobrevivência”, De acordo
com esta hipótese, um sistema de planetas que se move em
planos vastamente divergentes, ou que se move parcialmente
em direções diferentes, seria menos estável, por certas ordens
de magnitude, do que um sistema como o nosso; de modo que
só há pequena probabilidade de encontrar um sistema do tipo
menos estável. Outro exemplo tirado da física seria o seguinte:
a teoria da gravidade de Newton opera com forças atrativas que
atuam à distância. G. L. Dage publicou em 1782 uma teoria que
245
explica, simulando-a, esta ação newtoniana à distância. Nesta
teoria não há forças atrativas, mas simplesmente corpos empur­
rando outros corpos. (12) A teoria gravitacional de Einstein
pode ser considerada a mostrar como um sistema explicativo
em que não há impulsos nem forças atrativas pode simular um
sistema newtoniano. Ora, é importante que a explicação simu­
lada — isto é, a teoria de Newton — possa ser descrita como
uma aproximação da teoria de Einstein é da verdade. A teoria
da seleção natural marcha de modo semelhante. Em qualquer
caso em particular, parte de uma situação-modelo simplificada
— uma situação que consiste de certas espécies em certas con­
dições ambientais — e tenta mostrar por que certas mutações,
nessa situação, teriam valor de sobrevivência. Assim, mesmo que
o lamarckismo seja falso, como parece ser, seria respeitado pelos
darwinistas como uma primeira aproximação do darwinismo.(13)
A dificuldade real do darwinismo é o bem conhecido pro­
blema de explicar evoluções que são aparentemente dirigidas a
um alvo, tal como a de nossos olhos, por um número incrivel­
mente grande de passos; pois, de acordo com o darwinismo,
cada um desses passos é o resultado de uma mutação puramente
acidental. É difícil explicar que todas essas mutações acidentais
independentes devessem ter tido valor de sobrevivência. Tal é
especialmente o caso do comportamento herdado lorenzíano- O
“efeito de Baldwin” — isto é, a teoria de um desenvolvimento
piiramente darwiniano que simula o lamarckismo — parece-me
um passo importante no rumo de uma explicação de tais de­
senvolvimentos.
Acredito que a primeira pessoa a ver claramente a difi­
culdade foi Samuel Butler, que a resumiu na pergunta: “Sorte
ou Astúcia?”, significando aqui “Acidente ou Desígnio?” O sis­
tema de Evolução Criativa de Bergson pode ser encarado simi­
larmente como um comentário a esta dificuldade: seu élan vital
é apenas um nome que ele deu a qualquer coisa que possa causar
ou controlar essas mudanças aparentemente dirigidas a um alvo.
Qualquer explicação animista ou vitalista desse tipo é, sem dú­
vida, ad hoc e inteiramente insatisfatória. Mas pode ser possí­
vel reduzí-la a algo melhor — como Darwin fez quando mos­
trou que explicações teleológicas podem ser simuladas — e
com isto mostrar que era uma aproximação da verdade — ou
pelo menos de uma teoria mais sustentável. (Tento produzir tal
teoria na terceira parte de minha conferência.)
Uma palavra pode ser aqui aduzida sobre a forma lógica de
uma teoria de seleção natural. Este é um assunto muito inte­
ressante e eu gostaria de expô-lo agora extensamente. Contudo,
só posso mencionar brevemente um ponto ou dois.

246
*

A teoria da seleção natural é histórica: constroi uma si­


tuação e mostra que, dada essa situação, verdadeiramente é pro­
vável que aconteçam aquelas coisas cuja existência desejamos
explicar.
Para expô-lo mais precisamente, a teoria de Darwin é uma
explicação histórica generalizada. Isto significa que a situação
se supõe ser típica em vez de única. Assim, torna-se possível
construir às vezes um modelo simplificado da situação.
Talvez eu possa dizer aqui, muito rapidamente, que aquilo
que considero como a idéia central de Darwin — sua tenta­
tiva de explicar mudanças genéticas que levam a uma adaptação
melhor no sentido de oportunidades melhores para o animal ou
planta individual sobreviver — sofreu recentemente um eclipse
Isto se deve muito amplamente à moda de buscar exatidão ma­
temática e à tentativa de definir estatisticamente um valor de
sobrevivência, em termos de sobrevivência efetiva (de um gene
ou de outra unidade genética, numa população).
Mas a sobrevivência, ou o sucesso no sentido de um acrés­
cimo em números, pode ser devida a qualquer de duas circuns­
tâncias distinguíveis. Uma espécie pode ter êxito ou prosperar
porque conseguiu, digamos, melhorar sua velocidade, ou seus
dentes, ou sua perícia, ou sua inteligência; ou pode ter êxito e
prosperar simplesmente porque conseguiu aumentar sua fecun-
didade. É claro que um acréscimo suficiente na fecundidade,
dependendo fundamentalmente de fatores genéticos, ou de um
encurtamento do período de imaturidade, pode ser um valor
de sobrevivência igual, ou mesmo superior, digamos, ao de um
acréscimo em perícia ou inteligência.
Deste ponto de vista pode ser um pouco difícil entender
por que a seleção natural deveria ter produzido qualquer coisa
além de um aumento geral nas taxas de reprodução e da eli­
minação de todas as raças exceto as mais férteis. ( 14) Pode haver
muitos fatores diferentes envolvidos no processo que determina
as proporções de reprodução e de mortalidade, por exemplo as
condições ecológicas da espécie, seu intercâmbio com outras
espécies e o equilíbrio das duas (ou mais) populações. Mas,
seja como for, seria possível, penso, superar as dificuldades
consideráveis que se erguem no caminho de medir o sucesso na
adaptação dos organismos individuais de uma espécie talvez por
subtrair seu valor de fecundidade (sua taxa de nascimentos)
de seu acréscimo total de população (sua taxa de sobrevivên­
cia). Em outras palavras, proponho dizer que a espécie A é mais
bem adaptada do que a espécie B (em sentido darwiniano e
lamarckiano) se, por exemplo, suas populações aumentarem
igualmente, ainda que A tenha uma taxa de nascimentos mais

247
baixa do que B. Num caso como este, poderiamos dizer que os
membros individuais da espécie A são, em média, mais aptos
para sobreviver do que os da espécie B, ou que se adaptaram
melhor ao seu ambiente que os de B.
Sem alguma distinção como esta (e à distinção poderia ser
dada uma trabalhada base estatística) estamos sujeitos a perder
de vista os problemas originais de Lamarck e Darwin, e espe­
cialmente a força explicativa da teoria de Darwin — sua capa­
cidade de explicar a adaptação e desenvolvimento de tipo propo­
sital por meio da seleção natural, que simula uma evolução de
caráter lamarckiano.
Para concluir esta segunda parte de minha conferência,
posso lembrar que, como já foi indicado, não creio em indução.
Hume mostrou, penso que conclusivamente, que a indução é
inválida; mas ele ainda acreditava que, embora inválida e não
justificável racionalmente, ela é universalmente praticada por
animais e homens. Não penso que isto seja verdade. A verdade,
penso, é que procedemos por um método de selecionar ante­
cipações, ou expectativas, ou teorias — pelo método de expe­
riência e eliminação de erro, que tantas vezes tem sido tomado
como indução porque simula a indução. Creio que o venerável
mito da indução tem levado a muito dogmatismo no pensamento
biológico. Também tem levado à denúncia dos que são muitas
vezes chamados “cientistas de poltrona” — isto é, teóricos. Mas
nada há de errado nas poltronas. Elas aguentaram fielmente
Kepler, Newton, Maxwell e Einstein; Bohr, Pauli, De Broglie,
Heisenberg e Dirac; e Schrõdinger, em suas especulações tanto
físicas quanto biológicas.
Falo o que sinto, pois nem mesmo sou um biólogo de pol­
trona, mas algo pior — um mero filósofo de poltrona.
Mas afinal de contas também o foi Herbert Spencer, cujo
nome, como admito francamente, aqui estou desavergonhada­
mente explorando como uma capa de meus próprios delitos no
campo da especulação biológica.

3 — Uma Conjectura: “Dualismo Genético"


Chego agora à parte terceira e principal de minha con­
ferência — à apresentação de uma conjectura ou hipótese que,
se suportar a crítica, talvez possa fortalecer a teoria da seleção
natural, ainda que se mantenha dentro dos limites lógicos de
um arcabouço ortodoxo neodarwiniano (ou de “Nova Síntese”,
se preferirdes).
Minha conjectura é, sem dúvida, uma hipótese histórica
generalizada: consiste na construção de uma situação típica em

248
ê

que a seleção natural possa produzir os resultados que espe­


ramos explicar com sua ajuda.
O problema a ser resolvido por ela é o velho problema da
ortogênese versus a mutação acidental e independente — o pro­
blema de sorte ou astúcia de Samuel Butler. Surge ele da dificul­
dade de compreender como um órgão complicado, tal como o
olho, pode vir a resultar da cooperação puramente acidental
de mutações independentes.
Em suma, a minha solução do problema consiste na hipó­
tese de que em muitos desses organismos, se não em todos,
cuja evolução dá origem a nosso problema — elas podem abran­
ger talvez alguns organismos muito inferiores — podemos dis­
tinguir mais ou menos nitidamente pelo menos duas partes
distintas: toscamente falando, uma parte controladora do com­
portamento, como o sistema nervoso central dos animais su­
periores, e uma parte executiva, como os órgãos dos sentidos
e os membros, juntamente com as estruturas que os sustentam.
Esta, em suma, é a situação que a minha conjectura
admite. Será combinada com a admissão neodarwiniana de que
as alterações mutacionais em uma dessas partes serão, via de
regra, embora talvez nem sempre, independentes das alterações
mutacionais em outra parte.
Esta hipótese situacional postula um dualismo que se asse­
melha fortemente a um dualismo de mente-corpo. Contudo, é
compatível com as mais radicais formas de materialismo mecani-
cista assim como as mais radicais formas de animismo. Pois
tudo quanto é requerido pela minha hipótese dualista — que eu
talvez possa descrever como “dualismo genético” — pode ser
formulado da maneira seguinte:
Nos casos que desejamos explicar, certas disposições ou
propensões herdadas, como as de autopreservação, de procurar
alimento, evitar perigos, adquirir perícias por imitação, e assim
por diante, podem ser encaradas como sujeitas a mutações que
não induzem, via de regra, qualquer alteração significativa em
qualquer dos órgãos do corpo, inclusive os órgãos dos sentidos,
excetuados aqueles órgãos (se algum houver) que são os trans­
portadores genéticos das referidas disposições ou propensões.
Antes de explicar as conseqüências desta hipótese, permiti-
me indicar desde logo que a hipótese do dualismo genético pode
ser falsa. Seria falsa se os genes (ou o que quer que possa
tomar o lugar dessas unidades controladoras da hereditarie­
dade) que controlam, por exemplo, o desenvolvimento embriô­
nico do olho humano, fossem sempre idênticos àqueles genes
que controlam nossa curiosidade visual inata — nossa dispo­
sição ou propensão para fazer o máximo uso possível de nossos
olhos em todos os tipos de situações em que houver luz sufi­
249
ciente para vermos alguma coisa. Ou, para dizê-lo um tanto
diferentemente: se nossa tendência inata para usar nossos olhos,
ou nossos ouvidos, mãos, pernas, etc., for sempre transmitida por
hereditariedade precisamente pelo mesmo modo por que temos
olhos, ouvidos, mãos, pernas, etc., então minha hipótese dualista
seria falsa. Também seria falsa se fosse um erro completo dis­
tinguir nitidamente entre possuir um órgão e usar um órgão —
se, por exemplo, a posse e o uso fossem meramente duas abs­
trações diferentes daquilo que, biológica ou geneticamente, é
uma só e a mesma realidade. À admissão de que é assim refe-
rir-me-ei como monismo genético ou hipótese monista.
Creio ser a aceitação tácita de algo como esse monismo
genético que é responsável pelo fato de minha hipótese dualista
não ter sido (pelo menos, não que eu saiba) plenamente desen­
volvida e discutida até agora. A aceitação de uma hipótese
monista foi favorecida, talvez, pelo fato de que o principal pro­
blema da teoria da evolução era explicar a origem das espécies
— isto é, a origem da diferenciação nos órgãos de animais e
plantas — e não a origem de tipos específicos de comporta­
mento ou das propensões para comportar-se.
Seja como for, discutirei agora o funcionamento de minha
hipótese dualista com o auxílio de um modelo mecânico. Mais
precisamente, substituirei por um mecanismo-servo — uma má­
quina — o organismo em desenvolvimento. Mas antes de fazê-lo
desejo deixar inteiramente claro que minha conjectura não é
idêntica a este modelo e que os que aceitarem minha conjectura
não estão de modo algum comprometidos com a opinião de que
os organismos são máquinas. Mais ainda, meu modelo não
contém análogos mecânicos para todos os elementos relevantes
da teoria. Por exemplo, não contém qualquer mecanismo para
produzir mutações ou outras alterações genéticas, pela razão de
que isto não é o meu problema.
Tomo como meu modelo um aeroplano — por exemplo,
um avião de combate dirigido por um piloto automático. O
aeroplano, admitimos, é construído para certos propósitos defi­
nidos e o piloto automático é provido de certo número de rea­
ções embutidas que equivalem a “instruções” para atacar um
inimigo mais fraco, para auxiliar um amigo em ataque ou defesa
para fugir de um inimigo mais forte, e assim por diante. As
partes mecânicas do piloto automático das quais essas “instru­
ções” dependem constituem a base física do que chamarei a
estrutura de alvo de meu modelo.
Além disto, está embutida no piloto automático a base fí­
sica do que chamarei sua estrutura de perícia. Consiste esta de
coisas como mecanismos de estabilização; mecanismos para in-

250
»

terpretar detectores, a fim de identificar e distinguir entre ini­


migos e amigos; controles de direção; controles de alvo, etc.
Não é suposto que a estrutura de alvo e a estrutura de perícia
sejam claramente distintas. Juntas, elas constituem o que pro­
ponho chamar a estrutura central de propensão do piloto auto­
mático, ou, se vos aprouver, sua “mente”. O sistema físico —
os comutadores, fios, válvulas, pilhas, etc., incluindo os que in­
corporam as “instruções” para o piloto automático — podem
ser descritos como a base física de sua estrutura central de pro­
pensão, ou de sua “mente”. No que se segue, chamarei a este
sistema físico simplesmente “piloto automático”.
É sabido ser também possível construir dentro de tal meca-
nismo-servo certas propensões para “aprender” — por exemplo,
para melhorar algumas de suas perícias — por experiência e
erro. Mas, para começar, neglicenciaremos este ponto. Em vez
disso, admitimos inicialmente que a estrutura de alvo e a estru­
tura de perícia são rígidas e exatamente ajustadas aos órgãos
executivos do aeroplano, tais como seu motor.
Admitamos agora que nosso avião de combate seja repro-
duzível — não importa se auto-reproduzido ou reproduzido por
uma fábrica que copie suas várias partes físicas — embora su­
jeito a mutações acidentais, e agrupemos as mutações possíveis
em quatro classes:
(1) Mutações que afetam o piloto automático.
(2) Mutações que afetam um órgão — digamos, o volante,
ou o motor — que é controlado pelo piloto automático.
(3) Mutações que afetam um órgão auto-regulador que
não está sob o controle do piloto automático — digamos, um
termostato independente que regula a temperatura dos motores.
(4) Mutações que afetam dois ou mais órgãos ao mesmo
tempo.

Ora, parece claro que, num organismo complicado como


este, quase todas as mutações acidentais serão desvantajosas
e muitas serão mesmo letais. Assim, serão eliminadas, pode­
mos admitir, por seleção natural. Isto valerá com força especial
para mutações acidentais que afetem mais de um órgão — di­
gamos, o piloto automático e outro órgão. Tais mutações tendem
a ser desfavoráveis; a probabilidade de que possam ser ambas
favoráveis, ou mesmo complementares, deve ser quase zero.
Esta é uma das maiores diferenças entre minha hipótese
dualista e a hipótese monista. De acordo com a hipótese mo­
nista, uma mutação favorável de um órgão, digamos, um
aumento na potência de um dos motores, será sempre usada
251
favoravelmente, e é tudo quanto há. Qualquer mutação favo­
rável é improvável, mas sua probabilidade não precisa ser apa-
gadamente pequena. De acordo, porém, com a hipótese dua-
lista, uma mudança favorável de um órgão seria, em muitos
casos, favorável apenas em potencial. Para fazer qualquer dife­
rença, o aprimoramento teria de ser usado; e este novo uso
poderia depender de uma mudança acidental complementar na
estrutura central de propensão. Mas a probabilidade de duas
dessas mudanças acidentais que fossem ao mesmo tempo inde­
pendentes e complementares deve realmente ser muito apagada.
Pode, portanto, parecer à primeira vista que um modelo
dualista só poderá aumentar as dificuldades de uma teoria pura­
mente selecionista, e esta pode ser outra razão para que muitos
darwinistas pareçam ter adotado tacitamente uma hipótese
monista.
Agora, tomemos um exemplo. Digamos que uma mutação
dá a todos os motores maior potência, de modo que o avião
pode voar mais rapidamente. Isto deve ser considerado favo­
rável, tanto para atacar o inimigo como para fugir; e po­
demos admitir que sua estrutura de alvo induzirá o piloto auto­
mático a fazer pleno uso da potência e da velocidade aumenta­
das. Mas sua estrutura de perícia estará ajustada à potência de
motor e ao teto de velocidade antigos; e como admitimos que
o- piloto não pode “aprender” no sentido de aprimorar sua
perícia, a velocidade será demasiado rápida para ele e, de
acordo com a minha hipótese dualista, o avião despedaçar-
-se-á. O monismo genético, por outro lado, suporia que, com a
potência do motor aumentada, o aumento de perícia viria por
si mesmo, porque é apenas outro aspecto da mesma coisa —
de acordo com a suposição de que não devemos, para finali­
dades genéticas, distinguir entre um órgão e seu uso.
Lembrar-vos-eis de nossas quatro possibilidades de altera­
ção mutacional:
(1) Mudança da estrutura do piloto automático.
(2) Mudança de um órgão diretamente controlado pelo
piloto.
(3) Mudança de um sistema autocontrolador.
(4) Mudança de mais de um órgão a um só tempo.

O caso (4) — isto é, mudança em mais de um órgão —


pode, como vimos, ser desprezado por ambas as hipóteses dua­
lista e monista, porque mudanças favoráveis desse tipo são
demasiado improváveis.

252
0

O caso (3) — isto é, mudança de um órgão autocontro-


lador — pode ser tratado aqui observando-se que um órgão
autocontrolador ou é um pequeno subsistema dualista, ao qual
nossa hipótese dualista tem de ser aplicada outra vez, ou é um
órgão para o qual vale a hipótese monista e que se desenvolve
de acordo com a teoria costumeira.
O caso (2) — isto é, mudança de um órgão diretamente
controlado pelo piloto — será provavelmente desfavorável, como
mostra nosso exemplo do aumento da potência do motor e da
velocidade, ainda que a mutação, como tal, fosse favorável do
ponto de vista de uma hipótese monista.
Ficamos, assim, como, o caso (1), o de alterações muta-
cionais na estrutura central de propensão herdada. Minha tese
é que mudanças favoráveis nessa estrutura não criam dificul­
dade especial. Por exemplo, uma mutação favorável na estru­
tura de alvo pode induzir o aeroplano a fugir do inimigo em
maior número de casos do que anteriormente; ou talvez a pro­
pensão oposta possa tornar-se favorável (isto é, a propensão
para atacar o inimigo em maior número de casos). Não sabemos
qual será mais favorável, mas, de acordo com a nossa supo­
sição, a seleção natural descobrirá.
O mesmo se dá com as perícias. Sabemos que um piloto
humano pode aprimorar sua perícia sem mudar a estrutura de
seu avião. Isto mostra que mutações favoráveis na estrutura de
perícia do piloto aumotático são possíveis sem mudanças com­
plementares no restante da estrutura. Sem dúvida, mutações fa­
voráveis são sempre improváveis. Mas sabemos que um piloto
humano pode adotar novos alvos e desenvolver novas perícias
sem mudar seu aeroplano e sem despedaçá-lo; e alguns desses
novos alvos e novas perícias podem ser favoráveis do ponto de
vista, digamos, da autopreservação; portanto, novos alvos e
perícias do piloto automático podem sobreviver.
Somos levados assim ao primeiro resultado seguinte: se
partirmos de um organismo dualista em que uma estrutura
central de propensão controladora e uma estrutura executiva
controlada estejam em equilíbrio exato, então as mutações da
estrutura central de propensão parecerão ser um pouco menos
provavelmente letais do que as mutações dos órgãos executivos
controlados (mesmo as potencialmente favoráveis).
Nosso segundo e principal resultado é este: Uma vez que
um novo alvo ou tendência ou disposição, ou uma nova perícia,
ou um novo modo de comportamento, haja envolvido na estru­
tura central de propensão, este fato influenciará os efeitos da se­
leção natural de modo tal que mutações previamente desfavorá­
veis (embora potencialmente favoráveis) tomar-se-ão efetiva­
mente favoráveis se sustentarem a tendência recém-estabelecida.
253
Mas isto significa que a evolução dos órgãos executivos tornar-
-se-á dirigida por essa tendência ou alvo e, assim, “dirigida a
um alvo”.
Podemos ilustrar isto considerando dois tipos de mutações
favoráveis da estrutura central de propensão: aquelas em que o
que se poderia chamar alvos ou perícias totais são aprimorados
e aquelas em que os alvos ou perícias são especializados.
Exemplos do primeiro tipo são mutações que introduzem
alvos que só indiretamente são favoráveis, como uma mutação
que introduz um alvo, ou uma tendência, ou um desejo, de
melhorar alguma perícia do organismo. Ora, ama vez estabele­
cida uma mutação como esta, outra mutação, que torne mais
flexível a estrutura de perícia, pode tornar-se mais favorável; e
por meio de tais mutações da estrutura de perícia, o organismo
poderá adquirir a propensão para “aprender”, no sentido de
melhorar sua perícia por experiência e erro.
Além disso, uma vez que tenhamos obtido uma estrutura
central de propensão mais flexível, mutações dos órgãos execu­
tivos que de outro modo seriam letais, como a maior veloci­
dade, podem tornar-se extremamente favoráveis, mesmo que
fossem previamente desfavoráveis.
A questão, aqui, é que as mutações da estrutura central
serão condutoras. Isto é, só serão preservadas aquelas mutações
dos órgãos executivos que se enquadrarem nas tendências gerais
previamente estabelecidas pelas mudanças da estrutura central.
Coisa similar pode ser dita a respeito do segundo tipo de
mudança; isto é, acerca das mudanças especializadoras da estru­
tura central. Mudanças no ambiente podem favorecer o estrei­
tamento da estrutura de alvo. Por exemplo, se apenas um tipo
de alimento for facilmente encontrável — talvez um tipo ori-
ginariamente não muito favorecido — a mudança de paladar
(isto é, uma mudança na estrutura de alvo) pode ser altamente
favorável. Esta mudança de alvo pode levar a uma especiali­
zação do organismo inteiro, tal como a de suas perícias em obter
alimento, e da forma de seus órgãos. Para ter um exemplo, esta
teoria sugeriría que o bico e a língua especializados do picapau
se desenvolveram, por seleção, depois que ele começou a mudar
seus gostos e seus hábitos alimentares, e não do modo contrário.
Na verdade, podemos dizer que se o picapau tivesse desenvol­
vido seu bico e sua língua antes de mudar seu gosto e perícia,
a mudança poderia ter sido letal: ele não teria sabido que fazer
com os novos órgãos.
Ou tomemos um exemplo lamarckiano clássico — a girafa:
suas propensões ou hábitos alimentares devem ter mudado antes
de seu pescoço, de acordo com a minha teoria; de outro modo,

254
um pescoço mais comprido não teria sido de qualquer valor de
sobrevivência.
Devo agora parar de expor minha teoria e dizer umas
poucas palavras a respeito de sua capacidade explicativa.
Para expô-lo brevemente, minha hipótese oualista nos per­
mite, em princípio, aceitar não só o lamarckismo simulado mas
também um vitalismo e um animismo simulados; e assim “ex­
plica” estas teorias como primeiras aproximações. Permite-nos
com isso, em princípio, explicar a evolução de órgãos comple­
xos, tais como o olho, por muitos passos que levam numa di­
reção definida. A direção pode realmente, como afirmaram os
vitalistas, ser determinada por uma tendência de tipo mental —
pela estrutura de alvo ou pela estrutura de perícia do orga­
nismo, que pode desenvolver uma tendência, ou um desejo,
de usar o olho, e uma perícia para interpretar os estímulos dele
recebidos.
Ao mesmo tempo, não há razão para pensar que a hipótese
monista será sempre falsa. Pode ser que, no curso da evolução,
tipos diferentes de organismos se desenvolvam sendo em maior
ou menor extensão monistas, ou dualistas, em seu mecanismo
genético. Deste modo podemos talvez explicar pelo menos alguns
dos distúrbios de mudanças evolucionárias aparentemente diri­
gidas a um alvo — enquanto outras mudanças que são menos
dirigidas a um alvo podem ser explicadas admitindo-se que nos
defrontamos com o desenvolvimento de estruturas geneticamente
monistas.
Esta é talvez a hora de confessar que fui levado a minha
conjectura de dualismo genético por ter ficado intrigado com
um caso que constitui uma refutação prima fade de minha con­
jectura — e por tentar tornar clara a mim mesmo a razão de
ser esse caso tão enigmático. Foi o caso da mutação de quatro
asas (tetraptera) da drosófila, a famosa mosca de duas asas das
frutas. O que mais me intrigava era isto: por que a mutação
para quatro asas não a destruía? Como poderia ter a perícia de
usar suas quatro asas? Talvez este caso efetivamente refute
minha conjectura. Mas parece mais provável.que não o faça.
(Talvez a estrutura de asas do inseto seja autoreguladora de
modo amplo, ou seja uma parte monista de um animal essencial­
mente dualista; ou talvez a mutação seja um atavismo — como
de fato se supõe que seja — e a estrutura de perícia, embora não
a estrutura de alvo, pertencente ao uso das quatro asas haja
sobrevivido atavisticamente à mudança mais antiga e prova­
velmente gradativa de quatro asas para duas.) Fora de preo­
cupar-me com este caso, fui levado principalmente por consi­
derações da evolução do homem, da linguagem humana e da
árvore do conhecimento humano.

255
Concluamos, com apenas um ponto forte a favor do dua­
lismo genético: estudiosos do comportamento animal têm mos­
trado a existência de comportamento complexo inato, compor­
tamento que envolve o uso bem perito, altamente especializado
e altamente coordenado de muitos órgãos. Parece-me difícil,
se não impossível, crer que este comportamento seja mera­
mente outro aspecto da estrutura anatômica dos muitos órgãos
que tomam parte nele.
Apesar deste e de outros argumentos contra a hipótese
monista, não penso que minha hipótese dualista possa ser tes­
tada muito facilmente. Contudo, não penso que não seja tes-
tável. Antes, contudo, que possíveis testes possam ser seriamente
discutidos, a hipótese terá de ser examinada criticamente do
ponto de vista de ser coerente; de ser, se verdadeira, soluciona-
dora dos problemas para cuja solução surgiu; e de poder ser
melhorada, por simplificação e aguçamento. Por enquanto, só a
ofereço como uma possível linha de pensamento .

(Baseia-se este ensaio na Conferência em


Honra de Herbert Spencer, proferida em Oxford, em
30 de outubro de 1961. Foi acrescentado em 1971
o Adendo, que se encontra mais adiante.)
ADENDO ao Capítulo 7

O ESPERANÇOSO MONSTRO
COMPORTAMENTAL

A Conferência atrás foi proferida há dez anos, em 1961.


Algumas de suas idéias — a teoria de ponta de lança das muta­
ções comportamentais — foram depois desenvolvidas em “De
Nuvens e Relógios”. Mas, embora intensamente interessado pela
teoria evolucionária, não sou perito em qualquer de seus campos;
e um perito desencorajou-me de publicar a Conferência em
honra de Spencer.
Contudo, através de todos esses anos, pareceu-me que a
distinção das bases genéticas para (1) alvos ou preferências, (2)
perícias, e (3) instrumentos executivos anatômicos poderia ser
uma contribuição importante a uma teoria da evolução do tipo
darwiniano. O que chamei “dualismo genético” (e deveria ter
chamado “pluralismo genético”) pareceu-me oferecer uma ex­
plicação de tendências genéticas, ou “ortogênese”.
Pareceu-me um aperfeiçoamento sobre a teoria que Richard
B. Goldschmidt propôs na forma de seus famosos “monstros
esperançosos” ; e julgo útil comparar as duas teorias.
Goldschmidt (1878-1958) publicou em 1940 um livro,
The Material Basis of Evolution,(1) em que indicou que as
muitas variações pequenas de Darwin levavam a muitas dificul­
dades grandes. Primeiro, há a tendência para voltar a uma po­
pulação média, mesmo que haja ocorrido variações. Em segundo
lugar, há a grande dificuldade, verificada em todas as experiên­
cias de seleção, de efetuar mudanças além de certos limites defi­
nidos: a tentativa de ir além conduz quase invariavelmente à
esterilidade e à extinção.
Ambos os argumentos opõem dificuldades à teoria darwi-
niana de uma evolução a partir de pouquíssimas formas vivas
originais — talvez mesmo apenas uma. Contudo, é precisamente
esta teoria, que desejamos explicar, um fenômeno para cuja
realidade há grande solna de evidência empírica.

257
A explicação ortodoxa é que imensos períodos de tempo
permitem que se acumulem pequenas variações e que a sepa­
ração geográfica, especialmente, muitas vezes evita o restabe­
lecimento de uma população média. Goldschmidt achou insufi­
cientes estas idéias; e, sem romper com a idéia da seleção na­
tural, rompeu com a idéia de que cada mudança evolucionária
tem de ser explicável em termos de um número muito grande
de variações muito pequenas. Admitiu que de tempos em tempos
ocorrem grandes mutações, que são costumeiramente letais e
eliminadas, mas algumas das quais sobrevivem; assim explicou
tanto as diferenças genuínas como o caráter óbvio do paren­
tesco entre as várias formas de vida. Descreveu as grandes mu­
tações como “monstros esperançosos”. A teoria tem seu lado
atrativo: monstros correm de tempos em tempos. Mas há
grandes dificuldades. Costumeiramente, tais mutações seriam
letais (um organismo é demasiado finamente equilibrado para
poder suportar súbitas e grandes mudanças acidentais), e,
quando não são letais, a probabilidade de uma reversão à forma
original é muito grande.
Sempre estive muito interessado pelas teorias de Golds-
chmidt(2) e para seus “monstros esperançosos” chamei a aten­
ção de I. Lakatos, que a eles se referiu em seu ensaio “Proofs
and Refutations”.(8)
Mas foi só há poucos dias, quando lia um novo livro crí­
tico, Darwin Retried, por Norman Macbeth,(4) que me ocorreu
que poderia ter tempo de reviver os “monstros esperançosos” de
Goldschmidt sob nova forma.
O próprio Goldschmidt pensou principalmente, se não
talvez exclusivamente, em monstros anatômicos — organismos
com diferenças de seus pais, de um tipo estrutural, não despre­
zíveis ou mesmo drásticas. Sugiro que comecemos com monstros
comportamentais ou etológicos: organismos cujas diferenças de
seus pais consistem primariamente em seu comportamento
desviado .
Sem dúvida, esse comportamento tem sua base genética.
Mas a base genética parece permitir certa amplitude à resposta
comportamental, dependendo talvez de nada mais do que o
momentâneo estado fisiológico em que o organismo reage a seu
estímulo ambiental, ou talvez de uma combinação insólita de
estírriulos, ou talvez de uma variante genética na disposição para
comportar-se. Em todos esses casos, pode aparecer e aparece um
comportamesto novo e monstruoso, sem qualquer novidade ana­
tômica observável. A novidade pode ser sua base material em
alguma mudança restrita a uma parte especial do sistema ner­
voso, mas esta mudança pode ser o resultado de um ferimento

258
t

ou algum outro acidente e não precisa ser determinada geneti­


camente. Por outro lado, bem pode ser devida a uma genuina
mutação genética naquela parte do sistema genético especial­
mente responsável pelo comportamento; mutação que não é
necessariamente ligada a uma forte mudança na anatomia. Por
fim, a novidade do comportamento pode ser devida a uma
novidade real nas circunstâncias ambientais — na ecologia do
organismo.
Em cada um desses casos, o monstro comportamental pode
desviar-se radicalmente de seus pais em seu comportamento.
Mas não há razão imediata para que o desvio seja letal. Admi-
tidamente, o comportamento monstruoso pode transtornar o
equilíbrio do organismo, mas não é necessário que o faça; ou
pode transtorná-lo de um modo que não seja necessariamente
letal para o organismo (como quândo uma mosca, movendo-se
sobre meu papel de escrever, fica com as patas empapadas de
tinta e tem certa dificuldade em limpá-las).
A novidade de comportamento e a monstruosidade (no
sentido de Goldschmidt) de comportamento têm, assim, muito
menos probabilidade de ser letais do que a monstruosidade ana­
tômica. Por outro lado, através da seleção natural, o compor­
tamento monstruoso pode ter o maior impacto sobre a elimi­
nação das variações anatômicas.
Tomando o famoso exemplo do olho, o novo comporta­
mento que faz uso de pontos sensíveis à luz (já existentes) pode
aumentar grandemente seu valor seletivo, que talvez previamente
fosse desprezível. Deste modo, o interesse em ver pode ser fi­
xado geneticamente com êxito e pode tornar-se o elemento van-
guardeiro da evolução ortogenética do olho; mesmo os menores
aprimoramentos em sua anatomia podem ser seletivamente va­
liosos se a estrutura de alvo e a estrutura de perícia do orga­
nismo fizerem uso suficiente deles.
Apresento assim uma variação do darwinismo em que mons­
tros comportamentais desempenham um papel decisivo. A novi­
dade comportamental leva, se bem sucedida, à seleção daqueles
nichos ecológicos que, por sua vez, operam seletivamente —
isto é, operam para fazer uso dessas novidades comportamen­
tais e assim exercer uma pressão de seleção numa direção par­
cialmente predeterminada: na direção determinada por algum
alvo indeterminado geneticamente possível, por exemplo, o gosto
por um novo tipo de alimento ou o prazer de utilizar regiões da
pele sensíveis à luz. Assim podemos chegar à ortogênese, que,
afinal de contas, era o principal problema de Goldschmidt.
Mesmo propriedades de organismos tais como a jocosidade
juvenil podem ter-se tornado úteis num mundo em mutação

259
no qual a monstruosidade comportamental — isto é, a variabi­
lidade mais a possível ortogênese — pode ajudar a sobrevivência.
Deste modo, o papel (muitas vezes) vanguardeiro desem­
penhado pelas mudanças (mudanças genéticas, ou mesmo ge­
neticamente indeterminadas) da estrutura de alvo e, na se­
gunda linha, por mudanças na estrutura de perícia, sobre mu­
danças geneticamente baseadas de estrutura anatômica, poderia
ser explicado. No principal, a estrutura anatômica só pode mudar
lentamente. Mas suas mudanças, por esta própria razão, perma­
necerão insignificantes se não forem guiadas pelas mudanças na
estrutura de alvo e na estrutura de perícia. Assim, a evolução
de um aparelho genético, estabelecendo uma primazia da estru­
tura de alvo e da estrutura de perícia sobre a estrutura ana­
tômica, poderia, em princípio, ser explicada em linhas dar-
winianas.
Ver-se-á que esta teoria darwiniana de esperançosos mons­
tros comportamentais “simula” não só o lamarckismo, como
também o vitalismo bergsoniano.

(Escrito em 1971.)

260
*

8 — UMA VISÃO REALISTA


DA LÓGICA, DA FlSICA
E DA HISTÓRIA

0 homem, dizem-nos alguns filósofos modernos, é um


alienado de seu mundo: é um estranho e um medroso num
mundo que nunca fez. Talvez seja; mas também o são os ani­
mais, e mesmo as plantas. Também eles nasceram, há longo
tempo, num mundo físico-químico, um mundo que não fizeram.
Mas embora não tivessem feito seu mundo, essas coisas vivas o
mudaram além de toda identificação e, de fato, refizeram o pe­
queno canto do universo em que nasceram. Talvez a maior
dessas mudanças tenha sido efetuada pelas plantas. Elas trans­
formaram radicalmente a composição química de toda a atmos­
fera da Terra. As seguintes em magnitude são talvez as reali­
zações de alguns animais marinhos que construiram recifes de
coral e ilhas e cordilheiras de calcário. Por fim veio o homem,
que por longo tempo não mudou seu ambiente de qualquer ma­
neira notável, a não ser contribuindo, pelo desflorestamento,
para expandir o deserto. Sem dúvida, ele construiu umas poucas
pirâmides; mas só durante o último século, ou por aí, começou
a competir com os corais construtores de recifes. Ainda mais
recentemente, começou a desfazer o trabalho das plantas ele­
vando aos poucos, embora significativamente, o conteúdo de
dióxido de carbono da atmosfera.
Assim, não fizemos nosso mundo. Até aqui, nem mesmo
o mudamos muito, em comparação com as mudanças realiza­
das por animais marinhos e por plantas. Criamos, contudo, um
novo tipo de produto ou artefato que promete, em tempo,
operar em nosso canto do mundo mudanças tão grandes quanto
aquelas operadas pelos nossos predecessores, as plantas produ­
toras de oxigênio ou os corais construtores de ilhas. Esses novos
produtos, decididamente de nossa própria fabricação, são nossos
mitos, nossas idéias, e especialmente nossas teorias científicas:
teorias a respeito do mundo em que vivemos.
Sugiro que podemos encarar esses mitos, essas idéias e
teorias, como alguns dos produtos mais característicos da ati­

261
vidade humana. Como ferramentas, eles são órgãos que en­
volvem fora de nossa pele. São artefatos exossomáticos. Assim
podemos contar entre esses produtos característicos, especial­
mente, o que é chamado “conhecimento humano” ; e aqui to­
mamos a palavra “conhecimento” no sentido objetivo ou im­
pessoal, em que se pode dizer que ele está contido num livro, ou
armazenado numa biblioteca, ou ensinando numa universidade.
Quando me referir ao conhecimento humano, terei em
mente, em regra, este sentido objetivo da palavra “conheci­
mento”. Isto nos permite pensar no conhecimento produzido
pelos homens como análogo ao mel produzido pelas abelhas: o
mel é feito pòr abelhas, armazenado por abelhas e consumido
por abelhas; e a abelha individual que consome o mel não
consumirá, em geral, apenas a parte que ela própria produzu:
o mel é também consumido pelos zangões que não produziram
absolutamente nenhum (para não mencionar o tesouro de mel
armazenado que as abelhas podem perder para ursos ou api-
cultores). É também interessante notar que, a fim de conservar
sua capacidade de produzir mais mel, cada abelha obreira tem
de consumir mel, algum dele produzido por outras abelhas.
Tudo isto vale, de modo geral, com leves diferenças, para as
plantas produtoras de oxigênio e para os homens produtores de
teorias: também nós somos não só produtores mas consumi­
dores de teorias; e temos de consumir teorias de outras pessoas,
e às vezes talvez as nossas próprias, se quisermos continuar
produzindo.
“Consumir”, aqui, significa antes de tudo “digerir”, como
no caso das abelhas. Mas significa mais: nosso consumo de
teorias, sejam produzidas por outras pessoas ou por nós mesmos,
significa também criticá-las, mudá-las e muitas vezes mesmo
demolí-las, a fim de substituí-las por outras melhores.
Todas estas são operações necessárias ao crescimento de
nosso conhecimento; e de novo quero dizer aqui, sem dúvida,
conhecimento no sentido objetivo.
Sugiro que presentemente parece ser este crescimento do
conhecimento humano, o crescimento de nossas teorias, que
transforma a história humana num capítulo tão radicalmente
novo da história do universo, e também da história da vida na
Terra.
Todas essas três histórias — a história do universo, a his­
tória da vida na Terra e a história do homem e do crescimento
de seu conhecimento — são, naturalmente, em si mesmas,
capítulos de nosso conhecimento. Conseqüentemente, o último
desses capítulos — isto é, a história do conhecimento — consis­

262
0

tirá de conhecimento acerca do conhecimento. Terá de conter,


pelo menos implicitamente, teorias a respeito de teorias, e espe­
cialmente teorias acerca do modo por que as teorias crescem.
Irei, portanto, antes de adiantar-me mais em meu tópico,
apresentar um esquema quádruplo geral que tenho achado cada
vez mais útil como descrição do crescimento de teorias. Ê o
seguinte:
P i -* T T E E -» P 2.

Aqui, “P” representa “problema” ; TT “teoria experimen­


tal”; e EE, “eliminação de, erro (tentada)”, especialmente por
meio de discussão crítica. Meu esquema quádruplo é uma ten­
tativa de mostrar que o resultado da crítica, ou da eliminação
de erro, aplicada a uma teoria experimental, é via de regra a
emersão de um novo problema; ou, de fato, de vários proble­
mas novos. Os problemas, depois de terem sido resolvidos, com
suas soluções apropriadamente examinadas, tendem a gerar pro-
blemas-filhos: novos problemas, muitas vezes de maior profun­
didade e sempre de maior fertilidade que os antigos. Isto pode
ser visto especialmente nas ciências físicas; e sugiro que pode­
mos aferir melhor o progresso feito em qualquer ciência pela
distância em profundidade e expectação entre P, e P2: as me­
lhores teorias experimentais (e todas as teorias são experimen­
tais) são aquelas que dão origem aos problemas mais profun­
dos e mais inesperados.
Meu esquema quádruplo pode ser elaborado de vários
modos; por exemplo, escrevendo-o assim:
/ TTa -» EEa -» P2a
Px -» TTb -» EEb -» P2b
N TT„ -* EE„ - P2n
Nesta forma, o esquema indicaria que, se pudermos, deve­
mos propor muitas teorias como tentativas para resolver algum
problema dado, e que devemos examinar criticamente cada uma
de nossas soluções experimentais. Então descobriremos que cada
qual dá origem a novos problemas; e podemos acompanhar
aquelas que prometem o problema novo de mais novidade e
mais interessante: se o novo problema, digamos P2u, mera­
mente se tornar o antigo P2 disfarçado, então dizemos que nossa
teoria só consegue desviar o problema um pouco; e em alguns
casos podemos tomar isto como uma objeção decisiva à teoria
experimental TTb.
Isto mostra que a eliminação de erro é apenas parte de
nossa discussão crítica: nossa discussão crítica das teorias expe­
rimentais concorrentes pode compará-las e avaliá-las. de muitos

263
pontos de vista diferentes. O ponto decisivo é, sem dúvida,
sempre este: quão bem nossa teoria resolve seus problemas,
isto é, Pi?
De qualquer modo, uma das coisas que desejamos realizar
é aprender algo novo. De acordo com o nosso esquema, a
progressividade é uma das coisas que exigimos de uma boa
teoria experimental: é só produzida pela discussão crítica da
teoria: a teoria é progressiva se nossa discussão mostrar que
ela realmente fez uma diferença no problema que queremos re­
solver; isto é, se os problemas acabados de emergir são dife­
rentes dos antigos.
Se os problemas recém-emergentes forem diferentes, então
podemos esperar aprender muitíssimas coisas novas quando pas­
sarmos a resolvê-los por sua vez.
Assim, meu esquema quádruplo pode ser usado para des­
crever a emersão de novos problemas e, consequentemente, a
emersão de novas soluções — isto é, novas teorias; e quero
mesmo apresentá-lo como uma tentativa de dar sentido à idéia
admitidamente vaga de emersão — como uma tentativa para
falar da emersão de maneira racional. Gostaria de mencionar
que ele pode ser aplicado não só à emersão de novos problemas
científicos e, conseqüentemente, de novas teorias científicas,
mas também à emersão de novas formas de comportamento, e
mesmo de novas formas de organismos vivos.
Deixai-me dar um exemplo. Pj pode ser, digamos, certo
problema referente à sobrevivência de uma espécie, tal como o
problema da reprodução, de produzir descendentes. De acordo
com Darwin, esse problema de sobrevivência encontrou boa so­
lução se a espécie sobreviver; qualquer outra solução experi­
mental será eliminada pelo desaparecimento tanto da solução
quanto da espécie.
De acordo com o meu esquema, a eliminação de erro ten­
tada — isto é, a luta pela sobrevivência — exporá a fraqueza
inerente de cada uma das soluções propostas sob a forma de
um novo problema. Por exemplo, o novo problema pode ser o
de que os organismos-pais e sua prole estejam ameaçando sufo­
car-se mutuamente. Este novo problema pode, por vezes, ser
resolvido; por exemplo, os organismos podem desenvolver um
método de espalhar ou disseminar sua prole; ou então o novo
problema pode ser resolvido pelo estabelecimento de uma eco­
nomia comum, compreendendo diversos organismos. Talvez a
transição de organismos unicelulares para multicelulares tenha
procedido deste modo.
Seja como for, meu esquema mostra que pode haver mais
do que a alternativa de Darwin, “sobreviver ou perecer”, ine­
rente ao processo de eliminação de erro: a eliminação de erro
pode revelar novos problemas emergentes, especificamente rela­
cionados com o problema antigo e com a solução experimental.
No que se segue usarei meu esquema, às vezes só implici­
tamente: e referir-me-ei à emersão, admitindo que meu esquema
torne esta idéia suficientemente respeitável dentro do que es­
pero seja uma discussão racional. Proponho lidar com alguns
aspectos do crescimento do conhecimento sob quatro títulos:
1 — Realismo e Pluralismo: Redução versus Emersão.
2 — Pluralismo de Emersão na História.
3 — Realismo e Subjetivismo em Física.
4 — Realismo em Lógica.

