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A ineficácia no acesso à saúde pela mulher privada de liberdade e a necropolítica do

Estado brasileiro

Mariana Pabis Balan


Murilo Basso

A pesquisa tem como objetivo verificar em que medida a ineficácia no acesso à saúde pelas
mulheres privadas de liberdade no Brasil evidencia a necropolítica do Estado no tocante à
população prisional feminina do país, tendo como base teórica o conceito cunhado pelo
filósofo camaronês Achille Mbembe (2016) no início do século XXI. Para tanto, utilizou-se
como metodologia a pesquisa bibliográfica, com estudos científicos sobre a temática, e a
pesquisa documental, a partir da análise de matérias jornalísticas que abordam a questão.
Desde a promulgação da Lei 11.343/2006, conhecida como Lei de Drogas, a quantidade de
mulheres presas explodiu no Brasil. Entre 2000 e 2016, o encarceramento feminino brasileiro
cresceu 698%. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), se no começo do
século havia 5,6 mil mulheres em privação de liberdade no país, 16 anos depois o número
saltou para 44,7 mil (PONTES; MARTINS, 2017). Atualmente, de acordo com a versão mais
recente do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN)1, divulgada
em fevereiro de 2020 pelo Ministério da Justiça, há 37,1 mil mulheres custodiadas no sistema
penitenciário brasileiro, sendo que a maioria esmagadora das presas (46,7%) está detida por
algum delito previsto na Lei de Drogas. O déficit verificado é de 3,7 mil vagas. A maioria das
presas é jovem, negra, de baixa escolaridade e com pelo menos um filho. Muitas também são
as principais responsáveis pelo sustento de suas famílias, e caíram em meio ao redemoinho da
verdadeira guerra às drogas no Brasil como o inimigo a ser combatido. As prisões brasileiras
são marcadas pela superlotação e por reiteradas violações aos direitos humanos dos
indivíduos que se encontram em tais locais. Nesse cenário, verifica-se que o acesso à saúde
pelas mulheres custodiadas no sistema prisional do Brasil é ineficaz. A Constituição Federal
de 1988 prevê a saúde como um direito social, enquanto a Lei de Execução Penal (Lei
7.210/1984) traz que a assistência à saúde do preso é dever do Estado e direito do
encarcerado, que deve ter acesso a atendimento médico, farmacêutico e odontológico. No
tocante ao acesso à saúde pelas presas mulheres, ele também está previsto na Política
Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do
Sistema Prisional (PNAMPE), instituída pela Portaria Interministerial número 210, de 16 de
janeiro de 2014, do Ministério da Justiça e da Secretaria de Políticas para as Mulheres da
Presidência da República. Apesar das previsões legislativas, estudos indicam que esse acesso
é bastante falho. Na versão mais recente do INFOPEN, há registro de somente 26 médicos
ginecologistas em todo o sistema. Considerando que há 37,1 mil mulheres custodiadas, trata-
se de um profissional para cada 1,4 mil presas, aproximadamente. Observa-se, nesse sentido,
que as prisões ainda são um ambiente essencialmente masculino. Pelo fato de a população
carcerária feminina ter crescido tanto em um período relativamente curto de tempo, o que se
constata é que o sistema não estava preparado para receber esse elevado contingente de
mulheres, gerando reflexos no acesso à saúde por elas. Sobre o tema, Araújo et. al (2020)


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas (PPGDH) da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (PUCPR), especialista em Sociologia Política (UFPR), advogada, jornalista. E-
mail: ma.balan@yahoo.com.br.
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Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas (PPGDH) da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (PUCPR), especialista em Políticas Públicas e Desenvolvimento Social
(PUCPR), jornalista. E-mail: mbasso89@gmail.com
1
O levantamento pode ser acessado na íntegra no sítio eletrônico do Departamento Penitenciário Nacional:
http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen.
afirmam que ainda há muitos entraves, como barreiras institucionais, superlotação crônica e
discriminação quanto às pessoas presas – discriminação esta que muitas vezes está envolta
em nuances tecnicistas e burocráticas, que acabam por afetar o direito de acesso à saúde.
Além disso, o atendimento apresenta, de forma prioritária, ações relativas à maternidade,
“tornando a assistência à saúde fragmentada, tendo o intuito primordial de restringir a
sexualidade das presidiárias” (ARAÚJO et al., 2020). As presas brasileiras relatam não ter
acesso a produtos de higiene básicos para mulheres, como absorventes íntimos, chegando a
substituir o item por papel higiênico, jornal e até miolo de pão. Muitas mulheres que chegam
grávidas ao presídio também dizem ter passado por pouco ou nenhum acompanhamento
médico durante a gestação (QUEIROZ, 2015). Ainda, segundo relatos da Pastoral Carcerária,
que age junto às pessoas presas e suas famílias, há detentas que mesmo com nódulos nos
seios e hemorragias esperam meses por uma consulta. Problemas de pele também são comuns
e faltam dermatologistas (CUNHA, 2017). Essa ineficácia no acesso à saúde pelas mulheres
que se encontram privadas de liberdade no país é uma evidência da necropolítica praticada
pelo Estado brasileiro no que diz respeito à população prisional. Na necropolítica, segundo
Achille Mbembe (2016), a soberania se expressa predominantemente pelo direito de matar,
no sentido de que a vida deixa o centro do exercício de domínio para a morte ganhar
protagonismo. Dessa forma, o Estado passa a administrar os indivíduos que precisam morrer
para que outros possam viver. Sob a justificativa de defender a sociedade, mais do que
exercer um controle sobre a vida dos indivíduos que devem prosperar no modelo de
humanidade desenhado pelas classes dominantes, é preciso conduzir quem morre – e como.
Assim, a necropolítica representaria a aniquilação da vida em relação aos corpos, indivíduos
e populações consideradas descartáveis, como se essas pessoas levassem uma vida sem valor,
“matável”. Ao não garantir o pleno acesso à saúde às mulheres privadas de liberdade no
Brasil, o Estado pratica verdadeira manobra de eliminação de corpos considerados
indesejáveis, quais sejam os corpos femininos, negros e periféricos, que não se enquadram no
padrão de normalidade imposto por quem detém o poder.

Palavras-chave: acesso à saúde; direitos humanos; encarceramento feminino; necropolítica;


sistema prisional.

Referências

ARAÚJO, Moziane Mendonça de. Assistência à saúde de mulheres encarceradas: análise


com base na Teoria das Necessidades Humanas Básicas. Escola Anna Nery - Revista de
Enfermagem, n. 24, v. 3, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br. Acesso em: 14 jun.
2020.

CUNHA, Fernanda. Além das grades: Uma leitura do sistema prisional feminino no Brasil.
Huffpost Brasil, 18 jun. 2017. Disponível em: http://huffpostbrasil.com. Acesso em: 14 jun.
2020.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Artes & Ensaios, n. 32, 2016, p. 122-151.

PONTES, Felipe; MARTINS, Helena. População carcerária feminina cresce 700% em


dezesseis anos no Brasil. Agência Brasil. Brasília, 26 ago. 2017. Disponível em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br. Acesso em: 12 jun. 2020.

QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam. Rio de Janeiro: Record, 2015.

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