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Maria Cristina Castilho Costa

O Gancho - da mídia impressa às


mídias eletrônicas

Resumo - O presente trabalho analisa o contraste entre a alegria evidente na foto


gancho, recurso narrativo que teve sua e a tensão vivida pelas personagens é
origem na literatura oral, com os recurso clássico das narrativas melo­
contadores de história, e que foi dramáticas. Toda essa emoção é acom­
apropriado pela indústria cultural, na panhada por uma música romântica de
imprensa, no rádio e na televisão. fundo e pela câmera que se fecha em
Acompanha o desenvolvimento dessa close, lentamente, no rosto ansioso de
estratégia cativar o público e criar um Helena que, assim, expõe ao público
fluxo narrativo estimulando a toda sua dor e angústia. Ouve-se a trilha
participação do espectador na trama. sonora de abertura e os letreiros varrem
Finalmente, o texto discute a utilização a tela. O capítulo termina deixando no ar
desse recurso nas novas mídias digitais. toda a ansiedade e a dúvida da
protagonista sugeridas por sua ex­
Introdução pressão, pela lentidão com que a câmera
Helena1 entra em casa, vinda do capta essa seqüência, pela penumbra do
trabalho. Encosta-se à porta depois de ambiente e pela música de fundo cheia
fechá-la e corre os olhos pela sala de de alusões. O espectador, certamente,
estar de sua casa, meio na penumbra. permanece ainda um bom tempo imerso
Sua expressão é angustiada. Recompõe- na sensação conflitante despertada pela
se e começa a percorrer o cômodo em situação de Helena. Pouco a pouco ele
direção à porta que dá para a parte se recompõe e passa para outro
interna da casa. Passeia o olhar por tudo programa, outro estado de espírito,
(1) Helena é o nome da como se procurasse alguma coisa. O outro contexto. Mas, lá no fundo, as
protagonista, interpretada por Vera espectador, que acompanha a trama, perguntas não respondidas ficam
Fischer, na novela Laços de Família, compreende a ansiedade que a per­ remoendo em sua memória e em seu
de Manuel Carlos, apresentada em sonagem exibe - ela suspeita que a filha, imaginário. Como Helena reagirá à
2000-2001 pela Rede Globo de Camila, mal saída da adolescência, esteja certeza do envolvimento da filha com o
Televisão, no horário das 20:30 hs. se apaixonando pelo seu namorado, namorado? E Edu, deixará a namorada,
(2) Para Gaston Bachelard, as Edu, armando-se um obstáculo envolvendo-se com a filha, Camila?
repercussões e ressonâncias são insuperável para o romance que ela vem Como se enfrenta esse triângulo
características fundantes da vivendo na novela. Helena dirige-se para amoroso cujo conflito milenar inspira os
o quarto, aparentemente, em busca de autores das mais variadas linguagens,
imaginação poética - BACHELARD,
descanso ou consolo, mas antes de se escolas e culturas, há milhares de
Gaston - A poética do espaço - São
acomodar vê a porta fechada do quarto gerações?
Paulo, Martins Fontes, 1988. As perguntas que ficaram
de Camila. Sente-se atraída por aquele
cômodo como se quisesse penetrar a pendentes, os conflitos que se anun­
Maria Cristina Castilho Costa é
intimidade da filha. Ela abre a porta e ciam, as emoções que se contrapõem,
Doutora em Ciências Humanas pela
penetra no dormitório. Seu olhar fixa uma ressoam no imaginário do ouvinte/
Faculdade de Filosofia, Letras e fotografia na qual aparecem sorridentes espectador, trazendo-lhe imagens
Ciências Humanas da USP, Livre- e despreocupados a menina, Edu e ela, arcaicas carregadas de afetividade. Essa
docente em Ciências da Comunicação num trágico triângulo amoroso pres­ ressonância2 permanece no ar esti­
pela ECA-USP. sentido pela máquina fotográfica. O mulada por uma história que foi
interrompida no seu ponto de maior suspense premeditado da história era
tensão, quando toda a carga afetiva da usado como elemento de envolvimento
personagem se encontra mobilizada, e sedução. Os grandes leitores de
exposta e ao alcance do público. Ela narrativas, conta Manguei, sempre
flutua sob a forma de imagens feitas de souberam que manter o interesse de seu
sons, de cores e de movimentos, ima­ ouvinte era parte da certeza do prazer
gens que assombram o público ansioso da leitura e do sucesso do texto. Sobre
pela resposta, solução, ou desenlace. É Tam Fleck, famoso pelas leituras que
o gancho que encerra o capítulo das fazia de seus livros de aventura, diz o
narrativas seriadas e prepara já o autor: tinha por norma não ler mais de
próximo encontro, quando a história será duas ou três páginas de cada vez,
retomada exatamente no momento da entremeadas com observações sagazes,
sua ruptura, a partir da cena de corte. como se fossem notas de pé de página,
No dia seguinte, a história e dessa forma sustentava um interesse
recomeçará de onde parou - Helena extraordinário pela narrativa3. Seu
olhará demoradamente para a foto que saber havia aprendido com uma velha
enfeita o quarto da filha e talvez saia de parenta que contava histórias para ele e
mansinho para esconder-se em seu para seu irmão.
próprio quarto ou pode ser que, num Pregadores de diferentes doutri­
momento de raiva, rasgue a fotografia nas, em seu esforço de conversão, não
que previra, com tanta sutileza, a relação hesitavam em lançar mão de recursos
dramática entre os três personagens. narrativos próprios da cultura popular.
Ou o que mais será possível? Com essas Sacerdotes cristãos aproveitavam-se de
perguntas sem respostas, mas cheias de provérbios, ditos populares, aforismos
sugestão e de prenúncios de emoções e também dos ganchos. Os sermões nos
envolventes, o espectador aguardará quais utilizavam técnicas consagradas
ansioso pelo dia seguinte. Sua da oralidade eram interrompidos em
curiosidade estimulada, suas emoções momentos de tensão para que o públi­
despertadas, seus desejos acordados, co acompanhasse atento as peripécias
permitirão que, mesmo em meio às lides do Antigo e Novo Testamentos. Após
cotidianas, ele se entretenha com o demoradas pausas sugestivas, os
enredo contínuo e permanente das sacerdotes encerravam os sermões com
narrativas seriadas. frases contundentes e reforçadas pelo
suspense.