1 — Realismo e Pluralismo: Redução versus Emersão

O homem produz não só teorias científicas, mas muitas


outras idéias — por exemplo, mitos religiosos ou poéticos, ou,
digamos, enredos para contos.
Qual é a diferença característica entre uma teoria cientí­
fica e uma obra de ficção? Não é, sustento, ser a teoria possivel­
mente verdadeira, ao passo que as descrições num conto não
são verdadeiras, ainda que a verdade e a falsidade tenham algo
a ver com isso. A diferença, sugiro, é que a teoria e o conto
estão incrustados em tradições críticas diferentes. Entende-se
que são julgados por padrões tradicionais completamente dife­
rentes (ainda que esses padrões possam ter alguma coisa em
comum).
O que caracteriza a teoria é ser oferecida como uma solu­
ção para um problema científico; isto é, um problema que surgiu
antes, na discussão crítica de teorias experimentais anteriores, oü
(talvez) um problema descoberto pelo autor da teoria agora ofe­
recida, mas descoberto dentro do reino dos problemas e solu­
ções pertencentes à tradição científica.
Entretanto, não estou deixando isto aqui. Pois a tradição
científica, por sua vez, é, ou era até recentemente, caracteri­
zada pelo que pode ser chamado realismo científico. Isto é, era
inspirada pelo ideal de encontrar soluções verdadeiras para seus
problemas: soluções que correspondessem aos fatos.
Este ideal regulador de encontrar teorias que correspon­
dam aos fatos é o que faz da tradição científica uma tradição
realista: ela distingue entre o mundo de nossas teorias e o
mundo de fatos a que essas teorias pertencem.
265
Além disso, as ciências naturais, com seus métodos crí­
ticos de resolver problemas, e também algumas das ciências
sociais, especialmente a história e a economia, têm representado
por muito longo tempo nossos melhores esforços para resolver
problemas e encontrar fatos (por encontrar fatos entendo, sem
dúvida, a descoberta de asserções ou teorias que correspondem
a fatos). Assim, estas ciências contêm, de modo geral, as me­
lhores asserções e teorias do ponto de vista da verdade; isto é,
aquelas que dão a melhor descrição do mundo de fatos, ou do
que é chamado “realidade”.
Vejamos agora certas relações que se mantêm entre algu­
mas destas ciências.
Tomemos, por exemplo, a física e a química, ciências que
fazem asserções acerca de todas as coisas físicas e estados fí­
sicos, inclusive organismos vivos.
A física e a química não são muito diferentes e não parece
haver grande diferença no tipo de coisas a que se aplicanj, a
não ser que a química, tal como é costumeiramente entendida,
torna-se inaplicável a temperaturas muito altas e também, talvez,
a temperaturas muito baixas. Não seria portanto muito surpreen­
dente se as esperanças, há longo tempo mantidas, de que a
química possa ser reduzida à física, vierem a tornar-se verda­
deiras, como de fato parecem estar-se tomando.
Aqui temos um real caso paradigma de uma “redução”;
e por uma redução quero sem dúvida dizer que todas as desco­
bertas da química podem ser plenamente explicadas pelos (isto
é, deduzidas dos) princípios da física.
Embora tal redução não fosse muito surpreendente, seria
um êxito científico muito grande. Não só seria um exercício de
unificação, mas um real avanço na compreensão do mundo.
Admitamos que essa redução tenha sido levada a cabo com­
pletamente. Isto podería dar-nos uma esperança de podermos
também reduzir algum dia todas as ciências biológicas à física.
Ora, isto seria um sucesso espetacular, muito maior do que
a redução da química à física. Por quê? Porque as coisas do
tipo a que a física e a química se aplicam são realmente muito
similares desde o início. Pensai só como seria difícil dizer se a
teoria atômica é uma teoria física ou química. De fato, por
longo tempo foi ambas as coisas; e é este laço comum que for­
nece o elo que pode levar, ou talvez tenha levado, à sua unifi­
cação.
Com os organismos vivos a situação é diferente. São eles,
sem dúvida, sujeitos a todos os tipos de leis físicas e biológicas.
Contudo, parece haver alguma diferença prima facie entre or­
ganismos vivos e coisas sem vida. Admitidamente, aprendemos
da ciência que há estágios transitórios ou intermediários e tam­
266
t

bém sistemas intermediários; e isto nos dá a esperança de que


um dia possa ser realizada uma redução. Além disso, não pa­
rece de todo improvável que recentes teorias experimentais a
respeito da origem da vida na Terra possa ser submetida a
teste com êxito e que possamos ser capazes de criar artificial­
mente organismos primitivos vivos.
Mas mesmo isto não significaria necessariamente uma re­
dução completa. Isto é mostrado pelo fato de que químicos
foram capazes de criar toda espécie de elementos químicos,
inorgânicos e orgânicos, antes mesmo de compreender sua com­
posição química, para nada dizer de sua estrutura física. Assim,
mesmo o controle de processos químicos por meios puramente
físicos não é, como tal, equivalente a uma redução da química
à física. A redução significa muito mais. Significa compreensão
teórica; a penetração teórica do novo campo pelo campo antigo.
Podemos, assim, encontrar uma receita para criar algumas
formas primitivas de vida partindo de matéria não-viva, sem
compreender, teoricamente, o que estamos fazendo. Admitida-
mente, isto seria um encorajamento tremendo para todos os
que procuram uma redução, e com razão. Mas o caminho para
uma redução podería ainda ser longo; e poderiamos nem saber
se não seria mesmo intransponível: pode não haver redução
teórica da biologia à física, tal como parece não haver uma re­
dução teórica da mecânica à eletrodinâmica, nem uma redução
teórica no sentido inverso.
Se a situação for tal que, de um lado, organismos vivos
possam originar-se de sistemas não-vivos por um processo na­
tural, e de outro lado não haja completa compreensão possível
da vida em termos físicos, então poderemos falar da vida como
uma propriedade emergente de corpos físicos, ou da matéria.
Ora, quero deixar inteiramente claro que, como raciona-
lista, desejo e espero compreender o mundo e desejo e espero
uma redução. Ao mesmo tempo, acho inteiramente provável
que não possa haver redução viável; é concebível que a vida
seja uma propriedade emergente de corpos físicos.
Meu ponto aqui é que aqueles crentes na redução que, por
alguma razão filosófica ou outra, adotam a priori a posição dog­
mática de que a redução deve ser possível, de certo modo
destroem seu triunfo se um dia a redução for realizada. Pois o
que então será realizado deveria ter sido realizado todo o tempo;
assim, seu triunfo será apenas a vitória desinteressante de ter
sido comprovado certos pelos eventos.
Só aqueles que asseveram que a questão não pode ser re­
solvida a priori podem alegar que qualquer redução bem suce­
dida seria uma descoberta tremenda.
267
Demorei-me tanto neste ponto porque ele tem certa relação
com a posição do degrau seguinte da escada — a emersão da
consciência.
Há filósofos, chamados “behavioristas radicais”, ou “fisi-
cistas”, que pensam ter razões a priori, tais como a navalha de
Ockham, para asseverar que nossa introspecção de estados ou
eventos mentais e nossos relatos acerca de estados ou eventos
mentais são simplesmente introspecçõès e relatos a respeito de
nós mesmos, como sistemas físicos: são relatos acerca de estados
físicos desses sistemas.
Dois filósofos esperados aqui nesta manhã defenderam tal
opinião com argumentos brilhantes. São Herbert Feigl e Willard
Van Orman Quine. Eu gostaria de fazer umas poucas observa­
ções críticas a respeito de suas opiniões.
Quine diz, com referência a Carnap e a Feigl, que, se o
progresso teórico pode ser “realizado p o r ... postular estados
mentais distintos. . . por trás de comportamento físico, certa­
mente o mesmo ta n to ... pode ser realizado postulando-se...
em vez disso certos estados e eventos fisiológicos correlatos.. .
A falta de uma explicação fisiológica detalhada dos estados será
escassa objeção a reconhecê-los como estados de corpos huma­
nos. .. Os estados corporais existem de qualquer modo; por que
acrescentar os outros?” (*)
Permiti-me indicar que Quine fala aqui como um realista:
“Os estados corporais existem de qualquer modo”, diz ele. Não
obstante, do ponto de vista que estou adotando aqui, ele não
é o que eu chamaria um “realista científico” : não espera para
ver se a ciência realizará uma redução aqui, como talvez possa
fazer um dia; em vez disso, aplica a navalha de Ockham,(2)
indicando que entidades mentais não são necessárias para a
teoria.
Mas quem sabe que é que Ockham ou qualquer outro pode
entender aqui por necessidade? Se entidades mentais ou, melhor,
estados mentais existissem — e eu próprio não duvido de que
existam — então é necessário postular estados mentais para
qualquer explicação verdadeira deles; e se eles um dia forem
reduzidos a estados físicos, isto será um tremendo sucesso. Mas
não haverá sucesso algum, em absoluto, se rejeitarmos sua exis­
tência notando simplesmente que podemos explicar todas as
coisas sem eles, pelo método simples de nos confinarmos às
coisas físicas e a seu comportamento.
Para sumarizar brevemente meu argumento: as especula­
ções filosóficas de caráter materialista ou fisicista são muito
interessantes e podem mesmo ser capazes de apontar o caminho
para uma redução científica bem sucedida. Mas devem ser fran­
camente teorias experimentais (como penso que sejam as teorias

268
0

de Feigl). Certos fisicistas, contudo, não consideram suas teorias


como experimentais, mas como propostas para expressar tudo
numa linguagem fisicista; e pensam que essas propostas têm
muito a seu favor porque são indubitavelmente convenientes;
problemas inconvenientes tais como o problema de corpo-mente
na realidade desaparecem, muito convenientemente. Assim, esses
fisicistas pensam que não pode haver dúvida de que esses pro­
blemas serão eliminados como pseudo-problemas.
A isto eu replicaria que, pelo mesmo método, poderiamos
ter eliminado a príori todos os estados químicos e os problemas
com eles relacionados: poderiamos ter dito que eram obvia­
mente físicos e que não havia necessidade de especificá-los em
detalhe: tudo quanto era necessário seria postular a existência
de algum estado físico correlato a cada estado químico.
Penso ser claro que a adoção de tal proposta teria levado
à atitude de não procurar a redução detalhada da química à
física. Isto, sem dúvida, teria dissolvido o análogo do problema
de corpo-mente__o problema da relação da física com a quí­
mica; mas a solução teria sido lingüística; e em conseqüência
nada teríamos aprendido acerca do mundo real.
Tudo isto me leva a asseverar que o realismo deveria ser
pelo menos experimentalmente pluralista e que os realistas de­
veríam apoiar o seguinte postulado pluralista:
Devemos acautelar-no? em não resolver, ou dissolver, pro­
blemas facutais lingüísticamente; isto é, pelo método demasiado
simples de recusar falar a respeito deles. Ao contrário, devemos
ser pluralistas, pelo menos para começar: devemos primeiro dar
ênfase às dificuldades, ainda que pareçam insolúveis, como pode
parecer a alguns o problema de corpo-mente.
Se pudermos então reduzir ou eliminar algumas entidades
por meio de redução científica, façamo-lo de todos os modos
e orgulhemo-nos do que ganhamos em compreensão.
Assim, eu diria: elaboremos um detalhe, em cada caso, os
argumentos para a emersão, áe qualquer modo antes de tentar
a redução.
Para sumarizar e avivar as considerações apresentadas
nesta seção:
A redução da química à física, aparentemente agora hem
em marcha, pode ser descrita como um caso paradigma de uma
redução científica genuina que satisfaz todos os requisitos de
uma boa explicação científica.
A redução “boa” ou “científica” é um processo em que
aprendemos muito que é de grande importância: aprendemos a
compreender e a explicar as teorias a respeito do campo a ser

269
reduzido (neste caso, a química) e aprendemos muita coisa a
respeito da força das teorias redutoras (neste caso, a física).
É concebível, embora ainda não certo, que a redução da
química à física será completamente bem sucedida. É também
concebível, embora menos provável, que possamos um dia ter
boas reduções da biologia, incluindo a fisiologia, à física, e da
psicologia à fisiologia e, assim, à física.
Chamo má redução, ou redução ad hoc, ao método de
redução por expedientes meramente lingüísticos; por exemplo,
o método do fisicismo, que sugere que postulemos ad hoc a
existência de estados fisiológicos para explicar um comporta­
mento que explicamos previamente postulando (embora não pos­
tulando ad hoc) estados mentais. Ou, em outras palavras, pelo
experiente lingüístico de dizer que eu relato um estado fisioló­
gico meu quando relato que agora sinto que compreendo a
equação de Schrõdinger.
Este segundo tipo de redução, ou o uso da navalha de
Ockham, é mau, porque nos impede de ver o problema. Na
terminologia pitoresca assim como contundente de Imre La-
katos, é um caso desastroso de um "desvio de problema degene-
rador”; e pode impedir uma boa redução, ou o estudo da
emersão, ou ambas as coisas.
A fim de evitar este método desastroso, devemos, em cada
caso, tentar aprender o máximo possível acerca do campo que
esperamos reduzir. Pode ser que o campo resista à redução; e
em certos casos podemos ter mesmo argumentos para mostrar
por que o campo não pode ser reduzido. Nesse caso, podemos
ter um exemplo de emersão genuína.
Talvez possa terminar meus comentários sobre o desvio
de problema degenerador do behaviorismo (especialmente o
behaviorismo lingüístico) com a observação que se segue.
Os behavioristas e os materialistas são anti-idealistas: e
são, certamente, opositores do “esse = percipi” de Berkeley, ou
ser = ser observável.
De acordo com eles, “ser” é “ser material”, “comportar-se
como um corpo no espaço e no tempo”. Não obstante, pode-se
dizer que aderem, inconscientemente, à equação de Berkeley,
embora a coloquem numa forma verbal levemente diferente:
ser = ser observado
ou talvez
ser = ser percebido.
De fato, dizem que só existem aquelas coisas que podem
ser observadas. Não se dão conta de que todas as observações

270
»

envolvem interpretação à luz de teorias e que aquilo a que cha­


mam “observável” é o que é observável à luz de teorias linda­
mente antiquadas e primitivas. Embora eu seja a favor do senso
comum, também sou a favor de alargar o domínio do senso
comum aprendendo com a ciência. De qualquer modo, não é a
ciência, mas a filosofia dúbia (ou a ciência antiquada) que leva
ao idealismo, ao fenomenalismo e ao positivismo; ou ao materia-
lismo e ao behaviorismo, ou a qualquer outra forma de antiplu-
ralismo.

2 — Pluralismo e Emersão na História

Não falarei a respeito da história do universo, mas direi


somente umas poucas palavras acerca da história da vida na
Terra.
Parece que um começo muito promissor se fez recente­
mente no sentido de reconstruir as condições sob as quais a
vida emergiu na Terra; e penso que talvez possamos esperar
em breve algum êxito maior. Mas, embora otimista a respeito
da emersão, mesmo da emersão experimental, sinto-me incli­
nado muito ceticamente a respeito da redução. Isto se deve a
certos pensamentos meus acerca da evolução da vida.
Parece-me que os processos evolucionários ou as princi­
pais mudanças evolucionárias são tão imprevisíveis quanto os
processos históricos ou as principais mudanças históricas. Sus­
tento esta opinião por ser fortemente inclinado para uma visão
indeterminista do mundo, um tanto mais radical que a de Hei-
senberg: meu indeterminismo inclui a tese de que mesmo a
física clássica é indeterminista e, assim, mais se assemelha ao de
Charles Sanders Peirce ou de Alfred Landé. E penso que a
evolução procede, de amplo modo, probabilisticamente, sob con­
dições ou situações de problema em constante mudança, e que
cada solução experimental, seja mais ou menos bem sucedida
ou mesmo completamente mal sucedida, cria uma nova situa­
ção de problema. Isto me parece impedir uma redução com­
pleta, bem como uma compreensão completa do processo da
vida, embora não impeça um progresso constante e de longo
alcance no rumo de tal compreensão. (Este argumento não deve
ser tido como semelhante à aplicação a organismos vivos, feita
por Bohr, de sua idéia de complementaridade — argumento
que me parece deveras muito fraco.)
Mas quero falar nesta secção principalmente acerca da his­
tória humana, acerca da história da humanidade. Esta, como
tenho indicado, é muito amplamente a história de nosso conheci­

271
mento — de nossas teorias a respeito do mundo — e, sem dú­
vida* das repercussões desses produtos, que são de nossa própria
fabricação, sobre nós mesmos e nossàs produções ulteriores.
É óbvio que se pode adotar uma atitude fisicista ou mate­
rialista para com esses nossos produtos teóricos; e poder-se-ía
suspeitar que minha ênfase sobre o sentido objetivo do conhe­
cimento — minha ênfase sobre teorias como as contidas em
livros reunidos em bibliotecas e como as ensinadas em univer­
sidades — indica que simpatizo com a interpretação fisicista
ou materialista das teorias; refiro-me à uma interpretação que
vê a linguagem como consistindo de objetos físicos — ruídos,
ou letras impressas — e que nos vê- como condicionados, ou
disposicionados, a reagir a esses ruídos ou letras com certos
tipos característicos de comportamento físico.
Nada, 'porém,-está- mais longe dé minha intenção do qüe
encorajar reduções ad hoc deste tipo. Admitidamente, se for­
çado a escolher entre qualquer visão subjetivista ou personalista
do comportamento humano e a visão materialista ou fisicista
que acabei de tentar esboçar, eu escolhería esta última; mas
esta, enfaticamente, não é a alternativa. < : ,
A história das idéias nos ensina muito claramente que as
idéias emergem em contextos lógicos ou, se se preferir o termo,
dialéticos.(3) Meus vários esquemas, tais como
Pi -> TT •** EE -* P»
podem realmente ser encarados como aperfeiçoamentos e racio­
nalização do esquema dialético hegeliano: são racionalizações,
porque operam inteiramente dentro da clássica sistematização
lógica da crítica racional, que se baseia na chamada lei da con­
tradição; isto é, na.exigência de que as contradições, sempre que
as descobrirmos, devam ser eliminadas. A eliminação de erro
crítica, no meio científico, procede por meio de uma busca
consciente de contradições.
Assim a história, e especialmente a história das idéias, nos
ensina que, se quisermos compreender a história, devemos com­
preender as idéias e suas relações lógicas (ou dialéticas) ob­
jetivas.
Não creio que quem quer que já tenha penetrado seria­
mente em qualquer capítulo da história das idéias pense que uma
redução dessas idéias possa alguma vez ser bem sucedidas. Mas
tomo aqui, como minha tarefa, não tanto argumentar contra a
possibilidade de qualquer redução, quanto argumentar em prol
do reconhecimento de entidades emergentes e da neóessidade de
reconhecer e descrever tais entia emergentes antes que se possa
pensar seriamente a respeito de süa possível eliminação por
meio de redução.
272
*

Um de meus principais argumentos em prol do caráter


emergente das teorias foi apresentado em outro local.(4) Meu
argumento depende da conjectura de haver uma coisa tal como
um crescimento genuino do conhecimento científico; ou, em
termos práticos, de que amanhã, ou daqui a um ano, pode­
remos propor e testar teorias importantes nas quais ninguém
havia pensado seriamente até então. Se há crescimento do co­
nhecimento neste sentido, então ele não pode ser previsível
por meios científicos. Pois quem pudesse prever hoje por meios
científicos nossas descobertas de amanhã podería fazê-las hoje;
o que significaria que havería um fim do crescimento do co­
nhecimento.
Por outro lado, a imprevisibilidade, em princípio, tem sido
sempre considerada como o ponto saliente da emersão. E pare-
ce-me que meu argumento mostra, de qualquer modo, que o
crescimento do conhecimento deve ser em princípio imprevisível.
Mas há outros argumentos em prol do caráter emergente
das teorias, ou do conhecimento no sentido objetivo. Menciona­
rei apenas um argumento ou dois contra a opinião muito po­
pular e muito ingênua de que as teorias podem ser reduzidas
aos estados mentais daqueles que as produzem, ou daqueles que
as compreendem. (Se esses próprios estados mentais podem ou
não, talvez, ser então reduzidos por sua vez a estados físicos
não será mais discutido.)
A idéia de que uma teoria em seu sentido objetivo ou ló­
gico possa ser reduzida aos estados mentais dos que as sus­
tentam toma, via de regra, a forma de que a teoria é precisa­
mente um pensamento. Mas isto é um erro trivial: é o malogro
em distinguir entre dois sentidos da palavra “pensamento”. Em
seu sentido subjetivo, a palavra “pensamento” descreve Uma
experiência mental ou um processo mental. Mas duas experiên­
cias ou dois processos mentais, embora possam permanecer
em relações causais recíprocas, não podem permanecer em rela­
ções lógicas mútuas.
Assim, se digo que certas idéias de Buda concordam com
certas idéias de Schopenhauer, ou que contradizem certas idéias
de Nietzsche, então não estou falando a respeito dos processos
de pensamento mentais dessas pessoas ou a respeito de suas
interrelações. Se digo, porém, que Nietzsche foi inf.uenciado por
certas idéias de Schopenhauer, então quero dizer que certos pro*
cessos de pensamento de Nietzsche foram influenciados caUSâl*
mente por ler Schopenhauer. Assim temos de fato estes dois
mundos diferentes, o mundo de processos de pensam ento a 0
mundo dos produtos de processos de pensamento. Enquanto 0

271
primeiro pode permanecer em relações causais, o último per­
manece em relações lógicas.
O fato de serem incompatíveis certas teorias é um fato
lógico e vale com inteira independência de que alguém haja ou
não notado ou compreendido essa incompatibilidade. Tais re­
lações puramente lógicas são características das entidades que
tenho denominado teorias, ou conhecimento, no sentido ob­
jetivo.
Isto pode também ser visto pelo fato de que a pessoa que
produz uma teoria pode muitíssimas vezes não a compreender.
Assim, poder-se-ia argumentar, sem paradoxo, que Erwin Schrõ-
dinger não compreendeu inteiramente a equação de Schrõdinger;
de qualquer modo, não até que Max Born lhe deu sua interpre­
tação estatística; ou que a lei da área de Kepler não foi ade­
quadamente compreendida por Kepler, que parece não ter gos­
tado dela.
De fato, compreender uma teoria é algo como uma tarefa
infinita, de modo que bem podemos dizer que uma teoria nunca
é plenaménte compreendida, ainda que algumas pessoas possam
compreender algumas teorias muito bem. Compreender uma
teoria, de fato, tem muito em comum com compreender uma
personalidade humana. Podemos compreender bastante bem o
sistema de disposições de um homem; isto é, podemos ser ca­
pazes de predizer como ele agiría em certo número de situa­
ções diferentes. Mas visto haver infinitamente muitas situações
possíveis, de variedade infinita, não parece ser possível
uma compreensão plena das disposições de um homem. O
mesmo se dá com as teorias: uma compreensão plena de uma
teoria significaria compreender todas as suas consequências ló­
gicas. Mas estas são infinitas, num sentido não trivial: há infi­
nitamente muitas situações de variedade infinita às quais a teoria
podería ser aplicável; isto é, às quais algumas de suas conse-
qüências lógicas poderíam relacionar-se; e muitas dessas situa­
ções nunca foram pensadas; sua possibilidade pode ainda não
ter sido descoberta. Mas isto significa que ninguém, nem seu
criador nem quem quer que haja tentado apreendê-la, pode ter
uma compreensão plena de todas as possibilidades inerentes a
uma teoria; o que mostra de novo que a teoria, em seu sentido
lógico, é algo objetivo e algo que existe objetivamente — um
objeto que podemos estudar, algo que tentamos apreender.
Dizer que as teorias ou idéias são produtos nossos e. contudo,
não são plenamente compreendidas por nós não é mais para­
doxal do que dizer que nossos filhos são produtos nossos e.
contudo, não são plenamente compreendidos por nós ou que

274
*

o mel é um produto da abelha, mas não é plenamente com­


preendido por qualquer abelha.
Assim, o estudo da história de nossas teorias ou idéias —
e boa defesa podia ser apresentada para a opinião de que toda
a história humana é amplamente uma história de nossas teorias
ou idéias — deveria tornar-nos todos pluralistas. Pois o que
existe, para o historiador, são pessoas em situações de pro­
blemas físicas, sociais, mentais e ideológicas; pessoas que pro­
duzem idéias com as quais tentam resolver esses problemas,
idéias que tentam apreender, criticar, desenvolver.
O estudioso da história das idéias descobrirá que as idéias
têm um tipo de vida (sem dúvida, isto é uma metáfora); que
podem ser incompreendidas, rejeitadas e esquecidas; que podem
reafirmar-se e voltar de novo à vida. Sem metáfora, porém, po­
demos dizer que elas não são idênticas ao pensamento ou crença
de qualquer homem; que podem existir ainda que universal­
mente incompreendidas e rejeitadas.
Em tudo isto pode haver reminiscência de Platão e de
Hegel. Mas há grandes diferenças aqui. As “idéias” de Platão
eram concepções ou noções eternas, imutáveis; as de Hegel eram
concepções ou noções âialeticamente automutáveis. As idéias
que acho mais importantes não são, em absoluto, concepções
ou noções. Não correspondem a vocábulos, mas a asserções ou
proposições.
Em oposição a Platão e Hegel, considero as teorias expe­
rimentais acerca do mundo — isto é, as hipóteses juntamente
com suas conseqüências lógicas — como as cidadãs mais impor­
tantes do mundo das idéias; e não penso (como fazia Platão)
que seu caráter estranhamente não-teniporal as torne eternas
e, portanto, mais reais do que as coisas que são geradas e estão
sujeitas a mudança e à decadência. Ao contrário, uma coisa
que pode mudar e parecer deveria, por esta própria razão, ser
aceita como real prima facie; e mesmo uma ilusão é, como
ilusão, uma ilusão real.
Isto é importante em conexão com o problema do tempo
e da mudança.
Um historiador não pode, penso eu, aceitar a doutrina de
que o tempo e a mudança são ilusões, doutrina sustentada por
alguns grandes físicos e filósofos como Parmênides, Weyl e
Schrõdinger. Nada é mais real do que um evento, uma ocorrên­
cia; e cada evento envolve certa mudança.
Parece-me não só improvável, mas impossível, que o uni­
verso pluralista em que o historiador vive, com seus homens
275
individuais vivendo vidas individuais, tentando resolver seus pro­
blemas, produzindo filhos e idéias a seu respeito, esperando e
temendo e iludindo a si mesmos e aos outros, mas sempre
teorizando e muitas Vvezes buscando não só a felicidade, como
também a verdade — que este universo pluralista seja “redu­
zido” a uma ou outra espécie de monismo. Mas este, aqui, não
é meu ponto. O meu ponto é que só depois de reconhecer a
pluralidade do que há neste mundo podemos começar seria­
mente a aplicar a navalha de Ockham. Invertendo uma bela
formação de Quine,(5) só se a barba de Platão for suficiente­
mente dura e emaranhada com muitas entidades valerá a pena
que usemos a navalha de Ockham. Só se pode esperar que o
fio da navalha se embote ao ser usado para este árduo tra­
balho. A tarefa sem dúvida será penosa. Mas é tudo no trabalho
de um dia.

3 — Realismo e Subjeíivismo em Física

Há dois campos importantes na física moderna em que os


físicos têm permitido que o subjetivismo não só entre mas
desempenhe um papel essencial: a teoria de Boltzmann sobre a
subjetividade da direção do tempo, e a interpretação de Hein-
senberg das fórmulas de indeterminação como determinando um
limite mais baixo para o efeito da interferência do observador
com o objeto observado.
Houve também outra intrusão do sujeito, ou do observador,
quando Einstein introduziu o observador em certo número de
experiências de pensamento imaginário tendentes a elucidar a
relatividade; mas este é um campo do qual o observador foi
exorcizado, lenta mas firmemente, pelo próprio Einstein.
Não discutirei este ponto mais além, nem discutirei a teoria
subjetiva do tempo que, tentando dizer-nos que o tempo e a
mudança são ilusões humanas, esquece que eles são ilusões
muito reais, que de modo algum têm sido reduzidas a qualquer
outra coisa (e que, conjecturo, não são receptivas à redução).
Não discutirei tudo isto porque já o fiz bem recentemente. Quero
simplesmente dizer umas poucas palavras a respeito das fórmu­
las de Heisenberg e de sua interpretação.
Estas fórmulas são derivadas costumeiramente de um modo
bem complicado; há, por exemplo, uma derivação interessante
feita por Weyl(«) e outra bastante complicada feita por Born.(7)
Contudo, de fato, a fórmula de Heisenberg para a energia
não depende da mecânica de ondas nem da mecânica de ma­
276
0

trizes de Heisenberg; nem precisamos das relações de comuta­


ção (que, de acordo com Hill,(8) são insuficientes para a deri­
vação das fórmulas). Simplesmente não depende da nova e re­
volucionária mecânica do quantum, de 1925-26, mas decorre
diretamente do velho postulado do quantum, de Planck, em
1900:
(1) E - hv.
Disto obtemos imediatamente
(2) A E = h A v.
Usando o princípio de força transformadora harmônica,
(3) âv « 1/ A t,
obtemos de (2) e (3)
(4) A E « h/At,
que leva imediatamente a
(5) A E A t « h;
isto é, uma forma das chamadas fórmulas de indeterminação de
Heisenberg.
Precisamente do mesmo modo a fórmula de Heisenberg
para posição e momento é obtida do princípio de Duane (cuja
analogia com o princípio de Planck foi recentemente acentuada
por Alfred Landé). Pode ser escrita '
(6) A pi « h /A qi-
. De acordo com Landé, isto pode ser assim interpretado:
um corpo (como uma grade ou um cristal) dotado de periodi­
cidade de espaço À qi está capacitado a mudar seu momentú
pi em múltiplos de A Pi — h / A qi.
De ( 6) obtemos logo
(7) A Pi A qs h,
que é outra-fôrma das fórmulas de indeterminação de Hei­
senberg. '
Considerando que a teoria de Planck é uma teoria estatís­
tica, aâ fórmulas de Heisenberg podem ser interpretadas muito
naturahnente coma relações de difusão estatísticas, como eu
propus há mais de trinta anos.(V°) Isto é, elas nada dizem a
respeito da precisão possível de medições, nem nada a res­
277
peito de limites a nosso conhecimento. Mas, se são relações de
difusão, dizem-nos alguma coisa a respeito da homogeneidade
dos estados físicos de quantum e portanto, embora indireta­
mente, a respeito da previsibilidade.
Por exemplo, a fórmula A Pi Aqi ~ h (que pode ser
obtida do princípio de Duane assim como A E A t » h pode
ser obtida do princípio de Planck) simplesmente nos diz que,
se determinarmos a coordenada x de um sistema (digamos, um
eléçtron) então, com a repetição da experiência, o momento
se difundirá.
Ora, como pode ser testada tal asserção? Fazendo-se uma
longa série de experiências com uma abertura fixa de obtu­
rador Ax e med ndo, em cada caso isolado, o momento Px.
Se esses momentos se difundirem, como se previu, então a fór­
mula sobreviveu ao teste. Mas isto mostra que, a fim de testar
as relações de difusão, teremos efetivamente medido, em cada
caso, ps com uma precisão muito maior do que A px; pois, de
outra forma, não poderiamos falar de A px; como a difusão
de px-
Experiências do tipo descrito são empreendidas diariamente
em todos os laboratórios de física. Mas elas refutam a inter­
pretação da indeterminação de Heisenberg, porquanto as me­
dições (embora não as predições baseadas nelas) são mais pre­
cisas do que o permite essa interpretação.
O próprio Heisenberg notou que essas medições são possí­
veis, mas disse que era “uma questão de crença pessoal” ou de
“gosto pessoal” atribuirmos ou não alguma significação a elas;
desde esta observação elas têm sido desprezadas como sem
sentido. Mas não são sem sentido, pois têm uma função defi­
nida; são testes das próprias fórmulas em questão; isto é, das
fórmulas de indeterminação como relações de difusão.
Portanto, não há razão alguma para aceitar a interpretação
subjetivista de Heisenberg, ou a de Bohrn, da mecânica do
quantum. A mecânica do quantum é uma teoria estatística por­
que os problemas que tenta resolver — intensidades espectrais,
por exemplo — são problemas estatísticos. Não há, por conse­
guinte, necessidade aqui de qualquer defesa filosófica de seu
caráter não-causal.
A irredutibilidade das teorias estatísticas a teorias deter­
ministas (em vez da incompatibilidade desses dois tipos de
teorias) deveria ser, entretanto, estabelecida. Argumentos neste
sentido têm sido oferecidos por Landé, e outros muito diferentes
por mim.

278
0

Sumarizando, não há razão para que, de modo algum, se


duvide do caráter realista e objetivista de toda a física. O papel
desempenhado pelo sujeito observador na física moderna não
é de maneira alguma diferente do que ele desempenhou na dinâ-
mica de Newton ou na teoria de Maxwell sobre o campo elé­
trico; o observador é, essencialmente, o homem que testa a
teoria. Para isto, ele necessita de uma porção de outras teorias,
teorias concorrentes e teorias auxiliares. Tudo isto mostra que
não sojnos tanto observadores quanto pensadores.

4 — Realismo em Lógica

Oponho-me a encarar a lógica como uma espécie de jogo.


Tenho conhecimento dos chamados sistemas alternativos de ló­
gica e eu mesmo de fato inventei um, mas os sistemas alterna­
tivos de lógica podem ser discutidos de pontos de vista muito
diferentes. Poderia alguém pensar que é uma questão de escolha
ou de convenção a lógica que uma pessoa adota. Discordo desta
opinião.
Minha teoria, em resumo, é esta: Encaro a lógica como a
teoria da dedução ou da derivabilídade, ou seja o que alguém
queira chamá-la. Derivabilídade, ou dedução, envolve, essencial­
mente, a transmissão da verdade e a retransmissão da falsidade:
numa inferência válida, a verdade é transmitida das premissas
para a conclusão. Isto pode ser usado especialmente nas cha­
madas “provas”. Mas a falsidade é também retransmitida da
conclusão para (pelo menos) uma das premissas e isto é usado
em desaprovações ou refutações, e especialmente na discussão
crítica.
Temos premissas e uma conclusão; e se mostramos que a
conclusão é falsa e admitimos que a inferência é válida, sa­
bemos que pelo menos uma de nossas premissas deve ser falsa.
É assim que a lógica é constantemente usada em discussão crí­
tica, pois numa discussão crítica tentamos mostrar que alguma
coisa não está em ordem com alguma asserção. Tentamos mos­
trá-lo, e podemos não ser bem sucedidos: a crítica pode ser
validamente respondida pela contracrítica.
O que desejo afirmar é ( 1 ) que a crítica é um recurso
metodológico muito importante; e (2 ) que se respondeis à crí­
tica dizendo “Não gosto de vossa lógica; vossa lógica pode estar
muito bem para vós, mas eu prefiro uma lógica diferente e, de
acordo com a minha lógica, esta crítica não é válida”, então
podeis minar o método da discussão crítica.
279
Agora, distinguirei entre dois usos principais da lógica, a
saber, ( 1 ) seu uso nas ciências demonstrativas — isto é, as
ciências matemáticas — e (2 ) seu uso nas ciências empíricas.
Nas ciências demonstrativas a lógica é usada de modo prin­
cipal para provas — para a transmissão da verdade ■— ao passo
que nas ciências empíricas é usada quase que exclusivamente
de modo crítico — para a retransmissão da falsidade. Sem
dúvida, entra também a matemática aplicada, na qual implici­
tamente fazemos uso das provas da matemática pura, mas o
papel da matemática nas ciências empíricas é um tanto dúbio
a vários respeitos. (Neste sentido existe um maravilhoso artigo
de Schwartz.(11))
Assim, nas ciências empíricas, a lógica é usada principal­
mente para a crítica; isto é, para refutação. (Recorde-se meu
esquema Pi -» TT -* EE -* P2).
Ora, o que desejo afirmar é isto: Se quisermos usar a
lógica num contexto crítico, então devemos usar uma lógica
muito forte, a lógica mais forte, por assim dizer, que estiver
ao nosso alcance, pois queremos que a nossa crítica seja severa.
A fim de que a crítica seja severa, devemos usar o equipamento
inteiro; devemos usar todas as armas que temos. Cada tiro é
importante. Não importa que sejamos supercríticos; se formos,
responder-nos-á a contracrítica.
Assim, devemos (nas ciências empíricas) usar a lógica
plena, ou clássica, ou bivalente. Se não a usarmos, mas nos
recolhermos ao uso de uma lógica mais fraca — digamos, a
lógica intuicionista ou alguma lógica de três valores (como
Reichenbach sugeriu em conexão com a teoria do quantum),
então, afirmo, não somos bastante críticos; é um sinal de que
algo está podre no Estado da Dinamarca (que neste caso é a
teoria do quantum em sua interpretação de Copenhague, como
anteriormente indiquei).
Ora, olhemos, por contraste, para as provas. Qualquer ma­
temático sabe que há considerável interesse em provar um teo­
rema com a ajuda de um equipamento mínimo. Uma prova
que use meios mais fortes do que o necessário é matematica­
mente insatisfatória, e é sempre interessante encontrar às admis­
sões mais fracas ou os meios mínimos que têm de ser usados
numa prova. Em outras palavras, queremos que a prova não
seja só suficiente — isto é, válida — mas queremos que, se
possível, seja necessária no sentido de que foi usado na prova
um mínimo de suposições. Isto, admito, é uma opinião algo
sofisticada. Na matemática não sofisticada ficamos felizes e
280
t

gratos se podemos provar alguma coisa, mas na matemática


mais sofisticada queremos saber realmente o que é necessário
para provar um teorema .
Assim, se alguém puder provar teoremas matemáticos com
métodos mais fracos do que a bateria completa da lógica clássica,
então isto é extremamente interessante de um ponto de vista
matemático. Assim, na teoria da prova, estamos interessados
em enfraquecer, se possível, nossa lógica clássica e podemos,
por exemplo, introduzir a lógica intuicionista, ou alguma outra
lógica mais fraca, tal como a lógica positiva, e investigar até
onde podemos chegar sem usar a bateria inteira.
Penso, incidentemente, que a expressão “lógica intuicio­
nista” é um mau nome. É somente um nome para uma forma
muito interessante e um tanto enfraquecida da lógica clássica
inventada por Brouwer e formalizada por Heyting. Certamente
não quero dizer coisa alguma em favor da teoria filosófica cha­
mada intuicionismo, embora gostasse de dizer algo em favor
da lógica de Brouwer-Heyting. Mas confio em que não se irá
supor que eu esteja em qualquer sentido defendendo a autori­
dade da intuição em filosofia, em lógica ou em qualquer outra
parte. Deixando de lado por um momento a lógica brouweriana,
poder-se-ia dizer que o intuicionismo é a doutrina de que as
intuições não só são importantes mas também, em geral, fide­
dignas. Contra isto, penso que as intuições são muito impor­
tantes mas, via de regra, não resistem à crítica. Assim, não sou
intuicionista. Contudo, a lógica brouweriana, ou a chamada “ló­
gica intuicionista”, do ponto de vista da presente discussão, é
importante por ser uma parte justamente, uma parte genuina,
e assim uma forma enfraquecida, da lógica clássica; isto é, cada
inferência que for válida do ponto de vista da lógica intuicio­
nista será também válida do ponto de vista da lógica clássica,
ao passo que o oposto não se dá: temos inferências que podem
ser validamente tiradas na lógica clássica mas não são válidas
na lógica intuicionista. Assim, se eu puder provar Um teorema
(até então provado só por meios clássicos) pela lógica intui­
cionista, terei feito uma real descoberta matemática; pois as
descobertas matemáticas não consistem só em encontrar provas
novas de teoremas novos, mas consistem também em encontrar
provas novas de teoremas antigos; e uma nova prova de um
teorema será especialmente interessante se usar meios mais
fracos do que a prova antiga. Pode-se sempre colocar sob inda­
gação, a fortiori, uma prova que use meios mais fortes; mas
encontrar uma prova mais fraca é realmente um feito mate­
mático.
281
Assim, a lógica intuicionista é uma abordagem muito in­
teressante da matemática porque tenta provar tantos teoremas
matemáticos quantos seja possível com meios lógicos reduzidos.
A lógica intuicionista tem mais outra vantagem: pode-se
mostrar que a chamada “lei do centro excluído” não é demons-
trável nela (embora seja uma fórmula bem formada do sistema).
Pode-se também mostrar que se em algum sistema, seja qual for,
uma fórmula bem formada não é demonstrável, então o sistema
deve ser coerente. Geralmente falando, quanto mais fracos forem
os meios lógicos que usamos, tanto menor é o perigo de in-
coerência-o perigo de ser derívável urna contradição. Assim a
lógica intuicionista pode ser também encarada como uma tenta­
tiva para tornar mais certo que nossos argumentos são coeren­
tes e que não nos enfiamos em incoerências, ou paradoxos, ou
antinomias ocultos. A segurança que tenha tal lógica enfraque­
cida, como tal, é questão em que não quero entrar agora; mas
obviamente ela é pelo menos um pouco mais segura do que a
plena lógica clássica. Não suponho que seja sempre segura,
mas este não é o meu ponto. Meu ponto é este: Se quiserdes
provar ou firmar alguma coisa, deveis usar meios fracos. Mas
para desaprová-la — isto é, para criticá-la — podemos usar
meios fortes. Sem dúvida, alguém poderia dizer: “Olhe, posso
refutá-lo mesmo com meios fracos; não preciso sequer usar o
total da lógica intuicionista”. Contudo, isto não é muito im­
portante. O principal é que, para o racionalista, qualquer crí­
tica é bem acolhida — embora ele possa replicar a ela cri­
ticando a crítica.
Ora, esta visão racionalista é uma visão realista da lógica.
Primeiro, porque encara a lógica, parcialmente, em conexão
com a metodologia das ciências naturais, que, tenho tentado
argumentar, é uma questão realista. Em segundo lugar, e isto é
um ponto muito especial, porque encara a inferência lógica
como transmissora de verdade ou rejtransmissora de falsidade;
isto é, preocupa-se com a idéia de verdade.
Eu afirmaria que uma das realizações não menos impor­
tantes de Alfred Tarski foi que, introduzindo duas idéias na
lógica, ele de fato tomou a lógica uma coisa muitíssimo rea­
lista. A primeira é a idéia de Tarski (em parte antecipada por
Bolzano) de que a consequência lógica é a transmissão da ver­
dade. A segunda, diria eu, é a reabilitação da teoria de corres­
pondência da verdade, a reabilitação da idéia de que a verdade
é simplesmente a correspondência com os fatos.
Penso que aqui posso discordar um pouco de Quine, porque
penso que esta idéia de Tarski deveria ser interpretada como

282
ê

destruidora do relativísmo e porque julgo ser correta a ale­


gação de Tarski de que sua teoria da verdade é uma teoria
“absolutista” da verdade. A fim de explicar este ponto, recon-
tarei uma história muito velha com um ponto levemente novo.
A velha história é a das três principais teorias da verdade. O
ponto novo é a eliminação da palavra “verdade” da história e,
com isso, da aparência de estarmos lidando aqui com palavras,
ou definições verbais. Para esta eliminação, porém, é necessária
alguma discussão preparatória.
Das três principais teorias da verdade, a mais antiga é a
teoria da correspondência, a teoria de que a verdade é a corres­
pondência com os fatos, ou, para expô-lo mais precisamente,
que uma asserção é verdadeira se (e apenas se) corresponde
aos fatos, ou se descreve os fatos adequadamente. Esta é a
teoria que, penso, Tarski reabilitou. A segunda teoria é a cha­
mada teoria da coerência: uma asserção é considerada verda­
deira se (e apenas se) é coerente com o restante de nosso conhe­
cimento. A terceira teoria é a de que a verdade é a utilidade
pragmática, ou o proveito pragmático.
Ora, a teoria da coerência tem todas as espécies de ver­
sões, das quais mencionarei somente duas. De acordo com a
primeira, a verdade é a coerência com as nossas crenças, ou
mais precisamente, uma determinada asserção é verdadeira se
for coerente com o restante de nossas crenças. Acho isto um
pouco desconcertante porque não quero por crenças na lógica,
por bem conhecidas razões. (Se Pedro acredita p e se p e q são
interdedutíveis, podemos dizer que Pedro é logicamente obri­
gado a acreditar q. Mas ele pode não saber que p e q são inter­
dedutíveis ê pode, de fato, descrer q.)
De acordo com a segunda versão da teoria da coerência,
certa asserção dada, da qual não sabemos se é ou não verda­
deira, deve ser aceita como verdadeira se (e apenas se) for
coerente com as asserções que previamente aceitamos. Esta
versão tem o efeito de tornar nosso conhecimento extremamente
conservador: o conhecimento “entrincheirado” dificilmente pode
ser derrubado.
A teoria da utilidade pragmática preocupa-$e especialmente
com o problema das teorias nas ciências naturais, como ;a
física. Diz que devemos aceitar uma teoria física como verda­
deira se ela, em testes e em outras aplicações, mostrar ser
pragmaticamente útil, ou bem sucedida.
Proponho agora usar uma espécie de truque. Meu truque
consiste nisto: Muito breve, até bem perto do fim deste ensaio,
deixarei de referir-me à verdade. Não mais indagarei “Que é a
283
verdade?” Há várias razões. Minha principal razão é crer que
perguntas de “Que é?” ou “Que são?”, ou, em outras palavras,
todas as questões verbais ou definicionais devem ser eliminadas.
Encaro as perguntas de “Que é?” ou “Que são?” como pseudo-
perguntas; elas não parecem todas ser tão “pseudo”, mas penso
que todas são pseudo-perguntas. Penso que não deveriam ser
feitas perguntas como “Que é a vida?”, ou “Que é a matéria?”,
ou “Que é a mente?”, ou “Que é a lógica?” São indagações
tipicamente infrutíferas.
Assim, penso que também devemos descartar a pergunta
“Que é a verdade?”
Minha primeira razão (acabada de mencionar) para des­
cartar a pergunta “Que é a verdade?” pode ser chamada “anti-
essencialismo”. Minha segunda razão é ainda mais importante.
É a de que devemos evitar completamente, como se fosse praga,
discutir o significado das palavras. A discussão do significado
das palavras é um jogo favorito da filosofia, passada e pre­
sente: os filósofos parecem estar viciados na idéia de que as
palavras e seu significado são importantes e são a preocupação
principal da filosofia.
Para vossa comodidade, voltarei a apresentar aqui — logo
adiante — uma tabela que usei antes (no Cap. 3, secção 5,
deste livro).
À esquerda temos palavras ou conceitos e suas significa­
ções e à direita temos sentenças ou proposições ou teorias e sua
verdade.
Ora, a experiência de uma vida inteira neste campo tem-me
ensinado que se deve tentar sempre ficar afastado do lado es­
querdo da tabela e conservar-se do lado direito. Foier-se-ia
sempre ficar com as asserções, as teorias e a questão de suà
verdade. Nunca se ficaria envolvido em questões verbais ou ques­
tões de significado, e nunca se ficaria interessado em palavras.
Se alguém é desafiado pela indagação de ter uma palavra que
usa, realmente, esta significação, ou talvez aquela, então pode
dizer: “Não sei, e não estou interessado em significados; e, se
quiser, aceitarei de bom grado a sua terminologia.” Isto nunca
faz mal. Nunca se deve disputar acerca de palavras, nem ficar
envolvido em questões de terminologia. Deve-se sempre fugir
de discutir conceitos. O que realmente nos interessa, nossos pro­
blemas reais, são problemas factuais, ou, em outras palavras,
problemas de teorias e de sua verdade. Estamos interessados em
teorias e em como resistem à discussão crítica; e nossa discussão
crítica é controlada pelo nosso interesse na verdade.

284
h

IDÉIAS
isto é
DESIGNAÇÕES ou TERMOS SENTENÇAS ou PROPOSI-
ou CONCEITOS ÇÕES ou TEORIAS
podem ser formuladas em
PALAVRAS ASSERÇÕES
que podem ser
SIGNIFICATIVAS VERDADEIRAS
e sua
SIGNIFICAÇÃO VERDADE
pode ser reduzida por meio de
DEFINIÇÕES DERIVAÇÕES
a
CONCEITOS INDEFINIDOS PROPOSIÇÕES
PRIMITIVAS

A tentativa de estabelecer (em vez de reduzir)


por esses meios sua
SIGNIFICAÇÃO VERDADE
leva a um regresso infinito

Tendo dito isto, pretendo agora parar de usar a palavra


“verdade”. Nosso problema não é mais: A verdade é corres­
pondência? A verdade é coerência? A verdade é utilidade? Sendo
assim, como podemos formular nosso problema real?
Nosso problema pode ser nitidamente formulado, apenas
indicando-se que todos os opositores das teorias de correspon­
dência fazem uma asserção. Todos asseveram que não pode
haver coisa tal como a correspondência entre uma sentença e
um fato. Esta é sua asserção central. Dizem que este conceito é
sem significado (ou que é indefinível, o que, incidentemente, em
minha opinião não importa, pois definições não importam).
Em outras palavras, todo o problema surge por causa de dú­
vidas, ou ceticismo, com respeito à correspondência: se há
coisa tal como a correspondência entre uma sentença e um fato.
É muito claro que essas dúvidas são sérias (especialmente em
vista do paradoxo do mentiroso).
285
É também inteiramente claro que, não fossem essas dúvi­
das, os sustentadores da teoria da coerência e da teoria da
utilidade pragmática nada teriam realmente para argumentai
em contrário. Ninguém nega que a utilidade pragmática e assun­
tos tais como a força de predizer são importantes. Mas, exis­
tindo algo como a correspondência de uma teoria com os fatos,
então isto seria obviamente mais importante do que a mera auto-
coerência e certamente também muito mais importante do que a
coerência com qualquer anterior “conhecimento” (ou “crença”;
pois, se uma teoria corresponde aos fatos, mas não é coerente
com algum conhecimento anterior, então esse conhecimento an­
terior deve ser descartado.
Similarmente, existindo algo como a correspondência da
teoria com os fatos, então é claro que uma teoria que corres­
ponde aos fatos será, via de regra, muito útil; mais útil, como
teoria, do que uma teoria que não corresponde aos fatos (Por
outro lado, pode ser muito útil para um criminoso diante de um
tribunal de justiça aferrar-se a uma teoria que não corresponde
aos fatos; mas, como não é este tipo de utilidade o que os
pragmáticos têm em vista, suas opiniões suscitam uma pergunta
que é muito desconcertante para eles: refiro-me à pergunta
“Útil para quem?”.)
Embora eu me oponha ao pragmatismo como uma filosofia
da ciência, prazerosamente admito que o pragmatismo tem enfa­
tizado algo muito importante: a questão de ter uma teoria alguma
aplicação, de ter, por exemplo, poder de predição. A praxis,
como já expus em alguma parte, é inestimável para o teórico
como uma espora e, ao mesmo tempo, como uma rédea: é uma
espora porque nos sugere novos problemas, e é uma rédea
porque nos pode trazer de volta ao solo e à realidade se nos
perdermos em superabstratos vôos teóricos de nossa imaginação.
Tudo isto é de ser admitido. E, contudo, é claro que a posição
pragmática será suplantada por uma posição realista se puder­
mos dizer significativamente que uma sentença, ou uma teoria,
pode ou não pode corresponder aos fatos.
Assim, a teoria da correspondência não nega a importân­
cia das teorias pragmática e da coerência, embora implique que
elas não são bastante boas. Por outro lado, as teorias pragmá­
ticas e da coerência asseveram a impossibilidade ou a falta de
significação da teoria da correspondência.
Assim, sem sequer mencionar a palavra “verdade” nem
indagar “Que significa a verdade?” podemos ver que o proble­
ma central de toda esta discussão não é o problema verbal de
definir a “verdade”, mas o seguinte problema substancial: pode
haver coisa tal como uma sentença, ou uma teoria, que corres­
ponda aos fatos, ou que não corresponda aos fatos?

286
«

Por trás das dúvidas referentes à possibilidade de falar


acerca de correspondência há vários argumentos fortes.
Antes de tudo, há paradoxo ou antinomias que brotam
desta idéia de correspondência. Depois, há as incontáveis ten­
tativas malogradas de dizer mais precisamente de que consiste
a correspondência entre uma sentença e um fato. Há a tenta­
tiva de Sohlick, que disse que a correspondência deve ser expli­
cada por uma relação de um-a-um entre a sentença linguística
e o fato; isto é, por unicidade. Uma sentença, disse ele, é “ver­
dadeira”, ou corresponde aos fatos se se firma ante os fatos
do mundo numa relação de um-a-um, ou numa relação única:
a não-correspondência, ou “falsidade” é o mesmo que ambigüi-
dade. Sem dúvida, esta é uma opinião inaceitável, pois muitas
sentenças vagas e ambíguas (tais como “há umas poucas pessoas
em alguma parte da América” ) podem corresponder aos fatos;
e, vice-versa, cada proposição ou teoria geral que corresponde
aos fatos corresponde a muitos fatos, de modo que não há uma
relação de um-a-um.
Além do mais, uma sentença que não corresponde aos fatos
pode ser inteiramente sem ambiguidade. Um assassino pode
dizer sem ser ambíguo: “Eu não o matei”. Não há ambigüi-
dade nesta asserção, mas ela não corresponde aos fatos. Clara­
mente, a tentativa de Schlik para explicar a correspondência
nega fogo. Outra tentativa ainda pior é a de Wittgenstein. (12)
Sugeriu Wittgenstein que uma proposição é um retrato da reali­
dade e que a correspondência é uma relação muitíssimo seme­
lhante à que se mantém entre o sulco num disco gramofônico
e os sons que ele representa: uma espécie de relação projetiva
entre fatos e sentenças. A insustentabilidade desta opinião pode
ser mostrada facilmente. Lembre-se o famoso caso de Livings-
tone, quando apresentado por um intérprete a um rei negro,
a quem perguntou: “Como vai?” O rei negro respondeu com
uma palavra e o intérprete começou a falar e falar e falar e
falar, traduzindo a palavra para Livingstone em forma de uma
longa narrativa das aflições do rei. Então Livingstone pergun­
tou se o rei estava precisando de assistência médica, e aí o rei
começou a falar e a falar e a falar e a falar. E o intérprete tra­
duziu-o com uma palavra: “Não”.
Sem dúvida, este caso é inventado. Mas é bem inventado; e
ilustra a fraqueza da teoria de projeção da linguagem, especial­
mente como uma teoria da correspondência entre uma sentença
e um fato.
Isto, porém, não é tudo. O assunto é ainda mais sério; a
saber, Wittgenstein, após haver formulado esta teoria, disse que
é impossível discutir a relação da linguagem com a realidade,
ou discutir a linguagem de qualquer modo. (Porque a lingua­
287
gem não pode ser discutida por meio da linguagem.) Este é um
campo em que as palavras nos falham. “Mostra-se por si” é
a expressão favorita dele para indicar o malogro das palavras.
Qualquer tentativa de ir mais fundo na relação entre a lingua­
gem e a realidade, ou de discutir a linguagem mais profunda­
mente, ou sentenças mais profundamente, é, em conseqüência,
fadada a não ter significação. E embora ele diga no Prefácio de
seu livro que “a verdade dos pensamentos aqui apresentados
parece-me inexpugnável e definitiva”, termina dizendo que
“quem quer que me compreenda acabará reconhecendo-as (as
proposições do Tractatus) como absurdas”. (Porque falar a
respeito da linguagem é sem sentido.) Sem dúvida isto se refere,
à parte outras coisas, à sua teoria da projeção. Sua observação
de que seus leitores verão que o que ele diz é sem sentido con­
firma assim o que os adversários da teoria da correspondência
sempre disseram da teoria da correspondência, a saber, que não
tem sentido falar acerca da correspondência entre uma senten­
ça e um fato.
Retornamos assim à questão real. É esta: há ou não há
uma teoria de correspondência sustentável? Podemos ou não
podemos falar significativamente da correspondência entre uma
sentença e um fato?
Ora, minha asserção é a de que Tarski reabilitou a teoria
da correspondência. Isto, penso, é uma grande realização, e uma
grande realização filosófica. Digo isto porque tem sido negado
por muitos filósofos (por exemplo, por Max Black) que haja
algo de filosoficamente importante na realização de Tarski.
A chave para a reabilitação da teoria da correspondência é
uma observação muito simples e óbvia feita por Tarski. Isto é,
se quero falar acerca de uma correspondência entre uma sen­
tença S e um fato F, então tenho de fazê-lo numa linguagem em
que possa falar a respeito de ambos: sentenças tais como S e
fatos tais como F. Isto parece tremendamente trivial: mas é,
não obstante, decisivo. Significa que a linguagem em que fa­
lamos para explicar a correspondência deve possuir os meios
necessários para referir-se às sentenças e para descrever fatos.
Se tenho uma linguagem que disponha de ambos esses meios,
de modo que possa referir-se às sentenças e descrever os fatos,
então nesta linguagem — a we/alinguagem — posso falar acerca
da correspondência entre sentenças e fatos sem qualquer difi­
culdade, como veremos.
Uma metalinguagem é uma linguagem em que falamos a
respeito de uma outra linguagem. Por exemplo, uma gramática
da língua alemã escrita em inglês usa o inglês como metalin­
guagem a fim de falar a respeito do alemão. A linguagem a

288
$

respeito da qual falamos na metciinguagem (neste caso, o inglês)


costuma ser chamada “linguagem objeto” (neste caso, o ale­
mão). A coisa característica a respeito de uma metalinguagem
é que ela contém nomes (metalingüísticos) de palavras e de sen­
tenças da linguagem objeto, e também predicados (metalingüís­
ticos), tais como “substantivo (da linguagem objeto)” ou “verbo
(da linguagem objeto)” ou “sentença (da linguagem objeto)”.
Se uma metalinguagem for bastante para nosso propósito, deve
também, como Tarski aponta, conter os meios usuais necessá­
rios para falar a respeito pelo menos de todos aqueles fatos
acerca dos quais a linguagem objeto pode falar.
Tudo isto ocorre se usamos o inglês como nossa metalin­
guagem para falar acerca do alemão (como a linguagem objeto
sob investigação).
Por exemplo, seremos capazes de dizer na metalinguagem
inglesa coisas tais como:
As palavras alemãs “Das Gras ist griin” formam uma sen­
tença da linguagem alemã.
Por outro lado, seremos capazes de descrever em nossa
metalinguagem (inglês) o fato que a sentença alemã “Das Gras
ist grün” descreve. Podemos descrever este fato em inglês di­
zendo simplesmente grass is green (a relva é verde).
Podemos fazer agora uma asserção na metalinguagem
acerca da correspondência de uma sentença da linguagem objeto
com os fatos, assim: Podemos fazer a asserção: A sentença
alemã “Das Gras ist grün” corresponde aos fatos se, e apenas
se, a relva é verde”, (ou “ . . . só se é um fato que a relva ê
verde.” )
Isto é muito trivial. É importante, porém, verificar o se­
guinte: em nossa asserção, as palavras “Das Gras ist grün”,
postas entre aspas, funcionam como um nome metalingüístico
(isto é, inglês) de uma sentença alemã; por outro lado, as pa­
lavras inglesas grass is green (a relva é verde) ocorrem em
nossa asserção sem quaisquer sinais de citação: não funcionam
como um nome de uma sentença, mas simplesmente como a
descrição de um fato (ou fato alegado).
Isto torna possível à nossa asserção expressar uma relação
entre uma sentença (alemã) e um fato. (O fato não é alemão
nem inglês, embora seja, sem dúvida, descrito ou falado em
nossa metalinguagem, que é o inglês: o fato é não-lingüístico,
é um fato do mundo real, embora sem dúvida precisemos de
uma linguagem se quisermos falar a respeito dele.) E o que a
nossa asserção metalingüística afirma é que uma certa senten­
ça (alemã) corresponde a um certo fato (um fato não-lingüís-

289
tico, um fato do mundo real) sob condições que são precisa­
mente expostas.
Podemos naturalmente substituir a linguagem objeto alemã
por qualquer outra — inclusive o inglês. Assim, podemos fazer
a asserção metalingüística:
A sentença inglesa “Grass is green" corresponde aos jatos
se, e apenas se, a relva é verde.

