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A BRINCADEIRA

Milan Kundera

O AUTOR
Milan Kundera nasceu em 1929 em Brno, na Checoslováquia. Operá~ rio, depois pianista
de bar, acabou por se consagrar à literatura e ao cinema, tendo sido durante vários anos
professor no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos de Praga. Após a invasão
soviética de 1968, foi demitido das suas funções e todos os seus livros foram retirados do
mercado. Havia já publicado A Brincadeira (1967) e O Livro do Amores Risíveis (1968),
este último Prêmio da União de Escritores Checoslovacos. A partir dessa data, a sua obra
deixa de poder ser publicada na Checoslováquia e as primeiras edições dos novos livros
surgem já em
tradução francesa. É em França, aliás, que em 1975 fixa residência, sendo convidado para
professor universitário. Quatro anos mais tarde, reagindo à publicação de O Livro do Riso e
do Esquecimento, o governo checo retira-lhe a nacionalidade.
A Vida Não é Aqui recebeu em 1973 o Prêmio Médicis para o melhor romance estrangeiro
publicado em França e A Valsa do Adeus o prémio Mondello, em Itália (1978). Em 1981,
pela totalidade da sua obra, Milan Kuridera foi galardoado com o premio norte-americano
"Common Wealth Award", e em 1984 A Insustentável Leveza do Ser recebeu o
"National American Literary Prize of Los Angeles Times". Já em 1985, também por toda a
sua obra, foi-lhe atribuído o Prêmio Jerusalém. Presentemente cidadão francês, Milan
Kuridera reside em Paris.

MILAN KUNDERA
A BRINCADEIRA
Tradução de Helena Vaz da Silva
PUBLICAÇõES DOM QUIXOTE
LISBOA
1994
r, 1

A BRINCADEIRA
Publicações Dom Quixote, Lda Rua Luciano Cordeiro, 116 - 2.-
1098 Lisboa Coclex - Portugal
Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor
@ 1967, Milan Kuridera,
Título original: Zert
4.a edição: Novembro de 1994 Depósito legal ri., 81318194 Impressão e Acabamento:
Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda
ISBN: 972-20-0014-4

íNDICE
PRIMEIRA PARTE
Ludvik ....... ........................... . ................... 9
SEGUNDA PARTE
Helena ...................................................... 19
TERCEIRA PARTE
Ludvik ...................................................... 31
QUARTA PARTE
Jaroslav ..................................................... 119
QUINTA PARTE
Ludvik ...................................................... 157
SEXTA PARTE
Kostka ...................................................... 197
SÉTIMA PARTE
Ludvik, Helena, Jaroslav ..................................... 237
NOTA DO AUTOR .......................................... . ... 301

,
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PRIMEIRA PARTE
LUDVIK

Assim, depois de tantos anos, voltava de novo a casa. De pé, na praça principal (que,
criança, depois rapaz, depois jovem, atravessara mil ve-
zes), não sentia qualquer emoção; pelo contrário, pensava que aquele es-
paço onde a torre do sino (parecida com um antigo cavaleiro sob o seu elmo) se vê acima
dos telhados, lembrava a vasta parada de um quartel, e que o passado militar daquela cidade
da Morávia, outrora muralha contra as incursões dos Magiares e dos Turcos, imprimira nela
a marca de uma irrevogável fealdade.
Durante anos, nada me atraíra à minha cidade natal. Dizia-me que ela se me tinha tornado
indiferente, e isso parecia-me natural: ao fim de quinze anos vividos fora, só me restam
alguns conhecidos, ou mesmo
os amigos (que prefiro, de resto, evitar); a minha mãe está enterrada num
túmulo estrangeiro, que não visito. No entanto iludia-me: aquilo que eu
chamava indiferença era na realidade rancor; escapavam-me as razões, pois tinham-me
acontecido coisas boas ou coisas más nesta cidade como em todas as outras, em todo o caso
esse rancor existia; percebera-o durante a minha viagem: a missão que aqui me trazia
poderia, bem vistas as coisas, cumpri-Ia igualmente bem em Praga, mas tinha sido, num
repente, irresistivelmente atraído pela ocasião oferecida de executá-la na
minha cidade natal, precisamente por se tratar de uma missão cínica e terra-a-terra que, por
ironia, me absolvia da suspeita de aqui voltar sob o efeito de um enternecimento piegas
pelo tempo perdido.
Uma vez mais, percorri cinicamente com os olhos a praça desengraçada antes de lhe voltar
costas e tomar a rua do hotel onde tinha um quarto alugado para essa noite. O porteiro
estendeu-me uma chave pendurada numa pêra de madeira dizendo "segundo andar". O
quarto não era muito convidativo: uma cama contra a parede. no meio uma mesi-
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nha com uma única cadeira, ao lado da cama um pretensioso toucador de mogno com
espelho, junto da porta um lavatório lascado absolutamente minúsculo. Pousei a toalha na
mesa e abri a janela: a vista dava sobre um pátio e sobre casas com as traseiras nuas e sujas
viradas para o hotel. Fechei a janela, corri os cortinados e aproximei-me do lavatório, que
tinha duas torneiras, uma com sinal encarnado, outra azul; experimentei-as, a água correu
igualmente fria em ambas. Examinei a mesa, que, em rigor, chegava, visto que nela cabiam
perfeitamente uma garrafa e dois copos; infelizmente, à falta de uma segunda cadeira no
quarto, só uma pessoa se poderia lá instalar. Tendo puxado a mesa para perto da cama,
tentei sentar-me nesta, mas era demasiado baixa e a mesa alta de mais; mais ainda,
encovava de tal maneira que logo foi evidente que não só constituía um mau assento, corno
desempenharia de maneira duvidosa a sua função de cama. Apoiei-me nos punhos; depois
estendi-me levantando cuidadosamente os pés calçados para evitar sujar a co-
berta e o lençol. Com o colchão cavado sob o meu peso, encontrava-me estendido como
numa rede ou numa campa estreita: não me era possível imaginar partilhar aquela cama
com alguém.
Sentei-me na cadeira, o olhar perdido nas cortinas iluminadas em transparencia, e reflecti.
Nesse momento, fizeram-se ouvir passos e vo-
zes no corredor; duas pessoas, um homem e uma mulher, e cada palavra era inteligível:
falavam de um certo Petr, que tinha fugido de casa, e de uma tal Mara, que era idiota e
estragava o pequeno; depois ouviu-se uma chave a rodar na fechadura, uma porta que se
abria e as vozes que continuavam no quarto ao lado; ouvi os suspiros da mulher (sim, até os
suspiros me chegavam!) e a decisão do homem de dizer de vez duas palavras à Mara.
Levantei-me, a minha resolução estava tomada; lavei ainda as mãos no lavatório, limpei-as
com a toalha, e deixei o hotel sem saber ao certo para onde ia. Sabia simplesmente que, se
não quisesse comprometer o
bom sucesso de toda a minha viagem (viagem consideralvelmente longa e fatigante) por
causa da única imperfeição do meu quarto de hotel, devia, por muito que não me
apetecesse, fazer um discreto apelo a qualquer amigo local. Passei rapidamente em revista
todas as caras do tempo da minha juventude, para logo as afastar, pois o carácter
confidencial do favor solicitado me iria obrigar a construir uma ponte laboriosa so-
bre os muitos anos em que nos perdêramos de vista - e isto desagradava-me. Depois
lembrei-me de que aqui vivia sem dúvida um homem a quem outrora tinha, aqui mesmo,
arranjado um emprego e que ficaria, pelo que conheço dele, muito contente por me fazer
por sua vez um favor.
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Era um ser estranho, simultaneamente de uma moralidade rígida e cu-