As origens seculares do gancho Os meios de comunicação de
O recurso do gancho é utilizado massa a e a indústria cultural foram
há milênios pelos bons narradores de muito sensíveis à tradição milenar das
histórias e, mesmo quando estas eram formas narrativas, especialmente as
apenas contadas à viva voz, diante de populares, daí o uso da comicidade, das
platéias que escutavam atentas, o ritmo expressões mímicas e orais e de
narrativo permitia o uso de alentamentos estratégias de comunicação, entre as
estratégicos que estimulavam o quais está o gancho. Foi ele também que
imaginário dos ouvintes. A suspensão consagrou Sheherazade - personagem
do enredo nos momentos mais tensos das Mil e uma noites e talvez a mais
quando o desfecho de conflitos, o famosa contadora de história de todos
choque de personagens ou perigos os tempos. Diz a lenda que o sultão
iminentes estavam por acontecer, Schariar, tendo sido traído pela mulher,
tornavam famosos os contadores que resolvera mandar executar todas as
sabiam usá-la de forma adequada. esposas que tivesse dali para a frente,
Manguei, no livro A História da na noite seguinte às núpcias. Pretendia,
Leitura, fala dos serões domésticos de assim, evitar novas possíveis traições.
leitura em voz alta, quando as mulheres, Diante da desgraça que então se abateu
estimuladas pelos enredos, mas ainda sobre o reino, Sheherazade decidiu (3) MANGUEL, Alberto - Uma
afastadas da escola, aprendiam a ler e a oferecer-se como esposa, driblando a história da leitura - São Paulo, Cia
escrever. Nessas oportunidades, o obstinação do marido com a estratégia das Letras, 1997, p. 143.
de, ao clarear do dia, interromper suas tindo a compra do exemplar do dia
histórias num momento de grande seguinte quando os desenlaces das
interesse. Curioso pelo final da história, histórias seriam enfim conhecidos. O
Schariar foi adiando por mil e uma noites autor, sabiamente, conseguia satisfazer
a execução da esposa, quando enfim a curiosidade desse leitor e criar novos
convenceu-se de sua fidelidade, interesses e amarrações cuja solução ele
comprovada pela assiduidade com que deixaria sempre para outro dia. A
ela comparecera ao ritual narrativo.4 narrativa seriada e o bom uso do gancho
A atenção permanentemente foram responsáveis, entre outros
despertada pelos cortes meticulo­ fatores, pelo hábito que se formou de
samente arquitetados seduziam o leitura diária desses periódicos.
soberano e o prendiam inelutavelmente Marlyse Meyer identifica o
à Sheherazade e às suas histórias. A gancho como uma das características
imprensa, o rádio e a televisão da literatura folhetinesca e afirma que a
souberam, como ela, estabelecer exigência desse recurso passou a
vínculos de fidelidade com o seu influenciar a própria estrutura do
público, constantemente interessado no romance e a caracterizar o estilo dos
desdobramento das histórias e no autores, tornando alguns deles famosos
desenrolar dos acontecimentos. pela perícia que demonstravam ao usá-
O gancho - essa ferramenta com lo. Balzac, segundo Meyer, teria sido um
a qual o narrador seciona sua história admirador de Eugène Sue e teria com
em pedaços, mantendo o interesse e ele aprendido a fragmentar seus
avivando a curiosidade de seu romances. A arte do gancho implica em
interlocutor - é uma intrincada gramática cortar de forma adequada a história em
que exige todo um “amarramento” capítulos sem destruir a impressão de
próprio da trama. Os ganchos sintetizam continuidade e totalidade6.
os capítulos diários de uma narrativa A indústria cultural foi se
seriada, demonstrando que as intrigas especializando nesse mister e quando,
foram urdidas exatamente para além da imprensa, passou a contar com
terminarem nesse hiato preciso e outras mídias como o rádio e a televisão,
calculado - é como se o narrador cuja oralidade as aproxima das narrativas
começasse a escrever o capítulo, populares, o uso desses mecanismos de
pensando já em como encerrá-lo. sedução e de mobilização psico-social
Podemos dizer que quem escreve tanto se tomou cada vez mais imperioso. Com
conta como sugere o que não conta, uma grade horária ininterrupta e com a
quando silencia, corta ou interrompe. Há audiência doméstica, os novos meios
um enredo que se apresenta no texto e de comunicação passaram a levar cada
outro que se esconde na imaginação do vez mais a sério sua capacidade de
(4) Sheherazade é personagem do público, proposto pelo narrador. O disputar a atenção do público tornando-
conto moldura que explica a origem gancho acentua os silêncios, as o também fiel aos seus encontros
dos diversos contos que compõem propostas, as ambigüidades, as narrativos. Assim, a relação que se
As Mil e Uma Noites - coletânea de sugestões, estimula os desejos, as estabelece é mais estreita e envolvente.
origem oriental traduzida para o expectativas, os sonhos. O gancho, aguçando a imaginação e a
inglês no século XIX e amplamente curiosidade de ouvintes e telespec­
O gancho na mídia tadores, passa a ser um recurso dos
divulgado no ocidente.
O gancho tornou-se elemento mais utilizados.