Isto parece ainda mais trivial. Mas dificilmente pode ser


negado; nem pode ser negado que expressa as condições sob as
quais uma sentença corresponde aos fatos.
Falando de modo geral, seja “S” um nome (metalingüís-
tico) de uma sentença da linguagem objeto e seja a abre­
viatura de uma expressão da metalinguagem que descreve o
(suposto) fato F que S descreve. Então podemos fazer a se­
guinte asserção metalingüística:
Uma sentença S da linguagem objeto corresponde aos fatos
se, e apenas se, /. (Ou: . . . se é um fato que /.)
Note-se que, enquanto “S” é aqui um nome metalingüís-
tico de uma sentença, "f” não é um nome, mas uma abrevia­
tura de uma expressão da metalinguagem que descreve um certo
fato (o fato que podemos chamar “F”).
Podemos agora dizer que o que Tarski fez foi descobrir
que, a fim de falar acerca da correspondência entre uma sen­
tença S e um fato F, precisamos de uma linguagem (uma meta­
linguagem) em que possamos falar acerca de sentença S e expor
o fato F. (Falamos acerca da primeira usando o nome “S”, e
da última usando a expressão metalingüística que expõe ou
descreve F.)

A importância desta descoberta é que ela apaga toda a


dúvida a respeito da significabilidade de falar acerca da corres­
pondência de uma sentença com um fato, ou fatos.
Uma vez feito isto, podemos substituir as palavras “corres­
ponde aos fatos” por “é verdadeira”.
Tarski, além disto, apresentou um método de dar uma
definição da verdade (no sentido da teoria de correspondência)
para qualquer sistema formalizado coerente. Mas esta não é,
penso, sua principal realização. Sua principal realização é a rea­
bilitação da fala acerca da correspondeicia (e da verdade). Inci­
dentemente, ele mostrou sob que circunstâncias tal fala pode
levar a paradoxos e como podemos evitar esses paradoxos: e
também mostrou como, na conversa comum acerca da verdade,
podemos evitar, e evitamos, paradoxos.

290
«

Uma vez firmado que podemos usar a “verdade” no sen­


tido da correspondência das sentenças com os fatos, nada há
realmente de importância a ser acrescentado acerca da palavra
“verdade”. Não há dúvida de que a correspondência com os
fatos é o que usualmente chamamos “verdade”; e de que, na
linguagem comum, é à correspondência que chamamos “ver­
dade”, e não à coerência ou à utilidade pragmática. Um juiz
que adverte uma testemunha a falar a verdade e nada mais do
que a verdade não adverte a testemunha a falar o que pense
ser útil para si mesma ou para qualquer outra pessoa. O juiz
adverte a testemunha a falar a verdade e nada mais do que a
verdade, mas não diz: “Tudo o que lhe exigimos é que não
se envolva em contradições” ; coisa que diria se acreditasse na
teoria da coerência. Mas não é isto o que o juiz exige da tes­
temunha.
Em outras palavras, o sentido comum da “verdade”, como
é usado nos tribunais de justiça, é sem dúvida a correspondên­
cia. Mas meu ponto principal é que isto pode ser considerado
como uma reflexão posterior, e uma reflexão posterior impor­
tante. Pois, se alguém quiser dizer que “Não, na linguagem
comum a “verdade” é usada em sentido diferente”, não alter-
carei com ele. Sugerirei que esqueçamos tudo a respeito de ter­
minologia: estarei disposto a usar a terminologia de meu opo­
sitor, indicando, porém, que temos pelo menos aqueles três sig­
nificados à nossa disposição: é a única coisa a respeito da qual
eu estarei disposto a altercar; mas recusarei disputar acerca de
palavras.
Eu apontaria, entretanto, que a teoria de correspondência
da verdade é uma teoria realista; isto é, faz a distinção, que é
uma distinção realista, entre uma teoria e os fatos que a teoria
descreve; e torna possível dizer que uma teoria é verdadeira, ou
falsa, ou que ela corresponde aos fatos, relacionando assim a
teoria com os fatos. Permite-nos falar de uma realidade dife­
rente da teoria. Esta é a coisa principal; é o ponto principal
para o realista. O realista quer ter tanto uma teoria quanto a
realidade dos fatos (não a chameis “realidade”, se não gostar­
des; chamai-a simplesmente “os fatos” ), que são diferentes de
sua teoria acerca desses fatos, e que ele pode de um modo ou
outro comparar com os fatos, a fim de achar se ela corresponde
ou não a eles. Sem dúvida, a comparação é sempre extrema­
mente difícil.
Uma última palavra a respeito da teoria de Tarski. Seu
inteiro propósito é muitas vezes mal interpretado: admite-se
erradamente que ela pretenda fornecer um critério de verdade.
Pois a coerência o pretendia, e igualmente a utilidade pragmá­
tica; elas fortaleciam a concepção tradicional de que qualquer

291
teoria séria da verdade deveria apresentar-nos um método de
decidir se uma dada sentença é ou não verdadeira.
Tarski tem provado muitas coisas com sua definição da
verdade. Entre outras coisas, provou que, numa linguagem sufi­
cientemente forte (e em toda linguagem em que possamos for­
mular teorias matemáticas ou físicas) não pode haver critério
de verdade; isto é, nenhum critério de correspondência: a ques­
tão de ser verdadeira uma proposição não é, em geral, decisível
para as linguagens para as quais podemos formar o conceito de
verdade. Assim, o conceito de verdade desempenha principal­
mente o papel de uma idéia reguladora. Ajuda-nos em nossa
procura da verdade sabermos que há algo como a verdade ou
a correspondência. Não nos dá meios de encontrar a verdade,
ou de estar seguros de que a encontramos, mesmo que a tenha­
mos encontrado. Assim, não há critério de verdade e não de­
vemos pedir um critério de verdade. Devemos contentar-nos
com o fato de que a idéia da verdade como correspondência com
os fatos foi reabilitada. Isto foi feito por Tarski; e penso que
ele, com isto, prestou imenso serviço ao ponto de vista realista.
Embora não tenhamos critério de verdade, nem meios de
estar sequer inteiramente seguros da falsidade de uma teoria, é
mais fácil descobrir que uma teoria é falsa do que descobrir que
é verdadeira (como expliquei detalhadamente em outra parte).
Temos mesmo boas razões para pensar que, na maior parte,
nossas teorias — mesmo nossas melhores teorias — são, estri­
tamente falando, falsas; pois supersimplificam ou idealizam os
fatos. Contudo, uma conjectura falsa pode estar mais perto ou
menos perto da verdade. Chegamos assim à idéia da proximi­
dade da verdade, ou de uma aproximação melhor ou pior da
verdade; isto é, à idéia da verossimilitude. Tenho tentado mos­
trar que esta idéia pode ser reabilitada de modo similar à rea­
bilitação, por Tarski, da idéia da verdade como correspondên­
cia com os fatos. (13)
A fim de fazê-lo, usei principalmente as duas idéias tarskia-
nas aqui mencionadas. Uma é a idéia da verdade. A outra é a
idéia da conseqüência lógica; ou, mais precisamente, do con­
junto de conseqüências lógicas de uma conjectura, ou o con­
teúdo de uma conjectura.
Incorporando na lógica a idéia da verossimilitude ou apro­
ximação da verdade, tornamos a lógica até mesmo mais “rea­
lista”. Pois ela pode ser agora usada para falar a respeito do
modo pelo qual uma teoria corresponde aos fatos melhor do
que outra — aos fatos do mundo real.
Sumarizando: como realista, encaro a lógica como a sis-
tematização da crítica (e não da prova) em nossa procura de

292
I

teorias altamente informativas e verdadeiras — pelo menos, de


novas teorias que contenham mais informação e melhor corres­
pondam aos fatos do que as nossas velhas teorias. E encaro a
crítica, por sua vez, como nosso instrumento principal para
promover o crescimento de nosso conhecimento a respeito dc
mundo dos fatos.
(Baseado no Discurso de Abertura do Primeiro
Colóquio Internacional realizado na Universidade de
Denver, 16-20 de maio de 1966. Publicado primei­
ramente em Physics, Logic and History, W. Yourgrau
e A. D. Breck (eds.), Plenum Press, 1970, pgs.
1-30.)

293
9 — COMENTÁRIOS FILOSÓFICOS
SOBRE A TEORIA DA VERDADE,
DE TARSKI

I
Nossa principal preocupação em ciência e em filosofia é,
ou deveria ser, a procura da verdade, por meio de conjecturas
ousadas e pela busca crítica do que é falso em nossas várias
teorias concorrentes.!1)
Era esta a minha opinião há trinta e sete anos, em junho
de 1934, quando encontrei pela primeira vez Alfred Tarski,
numa conferência em Praga, organizada pelo Círculo de Viena.
Devo acentuar, contudo, que naqueles dias, antes de ter apren­
dido de Tarski a respeito de sua teoria da verdade, minha
consciência intelectual achava-se longe de estar clara a. respeito
da admissão de que nossa preocupação principal era a búsca
da verdade. Em meu livro Logik der Forschung (1934), cujas
provas de página tinha comigo em Praga e mostrei a Tarski
(mas duvido de que ele estivesse interessado), eu havia es­
crito: “a luta pelo conhecimento e a procura da verdade s ã o .. .
os motivos mais fortes da descoberta científiça”'.(2) Mas eu
estava inquieto a respeito da noção de verdade; e há uma secção
inteira naquele livro em que tentei defender a noção da verdade
como de senso comum e inofensiva, dizendo que, se quiséssemos,
poderiamos evitar seu uso na metodologia da ciência, falando
de dedutibilidade e semelhantes relações lógicas, em substi­
tuição.!3)
A razão de minha inquietação com referência à noção de
verdade era, sem dúvida, ter sido essa noção, por algum tempo,
atacada por alguns filósofos, e com bons argumentos. Não era
tanto a antinomia do mentiroso que me assustava, mas a difi­
culdade de explicar a teoria da correspondência: que poderia
ser a correspondência de uma asserção com os fatos? Além
disso, havia uma opinião que, embora decididamente eu nunca
a houvesse sustentado, me sentia incapaz de combater efetiva­
mente. A opinião a que estou aludindo é a de que, se quiser­

294
*

mos falar acerca da verdade, devemos ser capazes de dar um


critério de verdade. Eu sustentava que, não obstante, era legí­
timo falar da verdade. Mas era incapaz de defender a minha
opinião de que a ausência de um critério de verdade não podia
ser usada como argumento contra a legitimidade lógica da noção
de verdade.
Alegra-me nunca ter dado expressão escrita a esta inquie­
tação particular, que era extremamente injustificada, como todos
aqui hoje estarão cientes.(4) Como agora sabemos, a verdade
não é de modo algum a única noção cuja importância e legiti­
midade ficam ilesas ante o fato de não existir qualquer critério
geral de sua aplicabilidade em casos específicos. Exemplo fa­
moso de tipo similar é a noção da dedutibilidade: sabemos que
para muitas teorias o problema da decisão para a “teoremidade”
é insolúvel; e a menos que nos limitemos a uma teoria decisível,
uma teoria para a qual o problema da decisão possa ser positi­
vamente resolvido, não existe critério ou procedimento geral
que nos permita decidir, em cada caso particular, se ou não um
alegado teorema da teoria é um teorema válido; isto é, se ele
é ou não dedutível com os meios lógicos proporcionados pela
teoria. (Este é o sentido em que uso os termos “teorema vá­
lido”, “derivação válida”, etc.)
Assim, não temos um critério geral de validade ou de
“teoremidade” para teorias indecisíveis. Não obstante, a noção
de validez ou de “teoremidade” é perfeitamente clara, mesmo
para teorias indecisíveis — um teorema alegado é efetivamente
válido se, e apenas se, existir uma derivação válida dele, quer
ou não a derivação tenha sido ou venha a ser descoberta por
nós. A ausência de um critério não contribui de modo algum
para a vaguidão do termo “teorema válido”. Antes, é neste caso
uma conseqüência de nossa incapacidade para aferir através da
infinidade de todas as derivações válidas, a fim de verificar se
ou não qualquer delas acaba com o alegado teorema. Podemos
ser feíizes e descobrir uma prova ou uma reprovação do teo­
rema alegado; mas, se não formos tão felizes, então, a menos
que a teoria permita um processo de decisão, não temos quais­
quer meios de descobrir se a fórmula em questão é ou não um
teorema.
Hoje, tudo isto é quase por demais trivial para ser mencio­
nado. Contudo, há ainda certa quantidade de filósofos que
crêem que qualquer noção, por exemplo a noção de verdade,
só é logicamente legítima se existir um critério que nos capa­
cite a decidir se um objeto cai ou não sob essa noção. Assim,
há um artigo(B) no volume 3 da Encyclopedia of Philosopby de
1967 em que minha opinião de que não há critério geral de ver­
dade para teorias científicas é sumarizada numa sentença brusca

295
mas inteiramente enganosa, atribuindo-me a opinião de que “a
própria verdade é somente uma ilusão”. No volume 2 da mesma
Enciclopédia é-nos dito que está implícito nos últimos escritos
de Wittgenstein “que um conceito é vazio se não houver cri­
tério para sua aplicação”. (6)
O termo “positivismo” tem muitos significados, mas esta
tese (wittgensteiniana) de que “um conceito é vazio se não
houver critério para sua aplicação” parece-me expressar o pró­
prio âmago das tendências positivistas. (A idéia é muito pró­
xima de Hume.) Se esta interpretação do positivismo é aceita,
então o positivismo é refutado pelo desenvolvimento moderno
da lógica, e especialmente pela teoria da verdade, de Tarski,
que contém o teorema: para linguagem suficientemente ricas,
não pode haver critério geral de verdade.
Este teorema é, sem dúvida, do maior interesse se nos lem­
brarmos do clássico conflito entre os estóicos (e mais tarde os
cartesianos) de um lado e os céticos do outro. Aqui temos um
dos raros exemplos em que um conflito filosófico clássico pode
ser considerado resolvido por um teorema pertencente à lógica
ou à metalógica. Mas não se pode dizer que o exemplo seja vas­
tamente conhecido ou apreciado entre os filósofos.
Contudo, não é minha intenção, aqui, entrar numa polê­
mica com aqueles filósofos que negam que a teoria de Tarski
sobre a verdade tenha uma significação filosófica. Em vez disso,
quero recordar minha intensa alegria e alívio quando aprendi,
em 1935, que o que se segue eram conseqüências da teoria
tarskiana da verdade:
( 1 ) que este conceito era definível em termos lógicos que
ninguém havia questionado e, portanto, era' logicamente legí­
timo;
(2 ) que ele era aplicável a qualquer asserção (de qualquer
linguagem não-universalista) formulada (fechada) não ambi­
guamente, contanto que não fosse aplicável à sua negação e por­
tanto obviamente não fosse vazio, apesar do fato de que
( 3) não estivesse ligado a qualquer critério geral, embora
cada sentença derivável de uma sentença verdadeira ou de uma
teoria verdadeira fosse, demonstravelmente, verdadeira;
(4) que a classe de sentenças verdadeiras fosse um sis­
tema dedutivo e
(5) que fosse um sistema dedutivo índecisível, desde que
a linguagem em consideração fosse bastante rica. (Em conexão
com este resultado, Tarski referiu-se a Gõdel.)

296
0

Como antes mencionei, encontrei Tarski pela primeira vez


em julho de 1934 em Praga. Foi nos princípios de 1935 que
voltei a encontrá-lo em Viena, no Colóquio de Karl Mengers,
de que Tarski e Gõdel eram membros e no qual encontrei gran­
des homens do porte de Skolem e Abrabam Wald. Foi naqueles
dias que pedi a Tarski para me explicar a sua teoria da ver­
dade, e ele o fez numa palestra de talvez vinte minutos, num
banco (inesquecível banco) do Volksgarten em Viena. Deixou-
-me também ver a seqüência de provas de página da tradução
alemã de seu grande ensaio sobre o conceito da verdade, que
acabavam de ser-lhe enviadas pelo editor de Studia Philoso-
phica. Nenhuma palavra pode descrever quanto aprendi com
tudo isto e nenhuma palavra pode manifestar minha gratidão
por isto. Embora Tarski fosse apenas um pouco mais idoso do
que eu e embora, naqueles dias, estivessemos em termos de con­
siderável intimidade, eu o encarava como o homem a quem podia
verdadeiramente considerar meu mestre em filosofia. Nunca
aprendi tanto de ninguém mais.
Não obstante, há pontos periféricos em que posso, talvez,
discordar dele. Sempre fui um filósofo de senso comum e um
realista de senso comum.(7) Minha atitude era a de ser de
senso comum sustentar que o senso comum estava muitas vezes
errado — talvez mais vezes do que certo; mas que era claro que,
em filosofia, temos de partir do senso comum, ainda que só
para descobrir, pela crítica, onde ele estava errado. Eu estava
interessado no mundo real, no cosmos, e me opunha integral­
mente a qualquer idealismo, positivismo ou mesmo neutralismo
em filosofia. Se não houvesse um mundo real, tão rico, ou
mesmo muito mais rico, quanto o mundo que conhecemos tão
superficialmente de nossa vida diária, e se o estudo desse mundo
não fosse a tarefa principal da filosofia, então eu não estaria
interessado em filosofia. Nunca verifiquei precisamente qual era
a atitude de Tarski para com o realismo. Pareceu-me ele impres­
sionado com o “reísmo” de Kotarbinski, mas também com o
positivismo de Viena; e acentuou a neutralidade de seu conceito
de verdade.
Sendo eu um realista de senso comum crítico e consciente
do fato de sustentar, portanto, uma teoria “metafísica”,(8) in­
teressava-me grandemente o que me parecia um aspecto rea­
lista da teoria da verdade de Tarski, aspecto cuja mera exis­
tência, suspeito, ele pode negar. (®)
A teoria de Tarski, como todos sabem e como ele acentuou
primeiramente, é uma reabilitação e uma elaboração da teoria
clássica de que a verdade é a correspondência com os fatos; e
isto, para mim, parece apoiar o realismo metafísico. A teoria
de Tarski é. ao mesmo tempo, também uma reabilitação e elabo­
297
ração de algumas das críticas clássicas desta teoria da corres­
pondência, pois indica até que grau estavam certos aqueles que
suspeitavam ser paradoxal a teoria da correspondência. Esta
última parte é resolvida, essencialmente, pela doutrina de Tarski
de que a semântica (La) de uma linguagem objeto (Lo) —
isto é, a metalinguagem que contém o conceito de que o “ver­
dadeiro” em L0 é um conceito definível — deve ser essencial­
mente mais rica (e de ordem mais alta) do que a linguagem
objeto (L0).
A linguagem objeto Lo pode conter, como sabemos, sua
própria sintaxe e, mais especialmente, nomes descritivos de
todas as suas próprias expressões. Mas L0 não pode, sem risco
de antinomia, conter especificamente termos semânticos como
denotação, satisfação ou verdade. Isto é, noções que relacionam
os nomes das expressões de L0 com os fatos ou objetos a que
essas expressões se referem.
Tudo isto me deu material para pensamentos que se desen­
volveram durante muitos anos. Comunicar-vos-ei em suma
alguns desses pensamentos.

II
Se a verdade, como sugere a teoria de Tarski, é a corres­
pondência com os fatos, então, por um momento, abandonemos
por completo a palavra “verdade” e, em vez dela, falemos so­
mente da “correspondência das asserções com os fatos que
descrevem”.
Foi, penso, a impossibilidade aparente de descobrir ou ex­
plicar esta correspondência o que tornou tão suspeitas todas as
teorias de correspondência da verdade pre-tarskianas; suspei­
tas mesmo para pessoas como eu, que davam valor à teoria da
correspondência simplesmente por causa de seu caráter realista
e de senso comum. (10)
Sejamos agora ousados e levemos a sério haver asserções
que correspondem aos fatos. Qualquer teoria que lide com esta
situação deve ser capaz de falar ( 1 ) das asserções de alguma
linguagem, que chamamos a linguagem sob observação ou a
linguagem objeto, (11) e (2 ) de fatos e de pretendidos fatos.
(1) A fim de falar de asserções, devemos ter a nosso dispor
nomes de asserções, por exemplo, nomes de citação ou nomes
descritivos de asserção. Isto significa que qualquer teoria de
correspondência deve ser formulada em metalinguagem; isto é,
uma linguagem em que se possa discutir, ou falar sobre, as
expressões de uma linguagem-objeto sob investigação.
298
t

(2) A fim de falar acerca de qualquer relação entre as


asserções e os fatos, devemos ter a nosso dispor descrições dos
fatos; isto é, devemos ser capazes de descrever, em nossa meta­
linguagem, todos aqueles fatos que podemos descrever na lin­
guagem objeto. Assim, a metalinguagem deve possuir traduções
das asserções da linguagem objeto, ou deve conter a linguagem
objeto como parte de si mesma (método que evita o problema
desagradável da existência de traduções fiéis).

Assim vemos que qualquer teoria que lide com a corres­


pondência entre asserções e fatos e, portanto, com alguma re­
lação entre asserções e fatos, deve ser formulada em metalin­
guagem que, além das usuais palavras lógicas, tenha a seu
dispor três tipos de expressão:
( 1 ) Nomes de asserções; isto é, das expressões linguís­
ticas de uma linguagem objeto; eles fazem parte da “morfologia”
ou da “sintaxe” dessa linguagem objeto.
(2) Asserções descrevendo os fatos (inclusive os não-
-fatos) sob discussão (nessa linguagem objeto; isto é, tradu­
ções da linguagem objeto para a metalinguagem. (A fim de
evitar as ciladas de tradução, a linguagem objeto pode ser tor­
nada parte da metalinguagem, como já foi sugerido.)
(3) Além desses dois tipos fundamentais de expressão há
um terceiro tipo: termos denotando predicados desses dois
tipos fundamentais de expressão e relações entre ambos; por
exemplo, predicados tais como "X corresponde aos fatos” ou
relações tais como “X corresponde aos fatos se, e apenas se,
y”. (Este último tipo de termo é semântico e de ordem mais
alta do que a linguagem-objeto a que se refere).

Estes são os três requisitos mínimos quase óbvios para qual­


quer linguagem em que possamos formular uma teoria de corres­
pondência.
Uma linguagem que satisfaça a esses três requisitos míni­
mos foi chamada por Tarski “metalinguagem semântica”.
Vejo a grandeza e a ousadia da realização de Tarski no
fato de haver ele descoberto esses requisitos mínimos e também
de ter descoberto que os predicados ou relações mencionados
em (3), que relacionam expressões ao mundo dos fatos, iam
essencialmente além dos meios à nossa disposição na linguagem
objeto. (12)
É claro que, uma vez tendo a nosso dispor as três cate­
gorias de expressões, podemos, na metalinguagem semântica,
fazer asserções tais como
299
P corresponde aos fatos se, e apenas se, p,
com o que admitimos que as maiusculas em grifo tais como “P”
são variáveis que representam os nomes metalingüísticos da­
quelas sentenças descritivas de fatos objetolingüísticos cujas
traduções metalingüísticas são representadas pelas minúsculas
grifadas correspondentes, como “p”.
Ensinando a teoria da verdade de Tarski, verifiquei que as
coisas ficavam mais fáceis para mim e, pelo menos, para alguns
de meus alunos se eu falasse deste modo a respeito de corres­
pondência com os jatos e não a respeito da verdade. Incidente­
mente, também achei que usar, entre nossos exemplos, asser­
ções falsas da linguagem-objeto tornava as coisas mais fáceis.
Tomemos o alemão como nossa linguagem-objeto e o inglês
como nossa metalinguagem e lembremo-nos de que a tradução
inglesa da senteça alemã, Der Mora besteht aus grünem Kãse”
é “The moon is made of green cheese” (A lua é feita de queijo
verde). Tomando essas sentenças falsas, podemos sem dúvida
construir a asserção semântica verdadeira:
“A asserção alemã “Der Mond besteht aus grünem Kase"
corresponde aos fatos se, e apenas se, a lua consiste de queijo
verde.”
O uso de asserções falsas da linguagem-objeto é, entretanto,
um ponto de muito menor importância. Por outro lado, falar
de correspondência com os fatos (em vez de verdade) parece
ser uma autêntica ajuda para alguns estudantes. Permite-lhes ver
mais claramente que a asserção que está tomando o lugar da
variável minúscula grifada “p” é, e por que deve ser, uma asser­
ção metalingüística de algum fato (ou pretendido fato); isto é,
uma descrição metalingüística de algum estado de coisas tam­
bém descrito na linguagem-objeto.

m
Há uma alegação de Tarski, no segundo parágrafo de seu
famoso ensaio sobre a verdade, ( 13) segundo a qual, ao definir
a verdade, ele não necessita de empregar quaisquer conceitos
que sejam semânticos (isto é, que relacionem expressões lin-
güísticas com as coisas expressas). Mas, visto como ele define
a “verdade” Com a ajuda do conceito de satisfação, e este últi­
mo conceito é claramente semântico (é assim arrolado pelo pró­
prio Tarski no primeiro parágrafo de seu ensaio XV, p. 401 de
Logic, Semantics, Metamathemathics), mesmo um leitor cuida­
doso pode ter desculpa se ficar um pouco perplexo. A solução
do enigma pode ser exposta assim: Cada linguagem suficiente­
mente rica, ao falar a respeito de algum assunto, pode (de
acordo com resultados encontrados independentemente por

300
i

Tarski e por Gõdel) conter sua própria “morfologia” ou “sin­


taxe”, ao passo que (como Tarski mostrou) nenhuma lingua­
gem coerente contém os meios de definir sua própria semântica.
Para sua definição, Tarski precisa, como vimos, de uma meta-
linguagem semântica que seja de ordem mais alta do que a
linguagem-objeto cuja semântica ela contém. Mas aqueles termos
que são termos semânticos com referência à linguagem objeto
podem, dentro da metalinguagem como tal, ter a mesma con­
dição dos outros termos morfológicos ou sintáticos dela. Assim,
a semântica de uma linguagem-objeto Lu pode fazer parte da
sintaxe da metalinguagem de ordem mais alta (digamos
L ): nenhum termo de caráter não-morfológico ou não-sin-
n -f-1
tático precisa entrar em L . Isto importa numa redução
da semântica de L n à sintaxe de Ln -f- 1
Este ponto é de interesse filosófico geral não só porque
termos semânticos foram encarados com suspeita, mas também
porque uma redução de termos de caráter suspeito a termos de
um tipo aceito é algo que merece nossa atenção. De qualquer
modo, a realização de Tarski reduzindo termos pertencentes à
semântica de L a termos não semânticos de L remove toda
n n + 1
base para suspeição.
Admiti que esta redução é importante porque é evento raro
em filosofia sermos capazes de introduzir uma categoria intei­
ramente nova (e suspeita) de termos com base em categorias
(insuspeitas) firmadas; é uma reabilitação, um ato de salvar a
honra de um termo suspeito.
Por outro lado, encaro as definições e as questões de redu-
tibilidade como não tendo particular importância filosofica­
mente. Se não podemos definir um termo, nada nos impede de
usá-lo como um termo indefinido; o uso de um termo indefi­
nido não só é legítimo como inevitável, pois cada termo definido
deve, em última instância, ser definido com a ajuda de alguns
termos indefinidos. (14) Em minha opinião, o que faz a obra
de Tarski filosoficamente tão importante não é sua bem suce­
dida descrição de um método para definir o “verdadeiro”, mas
sua reabilitação da teoria da correspondência da verdade, e a
prova de que não há dificuldade maior em nos emboscarmos
aqui, uma vez que tenhamos entendido a necessidade essen­
cial de uma metalinguagem semântica que seja mais rica do
que a linguagem-objeto e sua sintaxe. É bastante claro que, se
quisermos, podemos partir de primitivos termos semânticos
(como fez R. M. Martin) ( 1B) em vez de começar evitando-os
cuidadosamente. Realizaríamos essencialmente a mesma teoria
semântica da verdade ou da correspondência com os fatos. Mas

301
sem a teoria de Tarski, que propicia uma metalinguagem semân­
tica livre de quaisquer termos especificamente semânticos, a sus­
peita do filósofo quanto aos termos semânticos poderá não ser
sobrepujada.

IV
Como antes foi mencionado, sou um realista. Admito que
um idealismo tal como o de Kant pode ser defendido até onde
diz que todas as nossas teorias são de fabricação humana e que
tentamos impô-las ao mundo da Natureza. Sou,, porém, um
realista ao sustentar que a questão de serem nossas teorias de
fabricação humana verdadeiras ou não depende dos fatos reais;
fatos estes que, com pouquíssimas exceções, enfaticamente não
são de feitura humana. Nossas teorias de fabricação humana
podem colidir com aqueles fatos reais e assim, em nossa procura
da verdade, podemos ter de ajustar nossas teorias ou desistir
delas.
A teoria de Tarski permite-nos definir a verdade como cor­
respondência com os fatos; mas podemos usá-la também para
definir a realidade como aquilo a que correspondem asserções
verdadeiras. Por exemplo, podemos distinguir fatos reais, isto é,
fatos (alegados) que são reais, de fatos (alegados) que não são
reais (isto é, de não-fatos). Ou, para dizê-lo mais explicita­
mente, podemos dizer que um fato alegado, tal como o de que a
lua consiste de queijo verde, é um fato" real se, e apenas se, a
asserção que o descreve — neste caso, a asserção “A lua é feita
de queijo verde” — é verdadeira; de outro modo, o fato ale­
gado não é um fato real (ou, se preferirdes dizer assim, não é
em absoluto um fato).
E tal como Tarski nos permite substituir o termo “ver­
dade” por “o conjunto de asserções (ou sentenças) verdadeiras”,
assim podemos substituir o termo “realidade” por “o conjunto
de fatos reais”.
Sugiro, pois, que, se podemos definir o conceito de ver­
dade, também podemos definir o conceito de realidade. (Sem
dúvida, surgem problemas de ordem análogos aos problemas da
ordem de linguagens na obra de Tarski; ver especialmente seus
Pós-escrito, pgs. 268-77 de Logic, Semantics, Metamathema-
tics.) Isto não pretende sugerir que o termo “verdade”, nalgum
sentido ou noutro, seja mais básico do que o termo “realidade” ;
estou ansioso por rejeitar qualquer sugestão dessas, em vista
de seu sabor idealista. ( 16) Simplesmente quero dizer que, se é
possível definir a “verdade” como “correspondência com os
fatos”, ou, o que dá no mesmo, como “correspondência com a
realidade”, então é igualmente possível definir a “realidade”
302
í

como “correspondência com a verdade”. E visto como sou um


realista, gosto de poder reassegurar-me de que o conceito de
realidade não é “vazio” nem suspeito por qualquer outra razão;
não o é mais do que o conceito de verdade.

V
Entre aquelas teorias mais antigas de Tarski que são acces-
síveis a um filósofo sem complexidades como eu mesmo está
o seu Cálculo de Sistemas. Estava eu em Paris em 1935 quando,
se bem me lembro, Tarski completou seu ensaio sobre o Cálculo
de Sistemas.(1T) Tomei por ele o maior interesse.
Tenho tentado combinar alguns dos resultados mais óbvios
do ensaio de Tarski sobre a Verdade com seu ensaio sobre o
Cálculo de Sistemas. Simultaneamente obtivemos os seguintes
teoremas, muito triviais, em que se admite que as linguagens
faladas não são universalistas.
Teorema. O conjunto T de asserções verdadeiras de qual­
quer linguagem é um sistema dedutivo no sentido do Cálculo
de Sistemas de Tarski. É completo.( 18)
Como sistema dedutivo, T é uma classe de conseqüência;
isto é, é idêntico à classe Cn(T) de suas próprias conseqüências
lógicas (T=Cn(T)). É um sistema completo no sentido de que,
'se uma asserção não pertencente a T for acrescentada a T, a
classe resultante será incoerente.
Teorema. O conjunto de asserções verdadeiras de qualquer
linguagem suficientemente rica é um sistema dedutivo não axio-
matizável no sentido do Cálculo de Sistemas de Tarski.
Estes dois teoremas são muito triviais e, no que se vai
seguir, admitir-se-á que as linguagens em questão são suficien­
temente ricas para satisfazer ao segundo desses teoremas.
Introduzo agora um novo conceito: a noção do conteúdo
de verdade de uma asserção a.
Definição. O conjunto de todas as asserções verdadeiras
decorrentes de qualquer dada asserção a chama-se conteúdo de
verdade de a. É um sistema dedutivo.
Teorema. O conteúdo de verdade de qualquer asserção
verdadeira a é um sistema axiomatizável A T = A ; o conteúdo
de verdade de qualquer asserção falsa a é o sistema dedutivo
A a A, onde A é não-axiomatizável, contanto que a lin-
guagem-objeto em questão seja bastante rica.
Esta defiinção e este teorema podem ser generalizados: o
cálculo de sistemas dedutivos de Tarski pode ser encarado como
uma generalização do cálculo de asserções, desde que a cada
asserção (ou classe de asserções logicamente equivalentes) a,

303
corresponda a um sistema (finitamente) axiomatizável A, tal
que
A = Cn(A) = Cn( (a) );

e vice-versa: a cada sistema dedutivo axiomatizável A corres­


ponde a uma asserção (ou uma classe de asserções logicamente
equivalentes) a. Mas visto haver também sistemas dedutivos ou
classes de conseqüência que não são axiomatizáveis, de modo
que não há asserção ou classe finita de asserções cuja classe de
conseqüência eles sejam, a transição de asserções para classes
de conseqüência ou sistemas dedutivos, ou do cálculo de sen­
tenças para o Cálculo de Sistemas, pode ser descrita como uma
generalização.
Temos assim, mais geralmente, para cada classe de conse­
qüência ou sistema dedutivo A, um s.stema A sendo o con­
teúdo de verdade de A idêntico a A se, e apenas se, A consis­
tir somente de asserções verdadeiras, e que em qualquer caso
é um subsistema de A \ obviamente, é a classe de produto ou
o encontro dos conjuntos A e T.
Pode-se perguntar se temos, correspondendo ao conteúdo
de verdade A ^ de a ou de A também, algo a ser chamado o
conteúdo de falsidade A p de a ou de A. Uma sugestão óbvia
que se apresenta é definir a classe de todas as sentenças falsas
que pertencem ao sistema dedutivo A como o conteúdo de fal­
sidade de A. Contudo, esta sugestão não é satisfatória de todo
se usarmos (como sugiro) o termo “conteúdo” como um ter­
ceiro sinônimo de “sistema dedutivo” ou “classe de conseqüên­
cia”; pois esta classe, supondo-se que consista só de asserções
falsas, não é um sistema dedutivo: cada sistema dedutivo A
contém asserções verdadeiras — de fato, uma infinidade delas
— e assim a classe que só consiste das asserções falsas perten­
centes a A não pode ser um conteúdo.
A fim de introduzir a idéia do conteúdo de falsidade A
F
de uma asserção a ou de uma classe de conseqüência A, pode-se
retornar à idéia do conteúdo relativo de A, dado Br que pode
ser apresentado como uma generalização de um sistema dedu­
tivo tarskiano ou um conteúdo (absoluto), A = Cn(A). Expli­
carei esta idéia e, em vista de alguma possível crítica intuitiva,
apresentarei também a idéia de uma medida de conteúdo. No

304
ê

fim, apresentarei, com a ajuda da idéia das medidas de con­


teúdo de verdade e de conteúdo de falsidade, a idéia de apro­
ximação da verdade, ou verossimilitude.

VI
Tarski fala de sistemas dedutivos ou classes de consequên­
cias maiores e menores. De fato, o conjunto de sistemas dedu­
tivos (de alguma dada linguagem) é parcialmente ordenado
pela relação de inclusão, que coincide com a relação de deduti-
bilidade. A observação seguinte, feita por Tarski em seu ensaio
sobre o Cálculo de Sistemas, pode ser usada como uma chave
para a relativização de uma classe de conseqüência, ou con­
teúdo, ou sistema dedutivo: entre os sistemas dedutivos
existe um mínimo, isto é, um sistema que é um subsistema de
todos os outros sistemas dedutivos. É o sistema CnfO), o con­
junto de consequências do conjunto vazio. Este sistema, que
aqui, por brevidade, denotaremos por “L ”, pode ser interpre­
tado como o conjunto de todas as sentenças válidas logicamente
(ou, mais geralmente, como o conjunto de todas aquelas sen­
tenças que desde o início reconhecemos como verdadeiras
quando empreendemos a construção da teoria dedutiva que é o
objeto de nossa. . . investigação).” !1®)
Isto sugere que podemos usar outro sistema que não o sis­
tema zero L como “o conjunto de todas aquelas sentenças que
desde o início reconhecemos como verdadeiras quando empreen­
demos a construção. .. ”. Denotemos, como antes, pela variável
“A” o sistema dedutivo em cujo conteúdo estamos interessados,
e pela variável “B” “o conjunto de todas aquelas asserções que
desde o início reconhecemos como verdadeiras”. Então podemos
escrever
Cn(A, B)

como a relativização do Cn(A) de Tarski, que se torna um caso


especial quando B = L = CnfO):
CnfA) = CnfA, L).
Podemos escrever “A, B” como uma abreviatura de
“CnfA, B), tal como Tarski escreve “A ” por “Cn(A)”. O citado
trecho de Tarski sugere então o seguinte:
Definição: A, B = CnfA, B) = CnfA + B) — CnfB),
Isto leva obviamente ao seguinte:
Teorema: A = CnfA) = A ,L = CnfA, L) — CnfA + l) — CnfL)

305
Confinando-nos ao modo relativo de escrever, temos então
para o conteúdo de verdade
A = A t L = Cn((A. T) + L) — Cn(L)
e para o conteúdo de falsidade
A p = A, A t = Cn(A + A r) — Cn(Ar) = Cn(A) — Cn(AT)
que por sua vez toma o conteúdo de falsidade A p um con­
teúdo relativo, cuja extensão coincide (como originariamente
sugerido) com a classe de todas as asserções falsas de A.

VII
Contra a definição proposta do conteúdo de falsidade A
F
como o conteúdo relativo A, A ^ pode ser erguida a objeção
seguinte. Esta definição é apoiada intuitivamente por uma ci­
tação de Tarski na qual Tarski toma L como sendo o sistema
dedutivo mínimo, ou zero. Mas em nossa definição.
A = A, L = Cn(A + L) — Cn(L)
estamos tomando o termo zero demasiado literalmente: vemos
agora que L deveria ser tomado como um conjunto de medida
zero e não como um conjunto que, em vista de nossa expressão
"—Cn(L)” é literalmente vazio ou então não mais presente, de
acordo com a nossa definição, pois foi subtraido (de modo que
somente foram deixadas as asserções não-lógicas de A, o que
não era pretendido).
Quer levemos esta objeção a sério ou não, ela desaparece
em qualquer caso se decidirmos operar como uma medida de
conteúdo, ct(A) ou ct(A, B), em lugar do próprio conteúdo ou
classe de conseqüência Cn(A) ou Cn(A, B).
Em 1934, Tarski havia chamado a atenção da conferência
de Praga para uma axiomatização do cálculo da probabilidade
relativa de um sistema dedutivo A, dado um sistema dedutivo B,
devida a Stephan Mazurkiewicz,(20) que se baseava no Cálculo
de Sistemas de Tarski. Tal axiomatização pode ser considerada
como introduzindo uma função de medida dos sistemas dedu­
tivos ou conteúdos A , B, C ,. . ainda que esta função parti­
cular, a função de probabilidade p(A, B), aumente com o de-
306
»

créscimo do conteúdo relativo. Isto sugere a introdução de uma


medida de conteúdo por meio de uma definição tal como
Definição: ct(A, B) = 1 — p(A, B)
que aumenta e decresce com o crescente e o decrescente con­
teúdo relativo. (Outras definições são possíveis, sem dúvida,
mas esta parece a mais simples e a mais óbvia.) Obtemos si­
multaneamente
ct(L) = O
ct(Ar ) — 1 — p(A. T, L) = 1 — p(A. T)
ct(ATp ) = 1 — p(A, A r J
correspondendo a nossos resultados prévios.
Isto sugere que podemos introduzir a idéia da veracidade
ou verossimilitude de uma sentença a de modo tal que ela
aumente com seu conteúdo de verdade e decresça com seu
conteúdo de falsidade. Isto pode ser feito de diversos modos. (21)
O modo mais óbvio é tomar ct(A ) — ct(A ) como uma
T F
medida da verossimilitude de A. Entretanto, por razões que
não discutirei aqui, parece-me levemente preferível definir a
verossimilitude vs(A) por esta diferença multiplicada por algum
fator normalizador, preferivelmente o seguinte:
l/p ( A T, L) + p(A, A t ) = 1/(2 — ct(Ar ) — ct(AF)).

Deste modo obtemos o seguinte:


Definição:
vs(A) = (ct(AT) — ct(Ap))/(2 — ct(AT) — ct(AF)),
o que sem dúvida também pode ser escrito na notação — p:
vs(A) = (p(A, A t ) — p(AT, L))/(p(A, A t ) + p(Ar ) L)).
Isto leva a
— 1 ^ vs(A) + /,
e especialmente a
vs(L) = O,
isto é, medidas de verossimilitude não daquele tipo de aproxi­
mação da verdade que pode ser realizada não se dizendo nada
isto é medidas por falta de conteúdo ou probabilidade), mas
aproximação da “verdade inteira” através de um conteúdo de

307
verdade cada vez maior. A verossimilitude neste sentido, sugiro,
é um alvo mais adequado da ciência — especialmente das ciên­
cias naturais — do que a verdade, por duas razões. A primeira,
porque não pensamos que L represente o alvo da ciência, ainda
que L = L t - A segunda, porque, podemos preferir teorias que
pensamos falsas e outras teorias, mesmo verdadeiras tais como
L, se acharmos que seu conteúdo de verdade excede suficien­
temente seu conteúdo de falsidade.
Nestas últimas secções esbocei simplesmente um programa
de combinar a teoria da verdade de Tarski com o seu Cálculo de
Sistemas, de modo a obter um conceito de verossimilitude que
nos permita falar, sem receio de dizer disparates, de teorias que
são melhores ou piores aproximações da verdade. Não sugiro,
sem dúvida, que possa haver um critério para aplicabilidade
desta noção, assim como nenhum há para a noção da verdade.
Mas alguns de nós (por exemplo, o próprio Einstein) às vezes
gostam de dizer coisas tais como que temos razão em conjec-
turar que a teoria da gravidade de Einstein não é verdadeira,
mas é uma aproximação melhor da verdade do que a de Newton.
Ser capaz de dizer tais coisas com boa consciência parece-me
um desiderato importante da metodologia das ciências naturais.

(Baseado numa palestra feita num Simpósio em


Honra de Alfred Tarski, por ocasião de seu 70.°
aniversário, realizado na Universidade da Califór­
nia, de 23 a 30 de junho de 1971.)

308
ADENDO ao Capítulo 9

UMA NOTA SOBRE A DEFINIÇÃO


DE VERDADE, DE TARSKI

Em seu famoso ensaio sobre o Conceito da Verdade,!1)


Tarski descreve um método de definir a idéia da verdade, ou,
mais precisamente, a idéia de que “x é uma asserção verda­
deira (da linguagem L )”. O método é aplicado primeiramente
à linguagem do cálculo de classe, mas há um método que pode
ser aplicado muito geralmente a muitas linguagens (formaliza­
das) diferentes, inclusive linguagens que permitiríam a forma­
lização de algumas teorias empíricas. O que caracteriza seu
método é que a definição de “asserção verdadeira” se baseia
numa definição da relação de satisfação, ou, mais precisamente,
da frase “a seqüência infinita f satisfaz a função de asserção
X ”.(2) Esta relação de satisfação é de interesse por si mesma,
inteiramente à parte do fato de ser crucial para a definição da
verdade (e de que o passo da definição de satisfação para a de
verdade mal apresenta qualquer problema). O presente Adendo
refere-se ao problema de empregar, na definição de satisfação,
sequências finitas em vez de infinitas. Isto, acredito, é um desi-
dera todo ponto de vista de uma aplicação da teoria das ciên­
cias empíricas e também de um ponto de vista didático.
O próprio Tarski discute sucintamente dois métodos(3) que
empregam sequências finitas de extensão variável em vez de se-
qüências infinitas. Mas indica que esses métodos alternativos
têm desvantagens. O primeiro deles, aponta, leva a “complica­
ções consideráveis” (ou “antes sérias”) (ziemlich bedeutenden
Komplikationen) na definição de satisfação (Definição 22), en­
quanto o segundo tem a desvantagem de “uma certa artificia­
lidade” (eine gewisse Künstlichkeit) até onde leva a uma defi­
nição da verdade (Definição 23, p. 195) com a ajuda do con­
ceito de uma “seqüência vazia” ou uma “seqüência de extensão
zero”.(4) O que desejo indicar neste Adendo é que uma variação
relativamente pequena do processo de Tarski nos permite ope­
309
rar com sequências finitas sem ficar envolvidos nas complica­
ções ou artificialidades (por exemplo, seqüências vazias) que
Tarski tinha em mente. O método nos permite preservar o pro­
cedimento muito natural da condição (5) da Definição 22 (p.
193) de Tarski (e assim evitar o desvio de introduzir relações
— ou atributos — de um grau igual ao número das variáveis
livres da função de asserção sob consideração). Minha variante
do método de Tarski é leve; mas, em vista do fato de que Tarski
se refere a outras variantes que têm desvantagens consideráveis,
mas não a esta, pode valer a pena descrever o que talvez seja
uma pequena melhoria.(5)
A fim de fazê-lo, é útil mencionar, informalmente, pri­
meiro a idéia de um número de lugar n (ou o enésimo lugar)
de uma seqüência finita de coisas e depois a idéia da extensão
de uma seqüência finita f, isto é, o número de lugares de j
(em símbolos, Np(f)), que é idêntico a seu maior número de
lugar, e a idéia da comparação de seqüências finitas diferentes
com respeito à sua extensão. Mencionamos, por fim, que uma
coisa pode ocupar um certo lugar — o enésimo, digamos — na
seqüência e pode, portanto, ser descrita como o enésimo indi­
víduo, ou a enésima coisa, ou o enésimo membro da seqüência
em questão. Deve-se notar que uma e a mesma coisa pode
ocorrer em diferentes lugares de uma seqüência e também em
seqüências diferentes.(6)
Como tarski, uso “h ”, ■■■“f", “h ”, . . como
nomes das coisas que ocupam o primeiro, o segundo, o i.°, o
k.° . . . o enésimo lugar da seqüência f. Uso a mesma notação
que Tarski usa, com a exceção de que uso, por motivos tipo­
gráficos, “Pay” como o nome da universalização, ou quantifi­
cação universal, da expressão y referentemente à variável^. (7)
Admite-se que à definição de Tarski (11) ( 8) é acrescentada
uma definição de “vk ocorrente na função de asserção x” —
admissão que de modo algum vai além dos métodos de Tarski
e que de fato está implícita no próprio tratamento de Tarski.
Podemos passar agora a substituir a Definição 22, p. 193,
de Tarski por duas definições, a Definição preliminar 22a e
a Definição 22b, que corresponde à própria definição de Tarski.

Definição 22a
Uma seqüência finita de coisas f é adequada à função de
asserção x (ou de extensão suficiente com respeito a x) se e
apenas se para cada número natural n,
se v„ ocorrer em x, então o número de lugares de / é pelo
menos igual a n (isto é, Np(f) ^ n).

310
Definição 22b (®)
A seqüência f satisfaz a função de asserção r se e apenas
se / for uma seqüência finita de coisas e x for uma função de
asserção e
(1) / for adequada a x,
(2) x atender a uma das quatro condições seguintes:
(a) Existam números naturais i e k tais que x = e
fi c: /*.
(/?) Exista uma função de asserção y tal que x = y, e
f não satisfaça y.
(y) Existam duas funções de asserção y e z tais que
x = y + z e / satisfaça y ou z, ou ambas.
(8) Existam um número natural k e uma função de asser­
ção y tais que
(a) x = P^y,
(b) cada seqüência finita g cuja extensão for igual a f sa­
tisfaça y, contanto que g atenda às seguintes condições: para
cada número natural n, se n for um número de lugar de f e
n k, então gn = /„.
A Definição 23, p, 193, de Tarski pode ser agora substi­
tuída por uma das seguintes duas definições equivalentes:

Definição 23 +
x é uma asserção verdadeira (isto é, x e Wr) se e apenas
se (a) x for uma asserção (xmAs) e (b) cada seqüência finita de
coisas que for adequada a x satisfaça x.

Definição 23 + +
x é uma asserção verdadeira (isto é, x e Wr) se e apenas
se (a) x for uma asserção (x e As) e (b) exista pelo menos uma
seqüência finita de coisas que satisfaça x.
Pode-se notar que a formulação de 23 + + não precisa re­
ferir-se à adequação da seqüência. Pode-se notar ainda que em
23+ (que corresponde exatamente à definição de Tarski, mas
não em 23 + + , a condição (a) pode ser substituída por “x é uma
função de asserção”, realizando assim uma certa generalização
por compreender funções de asserção com variáveis livres, por
exemplo a função u)(, isto é as funções de asserção universal­
mente válidas (allgemeingiUtige), “corretas em cada domínio
individual”. ( u )

3U
De modo análogo, 23 + +, se estendida às funções, leva à
noção de uma função de asserção capaz de ser satisfeita (er-
füllbare).
Concluirei dizendo que, em sua aplicação a uma teoria em­
pírica (pelo menos parcialmente formalizada) e especialmente
a funções de asserção não quantificadas de uma tal teoria, a de­
finição de preenchimento ou satisfação, isto é, a Definição 22b,
parece ser perfeitamente “natural” de um ponto de vista intui­
tivo, principalmente devido a evitar seqüências infinitas. ( 12)

(Publicado primeiramente em Mind, 64, N. S.,


1955. Fora de poucas observações acrescentadas,
de alguns grifos novos e de algumas correções esti­
lísticas, fiz apenas as seguintes mudanças: substituo
agora, acompanhando a tradução de 1956 por Wood-
ger, “preencher” e “preenchimento” etc. por “satis­
fazer” e “satisfação”; em conseqüência, na Defini­
ção 22b, mudei duas vezes meu antigo “satisfaz” por
“atende”. Mudei as últimas palavras do texto do
Adendo de “uma seqüência infinita” para “seqüên­
cias infinitas”, e inseri números de páginas e outras
referências à tradução de Woodger. No mais, deixei
o Adendo tal como foi primeiramente publicado.)

312
ê

APÊNDICE

O BALDE E O HOLOFOTE:
DUAS TEORIAS DO CONHECIMENTO

0 objetivo deste ensaio é criticar uma concepção vasta­


mente mantida a respeito dos alvos e dos métodos das ciências
naturais e apresentar uma concepção alternativa.

1
Começarei com uma breve exposição da concepção que
me proponho examinar e que chamarei “teoria do balde da ciên­
cia” (ou “teoria do balde mental”). O ponto de partida desta
teoria é a doutrina persuasiva de que, antes de podermos conhe­
cer ou dizer qualquer coisa acerca do mundo, devemos pri­
meiro ter tido percepções — experiências de sentidos. Supõe-se
decorrer desta doutrina que o nosso conhecimento, a nossa ex­
periência, consiste de percepções acumuladas (empirismo in­
gênuo) ou então de percepções assimiladas, separadas e classi­
ficadas (concepção mantida, por Bacon e, de maneira mais ra­
dical, por Kant).
Os atomistas gregos tinha uma noção um tanto primi­
tiva deste processo. Admitiam que átomos se desprendiam dos
objetos que percebemos e penetravam em nossos órgãos dos
sentidos, onde se tornavam percepções; e com eles, no decurso
do tempo, se montava nosso conhecimento (como um quebra-
cabeças de armar que se montasse a si mesmo). De acordo
com essa concepção,. assim, nossa mente se assemelha a uma
vasilha — uma espécie de balde — em que percepções e conhç-
cimento se acumulam. (Bacon fala de percepções como “uvas,
maduras e da estação”, que têm de ser juntadas, paciente e
diligentemente e das quais, se comprimidas, fluirá o vinho puro
do conhecimento.)
Os empíricos estritos nos aconselham a interferir o mínimo
possível com este processo de acumular conhecimento. O ver­
dadeiro conhecimento é conhecimento puro, incontaminado por
313
aqueles preconceitos que somos só por demais tendentes a juntar
a nossas percepções e a mesclar com elas; somente elas consti­
tuem experiência pura e simples. O resultado desses acrésci­
mos, de perturbarmos e interferir com o processo de acumu­
lar conhecimento, é o erro. Kant se opõe a esta teoria: nega que
as percepções sejam alguma vez puras e assevera que nossa
experiência é o resultado de um processo de assimilação e de
transformação — o produto combinado de percepções dos sen­
tidos e certos ingredientes acrescentados pelas nossas mentes.
As percepções são, por assim dizer, a matéria prima que flui de
fora para dentro do balde, onde experimenta um processamento
(automático) — algo parecido com a digestão ou talvez com
uma classificação sistemática — a fim de tornar-se por fim
alguma coisa não muito diferente do “vinho puro da experiên­
cia” de Bacon; digamos, talvez, um vinho fermentado.
Não penso que-qualquer dessas concepções sugira algo
como um quadro adequado do que creio ser o processo efe­
tivo de adquirir experiência, ou o método efetivo usado em
pesquisa ou em descobrimento. Admitidamente, a concepção
de Kant poderia ser interpretada de modo a chegar muito mais
perto de minha própria concepção do que o empirismo puro.
Concedo, sem dúvida, que a ciência é impossível sem a experiên­
cia (mas a noção de “experiência” tem de ser cuidadosamente
considerada). Embora conceda isto, sustento, não obstante, que
as percepções hão constituem nada parecido com a matéria-
prima, segundo a “teoria do balde”, com a qual construímos
“experiência” ou “ciência”.
II
Na ciência, a observação, em vez da percepção, é que de­
sempenha o papel decisivo. Mas a observação é um processo
em que nós desempenhamos papel intensamente ativo. Uma ob­
servação é uma percepção, mas uma percepção que é plane­
jada e preparada. Não “temos” uma observação (como podemos
“ter” uma experiência de sentidos) mas “fazemos” uma obser­
vação. (Um navegador “elabora” mesmo uma observação.)
Sempre uma observação é precedida por um interesse em par­
ticular, uma indagação, ou um problema — em suma, por algo
teórico.(*) Afinal de contas, podemos colocar qualquer inda­
gação em forma de uma hipótese ou conjectura a que acres­
centamos: “É assim? Sim ou não?” Deste modo, podemos afir­
mar que cada observação é precedida por um problema, uma
hipótese (ou seja o que pudermos chamá-lo); de qualquer modo,
por algo que nos interessa, por algo teórico ou especulativo.
Por isto é que as observações são sempre seletivas e pressupõem
alguma coisa como um princípio de seleção.