riosamente inquieto e instável, de quem, pelo que eu sabia, a mulher se tinha divorciado ao
fim de vários anos pelo simples facto de ele viver indiscriminadamente em qualquer lado,
desde que fosse longe da mulher e dos filhos. Assustava-me a ideia de que ele se pudesse
ter voltado a casar, circunstância propícia a complicar a satisfação do meu pedido, e
apressei o passo em direcção ao hospital.
O hospital é um conjunto de edifícios e pavilhões semeados aqui e ali sobre um vasto
espaço de jardins; entrei na pequena guarita junto ao portão e pedi ao porteiro sentado atrás
de uma mesa para me pôr em contacto com a secção de virologia; ele empurrou o telefone
para o
canto da mesa do meu lado e disse: "Zero dois! " Marquei o zero dois e fiquei a saber que o
doutor Kostka saíra há alguns segundos e que estaria prestes a chegar à saída. Sentei-me
num banco perto da porta principal para me assegurar de que o não perderia, e olhava
distraidamente os homens passeando-se em roupão de hospital, de riscas azuis e brancas,
quando o vi: vinha pensativo, alto, magro, simpático na sua falta de presença, sim, era
mesmo ele. Levantei-me do meu banco e fui direito a ele como se fosse empurrá-lo; deitou-
me um olhar de desagrado, mas depressa me reconheceu e me abriu os braços. Senti que a
sua sur-
presa foi de quase felicidade, e a espontaneidade do seu acolhimento deu-
-me prazer.
Expliquei-lhe que tinha chegado havia uma hora para tratar de um assunto sem importância
que me reteria ali perto de dois dias, e ele logo me manifestou a surpresa feliz por a minha
primeira visita lhe ter sido dedicada. Foi-me subitamente desagradável não o ter vindo
procurar com um espírito desinteressado, por ele só, e a pergunta que lhe fiz (perguntei-lhe
jovialmente se voltara a casar) pareceu reflectir uma atenção sincera, quando, no fundo,
provinha de um calculismo baixo. Disse-me (para minha satisfação) que continuava só.
Declarei que tínhamos muito que con-
tar um ao outro. Ele concordou e lamentou não dispor, infelizmente, de pouco mais de uma
hora, visto ter ainda que voltar ao hospital e, no fim da tarde, ter de apanhar um autocarro
para fora da cidade. "Não mora aqui?", digo, assustado. Assegurou-me que sim, um estúdio
num edifício novo, mas que "é penoso viver solitário". Soube que Kostka tinha, numa outra
cidade a vinte quilómetros, uma noiva professora, possuindo, também ela, um pequeno
apartamento de duas assoalhadas. "Vai viver com ela futuramente?", perguntei-lhe. Disse-
me que dificilmente encontraria trabalho noutro sítio tão interessante como aquele que lhe
arranjara e que, pelo contrário, a sua noiva teria dificuldade em arran-
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jar um lugar aqui. Pus-me a vituperar (de bom coração) as demoras da burocracia, incapaz
de facilitar as coisas de maneira a que um homem e uma mulher possam viver juntos.
"Sossegue, Ludvik, disse-me com uma
doce indulgência, que não é assim tão insuportável. A viagem custa-me, é certo, dinheiro e
tempo, mas a minha solidão permanece intacta e sou livre. - Porque tem você um tal desejo
de liberdade?, perguntei-lhe. -
E você?, disse ele. - Eu ando atrás das raparigas, respondi-lhe. Não é pelas mulheres, é por
mim que me faz falta a minha liberdade", disse, e acrescentou: "Oiça, venha um momento a
minha casa antes de eu me ir embora." Eu não pedia mais que isso.
Saídos do recinto do hospital, logo fomos dar a um grupo de edifícios novos que, uns a
seguir aos outros, se elevavam desarmoniosamente de um solo poeirento desnivelado (sem
relva, sem passeios, sem asfalto) e formavam um triste cenário nos confins dos campos,
vastos e planos, estendidos a perder de vista. Atravessámos uma porta, subimos uma es-
cada demasiado estreita (o elevador estava avariado) e detivemo-nos no
terceiro andar, onde reconheci o nome de Kostka no cartão-de-visita. Quando, tendo
atravessado a entrada, nos encontrámos na sala, senti-me mais que satisfeito: um grande e
confortável divã ocupava um canto; além do divã, havia uma pequena mesa, uma poltrona,
uma grande biblioteca, um gira-discos e um aparelho de rádio.
Elogiei a Kostka o seu quarto e perguntei-lhe como era a casa de banho. "Nada de
luxuoso", disse, contente do interesse que eu mostrava, e fez-me passar à entrada de onde
se abria a porta para a casa de banho, pequena mas muito agradável, com banheira, duche,
lavatório. "Ao ver
este apartamento magnífico, vem-me uma ideia, disse. Que vai fazer ama-
nhã à tarde e à noite? - Ali, desculpou-se confuso, amanhã terei um
longo dia de serviço, não voltarei com certeza a casa antes das sete horas. À noite, não vai
estar livre? - Pode ser que tenha a noite livre, res-
pondi, mas, mais cedo, não me pode emprestar o estúdio durante a tarde?"
A minha pergunta surpreendeu-o, mas, imediatamente (como se tivesse medo que eu
duvidasse do seu desvelo), disse-me: "Com todo o
gosto, é seu." E prosseguiu, como que num esforço de recusa em procurar as razões do meu
pedido: "Se tem problemas de alojamento, pode dormir aqui a partir de hoje, pois irei
directamente para o hospital. -
Não é preciso. Estou no hotel. O problema é que o meu quarto é bastante desconfortável e,
amanhã à tarde, vou precisar de um ambiente agradável. Obviamente, não para estar
sozinho. - Sim, fez Kostka baixando ligeiramente a cabeça, calculo."
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Depois do que nos sentámos à volta da mesinha (Kostka tinha preparado café) e
conversámos uns momentos (sentado no divã, constatava com prazer a sua firmeza, não
encovava nem guinchava). Kostka anunciou em seguida que deveria retirar-se para voltar
ao hospital, e apressou-se a iniciar-me em certos segredos caseiros: É preciso fechar com
força a torneira da banheira, a água quente corre, contrariamente ao habitual, da torneira
marcada com a letra F, a tomada de electricidade para ligar o gira~ está escondida atrás do
divã, dentro do pequeno armário há uma garrafa de vodca acabada de encetar. Em seguida,
deu-me um
molho com duas chaves e mostrou-me a da porta do prédio e a do estúdio. Tendo dormido
em inumeráveis camas ao longo da minha vida, criei um culto particular pelas chaves, pelo
que as fiz deslizar para dentro do meu bolso com um júbilo silencioso.
Kostka exprimiu ao partir o voto de que o seu estúdio me proporcionasse "qualquer coisa
realmente bela". "Sim, disse-lhe, vai-me permitir efectuar uma bela destruição. - Você acha
que as destruições podem ser belas?", disse Kostka, e eu sorri no meu íntimo pois que,
através daquela pergunta (proferida com doçura mas pensada combativamente) o
reconheci exactamente tal como ele era (simpático e cornico simultaneamente) quando do
nosso primeiro encontro há quinze anos atrás. Respondi-lhe: "Bem sei que você é um
pacífico operário na eterna obra divina e que ouvir falar em destruições lhe desagrada, mas
que hei-de fazer: eu por mim não sou um aprendiz de pedreiro de Deus. Além disso, se os
aprendizes de pedreiro de Deus construírem cá em baixo edifícios com paredes verdadeiras,
haverá poucas probabilidades de as nossas destruições os prejudicarem. Mas parece-me que
em vez de paredes não vejo por todo o lado senão cenários. E destruir decorações é algo de
muito justo."
Voltámos ao sítio onde nos tínhamos separado da última vez (talvez há nove anos atrás); a
nossa desavença revestia-se agora de uma forma metafórica porque lhe conhecíamos bem o
fundo e não sentíamos a necessidade de voltar a ela. Precisávamos apenas de repetir que
não havíamos mudado, que continuávamos os dois igualmente diferentes um do outro (a
esse respeito, devo dizer que gostava dessa dissemelhança com Kostka e que tinha, por
isso, prazer em discutir com ele, pois que deste modo podia sempre, de passagem, verificar
quem, de facto, sou e o que penso). Assim, para me tirar todas as dúvidas a seu respeito,
respondeu-me: "O que acabou de dizer soa bem. Mas diga-me lá: céptico como é, onde foi
buscar a certeza que o faz distinguir o que é decoração do que é parede? Nunca lhe ocorreu
duvidar de que as ilusões de que faz
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troça não-sejam realmente ilusões? E se está enganado? E se se tratasse
de valores, e você fosse um destruidor de valores?" E acrescentou em seguida: "Um valor
destruido e uma ilusão desmascarada têm o mesmo corpo lastimável, parecem-se e nada é
mais fácil do que confundi-los."
Enquanto acompanhava Kostka no caminho para o hospital situado na outra ponta da
cidade, brincava com as chaves no fundo do meu bolso e sentia-me bem ao lado do meu
amigo de longa data, que era capaz de tentar convencer-me da sua verdade fosse onde
fosse, até agora, ao atra-
vessar o terreno desigual dos quarteirões novos. Kostka sabia sem dúvida que teríamos por
nossa conta toda a noite do dia seguinte, e por isso logo se deixou de filosofias para passar
aos assuntos banais, confirmando de novo que eu o esperaria amanhã em sua casa quando
ele re-
gressasse às sete horas (ele próprio não possuía outras chaves), e
perguntando-me se não precisava realmente de mais nada. Passei a mão
pela cara e disse que precisava de passar no barbeiro, pois tinha uma barba indecorosa.
"Vem mesmo a calhar, disse Kostka, arranjo-lhe um barbeiro especial!"
Não recusei os bons préstimos de Kostka e deixei-me levar a um pequeno salão onde em
frente de três espelhos se encontravam plantadas três grandes cadeiras giratórias, duas das
quais ocupadas por dois homens de cabeça inclinada e cara untada de creme. Duas
mulheres de bata branca inclinavam-se sobre eles. Kostka aproximou-se de uma delas e
segredou-lhe qualquer coisa; a mulher limpou a navalha com uma toalha e chamou para
dentro: uma rapariga nova de bata branca apareceu para prestar os seus cuidados ao senhor
abandonado na cadeira, enquanto a mulher a quem Kostka havia falado me dirigiu uma
breve inclinação de cabeça e me convidou com a mão a sentar-me na cadeira livre. Kostka
e eu despedimo-nos um do outro com um aperto de mão, e eu instalei-me, a cabeça apoiada
na almofada que servia de encosto, e, como desde há muitos anos não gostava de olhar para
a minha cara, esquivei-me ao espelho situado na minha frente, ergui os olhos e deixei-os
errar pelas manchas do tecto caiado de branco.
Mantive os olhos pousados no tecto mesmo depois de sentir no pescoço os dedos da
cabeleireira, que entalavam no colarinho da minha ca-
mísa a ponta de uma toalha branca. Depois ela afastou-se um passo, e não ouvi mais do que
o vaivém da lâmina a ser afiada no cabedal e deixei-me ficar numa espécie de imobilidade
beatifica cheia de feliz indiferença. Pouco depois, senti nas faces os dedos húmidos a
aplicarem -untuosamente o creme sobre a pele e apercebi-me dessa coisa singular e
incongruente: uma desconhecida que não me é nada, a quem eu também não
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sou nada, acaricia-me docemente. Em seguida, com um pincel, a cabeleireira pôs-se a