(5) O gancho foi objeto de pesquisa
dos mais importantes na indústria Desde o início da programação
realizada por Maria Cristina cultural e nas narrativas seriadas nos radiofônica e televisiva, as narrativas
Castilho Costa em projeto mais diferentes meios de comunicação5. seriadas exibiram o talento no uso do
financiado pela FAPESPO gancho Desde os folhetins que passaram a ser corte, deixando o público “pendurado”
da telenovela, análise estética e editados diariamente nos jornais que nas emoções diárias, dosadas e em
sociológica - São Paulo, 1997-1999. circulavam nas cidades européias no conta-gotas. Embora o termo gancho
(6) MEYER, Marlyse - Folhetim - século XIX, utilizavam de maneira tenha nascido da prática jornalística,
São Paulo Cia das Letras, 1996, adequada o gancho, como meio para referindo-se à relação possível
p.63. manter a atenção de seu leitor, garan­ estabelecida entre matérias diferentes,
ele se consagra como elemento sistema productivo y del sistema de
característico das narrativas essencial­ consumo, entre la del formato y de los
mente ficcionais. Tendo por caracte­ modos de leer de los usos, diz ele8.
rística a linguagem poética e o uso de A cada nova mídia que se
metáforas, a obra de ficção exige o desenvolvia e incorporava essa forma
mergulho do leitor/ouvinte, ou do de contar histórias, a arte de cortar e
receptor, na trama criada. O gancho é emendar, própria do gancho, assumia
uma das alavancas desse complexo características diferentes que excediam
processo ficcional. A esse respeito nos a simples modulação formal de uma
diz Umberto Eco: Em toda obra de narrativa - de uma lado, havia a acir­
ficção, o texto emite sinais de suspense, rada disputa entre meios e canais
quase como se o discurso se tornasse existentes que batalhavam pela atenção
mais lento ou até parasse, e como se o do público e, de outro, enfrentavam-se
escritor estivesse sugerindo: ‘‘agora problemas técnicos cuja crescente com­
tente você continuar... " 7 plexidade tramava contra o desejável
Por mais de um século, as fluxo narrativo dos programas.
histórias aos pedaços ajudaram a Mario Fanucchi, radialista e
promover uma revolução silenciosa nas profissional da televisão brasileira
sociedades modernas — incentivaram a desde seus primórdios, conta em seu
alfabetização, criaram o hábito de leitura livro Nossa próxima atração9 a
diário e estimularam o público a dificuldade experimentada pelos
substituir a experiência imediata por uma profissionais da TV na tentativa de
vivência mediada pela indústria, mas reduzir os intervalos da programação.
compartilhada pela coletividade. Desde Com poucos recursos técnicos e muita
o século XIX, quando surgiram, até improvisação, buscava-se amarrar as
meados do XX, a cultura se tornou diversas cenas de um mesmo programa
repleta dessas histórias cuja trama faz e os diversos programas num conjunto
avançar, regularmente, semana a harmonioso e interessante para o
semana, mês a mês, dia a dia, uma espectador, tomando o menos percep­
história cheia de ações e emoções, tível possível a escassez de profis­
aprimorando-se essa técnica de secionar sionais e de cenários que trans­
e emendar capítulos. O desenvol­ formavam numa pequena batalha cada
vimento tecnológico foi diversificando intervalo. As demoras eram mal rece­
os formatos nos quais esses enredos bidas e mal suportadas pelo público,
se desenrolavam, surgindo fotonovelas, obrigando a produção a uma verdadeira
radionovelas, o cinema seriado e as corrida contra o tempo. Assim,
telenovelas, mantendo-se, entretanto, as ganhavam importância os interpro-
mesmas características do gênero - gramas utilizados para a publicidade,
infindáveis melodramas de cunho para anúncio da programação
moralista que renovavam a eterna subseqüente e até para experiências
disputa entre o bem e o mal. Oferecidas gráficas e em texto corrido - ousadias
de forma seriada, essas histórias impensáveis nos tempos atuais. A arte
tornaram-se notáveis no uso e abuso do gancho adquiria independência,
de ganchos, estimulado também pelas libertava-se do texto e intrometia-se nas
mensagens comerciais que passaram a questões de produção. Por outro lado,
(7) ECO, Umberto - Seis passeios
ser veiculadas nos intervalos entre já se apresentavam as questões de ritmo,
pelos bosques da ficção - São
blocos e capítulos. A serialidade, fluxo narrativo e rapidez na transmissão
segundo Jesús Martin Barbero, Paulo, Cia das Letras, 1994, p. 56.
como elementos próprios das
acomodava os princípios da produção comunicações midiáticas. (8) MARTÍN-BARBERO, Jesús - De
industrial aos hábitos do consumo, Foi em razão desse cenário los medios a las mediaciones -
instituindo as bases da cultura massiva. propício ao desenvolvimento da cultura Barcelona, Editorial Gustavo Gili,
Los géneros, que articulan de massa e ao sucesso comercial das 1987, p. 239.
narrativamente las serialidades programações televisivas que o gancho (9) FANUCCI, Mario—Nossa
constituyen una mediación foi se modificando e foi tendo uma Próxima atração -SãoPaulo,
fundamental entre las lógicas del participação cada vez mais ampla e EDUSP, 1996.
diferenciada no discurso massivo. Nas respeito da logomarca criada para a TV
palavras de Fanucchi, o intervalo Tupi Difusora, Canal 3, primeira
transcendia o papel de mero com­ emissora de televisão a transmitir
plemento da programação e atingia programas regulares no Brasil. Antes do
quase o status de programa10. início da programação diária que só
Mas o que já podemos notar, começava às 20 horas, aparecia na tela,
nesta etapa de apropriação de recursos para ajuste da imagem, um diagrama com
narrativos provenientes da tradição oral círculos e coordenadas no qual se via a
e da cultura popular pela indústria cabeça de um índio norte-americano.
cultural, é que ela implica numa mudança Dados os atrasos constantes do início
de função do elemento apropriado e da transmissão, essa imagem ficou
num deslocamento de sua inserção no desgastada, tomando-se sinônimo de
processo produtivo. O gancho na indesejável demora - um verdadeiro
comunicação oral era essencialmente “programa de índio”. Sem ferir o
um recurso narrativo do autor, uma “indigenismo” da empresa e buscando
competência de quem detinha o poder melhorar a empatia dessa abertura junto
sobre a história em retardar seu ao público, foi criada a famosa figura do
desfecho, explorando a curiosidade e o indiozinho “Tupiniquim”- mais jovem e
interesse do ouvinte e, conseqüen­ com uma cara alegre11 - um curumim
temente, obtendo maior envolvimento que utilizava uma antena de televisor
deste no processo comunicativo. Ao no lugar do cocar. Associado à legenda
migrar da tradição oral para a imprensa “Nossa Próxima Atração”, esse
e, mais tarde, para o rádio e a televisão, interprograma estimulava interesse e
o gancho passa a ser uma ferramenta tolerância junto aos espectadores,
não só do autor propriamente dito, mas tomando-se uma das mais antigas e
de toda a cadeia produtiva que envolve conhecidas personagens televisivas.