314
»

Antes de elaborar mais amplamente estes pontos, tentarei


apresentar, como uma digressão, algumas anotações de natu­
reza biológica. Embora não se destinem a constituir uma base
ou mesmo um argumento para a tese principal que pretendo
propor mais tarde, talvez possam ser úteis para sobrepassar,
ou circundar, certas objeções a ela e, deste modo, para facilitar
posteriormente sua compreensão.
III
Sabemos que todas as coisas vivas, mesmo as mais primi­
tivas, reagem a certos estímulos. Essas reações são específicas;
isto é, para cada organismo (e para cada tipo de organismo) o
número de reações possíveis é limitado. Podemos dizer que
cada organismo possui um certo conjunto inato de reações pos­
síveis, ou certa disposição para reagir deste ou daquele modo.
Este conjunto de disposições pode mudar com o avanço da
idade do organismo (talvez em parte sob a influência de im­
pressões dos sentidos ou percepções) ou pode permanecer cons­
tante; seja como for, em qualquer instante da vida do orga­
nismo, podemos admitir que ele é investido de tal conjunto de
possibilidades e disposições para reagir e esse conjunto constitui
o que se pode chamar seu estado interior (momentâneo).
Deste estado interior do organismo dependerá o modo por
que ele reagirá a seu ambiente exterior. Por isto é que estímulos
fisicamente idênticos podem, em tempos diferentes, produzir
reações diferentes, ao passo que estímulos fisicamente diferen­
tes podem resultar em reações idênticas. (2)
Diremos agora que um organismo só "aprende com a ex­
periência’ se suas disposições para reagir mudarem no decorrer
do tempo e se tivermos razão para supor que essas mudanças
não dependem meramente de alterações inatas (de desenvolvi­
mento) no estado do organismo, mas também do estado em mu­
tação de seu ambiente exterior. (Esta é uma condição necessá­
ria, embora não suficiente, para dizer que o organismo aprende
com a experiência.) Em outras palavras, encararemos o pro­
cesso pelo qual o organismo aprende como um certo tipo de
mudança, ou modificação, em suas disposições para reagir, e
não, conforme querería a teoria do balde, em uma acumulação
(ordenada, ou classificada, ou associada) de traços de memó­
ria deixados por percepções que passaram.
Essas modificações na disposição do organismo para reagir,
que vão formar os processos de aprendizado, estão estreita­
mente ligadas à importante noção de uma "expectativa”, e tam­
bém à de uma “expectativa desiludida”. Podemos caracterizar
uma expectativa como uma disposição para reagir, ou como um

315
preparativo para uma reação, que se adapta (ou que antecipa)
a um estado do ambiente ainda por vir. Esta caracterização pa­
rece ser mais adequada do que aquela que descreve uma ex­
pectativa em termos de estados de consciência; pois só nos
tornamos conscientes de muitas de nossas expectativas quando
elas são desiludidas porque não se concretizaram. Um exemplo
seria o encontro de um degrau inesperado em nosso caminho: é
o inesperado do degrau que nos pode tornar conscientes do fato
de que esperávamos encontrar uma superfície plana. Tais desi­
lusões nos forçam a corrigir nosso sistema de expectativas. O
processo de aprender consiste amplamente de tais correções; isto
é, da eliminação de certas expectativas (desiludidas).
IV
Voltemos agora ao problema da observação. Uma observa­
ção sempre pressupõe a existência de algum sistema de expecta­
tivas. Essas expectativas podem ser formuladas em forma de
quesitos; e a observação será usada para obter uma resposta
confirmadora, ou corretiva, para as expectativas assim for­
muladas.
Minha tese de que a indagação, ou a hipótese, deve pre­
ceder a observação pode, a princípio, ter parecido paradoxal;
mas podemos ver agora que não é absolutamente paradoxal
supor que expectativas — isto é, disposições para reagir —
devam preceder cada observação e, de fato, cada percepção:
pois certas disposições ou propensões para reagir são inatas em
todos os organismos, ao passo que as percepções e as obser­
vações claramente não são inatas. E embora as percepções e,
mais ainda, as observações desempenhem papel importante no
processo de modificar nossas disposições ou propensões para
reagir, algumas dessas disposições ou propensões devem, sem
dúvida, estar presentes primeiro, ou então não poderíam ser
modificadas.
Estas reflexões biológicas não devem, de modo algum, ser
entendidas como implicando que eu aceite uma posição beha-
viorista. Não nego que percepções, observações e outros estados
de consciência ocorram, mas lhes atribuo um papel muito dife­
rente daquele que se supõe desempenharem de acordo com a
teoria do balde. Nem devem estas reflexões biológicas ser enca­
radas como formando em qualquer sentido uma admissão na
qual os meus argumentos serão baseados. Espero, porém, que
ajudem a compreender melhor esses argumentos. O mesmo se
pode dizer das reflexões que se vão seguir e que estão estreita­
mente ligadas a estas biológicas.
Em cada instante de nosso desenvolvimento precientífico
ou científicos estamos vivendo no centro do que costumo chamar

316
*

um "horizonte de expectativas”. Com isto quero significar a


soma total de nossas expectativa^ sejam subconscientes ou cons­
cientes, ou talvez mesmo explicitamente proferidas em alguma
linguagem. Animais e criancinhas têm também seus vários e di­
ferentes horizontes de expectativas, embora sem dúvida num
nível mais baixo de consciência do que, digamos, o de um cien­
tista, cujo horizonte de expectativas consiste em considerável
extensão de teorias ou hipóteses formuladas lingüísticamente.
Os vários horizontes de expectativas diferem, sem dúvida,
não só por serem mais ou menos conscientes, mas também por
seu conteúdo. Contudo, em todos esses casos, o horizonte de
expectativas desempenha o papel de uma moldura de referên­
cia: só sua colocação nessa moldura confere significado ou
sentido a nossas experiências, ações e observações.
As observações, mais especialmente, têm uma função muito
peculiar dentro desta moldura. Podem elas, sob certas circuns­
tâncias, destruir até a própria moldura, se colidirem com certas
expectativas. Em tal caso, podem ter sobre nosso horizonte de
expectativas um efeito semelhante ao de uma bomba. Essa
bomba pode forçar-nos a reconstruir, ou a reedificar, o nosso
horizonte inteiro de expectativas; isto é, podemos ter de corri­
gir nossas expectativas e de encaixá-las em conjunto, mais uma
vez, em algo semelhante a um todo coerente. Podemos dizer
que deste modo nosso horizonte de expectativas é elevado e
reconstruido em nível superior, e que alcançamos desta maneira
um novo estágio na evolução de nossa experiência; um estágio
em que aquelas expectativas que não foram atingidas pela
bomba se acham de algum modo incorporadas ao horizonte,
enquanto aquelas partes do horizonte que sofreram dano são
consertadas e reconstruídas. Isto tem de ser feito de modo tal
que as observações danificadoras não mais sejam sentidas como
dilacerantes, mas se integrem no restante de nossas expectativas.
Se tivermos bom êxito nesta reconstrução, então teremos criado
o que se conhece usualmente como uma explicação daqueles
eventos observados que criaram o rompimento, o problema.
Quanto à questão da relação temporal entre observação, de
um lado, e o horizonte de expectativas ou teorias, do outro
lado, bem podemos admitir que uma explicação nova, ou uma
hipótese nova, seja precedida geralmente, a tempo, por aquelas
observações que destruiram o prévio horizonte de expectativas
e assim foram estímulo para tentarmos nova explicação. Con­
tudo, isto não deve ser entendido como dizendo que as observa­
ções precedem em geral as expectativas ou hipóteses. Ao contrá­
rio, cada observação é precedida por expectativas ou. hipóteses;
mais especialmente, por aquelas expectativas que compõem o
horizonte de expectativas que dá a essas observações o seu

317
significado; só deste modo elas alcançam a condição de obser­
vações reais-
A indagação “Que vem primeiro, a hipótese (H ) ou a
observação (O )?” recorda aquela outra pergunta famosa: “Que
veio primeiro, a galinha (G) ou o ovo (O )?” Ambas as inda­
gações são solúveis. A teoria do balde assevera que (assim
como uma forma primitiva de um ovo (O ), um organismo uni-
celular precede a galinha (G ), assim a observação (O) pre­
cede sempre cada hipótese (H ); pois a teoria do balde consi­
dera esta última como surgida de observações por generalização,
ou associação, ou classificação. Em contraste, podemos agora
dizer que a hipótese (ou teoria, ou expectativa, ou seja lá o
que se chame) precede a observação, ainda que uma obser­
vação que refute certa hipótese possa estimular uma nova hipó­
tese (e, portanto, uma temporariamente posterior).
Tudo isto se aplica, mais especialmente, à formação de
hipóteses científicas. Pois só com as nossas hipóteses aprende­
mos que tipo de observações devemos fazer: para onde devemos
dirigir nossa atenção; onde ter um interesse. É a hipótese, assim,
que se toma nosso guia e que nos conduz a novos resultados
observacionais.
Esta é a concepção que tenho denominado “teoria do holo­
fote” (em contradistinção à “teoria do balde” ). De acordo com
a teoria do holofote, as observações são secundárias às hipó­
teses. As observações, porém, desempenham um papel impor­
tante como testes que uma hipótese deve experimentar no curso
do exame crítico que fizermos dela. Se a hipótese não passar
no exame, se for mostrada falsa pelas nossas observações, então
temos de procurar uma nova hipótese. Neste caso, a nova
hipótese virá depois daquelas observações que levaram a decla­
rar falsa ou a rejeitar a hipótese antiga. Mas o que tornou as
observações interessantes e relevantes e o que de todo deu ori­
gem a que as realizássemos em primeira instância foi a hipótese
primitiva, a antiga e agora rejeitada.
Deste modo, a ciência surge claramente como uma con­
tinuação direta do trabalho precientífico de conserto em nossos
horizontes de expectativas. A ciência nunca parte de um ras­
cunho; nunca pode ser descrita como livre de suposições; pois,
a cada instante, pressupõe um horizonte de expectativas — por
assim dizer, o horizonte das expectativas de ontem. A ciência
de hoje se edifica sobre a ciência de ontem (e assim é o resul­
tado do holofote de ontem); e a ciência de ontem, por sua vez,
se baseia na ciência do dia anterior. E as mais antigas teorias
científicas são edificadas sobre mitos precientíficos e estes, por
sua vez, sobre expectativas ainda mais velhas. Ontogenetica-
mente (isto é, com referência ao desenvolvimento do organis-

318
*

mo individual), regressamos assim ao estado das expectativas


de uma criança recem-nascida; filogeneticamente (com referên­
cia à evolução da raça, o filo), alcançamos o estado de orga­
nismos unicelulares. (Não há, aqui, o perigo de um vicioso
regresso infinito — ainda que só pela razão de que cada orga­
nismo nasce com algum horizonte de expectativas.) Por assim
dizer, da ameba a Einstein vai só um passo.
Ora, se é por este modo que a ciência envolve, que se
pode dizer do passo característico que marca a transição da
prc-ciência para a ciência?
V
Os primeiros começos da evolução de algo como um mé­
todo científico podem ser encontrados, aproximadamente, por
volta do sexto e do quinto séculos, da antiga Grécia. Que acon­
teceu lá? Que há de novo nessa evolução? Como se comparam
as novas idéias com. os mitos tradicionais que vieram do Oriente
e que, penso eu, forneceram muitas das sugestões decisivas
para as novas idéias?
Entre os babilônios e os gregos, e também entre os maorís
da Nova Zelândia — na verdade, parecería, entre todos os
povos que inventam mitos cosmológicos — narram-se contos
que lidam com o começo das coisas e que tentam compreender
ou explicar a estrutura do Universo em termos da história de
sua origem. Estes casos se tomam tradicionais e são preservados
em escolas especiais. A tradição está muitas vezes sob a guarda
de alguma classe separada ou escolhida, que a conserva ciosa­
mente. Os casos só mudam pouco a pouco — principalmente
por meio de inexatidões em transmiti-los, por incompreensões
e às vezes pelo ajuntamento de novos mitos, inventados por
profetas ou por poetas.
Ora, o que é novo na filosofia grega, o que é acrescentado
de novo a tudo isto, parece-me consistir não tanto da substi­
tuição dos mitos por algo de mais “científico” quanto numa
nova atitude para com os mitos. Parece-me ser meramente uma
conseqüência desta nova atitude o fato de que seu caráter co­
meça então a mudar.
A nova atitude que tenho em mente é a atitude crítica. Em
lugar de uma transmissão dogmática da doutrina (na qual todo
o interesse reside em preservar a tradição autêntica) encontra­
mos uma discussão crítica da doutrina. Algumas pessoas come­
çam a fazer perguntas a seu respeito; duvidam da veracidade
da doutrina; de sua verdade.
A dúvida e a crítica existiram certamente antes deste es­
tágio. O que é novo, porém, é que a dúvida e a crítica se torna­
ram agora, por sua vez, partes da tradição da escola. Uma tra­

319
dição de ordem superior substitui a preservação tradicional do
dogma; em lugar da teoria tradicional — em lugar do mito —
encontramos a tradição das teorias que criticam (as quais, em
si mesmas, a princípio pouco mais são do que mitos). É só
no decorrer desta discussão crítica que a observação é convo­
cada como uma testemunha.
Mal pode ser por mero acidente que Anaximandro, dis­
cípulo de Tales, desenvolveu uma teoria que diverge explícita
e conscientemente da de seu mestre, e que Anaxímenes, dis­
cípulo de Anaximandro, tenha divergido de modo igualmente
consciente da doutrina de seu mestre. A única explicação parece
ser a de que o fundador da escola, ele próprio, tenha desa­
fiado seus discípulos a criticarem sua teoria e que eles hajam
transformado esta nova atitude crítica de seu mestre numa nova
tradição.
É interessante que isto só haja acontecido uma vez, até
onde sei. A antiga escola pitagórica era certamente uma escola
do velho estilo: sua tradição não abrange a atitude crítica, mas
limita-se à tarefa de preservar a doutrina do mestre. Foi sem
dúvida sob a influência da escola crítica dos jônicos que mais
tarde se afrouxou a rigidez da tradição da escola pitagórica e
que se pavimentou a estrada para o método filosófico e cientí­
fico da crítica.
A atitude crítica da antiga filosofia grega não pode ser
exemplificada melhor do que pelos famosos versos de Xe-
nófanes:
Mas se bois, ou cavalos, ou leões tivessem mãos que pu­
dessem desenhar e pudessem esculpir como homens, então os
cavalos desenhariam seus deuses,
como cavalos; e bois como bois; e cada qual então formaria
corpos de deuses, cada qual, à sua própria semelhança.
Isto não é só um desafio crítico — é uma asserção feita
com plena consciência e domínio de uma metodologia crítica.
Parece-me, assim, que é a tradição da crítica que constitui
o que é novo em ciência e o que é característico da ciência. Por
outro lado, parece-me que a tarefa que a ciência se propõe
(isto é, a explicação do mundo) e as principais idéias que ela
usa são extraídas, sem qualquer rutura, da formação precien-
tífica de mitos.
VI
Qual é a tarefa da ciência? Com esta pergunta terminei
minha indagação preliminar das tendências biológicas e histó­
ricas e chego agora à análise lógica da própria ciência.

320
*

A tarefa da ciência é em parte teórica — explicação — e


em parte prática — predição e aplicação técnica. Tentarei mos­
trar que estes dois alvos são, de certo modo, dois aspectos dife­
rentes da mesmíssima atividade.
Examinarei primeiro a idéia de uma explicação.
Ouve-se dizer muitas vezes que uma explicação é a re­
dução do desconhecido ao conhecido; mas raramente nos é
dito como isto se faz. De qualquer modo, esta noção de expli­
cação não é a que tem sido usada na prática efetiva da expli­
cação em ciência. Se olharmos a história da ciência a fim de
ver que tipos de explicação foram usados e aceitos como satis­
fatórios num ou noutro tempo, então encontramos uma noção
muito diferente da explicação em uso prático.
Dei um curto esboço desta história (não me refiro à histó­
ria do conceito de explicação, mas à história da prática da
explicação) no seminário filosófico desta manhã.(3) Infeliz-
mente, o tempo me impede de tratar aqui, de novo e extensa­
mente, desta questão. Contudo, devo mencionar um resultado
geral. No curso do desenvolvimento histórico da ciência muitos
métodos e tipos diferentes de explicação têm sido encarados
como aceitáveis; mas têm todos um aspecto em comum: os
vários métodos de explicação consistem todos de uma dedução
lógica; uma dedução cuja conclusão é o explicandum — uma
asserção da coisa a ser explicada — e cuja premissa consiste
do explicans — uma asserção das leis e condições explicativas.
As principais mudanças que ocorreram no decurso da história
da ciência consistem no abandono silencioso de certos requisitos
implícitos referentes ao caráter do explicans (por poder ser
intuitivamente apreendido, por ser evidente por si mesmo, etc.);
requisitos que não se mostram conciliáveis com certos outros
requisitos cuja significação crucial cada vez mais se tom a óbvia
à medida que o tempo passa; em particular, o requisito da
testabiíidade independente do explicans, que forma as premissas
e, assim, o próprio âmago da explicação.
Assim, uma explicação é sempre a dedução do explicandum
feita de certas premissas que se chamarão o explicans.
Eis um exemplo algo desagradável, só para fins de ilus­
tração. (4)
Foi descoberto um rato morto e queremos saber o que lhe
aconteceu. O explicandum pode ser dito assim: “Este rato aqui
morreu recentemente”. Este explicandum nos é conhecido defini­
damente — o fato está diante de nós em crua realidade. Se
quisermos explicá-lo, devemos tentar algumas explicações con­
jecturais ou hipotéticas (como fazem os autores de histórias
de detetive); isto é, explicações que introduzem alguma coisa
desconhecida, ou de qualquer modo que conhecemos muito
321
menos. Uma hipótese tal pode ser que, por exemplo, o rato
morreu em razão de uma grande dose de veneno para ratos.
Isto é útil como uma hipótese até onde, primeiramente, nos
ajuda a formular um explicam do qual possa ser deduzido o
explicandum; e depois, nos sugere certo número de testes inde­
pendentes — testes do explicam que são inteiramente indepen­
dentes de ser verdadeiros ou não o explicandum.
Ora, o explicam — que é nossa hipótese — não consiste
só da sentença “Este rato comeu uma isca contendo grande
dose de veneno para ratos”, pois não se pode deduzir valida-
mente o explicandum só desta sentença. Antes, teremos de usar,
como explicam, duas espécies diferentes de premissas — leis
universais e condições iniciais. Em nosso caso, a lei universal
poderia ser enunciada assim: “Se um rato come pelo menos oito
grãos de veneno para ratos, morrerá dentro de cinco minutos”.
A condição inicial (singular) (que é uma asserção singular)
poderia ser: “Este rato comeu pelo menos dezoito grãos de ve­
neno para ratos há mais de cinco minutos”. Destas duas pre­
missas juntas podemos agora, realmente, deduzir que esse rato
morreu recentemente (isto é, nosso explicandum).
Ora, tudo isto pode parecer um tanto óbvio. Mas consi­
dere-se uma de minhas teses — a saber, a tese de que aquilo
que chamei “condições iniciais” (as condições pertencentes ao
caso individual) nunca bastam, por si mesmas, como uma expli­
cação, precisando nós sempre, também, de uma lei geral. E
esta tese não é absolutamente óbvia; ao contrário, sua verdade
muitas vezes não é admitida. Suspeito mesmo que muitos de
vós estariam inclinados a aceitar a observação de que “este rato
comeu veneno para ratos” como inteiramente suficiente para
explicar sua morte, mesmo que não se acrescenta qualquer afir­
mação explícita da lei universal referente aos efeitos do veneno
para ratos. Mas suponhamos por um momento que estamos
vivendo num mundo em que todos (e também qualquer rato)
que comerem uma porção daquele produto químico chamado
“veneno para ratos” sentir-se-ão especialmente bem e felizes
por uma semana vindoura e mais lépidos do que nunca antes.
Se uma lei universal como esta fosse válida, poderia a sentença
“Este rato comeu veneno para ratos” ser ainda aceitável como
uma explicação da morte? Obviamente não.
Chegamos assim ao resultado importante, muitas vezes des­
prezado, de que qualquer explicação que utilize somente condi­
ções iniciais singulares será incompleta e de que além disso é
necessária pelo menos uma lei universal, mesmo que esta lei,
em certos casos, seja tão bem conhecida que é omitida como se
fosse redundante.

322
Para sumarizar este ponto: verificamos que uma explica­
ção é uma dedução da seguinte espécie:
U (Lei Universal) ] Premissas (que
_ (Condições Iniciais Específicas) 1 constituem o
E (Explicandum) J
Explicans)
Conclusão

VII
São, porém, satisfatórias todas as explicações que têm esta
estrutura? É, por exemplo, uma explicação satisfatória a que
apresentamos (que explica a morte do rato referindo-se a ve­
neno para ratos)? Não sabemos: os testes podem mostrar que,
seja lá do que for que o rato possa ter morrido, não foi de
veneno para ratos.
Se algum amigo ficar cético ante nossa explicação e per­
guntar “Como sabe que este rato comeu veneno?”, obviamente
não bastará responder “Como pode duvidar disso, vendo que
ele está morto?” De fato, qualquer razão que possamos enunciar
em apoio de qualquer hipótese deve ser outra que não o
explicandum e independente dele. Se só pudermos aduzir o
próprio explicandum como evidência, sentimos que nossa expli­
cação é circular e, portanto, de todo imatisfatória■Se, por outro
lado, pudermos replicar “Analise o conteúdo do estômago dele
e encontrará uma porção de veneno”, e se esta predição (que é
nova — isto é, não acarretada pelo explicandum somente) se
mostrar verdadeira, poderemos pelo menos considerar nossa ex­
plicação como uma hipótese bem boa.
Tenho, porém, de acrescentar uma coisa. Pois nosso amigo
cético pode questionar também a verdade da lei universal. Pode
dizer, por exemplo: “Admito, este rato comeu certo preparado
químico; mas por que teria morrido com isso?” Mais uma vez
não devemos responder: “Então não vê que ele está morto? Isto
lhe mostra justamente quanto é perigoso comer esse preparado
químico.” Pois isto tornaria de novo a nossa explicação circular
e insatisfatória. A fim de torná-la satisfatória teríamos de subme­
ter a lei universal a testes que sejam independentes de nosso
explicandum.
Com isto, pode ser encarada como concluída a minha aná­
lise do esquema formal da explicação, mas acrescentarei mais
algumas observações e análises ao esquema geral que delineei.
Primeiramente, uma observação a respeito das idéias de
causa e efeito. O estado de coisas descrito pelas condições Ini­
ciais em si pode ser chamado a “causai’ e o descrito pelo expll-
candum, o “efeito”. Sinto, contudo, que será melhor evitar estes
termos, sobrecarregados como estão com associações de sua his­

323
tória. Se ainda quisermos usá-los, devemo-nos lembrar sempre
de que eles adquirem um significado somente relativo a uma
teoria ou uma lei universal. É a teoria, ou a lei, que constitui a
ligação lógica entre causa e efeito, e a asserção “A é a causa de
B” deve ser analisada assim: “Há uma teoria T que pode ser,
e foi, testada independentemente e da qual, em conjunção com
uma descrição A de uma situação específica, testada indepen­
dentemente, podemos deduzir logicamente uma descrição B de
outra situação específica.” (Muitos filósofos, inclusive Hume,
não levaram em conta que a existência dle tal ligação lógica
entre causa e efeito é pressuposta no próprio, uso desses
termos.)

VIII
A tarefa da ciência não se limita a procurar explicações
puramente teóricas; tem também seus lados práticos: feitura de
predições assim como aplicações técnicas. Ambas podem ser
analisadas por meio do mesmo esquema lógico que apresenta­
mos para analisar a explicação.
(1) A derivação de predições. Enquanto, na busca de uma
explicação, o explicandum é dado — ou conhecido — e tem de
ser encontrado um explicans conveniente, a derivação de pre­
dições procede em direção oposta. Aqui a teoria é dada, ou se
admite ser conhecida (talvez de compêndios) e assim o são as
condições iniciais específicas (são conhecidas, ou admitidas
como tais, por observação). O que resta a encontrar são as
conseqüências lógicas: certas conclusões lógicas que ainda não
nos são conhecidas por observação. Estas são as predições. Neste
caso, a predição P toma o lugar do explicandum E em nosso
esquema lógico.
(2) Aplicação técnica. Considere-se a tarefa de construir
uma ponte que tem de corresponder a certos requisitos prá­
ticos expostos numa lista de especificações. O que nos é dado
são as especificações, S, que descrevem certo estado de coisas
requerido — a ponte a ser construída. (5 são as especificações
do cliente, que são dadas antes das especificações do arqui­
teto e são distintas destas. São-nos dadas, ainda as teorias fí­
sicas relevantes (inclusive certas regras empíricas). O que temos
de encontrar são certas condições iniciais que possam ser rea­
lizadas tecnicamente e que sejam de natureza tal que as especi­
ficações possam ser deduzidas, juntamente com a teoria. Assim,
neste caso, S toma o lugar de E em nosso esquema lógico.(6)
Isto torna claro como, de um ponto de vista lógico, tanto
a derivação de predições como a aplicação técnica de teorias

324
científicas podem ser encaradas como meras inversões do es­
quema básico de explicação científica.
O uso de nosso esquema, porém, ainda não está esgotado:
ele pode servir também para analisar o processo de testar nosso
explicans. O processo testador consiste em derivar do explicam
uma predição, P, e em compará-la com uma situação real, obser­
vável. Se uma predição não concordar com a situação obser­
vada, então o explicans é mostrado como falso; é falseado. Neste
caso ainda não sabemos se é a teoria universal que é falsa ou
se as condições iniciais descrevem uma situação que não corres­
ponde à situação real — de modo que as condições iniciais são
falsas. (Sem dúvida, também pode ser que a teoria e as condi­
ções iniciais sejam falsas.)
O falseamento da predição mostra que o explicans é falso,
mas o reverso disto não é certo: é incorreto e grossamente
enganoso pensar que podemos interpretar a “verificação” da
predição como “verificando” o explicans ou mesmo parte dele.
Pois uma predição verdadeira pode com facilidade ter sido vali-
damente deduzida de um explicans que é falso. É mesmo intei­
ramente enganoso encarar cada “verificação” de uma predição
como algo semelhante a uma corroboração prática do explicans-.
será mais correto dizer que somente as “verificações” de predi­
ções que sejam “inesperadas” (sem a teoria sob exame) podem
ser encaradas como corroborações do explicans e, assim, da
teoria. Isto significa que uma predição só pode ser usada para
corroborar uma teoria se a sua comparação com as observações
puder ser encarada como uma tentativa séria de testar o expli­
cans — uma tentativa séria de refutá-lo. Uma predição ( “arris­
cada”) deste tipo pode ser chamada “relevante para um teste
da teoria”.(7) Afinal, é bem óbvio que a aprovação num exame
só pode dar idéia das qualidades do estudante se o exame por
que ele passar for suficientemente severo, e que se pode arranjar
um exame no qual facilmente se aprove mesmo o estudante mais
fraco. (8)
Em acréscimo a tudo isto, nosso esquema lógico, final­
mente, nos permite analisar a diferença entre as tarefas de uma
explicação teórica e uma histórica.
O teórico está interessado em encontrar e testar leis uni­
versais. No decorrer do teste, usa ele outras leis, dos tipos mais
diversos (muitas de todo inconscientemente), bem como diver­
sas oondições iniciais específicas.
O historiador, por outro lado, está interessado em encon­
trar descrições de estados de coisas em certas regiões espacial-
-temporais finitas, específicas — isto é, o que tenho chamado
condições iniciais específicas — e em testar ou verificar sua
adequação ou exatidão. Neste tipo de teste ele usa, além de
325
outras condições iniciais específicas, leis universais de todos os
tipos — costumeiramente as antes óbvias — que pertençam a
seu horizonte de expectativas, embora, via de regra; não esteja
cônscio de que as está usando. Nisto, assemelha-se ao teórico.
(Sua diferença, porém, é muito acentuada: está na diferença
entre seus vários interesses, ou problemas; na diferença do que
cada qual considera problemático.)
Num sistema lógico (semelhante aos nossos anteriores) o
procedimento do teórico pode ser representado do modo se­
guinte:
U0 U0
u , Uo U;|
II I, Is

Pl p2 Ps
U0 é aqui a lei universal a hipótese universal, que se acha
sob exame. É mantida constante através de todos os testes e
usada, juntamente com várias outras leis í/,, U2, . . . e várias
outras condições iniciais, l x, l 2, . . . a fim de derivar várias pre-
dições Pi, P2, . . . que possam então ser comparadas com fatos
reais observáveis.
O processo do historiador pode ser representado pelo se­
guinte esquema:
Vi u 2 u s
h h I3
K Io Io

Pa p2 Ps
Aqui, / 0 é a hipótese histórica, a descrição histórica, que
deve ser examinada e testada. É mantida constante através de
todos os testes; e é combinada com várias leis (na maioria
óbvias), Ui, V2, . . . e com condições iniciais correspondentes,
/ x, l 2, . . . para derivar várias predições, Pu P2, etc.
Ambos os nossos esquemas, sem dúvida, são altamente
idealizados e supersimplificados.

IX
Tentei mostrar anterio/mente que uma explicação só será
satisfatória se suas leis universais, sua teoria, puderem ser tes­
tadas independentemente do explicandum. Mas isto quer dizer
que qualquer teoria explicativa satisfatória deve sempre asseve­
rar mais do que o já contido nos explicando que originaria-
mente nos levaram a apresentá-la. Em outras palavras, as teorias
326
t

satisfatórias devem, como questão de princípio, transcender Ol


exemplos empíricos que lhes deram origem; do contrário, como
temos visto, elas simplesmente levariam a explicações que slo
circulares.
Aqui temos um princípio metodológico que fica em con­
tradição direta com todas as tendências positivistas e ingenua­
mente empíricas (ou indutivistas). É um princípio que requer
que ousemos apresentar hipóteses audazes que, se possível,
abram novos domínios de observações, em vez daquelas gene­
ralizações cuidadosas de “dadas” observações que têm perma­
necido (já desde Bacon) como os ídolos de todos os empíricos
ingênuos.
Nossa opinião de que é tarefa da ciência apresentar expli­
cações, ou (o que leva essencialmente à mesma situação ló­
gica) (9) criar os fundamentos teóricos para predições e outras
aplicações —, esta opinião nos conduziu à exigência metodoló­
gica de que nossas teorias devem ser testáveis. Contudo, há
graus de testabilidade. Umas teorias são mais bem testáveis do
que outras. Se reforçarmos nossa exigência metodológica vi­
sando a teorias cada vez mais bem testáveis chegaremos então
a um princípio metodológico — ou uma asserção da tarefa da
ciência — cuja adoção (inconsciente) no passado explicaria
racionalmente grande número de eventos na história da ciência:
explicá-los-ia como passos para levar avante a tarefa da ciência.
(Ao mesmo tempo, vem dar-nos uma asserção da tarefa da
ciência, dizendo-nos o que, em ciência, deve ser considerado
como progresso; pois, em contraste com muitas outras ativi­
dades humanas — a arte e a música em particular — há real-
mente, em ciência, coisa tal como o progresso).
Uma análise e comparação dos graus de testabilidade de
diferentes teorias mostra que a testabilidade de uma teoria
cresce com seu grau de universalidade, assim como com MU
grau de definidade, ou precisão.
A situação é bem simples. Juntamente com o grau de uni­
versalidade de uma teoria segue um aumento na extensão da­
queles eventos a respeito dos quais urna teoria pode fazer pre­
dições e, portanto, também aumenta o domínio de falseamentoi
possíveis. Mas uma teoria que facilmente pode ser mostrada
falsa e ao mesmo tempo a que é mais bem testável.
Encontramos situação similar ao considerar o grau de defi­
nidade ou precisão. Uma asserção precisa pode ser refutada
mais facilmente do que uma vaga e pode, portanto, ser mais
bem testada. Esta consideração também nos permite explicar
a exigência de que asserções qualitativas devem, se possível,
ser substituídas por quantitativas, pelo nosso princípio de aumen­
tar o grau de testabilidade de nossas teorias. (Deste modo po­
327
demos também explicar o papel representado pela medição no
teste de teorias; é um recurso que se torna crescentemente im­
portante no curso do progresso científico, mas que não deve ser
usado — como tantas vezes é — como um aspecto caracterís­
tico da ciência, ou da formação de teorias, em geral. Pois não
devemos desdenhar o fato de que os processos de medição
somente começaram a ser usados numa etapa bem tardia do
desenvolvimento de algumas ciências e que mesmo agora não
são usados em todas elas; e também não devemos desdenhar
o fato de que toda medição é dependente de suposições teóricas.)

X
Um bom exemplo da história da ciência que pode ser usado
para ilustrar minha análise é a transição das teorias de Kepler
e de Galileu para a teoria de Newton.
Que esta transição nada tem a ver com a indução e que
a teoria de Newton não pode ser encarada como algo seme­
lhante a uma generalização daquelas duas teorias anteriores,
isto pode ser visto pelo fato inegável (e importante) de que a
teoria de Newton as contradiz. Assim, as leis de Kepler não
podem ser deduzidas das de Newton (embora muitas vezes se
haja afirmado que podem ser assim deduzidas, e mesmo que as
de Newton podem ser deduzidas das de Kepler): as leis de
Kepler só podem ser obtidas das de Newton aproximadamente,
fazendo-se a admissão (falsa) de que as massas dos vários pla­
netas são desprezíveis em comparação com a massa do sol. Si­
milarmente, a lei da queda livre dos corpos, de Galileu, não
pode ser deduzida da teoria de Newton: ao contrário, ela a
contradiz. Só fazendo-se a suposição (falsa) de que a extensão
total de todas as quedas é desprezível em comparação com a
extensão do raio da Terra é que podèmos obter, aproximada­
mente, a lei de Galileu da teoria de Newton.
Isto mostra, sem dúvida, que a teoria de Newton não pode
ser uma generalização obtida por indução (ou dedução), mas
que é uma nova hipótese da qual se pode irradiar o caminho
para o falseamento das velhas teorias: pode irradiar-se e apontar
o caminho para aqueles domínios nos quais, de acordo com a
nova teoria, as velhas teorias deixam de fornecer boas aproxi­
mações. (No caso de Kepler, este é o domínio da teoria das
perturbações e, no caso de Galileu, é a teoria das acelerações
variáveis, pois, de acordo com Newton, as acelerações gravi-
tacionais variam inversamente ao quadrado da distância.)
Se a teoria de Newton não tivesse efetuado mais do que
a união das leis de Kepler com as de Galileu, ela teria sido
apenas uma explicação circular dessas leis e, portanto, insatis­

328
0

fatória como explicação. Contudo, sua força de esclarecimento e


sua força de convencer pessoas consistiu justaménte em sua
força de lançar luz sobre o caminho para testes independentes
conduzindo-nos a predições (bem sucedidas) que eram incom­
patíveis com as duas teorias mais antigas. Foi o caminho para
novas descobertas empíricas.
A teoria de Newton é um exemplo de uma tentativa para
explicar certas teorias mais antigas de grau de universalidade
inferior, que não só levou a uma espécie de unificação dessas
teorias mais antigas mas, ao mesmo tempo, a seu falseamento
(e assim à sua correção, restringindo ou determinando o domí­
nio em que, em boa aproximação, são válidas).(10) Caso que
ocorre talvez mais freqüentemente é este: uma teoria antiga é
primeiramente mostrada falsa; e a nova teoria surge mais tarde,
como uma tentativa de explicar o sucesso parcial da velha teoria
assim como o seu malogro.

XI
Em conexão com a minha análise da noção (ou antes, da
prática) da explicação, mais um ponto parece significativo.
Desde Descartes (e talvez mesmo desde Copérnico) até Max­
well, muitos físicos tentaram explicar todas as novas relações
descobertas por meio de modelos mecânicos; isto é, tentaram
reduzí-las às leis de impulso ou pressão com que estamos
familiarizados por lidar com coisas físicas de todo dia — coisas
pertencentes ao reino dos “corpos físicos de tamanho médio”.
Descartes fez disto uma espécie de programa para todas as ciên­
cias; exigiu mesmo que nos devéssemos restringir a modelos
que funcionassem meramente por impulso ou pressão. Este
programa sofreu sua primeira derrota com o êxito da teoria de
Newton; mas esta derrota (que foi séria aflição para Newton
e sua geração) logo ficou esquecida e a atração gravitacional
foi admitida no programa em termos de igualdade com o im­
pulso e a pressão. Maxwell, também, tentou primeiro desen­
volver sua teoria do campo eletromagnético na forma de um
modelo mecânico do éter; mas no fim desistiu da tentativa. Com
isto, o modelo mecânico perdeu muito de sua significação: só
permaneceram as equações que originariamente pretendiam des­
crever o modelo mecânico do éter. (Foram interpretadas como
descrevendo certas propriedades não-mecânicas do éter.)
Com esta transição de uma teoria mecânica para uma teoria
abstrata, chegou-se a uma fase da evolução da ciência em que,
na prática, não se requer das teorias explicativas mais do que
poderem ser testadas independentemente; estamos dispostos a
trabalhar com teorias que possam ser representadas intuitiva­
329
mente por diagramas tais como desenhos (ou por modelos me­
cânicos “desenháveis” ou “visualizáveis” ), se forem conseguí-
veis: isto proporciona teorias “concretas”; ou então, se estas não
forem conseguíveis, estamos dispostos a trabalhar Com teorias
matemáticas “abstratas” (que, entretanto, podem ser inteira­
mente “compreensíveis” num sentido que já analisei em outra
parte).(n )
Nossa análise geral da noção de explicação não é, sem
dúvida, afetada pelo malogro de qualquer desenho ou modelo
em particular. Ela se aplica a todos os tipos de teorias abstratas,
do mesmo modo por que se aplica a modelos mecânicos e
outros. De fato, do nosso ponto de vista, os modelos nada mais
são do que tentativas de explicar novas leis em termos de leis
antigas que já foram testadas (juntamente com admissões acerca
de condições iniciais típicas ou com a ocorrência de uma estru­
tura típica — isto é, o modelo num sentido mais estrito). Os
modelos muitas vezes representam papéis importantes na exten­
são e na elaboração de teorias; mas é necessário que um mo­
delo novo numa moldura de velhas admissões teóricas seja dis-
tinguido de uma teoria nova — isto é, de novo sistema de
admissões teóricas.

XII
Espero que algumas de minhas formulações que, no prin­
cípio desta palestra, vos possam ter parecido forçadas ou mesmo
paradoxais, agora o pareçam menos.
Não há estrada, real ou como seja, que leve da necessidade
de um “dado” conjunto de fatos específicos a qualquer lei uni­
versal. O que chamamos “leis” são hipóteses ou conjecturas
que sempre fazem parte de algum sistema de teorias mais amplo
(de fato, de um horizonte inteiro de expectativas )e que, por­
tanto, não podem ser testadas em isolamento. O progresso da
ciência consiste de experiências, de eliminação de erros, e de
mais tentativas guiadas pela experiência adquirida no decorrer
das tentativas e dos erros anteriores. Nenhuma teoria em par­
ticular pode, jamais, ser considerada como absolutamente certa:
cada teoria pode tornar-se problemática, não importa quão bem
corroborada possa parecer agora. Nenhuma teoria científica é
sacrossanta ou fora de crítica. Este fato tem sido esquecido
muitas vezes, especialmente durante o século passado, quando
ficávamos impressionados com as corroborações tão repetidas
e verdadeiramente magníficas de certas teorias mecânicas, que
vieram a ser encaradas como indubitavelmente verdadeiras. O
tempestuoso desenvolvimento da física desde a virada do século
ensinou-nos melhor; e chegamos agora a ver que é tarefa do
330
*

cientista submeter sua teoria a testes sempre novos e que ne­


nhuma teoria deve ser declarada definitiva. Realizam-se os
testes tomando a teoria a ser testada e combinando-a com todos
os tipos possíveis de condições iniciais, assim como outras teo­
rias, e comparando então com a realidade as predições resul­
tantes. Se isto levar a expectativas decepcionadas, a refutações,
então teremos de reconstruir nossa teoria.
A frustração de algumas expectativas com que antes nos
aproximamos avidamente da realidade desempenha papel muito
significativo neste processo. Pode ser comparada à experiência
de um cego que toca num obstáculo, ou se choca com ele, e
assim se toma cônscio de sua existência. Ê verificando a falsi­
dade de nossas suposições que de fato entramos em contato com
a "r e a lid a d e Ê somente a descoberta e a eliminação de nossos
erros que constitui aquela experiência “positiva” que obtemos
da realidade.
Sem dúvida, sempre é possível salvar uma teoria falseada
por meio de hipóteses suplementares (como a dos epiciclos).
Mas este não é o caminho do progresso nas ciências. A reação
adequada ao falseamento é buscar novas teorias que pareçam
ter a possibilidade de oferecer-nos melhor apreensão dos fatos.
A ciência não está interessada em teorias que pareçam ter a pro­
babilidade de oferecer-nos melhor apreensão dos fatos. A ciência
não está interessada em ter a última palavra, se isto significar
o fechamento de nossas mentes ao falseamento das experiências,
mas sim em aprender com as nossas experiências; isto é, em
aprender com os nossos enganos.
Há um modo de formular teorias científicas que aponta
com particular clareza para a possibilidade de serem mostra­
das falsas: podemos formulá-las em forma de proibições (ou
asserções existenciais negativas), tais como, por exemplo, “Não
existe um sistema físico fechado tal que a energia se mude em
uma parte dele sem ocorrerem mudanças compensadoras em
outra parte” (primeira lei de termodinâmica). Ou “Não existe
qualquer máquina que seja 100 por cento eficiente” (segunda
lei). Pode-se mostrar que asserções universais e asserções exis­
tenciais negativas são logicamente equivalentes. Isto torna pos­
sível formular todas as leis universais da maneira indicada, isto
é, como proibições. Contudo, estas proibições são destinadas
apenas para os técnicos e não para o cientista. Dizem àqueles
como proceder se não quiserem esbanjar suas energias. Mas,
para o cientista, são um repto para experimentar e mostrar fal­
sidade; estimulam-no a tentar descobrir aqueles estados de
coisas cuja existência as leis proíbem ou negam.
Chegamos assim a um ponto de onde podemos ver a ciên­
cia como uma aventura magnífica do espírito humano. É u

331
invenção de sempre novas teorias e o infatigável exame de sua
força para lançar luz sobre a experiência. Os princípios do pro­
gresso científico são muito simples. Requerem que abando­
nemos a idéia antiga de que podemos atingir a certeza (ou
mesmo um alto grau de “probabilidade” no sentido do cálculo
de probabilidade) com as proposições ou teorias da ciência
(idéia que deriva da associação da ciência com a magia e do
cientista com o mago): o alvo do cientista não é descobrir uma
certeza absoluta, mas descobrir teorias cada vez melhores (ou
inventar holofotes cada vez mais potentes), capazes de ser sub­
metidas a testes cada vez mais severos (e conduzindo-nos com
isto a sempre novas experiências, que iluminam para nós). Mas
isto significa que essas teorias devem ser mostradas falsas: é
pela verificação de sua falsidade que a ciência progride.

(Conferência proferida, em alemão, no Forum


Europeu do Colégio Austríaco, em Alpbadh. Tirol
(agosto de 1948) e publicada primeiramente em
alemão, sob o título “Naturgesetze und theoretische
Systeme” em Gesetz und Wirklichkeit, editado por
Simon Moser, 1949. Não publicada anteriormente
em inglês- Acréscimos ao texto feitos nesta tradução
estão postos entre parênteses ou indicados nas ano­
tações. Este trabalho antecipa muitas das idéias de­
senvolvidas mais amplamente no presente volume e
em Conjectures and Refutations e além disso con­
tém algumas idéias que não publiquei em outra parte.
Muitas das idéias, e as expressões “a teoria do balde
mental” e “a teoria do holofote da ciência (e da
mente)” remontam a meu tempo na Nova Zelân­
dia e são mencionadas primeiramente em meu Open
Society. Li um ensaio com o título de “A Teoria do
Balde Mental” no Staff Club da Escola de Econo­
mia de Londres em 1946. Este Apêndice é especial­
mente relacionado de perto com os Capítulos 2 e 5
do presente volume.)
*

NOTAS AO CAPÍTULO I

1 — Anteriormente, no inverno de 1919-20, eu havia formu­


lado e resolvido o problema da demarcação entre a ciência e a
não-ciência, mas não pensei que isso merecesse publicação. Entre­
tanto, depois de haver resolvido o problema da indução, descobri
interessante conexão entre os dois problemas. Isto fez-me pensar que
o problema da demarcação era importante. Comecei a trabalhar no
problema da indução em 1923 e encontrei a solução por volta de
1927. Vejam-se também as observações autobiográficas em Conjec-
tures and Refutations (. & R.) resumidamente, capítulos 1 e 11.
2 — '‘Ein Kriterium des empirischen Charakters theoretischer
Systeme”, Erkenntnis, 3, 1933, pgs. 426 seg.
3 — Logik der Forschung, Juius Springer Verlag, Viena,
1934 (adiante referido como L. d. F.) Cf. The Logic of Scientific
Discovery, Hutohinson, Londres, 1959 (adiante referido como
L. Sc. D.).
4 — Ver meu livro Conjectures and Refutations (C. & R ),
adendo 8 à terceira edição, esp. pgs. 408-12.
5 — Cícero, Tópica, X, 42; comp. De Inventione, Livro I, XXXI
51 a XXXV 61.
6 — Ver David Hume, Enquiry Concerning Human Unders-
tanding, ed. L. A. Selby-Bigge, Oxford, 1927, Secção V, Parte I,
p. 46. (Comp. C. & R., p. 21.)
7 — Hume, Treatise of Human Nature, ed. Selby-Bigge, Ox­
ford, 1888, 1960, Livro I, Parte III, secção VI, p. 91; Livro I, Parte
III, secção XII, p. 139. ‘Ver também Kant, Prolegomena, pgs. 14 sgs.,
onde ele diz que o problema da existência é asserção válida a priori
do “problema de Hume”. Que eu saiba, fui O' primeiro a dar ao
“problema de Hume” o nome de problema de indução, embora, sem
dúvida, possa haver outros. Fiz isto em “Ein Kriterium des smpi-
rischen Charakters theoretischer Systeme”, Erkenntnis, ,3, 1936, pgs.
426 sgs., e em L.d.F., secção 4, p. 7, onde escrevi: “Se, acompa­
nhando Kant, chamarmos “problema de Hume” o problema de in­
dução, poderemos chamar “problema de Kant” problema de demar­
cação.” Esta sucinta observação minha (apoiada por algumas notas,
como na p. 29 de L.Sc.D., de que Kant tomou como válido a priori
o princípio de indução) continha sugestões de uma importante in­
terpretação histórica da relação entre Kant, Hume e o problema de
indução. Ver também este volume, Cap. 2, pgs. 85 sgs. e p. 98, onde
estes pontos são debatidos mais amplamente.
8 — Ver Treatise, pgs. 91 e 139.
9 —■Desde Hume, muitos indutivistas desiludidos tornaram-se
irracionalistas (da mesma forma que muitos marxistas desiludidos).

333
10 — O nome de Hume não o:orre no Cap. VI (“Da Indução”)
de The Problems of Philosopky, de Russell (1912 e muitas reedi­
ções posteriores) e o que mais se aproxima de uma referência está
no Cap. VIII (“Como é Possível um Conhecimento A Priori”), onde
Russell diz que Hume “inferiu a proposição muito miais duvidosa
de nada poder ser conhecido a priori a respeito da conexão de causa
e-efeito”. Sem dúvida, as expectativas casuais têm uma base inata:
são psicologicamente a priori no sentido de serem anteriores à expe­
riência. Mas isto não significa que sejam válidas a priori. Ver
C & R, pgs. 47-8.
11 — As citações são de A History of Western Philosophy, de
Bertrand Russell, Londres, 1946, pgs. 698 seg. (Os grifos são meus.)
12 — Uma teoria explanativa ultrapassa essencialmente mes­
mo uma infinidade de asserções de testes universais; e até uma lei
de baixa universalidadee o faz.
13 — Hume, Treatise, p. 95.
14 — Obra cit., p. 91.
15 — Ver a observação inicial do Sr. Stowe em Australas,
Journ. of. Phil., 38, 1960, p. 173.
16 — Ver Ari8t. Soc. Supplementary Volume, 16, 1937, pgs.
36-62.
17 — Estes exemplos, que muitas vezes usei em minhas confe­
rências, também foram usados no Cap. 2 (pgs. 97 seg. e nota 58).
Desculpo-me pela superposição, mas estes dois capítulos foram es­
critos independentemente e achei que deviam ser conservados em sua
íntegra.
18 — Ver Philosophical Studies, 9, 1958, n.° 1-2; comp. Hume,
Treatise, p. 415.
19 — O “problema da derparcação” é ò que chamo o problema
de encontrar um critério pelo qual possamos distinguir as asser­
ções da ciência empírica das asserções não-empíricas. Minha solução
é o princípio de que uma asserção é empírica se houver conjunções
(finitas) de asserções empíricas isoladas (“asserções básicas” ou
“asserções de teste”) que a contradigam. Conseqüência deste “prin­
cípio de demarcação” é que uma asserção isolada puramente exis­
tencial (como “Existe uma serpente do mar em alguma parte do
mundo em algum tempo”) não é uma asserção empírica, embora
possa contribuir sem dúvida para nossa situação empírica de pro­
blema.
20 — Ver especialmente “Naturgesetze und theoretische Sys-
teme”, in Gesetz und Wirklichkeit, ed. S. Moses, Innsbruck, 1949,
pgs. 43 sgs., e “The Aim of Science”, Ratio, I, 1957, e agora, res­
pectivamente, o Apêndice e Cap. 5, adiante.
21 — Ver C. & R., p. 241.
22 — Ver, de John C. Harsanyi, “Popper’s Improbability Cri-
terion for the Choice, of Scientific Hypotheses”, Philosophy, 35,
1960, pgs. 332-40. Ver também nota à p. 218 de C. & R.
23 — Ver, de Rudolf Carnap, “Probability and Content Mea-
sure”, em Mind, M atter and Method, eds. P. K. Feyrabend e Grover
Maxwell, (Ensaios em Honna de Herbert Feigl), Univ. of Mínne-
sotta Press, Minneapolis, 1966, pgs. 248-60.
24 — Parece-me que o Prof. Lakatos suspeita que a contri­
buição efetiva de números a meu grau de corroboração, se possível,
mudaria minha teoria indutivista, no sentido de uma teoria pro-
babilística da indução. Não vejo qualquer razão para que seja

334
0

assim. Comp. pgs. 410-12 de The Problem of Inductive Logic, I.