espalhar o sabão e parecia-me não estar realmente sentado, mas flutuar num espaço branco
semeado de manchas. E então imaginava-me (porque, mesmo nos momentos de repouso, as
ideias não suspendem os seus jogos) ser uma vítima sem defesa, totalmente submetido à
mulher que tinha afiado a lâmina.
Enquanto o meu corpo se dissolvia no espaço e eu sentia unicamente os dedos que me
tocavam a cara, imaginei facilmente que as suas mãos suaves envolviam (rodavam,
acariciavam) a minha cabeça, como se não a ligassem a corpo nenhum, mas a tratassem
como uma cabeça em si, de tal maneira que a lâmina cortante pousada na mesa ao lado
parecia não ter outra função que a de perfazer essa bela autonomia da minha cabeça.
Depois, as carícias cessaram e ouvi a cabeleireira afastar-se a fim de, agora, se apoderar da
lâmina, e pensei nesse momento (pois os pensamentos continuavam o seu jogo) que era
preciso ver que aspecto tinha a dona (a criadora) da minha cabeça, o meu terno assassino.
Tirei os olhos do tecto e olhei para o espelho. Fiquei estupefacto: o jogo com que me
divertia tomou de repente contornos estranhamente reais; parecia-me que essa mulher que
se inclinava sobre mim no espelho era minha conhecida.
Com uma mão, ela segurava o lóbulo da minha orelha, com a outra
raspava meticulosamente a espuma de sabão da minha cara; observei-a, e a sua identidade,
que reconhecera um momento antes com espanto, esfumava-se lentamente e desaparecia.
Depois ela curvou-se por cima do lavatório, soltou da navalha, com dois dedos, um monte
de espuma, endireitou-se e fez a cadeira dar meia volta com ligeireza; os nossos olhares
cruzaram-se um segundo e de novo me pareceu que era ela! Na verdade, este rosto era um
pouco diferente, como se fosse o da sua irmã mais velha, tornara-se macilento, murcho, um
pouco enrugado; mas havia quinze anos que eu a tinha visto pela última vez! Durante este
período o tempo tinha imprimido uma máscara enganadora sobre os traços autênticos, mas
felizmente essa máscara tinha dois orifícios por onde de novo podiam olhar-me os seus
olhos, reais e verdadeiros, tais como os conhecera.
Mas, a seguir, de novo a pista se obscureceu: um outro cliente entrou no salão, veio pôr-se
atrás de mim, numa cadeira, à espera de vez; co-
meçou a falar com a cabeleireira; falava do Verão magnífico e da piscina em construção à
saída da cidade; a cabeleireira respondia (eu registava a sua voz mais do que as palavras,
aliás insignificantes) e constatava que não reconhecia aquela voz; ela soava desenvolta,
desprovida de ansiedade, quase ordinária, era uma voz completamente estranha.
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w-r.

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Agora lavava-me a cara, que segurava entre as suas mãos, e eu (apesar da voz) voltava a
acreditar que era ela, que sentia ainda, passados quinze anos, o contacto das suas mãos na
minha cara, que ela me acariciava de novo, acariciava-me longamente e com ternura (eu
esqueci completamente que não eram carícias mas abluções); a sua voz estrangeira não
parava entretanto de responder não sei quê à conversa encadeada do tipo, mas eu recusava-
me a acreditar na voz, preferia ter fé nas suas mãos; obstinava-me em reconhecê-la nas suas
mãos; pela doçura do seu toque esforçava-me por discernir se era ela e se ela me tinha
reconhecido.
A seguir, ela pegou numa toalha e secou-me as faces. O falador desatou a rir ruidosamente
de uma piada que acabara de contar e reparei que a minha cabeleireira não tinha rido, que
não prestava portanto grande atenção ao que o tipo lhe dizia. Isso perturbou-me porque via
aí a prova de que ela me tinha reconhecido e que escondia a agitação que sentia. Decidi
falar-lhe quando me levantasse da cadeira. Ela tirou-me a toalha que eu tinha à volta do
pescoço. Levantei-me. Puxei de uma nota de cinco coroas do bolso interior do meu casaco.
Esperava um novo encontro dos nossos olhos para poder dirigir-lhe a palavra, chamando-a
pelo seu nome
(o tipo continuava a tagarelar), mas ela virou a cabeça com indiferença, pegou no dinheiro
com um gesto breve, impessoal, a ponto de eu me sentir de repente um louco que acreditara
nas suas próprias miragens, e não tive de todo a coragem de lhe dizer palavra.
Curiosamente insatisfeito, saí do salão; tudo o que eu sabia era que nada sabia e que era
uma enorme grosseria hesitar sobre a identidade de um rosto outrora tão amado.
Claro que não era difícil saber a verdade. Apressadamente voltei ao hotel (de caminho vi do
outro lado da rua um velho amigo de infância, Jaroslav, maestro de uma orquestra com
címbalo, mas, como se fugisse da música lancinante e demasiado forte, desviei vivamente o
olhar), e
de lá telefonei a Kostka; estava ainda no hospital.
"Diga-me, aquela cabeleireira que me recomendou chama-se Lúcia Sebetkova?.
- Hoje, ela usa outro nome, mas é ela mesma. Como é que a conhece?, diz Kostka.
- Foi há muito, muito tempo", respondi, e, sem sequer pensar em jantar, deixei o hotel (já a
noite caía), para passear ainda.
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SEGUNDA PARTE
HELENA