a criação cultural em moldes industriais. Assim funciona o processo de camu­
Essa habilidade do narrador de manter flagem, de naturalização e familiaridade
o público mergulhado numa narrativa do processo midiático, uma das raízes
passou a ser requerida também dos de sua espetacularização - a substi­
diretores, produtores e apresentadores, tuição da realidade por imagens que a
cada um tentando fazer desaparecer do contradizem e ludibriam12.
fluxo narrativo os intervalos impostos à A invenção do videotape, na
comunicação não mais pela urgência da década de sessenta, minimizou os
vida cotidiana, mas pelas necessidades problemas com a constante impro­
de um processo comunicativo que se visação a que se sujeitavam os profis­
sofisticava, se mercantilizava e se sionais da TV - troca de cenários, de
fragmentava. elenco e de programa - mas fez aumentar
Além disso, o gancho deixa de a descontinuidade da linguagem
ser um recurso narrativo do bom orador televisiva com o uso cada vez mais
e do bom contador de histórias para se intenso da edição do material
transformar numa tática que encobre as previamente gravado. A arte do “corte
características e fragilidades da e costura”, das chamadas e da
comunicação midiática. Ele participa comunicação envolvente, capaz de se
assim dessa naturalização dos meios prolongar na memória do espectador,
de comunicação de massa a partir da consagrava-se, mas produzia uma
qual todo ruído provocado pelas narrativa cada vez mais descontínua.
características da nova linguagem e pelo Por outro lado, o alto preço
processo produtivo de que resulta, alcançado pelas emissoras na venda
assim como a estranheza que possa dos espaços publicitários levou a uma
(10) idem, p. 100. provocar inicialmente no público, é aceleração da linguagem televisiva com
(11) idem p. 77. disfarçado pela adoção de recursos mensagens que procuravam falar cada
(12) DEBORD, Guy - A sociedade conhecidos, familiares e populares. vez mais em menos tempo, através de
do espetáculo - Lisboa, Edições Sugestivo dessa tendência é o um estilo quase metonímico e
Afrodite, 1972. que nos conta Mario Fanucchi a minimalista. Essa aceleração impregnou
a programação regular e, em especial, instável de sedução. O gancho
as telenovelas, caracterizadas até então tradicional que mostrava as “cenas dos
por uma narrativa lenta, repetitiva e próximos capítulos” também foi
cotidiana. O resultado foi o uso de uma suprimido em favor de uma curiosidade
maior quantidade de câmeras filmando mais sutil e eficaz.
vários ângulos diferentes, e um maior Nos demais intervalos da
número de cortes. Se nas novelas programação, o gancho se mostra mais
brasileiras da década de sessenta havia sofisticado quando aberturas e vinhetas
cenas de até cinco minutos de duração, são elaboradas com maior apuro e
atualmente elas raramente ultrapassam quando as chamadas se multiplicam na
um minuto, parecendo, mesmo assim, transmissão diária. A produção de
longas ao espectador. Cortar e emendar making-off e a criação de expectativas
tornou-se tarefa importante de autores, junto ao público podem ser consi­
diretores e editores de narrativas deradas como verdadeiros ganchos
televisivas, todos eles buscando não paralelos. Nota-se até a tendência para
cansar os espectadores e, ao mesmo que artistas de uma determinada
tempo, despertar-lhes o interesse é uma programação sejam foco de notícias que
fidelidade de sultão apaixonado. reiterem sua atuação televisiva.
Mas, não param aí as preocu­ Além do advento do controle
pações crescentes com a atenção e remoto, arma indispensável do público
fidelidade do espectador - o controle televisivo, os anos noventa assistiram
remoto, ampliando junto ao público a a instalação das TVs a cabo, acirrando
possibilidade de troca de canais, e o a competição entre programas
surgimento de novas emissoras que televisivos nacionais e estrangeiros. O
ameaçam a posição hegemônica das desenvolvimento tecnológico, as
emissoras mais consagradas, levam transformações do meio, a excessiva
essa Sheherazade eletrônica a uma comercialização dos espaços e a
atitude ansiosa de verdadeira perse­ concorrência fizeram da linguagem
guição por sua assistência - os folhetins midiática um tecido cada vez mais
tornaram-se mais melodramáticos e o fragmentado em que as pausas e os
gancho, cada vez mais elaborado. O que apelos se tomaram imperativos.
estamos chamando de “ganchos mais Os noticiários, constantemente
elaborados”? Em telenovelas, os interrompidos pela publicidade,
ganchos são mais refinados quando começaram também a fazer uso do
toma-se explícita a escolha da cena que gancho, não mais como uma ligação
encerra o capitulo, envolvendo, quando entre assuntos diversos ou como
possível, o conflito central da história; intervalos publicitários, mas como
quando os protagonistas aparecem no elemento capaz de trazer o ouvinte de
momento do corte; quando a direção de volta, depois de passar pelos incon­
câmera acentua a expressão fisionômica venientes mas necessários anúncios.
do ator e o close faz com que o Introduzir as manchetes das notícias
espectador mergulhe no interior da que estão previstas para os blocos
personagem e, finalmente, quando a subseqüentes, estimulando curio­
última fala parece dirigir-se diretamente sidades e interesses, tornou-se um
ao público, despedindo-se dele. recurso cada vez mais comum nos
A aceleração da linguagem diversos veículos da mídia. Como os
televisiva e essa preocupação com o pregões dos vendedores ambulantes, o
corte e a continuidade da narrativa ficam anúncio daquilo que será apresentado
evidentes nas telenovelas atuais alcança o público, desperta apetites e
quando, após a repetição da cena de chama a atenção.
corte do dia anterior, prossegue-se com Não é raro que figuras de
o capítulo sem colocar no ar a ficha impacto apareçam na televisão, pouco
técnica, como era usual até pouco tempo antes dos intervalos, convidando o
atrás. Não há um minuto a perder nesse público a retornar à programação,
processo intrincado e cada vez mais seduzindo-o com o anúncio do que o
espera após os comerciais. Abre-se um filha da apresentadora Xuxa).