Lakatos e A. Musgrave (eds.), North Holland, Amsterdão, 1968.
(Acrescentando em prova: Alegra-me saber que compreendí mal o
trecho.)
25 — L. Sc. D., pg. 251.
26 — Ver Mind, Nova Série, 69, 1960, pg. 100.
27 — C. G. Hempel, “Reeent Problems of Induction”, em Mind
and Cosmos, R. G. Oolodny, ed., Pittsburgh Univ. Press, 1966, p. 112.
28 — Ver L. d. F., secção 79 (L,Sc.D„ pgs. 253 seg.).
29 — H. S. Jennings, The Behaviour of the Lower Organisms,
Columbia Univ., 1906.
30 — Ver Hume, Treatise, p. 265.
31 — Nem é preciso dizer isto. Mas a Encyclopedia of Philo­
sophy, 1967, vol. 3, p. 37, me atribui a opinião: “A própria verdade
é só uma ilusão.”.
32 — Berkeley, Three Dialogues Between Hylas and Philonous,
segundo diálogo: “Para mim é razão suficiente para não crer. . .
se não vejo qualquer razão para crer”. Quanto a Hume, ver C. & R„
p. 21 (onde é citado o Enquiry Concerning Human Understanding,
Secção V, Parte I).
33 — John C. Eccles, Facing Reality, Springer-Verlag, Berlim-
-Heidelberg-Nova York, 1970.

NOTAS AO CAPITULO 2

1 — Marx, sem dúvida, disse, na undécima de suas Theses on


Feurebach: “Os filósofos têm simplesmente interpretado o mundo
de vários modos; a questão, porém, é mudá-lo”. A brilhante e opor­
tuna variação citada no texto parece ser devida a R. Hochhuth.
(Mas não devo mencionar o brilho de Hochhuth sem dissociar-me,
da maneira mais enfática, de sua atitude inteiramente errônea para
com Winston Churchill.)
2 — Estou usando o termo “escolasticismo” para indicar uma
atitude de argumentar sem um problema sério — atitude que de
modo algum era comum entre os escolásticos da Idade Média.
3 — Hugh Routledge, Everest 1933, Hodder & Stoughton, Lon­
dres, 1934, p. 143. (Eu tive, embora talvez só por poucos segundos,
experiência similar à de Kipa, quando certa vez fui atingido por
um raio no Sonnblick, nos Alpes da Áustria.)
4 — G. S. Moore foi um grande realista, por ter forte amor
pela verdade e por sentir claramente que o idealismo era falso. Infe-
lizmente, ele acreditava na teoria subjetivista de senso comum do
conhecimento e, assim, em toda a sua vida, esperou em vão que se
pudesse encontrar uma prova do realismo baseada na percepção —
coisa que não pode existir. Russell recaiu do realismo para o posi­
tivismo pela mesma razão.
5 — Esta, sem dúvida, é uma de minhas teorias mais antigas.
Veja-se, por exemplo, o Cap. I de meu livro Conjectures and Refu-
tations, especialmente as págs. 37 ss. Discordo daqueles críticos dc
minhas opiniões que asseveram, por exemplo, não ser a teoria de
Newton mais refutável que a de Freud. Refutação da teoria de
Newton dar-se-ia, por exemplo, se todos os planetas exceto a Terra
continuassem a mover-se como no presente, enquanto a Terra se
movesse em sua órbita presente mas com aceleração constante

335
mesmo quando a mover-se afastando-se de seu periélio. (Sem dú­
vida, contra esta refutação a todas as outras, qualquer teoria, seja
qual for, pode ser “imunizada” — para usar um termo devido a
Hans Albert; acentuei isto já em, 1934 e, enfaticamente, não é o
ponto aqui em questão.) Eu diria que a refutabilidade da teoria
de Newton, ou da de Einstein, é um fato de física elementar e de
metodologia elementar. Einstein, por exemplo, disse que se o efeito
de desvio vermelho (o retardamento de relógios atômicos em fortes
campos gravitacionais) não fosse observado no caso das “anãs bran­
cas”, sua teoria da relatividade geral estaria refutada. Não se pode
dar qualquer descrição, seja qual for, de qualquer comportamento
humano logicamente possível que se mostre incompatível com as
teorias psicanalíticas de Freud, ou Adler, ou Jung.
6 — O positivismo, o fenomenalismo e também a fenomenolo-
gia, todos estão, sem dúvida, infectados pelo subjetivismo do ponto
de partida cartesiano.
7 — A irrefutabilidade do realismo (que estou disposto a
conceder) pode ser questionada. A grande escritora austríaca Marie
Ebner von Eschenbach (1830-1916) conta, em algumas memórias
de sua infância, que suspeitava estar o realismo errado. Talvez
coisas desaparecessem quando olhássemos para outro lado. Assim,
ela tentou surpreeender o mundo em seu truque de desaparecimento
virando-se de súbito, na semi-esperança de poder ver como, saindo
do nada, as coisas tentavam reagrupar-se depressa; e ficava ao
mesmo tempo decepcionada e aliviada sempre que falhava. Vários
comentários podem ser feitos sobre esse relato. Primeiro, é conce­
bível que esta narrativa de uma experiência infantil não seja não-
-típica, mas normal e típica, e desempenhe um papel no desenvol­
vimento da distinção de senso comum entre aparência e realidade.
Em segundo lugar (e estou levemente inclinado a favorecer esta opi­
nião), é concebível que a narração seja não-típica, que a maioria
das crianças sèja de realistas ingênuos, ou assim se tornem antes
de certa idade de que se lembrem; e Marie von Eschenbach certa­
mente era uma criança não-típica. Em terceiro lugar, experimentei
— e não só na infância mas também como adulto — algo não
muito afastado disso: por exemplo, quando encontrava uma coisa
de que me esquecera completamente, às vezes eu sentia que, se a
natureza tivesse deixado tal coisa desaparecer, ninguém se preocu­
paria. (Não era preciso que a realidade mostrasse que a coisa existia
“realmente” ; se não o fizesse, ninguém teria notado.) Surge a
questão de indagar, se caso Marie tivesse êxito, isto refutaria o
realismo ou se não teria refutado meramente uma forma dele muito
especial. Não me sinto obrigado a entrar nesta questão, preferindo
conceder a meus opositores que o realismo é irrefutável. Se esta
concessão for errada, então o realismo está ainda mais perto de ser
uma teoria científica testável do que eu originariamente pretendia
alegar.
8 — Para Wigner ver especialmente sua colaboração em The
Scientist Speculates, I. J. Good (ed.) Heinemann, Londres, 1962,
pgs. 284-302. Para uma crítica, ver especialmente, de Edward Nelson,
Dynamical Theories of Brownian Motion, Princeton University Press,
1967, §§ 14-16. Ver também minha colaboração em Quantum, Theory
and Reality, Mario Bunge (ed.), Springer, Berlim, 1967, e em Pers­
pectives in Quantum Theory, Essays in Honor of Alfred Landé, W.
Yourgrau e A. van der Werde (eds.), M.I.T. Press, 1971.

336
t

9 — Ver meu Logifc der Forschung (L.d.F.), 1934, onde, na


secção 79 (pg. 262 da tradução inglesa The Logic of Scientific Dis­
cover y, 1959. L.Sc.D.), descrevo a mim mesmo como um realista
metafísico. Naqueles dias eu identificava erroneamente os limites
da ciência com os da argumentalidade. Mais tarde mudei de idéia
e argumentei que teorias metafísicas não testáveis (isto é, irrefu­
táveis) podem ser racionalmente argüíveis. (Ver por exemplo meu
artigo “On the Status of Science and Metaphysics”, publicado pri­
meiro em 1958 e agora em meu Conjectures and Refutations, 1963;
quarta edição, 1972.)
10 — Bühler (em parte antecipado por W. von Humboldt) mos­
trou claramente a função descritiva da linguagem. Referi-me a isto
em vários locais e argumentei em prol da necessidade de introduzir
a função argumentativa da linguagem. Ver, por exemplo, minha
palestra “Epistemologia siem um Sujeito Conhecedor” (lida em
Amsterdão em 1967 e agora reproduzida como o Capítulo 3 do pre­
sente volume.)
11 — Ver de Albert Einstein “Remarks on Bertrand Russell’s
Theory of Knowledge” em The Philosophy of Bertrand Russell, P. A.
Schilpp (ed.), The Library of Living Philosophers, vol. V, 1944,
pgs. 290 ss. A tradução de Schilpp na pg. 291 é muito mais ao pé
da letra do que a minha, mas acho que a importância da idéia de
Einstein justificou minha tentativa de uma tradução muito livre, a
qual, espero, continua fiel ao que Einstein queria dizer.
12 — Ver, de Winston Churchill, My Early Life — A Roving
Commission, publicado primeiramente em outubro de 1930; citado
da edição Odhams Press, Londres, 1947, cap. IX, pgs. 115 s., com
permissão do Hamlyn Publishing Group. (Os grifos não estão no
original.) Ver também a edição Macmillan, Londres, 1944, pgs.
331 s.
13 — Ver, de A. Tarski, Semantics, Metamathematics, Claren-
don Press, Oxford, 1956, pgs. 152-278 (artigo publicado primeiro
em polonês em 1933 e em alemão em 1936) ; do mesmo, Philosophy
and Phenomenological Research, 4, 1944, pgs. 341-76. Ver Cap. 6,
adiante.
14 — A expressão “sentença significativa” (isto é, uma sen­
tença mais seu “significado”, isto é, uma asserção ou proposição) é
de Tarski (na tradução de Woodger). Tarski tem sido criticado
injustamente por sustentar a opinião de que a verdade é uma pro­
priedade de (meras) sentenças, isto é, de seqüências gramatical­
mente corretas de palavras (embora sem significado) de uma lin­
guagem ou um formalismo. Contudo, é exato que, em toda a sua
obra, Tarski apenas discute a verdade de linguagens interpretadas.
Não distinguirei aqui entre afirmações, asserções, proposições e
teorias.
15 — Até onde se sabe, todas as linguagens naturais possuem
uma operação de negação, embora hajam sido formadas linguagens
artificiais que não possuem esta operação. (Psicólogos zoologistas
chegam a alegar que algo semelhante pode ser encontrado em ratos
que aprendem a apertar alavancas com sinais característicos e a
entender símbolos que dão a esses sinais o valor logicamente oposto
ao valor original. Ver as referências a R. W. Brown e K. L. Lashley
em Psychologie der Spraehe, Hans Ilõrmann, Springer, Berlim, 1967,
P- 51.)

337
16 — Tarski mostra que, a fim de evitar o paradoxo do men­
tiroso, é necessária uma precaução que vá além do senso comum;
devemos ter cuidado em não usar o termo metalingüístico “verda­
deiro (em L i) ” na linguagem L\. Ver também o Cap. 9, adiante.
17 — O Professor D. W. Hamlyn deu-me a grande honra de
fazer uma descrição de minhas opiniões em “The Nature of Science”,
The Eneyclopedia of Philosophy, Paul Edwards (ed.), vol. 3, p. 37.
Muito de seu resumo é totalmente correto, mas ele me entendeu
completamente mal ao sintetizar minhas opiniões dizendo: “A ver­
dade em si mesma é apenas uma ilusão”. Os que negam que possam
alcançar uma certeza absoluta acerca da autoria das comédias de
Shakespeare, oü acerca da estrutura do mundo, estarão por essa
razão submetidos à doutrina de que o próprio autor (ou autora)
das comédias de Shakespeare, ou o próprio mundo, é “apenas uma
ilusão”?
(Um quadro mais claro da grande significação que dou ao
conceito de verdade será encontrado em meus escritos em vários
locais, particularmente no Cap. 9 do presente volume.)
18 — A diferença entre o conteúdo ou classe de conseqüêneia
de uma asserção isolada ou um conjunto finito de asserções (tal
conjunto finito pode sempre ser substituído por uma só asserção),
de um lado, e uma classe de conseqüêneia ou conteúdo não axioma-
tizável (ou não axiomatizável finitamente), do outro lado, é impor­
tante, mas não será discutida aqui. As classes de conseqüências de
ambos os tipos são chamadas por Tarski “sistemas dedutivos” ; ver
Tarski, ob. cit., Cap. XII Tarski apresentou a noção de uma classe
de conseqüêneia anos antes de mim. Cheguei a ela mais tarde, inde­
pendentemente, em meu Logik der Forschung, onde também apre­
sentei o conceito, estreitamente correlacionado, do conteúdo em­
pírico de uma asserção S como a classe das asserções empíricas in­
compatíveis com S (ou “proibidas” por S ) . Este conceito foi mais
tarde retomado por Camap; ver especialmente seu reconhecimento
a meu L.d.F. na pg. 406 de seu Logical Foundations of Probability,
1950. A noção de verossimilitude foi apresentada por mim em 1959
ou 1960; ver nota à pg. 215 de Conjectures and Refutations, ter­
ceira ed., 1969. Posso observar aqui que, embora em Conjectures and
Refutations eu falasse em “conteúdo-de-verdade” e “conteúdo-de-
falsidade”, prefiro agora omitir os hífens quando os termos são
usados como substantivos (isto é, exceto em frases — que espero
serem raras — como “medida de conteúdo-de-verdade”) . Nisto acom­
panho o conselho de Winston Churchill, como citado na pg. 255 da
segunda edição de Modem English Usage, de Fowler, 1965.
19 — Usei primeiro uma medida de conteúdo em 1954 (comp.
LJSc.D., p. 400) e medidas de conteúdo de verdade e falsidade, etc.
em C. & R. (p. 385). Aqui e no Cap. 9 distingo as funções de me­
dida por meio de minúsculas em grifo, tais como p; ct; vs.
20 — Este exemplo foi sucintamente discutido por mim na nota
7 a uma nota publicada primeiramente em B.J.P.S. 5, 1954, pgs. 143
ss., e republicada em meu L.So.D., segunda edição, 1968, novo apên­
dice IX; ver p. 401. Elaborei o ponto desde então. Ver, por exemplo,
meu ensaio em honra de Herbert Feigl, em Mind, M atter and Method
(P. Feyerabend e G. Maxwell eds.) 1966, pgs. 343-53. Mostrei nesse
ensaio que se os conteúdos (não medidos) de duas teorias dedu­
tivas, X e Y, forem comparáveis, então seus conteúdos de verdade
também são comparáveis e são maiores ou menores de acordo com

338
«

os conteúdos. Como David Miller mostrou, a prova deste teorema


pode ser simplificada consideravelmente. É importante nunca esque­
cermos o seguinte: embora as funções de medida de conteúdo, con­
teúdo de verdade e conteúdo de falsidade sejam comparáveis em
principia (porque as probabilidades são comparáveis em, principio)
não temos em geral meios de compará-las senão através de com­
paração dos conteúdos não medidos de teorias concorrentes, possi­
velmente só intuitivamente.
21 — No primeiro exemplo, a noção de Tarski de uma classe
de conseqüêneia (não medida) ou conteúdo nos permite comparar
os conteúdos de teorias se uma delas acarretar a outra. A generali­
zação aqui dada permite-nos comparar conteúdos (ou a medida de
conteúdos) se uma delas puder responder a todas as perguntas que
possam ser respondidas pela outra e, pelo menos, com precisão igual.
22 — Esta é, de qualquer forma, a situação presente para o
efeito de eclipse: os testes dão valores maiores que os preditos
por E, ao passo que N, mesmo na interpretação favorável de Eins-
tein, prediz no máximo metade do resultado de E.
23 — De Wilhelm Busch, Schei nund Sein, 1909. O texto ale­
mão é: “Zweimal zwei gleich vier ist Wahrheit./Schade, dass sie
leicht und leer ist./Denn ich wollte lieber Klarheit/über das, das
voll und schwer ist.” Ver C. & R-, p. 230, nota 16, e Logic, Metho-
dology and Philosotphy of Science, E. Nagel, P. Suppes e A. Tarski
(eds.) Stanford U. P„ 1962, p. 290.
24 — Existem “muitos sistemas avaliados” de lógica com mais
de dois valores de verdade, mas são mais fracos do que sistemas
de dois valores, especialmente do ponto de vista aqui adotado (ver
C. & R., p. 64), de acordo com o qual a lógica formal é o sistema
de investigação científica da crítica.
25 — Ver Otto Neurath, Erkenntnis 3, 1932, p. 206. Temos sido
repetidamente lembrados por W. V. Quine da observação de Neurath,
por exemplo, em seu Word and Object, M.I.T. Press, 1960, p. 3, ou
em Ontological Relativity and other Essays, Columbia U. P., 1969,
pgs. 16, 84 e 127.
26 — Ver Conjectures and Refutations, cap. 3 e 6.
27 — Comp. Bertrand Russell, An Inquiry into Meaning and
Truth, Allen & Unwin, Londres, 1940 (também Nova York), pgs.
14 ss. (Os grifos não estão no original.) Ver também o ensaio de
Einstein em The Philosophy of Bertrand Russell, P. A. Schilpp, ed.
1944, pgs. 282 s.
28 — Alguns comentários a respeito da história da teoria de
tabula rasa encontram-se no novo adendo sobre Parmênides, na
terceira edição de meu Conjectures and Refutations, 1969 e 1972.
29 — Ver Erkenntnis, 5, 1935, pgs. 170 ss; ver também meu
L.Sc.D., p. 315.
30 — Falo às vezes do “princípio de transferência” quando com
referência ao fato de que o que se sustenta em lógica deve sus­
tentar-se em genética ou em psicologia, de modo que os resultados
podem ter aplicações psicológicas ou, mais geralmente, biológicas.
Ver a secção 4 de meu ensaio “Conhecimento Conjectural”, cap. 1
deste volume.
31 — O idealista epistemológico está certo, a meu ver, ao in­
sistir em que todo conhecimento e o crescimento do conhecimento —
a gênese da mutação de nossas idéias — brota de nós mesmos, e
em que, sem essas idéias auto-originadas, não haveria conhecimento.

339
Está errado ao deixar de ver que, sem a eliminação dessas mutações
através de nosso entrechoque com o ambiente, não só não haveria
incitamento para novas idéias, mas nenhum conhecimento de coisa
alguma. (Comp. C. & R., p. 117 especialmente.) Assim, Kant estava
certo em que é nosso intelecto que impõe suas leis — suas idéias,
suas normas — sobre a massa inarticulada de nossas “sensações”,
incutindo-lhes ordem desse modo. Errou ele ao não ver que rara­
mente temos êxito com a nossa imposição, que experimentamos e
erramos reiteradamente e que o resultado — nosso conhecimento do
mundo — deve tanto à realidade que resiste com as idéias produ­
zidas por nós mesmos .
32 — Talvez seja aqui de interesse a observação seguinte. K.
Lorenz escreve em Evolution and Modification of Behaviour,
Methuen, Londres, 1966, pgs. 103 ss.: “Qualquer modificabilidade
que regularmente se demonstre adaptativa, como indubitavelmente
se dá com o aprendizado, pressupõe uma programação baseada em
informação adquirida filogeneticamente. Negar isto reclama admi­
tir uma harmonia pre-estabilizada entre organismo e ambiente."
Ver também a nota 34, adiante.
33 — Para as várias funções da linguagem humana ver, por
exemplo, C & R., pgs. 134 s., e os capítulos 3, 4 e 6 deste livro,
adiante.
34 — Para defender com êxito o conhecimento “inato” ou “in-
gênito” contra os behavioristas e outros anti-teoristas, ver Konrad
Lorenz, Evolution and Modification of Behaviour, citado na nota
32 atrás.
35 — Ver, por exemplo, as experiências relatadas por T. N.
Wiesel e D. H. Hubel em “Single-cell Responses in Striate Cortex
of Kittens Deprived of Vision in One Eye”, Journal of Neurophysio-
logy, 26, pgs. 1003-17.
36 — Tenho tratado disto com algum, detalhe em meus ensaios
“Epistemologia sem um Sujeito Conhecedor” (lido em Amsterdão em
1967) e “Sobre a Teoria da Mente Objetiva” (lido em Viena em
1968) , agora publicados como capítulos 5 e 6 do presente volume.
Veja-se também a importante discussão por Sir John Eccles, em seu
brilhante livro Facing Reality, Springer, Berlim, 1970, especial­
mente os capítulos X e XI. David Miller, chamou minha atenção
para a estreita similaridade entre meu mundo 3 e o “terceiro reino”
de F. R. Leavis. Ver sua palestra Two Cultures?, 1962, especial-'
mente p. 28.
37 — Temos aqui, assim, um exemplo de um movimento carac­
terístico da teoria de senso comum do conhecimento: uma parte
insuficiente é retirada da lógica objetiva e (talvez inconsciente­
mente) transferida para a psicologia; tal como no caso da teoria
de associação onde as duas “idéias” associadas eram originaria-
mente os “termos” de uma proposição categórica, enquanto a asso­
ciação era a cópula. (Pense-se na “junção ou separação de idéias”,
de Locke.)
38 — Para uma exposição algo diferente da doutrina das fontes
do conhecimento e do problema do erro, ver minha palestra “On
the Sources of Knowledge and Ignorance”, Proceedings of the Bri-
tish Acüdemy, 46, 1960; e também meu C. & R., terceira edição,
1969, pgs. 3-30.
39 — A teoria é muitas vezes atribuída a F. P. Ramsey, mas
pode ser encontrada em Kant.

340
*

40 — Comp. secção 16, nota 30, atrás.


41 — Permita-se-me mencionar que o Capítulo 2, inclusive esta
“Reflexão”, foi escrito antes do relato que forma agora o Capítulo
1 do presente volume. Há certa sobreposição, como se pode ver
do fato de que minha epígrafe ao Capítulo 1 (extraída de A History
of Western Philosopky de Bertrand Russell, Londres, 1946, p. 699)
podia muito bem servir também aqui, especialmente para a secção
29. Contudo os Capítulos 1 e 2, especialmente esta “Reflexão”, se
complementam mutuamente a vários respeitos.
42 —■Ver meu trabalho “Ein Kriterion des empirischen Cha-
rakters theoretischer Systeme” em Erkenntnis, 3, 1933, pgs, 426 s.,
e meu livro Logic of Scientific Discavery, secção 4 (parágrafo ter­
ceiro), segunda edição inglesa, 1968, p. 34 e terceira edição alemã,
1968, p. 9.
43 — I. Kant, Prolegomena, primeira edição, pgs. 14 ss.
44 — Hume, Treatise, Livro I, Parte IV, secção I I ; Selby-Bigge,
p. 218. (Os grifos são meus.)
45 — Ver Treatise, Livro I, Parte IV, secção II; Selby-Bigge,
pgs. 190 s., penúltimo parágrafo.
46 — Hume, Treatise, Livro I, Parte III, secção II; Selby-
Bigge, p. 77.
47 — Loc. cit.
48 — Hume, Treatise, Livro I, Parte III, secção XII; Selby-
Bigge, p. 139.
49 — Comp. Treatise, Livro I, Parte III, secção VI; Selby-
Bigge, p. 90.
50 — Comp. L.Sc.D., 1959, p. 369; este trecho é apenas sobre a
indução, ao passo que o trecho anteriormente citado, do Treatise,
p. 91, começa com uma discussão de causa e efeito.
51 — Há um artigo por D. Stove, “Hume, Probability and
Induction”, em The Philosophical Revieiv, abril de 1965, republi­
cado em Philosopky Today, 3, pgs. 212-32, em que a minha alegação
é contestada. Mas como o argumento de Hume é formal (no sentido
de argumentar que não faz diferença substituirmos n por p ), Stove
não pode estar certo.
52 —Esta secção (como algumas outras) superpõe-se em parte
ao Capítulo I do presente volume. Conservei-a, porém, porque me
parece complementar em vários pontos o Capítulo I. (Ver também
a nota 41, atrás.)
53 — John Watkins mencionou-me um “Grupo C” : Ê a indu­
ção (isto é, algo baseado na repetição) indispensável, seja ou não
justificada? O indispensável (diz Watkins) “é o que Hume admi­
tiu”. Exatamente isto é o que nego, resolvendo assim o problema
de Hume. Tudo quanto precisamos admitir no mundo 3 é o realismo.
No mundo 2 somos compelidos a agir e assim, via de regra, acre­
ditamos em mais do que pode ser justificado, mas ainda escolhemos
a melhor das hipóteses concorrentes: e isto é uma conseqüência do
realismo. Watkins pensa que o Grupo C é o mais fundamental dos
três grupos, mas não consigo ver por que razão deveria ser assim.
Pois, embora a escolha seja em certo sentido indispensável, a in­
dução não o é. (Espero não ter compreendido mal Watkins.)
54 — Ver a crítica de L.Sc.D. por G. J. Warnoek em Mind, Nova
Série, 69, 1960, p. 100.
55 — David Hume, Treatise of Human Nature, 1739-40, Livro
I, Parte III, secção VI; Selby-Bigge, p. 89. (Os grifos são de Hume.)

341
Ver também meu L.Sc.D. especialmente p. 369, citada na nota 60
atrás.
56 — Pode haver outras psicologias que sejam tão más como a
de Hume, mas não se chocam com a lógica. Além disso, assevero
que há uma psicologia efetivamente dominada pela lógica: a psi­
cologia racional das experiências e da eliminação dos erros.
57 — A palavra grega thnétos, freqüentemente traduzida por
“mortal”, significa realmente “fadado a morrer”. “Todos os homens
são mortais”, portanto, traduz-se melhor por “Todos os homens são
fadados a morrer” ; e neste sentido não se pode dizer que seja válido,
porque se deriva de “Todas as criaturas geradas são (essencial­
mente) fadadas a morrer”, o que é refutado pelas bactérias.
58 — Tenho usado estes exemplos com frequência em minhas
conferências e tornei a usá-los no Capítulo 1 (pags. 10 s, e nota
17). Mas decidi deixar permanecerem estas superposições a fim de
tornar independente a leitura dos dois capítulos.
59 — Não incluo entre estes argumentos aquele argumento iso­
lado em prol de um tipo de idealismo que não se choca de modo
algum com o realismo: que o conhecimento humano é produto do3
homens e que todas as nossas teorias são de nossa própria invenção.
Ver nota 31, atrás, e Conjectures and Refutations, p. 117.
60 — Aqui Thomas Reid estava certo. Ver, atrás, o fim da
secção 21.
61 — O argumento é antigo, em forma levemente diferente.
Traços dele podem ser encontrados em Aristóteles, Ética Nicoma-
queana, e em Teon de Esmirna, Liber de Astronômica, ed. T. H.
Martin, Paris, 1949, p. 293.
62 — Não tenho certeza de já haver publicado este argumento
alguma vez antes, mas lembro-me de que o considerei pela primeira
vez por volta de 1930.
63 — Esta forma de objetivismo é o que costumeiramente se
chama “behaviorismo” ou “operacionalismo”. Não é minuciosamente
discutida no presente trabalho.

NOTAS AO CAPÍTULO 3
1 — O argumento é adaptado de Popper, 1962, vol. 11; comp.
p. 108. (Detalhes bibliográficos das referências neste capítulo são
dados na Bibliografia Selecionada, em seu final.
2 — Comp. Frege, 1892, p. 32; grifos meus.
3 — Ver secção 7.1, adiante.
4 — Sobre estes “artefactos” comp. Hayek, 1967, p. 111.
5 — Ver Hayek, 1967, cap. 6, esp. pgs. 96, 100, n.° 12; Des­
cartes, 1637, comp. 1931, p. 89; Popper, 1960, p. 65; 1966, secção
XXIV (i. e., cap. 6, adiante).
6 — Exemp.lo destas últimas é a “refutação da extensão de
conceito” ; Ver Lakatos, 1963-4.
7 — Por exemplo, consultiva, exortativa, ficcional, etc.
8 — Ver Popper, 19.63, esp. Caps. 4 e 12, e as referências às
pgs. 134, 293 e 295 de Bühler, 1934. Bühler foi o primeiro a dis­
cutir a diferença decisiva entre as funções inferiores e a função
descritiva. Achei mais tarde, como conseqtiência de minha teoria da
crítica, a distinção decisiva entre a função descritiva e a argu-

342
t

mentativa. Ver também Popper, 1966, secção XIV e nota 47; ver
ainda, adiante, o Cap. 6, secção XXIV.
9 — Uma das grandes descobertas da lógica moderna foi o
restabelecimento, por Alfred Tarski, da teoria (objetiva) de corres­
pondência da verdade (verdade = correspondência aos fatos). O
presente ensaio deve tudo a essa teoria; mas não quero, sem dú­
vida, implicar Tarski em qualquer dos delitos que aqui cometi.
10 — Ver a nota anterior e Popper, 1962a, esp. p. 292; ainda
Popper, 1963, cap. 10 e Adendos; também Cap. 2, atrás, secções 6
a 11 e cap. 9, adiante.
11 — A teoria de que as crenças podem ser avaliadas pela
presteza em apostar era encarada como bem conhecida em 1781 ;
ver Kant, 1787, p. 852.
12 — Comp. Watkins, 1965, cap. VIII, esp. pgs. 145s, e Popper,
1959, pgs. 420-2; 1963, pgs. 18ss., 262, 297s.
13 — O erro, que é tradicional, é conhecido como “o problema
dos universais”. Isto deve ser substituído pelo “problema das teo­
rias”, ou “problema do conteúdo teórico de toda linguagem humana”.
Ver Popper, 1959, secções 4 (com a nova anotação *1) e 25. Inciden­
temente, é claro que, das três famosas posições — universale ante
rem, in re e post rem — esta última, em seu significado habitual,
é anti-terceiro-mundo e tenta explicar a linguagem como expressão,
ao passo que a primeira (platônica) é pró-terceiro-mundo. Bem
interessante é que, da posição do meio (in re) aristotélica, pode-se
dizer que é anti-terceiro-mundo, ou que ignora o problema do ter­
ceiro mundo. Assim, ela testemunha a influência confusora do con-
ceitualismo.
14 — Comp. Aristóteles, Metafísica, XII (A ), 7; 1072b21 s.;
e 9: 1074bl5 a 10074a4. Esta passagem (que Ross resume: “o pen­
samento divino deve-se preocupar com o objeto mais divino, quç é
ele próprio”) contém uma crítica implícita a Platão. Sua afinidade
com as idéias platônicas é especialmente clara nas linhas 15s.:
“pensa naquilo que é mais divino e não muda; pois mudar seria
mudança para o p io r ...” (Ver também Aristóteles, De Anima,
429b27 ss., especialmente 430a4.)
W — Comp. Plotinio, Enneades, II, 4,4, (1883, p. 153, 3); III.
8, 11 (1883, p. 346, 6 ); V.3 2-5; V.9. 5-8; VI.5.2; VI.6. 6-7.
16 — Ver Popper, 1963, cap. 15; Popper, 1962, Adendo ao vol.
II, “Facts, Standards and Truth: A Further Criticism of Rela-
tivism”.
17 — Ver Lakatos, 1963-4, p. 234, nota 1 (Separata, p. 59).
18 — Bolzano, 1837, vol. I, § 19, p. 78, diz que as asserções e
verdiades em si mesmas não têm ser ("Dasein”) , existência ou reali­
dade. Contudo ele também diz que uma asserção em si mesma não
é simplesmente “algo asseverado, pressupondo assim uma pessoa
que a asseverou”.
19 — Ver na secção 1 atrás a citação de Frege, 1892, p. 32, e
Frege, 1894.
20 — O caminho leva de Frege a Russell, 1922, p. 19, e Wit-
tgenstein, 1922, 5.542.
21 — Para a posição de Berkeley, comp. Popper, 1963, secção
1, cap. 3 e cap. 6.
22 — Com. Russell, 1906-7, p. 45: “A verdade é uma qualidade
de crenças” ; Russell, 1910: “Usarei as palavras “crença” e “julga­
mento” como sinônimas” (p. 172, nota); ou “julgamento é . . . uma

343
relação múltipla da mente com os vários outros termos com os quais
o julgamento se relaciona” (p. 180). Ele também sustenta que “a
percepção é sempre verdadeira (até em sonhos e alucinações)” (p.
181). Ou comp. Bussell, 1959, p. 183: “mas do ponto de vista da
teoria do conhecimento e das definições de verdade, as sentenças
que expressam crença é que são importantes”. Ver também Russell,
1922, pgs. 19s., e as ‘'atitudes epistêmicas" de Ducasse, em Ducasse,
1940, pgs. 701-11. É claro que Russell e Ducasse pertencem àqueles
epistemologistas tradicionais que estudam o conhecimento em seu
sentido subjetivo, ou do segundo mundo. A tradição transcende de
longe o empirismo.
23 — Ver o segundo diálogo entre Hylas e Philonous (Ber-
keley, 1949, p. 218, linhas 15 s.) : “Para mim é razão suficiente não
crer na existência de qualquer coisa se não vejo razão para crer
nela”. Comp. Descartes, 1637, parte IV (primeiro parágrafo) : “Qual­
quer opinião deve ser rejeitada como manifestamente falsa (aperte
false na versão latina) se a mais leve razão para dúvida puder
ser encontrada nela”.
24 Esta secção sobre Brouwer foi inserida a fim de render
homenagem a este grande matemático e filósofo, que morreu pouco
antes de ser realizado o Congresso em que foi lido este ensaio.
Para os que não conhecem a' filosofia intuicionista da matemática
de Brouwer (e de Kant) pode ser mais fácil omitir esta secção e
continuar adiante, com a secção 7.
25 — Na Estética Transcendental (Kant, 1778, pgs. 46s.; trad.
de Kemp-Smith, pgs. 74s.) Kant acentua sob o ponto 1 o caráter
a priori da simultaneidade; sob os pontos 3 e 4, que só pode haver
um tempo; e sob o ponto 4, que o tempo não é um conceito discur­
sivo, mas “uma pura forma d e ... intuição” (ou, mais precisa­
mente, a pura forma da intuição pelos sentidos). No último pará­
grafo antes da conclusão, na p. 72 (Kemp-Smith, p. 90) diz ele
explicitamente que a intuição de espaço e tempo não é uma intuição
intelectual.
26 — Ver a citação de Heyting na secção 1 atrás.
27 — Ver Kant, 1778, p. 741: “Construir um conceito significa
exibir esta intuição a priori que corresponde ao conceito”. Ver
também p. 747: “Temo-nos empenhado em tornar claro quão grande
é a diferença entre o uso discursivo da razão através de conceitos
e o uso intuitivo através da construção de conceitos”. Na p. 151 a
“construção de conceitos” é mais explicada: “podemos determinar
nossos conceitos em nossa intuição a priori de espaço e tempo do
uma síntese uniforme”. (Grifos em parte meus.)
28 — Comp. Kant, 1778, pgs. 741-64. Ver por exemplo o fim
da p. 762, onde ele diz a respeito de provas em matemática (“mesmo
em álgebra”): “todas as inferências são tornadas segu ras... colo­
cando-as claramente diante de nossos olhos”. Comp. por exemplo
também o alto da p. 745, onde Kant fala de uma “cadeia de infe­
rências” e tendo sempre por guia a intuição”. (Na mesma passagem
(p. 748), “construir” é explicado como “representar uma intuição”.)
29 — Comp. o fim do terceiro parágrafo de Brouwer, 1912.
Brouwer fala aí da existência não da matemática, mas da “exa­
tidão matemática e, tal como está, o passagem se aplica, portanto
aos problemas (1) e (3) ainda mais estreitamente do que ao pro­
blema ontológico (2). Mas não pode haver dúvida de que ela pretendia

344
$

aplicar-se também a (2). Diz o trecho, na tradução de Dresden: "A


questão de existir a exatidão matemática é respondida diferente­
m en te... O intuicionista diz: no intelecto humano. O formalista
diz: no papel.”
30 — Tratei extensamente deste problema em minha palestra
“On the Sources of Knowledge and Ignorance”, que agora forma
a Introdução a Popper, 1963.
31 — Comp. “An American Indian Model of the Universe”, em
Whorf, 1956.
33 — Comp. a observação correspondente sobre a visão apro-
panhar este pensamento até sua conclusão lógica, o punctum tem-
poris não poderia sequer mostrar-se como um ponto insignificante,
pois a luz tem uma freqtiência.” (O argumento pode ser susten­
tado considerando-se condições de limite.)
3 — Comp. a observação correspondente sobre a visão apro-
priorística de Kant a respeito da física de Newton em Popper, 1963,
cap. 2, no parágrafo a que se apõe a nota 63.
34 — Comp. os comentários de S. C. Kleene em Kleene e Ves-
ley, 1965, pgs. 176-83 sobre Brouwer, 1951, pgs. 357-8, que Kleene
critica à luz da nota de Brouwer na p. 1248 de Brouwer, 1949.
35 — Heyting em Lakatos, 1957, p. 173.
36 — Comp. Lakatos, 1963-4, esp. pgs. 229-35.
37 — J. Myhill, 1967, p. 175 (grifas m eus); comp. também
Lakatos, 1963-4.
38 — Brouwer, 1924, p. 244.
39 — Comp. Heyting, 1962, p. 195.
40 — Comp. secção 5.4, atrás.
41 — Estas observações valem somente para a lógica do intui-
cionismo que é parte da lógica clássica, ao passo que a matemá­
tica intuicionista não faz parte da matemática clássica. Ver espe­
cialmente as observações de Kleen sobre o “princípio de Brouwer”
em Kleen e Vesley, 1965, p. 70.
42 — Por exemplo, não faço qualquer objeção ao uso dos termos
“aceitaçãoi” e “aceitação 2” por Lakato, em seu “Changes in the
Problem of Inductive Popper 1962a, especialmente p. 292; ver tam­
bém cap. 1, secções 8 a 10, atrás.
44 — Comp. Popper, “A theorem on truth content”, em Feyera-
bend e Maxwell, 1966.
45 — Comp. minhas observações em Lakatos e Musgrave, 1968,
p. 163.
NOTAS AO CAPITULO 4

1 — Para a distinção feita por Platão entre o visível (hora-


ton) e o inteligível (neton), ver, por exemplo, a República de Platão,
509E. (Cp. Teetetes 185D ss.). A fisiologia do olho tem mostrado que
os processos de perceber visualmente os visibilia se assemelham es-
treitamente a uma complexa interpretação dos intelligibilia. (Poder-
-se-ia alegar que Kant antecipou muito disto.)
2 — Hegel, seguindo Aristóteles, rejeitou o terceiro mundo
platônico: conjugou processos de pensamento e objetos de pensa­
mento. Assim, atribuiu desastrosamente consciência à mente obje­
tiva e deificou-a. (Ver especialmente o fim da Enciclopédia de Hegel
com a citação muito adequada da Metafísica de Aristóteles,
1072bl8-30.)

345
3 — Estou usando aqui a palavra “interação” num sentido
amplo, de modo a não excluir um paralelismo psicofísico: não é
minha intenção discutir aqui este problema. (Em outras partes
tenho argumentado a favor do paralelismo; ver, por exemplo, os
capítulos 12 e 13 de meu livro Conjectures and Refutations, 1963,
1960, 1969.)
4 — Comp. Gottlob Frege, “Üeber Sinn und Bedeutung”, Zeits-
chriften für Philosophie und philosophische Kritik, 100, 1892, p. 32.
“Eu compreendo como pensamento, não o ato subjetivo de pensar,
mas o seu conteúdo objetivo.. . ”
5 — Que para Platão a verdade e as proposições não são (cos­
tumeiramente) idéias de terceiro mundo, mas atos mentais (como
os atos mentais de apreender as noções de semelhança, etc., des­
critos em Teetetes, 186 A ), parece sugerido em Teetetes, 189 Es.,
onde Platão diz que o “pensamento é a conversa que a alma tem
consigo mesma a respeito de qualquer objeto”. Comp. Sofista, 263
E-264 B, onde a ênfase é sobre a fala silenciosa (verdadeira e
falsa), afirmação, negação e opinião. Mas em Fedro, 247 D a 249 B,
a verdade é um dos habitantes do terceiro mundo que a alma
apreende.
6 —'O s Estóicos eram materialistas; encaravam a alma como
parte do corpo, identificando-a com. o “sopro da vida” (Diógenes
Laércio, VI, 156 s.). Descreviam o poder de raciocinar como “a
parte condutora” do corpo (Sexto, Adv. Mat., VII, 39 ss.). Esta
teoria, porém, pode ser interpretada como uma forma especial de
dualismo corpo-mente, pois apresenta uma solução especial do pro­
blema corpo-mente. Se acrescentarmos a esses dois mundos (ou
duas partes do primeiro mundo) o oonteúdo do “que foi dito” (lecton)
chegamos à versão estóica do terceiro mundo.
7 — A idéia de um estado da mente (tal como bondade, ou
veracidade) parece ser estóica; é sem dúvida interpretada como um
estado da respiração e, assim, do corpo. Comp. Sexto, loc. cit.
8 — Embora feito pelo homem, o terceiro mundo (como en­
tende sete termo) é sobre-humano por serem seus conteúdos virtuais
em vez de objetos de pensamento reais e no sentido de que só um
número finito da infinidade de objetos virtuais pode vir a tornar-se
objetos de pensamento reais. Devemos evitar, porém, interpretar
esses objetos como os pensamentos de uma consciência sobre-humana,
como fizeram, por exemplo, Aristóteles, Plotino e Hegel. (Ver minha
nota 1, atrás.) Para o caráter sobre-humano da verdade, ver as
págs. 29 s. de meu Conjectures and Refutations, 1963.
9 — Ver a teoria de Karl Bühler sobre as funções superiores
e inferiores da linguagem humana, e meu desenvolvimento da teoria
relatado em Conjectures and Refutations, 1963, pags. 134s. e 295,
e também em meu Of Clouds and Clocks, 1966 (secção XIV do
Cap. 6 do presente livro). Ver também, de F. A. Hayek, Studies in
Philosophy, Politics and EoonomÀcs, 1967, especialmente os capítulos
3, 4 e 6. Em suma, Bühler indica que as linguagens animal e
humana são semelhantes até onde sejam sempre expressões (sinto­
mas de um estado do organismo) e comunicações (sinais). Mas a
linguagem humana é também diferente, porqúe tem em acréscimo
outras funções superiores: pode ser descritiva. Tenho apontado que
há outras funções superiores e especialmente uma que é de impor­
tância decisiva: a função argumentativa ou crítica.

346
$

É importante que esta teoria acentue que as funções inferiores


estão sempre presentes. (Portanto, não é ela atingida pela crítica
que R. G. Collingwood, em seu Principies of A rt, 1938, pags. 262 s„,
dirige contra a teoria da linguagem de I. A. Richards em The Prin­
cipies of Literary Critidsm, segunda edição, 1926.)
Com referência à significação das conseqüências não preten­
didas de ações humanas intencionais, ver Hayek, ob. cit., pg. 100,
especialmente a nota 12. Quanto à origem da linguagem, foi Hayek
(penso) quem primeiro atraiu minha atenção para um trecho do
Discurso sobre o Método de Descartes, segunda secção, no qual
Descartes descreve o desenvolvimento e aprimoramento das “estra­
das reais” como uma conseqüência não pretendida de seu uso, teoria
que pode ser transferida para o desenvolvimento da linguagem.
Tratei com certa extensão do problema das conseqüências não pre­
tendidas de ações intencionais em meu Poverty o.f Historicism, 1944,
1957, p. 65 (publicado depois de The Counter Revolution of Science
de Hayek, 1942, 1952, mas escrito antes de 1942). Refiro-me aí,
em anotação, a Hume e a “uma explicação darwiniana do.. . cará­
ter instrumental de instituições não premeditadas” ; e em meu
The Open Society and Its Enemies, 1945, especialmente Yol. II, Cap.
14, pgs. 93-8 e nota 11 à págs. 323 s. (cuja crítica agradeço a
Hayek, Studies in Philosophy, p. 100, n. 12). Ver também minha
conferência “Epistemologia sem um Sujeito Conhecedor” (lida em
Amsterdão, 1967), agora republicada como o capítulo 3 do' presente
volume.
10 — Helena Keller descreve muito comovedora e convincente­
mente o poder humánizador de sua dramática descoberta da fala.
Das funções especificamente humanizadoras da linguagem, a função
argumentativa (ou crítica) me parece a mais importante; é a base
do que se chama racionalidade humana.
11 — Pode ser mostrado (A. Tarski, A. Mostowski e R. M. Ro-
binson, Undeddahle Theories, Amsterdão, 1953; ver especialmente
a nota 13 à p. 60 s.) que o sistema (completo) de todas as propo­
sições verdadeiras na aritmética dos números inteiros não é axioma-
tizável e é essencialmente indecisível. Segue-se que haverá sempre
infinitamente muitos problemas não resolvidos em aritmética. É inte­
ressante que consigamos fazer tais descobertas inesperadas a res­
peito do terceiro mundo, sendo elas amplamente independentes de
nosso estado mental. (Este resultado remonta amplamente à obra
pioneira de Kurt Gõdel.)
12 — Apesar da moda de antipsicologismo que começou com
Husserl em Logische Untersuchungen, 1900-1 (2.a ed. 1913, 1921),
o psicologismo — isto é, o desprezo ou mesmo a negação do terceiro
mundo — ainda é forte, especialmente entre os interessados na teoria
da compreensão (“hermenêutica”) . O antipsicologismo de Husserl
foi sem dúvida o resultado da crítica feita por Frege ao psicolo-
gísticq Philosophie der Arithmetik, Psychologisehe und Logische
Untersuchungen de Husserl, 1891. Em seu Logische Untersuchun­
gen (em que se refere a Bolzano) Husserl diz com maravilhosa
clareza (vol. I, p. 178): “Em to d a s... as ciências temos de insistir
sobre a distinção fundamental entre três tipos de interrelações: (a)
as interrelações de nossas experiências c o g n itiv a s...;” (isto é, o
que chamo aqui segundo mundo) “b) as interrelações dos objetos
sob in vestig a çã o ...;” (especialmente meu primeiro mundo — mas
pode ser qualquer dos outros)” e (c) as interrelações ló g ic a s...”

347
(Estas pertencem a meu terceira mundo.) Bem pode ser entretanto
que precisamente esta passagem importantíssima deva ser censurada
pela confusão ainda tão predominante. Pois, na parte após (a), indi­
cada pelas reticências, refere-se Husserl às interrelações psicoló­
gicas de “julgamentos, discernimentos, conjecturas, questões”, e es-
pecialmente também atos de compreensão intuitiva “em que uma
teoria desde muito descoberta é cogitada com discernimento”. A
referência a “julgamentos”, “conjecturas” e questões (em nível
com “discernimentos”) poderia ter levado à confusão, especialmente
porque, em (c), Husserl fala apenas de verdades, aparentemente
para exclusão de proposições, conjecturas, questões ou problemas
falsos; menciona ele “as verdades de uma disciplina científica, mais
especialmente de uma teoria científica, de uma prova ou uma con­
clusão”. (Deveria ser lembrado que Husserl e muitos pensadores
ainda mais recentes consideravam uma teoria científica como uma
hipótese científica que foi demonstrada verdadeira: a tese do ca­
ráter conjectural das teorias científicas era ainda vastamente exe­
crada como absurda quando tentei propagá-la nos anos a partir de
1930.) O modo por que Husserl se refere nesta passagem à com­
preensão (comp. também vol. II, pgs. 62ss.) pode também ser res­
ponsável por algumas das tendências psicologisticas que ainda pre­
valecem.
13 —. Este esquema quádruplo, e uma versão mais trabalhada
dele, podem ser encontrados em meu Of Clouds and Clocks, 1966,
agora reproduzido no presente volume como Capítulo 6, secção
XVIII. Pode ser encarado como resultante da interpretação crítica
do esquema dialético (não hegeliano) discutido em meu ensaio “What
is Dialectic”, 1940, que agora forma o capítulo 15 de meu Conjec-
tures and Refutations, 1963.
14 — Estou usando aqui o termo “base” em vez de conheci­
mento de base porque desejo evitar discutir a admissibilidade de
um sentido objetivo de terceiro mundo do termo “conhecimento”.
(Ver, porém, Conjectures and Refutations na p. 227 e seg. Para
“conhecimento de base” ver ob. cit. esp. pgs. 112, 238ss.) O sentido
objetivo de “conhecimento” é discutido extensamente em meu ensaio
“Epistemologia sem um Sujeito Conhecedor”, lido em Amsterdão em
1967 e agora reproduzido como o Capítulo 3 do presente volume.
15 — Comp. I. Lakatos, “Changs in the Problem of Inductive
Logic”, em I. Lakatos (ed.) The Problem of Inductive Logic, 1968.
Ver agora também I. Lakatos, '‘Criticism and the Methodology of
Scientific Research Programmes” em I. Lakatos e A. Musgrave
(eds.), Criticism and the Growth of Knowledge, 1970.
16 — Uma boa análise de tal situação pode ser encontrada na
crítica de Collingwood a Richards atrás mencionada; ver The Prin­
cipies of Art, 1938, especialmente pgs. 164s. De fato, a crítica de
Collingwood é um belo exemplo de análise de um conteúdo emo­
cional de um objeto de terceiro mundo em termos de uma situação
de problema, sua base e sua solução.
17 — Dilthey acentua muitas vezes, e com razão, que há graus
de compreensão. Não estou inteiramente seguro, porém, de que ele
distinga sempre entre graus de compreensão (isto é, da profundi­
dade ou inteireza da compreensão) e a certeza (Sicherheit) da com­
preensão, que me parece uma idéia inteiramente diferente e com­
pletamente errônea. Pois Dilthey observa: “O grau mais alto de cer­
teza é alcançado no campo da interpretação da (dos objetos da)

348
*

mente científica”. (W. Dilthey, Gesammelte Schriften, vol. 7, p.