Esta noite vou deitar-me cedo, não sei se conseguirei adormecer, mas
vou deitar-me cedo. Pay-el partiu esta tarde para Bratislava, eu amanhã de manhã cedo, de
avião, para Brno, e depois de autocarro, a minha Zdena pequenina ficará dois dias sozinha
em casa, ela não se vai importar, não liga muito à nossa companhia, pelo menos à minha,
adora o Pavel, ele é o seu primeiro ídolo masculino, é preciso reconhecer que ele sabe lidar
com ela, como sempre soube com todas as mulheres, incluindo eu, e continua a ser assim,
esta semana voltou a tratar-me como antigamente, fazia-me festas e prometia-me que
voltaria a buscar-me à Morávia no regresso de Bratislava, segundo ele, temos que voltar a
conversar
um com o outro, talvez tenha chegado à conclusão de que isto não pode continuar assim,
talvez ele queira que tudo volte a ser como dantes, mas porque é que só agora se lembra
disso, agora que encontrei Ludvik? Estou angustiada, mas eu não devo estar triste, não
devo, que a tristeza nunca se ligue ao meu nome, esta frase de Fucik é a minha divisa,
mesmo na tortura, mesmo sob a forca, Fucik nunca estava triste, e pouco me importa que a
alegria não esteja hoje na moda, talvez eu seja uma idiota, mas os outros não o são menos
com o seu cepticismo mundano, não sei por que havia de renunciar à minha palermice para
adoptar a deles, não quero separar a minha vida, quero que a minha vida seja uma só de
uma ponta à outra, foi por isso que o Ludvik me agradou tanto, quando estou com ele não
preciso de mudar de ideais nem de gostos, é um homem vulgar, simples, claro, e é disso
que eu gosto e sempre gostei.
Não tenho vergonha de ser como sou, não posso ser diferente do que sempre fui, até aos
dezoito anos não conheci outra coisa que não fosse a casa bem ordenada da burguesia
provinciana bem ordenada, e o estudo, o estudo. a vida real passava-se para além de sete
muros, quando
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depois cheguei a Praga, em 49, foi o milagre, uma felicidade tão violente que jamais a
esquecerei, e é exactamente por isso que não consigo apagar Pavel da minha alma, embora
já não o ame, embora me tenha feito mal, não posso, Pavel é a minha juventude, Praga, a
faculdade, a cidade universitária, e sobretudo o célebre Conjunto Fucik de cantos e danças,
conjunto estudantil, já ninguém se lembra o que ele era para nós, foi lá que conheci Pavel,
ele era tenor e eu contralto, participámos em centenas de concertos e sessões recreativas,
com cantos soviéticos e canções políticas da nossa terra, e, claro, canções populares, que
eram
as que preferíamos, eu tinha-me apaixonado de tal maneira pelas árias da Morávia que,
embora nascida na Boémia, me sentia da Morávia, fiz das suas canções o tema da minha
existência, para mim elas confundem-se com esses tempos, da minha juventude e de Pavel,
oiço-as de cada vez que o Sol se levanta para mim, oiço-as agora mesmo.
Como comecei a ligar-me a Pavel, não saberia explicá-lo a ninguém, parece literatura de
cordel, um dia de aniversário da Libertação havia uma concentração na praça da Cidade
Antiga, o nosso conjunto também lá estava, andávamos sempre em grupo, pequeno núcleo
entre dezenas de milhares de pessoas, na tribuna os nossos políticos e também es-
trangeiros, muitos discursos e ovações, depois Togliatti chegou-se ao
microfone para um breve discurso em italiano, e, como sempre, a praça respondeu aos
gritos, às palmas e com palavras de ordem. Por acaso Pavel estava ao pé de mim nessa
imensa confusão e eu ouvi-o gritar sozinho qualquer coisa nesta tempestade, qualquer coisa
de especial, eu olhava a boca dele e percebi que cantava, gritava mais do que cantava,
queria que o ouvíssemos e nos juntássemos a ele, entoava um canto revolucionário italiano
que constava do nosso reportório e que era muito popular nessa altura: A vanti popolo, alla
riscosa, bandiera rossa, bandiera rossa....
Era ele por uma pena, ele nunca se contentava com o nível da razão, queria atingir os
sentimentos, achei que era lindíssimo saudar numa praça de Praga um dirigente operário
italiano a cantar-lhe um canto revolucionário do seu país, desejei que Togliatti se
comovesse como eu estava co-
movida, e com toda a alma associei-me a Pavel, e então outros e mais outros se juntaram a
nós, e enfim o nosso Conjunto todo gritava esta canção, mas o clamor da praça era
demasiado poderoso e nós não éramos mais do que um punhado, éramos cinquenta e eles
pelo menos cinquenta mil, superioridade arrasadora, luta desesperada, durante toda a
primeira estrofe pensámos que tínhamos de desistir, que ninguém se aperceberia sequer do
que cantávamos, quando o milagre se deu, e pouco a pouco vozes cada vez mais numerosas
se foram juntando a nós, as pés-
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soas começavam a perceber e lentamente a canção desprendiR-se do grande burburinho da


esplanada como uma borboleta de uma gigantesca e barulhenta crisálida. Por fim, a
borboleta, o canto, ou os seus acordes finais, voaram até à tribuna e nós avidamente
fixávamos os traços do italiano grisalho, radiantes quando nos pareceu que, com um
movimento da mão, ele reagia à canção e eu própria até julguei ver-lhe lágrimas nos olhos.
Foi neste entusiasmo e emoção que não sei corno peguei na mão de Pavel e Pavel reagiu ao
meu gesto e quando a calma voltou à praça e um novo orador chegou ao microfone receei
que ele me largasse a mão, mas ele ficou com ela e assim ficámos até ao fim do encontro e
não nos largámos mesmo após a dispersão e muitas horas depois disso passeámo-nos
através de Praga florida.
Sete anos mais tarde, já Zdena tinha cinco anos, não esquecerei nunca que ele me disse não
nos casdmos por amor, mas por disciplina de partido, bem sei que estávamos numa
discussão, que era mentira, que Pavel se tinha casado comigo por amor e que só depois
mudou, mas é horrível que me tenha podido dizer isso, ele precisamente que nunca se
cansou
de demostrar que o amor de hoje é diferente, que não é um isolamento
das pessoas mas um reconforto no combate, era aliás assim que o vivíamos, ao meio-dia
nem tínhamos tempo de almoçar, engolíamos dois papos-secos no secretariado da União da
Juventude, depois ficávamos muitas vezes sem nos vermos até ao fim do dia, em geral eu
esperava por Pavel até à meia-noite, quando regressava das intermináveis reuniões que
duravam seis a oito horas, nos meus momentos de liberdade eu passava-lhe os relatórios
que ele ia apresentar a toda a espécia de conferências e de estágios de formação, esses
textos eram a seus olhos importantíssimos, só eu sei o valor que ele dava ao sucesso das
suas intervenções políticas, cem vezes ele repetia nos seus discursos que o homem novo se
distingue do antigo por ter riscado da sua vida o divórcio entre o privado e o público, e ei-lo
a acusar-me, passados anos, de os seus camaradas não terem respeitado a sua vida privada.
Conhecíamo-nos há dois anos e eu começava a sentir uma certa impaciência, o que não é de
espantar, nenhuma mulher se satisfaz com um
namorico de estudante, mas Pavel contentava-se, acostumado a esse conforto sem
obrigações, os homens são sempre egoístas e cabe à mulher defender-se e preservar a sua
missão feminina, infelizmente Pavel compreendia isso menos bem do que os nossos
camaradas do Conjunto, que o convocaram perante o comité, não sei o que lhe terão dito,
nunca falámos disso, mas suponho que não o terão tratado nas palminhas, éramos
23