sorriso e o artista ou âncora termina sua Há na televisão brasileira um
fala com um inevitável: “você não pode novo formato que mistura ficção e
perder...” realidade — é o No Limite, produzido
Também o formato dos também pela Rede Globo, inspirado no
programas de entrevistas e variedades popularíssimo Big Brother, já apre­
tem procurado privilegiar essa sentado na Europa e nos Estados
amarração e esse apelo ao público entre Unidos. Os participantes são geral­
os blocos separados por comerciais: No mente jovens e não atores que,
Fantástico, programa de variedades selecionados pela emissora, prestam-se
exibido nas noites de Domingo, pela a uma experiência nova: conviver
Rede Globo, há décadas, foi criada uma durante certo tempo em um espaço
nova estratégia que remete aos recursos determinado e sem contato com pessoas
do gancho. No penúltimo bloco, os externas à produção, enfrentando
apresentadores perguntam ao público desafios como falta de comida, cansaço
qual o assunto que desejam ver tratado e conflitos de relacionamento entre os
nas matérias a serem produzidas para a participantes. Todo esse processo é
próxima semana. Três temas são gravado pela emissora que exibe,
propostos e os telespectadores são semanalmente, trechos dessa vivência.
convidados a escolher através de Ao final do capítulo apresentado, os
ligações telefônicas. Ao final da noite, participantes votam pela exclusão de um
informa-se o tema escolhido, criando- dentre eles. Aquele que permanecer,
se a expectativa em relação ao próximo vencendo as provas e resistindo ao
programa - trata-se de um gancho entre processo de exclusão, ganha um prêmio
blocos e entre programas. Assim, o em dinheiro. A decisão final depende
gancho se expande e se transforma em também de votos dos espectadores.
elemento característico da linguagem Trata-se de um formato que
televisiva, mostrando, por um lado, o mescla ficção, realidade, brincadeira e
alargamento desse mercado e a gincana e que trabalha com a
proliferação de opções e, por outro, a expectativa de desempenho dos jovens
importância dada ao receptor que e com a difícil experiência da expulsão
aparece, para a indústria cultural, como do grupo. Há nesse programa a nítida
o poderoso sultão que manteve preocupação com os elementos de
Sheherazade entre a vida e a morte por mobilização psico-social: a participação
quase mil e uma noites. Com isso, os de pessoas “comuns” que acentuam o
recursos de corte, seriação, fragmen­ naturalismo televisivo, o apelo
tação e fidelidade na relação voyeurista do público que assiste à vida
comunicativa tornam-se cada vez mais íntima e cotidiana do grupo, além do
complexos e elaborados. gancho que se caracteriza pela surpresa
O programa Você Decide, em relação a quem será eliminado a cada
também da Rede Globo, estimula o semana. A possibilidade de parti­
interesse do espectador possibilitando cipação do público na escolha do
a sua intervenção no desenlace do vencedor, nos moldes do Você Decide
conflito abordado pela história - através - também é fator de mobilização.
de uma chamada telefônica ele opta por Mas, poderemos continuar
um entre dois finais que a emissora lhe chamando esses recursos televisivos de
indica. Além desse recurso que ganchos ou será que as transformações
incentiva a participação do público, o aqui mencionadas os descaracterizam?
papel sedutor do apresentador leva Para efeito das nossas análises e da
quem assiste ao programa a responder forma como concebemos essa técnica
de maneira positiva ao seu “Você verá de elaboração narrativa, continuam
no próximo bloco...”, convite irrecusável sendo ganchos: constituem-se em
quando feito por artistas de grande estratégias de interrupção/costura de
popularidade como o ator Tony Ramos uma história com o objetivo explícito de
ou o ex-modelo Luciano Szaffir (pai da despertar o interesse, a curiosidade e a
atenção do espectador/ouvinte para seu inesperado, o gancho não teria esse
desfecho. Continuam sendo ganchos poder de mobilizar o espectador,
por serem recursos através dos quais remetendo-o para o final da trama. Nesse
uma programação resolve a descon- sentido o gancho se afasta do suspense
tinuidade imposta pela grade de que, ao contrário, se apoia no mistério e
programação, por comerciais ou pela no desfecho que o autor guarda consigo
excessiva pré-produção dos programas. e, muitas vezes, esconde de seu público.
Porém, como em toda linguagem Embora o suspense tenha sido
que se desenvolve, o gancho sofreu um utilizado em inúmeros ganchos de
processo de complexificação que fez telenovelas, como em Vale Tudo, em que
dele mais do que o resultado da o autor Gilberto Braga manteve os
habilidade do autor no corte, trans­ espectadores na dúvida acerca do
formando-se em intrincada forma de assassinato de Odete Roithman13, eles
mobilização do público, envolvendo não se confundem. O suspense é um
outras artimanhas como a ilusão gênero literário e midiático que diz
participativa do espectador. Faz parte respeito à obra como um todo e à
da cultura da atualidade esse apelo intensificação de uma situação de medo,
constante à participação nas mais mistério ou angústia proposta pela
diferentes manifestações - até mesmo trama. O gancho é um recurso mais
no campo das artes plásticas, obras formal do que temático (embora seja
antes intocáveis tornam-se mani­ intensificado por determinados
puláveis, usáveis e tácteis. Cinema e conteúdos temáticos) que diz respeito
televisão apresentam-se sob forma mais à forma como um narrador conduz
interativa e nunca houve tanto empenho, sua história. Podemos dizer que o
por parte das emissoras em conhecer e gancho é marcado pela ruptura, pelo
ouvir clientes, leitores e interlocutores. secionamento e pelo impedimento da
Natural, portanto, que a interatividade continuidade, enquanto o suspense se
e a participação se incorporem às manifesta pela intensidade e pela
estratégias de “fidelização” do público continuidade narrativa. O próprio
utilizadas pela mídia. Hitchcock afirmou que não se deve
Além das características comuns confundir suspense com surpresa14.
aos ganchos - esmero no corte e Também não podemos confundir
agilidade na costura, há aspectos ruptura com continuidade.