261.) Isto me parece conter uma confusão. Ou compreendo esta pro­
posição erradamente? Pode-se ver que a alta certeza de compreensão
pode ir junto com um extremamente baixo grau de compreensão
quando refletimos na seguinte formulação de R. Carnap em Intro-
duction to Semantics, 1942, p. 22: “ . . . compreender uma sentença,
saber o que é asseverado por ela, é o mesmo que saber sob que con­
dições ela seria verdadeira”. Realmente, sei que a equação “777
vezes 111 são 86.427” seria verdadeira precisamente sob a condição
de que 777 vezes 111 fossem de fato iguais a 86.427. (De fato,
não são.) Sei disto pela definição da verdade, de Tarski; e sei de
toda, asserção que esta espécie de condição de verdade vale para ela.
Assim, devo compreender com certeza qualquer asserção se com­
preender a linguagem; e isto realmente é certo para um extrema­
mente baixo grau de compreensão, o que dificilmente será o sentido
pretendido na teoria de Dilthey ou na de Cornap.
18 — Nas notas restantes a este ensaio tentarei ilustrar, em
conexão com problema de compreensão histórica, a superioridade do
método de terceiro mundo, de reconstruir criticamente situações de
problema, sobre o método de segundo mundo, de reviver intuitiva­
mente alguma experiência pessoal (método cujo valor, limitado e
subjetivo mas ao mesmo tempo indispensavelmente sugestivo, não
desejo rejeitar inteiramente).
19 — Poder-se-ia dizer que a teoria cinemática de Galileu sobre
as marés contradiz o chamado princípo de relatividade de Galileu.
Mas tal crítica seria falsa, historicamente assim como teorica­
mente; pois esse princípio não se refere a movimentos rotacionais.
A intuição física de Galileu — de que a rotação da Terra tem
conseqüências mecânicas não relativistas — estava certa; e embora
essas conseqüências (o movimento de um fuso de fiar, o pêndulo de
Foucault, etc.) não expliquem as marés, a força de Coriolis não
é inteiramente sem influência sobre elas. Além disso, obtemos ace­
lerações cinemáticas periódicas (pequenas) logo que levamos em
conta a curvatura do movimento da Terra à volta do sol.
20 — Ver Conjectures and Refutations, p. 188.
21 — Ver Conjectures and Refutations, p. 188 e Capítulo 6.
22 — Dilthey fala do "misterioso movimento circular” ( die
geheimnisvolle Kreisbewegung, em, Schriften, vol. 1, pgs. 95-6) da
astronomia. Isto me parece ser má interpretação e um ponto contra
os graus de certeza de Dilthey, discutidos em nota precedente. (Dil­
they, talvez pudesse replicar que, neste campo, a ciência começa
apenas com Newton; e que ele estava falando de idéias pre-cientí-
ficas. Não' creio que seja possível aceitar esta resposta e negar
que Galileu fosse um cientista: a ciência começa com Anaximandro,
ou mesmo antes.) Para um breve mas completo tratamento de
Ptolomeu versus Copérnico, ver O. Neugebauer, The Exact Sciences
in Antiquity, 1957, pgs. 191 ss. (Devido à sua falha em distinguir
nitidamente entre problemas geométricos e físicos, mesmo Neuge­
bauer condena, na p. 204, como dogmática a insistência de Copérnico
ou de Galileu em usar círculos.)
23 — As palavras citadas são do admirável Prefácio de Eins-
tein ao Dialogue Conceming the Two Chief World Systems dfe
Galileu, em tradução de Stillman Drake, ed. revista, 1962. Einstein
reconhece que Galileu tinha a lei da inércia; e não pode haver
dúvida de que Galileu não reconheceu plenamente (o grifo é de

349
Einstein) sua significação fundamental. Posso mencionar aqui que
Galileu tem sido muito criticado por apresentar o sistema de Co-
pérnico em forma supersimplificada; e realmente ele diz, em espí­
rito de crítica, que “Ptoliomeu introduz vastos epiciclos” (ob. cit.,
págs. 341 s.) mas não diz que Copérnico também usou epiciclos.
Aqui está um problema de interpretação histórica. Sugiro que
Galileu conscientemente deixou em aberto o problema suscitado pelo
fato de que o supersimplificado sistema de Copérnico, baseado
exclusivamente em movimento circular de velocidade constante sem
epiciclos, não se adequava precisamente às observações. Ele estava
grandemente impressionado pelo fato de que se adequava às obser­
vações relativamente muito bem; e pensava que os problemas pura­
mente geométricos deixados em aberto poderiam ser resolvidos so­
mente em conjunto com os problemas físicos. (Ele sugere que epi­
ciclos, ou vórtices, ou forças magnéticas, não tão “vastos”, poderiam
fornecer soluções possíveis; comp. ob. cit. pgs. 398 ss.) Este pensa­
mento veio a mostrar-se correto; e não devemos esquecer que mesmo
a solução geométrica de Kepler era ainda apenas uma aproxi­
mação, isto é, uma supersimplificação.
?4 — A conexão entre a teoria de Galileu sobre as marés e sua
rejeição da astrologia é discutida e interpretada em meu Conjectures
and Refutations, nota 4 ao Cap. 1 (p. 38) e nota 4 ao Cap. 8
(p. 188). Esta é uma interpretação conjectural típica (no sentido
de meu Open Society anã Its Enemies, 1945, vol. I, Cap. 10, p. 171)
e, como tal, pode “lançar luz sobre o material histórico” ; ela me
tem ajudado a compreender melhor a última passagem do Dialogue
de Galileu (ob. cit., p. 462; sobre a atitude de Galileu para com
a astrologia, ver também pgs. 109s.) na qual Galileu menciona
Kepler, reprovando-o por suas “puerilidades” astrológicas.
25 — Realmente, a resposta é uma conjectura histórica acerca
do problema (P i ) de Galileu. Os metaproblemas do historiador e
suas respostas conjecturais serão discutidos adiante mais plena­
mente.
26 — Discuti o método de lógica situacional ou análise situa-
cional em meu Open Society, vol. II, Cap. 14, especialmente, p. 97,
e em meu Poverty of Histoiricism, 1957, secções 31 (“Situational Lo­
gic in History”, ver especialmente p. 149) e 32.
27 — Há muitos casos em que podemos reconstruir, objetiva­
mente (ainda que conjecturalmente), (a) a situação tal como era e
(b) uma situação muito diferente tal como apareceu ao agente ou
tal como foi compreendida, ou interpretada, pelo agente. Um exemplo
é a mecânica de ondas de Schrõdinger. Schrõdinger não interpretou
seu problema como estatístico (ficou claro que era estatístico so­
mente depois da famosa “interpretação estatística” de Born; ver
meu “Quantum Mechanics Without ‘The Observer’” em Mario
Bunge, ed., Quantum Theony and Reality, 1967; agora Cap. 3 de
meu Philosophy and Physics). Mas há muitos outros exemplos,
velhos e novos. Kepler compreendeu seu problema com a desco­
berta de uma harmonia do mundo pitagórico. Einstein formulou o
problema da relatividade geral com a ajuda de uma exigência de
co-variação; e embora aceitasse a crítica devida a E. Krestschmann
(Ann. Physifc, 35, p. 575, 1917), que disse ser vazia tal exigência,
Einstein claramente acreditava que ela podia ser reformulada de
modo a servir a seu pretendido propósito, embora ele nunca desse
uma reformulação satisfatória. Um exmeplo da filosofia (ligado ao

350
t

problema de Kant" Como é possível a pura ciência natural?”) é


analisado em Conjectures and Refutationa, Cap. 2, secção X, espe­
cialmente pgs. 94-6.
28 — Várias dessas análises podem ser encontradas nas obras
de E. H. Gombrich. Seu A rt and IUusion, 1959, é em parte (embora
não no todo) um estudo do impacto, sobre a Arte Ocidental, doe
problemas suscitados pelo alvo, aceito no* passado por muitos artis­
tas, de criar uma ilusão de realidade (por exemplo, usando a pers­
pectiva) . Em seu Norm and Form, 1966, p. 7, ele cita a descrição
que o próprio Ghiberti faz de seus alvos: “L u to ... para imitar a
natureza até onde posso, com todas as linhas que resultam nela. . .
Eles (os quadros) são todos molduras para que o olhar os meça e
tão verdadeiros que, ficando à distância, aparecem ao redor”. Gom­
brich comenta que “o artista trabalha como um cientista. Suas
obras existem não só por causa de si mesmas como também para
demonstrar certas soluções de problemas”. Sem dúvida, isto é parte
da análise da obra de um artista; e ainda que comentários simi­
lares possam ser feitos sobre alguns outros artistas, não é sugerido
que seus problemas sejam similares. Ao contrário, os problemas
mudam: soluções dos velhos problemas — por exemplo, do problema
de criar uma ilusão de realidade ou “natureza” — podem criar a
rejeição do velho problema e a busca de outros novos. Um exemplo
desses novos problemas é como interessar o observador e convocar
sua cooperação ativa; por exemplo, propondo-lhe problemas de inter­
pretação, ou de reconstrução. Comp. E. H. Gombrich, Meditations on
a Hobby Horse, 1963. Posso mencionar aqui que as análises de
Gombrich lançam luz sobre o problema do que se pode chamar a
autonomia da obra de arte: o fato de que, embora feita pelo homem,
ela cria suas próprias interrelações. (Ver também o Cap. 6, secção
24 e nota 65, deste volume.) Há um belo caso a respeito de Haydn
que, ao ouvir o primeiro coro de sua Criação, rompeu em lágrimas
e disse: “Eu não escrevi isto”.
29 — Os cientistas que estou descrevendo aqui são os que exer­
cem o que é chamado “ciência normal” por Thomas Kuhn, The
Structure of Sdentific Revolutions, 1962. (Segunda edição, 1971.)
30 — Nas primeiras duas ou três páginas do Cap. 2 de meu
Conjectures and Refutationa tentei argumentar que não há temas,
mas só problemas, os quais, admitidamente, podem levar ao apare­
cimento de teorias, mas que quase sempre precisam para sua so­
lução a ajuda de teorias vastamente diferentes, (Isto mostra o cará­
ter autofrustrador da especialização.)
31 — Comp. H. S. Jennings, The Behavior of the Lower Orga-
nisms, 1906.
32 — A carta de Einstein é citada (no original alemão e em
tradução inglesa) por Max Born em Natural Philosophy of Cause
and Chance, 1949, p. 122.
33 — Posso mencionar exigências tais de racionalidade, como
princípios de simetria (que foram acentuados especialmente por
Hermann Weyl e E. P. Wigner) a idéias como o que eu chamaria
“princípio de ação e reação de Einstein” (poderia ser chamado
também seu “princípio de realidade”) : que o espaço e o tempo de
Newton são insatisfatórios porque podem exercer um efeito material
sobre corpos mas não são, por sua vez, sujeitos a qualquer tipo de
contra-efeito (ao passo que um campo o é).

351
34 — A idéia de simetria cósmica pode ser encontrada na
Teagonia de Hesíodo, 720-5; na teoria de Anaximandro sobre a
forma e a posição da Terra; e na tentativa de Heródoto para
introduzir simetria numa geografia que ele sabia ser grandemente
assimétrica (os rios Nilo e Danúbio, incrivelmente, foram tornados
reciprocamente simétricos o mais longe possível). Comp. a nota
anterior. Além disso, todas as tentativas para introduzir uma me­
dida de justiça, ou recompensa e castigo, no universo (Anaximandro,
Heródoto) são tentativas de encontrar racionalidade nele e assim
compreendê-lo.
35 — O termo “cientismo” significava originariamente “a imi­
tação servil do método e da linguagem da ciência (natural)”, espe­
cialmente por parte de cientistas sociais; foi apresentado neste
sentido por Hayek em seu “Scientism and the Study of Society”,
agora em seu The Coumter-Revolution of Science, 1962. Em The Po-
verty of Historicism, p. 105, sugeri seu uso como uma designação
para o macaqueamento do que é amplamente confundido com o
método da ciência; e Hayek agora concorda (no seu Prefácio e
seus Studies in Philosopky, Politics, and Economics, que contém
uma referência muito generosa a mim) em que os métodos efetiva­
mente adotados por cientistas naturais são diferentes do que “muitos
deles nos falaram ... insistindo com os representantes de outras
disciplinas para imitá-los”.
36 — Sem dúvida, há diferenças em toda parte. Mas há poucas
coisas tão semelhantes a certos processos em física teórica quanto
a reconstrução conjectural de um texto danificado. Uma conjectura
dessa espécie é mesmo testável e algumas têm sido refutadas. (Ver
por exemplo Berlin Papyri, n.° 9777, mais tarde combinado por
J. U. Powell com o mais antigo Oxyrhynchus Papyri, XVII, 2075,
fr. 1, que tornou possível refutar certas reconstruções conjecturais.)
Estes casos, porém, são algo raros; em regra, “os testes de. . .
(muitas) interpretações históricas” (tais como podem ser encon­
tradas em J. W. N. Watkins, Hobbes System, of Ideas, 1965; ou nas
pgs. 248 a 253 e 319 do vol. I e em outros lugares de meu Open
Society)” nunca podem ser tão rigorosos como os de uma hipótese
(física)”, como eu disse na ob. cit., p. 171; eu deveria ter excetuado
o tipo mais interessante de todas as hipóteses — as cosmológicas.
Algumas destas podem sem dúvida ser testadas e algumas têm sido
até 'suficientemente precisas para refutação. Mas outras, e muito
interessantes, parecem não ser testáveis e podem permanecer assim.
(Sobre a testabilidade ver meu Logic of Sdentific Discovery, 1959;
primeira edição publicada como Logik der Forschung, 1934.)
37 — Comp. meu Logic of Sdentific Discovery, secção 85.
38 — Este é o tópico principal de meu Conjectures and Refu-
tations; ver seu Prefácio.
39 — Este foi um dos principais problemas de i>ilthey; ele
falou, especialmente, da necessidade de transcender as tendências
subjetivistas e céticas em historiografia. Neste contexto, pode ser
mencionado o famoso problema que Dilthey e outros chamaram “o
círculo hermenêutico” : o problema de que o todo (de um texto, de
um livro, da obra de um filósofo, de um período) só pode ser com­
preendido se compreendermos as partes constituintes, enquanto estas
partes, por sua vez, só podem ser compreendidas se compreendermos
o todo. Parece não ser geralmente conhecido que isto foi muito
bem formulado por Bacon, De Augmentis, Vl.x.vi: “De todas as

352
t

palavras temos de extrair o sentido a cuja luz cada palavra isolada


deve ser interpretada”. (“Interpretada”, aqui, significa “lida”, sim­
plesmente; ver minha nota final.) A idéia é também encontrável,
numa forma elaborada ironicamente, no Dialogue de Galileu (ob. cit.
p. 108), onde ele faz Simplício dizer que, a fim de compreender Aris­
tóteles, deve-se ter “todos os ditos dele sempre diante da mente”.
40 — Comp. R. G. Collingwood, The Idea of History, 1946, p.
283. (Os grifos são meus.)
41 — Além da teoria de Galileu sobre as marés e de suas
relações com Kepler, discutidas atrás, há outro exemplo de uma
interpretação que talvez possa ser mencionado aqui. Nas págs. 13 a
15 de Conjectures and Refutations discuto a “interpretatio naturae”
de Bacon, indicando que ela significa “ler, ou proferir, o livro da
natureza”, e que o termo '‘interpretatio’’ tem um sentido legal,
diferente de nosso sentido moderno; em Bacon significa “ler” ou
“expor” a lei (ao leigo) exatamente como ela é. (Esta minha inter­
pretação é inteiramente nascida de De Augmentis, loc. cit., e lança
muita luz sobre esta passagem inteira de De Augmentis — e não
só sobre a parte citada atrás, na nota 39.) Em algum local de meu
Conjectures também explico a idéia de Bacon da pureza do intelecto
e de purificar o intelecto: significa purgar o intelecto de precon­
ceitos; isto é, de teorias (de “aenticipationes mentis”).
Ora, acontece que Dilthey (Schriften, vol. V, p. 318) interpreta
mal a ‘‘nterpretatio naturae” de Bacon, que erradamente descreve
como uma metáfora (visto interpretá-la naquele sentido moderno de
“interpretação” cujo significado é quase o mesmo da anticipatio
mentis de Bacon). Similarmente, Ranke (Sdmtliche Worke, vol. 49,
p. 175) interpreta mal a idéia da pureza de Bacon: admitindo
minha interpretação conjectural e considerando o contexto, torna-se
claro que, na passagem baconiana discutida por Ranke, Bacon (que
escreve em Latim) usa caste por “modestamente” (no sentido inte­
lectual de não se precipitar em antecipações ou pronunciamentos
oraculares, como o contexto m ostra). Ranke, porém, traduz mal
caste por “casto” (keusch). Além disso, o casta e diligentemente
( “keusch und fleissig”) de Ranke, em vez de “modesta e constante­
mente”, não é uma tradução apropriada do “caste et perpetuo” de
Bacon (uma tradução livre seria “modesta e dêvotadamente”) . E há
também em Ranke uma atribuição errada desta tradução errada
que acho inteiramente inexplicável. Ranke atribui a passagem ao
“Preâmbulo ao Organum, certamente um dos mais belos prefácios
já escritos”. Mas quais são os fatos? Existe um Praefatio ao Novum
Organum mas a passagem citada por Ranke não se encontra nele:
vem, antes do Praefatio ao Instauratio Magna, publicado junta­
mente com o Organum, mas separado do Praefatio deste por mais
de doze páginas (pelo Distributio Operis e por uma curta expli­
cação que diz estar faltando a primeira parte do Instauratio.
A passagem pode ser traduzida assim (meu texto é a p. 180,
“Nos v e r o ...” do vol. I de The Works of Francis Bacon, editadas
por J. Spedding, R. L. Ellis e D. D. Heath, 1889): “Eu, contudo, de­
morando-me modesta e constantemente entre as coisas (elas pró­
prias), nunca movo meu intelecto para além das coisas mais do que
é necessário para permitir que suas imagens e seus raios se foca­
lizem, como puderem, no sentido' (da v isão)”. (Bacon conclui sua
sentença, após ponto-e-vírgula: “de modo que n ío resta muito a
fazer para as capacidades de inventar e de exceler”.)

353
A tradução e os comentários de Ranke são: “Lasst uns”, sagt
Bacon in der Yorrede zu dem Organon — gewiss einen der schõns-
ten. Proemien, die je geschrieben worden sind — “lasst uns keusch
und fleissig unter den Dingen verweilen und unsere Fassungskraft
nur eben so weit über sei erheben, um ihre Bilder und Strahlen
in uns aufnehmen zu kõnnen.”
“Er sagte dies von der Betrachtung der Natur. Die Esforschung
der Geschichte hat es freilich noch schwerer”. (E assim por diante:
Ranke preocupa-se com as dificuldades especiais da historiografia
— da interpretação da história em oposição à interpretação da
natureza.)
Como se pode ver pela má tradução que Ranke fez do simples
texto latino de Bacon, a interpretação de textos (hermenêutica), que
afinal de contas é parte da historiografia, na verdade é quase tão
arriscada como a interpretação da natureza. É uma questão em que
devemos trabalhar com conjecturas e refutações: isto é, devemos
.tentar refutar nossas conjecturas até se adequarem plenamente ao
contexto da situação de problema, perdendo os aspectos arbitrários
e realizando algo como um máximo de capacidade explicativa do
que o autor queria dizer.
Para outros exemplos do método conjectural de interpretação,
ver especialmente as notas ao primeiro volume de meu Open So-
ciety e os Adendos 6 a 9 de meu Conjectures & Refutations, 3.a edi­
ção, 1969, e 4.a edição, 1972.

NOTAS AO CAPÍTULO 5
1 — Ver o último parágrafo do texto, antes da citação final,
de minha “Nota sobre Berkeley como Precursor de Mach”, Brit,
Joum, Phil. Sc., 4, 1953, p. 35. (Agora em meu Conjectures and
Refutations, p. 174.)
2 — Este tipo de raciocínio sobrevive em Tales (Diels-Krans,
vol. 1, p. 456, linha 35) ; Anaximandro (D-K, A 11, A 28); Anaxí-
menes (D.-K., A 17, B 1 ); Alcmeão (D.K. A 5).
3 —■Para a teoria da testabilidade, conteúdo e simplicidade,
e de graus de universalidade e precisão, ver as secções 31 a 46 de
meu Logic of Scientific Discovery, 1959 (primeira ed. alemã, 1934;
segunda ed. alemã, 1971), onde é explicada a estreita conexão entre
estas idéias.
4 — Tenho discutido (e criticado) o essencialismo mais am­
plamente em meu ensaio “Three Views Concerning Human Know-
ledge”, onde também me refiro a minhas anteriores discussões (na
última anotação à secção II) ; ver Contemporary British Philoso-
ph/y, III, H. D. Lewis, ed., 1956, nota 2 à p. 365. (Este ensiaio' forma
agora o Cap. 3 de meu Conjectures and Refutations., 3.a ed., 1969.)
5 -— Ver também as cartas de Newton a Richard Bentley, de
17 de janeiro e especialmente de 25 de fevereiro de 1693. Fiz uma
citação desta carta na secção III de meu ensaio “Three Views Con­
cerning Human Knowledge” (Conjectures and Refutations, p. 106)
onde o problema é discutido um pouco mais amplamente.
6 —' O termo “essencialismo modificado” foi usado como uma
descrição de minha própria “terceira concepção” por um crítico de
meu ensaio “Three V iew s' Concerning Human Knowledge” em The
Times Literary Supplement, 55, 1956, p. 527. A fim de evitar

354
t

incompreensões, desejo dizer aqui que minha aceitação deste termo


não deve ser entendida como uma concessão à • doutrina da “reali­
dade final” e muito menos como uma concessão à doutrina de defi­
nições essencialistas. Dou plena adesão à crítica dessa doutrina
que fez em meu Open Soeiety, vol. II, Cap. 11, secção II (especial-
mente nota 42) e em outros lugares.
7 — Quanto à teoria de Platão de Formas ou Idéias ser “uma
das funções de mais importância para explicar a similaridade de
coisas sensíveis”. .. comp. meu Open Soeiety, Cap. 3, secção V; ver
também notas 19 e 20 e o texto. O malogro da teoria de Aristóteles
em realizar esta função é mencionado ai (na 3.a edição, 1957) no
final da nota 54 ao Capítulo 11.
8 — O que pode ser deduzido das leis de Kepler (ver Max
Boorn, Natural Philosophy of Cause and Chance, 1949, pgs. C129-33)
é que, para todos os planetas, a aceleração no rumo do sol é igual
em qualquer momento a k /r 2, sendo r a distância naquele momento
entre o planeta e o sol e sendo k uma constante, a mesma para
todos os planetas. Mias este próprio resultado contradiz formalmente
a teoria de Newton (exceto na admissão de que as massas dos
planetas sejam todas iguais ou de que, se desiguais, em qualquer
caso serão então infinitamente pequenas em comparação com a
massa do sol. Este fato decorre do que aqui é dito, na nota 9 se­
guinte e no texto respectivo, a respeito da terceira lei de Kepler.
Mas, além disso, deve-se lembrar que nem a teoria de Kepler nem
a de Galileu contém o conceito de força de Newton, que é tradicio­
nalmente introduzido nessas deduções sem mais incômodo; como se
este conceito (“oculto”) pudesse ser lido nos fatos, em vez de ser
o resultado de uma nova interpretação dos fatos (isto é, dos
“fenômenos” descritos pelas leis de Galileu e de Kepler) à luz de
uma teoria completamente nova. Só depois do conceito de força (e
mesmo da proporcionalidade da massa gravitacional e inerte) haver
sido introduzido foi de qualquer modo possível ligar as fórmulas
acima para a aceleração com a lei de aceleração de Newton do
inverso do quadrado (pela admissão de que as massas dos planetas
são desprezíveis).
9 — Ver, de Newton, Principia, o Scholium no fim da secção
II do Livro I; p. 55 da ed. de 1934 (tradução de Motte revista
por Cajori). A gravura e a citação de The System of the World, são
encontradas na p. 551 dessa edição.
10 — Ver, por exemplo, P. Duhem, The Aim and Structure of
Physical Theory, 1905; Parte II, Cap. VI, secção IV, tradução
inglesa por P. P. Wiener, 1945. Duhem diz mais explicitamente o
que está implícito na declaração do próprio Newton (Principia,
Livro I, proposição LXV, teorema XXV) pois Newton deixa in­
teiramente claro que em casos em que interagem mais de dois corpos
as primeiras duas leis de Kepler serão, no máximo, apenas apro­
ximadamente válidas, e mesmo assim só em casos muito especiais,
dos quais ele analisa dois com certa minúcia. Incidentemente, a
fórmula (1), adiante no texto, decorre imediatamente do Livro I,
proposição LIX, em vista do Livro I, proposição XV (Ver também
Livro III, proposição XV.)
11 —- Os conceitos de força (comp. nota 8, atrás) e de agfto
à distância apresentam maiores dificuldades.
12 — A. Einsten, Physikalische Zeitschrift, 10, 1900, pgs. 817s,
O abandono da teoria de um éter material (implícito no malogro de

355
Maxwell em construir um satisfatório modelo dele) pode ser tido
como dando profundidade, no sentido assinalado acima, à teoria de
Maxwell em comparação com a de Fresnel; e isto me parece implí­
cito na citação do ensaio de Einstein. Assim, a teoria de Maxwell,
na formulação de Einstein, talvez não seja realmente um exemplo
de o u tro sentido de “profundidade”. Mas penso que é, na forma
original do próprio Maxwell.

NOTAS AO CAPÍTULO 6
1 — Quando fui a Berkeley nos princípios de fevereiro de
1962, esperei ansiosamente estar com Compton. Ele morreu antes
que nos pudéssemos encontrar.
2 — A. H. Compton e A. W. Simon, Phys. Rev. 25, 1925, pgs.
309ss. (Ver também W. Bothe e H. Geiger, Zeit. f. Phys. 26, 1924,
pgs. 44ss., e 32, 1925, pgs. 639ss.; Naturwissenschaften, 13, 1925,
p. 440.)
3 — N. Bohr, H. A. Kramers e J. C. Slater, Phil. Mag. 47.
1924, pgs. 785ss., e Zetsehr. f. Phys. 24, 1924, pgs. 69ss. Ver também
A. Compton e S. K. Allison, X-Rays in Theory and Experiment,
1935; por exemplo, pgs. 211-27.
4 — Ver Cap. 1, secção 19, de Compton e Allison (nota 3).
5 — A. H. Compton, The Freedom of Man, 1935 (3.a ed.,
1939). Este livro baseou-se principalmente nas Conferências da
Fundação Terry, proferidas por Compton em Yale em 1931 e, ainda,
em duas outras séries de conferências feitas logo após as. da Fun­
dação Terry.
6 — A. H. Compton, The Human Meaning of Science, 1940.
7 —■Sobre as imperfeições do sistema solar ver as notas 11
e 16, adiante.
8 — Ver a secção 23 de meu livro The Poverty of Histori-
cism (1925 e edições posteriores), onde critico o critério “holístico”
de um “todo” (ou Gestalt) mostrando que este critério (“um todo
é mais do que a mera soma de suas partes”) é satisfeito mesmo
pelos favoritos exemplos holísticos de não-todos, tais como um “mero
monção” de pedras. (Note-se que não nego que existam todos; só
objeto à superficialidade de muitas teorias “holísticas”.)
9 — O,próprio Newton não se achava entre os que extraiam
de suas teorias estas conseqüências deterministas; ver notas 11 e
16, adiante.
10 — A convicção de que o determinismo faz parte essencial
de qualquer atitude racional ou científica foi geralmente aceita,
mesmo por algpins dos principais opositores do “materialismo” (como
Spinoza, Leibniz, Kant e Schopenhauer). Um dogma similar que
formou parte da tradição racionalista foi o de que todo conheci­
mento começa com observação e prossegue daí por indução. Comp.
minhas observações sobre estes dois dogmas do racionalismo em meu
livro Conjectures and Refutations, 1963, 1965, 1969, 1972, pgs. 122s.
11 — 0 próprio Newton pode ser contado entre os poucos dissi­
dentes, pois encarava mesmo o sistema solar como imperfeito e,
conseqüentemente, como susceptível de perecer. Por causa dessas
opiniões foi acusado de impiedade, de “fazer uma crítica à sabe­
doria do autor da natureza” (Como relata Henry Pemberton em
A View of Sir Isaac Newton’s Philosophy, 1728, p. 180.)

356
12 — Colleeted Papers of Charles Sanders Peirce, 6, 1935, 6.44,
p. 35. Pode sem dúvida ter havido outros físicos que desenvolveram
opiniões semelhantes, mas fora de Newton e Peirce só sei de um:
o Prof. Franz Exner, de Viena. Schrõdinger, que foi seu aluno,
escreveu acerca das opiniões de Exner em seu livro Science, Theory
and Man, 1957, pgs. 71, 133, 142s. (Este livro foi publicado ante­
riormente sob o título de Science and the Human Temperament,
1935, e Compton referiu-se a ele em The Freedom of Man, p. 29.)
Comp. também nota 25, adiante.
13 — C. S. Peirce, ob. cit. 6, 6.47, p. 37 (publicado primeira­
mente em 1892). O trecho, embora breve, é muito interessante porque
antecipa (notar a observação sobre flutuações em misturas explo­
sivas) algo da discussão dos macro-efeitos que resultam da apli­
cação das indeterminações de Heisenberg. Esta discussão começa,
parece, com um ensaio de Ralph Lillie, Science, 46, 1927, pgs.
139ss., a que Compton se refere em The Freedom of Man, p. 50.
Desempenha papel considerável no livro de Compton, pgs. 48 ss.
(Note-se que Compton proferiu as Conferências da Fundação
Terry em 1931.) Compton, ob. cit., nota 3, pgs. 51s., apresenta
uma comparação quantitativa muito interessante dos efeitos de
acaso devidos ao movimento molecular de calor (a indetermina-
ção que Compton tinha em mente) com a indeterminação de Heisen­
berg. A discussão foi levada adiante por Bohr, Pascual Jordan,
Fritz Medicus, Ludwig von Bertalanffy e muitos outros; mais re-
centemente, especialmente também por Walter Elsasser, The Phy-
sical Foundations of Biology, 1958.
14 — Estou aludindo a Paul Carus, The Monist, 2, 1892, pgs.
560ss., e 3, 1892, pgs. 68ss. Peirce replicou em The Monist, 3, 1893,
pgs. 526ss. (Ver seus Colleeted Papers, 6, Apêndice A, pgs. 390ss.)
15 — A súbita e completa transformação da situação de pro­
blema pode ser aferida pelo fato de que muitos de nós, velhos
caturras, não achávamos realmente há tanto tempo que os filósofos
empíricos (ver por exemplo Moritz Schlick, Allgemeine Erkenny-
nislehre, 2.a ed., 1925, p. 227) eram deterministas físicos, enquanto
hoje em dia o determinismo físico está sendo repelido por P. H.
Nowell-Smith, dotado e vigoroso defensor de Schlick como uma
"moxinifada do século 18” (Mind, 63, 1954, p. 331; ver também
a nota 37, adiante). O tempo marcha e sem dúvida, a tempo, resol­
verá todos os nossos problemas, moxinifadas ou não. Mas, bem
estranhamente, nós, velhos caturras, parecemos recordar o tempo
de Planck, Einstein e Schlick e temos muito trabalho para tentar
convencer nossos espíritos confusos e perplexos de que esseS
grandes pensadores deterministas produziram suas moxinifadas no
século 18, juntamente com Laplace, que produziu a moxinifada
mais famosa de todas (a “inteligência sobre-humana” de seu Essay
de 1819, muitas vezes chamada “demônio de Laplace” ; comp. Comp­
ton, The Freedom of Man, pgs. 5s, e The Human Meaning of Science,
p. 34, e Alexander, citado na nota MM 35 adiante). Contudo, um
esforço ainda maior talvez pudesse recordar, mesmo a nossas me­
mórias falhas, uma moxinifada de século 18 similar, produzida por
umi certo Carus (não o pensador P. Carus, do século 19, referido
na nota 14, mas T. L. Carus, que escreveu Lucretius de rerum na*
turae, ii, 251-60, citado por Compton em The Freedom of Man, p .l),
16 — Desenvolvi esta opinião em 1950, num ensaio, “Indeter-
minism in Quantum Physics and in Classical Physlcs”, Britiih

357
Journal for the Philosophy of Science, 1, 1950, n.° 2, pgs. 117-33,
e n.° 3, pgs. 173-95. Quando escrevi este ensaio, eu nada sabia, infe­
lizmente, das opiniões de Peirce (ver notas 12 e 13). Talvez possa
mencionar aqui que extrai a idéia de opor nuvens e relógios desse
meu antigo ensaio. Desde 1950, quando meu trabalho foi publicado,
a discussão de elementos indeterministas na física clássica, obteve
impulso. Ver Leon Brillouin, Scientific Uncertainty and Informa-
tion, 1964 (livro com o qual não estou de modo algum em pleno
acordo) e as referências à literatura dadas nele, esp. nas pgs. 38,
106, 127, 151s. A estas referências poderia acrescentar-se em par­
ticular o grande ensaio de Jacques Hadamard referente às linhas
geodésicas sobre superfícies “corníferas” de curvatura negativa,
Journal de mathématiques pures et appliquées, 5.a série, 4, 1898,
pgs. 27ss.
17 — Ver também meu livro The Logic of Scientific Discovery
especialmente'o novo Apêndice *XI; também o cap. IX desse livro,
que contém crítica que no principal é válida, embora, em vista da
crítica de Einstein no Apêndice *XII, eu tivesse de retirar a expe­
riência de pensamento (de 1934) descrita na secção 77. Esta expe­
riência pode ser substituída, porém, pela famosa experiência de
pensamento de Einstein, Podolski e Rosen, ali discutida nos Apên­
dices *XI e *XII. Ver também meu estudo “The Propensitv Inter-
pretation of the Calculus of Probability, and the Quantum Theory”,
em Observation and Interpretation, ed. por S. Kõrner, 1957, pgs.
65-70 e 83-9.
18 — Esta última sentença entende-se como uma crítica a certas
opiniões contidas no interessante e estimulante livro de Thomas S.
Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, 1963.
19 — Ver Wemer Heisenberg, The Pkysical Principies of the
Quantum Theory, 1930.
20 — Estou aludindo à refutação, por Compton, da teoria de
Bohr, Kramer e Slater, ver nota 3, atrás; ver também a própria
alusão de Compton, em The Freedom of Man, p. 7 (última frase)
e The Human Meaning of Science, p. 86.
21 — Comp. o Prefácio de Compton em Heisenberg, ob. cit.,
pgs. iii ss,; também suas observações sobre a incompletação da me­
cânica do quantum em The Human Meaning of Science, p. 42 Comp­
ton aprovava a incompletação da mecânica do quantum, ao passo
que Einstein via nela uma fraqueza da teoria. Replicando q Einstein,
Niels Bohr afirmou (como antes dele J. von Neumann) que a
teoria era completa (talvez em outro sentido do termo). Ver, por
exemplo, A. Einstein, B. Podolsky e N. Rosen, Physicai Review, 42,
1935, pgs. 777-80; e a réplica de Bohr em 48, 1935, pgs. 696 ss.;
também A. Einstein, Dialectica, 2, 1948, pgs. 320-4 e Bohr, pgs.
312-19, no mesmo volume; mais ainda, a discussão entre Einstein
e Bohr em P. A. Schilpp (ed.) Albert Einstein — Philosopher-
-Scientist, 1949, pgs. 201-41 e especialmente 668-74, e uma carta de
Einstein publicada em meu livro The Logic of Scientific Discovery,
pgs. 457-64; ver também pgs. 445-56.
22 — Ver a história de sua descoberta como a narra N. R.
Hanson em The Concept of the Positron, 1963, Cap. IX.
23 — Ver especialmente os trechos sobre a “evolução emer­
gente” em The Freedom of Man pgs. 90 s.; comp. The Human Mea­
ning of Science, p. 73.
24 — Comp. The Freedom of Man, p. 1.

358
t

25 — Comp. The Freedom of Man, pgs. 26 s.; ver também pgs.


27 s. (o último parágrafo que começa na p. 27). Posso talvez lembrar
ao leitor que minhas opiniões diferem um pouco do trecho citado
porque, como Peirce, acho logicamente possível que as leis de um
sistema sejam newtonianas (e assim deterministas prima fa d e)
e o sistema, não obstante, seja indeterminista, porque o sistema a
que as leis se aplicam pode ser intrinsecamente impreciso, no sen­
tido, por exemplo, de que não há senso em dizer que suas coorde­
nadas ou velocidades são números racionais (em oposição a irracio­
nais). A observação seguinte (ver Schrodinger, ob. cit., p. 143) é
também muito relevante: “ . . . o teorema do momento de energia
proporciona-nos apenas quatro equações, deixando assim o pro­
cesso elementar indeterminado em grande extensão, ainda mesmo
que concorde com elas”. Ver também a nota 16, atrás.
26 — Comp. The Human Meaning of Science, p. IX.
27 — Ibid. p. 42.
28 — Comp. The Freedom of Man, p. 27.
29 — Admitamos que nosso mundo físico é um sistema fisica­
mente fechado, contendo elementos de acaso. Obviamente, não seria
determinista; mas propósitos, idéias, esperanças e desejos não po­
deríam, em tal mundo, ter qualquer influência sobre eventos físicos;
admitindo que eles existam, seriam completamente redundantes;
seriam o que se chama “epifenômenos”. (Note-se que um sistema
físico determinista será fechado, mas que um sistema fechado pode
ser indeterminista. Assim, “o indeterminismo não é bastante”, como
foi bem explicado na secção X, atrás; ver também a nota 40.)
30 — Kant sofreu profundamente com este pesadelo e falhou
em suas tentativas de fugir dele; ver a excelente oposição de Comp­
ton sobre a “avenida de fuga de Kant” em The Freedom of Mam,
pgs. 67 s. (Na linha 3 da p. 68 as palavras “of Pure Reason" deve­
ríam ser riscadas. Talvez eu possa mencionar aqui que não concordo
com tudo quanto Compton tem a dizer no campo da filosofia da
ciência. Exemplos de opiniões de que não compartilho são: a apro­
vação por Compton do positivismo ou fenomenalismo de Heisen­
berg (The Freedom of Man, p. 31) e certas observações (ob. cit.
nota 7 na p. 20) que Compton credita a Carl Eckart; embora o
próprio Newton não fosse, parece, um determinista (comp. a nota
11), não penso que a bem precisa idéia de determinismo físico de­
vesse ser discutida em termos de alguma vaga “lei de causalidade” ;
nem concordo em que Newton fosse um fenomenalista num sentido
similar àquele em que se pode dizer que Heisenberg foifenome­
nalista (ou positivista) lá pela década de 1930.
31 — David Hume, A Treatise of Human Nature, 1739 (ed.
L. A. Selby-Bigge, 1888 e reimpressões), p. 174; ver também, por
exemplo, pgs. 173 e 87.
32 — Hume, ob. cit., pgs. 408 ss.
33 — Hume, ob. cit., pgs. 403 s. É interessante comparar isto
com as pgs. 404 s. (onde Hume diz “defino a necessidade de dois
modos”) e com sua atribuição à “matéria” daquela “qualidade inte­
ligível, chame-se necessidade ou não” que, como ele diz, todos “devem
acceder em que pertence à vontade” (ou às “ações da mente”). Em
outras palavras, Hume tenta aqui aplicar sua doutrina de costume
ou hábitos, e sua psicologia de associação, à “matéria”, isto i,
à física.

939
34 — Ver especialmente B. F. Skinner, Walden Two, 1948,
encantador e benevolente mas extremamente ingênuo sonho utó­
pico de onipotência (ver especialmente pgs. 246-50; também 241 s.).
Aldous Huxley, Brave New World, 1932 (ver também Brave New
World Revisited, 1959) e George Orwell, 1984, 1948, são antídotos
bem conhecidos. Critiquei algumas destas idéias utópicas e autori­
tárias em The Open Society and Its Enemies, 1945, 4.a ed. 1962,
e em The Poverty of Historicism, e. g., p. 91. (Ver em ambos os
livros, especialmente, minha crítica da chamada “sociologia do co­
nhecimento”.)
35 — Meu físico surdo é, sem dúvida,'estreitamente similar ao
demônio de Laplace (ver nota 15); e acredito que suas realiza­
ções são absurdas simplesmente porque aspectos não-físicos (obje­
tivos, propósitos, tradições, gostos, engenhosidade) desempenham um
papel no desenvolvimento do mundo físico; ou, em outras palavras,
acredito no interaeionismo (ver notas 43 e 62). Samuel Alexander,
em Space, Time and Deity, 1920, vol. II, p. 328, fala do que chama
o “calculador laplaceano” : “Exceto no sentido limitado descrito, a
hipótese do calculador é absurda”. Contudo, o “sentido limitado”
inclui a predição de todos os eventos puramente físicos e assim
inclui a predição da posição de todos os sinais pretos escritos por
Mozart e Beethoven. Só exclui a predição de experiência mental (ex­
clusão que corresponde estreitamente à minha suposição da surdez
do físico). Assim, Alexander está disposto a admitir o que encaro
como absurdo. (Talvez eu possa dizer aqui que acho preferível dis­
cutir o problema da liberdade em conexão com a criação de música
ou de novas teorias científicas ou de invenções técnicas, em vez de
com a ética e com responsabilidade ética.)
36 — Hume, ob. cit. p. 609 (os grifos são meus).
37 — Ver a nota 15, atrás, e Gilbert Ryle, The Concept of
Mind, 1949, pgs. 76 ss. (“The Bogy of Mechanism”).
38 — Comp. N. W. Pirie, “The Meaninglessness of the Terms
Life and Living”, Perspectives in Biochemistry, 1937 (ed. J. Needham
e D. E. Green), p. lis .
39 — Ver por exemplo A. M. Turing, “Computing Machinery
and Intelligence”, Mind 59, 1950, pgs. 433-60. Turing asseverou que
homens e computadores são em princípio indistinguíveis por sua
atuação (comportamental) observável e desafiou seus opositores a
especificarem algum comportamento ou realização observável do
homem que um computador, em princípio, fosse incapaz de efetuar.
Mas este desafio é uma armadilha intelectual: especificando um
tipo de comportamento estaríamos traçando uma especificação para
construir um computador. Além do mais, usamos e construímos
computadores porque eles podem fazer muitas coisas que não po­
demos; tal como uso uma pena ou um lápis quanto desejo totalizar
uma soma que não consigo calcular em minha cabeça. “Meu lápis
é mais inteligente do que eu”, costumava dizer Einstein. Mas isto
não estabelece que ele seja indistinguível de seu lápis. (Comp. os
parágrafos finais de meu ensaio sobre o Indeterminismo, citado
na nota 16 atrás, e o cap. 12, secção 5, de meu livro Conjectures’
and Refutations.)
40 — Ver M. Schlick, Erkenntnis, 5, p. 183 (extraído- das últi­
mas oito linhas do primeiro parágrafo).
41 — Hume, ob. cit., p. 171. Ver também, por exemplo, p. 407:
“ . . . a liberdade. . . é a mesma coisa com acaso”.

360
t

42 — Com. The Freedom of Man, pgs. 53 s.


43 — Uma discussão crítica daquilo que chamo aqui o pro­
blema de Descartes será encontrada nos capítulos 12 e 13 de meu
livro Conjectures and Refutations. Posso dizer aqui que, como
Compton, sou quase um cartesiano, até onde rejeito a tese da com-
pletação física de todos os organismos vivos (considerados como
sistemas físicos), quer dizer, até onde conjecturo que em certos
organismos os estados mentais podem interagir com estados físicos.
(Sou, entretanto, menos cartesiano do que Compton: sou mesmo
menos atraído do que ele pelos modelos de chave-mestra; comp.
notas 44. 45 e 62.) Além disso, não tenho simpatia pela conversa
cartesiana de uma substância mental, ou substância pensante, do
mesmo modo que não a tenho por sua substância material ou subs­
tância ampliada. Sou cartesiano apenas até onde creio na exis­
tência de estados físicos e de estados mentais (e, além disso, em
coisas ainda mais abstratas, tais como estados de uma discussão).
44 — Compton dicutiu esta teoria com algum detalhe, espe­
cialmente em The Freedom of Man, pgs. 37-65. Ver especialmente a
referência a Ralph Lillie, ob. cit. em The Freedom of Man, p. 63 s.,
e em The Human Meaning of Science, p. 53, a respeito do caráter
de individualidade de nossas ações, e como ele explica por que
isso nos permite evitar o que posso chamar segunda ponta do di­
lema (cuja primeira ponta é o determinismo puro), isto é, a possi­
bilidade de que nossas ações sejam devidas a puro acaso; comp.
nota 40.
45 — Ver especialmente The Human Meaning of Science, pgs.
yiii s., e p. 54, a última sentença da secção.
46 — Este é um ponto de grande importância, tanto que difi­
cilmente descreveriamos qualquer processo como tipicamente bioló­
gico, a menos que ele envolvesse a liberação ou o disparo de energia
armazenada. Mas o oposto, sem dúvida, não é o caso; muitos pro­
cessos não-biológieos são do mesmo caráter; e apesar de que ampli­
ficadores e processos de liberação não desempenham grande papel
na física clássica, eles são muito característicos da física do quan-
tum e naturalmente da química. (A radioatividade com uma energia
disparadora igual a zero é um caso extremo; outro caso interes­
sante é a sintonização — em princípio adiabática — de uma certa
freqüência de rádio, seguida pela extrema amplificação do sinal ou
estímulo.) Esta é uma das razões por que fórmulas tais como “a
causa iguala o efeito” (e com elas as críticas tradicionais do inte-
racionismo cartesiano) desde muito se tornaram obsoletas, apesar
da continuada validez das leis de conservação. Comp. a nota 43
adiante e a função de linguagem estimuladora ou liberadora, dis­
cutida na secção XIV, adiante; ver também Conjectures and Refu­
tations, p. 381.
47 — A teoria das funções da linguagem é devida a Karl Bühler
(The Mental Development of the Child, 1919, tradução inglesa, 1930,
pgs. 55, 56, 57; também Sprachtheorie, 1934). Às três funções dele
acrescentei a função argumentativa (e algumas outras funções que
aqui não têm papel a desempenhar, tais cbmo a exortativa e a per-
suasiva). Ver por exemplo meu ensaio “Language and the Body-
Mind Problem” em Conjectures and Refutations, p. 295, nota 2 e
texto. (Ver também pgs. 143 s.) Não é impossível que existam em
animais, especialmente em abelhas, estágios de transição para algu­
mas linguagens descritivas; ver K. von Frisch, Bees: their Vision,

361
Chemical Senses and Language, 1950; The Dancing Bees, 1955; e
M. Lindauer, Communication Among Saciai Bees, 1961.
48 — Comp. os livros de Frisch, ob. cit., e de Lindauer, ob. cit.
49 — Ver meu livro Conjectures and Refutations, cap. 1, espe­
cialmente a observação na p. 64 sobre a lógica formal como o sistema
da crítica racional; também os capítulos 8 a 11 e o capítulo 15.
50 — Ver a nota 49 e meu livro The Open Society and Its
Enemies, especialmente o capítulo 24 e o Adendo ao vol. II (quarta
ed., 1962); e ver Conjectures and Refutations, especialmente o Pre­
fácio e a Introdução.
51 — Comp. p. 106, nota 1, de meu livro The Poverty of Histo-
rícism.
52 — A idéia de “ver pelo telescópio” (embora não esta ex­
pressão, que devo a Alan Musgrave), talvez possa ser encontrada no
cap. VI de The Origin of Speciesi, 1859, de Charles Darwin (estou
citando da edição Mertor Book, p. 180, grifos m eus): “cada orga­
nismo altamente desenvolvido passou por várias mudanças. E cada
estrutura modificada tende a ser herdada. . . de modp que cada
modificação não será.. . inteiramente perdida. .. Eis porque a es­
trutura de cada parte ( do organismo) é a soma de muitas mutações
herdadas, pelas quais passaram as esp écies...” Ver também E.
Baldwin no livro Perspectives in Biochemdstry, pgs. 99s., e a lite­
ratura ali citada.
53 — A emersão de uma nova situação de problema poderia
ser descrita como uma mudança ou diferenciação do “nicho eco­
lógico”, ou ambiente significativo, do organismo. (Talvez possa ser
chamada uma “selção de habitat”; comp. B. Lutz, Evolution, 2,
1948, pgs. 29ss.) O fato de que qualquer mudança no organismo,
ou em seus hábitos, ou em seu habitat produz novos problemas
explica a incrível riqueza das soluções (sempre experimentais).
54 — Ver nota 23 para referência às observações de Compton
sobre “revolução emergente”.
55 — O método de experiência e eliminação de erro não opera
cóm experiências de tipo completamente fortuito ou ao acaso (como
às vezes tem sido sugerido), ainda que as experiências possam
parecer muito ao acaso; deve haver pelo menos um “efeito posterior”
(no sentido dado em meu The Logic of Scientific Discovery, pge.
162ss.). Pois o organismo está constantemente aprendendo com seus
enganos, isto é, estabelece controles que suprimem ou eliminam, ou
pelo menos reduzem a freqüência de certas experiências possíveis
(que foram talvez reais em seu passado evolucionário).
56 — Isto é agora às vezes chamado “efeito de Baldwin”; ver,
por exemplo, G. G. Simpson, “The Baldwin Effect”, Evolution, 7,
1953, pgs. llOss, e C. H. Waddington, no mesmo volume, pgs. 118ss.
(ver especialmente a p. 124) e pgs. 386s. Ver também J. Mark
Baldwin, Developrwnt and Evolution, 1902, pgs. 174ss. e H. S. Jen-
nings, The Behaviowr of the Lower Organisms, 1906, pgs. 321ss.
57 — Ver The Freedom of Man, p. 91, e The Human Meaning
of Science, p. 73.
58 — Comp. H. S. Jennings, ob. cit., pgs. 334s e 349s. Belo
exemplo de um peixe resolvendo um problema é descrito por K. Z.
Lorenz, King Solomorís Ring, 1952, pgs. 37s.
59 — John A. Wheeter, American Scientist, 44, 1956, p. 360.
60 — Podermos somente escolher a “melhor” de um conjunto
de hipóteses concorrentes — ia “melhor” à luz de uma discussão

362
»

crítica dedicada à procura da verdade — significa escolhermos


aquela que parece, à luz da discussão, chegar “mais perto da ver­
dade” ; ver meu Conjectures and Refutations, cap. 10. Ver também
The Freedom of Man, pgs. VIIs e especialmente a p. 74 (sobre o
princípio de conservação da energia.
61 — Paredes ou membranas permeáveis parecem ser caracte­
rísticas de todos os sistemas biológicos. (Isto pode estar ligado ao
fenômeno da individuação biológica.) Sobre a pre-história da idéia
de que membranas e bolhas são organismos primitivos, ver C. H.
Kahn, Anaximander, 1960, pgs. l l l s s .
62'— Como foi sugerido em várias partes, conjecturo que a
aceitação de uma “interação” de estados físicos e mentais oferece
a única solução satisfatória do problema de Descartes; ver também
a nota 43. Desejo aduzir aqui que penso termos boas razões para
admitir que existem estados mentais, ou estados conscientes (por
exemplo, em sonhos em que a consciência do ego (ou a posição e
identidade espacial-temporal de alguém) é muito fraca ou está
ausente. Parece razoável, portanto, admitir que a plena consciência
ao ego é um desenvolvimento ulterior e que é um erro formular o
problema de corpo-mente de modo tal que esta forma deAconsciência
(ou “vontade consciente”) seja tratada como se fosse a única.
63 — Comp. por exemplo meu Conjectures and Refutations,
esp. p. 312.
64 — Ver, por exemplo, Ernst H. Gombrich, Meditation on a
Hobby Horse, 1963, especialmente p. 10; e, do mesmo autor, A rt and
Illusion, 1960, 1962 (Ver no índice “trial and error”) . Comp. também
nota 65.
65 — Sobre a estreita similaridade da produção artística com
a científica ver The Freedom of Man, Prefácio, pgs. VII s., e a
observação em The Freedom of Man, p. 74, referida na nota 60,
atrás; também ver E. Mach, Wàarmelehre, 1896, pgs. 440s., onde
ele escreve: “A história da arte. . . nos ensina como formas que
surgem acidentalmente podem ser usadas em obras de arte. Leo­
nardo da Vinci aconselha o artista a procurar formas de nuvens
ou manchas em paredes sujas e enfumaçadas que lhe possam sugerir
idéias que convenham a seus planos e suas disposições. . . Também
um músico pode às vezes obter novas idéias de ruídos casuais; e
ouvimos certa ocasião de um famoso compositor que ele foi levado
a encontrar valiosos motivos melódicos ou harmônicos por bater
numa tecla errada quando tocava piano”.

NOTAS AO CAPÍTULO 7
1 — Ver especialmente o ensaio de Spencer “The Factors of
Organic Evolution”, publicado primeiramente em seus Essays (por
exemplo, no vol. 1 da “Library Edition” de 1891, pgs. 389ss. É inte­
ressante notar que entre muitas idéias importantes nesse ensaio há
formulações de uma abordagem que é agora chamada “abordagem
organísmica da biologia” e se acredita amplamente ser uma ino­
vação; ver, por exemplo, p. 410, onde Spencer fala de mudanças
em certos órgãos e diz que “todos os outros. . . órgãos ficam impli­
cados na mudança. As funções realizadas por eles têm de constituir
um equilíbrio mcmente.” (grifos meus) Em termos modernos, Spen-

363
cer descreve aí o organismo como “um sistema aberto em equilíbrio
fluente” (ou “num estado aproximadamente firme”).
2 — Albert Einstein, On the Methods of Theoretical Physics,
1933. (Também no seu The World as I See It, Sir Peter Medawar
indicou-me que eu deveria ter mencionado aqui, além de Darwin e
Einstein, Claude Bernard, An Introduction to the Study of Expe­
rimental Medicine (1865), 1927.
3 — Desde então tenho tentado rastrear esta doutrina até
Parmênides, que a formulou a fim de combatê-la. Ver p. 165 da
segunda edição de meu livro Conjectures and Refutations (1965).
4 — Repeti aqui o relato de uma experiência que já descreví
na p. 46 da segunda edição (1965) de meu Conjectures and Refu­
tations.
5 — Francis Darwin (ed.), More Letters of Charles Darwin,
vol. I, 1903, p. 195. Ver também J. O. Widson, Foundations of Infe-
rence in Natural Science, 1952, p. 50; e Nora Barlow, The Autobio-
graphy of Charles Darwin, 1958, p. 161. O texto de Darwin termina
com as palavras (que, admito, o enfraquecem levemente como um
apoio de minha tese) “se isto for de alguma utilidade!”
6 — A doutrina ainda mais venerável de que todo conheci­
mento parte da percepção ou sensação, e que é aqui, naturalmente,
também rejeitada, está na raiz do fato de que os “problemas de
percepção” são ainda amplamente considerados como formando parte
respeitável da filosofia, ou mais precisamente da teoria do conhe­
cimento.
7 — Ver meu Logic of Scientific Discovery, especialmente pgs.
108 e 131, e também meu Poverty of Historicism, p. 133.
8 — Spencer também escreve, criticando Comte (Essays, 1891,
vol. II, p. 24): “O progresso da ciência é duplo. Vai ao mesmo
tempo do especial para o geral e do geral para o especial. É ao
mesmo tempo sintético- e analítico”. Como exemplos deste princípio,
Spencer menciona dez descobertas em física, incluindo as teorias
de Galileu e de Newton. (Ibid., pgs. 25 ss.).
9 — Peter B. Medawar, The Future of Men, Metuhen, 1961.
10 — Cito de Sir Charles Sherrington, The Integrative Action
of the Nervous System, 1906, 1947, p. 238.
11 — Ver J. M. Baldwin, Development and Evolution, 1902, e
Erwin Schrõdinger, 1958, especialmente o capítulo “Feigned La-
marckism”, pgs. 26 ss. Originariamente, também me referi aqui
a Sir Julian Huxley, Evolution — The Modem Synthesis, 1942. Sir
Peter Medawar chamou minha atenção para o fato de que a refe­
rência é dúbia neste contexto e também me chamou a atenção
para o ensaio de Waddington; ver -atrás, nota 56 ao Cap. 6.
12 — G. L. Le Sage (traduzido por Abbot: “The Newtonian
Lucretius”), Annual Report of the Smithsonian Institution, 1898,
pgs. 139-60.
13 — Na conferência original, dois trechos deste parágrafo
ficaram em lugar diferente (aproximadamente uma página adiante.)
14 — Esta é apenas uma das incontáveis dificuldades da teoria
de Darwin às quais alguns neodarwinistas parecem estar quase
cegos. Particularmente difícil de compreender deste ponto de vista
é a transição de organismos unicelulares para multicelulares, que
têm novas e peculiares dificuldades para reproduzir-se e, especial­
mente, para sobreviver, e que introduzem na vida algo de novo, a
saber, a morte; pois todos os indivíduos multicelulares morrem.