muito estritos nesse tempo, talvez com exagero, mas moral a mais é melhor que moral a
menos, como hoje. Durante bastante tempo Pavel andou a evitar-me, eu pensava que tinha
estragado tudo, estava desesperada, queria matar-me, mas depois ele veio ter comigo, eu
tinha os joelhos a tremer, ele pediu-me desculpa e ofereceu-me um berloque com a imagem
do Kremlin, a sua recordação mais preciosa, nunca deixarei de usá-lo, não é só uma
lembrança de Pavel, mas mais do que isso de felicidade, desfiz-me em lágrimas e quinze
dias depois, estávamos a casar, o
Conjunto estava lá todo, a festa durou vinte e quatro horas, cantámos, dançámos, e eu dizia
uma vez e mais outra a Pavel que se nós dois nos traíssemos trairíamos aqueles que ali
estavam a celebrar connosco, trairíamos a manifestação da praça da Cidade Antiga e
Togliatti, dá-me vontade de rir hoje quando penso em tudo o que viemos a trair mais tarde...
24

li
Penso no que vou vestir amanhã, por exemplo a camisola cor-de-rosa e a gabardina, ainda é
o que me fica melhor à figura, já não sou nada magra, mas se é verdade que tenho rugas,
também tenho outros encantos para compensar que uma rapariga nova não tem, o encanto
de uma mulher que viveu, para Jindra tenho com certeza esse encanto, pobre ra-
paz, ainda estou a ver o seu desapontamento quando soube que eu tomava o avião bem
cedo e que ele faria a viagem sozinho, ele adora estar comigo, gosta imenso de se fazer
valer do alto da sua virilidade de dezanove anos, comigo bem pode fazer o pino para eu o
admirar, esse foleirote que não deixa de ser impecável como técnico e como motorista, os
jornalistas gostam de o levar para as pequenas reportagens no exterior e, afinal, que mal há
em eu gostar de saber que uma pessoa gosta de olhar para mim, nestes últimos anos não sou
já tão bem vista na rádio, parece que sou uma burra-velha, fanática e dogmática, cão de
guarda do Partido e sei lá que mais, a verdade é que eu nunca me envergonharei de gostar
dele, de sacrificar ao Partido os meus tempos livres. Afinal o
que me resta na vida? Pavel tem outras mulheres, já nem me interessa saber quais, a miúda
adora o pai, o meu trabalho sempre o mesmo de há dez anos para cá, reportagens,
entrevistas, emissões sobre o cumprimento do plano, sobre os estábulos modelo, sobre as
mugideiras, e o meu
lar também sem esperança, só o Partido nunca me fez mal e eu paguei-lhe na mesma
moeda, mesmo nas horas em que todos queriam abandoná-lo, em 56, quando desabaram os
crimes de Estaline, as pessoas tinham enlouquecido, viravam-se contra tudo, diziam que a
nossa imprensa mentia, os armazéns nacionalizados não funcionavam, a cultura sufocava,
as cooperativas agrícolas nunca deviam ter nascido, a União Soviética era um país sem
liberdade. e o pior é que até os comunistas diziam isto
25

nas próprias reuniões, Pavel também, e toda a gente aplaudia, Pavel sempre foi aplaudido
desde a infância, filho único, a mãe dorme com o retrato dele, criança prodígio mas homem
vulgar, não fuma, não bebe, mas
precisando de "vivas" para viver, são o seu álcool e a sua nicotina, de tal maneira que
rejubilava quando conseguia empolgar os auditórios com
os horrores dos processos estalinistas, com tal veemência que por pouco as pessoas não
desatavam aos soluços, eu sentia como ele estava feliz naquela indignação, eu detestava-o.
O Partido, felizmente, fez amochar os histéricos, eles calaram-se, Pavel como os outros,
baixaram a bola, o seu posto de professor de marxismo na Universidade era demasiado bom
para o põr em risco, no entanto qualquer coisa ficou no ar, germes de apatia, de
desconfiança, de descrença, germes crescendo em silêncio secretamente, eu perguntava-me
como lutar contra isso e agarrei-me ao Partido mais ainda do que antes, como se o Partido
fosse uma criatura viva a quem me pudesse confiar agora que já não havia ninguém a quem
dizer nada, e não só a Pavel mas aos outros, porque eles também não gostam de mim,
notou-se bem quando tivemos que resolver aquele triste caso, um dos redactores, homem
casado, tinha uma ligação com uma técnica, jovem solteira, irresponsável e cínica, a
mulher, desesperada, vem pedir ajuda ao nosso comité, nós estudamos o caso horas sem
fim, mandamos vir ora a mulher, ora a técnica, ora as testemunhas lá do serviço, tentamos
perceber todos os lados da questão e ser justos, o redactor é repreendido pelo Partido, a
técnica é admoestada e ambos são obrigados perante o comité a prometer o rom-
pimento. As palavras, porém, não são mais do que palavras, eles disseram-nas para nos
acalmar e continuaram a ver-se, mas, mais depressa se apanha um mentiroso que um coxo,
depressa descobrimos a verdade e então eu defendi a solução mais severa que era excluir o
colega do Partido por ter conscientemente abusado dele, que diabo de comunista é esse que
mente ao Partido, eu detesto a mentira, mas a minha proposta não foi aprovada, o redactor
ficou-se com mais uma reprimenda e a técnica foi despedida da rádio.

Eles vingaram-se bem, fizeram-me passar por um monstro, uma fera, uma campanha
terrível, espiavam a minha vida privada, era o meu calcanhar de Aquiles, uma mulher não
pode passar sem amor, ou então não é uma mulher, não vale a pena dizer o contrário, eu
procurava o afecto fora de casa, visto que lá não o tinha, procurava-o aliás em vão, um belo
dia atacaram-me publicamente sobre este assunto, eu era uma hipócrita, '\eu crucificava as
pessoas com o pretexto de que elas destruíam os casais, @ropunha mesmo excluí-Ias,
quando eu própria era infiel ao meu ma-
26

c,
rido sempre que podia, eles disseram isso em público, mas nas minhas costas arrastavam-
me mesmo pela lama, em público era -- um a santinha @_em privgídq_.qma_pu@ ,
no fundo eles não percebia ter um casame _k IR._qi@ç era poreu
--------- ----mioÁrifçlIz, exactamente por isso, que eu era exigente com
os outros, não---por Ps de-testar, mas por amor, por amor do amor, por amor-d ,seu lar e
dos seus filhos, porque queria protegê-los, eu também tenho um lar e um filho' e tremo por
eles. @Ããs_'se'i l'a;-,'- talvez eles tenham razão, se calhar sou uma megera e o que é
preciso é dar liberdade às pessoas, ninguém se deve meter onde não é chamado, talvez a
gente tenha concebido mal este mundo em que vivemos e talvez eu seja mesmo um odioso
chui que mete o nariz na vida dos outros, mas, o que é que querem, sou assim e faço sempre
o que sinto, já é tarde para mudar, sempre pensei que a criatura humana é una e indivisível,
só o burguês impostor é uma pessoa em público e outra em privado, é nisto que acredito e
por isto tenho norteado a minha conduta, nesta vez e nas demais.
Que tenha podido ser má, reconheço-o sem terem de me perguntar, detesto essas miúdas,
cruéis quando são novas, desprovidas do mínimo grão de solidariedade com uma mulher
mais velha, como se elas não viessem nunca a ter trinta, trinta e cinco e quarenta anos, e
elas que não me venham com a história que gostavam dele, o que é que elas podem saber
do amor, elas deitam-se com o primeiro que aparece, sem com-
plexo nem pudor, ofende-me quem ousar comparar-me com essas pegas lá porque tive
várias ligações sendo casada. A diferença era que eu procurava sempre o amor e quando me
enganava eu desistia, toda em pele de galinha e ia para o seguinte, e no entanto eu bem
sabia como era simples esquecer de uma vez para sempre esse meu sonho de amor juvenil,
atravessar a fronteira para essas terras de estranha liberdade onde não existe vergonha,
pudor ou moral, esse domínio da estranha e ignóbil liberdade que tudo permite, onde basta
auscultar dentro de si a pulsação do sexo, essa besta.
Eu também sei que se passasse essa fronteira deixaria de ser eu própria, havia de tornar-me
outra pessoa, não sei quem e isso apavora-me, eis porque procuro o amor com a aplicação
do desespero, um amor onde eu pudesse viver tal como sempre fui, tal como sou ainda,
com os meus antigos sonhos e ideais, pois não quero que a minha vida se parta ao meio,
quero-a uma só de ponta a ponta, e por isso me senti sufocada quando conheci Ludvik,
Ludvik....
27