dessas narrativas que aproximam os O gancho, portanto, enquanto
ganchos folhetinescos do século XIX estratégia narrativa, vincula-se à
da complexa estrutura dos atuais repetitividade e a um texto que, ainda
programas televisivos em que os que aos pedaços, tem prosseguimento,
recursos de fragmentação e emenda de relacionando-se, assim, explicitamente
textos se sofisticaram. Trata-se das com a serialidade e com a fidelidade dos
características dessas histórias - interlocutores no processo narrativo.
radionovelas, telenovelas e programas Para obter eficácia nessa empreitada,
participativos e interativos, do tipo Você utiliza-se a surpresa, o suspense,
Decide e No Limite, têm em comum uma estímulos psico-sensoriais e o apelo
estrutura repetitiva e redundante que participativo do público.
permite ao público antever aquilo que o Nova revolução no mundo
aguarda, além de um estilo emocional midiático ocorreu no final do século XX,
que aproxima o sensacionalismo do alterando as tendências que aqui vimos
melodrama. analisando e que configuraram a cultura
Como dissemos no início deste (13) Vale Tudo foi a telenovela
da Modernidade- o sucesso da
texto, a interrupção do capítulo da informática e a consagração dos meios apresentada pela Rede Globo de
telenovela faz com que o espectador digitais na comunicação humana. A Televisão, no horário das 20 hs,
permaneça conectado à história introdução dos computadores abalou o entre 1988 e 1989.
elaborando o desfecho, torcendo pelo que até então se fazia no campo da (14) MATUCK, Carlos - Hitchcock -
herói e pela solução do conflito. Fosse expressão, da comunicação, registro, Truffaut - Entrevistas - São Paulo,
esse desenlace surpreendente ou armazenagem e transmissão de Brasiliense, 1986.
informações, representando o advento municações instalada nos diversos
da comunicação em rede, em âmbito lugares do mundo tende a integrar as
globalizado e em linguagem multi- formas tradicionais de comunicação e
midiática. Em pouco mais de duas as diversas mídias, obrigando-as a um
décadas, viu-se o mundo informatizar- processo que transforma suas
se, conectar-se e digitalizar-se, sem que informações em dados armazenáveis,
se tenha ainda claros os contornos da processáveis, programáveis e aces­
chamada sociedade da informação. De síveis aos computadores e usuários a
uma coisa, entretanto, estamos certos: ela conectados. Algumas conseqüên­
a comunicação analógica será subs­ cias desse processo são perceptíveis:
tituída pela digital e as grandes em­ transformam-se as formas de repre­
presas de comunicação tenderão a ser sentação do mundo que abandonam a
dominantes, integrando os diversos semelhança aparente como forma de
veículos — imprensa, rádio, televisão e identidade, um estoque ilimitado de
demais mídias eletrônicas. A velocidade informações se torna disponível, parte
com a qual os computadores invadem das funções cotidianas de pessoas e
áreas privilegiadas da sociedade como máquinas se tornam automatizadas.
os sistemas financeiros e a produção Desterritorialização, invasão da vida
de bens, por isso mesmo chamadas de privada, substituição da mão-de-obra
pós-industrial, nos autoriza a dizer que humana pela máquina são outras
a tecnologia digital ditará as regras repercussões visíveis da informa­
dessa sociedade pós-moderna que tização.
emerge. Por essa razão, os estudos da Focalizando, entretanto, a
comunicação se voltam para as redes revolução tecnológica e o desenvol­
de computadores buscando entender vimento da sociedade midiática, pano
parte desse processo de assimilação das de fundo deste ensaio, percebemos a
mídias tradicionais e de toda a cultura formação de grandes conglomerados
massiva por elas gerada. Na próxima midiáticos que integram antigas e novas
parte desse trabalho vamos tratar de tecnologias de comunicação, lingua­
como esse recurso narrativo, o gancho, gens consagradas e novas gramáticas,
tem se incorporado à linguagem digital. gêneros e formatos em transformação.
Nesse universo poliforme e polifônico
O Gancho em meios digitais procuramos analisar aspectos que dizem
Falar em meios digitais exige que respeito às formas narrativas e ao uso
se enfrente um grande número de do gancho como a arte milenar do corte
dificuldades que vão da novidade e e costura de enredos - a serialidade, o
instabilidade dessa mídia até a fluxo narrativo e a relação com o ouvinte/
multiplicidade que apresenta em termos espectador/usuário. Sobre isso falare­
de suportes, formatos e gêneros. mos agora.
Entretanto, mesmo correndo o risco de Nessa primeira década em que
falar sobre um cenário que poderá estar foi possível observar a criação mais ou
obsoleto em curto espaço de tempo e menos regular de narrativas digitais,
de fazer generalizações por demais podemos constatar que os meios ele­
amplas, podemos afirmar que certas trônicos acentuam a tendência, já
características da linguagem digital verificada nos meios televisivos, à frag­
começam a ser reconhecidas: estrutura mentação dos conteúdos em unidades
narrativa não linear; fragmentação menores. As dificuldades de leitura dos
textual em múltiplas partes textos escritos, apresentados em telas
componentes; flexibilidade na conexão verticais iluminadas por luz emitida, e a
entre essas partes; estímulo à exigência de grande capacidade de
interatividade com o usuário ou entre memória para a armazenagem e
usuários; circularidade da informação; divulgação de imagens e sons, criam
predominância do audiovisual e uma preocupação constante com a eco­
comunicação globalizada. nomia de informações, gerando o que
A rede mundial de teleco­ poderíamos chamar de frugalidade
expressiva. A ânsia pela economia de condenada à morte, nossa contadora
espaço e memória e pela rapidez de pro­ teria que se valer de mil artimanhas
cessamento deixariam os publicitários como a sedução do audiovisual, uma
mais ágeis envergonhados com interatividade ágil e fácil, uma recepção
desperdício realizado em outras mídias. de natureza imersiva e uma história de
Disso resulta uma produção de textos conteúdo envolvente capaz de manter
frugais, rápidos e completos em si seu sultão cada vez mais interessado
mesmos, cujas partes não se juntam no seu desenrolar. A interrupção da
propriamente, mas antes se justapõem história exigiria cada vez mais
de acordo com a vontade do usuário perspicácia, domínio técnico e narrativo.