364
t

NOTAS AO “ADENDO”

1 — Richard B. Goldschmidt, The Material Basis of Evolution,


YaJe University Press, New Haven, 1940.
2 — Ver Richard B. Goldschmidt, ob. cit., e também seu “Some
Aspects of Evolution”, em Science, 78, 1933, pgs. 539-47.
3 — 1. Lakatos, “Proofs and Refutations”, em B.J.P.S., 14,
1963, p. 24.
4 — Norman Macbeth, Darwin Retried, Gambit Inc., Boston,
1971; ver especialmente o cap. 17.

NOTAS AO CAPÍTULO 8
1 — W. V. Quine, Word and Object, 1960, p. 264.
2 — W. V. Quine, From a Logical Point of View, 2.a ed. rev.,
1961, p. 2.
3 — K. R. Popper, “What is Dialectic?”, em Conjectures and
Refutations, 1963.
4 — K. R. Popper, The Poverty of Historicism, 1957, Prefácio.
5 — W. V. Quine, From a Logical Point of View, 2.a ed. rev.,
1961, p. 2.
6 — H. Weyl, The Theory of Groups and Quantum Mechanics,
1931, pgs. 72 e 393.
7 — M. Born, The Natural Philosophy of Cause and Chance,
1949, pgs. 189-91.
8 — E. L. Hill, em Mind, M atter and Method, Essays in Phi­
losophy and Science in Honor of Herbert Feigl (P. Feyerabend e
G. Maxwell, eds.), 1966, p. 442.
9 — K. R. Popper, The Logic of Scientific Discovery, 1959,
68, 72 ( l.a edição alemã, 1934).
10 — K. R. Popper, "Quantum Mechanics without ‘The Obser-
ver’”, em Quantum Mechanics and Reality, 1967, M. Bunge ed.
11 —' J. Schwartz, “The Pernicious Influence of Mathematics
on Science”, em Logic, Methodology of Sdenee, 1962 (E. Nagel, P.
Suppes e A. Tarski, eds.), pgs. 356-60.
12 — L. Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, 1922.
13 — K. R. Popper, Conjectures and Refutations, 1963, 1972,
Cap. 10 e Adendos.

NOTAS AO CAPÍTULO 9
1 — Esta formulação de nossa preocupação principal na ciên­
cia está um tanto melhorada, para as ciências naturais, na última
secção deste trabalho. Uma palavra pode ser dita aqui acerca de
terminologia. Acho desinteressante (porque principalmente verbal)
o problema de devermos falar de “sentenças”, ou “asserções”, ou
“proposições” ; os principais críticos da terminologia de “sentenças”
de Tarski afirmam que sentenças são fieiras não interpretadas de
palavras que seguem certas regras de gramática e não podem por­
tanto ser verdadeiras nem falsas. Desdenham o fato de que Tarski
fala explicitamente de “sentenças significativas” e só de linguagens
interpretadas. A fim de mostrar meu desprezo por este tipo de
crítica verbal, simplesmente uso, em vez de “sentença”, “asserção”

365
como sinônimo de uma sentença ou proposição interpretada, signi­
ficativa. Adoto simplesmente a terminologia de meus opositores.
2 — K. R. Popper, The Logic of Scientific Discovery, secção
85, p. 278.
3 — Ob. cit., secção 84.
4 — Ver especialmente a nota 1 na p. 254 de A. Tarski, Logic,
Semantics, Mathematics, Clarendon Press, Oxford, 1956.
5 — The Encyclopedia of Philosophy, ed. Paul Edwards, Mac-
millan, 1967, vol. 3, p. 37.
6 — Ob. cit., vol. 2, p. 260. Ver meu Open Society, 4.a ed.,
Adendo I, secção 3.
7 — Sou realista nos dois sentidos da palavra. Primeiramente,
creio na realidade do mundo físico. Em segundo lugar, creio que o
mundo de entidades teóricas é real, como expliquei em meus ensaios
“Epistemologia sem um Sujeito Conhecedor”, “Sobre a Teoria da
Mente Objetiva” e “Uma Visão Realista da Lógica, da Física e da
História” (que agora formam os capítulos 3, 4 e 8 do presente
volume). Neles, mantenho minha oposição ao essencialismo — à
realidade de conceitos — mas afirmo a realidade de problemas,
teorias, erros, etc. (Quanto ao primeiro sentido, posso mesmo des­
crever-me como um materialista, até onde creio na realidade da ma­
téria, embora eu enfaticamente não seja materialista no sentido de
que o “materialismo” é a concepção de que a matéria (extensa)
é algo definitivo ou irredutível, ou que só ela é real. Ao contrário,
creio que pode haver uma teoria verdadeira da matéria que ex­
plique a extensão da matéria por intensidades tais como forças,
como primeiro foi sugerido por Leibniz, Boscovic e Kant.)
8 — Comp. meu Logic of Scientific Discovery, p. 252, texto
referente à nota *1.
9 — Comp. A. Tarski, “The Semantic Conception of Truth
and the Foundations of Semantics”, Philosophy and Phenomenolo-
gical Research, 4, 1944, pgs. 341-76; ver especialmente a secção 19.
10 —■Para detalhes, ver Conjectures and Refutations, p. 223.
11 — Parece que o termo “linguagem-objeto” foi originaria-
mente introduzido para significar “linguagem que fala a respeito
de objetos (físicos)”. Uso-o no sentido de “linguagem que é objeto
de investigação” ; é investigada por uma teoria formulada em meta-
linguagem. (Isto, sem dúvida, dá origem à idéia de uma hierarquia
infinita de metalinguagens.)
12 — Um resultado só levemente menos importante filosofica­
mente acerca dos termos mencionados em (3) é que, como termos
da metalinguagem, eles têm o mesmo caráter morfológico dos termos
mencionados em (1): isto é, pertencem à morfologia desenvolvida
na metalinguagem (ainda que não àquela sua parte que contém a
morfologia ou sintaxe da linguagem-objeto e pode ser desenvolvida
na própria linguagem-objeto).
13 — Comp. p. 152 da tradução inglesa, por Woodger, Logic,
Sèmantics, Mathematics, Claredon Press, Oxford, 1956.
14 — Assim Tarski acentuou que o conceito de verdade pode
ser introduzido por meio de axiomas, em vez de por meio de uma
definição.
15 — Comp. R. M. Martin, Truth and Denotation, A Study in
Semantical Theory, Rutledge & Kegal Paul, Londres, 1958.
16 — Ver K. R. Popper, Conjectures and Refutations, nota 33
a p. 116, com um agradecimento a Alexandre Koyré.

366
17 — Ver A. Tarski, ob. cit., pgs. 342-83
18 — Acompanho no principal o simbolismo de Tarski (espe­
cialmente no uso de letras maiusculas grifadas para denotar sis­
temas dedutivos) e exceto por escrever “T” para a classe de sen­
tenças verdadeiras, quando Tarski escreve “Tr”.
19 — A. Tarski, Logic, Semantics, Mathematics, Clarendon
Press, Oxford, 1956, p. 343.
20 — Tarski referiu-se a S. Mazurkiewicz, “Über die Gundla-
gen der Wahrscheinlichkeitsrechnung I”, Monatshefte f. Math, &
Pkys., 41, 1934, pgs. 343-52. Emerge da nota 2 à p. 344 desse ensaio
que o Cálculo de Sistemas de Tarski era conhecido dos matemá­
ticos poloneses já desde 1930. Q sistema de Mazurkiewicz tem certo
caráter finitista, em contraste com o meu próprio sistema (ver
L.Sc.D., pgs. 326-58), que pode ser interpretado de vários modos,
por exemplo, como um cálculo das probabilidades de sistemas de­
dutivos.
Talvez eu possa mencionar que, no presente volume, estou
usando como símbolos para funções de medida, tais como proba­
bilidade, conteúdo e verossimilitude, letras minúsculas grifadas: por
exemplo p (A ), ct(A ), vs(A ); ao passo que nos Adendos a Conjec­
tures and Refutations, onde tratei pela primeira vez das duas
funções de medida, escrevi Ct e Vs.
21 — Comp. K. R. Popper, Conjectures and Refutations, Adendo
3, pgs. 391-7.

NOTAS AO ADENDO
1 — Comp. A. Tarski, “Der Wahrheitsbegriff in den forma-
lisierten Spracren” (Studia Philosophica, vol. I, 1935, pgs. 261 sgs.) ;
“The Concept of Truth in Formalized Languages”, em A. Tarski,
Logic, Semantics, Metamathèmaties, 1956, ensaio VIII, pgs. 152 a
278. Compreendo que Tarski prefira traduzir “Aussage” e “Aussa-
gefunktion” por “sentença” e “função de sentença (enquanto aqui
estou usando “asserção” e “função de asserção”) e que esses termos *
são os usados na tradução dos ensaios lógicos de Tarski pelo Pro­
fessor J. H. Woodger, a ser em breve publicado pela Clarendon
Press, Oxford. (O livro foi publicado em 1956. Houve poucas outras
diferenças entre minha tradução e a de Woodger.)
2 — Comp. ob. cit., pgs. 311 (193) e 313 (195). Note,-se que
a classe de funções de asserção (ou funções sentenciais) inclui a
das asserções, isto é, de funções de asserção fechadawr.
3 — O primeiro método alternativo é esboçado por Tarski na
nota 40 à p. 309s. (p. 191, n. 1). (Não é explicitamente dito que
este método pode ser usado para o fim de evitar seqüências infi­
nitas, mas é claro que pode ser assim usado.) O segundo método
é descrito na nota 43, p. 313s. (p. 195, nota 1). O método sugerido
nesta nota de Tarski, que é tecnicamente diferente do usado por
Tarski em seu texto, é usado por Carnap em seu Introduction to
Semantics (1942). p. 47s (mais precisamente, pgs. 45-8). Embora
Carnap se refira a Tarski, ele não leva em conta a antecipação,
por Tarski, deste método particular. (Há mesmo um terceiro método
indicado por Tarski na nota 87 à p. 368 (nota 2, p. 245). Este re­
curso é muito simples mas, sem dúvida, altamente artificial, no sen­
tido que Tarski dá à artificialidade; além do mais, este método

367
só se refere à definição da própria verdade, e não à do preenchi­
mento (satisfação), que tem interesse por si mesmo.)
4 — Este conceito artificial é também usado por Carnap.
5 — A principal diferença entre meu método e os sugeri­
dos por Tarski (mencionados atrás, na nota 3) consiste nisto: Tarski
sugere que correlacionemos com uma dada função (ou seqüências
infinitas ou) seqüências finitas de uma extensão definida (depen­
dente da função), ao passo que eu uso seqüências finitas que são “de
extensão suficiente” (Definição 22a), isto é, não demasiado curtas
para a função em questão. Conseqüentemente minhas seqüências
finitas podem ser de qualquer extensão (além de um certo mínimo,
que depende da função). Mas a admissão de sentenças finitas de
qualquer extensão (desde que esta seja suficiente) não envolve
vaguidão alguma, pois facilmente obtemos um teorema (ocmp. c
Lema A de Tarski, p. 317 (198), de acordo com o qual, se f preenche
x, então cada extensão g de f também preenche x (onde g é uma
extensão de / se, e apenas se, para cada / existir um g tal que
g = / ). Assim o teorema nos informa que só precisamos consi­
derar as seqüências finitas mais curtas dentre as que são ade­
quadas à função sob consideração (certamente, à função composta
total sob consideração, em oposição a seus componentes).
6 — As “coisas” (como aqui as chamo; poderia chamá-las,
como Tarski, “indivíduos”, se não fosse o fato de que eu quero
evitar mencionar a complicação talvez levemente confusa de que
acontece serem os “indivíduos” de Tarski as classes individuais do
cálculo de classes) consideradas por Tarski nesta secção de suo
obra são classes; em vista do desenvolvimento dos §§ 4 e 5 de
Tarski, falarei aqui de “seqüências de coisas”, em lugar de seqüên­
cias de classe”, admitindo que uma relação f d f é definida para
todas as coisas / e / .
7 — Comp. a Definição 6 de Tarski na p. 292 (176).
8 — Ob. cit., p. 294 (178). Tarski somente define explicita­
mente a frase “A variável v ocorre livremente na função de sen­
tença x” (ou “v é uma variável livre da função sentenciai x”).
9 — Esta é exatamente como a Definição 22 (p. 193) de
Tarski, com a exceção de que (1) é acrescentado à condição de
Tarski (a fim de substituir suas seqüências infinitas por finitas)
e de que nosso ( ô) (b), contém um pequeno ajustamento, até onde
se refere à extensão de / (e de g ). (Há uma desvantagem em tra­
duzir “erfüllen” por “satisfazer” ; é esta: na definição de / satis­
faz x faz-se uso da idéia inutitiva de “x preenche (isto é, satisfaz)
tais e tais condições”. Mas os dois “satisfaz” são tecnicamente muito
distintos, embora intuitivamente coincidam bem de perto. No texto
alemão nenhuma distinção terminológica se faz na p. 311, mas na
p. 312, nota ao pé, correspondente à nota 1 à pág. 193 da edição
inglesa, ocorre uma distinção entre “erfüllt” e “befrieãigt”. Não há,
por certo, circularidade na Definição 22.)
10 — A equivalência emerge da consideração de Tarski; comp.
ob. cit., p. 313, linhas 13 a 16 (p. 194, linhas 12 a 15).
11 — Comp. ob. cit. p. 320 (201), Definição 21 e seq.
12 — Podemos usá-la, por exemplo, para definir uma instan-
ciação de uma lei (não escrita como uma universalização, isto é,
escrita sem prefixo universal) como uma seqüência finita de coisas
que a satisfaz; ou, o que em minha opinião é mais importante, para

368
ê

definir uma instância refutaãora de qualquer função de asserção


(aberta ou fechada) como uma sequência finita (e adequada) de
coisas que não a satisfaz.

NOTAS AO APÊNDICE
1 — Com a palavra “teórico” não quero significar aqui o
oposto de “prático” (pois nosso interesse podería muito bem ser
prático) ; deve-se entendê-lo antes com o sentido de “especulativo”
(tal como um interesse especulativo num problema preexistente)
em contraste com “perceptivo”; ou “racional” em oposição a sen­
sitivo”.
2 — Compare-se F. A. von Hayek, “Scientism and the Study
of Society”, Eoonomica, N. S. 9, 10 e 11 (1942, 1943 e 1944); agora
também em Hayek, The Counter-Revolution of Science, 1952.
3 — (Acrescentado à tradução inglesa). Parte da história
completa será encontrada (embora um tanto concentrada e com
ênfase reduzida sobre o que tem sido aceito na prática efetiva como
uma explicação) em minha conferência feita em Veneza, “Philo-
sophy and Physics: Theories of the Structure of Matter” agora
contida em meu livro Philosophy and Physics (1972). Outras partes
se acham no meu Conjectures and Refutations primeira metade e es­
pecialmente os capítulos 6, 3 e 4. (Ver-se-á que este último capítulo
expande e coincide com algumas partes da presente conferência.)
4 — Na tradução inglesa tornei o exemplo um pouco menos
desagradável.
5 — (Acrescentado à tradução inglesa.) Fiz primeiro estes
comentários sobre as noções de “causa” e “efeito” na secção 12
de meu Logik der Forschung (The Logic of Scientific Discovery).
Ver também meu Poverty of Historicism, pgs. 122s; meu Open So­
ciety, especialmente a nota 9 ao cap. 25; e "What Can Logic do
for Philosophy”, Aristotelion Society, Supplementary Volume, 22,
1948, pgs. 145ss.
6 — (Acrescentado à tradução inglesa.) Esta análise não
deve ser interpretada como implicando que o tecnólogo ou o enge­
nheiro só se preocupem em "aplicar” teorias que são fornecidas pelo
cientista puro. Ao contrário, o tecnólogo e o engenheiro são cons­
tantemente defrontados por problemas a serem, resolvidos\ Esses pro­
blemas são de vários graus de abstração, mas costumeiramente, pelo
menos em parte são de caráter teórico ; ao tentar resolvê-los o tec­
nólogo ou o engenheiro usam, como todos os mais, o método de
conjectura, ou experiência, e teste, ou refutação, ou eliminação de
erro. Isto é bem explicado na p. 43 de J. T. Davies, The Scien­
tific Approach, 1965, livro em que podem ser encontradas muitas
aplicações e ilustrações boas da teoria do holofote da ciência.
7 — Uma predição importante corresponde, em certo sentido,
a um teste severo ou a um “experimentum crucis” ; poip, a fim de
que uma predição P possa ser relevante para um teste de uma teoria
T, ela deve afirmar uma predição P ’ que não contradiga a con­
dição inicial e o restante do horizonte de expectativas até agora
que não seja T (suposições, teorias, etc.) e que, em combinação com
as condições iniciais e o restante do horizonte de expectativas, con­
tradiga P. É isto o que significa se dissermos que P ( —E ) deveria
ser (sem T) “inesperado”.

369
8 — Examinadores experientes acharão que a palavra “facil­
mente” é um tanto irrealista. Como às vezes dizia meditativamente
o Presidente de uma Comissão Governamental de Examinadores em
Viena: “Se um estudante, ao responder num exame à pergunta
“Quanto são 5 mais 7” disser “18”, deixá-lo-emos passar, mas se
responder “Verde”, então, acho às vezes, depois, que teríamos real­
mente de reprová-lo”.
9 — (Acrescentado à tradução inglesa.) Nos últimos anos
(desde 1950) tenho feito nítida distinção entre as tarefas da ciência
teóricas ou explicativas e as práticas ou “instrumentais” e tenho
acentuado a prioridade lógica da tarefa teórica sobre a tarefa ins­
trumental. Tenho tentado enfatizar, mais especialmente, que as
predições não só têm um aspecto instrumental como também, e prin­
cipalmente, um aspecto teórico, pois desempenham papel decisivo
para testar uma teoria (como se mostrou atrás nesta conferência).
Ver meu Conjectures and Refutations, especialmeríte o capítulo 3.
10 — (Acrescentado na tradução inglesa.) A incompatibilidade
da teoria de Newton com a de Kepler foi acentuada por Pierre
Duhem, que, acerca dos “principias de gravidade universal” de
Newton, escreveu estarem eles “muito longe de ser deriváveis por
generalização e indução das leis observacionais de Kepler”, por­
quanto “contradizem formalmente estas leis. Se a teoria de Newton
é correta, ms leis de Kepler necessariamente são falsas”. (A citação
é da p. 193 da tradução de P. Duhem feita por P. P. Wiener, The
Aim and Structure of Physical Theory, 1954. O termo “observacio-
nal", aqui. aplicado às “leis de Kepler”, deve ser tomado com um
bom grão de sal; as leis de Kepler eram conjecturas atrevidas, como
o eram as de Newton; não podem ser induzidas das observações
de Tycho — tal como as de Newton não o podem ser das leis de
Kepler.) A análise de Duhem baseia-se no fato de que nosso sis­
tema sòlar contém muitos planetas pesados para cuja atração mútua
deve ser dada uma tolerância de acordo com a teoria da pertur­
bação de Newton. Podemos, contudo, ir além de Duhem; mesmo se
tomarmos as leis de Kepler como válida para um conjunto de siste­
mas de dois corpos, cada um deles contendo um corpo central da
massa do sol e um planeta (de massa e distância variáveis nos
vários sistemas diferentes pertencentes ao conjunto), mesmo então
as terceiras leis de Kepller falham se as leis de Newton forem
verdadeiras, como mostrei em resumo em Conjectures and Refu-
tations, na nota 28 ao Cap. 1 (p. 62 e, com certo detalhe, em meu
ensaio “The Aim of Science” (1957) que é agora o Capítulo 5 do
presente volume, e também em Theorie und Realitat, editado por
Hans Albert, 1964, Capítulo 1, pgs. 73ss. especialmente pgs. 82s.
Neste ensaio digo algo mais a respeito de explicações que corrigem
seus explicando, (aparentemente “conhecidos” ou “dados”) enquanto
aproximadamente os explicam. Esta é uma opinião que tenho desen­
volvido bem amplamente em minhas conferências desde 1940 (pri-
meiramente numa série de. conferências proferidas na filial de
Christchurch da Real Sociedade da Nova Zelândia; comp. a anota­
ção à p. 134 de meu Poverty of H istoricism).
11 — (Acrescentado à tradução inglesa.) Uma análise mais
completa da “compreensão” é dada no Capítulo 4 do presente
volume.

370
ê

ÍNDICE DE NOMES
Palavras formadas de nomes próprios foram, em geral, alista-
tadas sob o nome da pessoa respectiva. Referências de importância
especial estão em grifo, n = anotação; ns = anotações.

Abbot, C. G., 364n. Bolzano, B., 77, 108, 118, 126,


Adler, A., 336n. 127, 343n, 148, 151, 347n, 282.
Albert, H„ 40, 335n, 191n, 191, Boole, G., 139.
730n. Born, M., 350n, 175 e 351n, 355n,
Alcmeão, 354n. 193, 225-226, 274, 276 e 365n.
Alexander, S., 360n. Boscovic, R. J., 366n.
Allison, S. K., 356n. Bothe, W., 356n.
Anaximandro, 349n, 175 e 352n, Brahe, Tycho, 370n.
354n, 363n, 320. Breck, A. D., 293n.
Anaxímenes, 354n, 320. Bridgman, P., 163.
Aquino, Santo Tomás de, 130. Brillouin, L., 358n.
Aristóteles, 9, 15, 21, 99, 342n, Broglie, Príncipe Louis de, 200,
125 e 343n, 126, 148, 345n, 248.
346n, 538, 184 e 355n. Brower, L„ 111-112, 119-120,
129-138 e ns., 148, 281.
Brown, R. W., 337n.
Bach, J. S., 49. Buda, 273.
Bacon, F., 352n, 358n, 353-354n, Bühler, K„ 337n, 342n, 148, 346n,
SIS, 327. 215-216 e 361n.
Baldwin, E., 362n. Bunge, M., 140, 148-149, 350n,
Baldwin, J. M., 72, S62n, 245 e 191, 365ti.
S64n, 246. Busch, 60 e 339n.
Barlow, N., 364n. Buter, S„ 218, 234, 246, 249.
Bayes, T„ 139.
Beethoven, L. van, 174, 205-206
e 360n, 232. Cajori, F., 355n.
Campbell, D. T., 72.
Bentley, R., 354n. Carnap, R., 28 e 334n, 338n, 349n,
Bergson, H., 246, 260. 268, 368n.
Berkeley, G., 39 e 335n, 42, 45, Carus, P., 357n.
46, 68-70, 73, 90, 109-110, 127- Carus, T. L., 357n.
128 e 344ns, 148, 168, 354n, Catulo, 178.
270. César, Júlio, 178.
Bernard, C., 364n. Chadwick, Sir James, 201.
Bertalanffy, L. von, 357n. Churchill, Sir Winston, 335n, 49-
Black, M„ 288. 51, 337n, 338n, 69, 85.
Bohm, D., 200. Cícero, 15 e 333n, 101, 178.
Bohr, N„ 21,190,193, 356n, 357n, Collingwood, R. G., 155, 347n,
201, 358n, 248, 271, 278. 159, 348n, 174, 177-178, 358n,
Boltzmann, L., 276. 178-179.

371
Colodny, R. G., 335n. Feigl, H., 334n, 338n, 148, 192,
Compton, A. H., Cwp. tf, 193-194. 268, 365n.
e 356ns, 208-209, 2 1 1 - 2 1 5 e Fermat, P., 112.
8 6 1 n 8 , 220-221, 362n, 226-227, Feuerbach, L., 335n.
233. Feyerabend, P. K., 334n, 338n,
Comte, A., 364n. 345n, 148, 192, 365.
Copérnico, N., 95, 166-167, 349n, Forster, E. M., 35.
168 e 349n, 329. Foucault, L., 349n.
Coriolis, G. de, 349n. Fowler, H. W., 338n.
Cotes, R., 183. Frege, G., 77, 108, 111 e S42n,
112, 127 e 343ti, 148, 151, 153,
346n, 347n.
Darwin, C., 29, 40, 71-72, 74, 81, Fresnel, A., 190 e 355n.
99, 120, 143, 147, 347n, 207, Freud, S., 336n.
221-222, 362n, 234-235, 364n, Frisch, K. von, 361n, 362n.
237, S6Un, 238-239, 21,3-21,8 e
S61,n, 248, 252, 257-258 e 865n.
Darwin, F„ 364n. Galileu, 27, 165-170 e 349-350718,
Davies, J. T., 369n. 113, 353n, 191n, 185-186 e
Descartes, R„ 9, 42, 45-46, 46 e 355n, 187-189, 239 e 364n, 328.
336n, 73, 77, 80, 109, 342n, Ghiberti, L., 351n.
128 e 34471, 130, 148, 347ti, Godel, K., 53, 347n, 296, 301.
182-183, 211-215 e ■3 6 1 ti, 221, Goldbach, C„ 120, 157.
227, 229-231 e 363n, 233, 296, Goldschmidt, R. B., 2 5 7 - 2 6 0 e
329. 365718.
Dewey, J., 68. Gombrich, E. H., 345n, 148, 351n,
Diels, H., 354n. 363n.
Dilthey, W., 155, 349n, 1 6 8 e Gomperz, H., 149.
3 4 9 ti, 174, 1 7 7 e 35271, S 5 4 t i . Good, I. J., 336n.
Diógenes Laércio, 346n. Green, D. E., 360n.
Dirac, P„ 193, 201, 248.
Drake, S., 349n.
Dresden, A., 345n, 148. Hadamard, J., 358n.
Duane, W„ 277-278. Haldane, E. S., 148, 347n.
Ducasse, C. J., S44n, 148. Hamlyn, D. W., 338n.
Duhem, P., 355n, 370n. Hanson, N. R., 358n.
Harsanyi, J. C., 28 e 334n.
Haydn, F. J., 351n.
Eccles, Sir John, 9, 40 e 335n, Hayek, F. A. von, 342n, 342n,
340n. 149, 346n, S52ti, 369n.
Eckart, C., 359n. Heath, D. D., 354n.
Edwards, P„ 338n, 366n. Hegel, G. W. F., 108, 126-127,
Einstein, A., 20, 27, 34-35, 335n, 149, 151-152 e 345n, 346n, 348n,
49,50 e 3S7ti, 58-59 e 399ti, 272, 275.
60, 63, 65, 70 e 339n, 75, 103- Heinemann, F., 149.
104, 129, 134, 168-169 e 349n, Heisenberg, W., 193, 357n» 200
171 e 350n, 195-196 e 351n, 190 e 358ti, 202, 359n, 208, 214, 248,
e 355n, 199-200, 354, 358ns, 271, 276-278.
360n, 226, 235 e 364n, 239, 241, Hempel, C. G., 335n.
246, 248, 276, 308, 319. Henry, P., 149.
Ellis, R. L„ 354n. Heráclito, 46, 126.
Elsasser, W., 357n. Heródoto, 175 e 352n.
Eschenbách, M. E. von, 336n. Hesíodo, 175 e n, 352n.
Euclides, 78, 131, 135. Heyting, A., 111, 129 e 344ti,
Exner, F., 357n. 345n, 137 e 345ti, 149, 281.

372
ê

Hill, E. L., 277 e 365n. 149, 168 e 348n, 172, 258 e 365
Hobbes, T., 9, 150, 352n. n, 270.
Hochhuth, R., 335n. Lamarck, J., 99, 143, 147, 2A5,
Hormann, H., 337n. 36An, 2A6-2A8, 255, 260.
Hubel, D. H., 340n. Lamettrie, J. J. de (Offray de La
Humboldt, W. von, 337n. Mettrie), 206-207.
Hume, D., 9, 13, 15-20 e 333-33A Landé, A., 336n, 200, 271, 277,
ns, 22, 23, 31-32, SS-SA, 335n, 278.
68, 80, 84, 88-89 e SAl-SASv, Laplace, P. S., 134, 357n, 204,
99-100, 101-103, 109-110, 128, 360, 211, 245.
347n, 202-20A, 359ns, 206, 208- Lashley, K. L., 337n.
209 e 360n, 210-211, 227, 248, Le Sage, G. L., 245-246 e 364n.
296, 324. Leavis, F. R., 340n.
Husserl, E., 149, SA7n. Leibniz, G. W., 39, 151, 356n,
Huxley, A., 360n. 366n.
Huxley, Sir Julian, 364n. Lewis, H. D., 354n.
Lillie, R., 357n, 361n.
Lindauer, M., 361n, 362n.
Jennings, H. S., 34 e 335n, 72, Livingstone, D., 287.
175 e 351n, 362n, 362n. Locke, J„ 9, 42, 45, 46, 68, 73,
Jessop, T. E., 148. 340n, 90, 109-110, 128, 155.
Jordan, P., 357n. Lorenz, K. Z., SAOn, 340n, 98,
Jung, K., 336n. 362, 246.
Luce, A. A., 148.
Lucrécio, 357n, 364n.
Kahn, C. H„ 363n. Lutz, B., 362n.
Kant, I, 333n, 3A, 37-38, 42, 46,
SAOn, 340n, 88-89 e SAln, 92,
9A-95, 98, 107, 109, 111-112, Macbeth, N„ 252 e 365n.
343n, 129-131 e SAAns, 133-135, Mach, E., 47, 90, 354n, S6Sn.
345n, 141, 149, 345n, 351n, MacKenna, S., 149.
356n, 359n, 217, 245, 366n, Martin, R, M., 366n.
302, 313-314.
Martin, T. H., 342n.
Keller, H., 347n.
Marx, K., 333n, 41 e 335n.
Kemp-Smith, H. 344n. Maxwell, G. 334n, 338n, 345n,
Kepler, J„ 27, 65, 74, 86, 167, 148, 365n.
350n, 350n, 351n, 363n, 191n,
185-186 e 355n, 188-189, 192, Maxwell, J. C., 190 e 355n, 248,
197, 225, 239, 248, 274, 328, 279, 329.
370n. Mazurkiewcz, S., 306 e 367n.
Kipa (um índio sherpa), 44 e Medawar, Sir Peter, 364n, 243 e
335n. 864n, 364n.
Kleene, S. C„ 345n, 345n, 149. Médico, F., 351n.
Kõrner, S. C., 358n. Menger, K., 297.
Kotarbinski, T., 297. Mill, J. S,, 155.
Koyré, A., 366n. Miller, D., 107n, 339n, 340n.
Kramers, H. A., 193 e 356n, Moore, G. E., 45 e 335n.
358n. Morgan, C. L., 72.
Kranz, W., 354n. Moser, S., 334n, 354n, 191, 332n.
Kretschmamn, E., 351n. Mostowski, A., 347n.
Kronecker, L., 119, 156. Motte, A., 355n.
Kühn, T. S., 351n, 358n. Mozart, W. A., 206 e 360n, 232.
Lakatos, I., 33An, 3S6n, 342n, Musgrave, A., 335n, 335n, 345n,
343n, 135 e SA5n, 345n, 345n, 149, 348n, 362n.

373
Myhill, John, 136 e 345n, 149. Reichenbach, H., 280.
Nagel, E., 339n, 149, 365n. Reid, T., 9, 38, 45, 73, 81, 342n.
Needham, J., 360n. Rembrandt, 49, 178.
Nelson, E., 336n. Richards, I, A-, 347n, 348n.
Neugebauer, 0., 349n. Robinson, R. M., 347n.
Neumann, J. von, 358n. Rootselaar, B. van, 150n, 191.
Neurath, 0., 65 e n, 339n. Rosen, N., 358n.
Newton, I., 21, 27, 30, 335n, 50, Rosa, G., 148, 347n.
58-61, 63, 65, 86, 94, 103, 131, Ross, G., 148, 347n.
134, 345n„ 167, 168 e 349n, 169, Routledge, H., 44 e 335n.
175 e 851ri8, 354n, 183, 389, Russell, B., 13, 16 e 334n, 18-20,
186, 185-189 e 355718, 196-200 22-33, 37, 45 e 335, 50 e 337n,
e 356, 357n, 201, 359, 239 e 70-71 e 339n, 77, 341n, 90, 93-
364n, 243-246, 364n, 248, 279, 94, 95, 97, 109-110, 112, 343n,
308, 328-329, 370n. 128 e 343n, 139, 144, 150.
Nietzche, F., 273. Ryle, G. 20, 22, 360n.
Nowell-Smith, P. H., 357n.
Salmon, W., 87.
Ockham, William of, 268, 270, Schilpp, P. A., 337n, 339n, 358n.
276. Schlick, M., 357n, 208-209 e 360n,
Orwell, G. 360n. 210-211, 213, 227, 287.
Schopenhauer, A., 356n, 273.
Schrodinger, E., S50n, 193, 357n,
Parmênides, 14, 339n, 364n, 275. 199-200, 359n, 225, 245 e 364n,
Pauli, W„ 248. 248, 270, 274, 275.
Peirce, C. S., 198-199, 357n, 200, Schwartz, J., 280 e 365n.
359n, 203, 208, 227-228, 271. Selby-Bigge, L. A., 333n, 333n,
Pemberton, H., 356n. 341n, 341n, 341n, 342n, 359n.
Petersen, A. F., Sexto Empírico, 101, 346n.
Pirie, N. W., 360n. Shakespeare, W., 338n.
Pitágoras, 351n, 320. Shearmur, J., 9.
Pitéias de Marselha, 21, 99. Sherrington, Sir Charles, 244 e
364n.
Planck, M„ 199 e 357n, 277. Simon, A. W., 193 e 356n.
Platão, 108, 118, 123-125 e 343 w, Simpson, G. G., 262n, 245.
126-127, 132-133, 135, 137, 149, Skiner, B. F., 360n.
151-152 e 345 ti, 154 e 346n, Skolen, T. A., 297.
154-155, 184 e S55 ti, 275-276. Slater, J. C., 193 e 356n, 358n.
Plotíno, 125-126 e S43ti, 130, 149, Soddy, F., 21.
346n. Spedding, J., 354n.
Podolsky, B., 358n. Spencer, H., 221, Cap. 7, 234 e
Poincaré, H., 139. 363n, 235, 239 e 364n, 240,
Polya, G., 132. 244, 245, 248, 257.
Powell, J. U., 352n. Spinoza, B., 42, 131, 356n.
Ptolomeu, 167, 339n, 349n. Staal, J. F„ 150n, 191.
Stove, D'., 334n, 341n.
Strawson, R., 22.
Quine, W. V., 365n, 268 e 276, Suppes, P., 339n, 149, 365n.
282. Szilard, L., 140,

Ramsey, F. P., 340n. Tales, 354n, 320.


Ranke, L. von, 354 n. Tarski, A., 48, 51-57 e 337-338718,
Raven, C. E., 221, 235. 58 e 339n, 339n, 63, 65, 343n,

374
*

149, 347n, 365n, 282-283, 288- Watkins, J. W. N., 335n, SUln,


292, Cap. 9 e Adendo, 29U-S12 343n, 150, 352n.
e 367-368718. Werde, A. van der, 336n.
Teodósio, 177-178. Weyl, H„ 351n, 275, 276 e 365n.
Teon de Esmima, 342n. Wheeler, J. A., 226 e 362n.
Tomás de Aquino, Santo, 130. Whitehead, A. N„ 123.
Turing, A. M., S60n. Whorf, B. L., 13i e Si5n, 150,
Tycho Brahe, 370n. 160.
Wiener, P. P„ 355n, 370n.
Wiesel, T. N., 340n.
Urey, H. C., 21. Wigner, E. P., 40 e 336n, 351n.
Wisdom, J. O., 364n.
Wittgenstein, L., 343n, 150, 289
Vesley, R., 345n, 345n. e 365n, 296.
Vigier, J. P„ 200. Woodger, J. H„ 331n, 366|n, 367n.
Volkmann, R., 149. Wright, G. H. von, 95.

Waddington, C. H., 362n, 245 e Xenófanes, 320.


364n.
Wald, A., 297.
Warnock, G. J., 341n. Yourgrau, W., 336n, 293n.

375
t

ÍNDICE DE ASSUNTOS
As chamadas de importância especial estão grifadas. Onde as
chamadas se subdividem, um traço indica a repetição do subtítulo
anterior, n = nota; ns = notas; t = termo explicado.

a posteriori, 94-95, 141-142. alvo, m eta(s), 119, 147, 175, 180,


a priori, 334n, 31, 74, 89, 94-95, 212, 220, 232, 253-254, 257,
130 e 344n, 142, 267-268; psi­ 259-260, ver também genético
cologicamente (ou genetica­ (dualism o); influência sobre
mente), 334n, 33-34, 95, ver os homens, ver Compton, pro­
também inato; validade, 334n, blema de; da ciência, Cap. 5,
34, 37, 89, 94-95, 98, 130, 141- ver também ciência (alvo da);
142, 183. estrutura de, 119, 250, 251 t-
abelhas, 143, 156, 361n, 217, 262, 260.
275. ameba e Einstein, 34-35, 75, 226-
227, 239, 241, 319.
abstratas: entidades, ver mundo amplificação, efeitos de, 357n,
3; — e universo físico, ver
Compton, problema de; teo­ 214 e 361n, 229.
rias, 329. analiticidade, 85-87, 94-95, 129-
acaso, 199 e 357n, 208-210, 361n, 130.
224-225) e 362n, 227, 232, ver anatômicos: monstros (Goldsch-
midt), 257-260; estrutura (exe-
também indeterminismo; no cutiva), 249, 251-260, ver tam­
mundo newtoniano, 198-200 e bém evolução.
357-358ns, 359n, 271. animal, 143, 194; conhecimento,
ação, 31-33, 36-37, 42, 82-84, 341n, 78, 123, 134, 146, 226-227, 238-
97-98, 102-103, 123, 146-147, 239, 319, ver também ameba e
162, 171-172 e 350n, 179, 223, Einstein, eliminação; lingua­
226, 230, ver também certeza, gem, 121, 123, 215 e 361n,
indução (problema da prag­ 217, ver também linguagem
mática), preferência (pragmá­ (funções da, expressiva e sina-
tica); e crença ou disposição, lizadora).
36-37, 48-49, 82-84, 341n, 100, animismo, 183, 246, 249, 255.
108-110, 113, ver também co­ antiintelectualismo, 41, 47-48.
nhecimento (subjetivo) e rea­
antinomias (paradoxos lógicos),
lismo, 74, 341n, 100, 102.
338n, 53-54, 65, 286-287, 290,
aceitação, 36, 140-142, 238, ver
também preferência; aceita- 295, 298.
çãoi, aceitaçã02 (Lakatos), aparência e realidade, 45-46,
345n. 336n, 275.
aceleração constante, 187. aprendizado, 34, 45, 69, 71, 109-
acidentes, 38; argumento da im­ 110, 146-148, 237-238, 251, 254,
probabilidade de, 103-104. 270, 315-316; darwiniano ou
ad hoc, 26, 27, 181-183, 189-190, evocativo x lamarckiano ou
246, 270, 272. instrutivo, 99, 142, 147, 243-

377
245, 315-316; com os erros, 42- base, conhecimento de, 42-43, 55,
43, 177, 226, 242-243. 75, 83, 160 e 348n, 162, 164,
aproximação, 27, 186-189 e 855 166, 172, ver também expecta­
ns, 246, 328-329 e 370n, ver tivas (horizonte de).
também simulação; da verda­ básicas, asserções, 18, 334n, ver
de, ver verdade (aproximação também observação (asserções
da). de).
argumento, 30, S37n, 109, 113, behaviorismo, 67, 340n, 82, 342n,
123-124, 136-137, 205-207, 217- 115- 116, 153, 204, 207, 212, 218,
219, ver também critica, dis­ 267-270, 316.
cussão e linguagem, ver lin­ biologia, 33, 47, 99, 201, 214-215
guagem (funções da, argumen- e 361n, 217, 239 e 363n, 364n,
tativa). 240, 248, ver também evolu­
arte, 41, 48-49, 109, 126, 145, ção; e teoria do conhecimento,
172 e S51n, 174, 175, 231, 232 29, 40, 70-76, 79, 82, 107, 114-
e 363n, 327. 117, 142-144, 146, 238-242, 261-
Associação de idéias, 16, 68, 72, 265, 315-317, 319; método em,
340n, 93, 97-98, 359n, 316, 318, 234-235, 242-248; e percepção
ver também balde (teoria do). ou psicologia, 34, 69, 76-77, 81,
astrologia, 167-168, 169 e 350n. 91, 99, 143-144, 315-316; re-
atomismo, 313. dutibilidade da, 266-267; aná­
atração ou força (newtoniana), logos na biologia do mundo, 15,
168, 355n, 355n, 246-246, 329. 114-119, 128, 143, 156, 218, 261-
audácia, ousadia, 26, 27, 59, 84, 262, 275.
327. bolhas, 228-229 e 365n.
automático, piloto, 224, 250-253. “bondade” das teorias, ver pre­
ferência.
auto (de si mesmo), 77, 106, 147; calor, movimento molecular de,
consciência, 44 e 335n, 78,
199 e 357n, 228, ver também
363n; crítica, 145; -expressão, indeterminismo (Peirceano).
121, 145-146, ver também lin­
guagem (funções da, expressi­ causalidade, 334n, 88-95, 98, 116,
v a ); transcendência, 122, 144- 145, 180, 202-203 e 359n, 244,
147. 273, 279, ver também explica­
avaliação, 63-64, 141-142, ver ção; e indução, 88, 89, 90-93,
98.
também preferência.
axiomatização, axiomaticidade, causa e efeito, 334n, 92-94, 98,
338n, 56, 136, 347n, 304, 306. 116- 117, 202, 361n, 824 e 869n.
certeza, 20-22, 31-32, 36, 45, 53
e 338n, 68-69, 73, 77, 79, 81,
balde, teoria do: mental (teo­ 85, 99-101, 106, 130, 132, 137,
ria de senso comum do conhe­ 168, 349n, 177, 241, 332; tipos
cimento, epistemologia subjeti- de, 82-84; procura da, 45, 49,
vista), 1 4 ,14, 22, Cap. 2, 43-45 68, 78-82, 177, 332; versus
e 335n, 46, 47, 49-51, 66t-73, compreensão, 348-349n, 177.
77-81, 88-91, 95, 101-102, 106- ceticismo, 16, 31, 89, 101-103,
107, 110, 113, 123, 128 e 344n, 107; clássico, 101, 296.
136, 138-140, 143-144, Apêndi­ ciência, ciências, 37, 38-39, 88,
ce, 313 e 332n, 314, 316, 318; 108, 115-116, 138-140, 349n,
versus realismo, Cap. 2, 47, 49, 1,76, 191, 217, 238, 265-266,
70, 89-91, 101-102, 106-107, ver 280, 331-332; meta ou tarefa
também realismo; — e reli­ da, 47-48, 51, 60, 74, 85, 122,
gião, 70, 73, 81, 128, 130, 182- 142, 174-175, Cap. 5, 180-191,
183; da ciência, Apêndice, 313. 241, 294 e 365n, 308, Apên­
Baldwin, efeito de, 147, 224 e dice, 321, 324, 327 e 370n; e
362n, 245 e 364n, 246t, 248. explicação, 180, 182, 190, 240-

378
*

241, 321, 327 e 370n; e veros- guagem (funções da sinaliza-


similitude, 60-61, 63-65, 75, dora).
307-308; aplicada, ver tecnolo­ complementaridade (Bohr), 271.
gia; limites e argumentabili- complexos, órgãos, 246, 249, 255,
dade da, 336n; e arte, 363n; 259-260.
teoria do balde da, ver balde; comportamento: monstruoso, 257-
natureza conjectural da, ver 260; mutações do, ver genéti­
conhecimento ( conjectural) ; co, dualismo.
modas na, 174 e 351n, 199-200, compreensão, 113, 117-118, 136-
247; história da, ver história; 137, 157-179 e 347-854ns, 243,
e humanidades, 174-177, 265- 271-272, 274; de uma obra de
266; normal (Kuhn), 174 e arte, 351n; ver certeza, 347.
351n, 200 e 358n; precursores 348n, 349n, 177; teoria de Col-
da, 318-319, ver também mi­ lingwood, 159, 176-179; graus
tos; progresso ou avanço na, de, 164 e 348n, 164-168 e 349n;
27, 47-48, 63-64, 190-191, 354n, teoria de Dilthey, 348n, 349n,
263-264, 327, 330-332, ver tam­ 177 e 352n; histórica, 158, 162,
bém conhecimento (crescimen­ 165-172, 176, 176-179; nas hu­
to do); relações entre as, 265- manidades, 157-158 e 347n,
270; teoria do holofote da, ver 174-177; e “problemas vivos”,
holofote. 173; exemplo matemático de,
científico, conhecimento e teoria 163- 164; problema de um meta-
do conhecimento, 16-20, 79- problema, 164, 169-171, 173; e
80, 95, 110, 113, 127, 138; mé­ solução de problemas, 160,161 -
todo, ver método; realismo, ver 168, 164-179; em ciência, 174-
realismo; redução, ver redução. 175, 329-330 e 370n; e análise
cientismo, 176 e 352n, 177. situacional, 171-172 e 350ns,
circular, movimento, 167-169 e 173-174, 176-179; aspectos sub­
349-350ns. jetivos da, 154, 157-162; teo­
clareza, 51, 63. rias subjetivas da, 155, 158 e
coerência da verdade, teoria da, 347n, 159, 348n, 168, 174, 176-
288-284, 285-287, 291-292. 179; organismos unicelulares,
comum, senso, Cap. 2, 41-45 e 174; teorias mal sucedidas,
335n, 46, 46-47, 49, 53 e 338n, 164- 169, 171; e o mundo, 15,
69, 73, 77, 81-82, 100-102, 106- 153, 157-163, 165-166, 168, 171,
107, 194, 196, 270, 297; crítico, 176-179.
41-46, 66, 101-108, 105-107; e Compton, postulado da liberda­
realismo, 44, 335n, 45-47, 101- de de, 213, 214-215, 220.
102, ver também realismo; Compton, problema de, 207, 210-
como ponto de partida, 42-48, 212t, 218, 215, 220-221, 288,
66, 73, 77, 101, 297. ver também corpo-mente (pro­
comum, senso: problema da in­ blema).
dução, 14, 37; teoria do conhe­ computadores, 67, 78, 117, 166,
cimento de, ver balde (teoria 206-208 e 869ns, 209, 219, 227,
do); — versus realismo, Cap. 229.
2, 47, 49, 71, 89-91, 95, 101-102, conceitos: construção de (Kant),
105, 297 e 366n, ver também 130 e 344n; e critérios, 295-
realismo; — versus teoria do 297; teorias versus, 124-125 e
balde, ver biologia & conheci­ 343ns, 154, 275, 284, 366n, ver
mento (teoria do), biologia e também essencialismo,
percepção; noção de verdade, condicionado: reflexo, 67, 72.
ver verdade (teoria da corres­ conhecimento, ver também a
pondência). priori, animal, base, certeza,
comunicação, 109, 121-122, 135, direto, fundamentos, inato, so­
155, 346n, 216, ver também lin­ ciologia, fontes, sucesso; todo

379
como conjectural, Cap. 1, 20-22, ver também mundo 3 (autono­
24, 33, 39-40, 48, 64, 79-80, 81, mia do).
82- 84, 95,102,106-107,122,147, conservação, leis de, 167-169.
347n, 184, 236, 241-242, 274, construção intuicionista, 130 e
331; demonstrável, 79-80; cres­ 344n.
cimento do, 43, 45, 71, 75, 88, conteúdo, conteúdos (classe de
88, 113-114, 122-123, 127, 140- conseqüência, sistema dedutivo
147, 231, 235-242, 262-265, ver axdom&tizável), 53-59 e 338-
também ciência (progresso n a); 339ns, 60-65, 77-78, 84-85, 121-
imprevisibilidade do, 278; cres­ 122, 154-155, 182 e 354n, 185,
cimento do — subjetivo, 71, 88, 292, 302-308; comparabilidade
147, ver também eliminação■; dos, 56-58 e 338n, 59, 64-65;
objetivo, 35, 71, 77-78, 79-81, empírico, 338n, 141, 142, 244;
83- 84, 89, 94-96, 100, 102, 110- falsidade, 54-58 e 338n, 59,
114, 115-116, 116-117, 122-123, 62-64, 84-85, 304-308; e infor­
127, 145, 147, 348n, 262, 273- mação, 26, 28, 29, 61; medida
275, 279, ver também mundo 3; de, 57 e 338n, 58-59, 61-62, 64-
análogo subjetivo do —, 81-82; 65, 103, 304, 306-307 e S67n;
parcial, 210; subjetivo, 35, 49, relativo, 55-58, 304-307; e pro­
69, 71-72, 71-82, 108-114, 115- babilidade, 27-28, 56-57, 103,
116, 122, 139, 158-159, 273-274, 141, 306-307; de verdade, 54,
ver também crença, disposi­ 57, 338n, 60-64, 84-85, 121, 141,
ções, expectativas, mundo. 2; 303t, 309; zero, 55-56, 805-807.
abordagem objetiva do —, 114-
116,159-162, 171, 177-179; teo­ contínua: massa, teoria da
ria do (epistemologia), 33, 36, (Brou-wer), 111, 136-137.
41-44, 50, 65-85, 88-89, 101- contradições, 126-127, 272.
103, 105-107, Cap. 3, 235-242, controle, 212-215, 219-224, 227-
ver também método (científi- 233; férreo, 213, 228, 227-233;
fico); — e biologia ou evolu­ e consciência, 203-231, ver tam­
ção, 29, 40, 70-77, 79, 81, 82, bém Descartes (problema de);
107, 114-117, 142-145, 146, 238- eliminador de erro, 223 e 362n-
242, 261-265, 313-317, 319; — 225 e 362n; modelos de chave-
e conhecimento científico, 16, mestra de, 361n, 213-215, 227,
18-20, 79-80, 95, 110, 113, 127, 229; por significação ou con­
139; — subjetivista, ver balde teúdo de teorias, 219-221, ver
(teoria do); — tradicional, também Compton (problema
110, 113, 123, 344n; é impreg­ de); plástico, 213, 215, 219-
nado de teoria, 76, 106; árvore 222, 224, 227-229, 230-233.
do, Cap. 7, 239-341, 255. convencionalista: estratagema
conjecturas: o conhecimento (imunização), 40, 335n, 47,
consiste de, ver conhecimento 331.
(conjectural); e refutações, Copérnico, teoria de, 167, 349n,
84, 159, 163, 235-236, 237-238, 168 e 350n.
241, 369n, ver também método eorpo-mente: dualismo, 151-152,
de experiências. 346n, 231 e 363n, 249; proble­
consciência, 35-36, 78-79, 108, ma, 78,' 109, 146-147, 153 e
110, 126-127, 152, 229-231 e 346n, 153, 207, 210-215 e 361ns,
363n, 268, 316, ver também co­ 220-221, 227, 229-233, 267-270.
nhecimento (subjetivo), estado correspondência: com os fatos
(mental). ou a realidade, 51-53, 64-65,
conseqüência, classe de (sistema 240, 266, 284-292, 295, 297-300,
dedutivo), ver conteúdo. 325, 85-87; teoria da verdade,
conseqüãncias não pretendidas, ver verdade (teoria da corres­
43, 118, 136-137, 156 e 346n, pondência).

380
t

corroboração, 27-30, 85-88, 100, cruciais, experiências, 24-26, 369n.