111
No fundo foi cómica a primeira vez que entrei no seu escritório, ele não me tinha agradado
particularmente, com descontracção pedi-lhe as
informações que queria, expliquei-lhe o que pretendia com a reportagem radiofónica, mas
quando ele começou a falar dei comigo a gaguejar, a embrulhar-me, a tropeçar nas
palavras, e ele, ao ver-me assim perturbada, logo desviou a conversa para mim, se eu era
casada, se tinha filhos, para onde ia nas férias, disse que eu parecia nova e que era bonita,
tentava descontrair-me, bem simpático, conheci tantos gabarolas que eram
só blá-blá-blá, que nem saberiam um décimo daquilo que ele sabia, Pavel punha-se logo a
falar de si, mas o mais cómico foi que ao fim de uma hora de conversa eu pouco mais sabia
sobre o seu instituto, em casa
agarrei-me aos papéis mas não saía nada, no fundo isso convinha-me, era um pretexto para
lhe telefonar, se ele não se importava de ler aquilo que eu tinha escrito. Encontrámo-nos
num café, a minha triste reportagem não tinha mais que quatro páginas, ele leu-a
amavelmente e sorriu, disse que estava excelente, desde o primeiro instante tinha dado a
enten-
der que era como mulher que eu lhe interessava e não como jornalista, eu não sabia se havia
de gostar disso ou se haveria de me sentir vexada, de qualquer maneira ele era um encanto,
a gente entendia-se, ele não é daqueles intelectuais de gabinete que me irritam, tem atrás de
si uma existência rica, até trabalhou nas minas, eu disse-lhe que gostava de gente assim,
mas o que me impressionou mais foi saber que ele era da Morávia, que tinha tocado numa
orquestra com címbalo, eu não podia acreditar nos meus ouvidos, ouvia o tema da minha
vida, via de longe vir a mim a minha juventude e sentia-me rendida.
Ele perguntou-me o que eu fazia o dia inteiro, contei-lhe e ele disse-me, ainda oiço a sua
voz, meio rouca meio terna, você vive mal Helena,
28

depois disse que era preciso mudar as coisas, que eu devia decidir-me a levar uma vida
diferente, entregar-me mais aos prazeres da vida, respondi-lhe que não tinha nada contra,
que sempre fora uma fã da alegria, que nada me irritava mais do que as melancolias e as
neuras modernas, e ele respondeu-me que de nada valia a minha profissão de fé, que os
defensores da alegria eram geralmente as pessoas mais tristes, ah como você tem razão,
quis eu responder, e depois declarou que me iria buscar às quatro horas em frente da rádio e
que iríamos passear para o campo, nos arredores de Praga. Tentei protestar, não vê que sou
ca-
sada, não posso ir passear para a floresta com um homem, com um estranho, Ludvik
respondeu a brincar que ele não era um homem mas um cientista, e de repente ficou triste,
muito triste! Dei por isso e senti uma onda de calor, o prazer de constatar que ele me
desejava, que me desejava tanto mais que eu lhe lembrava que era casada, assim eu era
mais inacessível, deseja-se sempre o inacessível, com avidez eu bebia a tristeza do seu rosto
e percebi então que ele estava apaixonado por mim.
E no dia seguinte, de um lado a VItava, do outro a encosta abrupta da floresta, era
romântico, eu gosto do que é romântico, talvez o meu
comportamento fosse um pouco insensato, impróprio da mãe de uma rapariga de doze anos,
eu ria, saltava, agarrei-lhe na mão e obriguei-o a correr comigo, parámos, o meu coração
batia tanto, estávamos face a face, quase que nos tocávamos, Ludvik inclinou-se
ligeiramente e deu-me um leve beijo, escapei-me para lhe agarrar na mão e voltámos a
correr, ao mínimo esforço tenho logo palpitações, basta que eu suba um andar, por isso
abrandei o passo, a minha respiração acalmou e de súbito reparei que assobiava baixinho os
dois primeiros compassos de uma
cantiga da Morávia, a minha favorita, e quando me pareceu que ele me
percebia continuei em voz alta, sem vergonha, sentia caírem de mim os anos, as
preocupações, as tristezas, milhares de escamas baças, e a seguir, instalados numa tasca,
comemos pão e chouriço, tudo imensamente vulgar e simples, o criado maldisposto, a
toalha com nódoas, a aventura no entanto maravilhosa, eu disse a Ludvik, sabe que vou
daqui a três dias à Morávia fazer uma reportagem sobre a Cavalgada dos Reis. Ele
perguntou-me onde era e quando eu respondi ele disse que era mesmo
aí que tinha nascido, nova coincidência que me deixou toda coisa, e Ludvik disse: Vou
arranjar maneira de ir lá consigo.
Tive medo, pensei em Pavel, nessa pálida luz de esperança que ele tinha reacendido em
mim, não sou cínica com o casamento, estou pronta a tudo para o salvar, quanto mais não
seja por causa da Zdena, mas
29

_@r -1 f
para quê mentir, sobretudo por minha causa, por causa de tudo o que aconteceu, por causa
da memória da minha juventude, mas não tive força para dizer que não a Ludvik, não tive
coragem, e pronto, os dados estão lançados, Zdena está a dormir, eu tenho medo e Ludvik a
esta hora já está na Morávia e vai esperar-me amanhã à saída do autocarro.
30

TERCEIRA PARTE
LUDVIK

r,

Sim; fui passear. Parei na ponte sobre o Morava e olhei a corrente. Como é feio este
Morava (rio tão pardo que mais parece de barro líquido do que de água) e que lúgubre a sua
margem: uma rua de cinco casas burguesas de um piso, separadas, cada uma ali posta só
por si, órfã impertinente; talvez elas fossem pensadas como embrião de um cais cuja
ambição pretensiosa não chegou a realizar-se; duas delas ostentam, em cerâmica e em
estuque, anjinhos e motivos meio rachados: o anjo já não tem asas e os frisos descascados
até ao osso em certos sítios tornaram-se ininteligíveis. No fim da rua das casas órfãs
existem só os pilares de ferro dos fios eléctricos, a erva com alguns gansos retardados, e
depois campos, campos sem horizonte, que vão para parte nenhuma, campos Dor entre os
quais desaparece o barro líquido do Morava.
As cidades sabem servir-se uma da outra como de um espelho, e eu, neste panorama (eu
conhecia-o bem em criança, mas então não me dizia nada), vi de um relance Ostrava, essa
cidade de mineiros que parece um
gigantesco dormitório prefabricado, cheia de edifícios abandonados e de ruas sujas que
desembocam no vazio. Sentia-me apanhado; estava na-
quela ponte como um homem exposto ao tiro de uma metralhadora. Não queria mais
contemplar a rua abandonada e as suas cinco casas perdidas, porque evitava pensar em
Ostrava. Por isso dei meia volta para subir a margem no sentido contrário.
Havia um caminho com chopos de um lado e de outro: uma estreita vereda-miradouro. À
direita, o talude coberto de erva e de plantas selvagens descia até à água; mais longe, para
lá do rio, o olhar descobria armazéns, oficinas e pátios de fabriquetas. À esquerda do
atalho, era primeiro uma lixeira interminável seguida de vastos campos semeados de pilares
metálicos dos cabos de alta tensão. Dominando tudo, eu seguia
33

pela vereda estreita, como se atravessasse uma longa ponte sobre as águas
- e se falo desta paisagem como de uma imensa extensão aquática, é porque sentia o seu
frio penetrar-me; e porque caminhava por ali fora com a sensação de poder cair a qualquer
momento. Dei-me conta ao mesmo tempo de que a estranha atmosfera da paisagem não era
mais que um decalque do que eu evitava recordar depois do encontro com Lúcia; como se
as minhas memórias reprimidas impregnassem tudo o que via à minha volta, o deserto dos
campos, dos pátios e dos alpendres, a
opacidade do rio e este frio omnipresente que dava unidade a todo o dêcor. Percebi que não
escaparia às minhas memórias; elas assaltavam-me.
34