que os vai acessando na medida de sua Além dessa estrutura flexível e
curiosidade, interesse, facilidade circular, colabora para essa comu­
técnica e disponibilidade de tempo. nicação instável, a ausência de uma
Assim, as narrativas em mídias grade horária e a fraca serialidade dos
eletrônicas são mais fragmentadas, meios eletrônicos. Ao contrário do rádio
abertas e flexíveis, permitindo ao e da televisão, as mídias digitais
usuário não apenas zapear, como na TV, estabelecem uma relação mais livre,
mas navegar, optando, a seu bel prazer, ocasional e informal com o público. As
pelas saídas e entradas disponíveis. Há informações se superpõem em camadas,
portanto, um número inusitado de não se sucedem como nos meios
cortes que vão sendo costurados de convencionais, sendo sempre possível
forma aleatória à medida que são voltar no tempo e acessar ou rever o
acessados os chamados links. Esses que já passou. A facilidade de registro
links são ferramentas hipertextuais que e gravação dá ao usuário grande
indexam diferentes textos, interligando- liberdade no gerenciamento do horário
os através de elementos que lhe são e da duração da comunicação. Diante
comuns. O movimento que o navegador disso, a arte de contar histórias tem que
realiza através dos links pode tanto levá- ser revista e adaptada. Como garantir o
lo cada vez mais para o interior do texto, interesse pelo desfecho de uma
aprofundando-o no processo narrativa ou por determinada solução
comunicativo ou no detalhamento da para um conflito, se cada leitura é única,
pesquisa, como pode orientá-lo para pessoal e intransferível? Como
fora desse conteúdo em direção a outros estabelecer vínculos e medir fidelidades
textos similares. Nesse caso ele pode se o ouvinte/usuário pode chegar a
percorrer os chamados anéis - rings - qualquer hora e momento?
sites publicados na Internet integrados Não estamos nos referindo
por um objetivo ou assunto comum. apenas às histórias escritas em
Nesse movimento para fora ou por entre capítulos que são publicadas na rede e (15) Há pequenas diferenças na
textos, o usuário pode instalar-se em que utilizam os ganchos convencionais navegação eletrônica se estivermos
grupos de discussão ou integrar-se a dos folhetins, estamos nos referindo analisando sites conectados à rede
comunidades virtuais unidas por aos ganchos próprios da linguagem e Internet ou publicados em CDs, por
interesse comum - jogos, campanhas do meio computacional - ao esforço por exemplo - Os primeiros implicam
ou mera sociabilidade. Disso se conclui secionar conteúdos mantendo ainda, na comunicabilidade em rede e
que a leitura que os meios digitais como dizia Marlyse Meyer, certa numa intertextualidade mais
permitem amplia a tendência à abertura continuidade e inteireza. São ganchos
efetiva. Os CDs apresentam links
e à fragmentação do fluxo narrativo, já que utilizam recursos tecnológicos
observada em outras mídias, bem como
como costura entre textos e como
sofisticados, próprios das novas mídias
a uma crescente participação do eletrônicas. possibilidade de navegação, mas
receptor nesse processo15. Encontram-se exemplos con­ possuem uma estrutura fechada
Estaria Sheherazade preparada vencionais de histórias em linguagem em si mesma. Não estamos
para uma situação como essa em que o literária, cujos capítulos são inter­ considerando essa diferença no
sultão goza de liberdade para escolher rompidos em trechos de maior tensão, presente texto porque já há CDs
entre suas mil histórias e, talvez até, entre abrindo-se a possibilidade do usuário que podem ser acoplados às redes
mil contadores igualmente interessados completar a trama com novas peri­ mundiais de computadores,
em chamar sua atenção? Para não ser pécias. Ao lado de certas iniciativas anulando essa diferença.
bastante amadoras, encontram-se aventuras - The mystery of Monster
experiências mais consolidadas de Mountain (and Captain America) que
autores consagrados que escrevem não só ironiza o gênero como os
romances em capítulos diários publi­ ganchos que encerram capítulos. Ao
cados na Internet. O uso convencional final de um texto cheio de non senses, o
do gancho, entretanto, perde sua força autor convida o leitor a nova busca entre
diante da disponibilidade dos capítulos páginas do site com a frase:
anteriores na rede e da ausência de uma ...to be continued... go to somewhere
rotina semanal ou diária de leitura unindo else.
o usuário e o portal literário, ou seja, No endereço http://
unindo Sheherazade e o sultão. www.2.uol.corn.br/mixbrasil/
Inseridas no tempo sem começo e sem frasaia.html, há uma proposta de um
fim das redes globalizadas, essas conto interativo, cuja dinâmica parece
histórias perderam sua continuidade e inspirar-se em estruturas televisivas de
a inserção no cotidiano do leitor. programas do tipo Você Decide. Lição
Há exemplos, entretanto, que já de Casa, escrito na primeira pessoa,
exibem certa sofisticação autoral, tanto relata a experiência de um professor que
técnica como literária, reinventando a sofre assédio de um aluno homossexual.
arte do gancho. No endereço http:// A história é interrompida quando o
www.novela_web.com.br/port.novelas/ garoto finalmente o aborda, aparecendo
1st/cap1 publica-se uma novela que na tela três finais possíveis para escolha
tenta adaptar o formato televisivo para do leitor:
a Internet, utilizando vídeo, fotografia, O que deveria eu fazer agora?
texto escrito e áudio. É a história de um a- Marcar o tal encontro e ver no que
casal de adolescentes, ele morando no dava?