105, 166, 189, 325, 331; grau costume ou hábito (Hume), 15-
de, 28-30, 63-64, 86-87, 105; e 16, 93-94, 97-98, 98, 359n.
analiticidade de escolhas e pre- darwiniano, darwinismo, 29, 40,
dições, 85-88; e atuação futu­ 71, 74 e 340 n, 81, 120, 207,
ra, 28-29, 331; interpretação 221-222, 262n, 238, 243-244,
numérica da, 28-29 e 334n; e 248, 257, 264-265, ver também
preferência por teorias, 28, evolução; simula o lamarchis-
86, 105; e verossimilitude, 105. mo, 147, 224 e 362n, 244-246,
cosmologia, 33, 163-169 e 349, 248; processo de seleção (ou
S50ns, 352n, 319. evocativo), 99, 142, 147, 242-
crença, 15, 17, 33-87, 38-39, 62- 245.
63, 73-74, 79-81, 81-83, 341n, decifração, 35, 69, 70, 77, 91.
98, 102-103, 109, 113, 123 e decisividade, 294-296.
343n, 141, 195, ver também co­ decisões repentinas, 210, 214-215.
nhecimento (subjetivo), mundo dedutivo, sistema (classe de
2; e ação, ver ação; elimina­ conseqüência): axiomatizável,
ção de organismo com, ver eli­ ver conteúdo; não axiomatizá­
minação; formação de, 15, 33- vel, 338n, 303-304.
34, 37, 68, 72-73, ver também definição, 38, 64, 82, 125, 354n,
associação; justificação de, 284-287, 300-301, de Tarski,
ver justificação'; e conheci­ da verdade, ver verdade (de­
mento (na teoria do balde), finição de Tarski).
79-81,128,127-128 e 843, 344ns, demarcação, SSSn, 333n, 28 e
139, 144; e lógica, 110, 128 e 334n, 39-40, 88.
343n, 138-139, 282-284; filoso­ Descartes, problema de, 211-212
fia, 35, 109, 123; e probabili­ e S61n, 213-215 e 861n, 221,
dade, 83 e 340n, 343n, 139. 229-231 e 363n, 233, ver tam­
criatividade, ver liberdade. bém corpo-mente, (problema).
critérios, 291, 295-296, 308; de descoberta, 140-144, 147, 190-191,
preferência, 28; de verdade, 294; e mundo 3, 78, 119-120,
53, 291-292, 295-296, 308; sub- 137, 153, 156-157 e 346n.
jetivistas, 35, 67, 70, 73, 77, descritiva, função da linguagem,
81. ver linguagem (funções da,
crítica: argumentação ou dis­ descritiva).
cussão, 28, 32, 37, 44, 64-65, determinismo, determinista: 7
71, 83-83, 85-87, 109, 113, 122- acaso como única alternativa
122-123, 135-137, 140, 146, 159, (Hume, Schlick), 208-210,
217, 219, 220-221, 263, 265, 227; filosófico ou psicológico,
279-280, 284, 319-320, ver tam­ 201-203 e 359n; físico 197 ,e
bém linguagem (funções da 356n, 197-198 e 356n, 199 e
argum entativa); atitude —, 357n, 201-202 e 359n, 203-206
40, 181, 226-227, 319-320, mé­
todo, 27, 74, ver também méto­ e 359n, 206-210, 232; “pesa­
do de experiência e eliminação delo do —”, 201-202 e 359n,
de erro; (tradições, 265, 320. 205-208, 232; e teorias estatís­
ticas, 279.
crítica, 30, 35, 42, 33, 87, 95, 121-
123, 126-127, 135, 146, 179, Deus, 32, 48; “jogador de dados”
235-236, 237-238, 240-243, 262, (Einstein), 174-175; (ou cris-
280, 292, 319-320; e dúvida, tandade) e teoria do conheci­
139; possibilitada por formu- mento, 70, 73, 81, 128, 130, 182-
ção lingüística, 35-36, 40, 71, 183; e mundo 3, 125-126, 345n.
75, 88, 98, 120-123, 226, 240, deuses e planetas, 167; e plu­
243, ver também linguagem ralismo, 151-152; Xenófanes
(funções da, argumentativa). acerca de, 320.

381
dialética, 124, 126, 348n, 272, 275. empirismo, 13, 17, 40, 68, 89, 93,
diferenciação (Spencer), 239, 127-128 e 343n, 138, 357, 313-
244, 245. 314, 327; princípio do, 23.
direto ou imediato, 45, 67-69, 73, entropia, 140.
77, 81, 102, 106, ver também epifenômenos, 201, 359n.
decifração. epistêmica: atitude (Ducasse),
discursivo, pensamento, 344n, 343n; lógica, 110, 127, 1S8-1S9,
130-131 e 344n, 134-137. 283-284.
discussão, 27, 37, 63-65, 71, 83- epistemologia, ver conhewmento
87, 122, 135-137, 140, 160, 219- (teoria do).
220, 263, 279-280, 284, ver tam­ erro, 177, 226; teoria subjetivis-
bém argumento, linguagem ta do, 68, 73, 340n, 314.
(formulação em). erros, eliminação de, ver elimi­
disposições, 48, 71-72, 75-76, 79- nação.
80, 108-110, 114, 122-123, 158, escolasticismo, 41 e 335n.
315-316, ver também conheci­ escolha: da teoria por ação, 31-
mento (subjetivo), mundo 2; S3, 86-87, 341n; entre teorias
inatas, ver inato. concorrentes, ver preferência;
seqüência (Brouwer), 111, 119.
documentária, evidência, 158-159, espaço: intuição do, 129-130 e
176-177, 179 e 353n, 354n. 344n, 135; teoria kantiana,
dogmatismo, 33, 40, 43, 69-70, 112, 129-130 e 344n; teoria
165, 168, 243, 248, 319-320. newboniana, 352n.
drosófila (mosca das frutas), especialização, 174 e 351n.
255. esperança, 100-101; monstros es­
dualismo: corpo-mente, ver cor- perançosos, 257-260.
po-mente; genético, ver gené­ Espírito Absoluto ou Objetivo
tico. (Hegel), 108, 126-127; ver
Duane, princípio de, 277-278. ver também mundo 3 e Hegel.
dúvida, 44, 139. esquema de explicação, ver ex­
plicação; de experiência e eli­
minação de erro, ver método
ecológico, nicho, 118, 143, 147, de experiência.
362n, 259. esse = construi (Brouwer), 132-
Einstein, teoria de, 335n, 60, 63, 133, 134, ver também intui-
65, 86, 103, 129, 175, 200, 276; cionismo.
e teoria de Newton, 20, 27, 58- esse = percipi (Berkeley), 128,
59 e 339, 65, 103-104, 246, 308. 270.
eliminação, 88, 120, 148, 163, 219, essencialismo, essências, 21, 342n,
225, ver também refutação; e 124, 182-183 e 354n, 184-185,
evolução, 88, 222-224, 230, 264- 284, 366n, ver também univer­
265; com o portador X pela sais; modificado, 183 e 354n,
crítica, 71, 75, 88, 95, 98, 123, 184-185.
146, 222, 223, 226-227, 238; estado: de uma discussão, 109,
método de, 26,148, 241-242, ver 361n, 231, ver também mundo
também método de experiên­ 3; mental, 108-110, 145, 152,
cia e erro. 346n, 155, 212 e 361n, 230-231
emersão, 120, 122, 144, 358n, e 363n, 267-268, 273, ver tam­
207, 218, 222-224 e S62n, 233; bém mundo 2; físico, 152, 361n,
e redução, 265-276. 229-231 e 363n, 269, 273, ver
empatia, 159, ver também com­ também mundo 1.
preensão. estatística, teoria: e determinis­
empírica (o): base, 40, 176; mo, 278; a teoria do quantum
conteúdo, 338n, 141-142, 244; como, 278-279.
asserção, 334n. estímulo e reação, 214-215 e 361n.

382
t

estoicismo, 125, 151, 154 e 3Jt 6n, exemplos (Hume), 15-16, 18-20,
155, 245-296. 98; de uma lei, 30-31, 368n.
estrutura de perícia, 251-257, existenciais, asserções, 334n, 24-
259-260. 25, 331.
estruturas biológicas, 114-116, expectativas, 15, 20, 31, 33-34,
ver também mundo 3 (análo­ 35-36, 67-68, 71, 74, 75, 144,
gos biológicos). 236, 243, 316-318, 331, ver tam­
éter: material, 355n. bém conhecimento (subjetivo);
ética, 360n. horizonte do, 35, S17t-S18, 326
evidência: documentária. 158- e 369n, 330, ver também base
159, 176-177, 179 e 353n; graus (conhecimento de); inatas, ver
de (Heyting), 136-137; inde­ inato; inconsciente, 34-35, 316.
pendente, 181-182, 190. experiência, 16, 18, 23, 45, 66, 69,
evocativo, aprendizado, ver 106, 146, 314-315, 317, 331; e
aprendizado. decifração, 45, 68-69, 70, 77,
evolução, 29, 38, 40, 73-75, 81, 88, 91.
99, 114-115, 120, 122, 142-147, experiência e erro, ver método de
358n, 206-207, 213, 215-220, experiência e eliminação de
221-225 e 862ns, 227, 229-230, erro.
232, Cap. 7,234-235, 238-240, experiências: cruciais, 25-26, 369
242-260, 264-265, 271, ver tam­ n; como testes, 243.
bém genético (dualismo); teo­ explicação, 38, 93, 123-124, 180-
ria geral deste autor, 221-224, 191, 240-242, 244-245, 269, 317,
233; criativo (Bergson), 224, 321-327, ver também causali­
246; e emersão, ver emersão; dade, redução, simulação; cir­
endossomática, 143-144, 218, cular ou ad hoc, 181-182, 189,
222, 230; exossomática, 98, 121, 246, 269, 323, 326, 328; e de­
143-144, 218-219, 222, 224, 230, dução, 321-323; e correção de
232, 261-262, ver também mun­ explicandum, ver explicandum;
do 3 (análogos biológicos); histórica, ver histórica (expli­
problema de mudanças dirigi­ cação); história da, 321, 329-
das a um alvo, etc., da teoria 330; e condições iniciais, 94,
259-260; de instrumentos, 239- 182, 322-326; do conhecido pelo
da, 225, 245-246, 249, 254-257, desconhecido; 180, 321-322; e
241; e teoria do conhecimento, modelos, 245-246, 329-330; e
ver conhecimento (teoria do e predições, 183, 321, 324-326 e
biologia); da linguagem, 75, 369n, 327; representação es-
88, 346n, 215-220; leis da, 221, quemática da, 323, 325-326; de
244; caráter lógico da teoria sucesso na busca de conheci­
da, 74-75, 221-222, 244, 245- mento, 33, 38, 100, 19Í; defi­
246, 248, 271; problemas de nitiva ou final, 124, 182-183,
método na teoria da, 242-248; 331, ver também essencialis-
da mente ou consciência, 229- mo; e leis universais, 182, 184-
230, 363n, 317; problemas de 185, 322-323, 325-326.
organismo na, ver problemas explicandum, 180-182, 321-324,
326, ver também explicação;
(evolucionários) ; e autotrans- correção de, quando explicado,
cendência, 145-148; árvore da, 27, 185-189, 191-192, 328-329 e
239-240; imprevisibilidade da, 370n.
271. explicans, 180-183, 321-322, 324-
exiatidão, precisão, 64, 344n, 189, 325, ver também explicação.
359n, 203-205, 246-247, 327-328. explicativa, força, 59, 141.
excluído: centro, 128, 132, 282. expressão, 109, 121-122, 144-145,
executivos: órgãos, 249-260, ver 147, 155, 346n, 162, 174, 215-
também evolução. 216, 219; como função da lin-

383
guagem, ver linguagem (fun­ futuro e passado, 14, 37, 73-74,
ções da, expressiva). 93, 98; ver também indução
expressionismo, 144-145, ver (problema da, tradicional).
também mundo 2 (o mundo 8 Galileu, teoria de: e teoria de
tomado como. expressão do). Newton, 27, 354n, 185-188 e
355n, 187-189, 239 e 364n,
328-329; das marés, 165-169 e
falibilidade, 49, 69-70, 122, 133, 349-350ns, 353n.
242, ver também conhecimento galinha e ovo, 318.
(conjectural). Geisteswi8senschaften (humani­
falseamento, ver refutação. dades), 155, 157-158, 174-177-,
falsidade, 24-25, 155, 217, 287; ver também compreensão.
conteúdo de, 54-58 e S38n, 59, genético: código, 78, 88, 147-148;
62-65, 84-85, 304-308; e apro­ dualismo (pluralismo), 145,
ximação da verdade, 60-62, 292, 147-148, 223, 230, 231-232, 248-
ver também verossimilitude; 260; monismo, 249-250, 252-
retransmissão de, 40, 279-280, 255.
283; no mundo- 3. geneticamente a priori, 95, ver
fatos, 53, 105, 266, 289, 291, 298- também inato.
299, 302; correspondência com geometria, 95, 129, 131, 167,
os, ver correspondência; duros, 349n.
106. Gestalten, 67, 356n.
fenomenalismo, 336n, 49, 359n, gravidade, 20, 58-59, 63, 103, 175,
270. 245-246.
fenompnologia, 336n, 49, 447n.
filo, 222-223, 230, 319. hábito, 146-147, ver também cos­
filosofia, filósofos, 41-43, 49, 51, tume.
65, 68, 126, 151, 160, 350n, 194, harmonia do mundo, 350n, 225.
221, 297, 319-320. hermenêutica, 157-158 e 347n,
filosófico: determinismo, 202-205 174-177, 352n, 179 e 353n, ver
e 359, 360ns; redução, 267-270. também compreensão.
física: realismo X subjetivismo heurística, 34, 116, 132, ver tam­
em, 139-140, 276-279; redução bém problema (solução de).
da química à, 266-269. hipóteses: morrem em lugar de
fisicismo, 207-208, 268-272. nós, ver eliminação; todo co­
físicos: movimentos e estados nhecimento como consistindo
mentais, ver Descartes (pro­ de, ver conhecimento (conjec­
blema de); mundo ou universo tural); Newton acerca, das,
físico, ver niundo 1; entida­ 183.
des físicas e abstratas, ver história, 72, 162-163, 176-179 e
(Compton, problema de). 352-853ns, 262-263, 271-276; da
fontes de conhecimento, 66, 81 e ciência, 17, 63, 164-172 e 349-
340n, 130-131, 133, 135, ver tam­ 350, 176, 321, 327, ver também
bém balde (teoria do). Galileu (teoria de), etc.
histórica: explicação, 171-172,
força-ou atração (newtoniana), 176-179 e 352-353ns, 325-326,
168, 355n, 355n, 245-246, 329. ver também situadonal (aná­
formalismo, 132 e 344n, 133, 136. lise); evolução e —, 245-246,
Formas (Platão), 108, 124-126, 248; compreensão —, 158, 162,
151-154, 184 e 355n. 164-173, 176-179, ver também
funções de asserção, 309-312 e compreensão.
364-368ns. historicismo, 184.
fundamentos (bases) do conhe­ holismo, 196 e 356n.
cimento, 42-43, 45, 49, 68-69; holofote, Apêndice, 332n, 318,
ver também ponto de partida. 369n, 328, 332.

384
$

humanidades, 155, 158, 174-177, infinito, 89, 94; invalidez da


ver também compreensão. (ou de princípios indutivos),
Hume, problema de, ver indução 22, 38, 89, 96-97, 248; justifi­
(problema da, lógica, de Hu­ cação (alegada) da (ou de
me). princípios indutivos), 15, 37-
39, 92-93, 96, 99-100; princí­
pios ou regras da, 333n, 16,
Idealismo, 335n, 46-51, 69-70, 68 19-20, 22, 37-39, 89, 94-95, 100;
e 339n, 89-90, 342n, 107, 270, teorias probabilísticas da, 15,
297 301 28-29 e 334n, 29, 38, 92 e 341n,
Idéias (Platão), 108, 123-127, 92, 103-105, 241-242; proble­
151-152, 153-154, 155, 355n, mas da, Cap. I; de senso co­
275. mum, 15, 37; lógica: de Hume
Ilusões (aparência), realidade e solução de Hume, 14-15, 17,
das, 45-46, 336n, 275. 22-23, 89, 92( 96-99, 102, 248;
Imediato, ver direto. reformulação da 83-37; tradi­
Imunização (Albert), 40, 335n, cional, 44, 23, 32, 37-39, 92-93;
47, 331. crítica da, 14, 38-39, 90, 99-101;
impressão (Lorenz), 98. solução deste autor para as
impressões, 67-68, 73, 91, 95, 102, várias —, 13 e 333n, 14-15, 17-
ver também percepção. 24, 24-30, 31-32, 33-35, 36-39,
inato (a) (s) (psicologicamente a 93-99; por repetição, 14-15, 17-
priori, etc.), ver também alvo; 18, 33, 37, 96, 100, 102; simu­
comportamento, 246, 256; cren­ lada, 100, 248; não se pode
ças, 37; disposições, 69, 71,122, confiar na chamada, 99-101.
249, 315-316; expectativas, 334 indutivas, inferências, 14, 38, 92-
n, 34, 236; instintos, 34-35; 93, 96, 98, 186.
conhecimento, 66-67, 76 e 340n, indutivismo, 333n, 21, 28 e 334n,
95, 236; estrutura, 76, ver 30, 35, 37, 326.
também genético (dualismo). inércia, 167, 168 e 349n, 183.
indagações de “que é?”, 183, 229, inferências: indutivas, ver indu­
283-284, ver também essencia- tivas; não demonstrativas
lismo. (Hempel), 30; válidas, 17, 96,
indeterminação, fórmula de Hei- 279.
infinito, regresso, 125, 284, 319;
senberg, 357n, 214, 276-279, ver e indução, 89, 94.
também quantum (teoria). informação, 26, 28, 29, 61; ele­
indeterminismo (físico), 198-201 mentos de (teoria do balde),
e 357-358ns, 359n, 359n, 208- 67; teoria da, 67, 140.
210, 213-214, 227, 233, 271; iniciais, condições, 93-94, 182,
não é bastante, 359n, 208, 211, 322-326, 331.
213, 232-233, ver também con­ instintos, 34-35.
trole (plástico); e liberdade, instrução, ver aprendizado.
359n, 208-211, 213, 361n, 233; instrumentalismo, 69-70, 74, 84,
num mundo newtoniano, 198- 183, 239-241, ver também tec­
200 e 357ns, 359n, 271; peir- nologia.
ceano, 198-200 e 357ns, 227- instrumentos, 239-241; indiví­
228, 271; e teoria do quantum, duos como (Hegel), 126-127.
199-200, 209-210, 214, 232-233. instrumentos, ferramentas, 218,
indução, Cap. 1, 63, 88-105, 143- 239; executivos anatômicos,
144, 186, 189, 248, 330, ver 249, 251-260.
também balde (teoria); e cor- integração (Spencer), 239-341,
roboração, 87; e demarcação, 244, 245.
333n, 23, 39-40; e correção do inteligíveis, 152 e 345n, 161.
explicandum na explicação, interação: corpo-mente, ver cor-
185-189, 328, 370n; e regresso po-mente (problema); entre os

385
mundos 1, 2 e 3, ver mundo 1, leis: “estabelecidas”, 20-22; fal-
mundo seamento de, 25; são todas
interpretação, 117, 158, 159-160, hipotéticas, 20, 184, 330, ver
350n, 352-353n, ver também também conhecimento (conjec­
compreensão; da experiência, tural); exemplo de, 30-31, 368
45-152n, ver também decifra- n; da natureza, 95, 101, 175
ção. e 351n, 182, 184-185; obs|er-
interpretatio naturae, 353n. vacionais, 191-192, 370n; uni­
intuição, 129 e 344n, 180, 130- versais, 182, 184-185, 244, 322-
131. 323, 325-326, 330-332.
intuicionismo, 128-138 e 343-345 liberdade, 126-127, Cap. 6, 195-
ns, 280-282. 196, 201-202, 360n, 209, 212-
irracionalismo, 13, 15-16 e 333n, 214 e 361n, 232-233, ver tam­
17, 22, 37, 84-85, 341n, 92-94, bém controle (plástico); pos­
98-99, 102. tulado de Compton, 212-213,
215, 220; e determinismo, 201-
202, 205-206 e 360n, 206, 208,
justificação: como alvo, 39, 51; 361n, 233; e indeterminismo,
de crença ou conhecimento, 15, 359n, 208, 212-213, 361n, 232-
17, 18, 24, 35, 39-40, 45, 71, 86, 233.
90, 341n, 123, 128, 136, 242; linguagem, 34, 46, 48-49, 72, 78,
da indução ou de princípios 115, 343n, 135, 156, 190, 255,
indutivos, 15, 37-39, 93, 95-96, ver também linguística; ani­
99-101; de preferência por teo­ mal, 121, 123, 215 e 361n, 216-
rias, 18-19, 72, 85-87, ver tam­ 217; e comunicação, 109, 121-
bém preferência. 122, 135, 155, 346n, 215-216,
ver também linguagem (fun­
ções, da, sinalizadora) ; evolu­
Kant-Laplace, hipótese de, 245. ção da, 75, 88, 119, 346n, 215-
Kant, problema de, ver demarca­ 220; crítica possibilitada pela
ção.
formulação em, 35-36, 40, 71-
kantiano, kantianismo, kantismo, 72, 75, 88, 98, 120-123, 226,
37, 94-95; até onde ser corri­ 240, 243; funções da: argu-
gido, 34, 339n, 94-95, 302; in­
tuição, 129-131 e 344ns, 134- mentativia, 40, 48 e 337n, 75,
88, 94-95, 120-121 e S42n, 122-
135; e física newtoniana, 94- 123, 135-136, 346-347n, 361n,
95, 345n; filosofia da mate­
216, 217-218, 219, 240; descri­
mática, 129 e 344n, 130, 180-
181 e 344n, 133, 135; Russell tiva, 218 e 337n, 75, 88, 95,
120-121 e 342n, 123, 135, 346n,
como, 37, 94; teoria do espaço,
112, 129-130 e 344n, 130-131; 361n, 217, 217-219, 240; dis-
teoria do tempo, 129 e 344n, tintividade das —, 342n, 216,
129-131, 134. 218, 224; expressiva ou sinto­
Kepler, teoria de (leis de), 65, mática, 109, 120-122, 155, 346n,
86, 167, 197, 274; incoerência 215-216, 218; relações das fun­
com a teoria de Newtom, 27, ções superiores e inferiores,
191n, 185-186 e 355n, 187-189, 121, 346n, 216-220, 224; exor-
191-192, 239, 328-329 e 370n. tativa e persuasiva, 361n; si-
nalizadora ou libertadora, 109,
120-121, 346n, 361n, 215-216,
lamarckismo, 99, 142, 247; simu­ 218-219; (ou pensamento dis­
lado pelo darwinismo, 147, 224 cursivo) e intuição, 344n, 130-
e 362,n, 245-246, 248; simulado 131, 134-137; e matemática,
pelo dualismo genético, 254-260. 130-131, 135-137; meta, ver
Laplace, demônio de, 357n, 204, metalinguagem; objeto, ver
360n. objeto (linguagem); comum,

386
0

337n, 65, 112, 291; e realidade, ontológioa da, 78, 119-120, 181-
ver correspondência; é impreg­ 132 e 344n, 133, 136-138, 156-
nada de teoria, 40, 134, 144, 157; e mundo 3, 78, 119-120,
160; e mundo 1, 154-155, 272; 133, 154, 156-157.
e mundo 2, 78, 164-155; e mecânica de ondas, 350n, 277,
mundo 3, 118-119, 120-128, 127, ver também quantum (teoria
186, 154, 346n, 155-156, 220 da).
- 221. mentais, estados, ver estados
luz, teorias da, 189-190. (m entais); e movimentos físi­
lingüística, ver também lingua­ cos, ver Descarte» (problema
gem; análise, 82, 113; enig­ de).
mas, 41; redução, 267-270. medição, 189, 277-278, 827-828.
lógica, 17, 23, 27, 46, 61-63, 74, mentiroso, paradoxo do, 338n,
79, 86-87, 93, 343n, 188-189, 285, 294.
206, 212, 232, 279-286, 292, metalinguagem, 52-53, 135, 288-
295-296; sistemas alternativos 290, 298-300 e 366ns, 300-301.
de, 339n, 137-138, 279-282; da metafísica, 38-39, 46, 873n, 98,
descoberta, 34, 72-73, 140-144, 184, 190-191, 297.
ver também conhecimento ( teo­
ria do); epistêmica, 110, 127 método: de conjectura e refu­
tação, ver conjectura; científi­
e 343n, 138-139, 282-284; intui- co. 16-17, 23, 59, 63, 75, 84-85,
cionista, 137-138 e 345n, 297- 88, 94-95, 142, 176, 363n, 242-
280; e psicologia, 17, 34, 72, 243, Apêndice, 319-320; de ex­
340n, 342n, 111-112, 155, 265- periência e eliminação de erro,
266, ver também transferência 27, 31, 34-35, 37, 39, 68, 72, 74,
(princípio de), mundo 2 (efei­ 81, 342n, 102, 215, 217, 222,
to do mwndo 3); e teoria do 224, 362n, 231-232 e 363n,
quantum, 280-281; e realismo, 248, 369n; representação es-
279-286; situacional, ver situa-
cional (análise); bivalente quemática, 120, 122, 127, 142,
como sistema de crítica, 40, 146, 159 e 348n, 160, 163-164,
339n, 122, 137-138, 217 e 362n, 168-170, 223-224, 263-264, 272.
272, 279-283, 292. metodologia, 23, 335n, 116, 190-
191, 280, 282, 294, 308, 320;
problemas da — em matemá­
máquinas e homens, 206, ver tica, 132 e 344n, 133, 137-138,
também computadores, 279-280, regras ou princípios
magia, 332. da, 27, 40, 326-327.
marés e lua, 167-169. mente, ver consciência, estado
marxismo, 333n, 41. (mental), mundo 2; -corpo, ver
corpo-mente; objetiva, Cap. 4.
materialismo, 346n, 356n, 249, ver também mundo 8.
366n; monístico (fisicismo),
207-208, 267-272, ver também mitos, 88, 144, 261-262, 265, 319-
determinismo (físico). 320.
matemática, 128-138, 163-164, modelos, 166, 245-246, 329-330.
280-282; profundidade em, monismo 151, 276; genético, 249-
185; problemas epistemológi- 250, 252-253, 255-256; materia­
cos da, 131-132, 344n, 133-136; lista, 207-208, 268-272; neutro,
crescimento da, 135; filosofia 89.
kantiana da, 129 e 344n, 130, monstro, 257-260.
130-131, 133, 1351; linguagem mortais, “todos os homens são”,
e pensamento discursivo em, 21-22, 99 e 342n, 100.
130-131, 135-137; problemas morte, 21-22, 44, 99 e 342n, 206,
metodológicos da, 132 e 344n, 364n.
133, 137-138, 156-157; situação mudança, realidade da, 275-276.

387
mudanças dirigidas a um alvo mundo 3 (terceiro mundo, pen
como problema evolucionário, sarnento objetivo, especialmen­
245-246, 254-255, ver também te produtos da mente humana,
genético (dualismo). etc.), 9, 40, 340n, 78t-79, 83,
mundos: mais de três podem ser 88, 341n, 108-128, 136, 138, 143-
distinguidos, 109. 147, 151-157, 167, 218-220, 230-
mundo 1 (primeiro mundo, mun­ 231, 262, 271-2751, 366n, ver
do físico, etc.), 9, 78 t, 88, 108, também conhecimento (obje­
146, 152-155, 347n, 161, 261, tivo ), linguagem (formulação
366n, ver também determinis­ em ); autonomia do, 78, 109-
mo (físico), indeterminismo 110, 113-114, 118-120, 126, 127,
(físico), materialismo, estado 136-137, 145-146, 155-157 e 346-
(físico), sistema (fisicamente 347ns, 231, 261, 262; análogos
fechado) ; e linguagem, 154- biológicos do, 114-118, 127, 143,
155, 272; interação com o 156-157, 218, 231, 261-262, 275;
mundo 2, 109, 143, 152-153, 211- Bolzano e o, 108, 127, 151; con­
215 e 361ns, 221, 229-231 e teúdos ou habitantes do, 77-78,
363n, 233; influenciado pelo 109, 124, 127, 136-137, 153, 15U-
mundo 3 (via mundo 2), 110, 155, 346n, 160-161, 275; des­
114, 120, 146-147, 152-153, 156, coberta no, 78, 119-120, 136-
207-208, 210-216, 220-221, 230- 137, 153-154, 157, e n; Frege e
231, 233; mundos 2 e 3 tidos o, 108, 127, 151, 153 e 346n;
por alguns como aspectos do, Hegel e o, 126-127, 151, 345n,
207-208, 267-272. 346n, 275; produto humano,
mundo 2 (segundo mundo, expe­ 117-119, 123, 133, 136-137, 145-
riência ou pensamento no sen­ 146, 155-157, 262, 274-275; e
tido s u b je tiv o etc.), 9, 78t, 80, teoria do conhecimento, 108-
83, 88, 341n, 108, 110-114, 127- 114 ver também conhecimento
128, 344n, 146, 152-155, 273- (teoria do); e linguagem, 118-
274, ver também consciência, 119, 120-123, 127, 136, 154 e
disposições, conhecimento (sub­ 346, 220-221; Platão e o, 108,
jetivo), estado (m ental); e lin­ 123-127 e 343ns, 151-152 e
guagem, 78, 154-155; e ma­ 345n, 153 e 346n, 155, 275; e
temática, 132, ver também in- compreensão, ver compreensão;
tuicionismo; e compreensão, influência sobre o mundo 1,
154, 158-162, 179, ver também ver mundo 1; tido por alguns
compreensão ( teorias subjeti­ ccmo um aspecto de mundo 1,
vas da) ; interação com o mun­ ver mundo 1 ; efeito sobre o
do 1, ver mundo 1 interação mundo 2, ver nrnndo 2; tido
com o mundo■2) ; como inter­ por alguns como expr|essão do
mediário entre o mundo 1 e o mundo 2, ver mundo 2.
mundo 3, 146-147, 152-153, 156, música, 49, 145, 351n, 174, 205-
230-232; abordagem de mundo 206 e 360n, 231, 232 e 363n,
3 aos problemas do, 114-116, 327.
158-162, 171, 176-179, ver tam­ mutação, 74, 88, 222, 224-225, 245-
bém transferência; efeito do 246, 249-259; teoria de ponta-
mundo 3 sobre o, 78, 110-111, de-lança do comportamento,
114, 152-153, 219-221, 230-232, ver ponta-de-lança.
271, ver também linguagem
(funções da, argumentativa) ;
nacional-socialistas, 41.
mundo 3 tido por alguns como natural, seleção, 41, 99, 142, 147-
expressão do, 109, 116, 144-145, 148, 221-222, 227, 232, 234, 238,
147, 153-154, 155, 347n, 273- 244-245, 248, 251, ver também
274. evolução.

388
t

necessidade causai, 91-94, 98, 202, observador, seu papel em física,


204 e 359n. 276, 279.
negação, operação de, 52 e 337n. Ockham, navalha de, 268, 270,
negativa, abordagem, 30-31. 276.
neodarwinismo, 222, 224, 234-235, olho, 76, 144, 345n, 249-250; evo­
246-247 e 364n, 248-249. lução do, 224, 225, 246, 249,-254,
neoplatonismo, 125-126, 346n. 259-260.
ncntralismo, mcnismo neutro, 39 ontologia, ver corpo-mente, mo-
297. nismo, pluralismo, mundo 1,
Newton, teoria de, 30, 50, 60-61, mundo 2, mundo 3; problemas
63, 94-95, 345n, 183, 244, 279, em matemática, 131-132 e 344
ver também força; e determi­ n, 133, 136-137, 156-157.
nismo, 196-197 e 336n, 196-200 operacionalismo, 342n, 107.
e 356-357ns, 201, 203-205; e óptica, 134.
teoria de Einstein, 20, 27, 58- órgãos: evolução de complicados,
59, e 338n, 65,103-104, 246, 308; 246, 249, 254, 259-260; posse e
e teoria de Galileu, 27, 167-169, uso dos, 249-250, 252, 254-255;
191n, 185-186 e S55n, 187-189, autocontroladores, 251, 253,
239 e 364n, 328-329; e indeter- 255.
minismo, 198-200 e 356-357ns; organismos: e bolhas, 228-229;
359n, 271; e teoria de Kepler, evolução de multicelulares, 224,
27, 191n, 185-186 e 355n, 187- 364n, 265; e filo, 223 e 362n,
189, 191-192, 239, 328-329 e 230, 257; e controles plásticos,
370n; refutabilidade da, 335n. 222, 224.
nominalismo, 124, 343 n, ver tam­ ortogênese, 249, 257, 259-260, ver
bém universais. também genético (dualismo).
“normal, ciência” (Kuhn), 174 e
351n, 200-201 e 358n.
número de lugar, 310-311. palavras: não importam, 29; ver­
números primos, 78, 120,137,156- dade ou falsidade de teorias x
357. significado de, 124-125, 283-
nuvens, Cap. 6, 194 t, 194-200 284, ver também essencialismo.
e 357n, 210, 225', 226, 227-229; “pão alimenta”, 21-22, 99-100.
e relógios, ver relógios. paradoxos lógicos (antinomias),
338n, 54, 65, 286-287, 290, 295,
298.
objeto, linguagem, 52-53, 288-290, passado e futuro, 14, 37, 73, 93,
298-301 e 366ns. 98.
objetivo: conhecimento, ver co­ percepção (ões), 106, 123, 128 e
nhecimento (objetivo); modo 343n, 130, 34'5n, 364n, 313-316,
de falar, 17-18, 20, 112, 155; ver também balde ( teoria do) ;
objetividade, ver linguagem e biologia, 68-69, 75-76, 81, 91,
(formulação em).
objetivismo, 106 e 342n; ver tam­ 98-99, 143-144, 316.
bém behaviorismo. pernilongos, 195-196, 227-228.
pesquisa, programas de, 113.
observação, 43, 70, 106, 172, 356n,
235-236, 243, 314-318, ver tam­ pineal, glândula, 214.
bém balde (teoria do), deci- pitagóricos, 320.
fração; caráter conjectural da, Planck, princípio de, 277-278.
40, 77; asserções de, 17, 18 e planetas, movimento circular dos,
334n, 19, 23 e 334n, 27, 30, 40; 167, 168 e 349n, 169; fases dos,
é dependente de teoria ou pro­ 166.
blema, 19-20, 40, 75-77, 176- plástico, controle, ver controle.
177, 236-237, 270, 314-318. Platão, barba de, 276.
observacional(is); linguagem, platonismo, 126, 132-133, 137,
144; leis, 191-192, 370n. 183-184 e 354n, ver também

389
essencialismo, Formas, mundo subjetiva da, 82 e 340n, 343n,
3 e Platão. 138, 139-140, 210.
pluralismo, 151-153, 231-232, ver problema(s) consciente do agen­
também mundo 1, mundo 2, te x objetivo, 350n, 222, 225,
mundo 3; e emersão, 265-276; 274; evolucionário (do orga­
genético, ver genético (dualis­ nismo), 143-144, 222-224 e 362
mo)-, social, 195; teórico (teo­ n, 225, 231-232, 264-265, 271;
rias concorrentes), 18-19, 24, vivos, 173-174; situação obje­
26-27, 58-59, 63-64, 83-86, 341n, tiva ou de mundo 3 (ou situa­
98, 122, 140-142, 146, 169, 223- ções de problema), 77-78, 109,
224 e 362n, 362n, 241-242, 243, 111-112, 118, 119-120, 122, 137,
279, 328, ver também prefe­ 152, 156-157 e 347n, 159-160,
rência. 162 e 348n, 163-177, 222, 225',
politeísmo, 151. 274, 366n; produção proble­
ponto de partida, 44-45, 76-77, ma da estrutura produzida,
105-107, 152, 313, ver também 114-117, ver também mundo 2
fundamentos, problemas: sen­ (abordagem de mundo 3 ao);
so comum e crítica como, 41-43, e descoberta científica, 25, 142,
66, 73, 77, 101, 106, 297. 234-242, 263-65, ver também
positivismo, 335-336n, 49, 68, 176, método de experiência; desvio
359n, 270, 295-296, 297, 326. de, 160, 164, 172, 264, 270; si­
positron, 201. tuações de, 18, 109, 111-112,
posterior, efeito, 362n. 117-118, 122, 159-160t, 162,
pragmática: preferência, ver 164-172, 176, 177-179, 357n,
preferência; problema da in­ 224 e 362n, 271, 275; solução
dução, 31-33, 38-39. de, 140, 173, 219-220, 237-238,
pragmática, teoria da verdade, 242-243, 266; e arte, 172 e
283-287, 290-291. 3'51n, 231-232 e 363n; e evo­
pí axis, problemas práticos da, lução, 143, 222-225; represen­
161, 237, 240, 286. tação esquemática, ver método
precisão, 64, 189, 327-328; graus de experiência e eliminação de
de, 182 e 354n; é determinis­ erro; e compreensão, 159-160,
mo, 359n, 203-205. 161-163, 164-179.
predição, previsão, previsibilida­ profundidade, 26, 60, 94, 185-190
de, 86-88, 194, 271, 273, 286; e e 355n.
explicação, 183, 321, 324-326 e progresso da ciência, ver ciência
369n, 327; de eventos impro­ (progresso em).
váveis, 103-105. projétil, Galileu x Newton acer­
preferência (entre teorias con­ ca do, 186-187.
correntes), 18-19, 23-31, 34, 37, propensão, estrutura de, 251,
40, 58-59, 61, 62-63, 72, 84-87, 252-254, ver também alvo (es­
341n, 98, 103-105, 109, 140-142, trutura de), estrutura de pe­
169-160, 185, 362n, 241-242, rícia.
264, 307-309, pragmática, 24, proteínas, síntese de, 148.
28-29, 31-33, 37, 81-84, 85-87, prova, 335n, 45-46, 83, 128, 131-
341n, 98, Ver também ação, 139, 279-282, 295; uso de lógica
certeza, tecnologia. fraca em, 137-138, 280-282.
preconceito, 68, 143-144, 146, 353 pseudoproblemas, 269.
n, 314. pseudociência, 39.
primeiro mundo>, ver mundo 1. psicanálise, 336n.
probabilidade, 40, 64-65, 332; e psicologia, psicológico (s ), 337if,
conteúdo, ver conteúdo, e in­ 66-69, 88-89, 98 e 342n, 116,
dução, ver indução ( teorias 153, 158 e 347n, 162, 176, 203-
probabilísticas); relativa, 56- 204, 212; e biologia, 34, 68-
57, 306 e 367n, 307; teoria 69, 75-76, 98, 315-316; deter­

390
i

minismo, ver determinismo 109, 190, Cap. 8, 297 e 366n,


(filosófico); problema da in­ 301-302; Churchill sobre o, 50;
dução, ver indução (problema teoria de senso comum do
da, psicológico); e lógica, 17, conhecimento contra o, 47, 49,
34, 72, 340n, 342n, 111-112, 155, 70, 89-91, 101-102, 106-107;
273-274, ver também transfe­ para realismo contra teoria de
rência,, mundo 2 (efeito do senso comum do conhecimento,
mundo S sobre o). ver biologia e teoria do conhe­
psicologismo, 88, 116, 347n, ver cimento, biologia e percepção) ;
também mundo 2 (o mundo S e teoria da correspondência, 53,
tido por alguns como expres­ 64, 266, 287, 289, 291, 297;
são do), Einstein sobre o, 50; e lin­
Ptolomeu, teoria de, 167, 349n. guagem, 48; e lógica, 279-280,
282-28S, 283-292; metafísico,
47-48 e 337n, 190-191, 297; e
qualitativo e quantitativo, 327. pluralismo, 264-270; ciência e,
quantum: postulado (Planck), 47-48, 74, 101, 103„ 190-191,
277; teoria do, 40, 47, 193, 266, 268, 276-281; situação do,
351n, 199-200 e 357-358ns, 202, 335n, 46-47 e 336n, 48 e 337n,
276-281; inteireza da —, 216 102-103, 106-107.
e 358n; — e indeterminismo, recursivas, funções, 111, 120.
199-200, 209-210, 214, 232-233; redução, 64, 244, 265-272, 300-
subjetivismo na —, 139-140, 301, 321, ver também simula­
200, 278, 281. ção; e emersão, 265-270, 272;
química, redutibilidade à física, lingüística ou filosófica, 267-
266-267, 268-269. 270.
reflexos, 67, 72.
refutação, refutabilidade, falsea-
racional ( i s ) : atividade e alvos, mento, 23-25, 30, 36, 46-47 e
180; argumentabilidade, 337n; 336ns, 74, 81, 85, 89, 100, 120
atitude, 40, 226; decisões (con­ e 342n, 182, 184-185, 219, 236,
tra decisões repentinas), 209, 241, 279, 318, 325 e 369n, 327,
214-215; discussão, 28, 85, 122, 331-332, ver também elimina­
265. ção, testes; imunização contra
racionalismo, 267, 282. a, 40, 335n, 47, 331; e realida­
racionalidade, 15, 31-32, 37, 65, de, 185, 301-302, 331.
84, 95-98, 217, 226; ver tam­
bém indução (problema da, so- refutação (falseamento), lei da,
luções do autor); e função ar- 25.
gumentativa da linguagem, regularidades: crenças em ou
347n, 271; das leis da natu­ necessidade de, 15, 33-34, 36;
reza, 175 e 351n; princípio, pragmáticas, 21-22, 32-33, 38,
171; e mundo 3, 145. 93-94, 99-100, ver também in­
rato: dos behavioristas, 204, ex­ dução (problema da, psicoló­
plicação da morte do, 322-323; gico).
e operação de negação, 337n. reguladoras, idéias (princípios),
razão, 22-23, 48, 100. 40, 65, 121, 126, 141, 217, 219,
realidade, 44-45, 336n, 65, 69, 221, 232, 265, 284, 292.
102, 179, 354n, 185, 266, 275, relativismo, 127, 283.
287, 297 e 366n, 301-302, 331, relatividade, 65, 129, 200, 276, ver
ver também realismo; corres­ também Einstein ( teoria d e );
pondência com a, ver corres­ princípio de Galileu, 349n.
pondência; principio, 351n. religião: história da, 176; e teo­
realismo, 9, Cap. 2, 42, 44-45 e ria subjetivista do conheci­
335n, 45-51, 64, 68-70, 77, 89- mento, 70, 73, 81, 128, 130, 182-
91, 341n, 101 e 342n, 102, 107, 183.

391
relógios, Cap. 6, 19 At, 195, 196- sistemas, ver também nuvens,
200 e 357n, 209-210, 227-229; relógios; biológicos, ou orgâni­
“todos são nuvens”, 198-200 e cos, 147-148, 196, 363n; cál­
356ns, 210-211, 227-229, ver culo de (Tarski), ver Tarski;
também indeterminismo; “to­ abertos, 229, 233; físicos, 193,
das as nuvens são —”, 196- 228, 251; fisicamente fecha­
198, 199-200, 201, 210, ver dos, 201-202 e 359n, 207, 361n,
também determinismo (físi­ 233, ver também determinismo
co). (físico).
repetição: e formação de cren­ situação' (Collingwood), 177-179,
ças (teoria do balde), 15, 33, ver também probema (situação
36-37, 68; indução pela, 16, 17- de).
18, 37, 97, 98-99, 100, 103. situacional, análise ou lógica, 74,
retroalimentação, retrocarga, 114, 111, 162, 171-172t e 351n, 174,
119, 121, 123, 126, 145, 157, 177-179, ver também problema
219, 220, 224, 227-228, 231. (situação de), compreensão.
sobrevivência, 16, 29, 73-74, 221-
222, 224, 232, 239, 245, 246-
Satisfação, 298, 300, 312n, 310 e 247 e 364n, 264-265; mutações,
368n, 311-312. e monismo ou dualismo gené­
Schrôdinger, equação de, 225, tico, 251-260.
274. sociedade aberta, 195.
segundo mundo, ver mundo 2. sociologia do conhecimento, 116,
seleção, 99, 142, 147, 219, 248, 360n.
ver também aprendizado, na­ “sol, nascerá e pôr-se-á uma vez
tural (seleção). em 24 horas”, 15, 21, 36, 37,
semântica: metalinguagem, ver 99-100.
metalinguagem; paradoxos, ver solar (planetário), sistema, 228;
;paradoxos; termos semânticos, imperfeito (Newton), 356n.
65, 298-299, 300-301. sonho, 46-47, 48-49, 51, 69-70,
semelhança, ver universais. 343n.
sentidos: dados dos, 67-70, 81, subjetivismo, 9, Cap. 2, 44-45 e
106, 143-144; experiência dos, 335n, 336n, 49-51, 69-73 e 339n,
68, 95, 106, 128, 313, ver tam­ 76-77, 79-81, 83, 89, 95-96, 106-
bém balde (teoria do); intui­ 107, 109, 110, 113-11A, 115-117,
ção dos (Kant), 130-131; ór­ 123, 127-128 e 3Jf3n, 130, 136-
gãos dos, 76, 91, 143-144, 313. 139, 138-1AO, 144-145,153,.341n,
sentidos, 14, 67, 76, 90-91, 128, 272-274, 276-279, ver também
236. balde (teoria do).
sentenças (Tarski), 51 e 337n, substância, 361n, 231.
365n, 296, 367n.
seqüências, finitas e infinitas, sucesso na busca do conhecimen­
309-312 e 367-368ns. to : explicação que provaria
sinalizadora, função da lingua­ demais, 33, 100, 191; imprová­
gem, ver linguagem (funções vel se nossas teorias forem cor­
da, sinalizadora). retas, 22, 33, 38-39, 191.
simetria e leis da natureza, suplementares, hipóteses, 331,
352 n. ver também imunização,
similaridade, 34, 184 e 355n, ver tabula rasa, 66t, 72 e 339n, 75,
também universais. 77, ver também balde (teoria
simplicidade, 26, 141, 354n, 185. do).
simulação, 147, 225, 229, 243-246, Tarski: Cálculo de Sistemas, 54
248, 255, 260. e 338n, 54-58, 302-309, ver tam­
sintaxe ou morfologia da lingua­ bém conteúdo; definição de
gem, 298-299, 366n, 300-301. verdade, ver verdade (defini­
sinteticidade, 86-89, 94-95, 130. ção de Tarski); teoria da ver­

392
t

dade, ver verdade (teoria de tr adução, 289, 299.


Tarski). transferência, princípio da, 17t,
tecnologia, ciência aplicada à, 74, 34, 72-73 e 339n, 84, ver tam­
83-84, 98, 152-153, 156, 239, bém mundo 2 (abordagem de
321, 324-325 e 369n, 370n. mundo 3 prbolemas no).
teleologia, 117, 244-245, 246.
telescópio, 148, 223 e 362n, 224-
225 e 362n. uniformidade da natureza, 37,
tempo, 78, 134, 352n, 257, 275- 99, 101, ver também indução
276; teoria kantiana do, 129 (problema da, tradicional).
e 347n, 130-181, 134; intuição universais, 343n, 343n, 183, 184
do, 129-131 e 344ns. e 354n, 185, ver também
teoria das marés, de Galileu, 16k- essências, mundo 3.
169 e 3i9-350ns, 353n. universalidade, grau ou nível de,
teoria de ponta-de-lança das mu­ 182 e 354n, 182-184, 189, 327.
tações comportamentais, 222- utópicos, sonhos, 205 e 360n.
223, 230, 254, 257, 259-260, ver
também genético (dualismo).
teorias: concorrentes, ver plura­ validade, validez, 72, 122, 217,
lismo-, todas são conjecturais, 219, 279, 295-296; a priori,
ver conhecimento ( conjectu­ ver a priori; de indução, ver
ral) impregnam todas as per­ indução (invalidez da).
cepções, conhecimento, lingua­ veracidade, ver verossimilitude.
gem,, etc., 19-20, 40, 75-76, 106, verdade: aproximação da, 53-54,
134, 143-144, 160, 235-236, 314- 60-63, 65, 72, 76, 84-86, 98, 100.
319 e 369n. 105, 126, 141, 190-191, 362n,
teorias, fidedignidade das, 24, 30- 241-242, 245-246, 292-304, 308,
32, 39, 74, 99-100, ver também ver também verossimilitude;
indução (problema da, tradi­ teoria de coerência da, 282-287,
cional), preferência (pragmá­ 290-291; conteúdo de, ver con­
tica). teúdo; teoria de correspondên-
teorias ou expectativas incons­ dência da, 51-53, 63-65, 343n,
cientes, 35-36, 243, 316. 240-241 282-292, Cap. 9, 297-
terceira concepção, 183 e 354n, 302, ver também verdade (de­
184-185. finição de Tarski); crítica da
terceiro reino (Lewis), 340n. — (discutida), 286-287, 297-
298 ; e realismo, 53, 64-65, 265-
terceiro mundo, ver mundo 3. 266, 289, 291, 297; reabilitada
testes, 23-27, 29-30, 40, 336n, 85- por Tarski, 65, 282-283, 288-290,
86, 120, 140-142, 172, 181-182 297, 301; nos tribunais de jus­
e 354n, 235-236, 241, 279, 318, tiça, 286, 290-291; critérios da,
325-326 e 369n, 329-332, ver ver critérios; ilusão (critica­
também refutação; crucial, 25- da), 335n, 338n; na linguagem
26, 369, graus do, 27, 28, 141- comum, 65, 290-291; não refe­
142, 185, 327; independente, rente à linguagem, 52; teoria
26, 181-182, 321-323, 326-329; de Platão, 346n; teoria prag-
severo, 25, 28, 85, 100, 142, matista, 282-284, 290-291; de
181, 332; asserções, 17, 18 e proposição contra veracidade
334n, 19, 23 e 334n, 27, 29, 40. de pessoa, 155; como idéia re­
texto, interpretação de, 176 e guladora, 39-40, 121, 126-127,
352n, 179 e 353n. 217, 219, 241-242, 266, 284,
thnêtos, 21, 342 n. 292; procura da, 24-28, 39,-51,
todo e partes constituintes, 196 53-54, 60-63, 98, 122, 126-127,
e 356n. 294; definição de Tarski, 64-
tradição, 123, 135, 145, 265-266, 65, 290-291, 300-301 e 366, 302-
319-320. 303; Adendo ao Cap. 9; teoria

393
de Tarski, 51-54, 64-65, 343n, 308, ver também verdade
282- 283, 288-292, Cap. 9, 297- (aproximação da); como meta
303; das teorias, contra signi­ da ciência, 60-61, 63-64, 75,
ficado de palavras, 124-125, 307-308.
283- 284, ver também esaencia- vida, 22, 44, 100, 144, 206, 364n;
lismo; sem ligação com o tem­ emersão ou evolução da, 88,
po, 155-156; transmissão da, 207, 233, 266-267, 271.
40, 279-280, 282-283. Viena, Circuloi de, 294, 297.
verificação, 23, 127-128, 325. vitalismo, 246, 255, 260.
verossimilitude, 53-54 e 338n,
58-65, 85, 98, 103-105, 121, 127,
141-142, 292, 304, 367n, 307- zero, conteúdo, 55-56, 305-309.
E ste livro
foi co m p o sto em
T im es R o m a n 10-550
e im p re sso n a
GRAFICA EDITORA B ISO R D I LTDA.,
R u a S a n ta C lara, 54 ( B r á s ) ,
Sfio F aulo.
O p a p e l. S im a se t d e 1.*, 85 g ., ío rm . 87 x 114,
foi fa b ric a d o esp eclalm en te p a ra e s ta edlç&o
pelas
INDÚSTRIAS DE PA PEL SIMAO S. A..
S&o F aulo,
p ara a
EDITORA ITATIAIA LIMITADA,
B elo H o riz o n te .
Edlç&o n .° 472
ê

i
f
A obra-prima de P o p f e r julgada
pelo filósofo B er t r a n d R u s s e l l ,
prêmio Nobel de Literatura:

SOCIEDADE
ABERTA E SEUS
INIMIGOS
SIR KARL R. POPPER

“Um trabalho cuja im portância é de


primeira linha e que deve ser largam ente
lido por sua crítica de mestre aos inim i­
gos da democracia, antigos e modernos.
Seu ataque a Platão, embora não seja or­
todoxo, está inteiram ente justificado em
m inha opinião. Sua análise de Hegel é
mortal. Marx é dissecado com idêntica
agudeza e é, em parte, devidamente res­
ponsabilizado pelas desgraças atuais.
Este livro é uma defesa vigorosa e pro­
funda da democracia, oportuno, interes­
santíssim o e m agistralm ente escrito.”
B ertrand R u s s e l l

EDITORA ITATIAIA LIMITADA


EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO
ê

mentação cerrada, mas em lingua­


gem simples e vivo estilo. A maio­
ria dos ensaios de que se compõe
esta obra foi antes publicada em
inglês e alemão e consta de con­
ferências proferidas perante várias
assembléias científicas. Várias, po­
rém, antes de reunidas no presente
volume, foram revistas e ampliadas.
Ligam-se todos os capítulos pela
apresentação de uma abordagem
do problema do conhecimento
humano que tem exercido conside­
rável influência sobre muitos pen­
sadores da atualidade.
Sir Karl R. Popper é Professor
Emérito da Universidade de Lon­
dres e nome do maior prestígio nos
círculos filosóficos e científicos
pelas contribuições vigorosas e ori­
ginais que tem dado à evolução da
ciência. Entre suas obras mais
importantes e difundidas figura A
Sociedade Aberta e Seus Inimigos,
elogiada por Bertrand Russell e
que a Editora Itatiaia recentemente
republicou, em convênio com a
Editora da Universidade de São
Paulo. Entre seus trabalhos, com
diversas reedições na Inglaterra,
Estados Unidos e Alemanha, figu­
ram Logik der Forschung, The
Poverty of Historicism, The Logic
of Scientific Discovery, Conjectures
and Refutatlons e Of Clouds an
Clocks. Este último, esgotado há
alguns anos, inclui-se no presente
livro com o título de De Nuvens e
Relógios.

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