Através de que itinerário eu cheguei ao primeiro naufrágio da minha vida (e, por seu pouco
agradável intermédio, a Lúcia), não seria difícil de contar num tom ligeiro e até divertido:
tudo resultou da minha funesta tendência para piadas descabidas e da funesta incapacidade
de Marketa para perceber as piadas. Marketa era uma dessas mulheres que to- mam tudo a
sério (identificando-se por aí com o espírito da época às mil maravilhas) e às quais as fadas
concederam desde o berço como principal qualidade a de acreditar. Não insinuo com este
eufemismo que ela fosse pateta; não: era medianamente dotada e sagaz e ainda por cima tão
nova (com os seus dezanove anos) e tão bonita que a sua ingénua credulidade surgia como
mais um dos seus encantos, e não como um dos seus defeitos. Todos, na faculdade,
gostávamos dela e tínhamos mais ou menos tentado conquistá-la, o que não nos impedia
(pelo menos a alguns) de a gozar com doçura e suavidade.
De facto, Marketa e o humor não se davam bem, menos ainda com o espírito do tempo.
Estávamos no primeiro ano depois de Fevereiro de
48; tinha começado uma vida nova, uma vida verdadeiramente diferente, que se
caracterizava, pelo menos assim a recordo, por uma seriedade rígida, seriedade que
curiosamente nada tinha de triste, mas, pelo contrário, as aparências de um sorriso; sim,
foram os anos mais alegres de todos, e quem não exultasse tornava-se logo suspeito de
temer pela vitória da classe operária ou então (falta não menos grave) de se entregar ao
cultivo individualista das suas próprias desgraças.
Eu não tinha então muitas desgraças íntimas, pelo contrário tinha um enorme sentido da
brincadeira, embora não se possa dizer que fosse muito bem sucedido perante o sentido de
alegria da época: as minhas piadas eram pouco sérias, enquanto a alegria de então não
admitia nem palha-
35

N
çadas nem ironia, era uma alegría grave que se afirmava orgulhosamente "o optimismo
histórico da classe vitoriosa", uma alegria ascética e so-
lene, numa palavra a Alegria.
Recordo que na faculdade estávamos organizados em "círculos de estudos" que reuniam
frequentemente para proceder à crítica e à autocrítica públicas dos seus membros, que
davam lugar a uma nota valorativa atribuída a cada um. Como todos os comunistas, eu
exercia múltiplas funções (tinha um posto importante na União dos Estudantes) e como, por
outro lado, os meus estudos corriam menos mal, uma nota dessas não podia causar-me
grandes aborrecimentos. No entanto, as fórmulas elogiosas que sancionavam a minha
actividade, a minha diligência, a minha atitude positiva face ao Estado, ao trabalho e ao
meu conhecimento do marxismo, eram geralmente acompanhadas de uma frase acerca da
minha personalidade reveladora de "resíduos de individualismo". Uma tal reserva não era
necessariamente inquietante, porque era de bom-tom inserir uma observação crítica nas
notas pessoais mais brilhantes, a um criticava-se um "fraco interesse pela teoria
revolucionária", a outro "a frieza com o próximo", a outro a sua falta de "vigilância e
circunspecçao", a um outro, enfim, um "mau comportamento com as mulheres"; claro que
quando uma destas restrições não ficava só, se uma outra se
lhe vinha juntar, ou se uma pessoa se via metida em qualquer conflito ou era alvo de
suspeitas ou de críticas, os "resíduos de individualismo" ou o "mau comportamento com as
mulheres" podiam tornar-se germe da catástrofe. E, como uma estranha fatalidade, um tal
germe espreitava na ficha de cada um, sim, de cada um de nós.
Por vezes (desportivamente, mais do que por verdadeira apreensão) eu insurgia-me contra
as acusações de individualismo e exigia provas dos meus camaradas de estudo. Eles não as
tinham muito concretas e diziam: "Porque tu és assim. - Assim como, perguntava eu. - Tens
sempre esse risinho. - E então? Exprimo a minha alegria! - Não, sorris como se pensasses
uma coisa que não dizes."
Quando os camaradas acharam que o meu comportamento e os
meus sorrisos cheiravam a intelectual (outro pejorativo célebre nesse tempo), acabei por
acreditar neles, incapaz de imaginar (era demasiada audácia para mim) que todos os outros
estivessem enganados, que a
própria Revolução, o espírito do tempo, pudesse enganar-se e que eu, indivíduo, tivesse
razão. Pus-me a controlar os meus sorrisos e não tardei em descobrir em mim uma ténue
divisão que despontava entre aquele que eu era e aquele que (segundo o espírito do tempo)
eu devia e queria ser.
36

Mas quem era eu então, na verdade? A isto responderei com toda a honestidade: eu era
alguém com muitos rostos.
E o seu número ia crescendo. Cerca de um mês antes das férias comecei a aproximar-se de
Marketa (ela andava no primeiro e eu no se-
gundo ano) e fazia o que podia para a conquistar, da mesma maneira estúpida que é a dos
homens de vinte anos de todos os tempos: pus uma máscara; fingia que era mais velho
(mentalmente e pelas experiências vividas); fingia-me distante em relação a todas as coisas,
olhar o mundo de cima e usar por cima da pele uma outra pele invisível à prova de balas.
Pressentia (aliás com razão) que o humor exprime claramente a distância e se sempre gostei
de brincar, com Marketa comecei a fazê-lo de modo sistemático, artificial e afectado.
Mas quem era eu afinal? Tenho de repeti-lo: era aquele que tem vários rostos.
Durante as reuniões eu era sério, entusiasta e convicto; desenvolto e brincalhão com os
companheiros; laboriosamente cínico e sofisticado com Marketa; e quando estava só (e
pensava em Marketa) era humilde e inseguro como um menino de colégio.
Seria este último rosto o verdadeiro? Não. Todos eram verdadeiros: eu não tinha, como os
hipócritas, um rosto autêntico e outros falsos. Eu tinha vários rostos porque era novo e não
sabia ainda quem era nem o que queria. (O que não impedia que a desproporção entre todos
os meus rostos me causasse aflição; em ne-
nhum deles eu me reconhecia totalmente e abrigado neles eu avançava às apalpadelas.)
O funcionamento psíquico e filosófico do amor é tão complicado que num determinado
período da vida o homem tem de concentrar-se quase exclusivamente no esforço de
controlá-lo, assim deixando escapar o próprio objecto do amor: a mulher que ama. (Tal
como uni jovem violínista não pode atacar o conteúdo de uma peça sem primeiro dominar a
técnica manual a ponto de não pensar nela quando toca.) Falei da minha emoção de
rapazinho quando pensava em Marketa e devo dizer que ela não resultava tanto do meu
estado de apaixonado como da minha timidez e falta de segurança e que, muito mais do que
Marketa, influenciavam as minhas sensações e os meus pensamentos.
Para equilibrar esse meu acanhamento, fazia uns ares superiores com Marketa: aplicava-me
a contradizê-la ou, pior ainda, a troçar das suas opiniões, o que não era difícil, pois apesar
do seu talento (e da sua beleza, que - como toda a beleza - sugere a quem a olha urna
inacessibilidade aparente) era uma rapariga inocentemente cândida; sempre inca-
37