Brasil e ela nos Estados Unidos, que se b-Esquecer aquilo e me livrar do garoto?
conhecem numa sala de bate-papo da c- Sentar com ele e esclarecer as coisas
Internet e iniciam um romance. Cada ali mesmo?
lance desse namoro eletrônico utiliza um Depois da escolha, o leitor deve clicar
dos recursos do meio - e-mails, imagens numa barra de envio na qual está escrito:
digitais, conversas em tempo real e Agora está em suas mãos resolver esta
teleconferência. Cada capítulo se situação.
encerra pela relação interrompida pela Além desses exemplos que
impossibilidade da comunicação - a envolvem interatividade, multilin-
ligação rompe-se, outras pessoas guagem e uma atitude crítica a respeito
desejam ocupar o computador ou um das formas narrativas consagradas por
dos jovens precisa sair para com­ outras mídias, há experiências artísticas
promissos inadiáveis. Além do uso da que brincam com essa atitude de
linguagem multimidiática, esses permanente busca do internauta que
ganchos tecem uma crítica velada aos parece ir de um lugar para outro de forma
limites da comunicação nos meios quase sempre inesperada, aleatória e
digitais. O próprio título da novela, At cheia de surpresa.
first site, reflete essa preocupação com No endereço http://
um jogo de palavras. www.chez.com/eu/perspcla.htm, o
Um exemplo interessante é visitante encontra uma página que vai
apresentado no site Superbad (http:// se desdobrando em inúmeras outras,
www.superbad.com/1/trunk/trunk.html) com janelas e barras de rolagem que se
onde o visitante encontra um labirinto abrem de forma aparentemente
de textos, aparentemente sem sentido, desordenada, sem que o usuário/leitor
utilizando diferentes linguagens - textos possa controlar o processo. Nessa
escritos, cartoons, fotos e animações. brincadeira estética ele passa pela
O internauta percorre a esmo as diversas experiência de acessar sempre aquilo
saídas, num percurso aleatório com o que não escolheu, mostrando a natureza
qual vai criando sua própria história. Um infinita do meio e a dificuldade de seguir
desses textos parodia uma história de por um mesmo caminho. Nesse
contexto, o gancho faz parte de uma utilizada por uma equipe de produção,
nova gramática que se cria e se mas de um mecanismo disponível no
consagra.16 sistema. Com maior ou menor criati­
Os exemplos relatados mostram vidade o gancho se tomou obrigatório
claramente que o gancho, enquanto nas narrativas digitais e mais do que
recurso narrativo, pode se adaptar às obrigatório, tornou-se automatizado:
mais diferentes tecnologias e que o ninguém o inventa, ele decorre de
sentido que resulta do processo comu­ necessidades técnicas.
nicativo dependerá cada vez mais da É possível que, com o tempo, as
capacidade de se construir um caminho rotinas que o usuário venha a desen­
viável entre textos cada vez mais volver através de seus computadores,
fragmentados, abertos e aleatórios. Por assim como a integração próxima das
outro lado, pudemos perceber que ao diversas mídias com a necessária
migrar de uma mídia à outra, o gancho contaminação entre elas, tornem as
altera sua função e sua inserção no narrativas digitais menos instáveis e
processo produtivo das narrativas. fragmentadas. É possível que a relação
Assim, na comunicação oral o gancho entre pessoas distanciadas no tempo e
se apresentava como um recurso utili­ no espaço venha a apresentar certa
zado pelo autor ou narrador das histó­ regularidade cotidiana e que certas vias
rias, sinal de domínio e conhecimento se consolidem nesse mar cheio de
da linguagem utilizada e do processo navegadores que vão em todas as
comunicativo que conduzia. Nas mídias direções. Nesse caso é possível que o
modernas que ensejaram a cultura gancho recupere a proximidade
massiva, vimos que o gancho se desloca subjetiva que o caracterizou desde as
- passa a ser engendrado pela equipe origens até sua consagração midiática.
de produtores que com ele tenta
disfarçar as interrupções técnicas e Conclusão
comerciais impostas pelo meio e pelo Helena entra em casa, fecha a
processo de produção industrial. Não porta e corre os olhos pela sala de estar
se trata mais de um recurso oral e até de sua casa, meio na penumbra. Sua
artesanal, mas de uma tática e representa expressão é preocupada. Começa a
o domínio mais técnico do que estético percorrer o cômodo em direção à porta
da linguagem. que dá para a parte interna da casa.
Nos meios digitais o gancho se Passeia o olhar por tudo como se
insere definitivamente na gramática da procurasse alguma coisa. Ela desconfia
informação, sendo o elemento de ligação de que Edu, seu namorado, e sua filha
entre fragmentos cada vez menores e Camila estejam se apaixonando um pelo
menos consistentes. Sem o apoio da outro. Ela vai para o seu quarto em busca
serialidade e sem a previsibilidade do de consolo, mas antes de se acomodar
final das histórias, os links vão se vê a porta fechada do quarto de Camila.
tornando cada vez mais evidentes, Abre a porta e penetra no dormitório
usando para isso recursos tecnológicos onde vê uma fotografia na qual aparecem
cada vez mais sofisticados - animação, sorridentes e despreocupados Camila,
sonoplastia, efeitos especiais. Não Edu e ela, num trágico triângulo amoroso
disfarçam os problemas do meio como a pressentido pela máquina fotográfica.
inacessibilidade de algumas infor­ Sua expressão é amarga.
mações, a demora no funcionamento de Nesse momento, aparecem na
certos programas, a superficialidade de tela as seguintes opções:
certos conteúdos, procuram, antes, 1- Assista ao final traçado pelo autor. (16) Os sites aqui apresentados
minimizá-los, mostrando rapidamente a 2- Escolha um dos finais possíveis e fazem parte da pesquisa As
porta da saída ou rogando por tolerância assista à cena de sua opção: Formas Narrativas em Mídias
através de uma ampulheta que indica o a- Edu fica com Helena e Camila morre Eletrônicas. Análise estética e
tempo de processamento. Sua inserção de leucemia. sociológica - financiada pela
no processo produtivo também modi­ b- Edu fica com Camila e Helena viaja FAPESP através de processo de
ficou-se: não se trata mais de uma tática para longe. número 99/01123-0.
c- Edu viaja para longe, Camila morre e 5- Participe de um grupo de discussão a
Helena casa-se com outro. respeito de mães e filhas que se
Não se esqueça de confirmar sua apaixonam pelo mesmo homem.
escolha clicando em ENVIAR. 6- Links para outras histórias cheias de
3- Imagine um final seu para a história emoção.
escrevendo no espaço abaixo e clicando Um sultão assombrado desiste
em ENVIAR. Nossos editores lerão a de vingar-se das mulheres infiéis contra
proposta e selecionarão uma das as quais impusera um castigo muito
contribuições para ser publicada no site. violento. Consola-se de suas
4- Participe do game, contracenando decepções no mundo espetacular de
com os personagens e interferindo no histórias inconclusas.
desenrolar da história.

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