paz de olhar para além de uma coisa, apenas vendo a própria coisa; ela entendia
maravilhosamente a botânica, mas muitas vezes escapavam-lhe as anedotas dos seus
camaradas; ela cedia a todos os ardores entusiásticos da época, mas, quando testemunhava
qualquer prática política justificada pela máxima "O fim justifica os meios", o seu intelecto,
tal como para as anedotas, recusava-se a funcionar; foi assim que os camaradas, achando
que ela precisava de fortificar o seu ardor através de um melhor conhecimento da estratégia
e da táctica do movimento revolucionário, decidiram que ela participaria, durante as férias,
num estágio de formação do Partido durante quinze dias.
Esta decisão não me convinha nada, porque eu contava exactamente
com essas duas semanas para as passar sozinho com Marketa em Praga e levar a nossa
relação (que até então consistira em passeios, conversas e alguns beijos) um pouco mais
longe; a não ser esses quinze dias, eu
não tinha outra hipótese (tendo que dedicar um mês a uma brigada agrícola e as duas
últimas semanas de férias à minha mãe, na Morávia), e fiquei louco de ciúmes por Marketa
não partilhar da minha aflição, nem se irritar com o estágio, pior ainda, ter a coragem de me
dizer que até gostava da ideia!
Do estágio (organizado num vago castelo no centro da Boémia) mandou-me uma carta
igual a ela, transbordante de identificação com tudo o que vivia; tudo a encantava,
incluindo o quarto de hora de ginástica matinal, os relatórios, as sessões de discussão, as
canções; escrevia-me que reinava lá "um espírito são" e, num gesto de zelo, acrescentava
que no Ocidente a revolução não tardaria.
No fundo, bem vistas as coisas, eu estava de acordo com o que Marketa dizia, também eu
acreditava até na revolução na Europa Ocidental; havia só uma coisa que eu não aprovava:
que ela estivesse contente e
feliz enquanto eu sentia a falta dela. Então arranjei um postal e (para a ferir, chocar e
confundir) escrevi: O optimismo é o ópio do gênero humano! O espírito são tresanda a
estupidez. Viva Trotski! Ludvik.
38
111
Ao meu postal provocatório Marketa respondeu com uma fórmula seca e breve e não reagiu
mais às cartas que lhe escrevi durante as férias. Algures nas montanhas eu ceifava com uma
brigada de estudantes e o
mutismo de Marketa acabrunhava-me. Escrevia-lhe de lá cartas quase diárias carregadas de
uma paixão humilde e melancólica; suplicava-lhe que nos víssemos ao menos durante os
últimos quinze dias de férias, estava pronto a deixar de ir a minha casa na Morávia, a
renunciar a visitar a minha mãe abandonada, pronto a ir fosse para onde fosse para estar
com Marketa; tudo isto porque a amava, mas sobretudo porque era a única mulher no meu
horizonte e porque a situação de homem sem fêmea me era intolerável. Mas Marketa não
respondia às minhas cartas.
Eu não percebia o que se passava. Fui a Praga em Agosto e encontrei-a em casa. Fomos
fazer o nosso passeio habitual nas margens do VItava e na ilha que se chama Prado
Imperial (esse prado desengraçado salpicado de chopos e de campos de jogos desertos) e
Marketa disse que nada tinha mudado entre nós; de facto comportava-se como antes, só
que, ou
precisamente por isso, essa petrificada permanência (beijo petrificado, conversa petrificada,
sorriso petrificado) era deprimente. Quando pedi a Marketa para nos vermos no dia
seguinte, ela disse-me para lhe telefonar, que depois combinávamos.
Telefonei, apareceu-me uma voz feminina, que não era a dela, que me disse que Marketa
tinha saído de Praga,
Fiquei infeliz como infeliz pode ficar um rapaz de vinte anos sem mu-
lher; rapaz bastante tímido, que tinha conhecido o amor físico ainda poucas vezes, de modo
fugidio e imperfeito e que, no entanto, não parava de o ter às voltas na cabeça. Os dias
arrastavam insuportavelmente o seu tamanho e o seu vazio; não conseguia ler, nem
trabalhar, ia três vezes
39

por dia ao cinema, às sessões umas atrás das outras, de dia e de noite, só para matar o
tempo, para calar o uivo contínuo de animal insatisfeito que emitia o meu ser profundo. Eu,
que Marketa imaginava (graças à minha sobranceria cuidadosamente cultivada) farto de
tantas mulheres, não ousava dirigir a palavra às raparigas que via na rua, às raparigas cujas
pernas magníficas me faziam doer a alma. Foi assim com alegria que saudei o mês de
Setembro quando o vi chegar e, com ele, a reen-
trada precedida de dois ou três dias pela retomada das minhas funções na União dos
Estudantes, onde tinha uma secretária só para mim e toda
uma série de obrigações variadas. Logo no dia seguinte, um telefonema chamou-me ao
secretariado do Partido. Tenho, a partir desse instante, tudo gravado na minha memória, até
aos mais pequenos pormenores: o dia estava cheio de sol, saí da sede da União de
Estudantes e senti que a tristeza que me tinha envolvido durante as férias lentamente se
afas-
tava, foi cheio de agradável curiosidade que me dirigi ao secretariado. Bati à porta, que foi
aberta pelo presidente do comité, um jovem alto de rosto estreito, cabelos claros, olhos de
um azul-polar. Eu disse "Honra ao trabalho", saudação comunista da época. Ele não
respondeu e disse
"Estão lá ao fundo à tua espera." Ao fundo, na última divisão do secretariado, esperavam
por mim três membros do comité de estudantes do Partido. Mandaram-me sentar. Sentei-
me e percebi que as coisas não estavam bem. Os três camaradas, que eu conhecia bem e
com quem costumava conversar alegremente, ostentavam caras impenetráveis; se é ver-
dade que me tratavam por tu (regra entre os camaradas), não era de súbito um tratamento
amigável, mas oficial e ameaçador. (Confesso que desde então detesto o tratamento por tu;
é suposto ele traduzir uma intimidade confiante, mas se as pessoas que se tratam por tu não
são íntimas, ele passa a ter o significado oposto, ele é a expressão da grosseria, de tal
maneira que um mundo onde é regra as pessoas tratarem-se por tu deixa de ser um mundo
de amizade generalizada para ser um mundo de desrespeito omnipresente.)
Eu encontrava-me portanto frente a três estudantes a tratar-me por tu, que me fizeram uma
primeira pergunta: se eu conhecia Marketa. Disse que sim. Perguntaram-me se tínhamos
trocado correspondência. Disse que sim. Perguntaram-me se me lembrava do que tinha
escrito. Disse que não me lembrava, mas de repente saltou-me diante dos olhos o postal
com o texto provocatório e comecei a farejar o acontecimento. Ali não te lembras?,
perguntaram eles. Não, disse eu. E Marketa, o que é que te escrevia? Encolhi os ombros,
para dar a impressão de que as cartas dela tratavam de assuntos de que eu não podia falar
ali. Ela não te es-
40

creveu nada sobre o estágio?, perguntaram eles. É verdade, disse eu, es-
creveu. E então o quê? Que gostava daquilo. E mais quê? Que as exposições eram
interessantes e que o colectivo era bom, disse eu. Ela escreveu-te que um espírito saudável
reinava no estágio? Sim, disse eu, escreveu qualquer coisa assim. Ela escreveu-te que
estava a conhecer a força do optimismo?, perguntaram eles. Pois, disse eu. E tu, o que é que
pensas do optimismo?, perguntaram eles. Do optimismo, o que é suposto eu pensar?,
perguntei eu. Pessoalmente, consideras-te um optimista? Acho que sim, disse eu
timidamente. Gosto de brincar, sou mais para o alegre, observei eu tentando dar um tom
mais leve ao interrogatório. Até um rifilista pode ser alegre, observou um deles, pode troçar
daqueles que sofrem. E prosseguiram: Um cínico também pode ser alegre?, perguntou o
outro. Não, disse eu. Então quer dizer que tu não defendes a edificação do socialismo entre
nós, disse um terceiro. Mas porquê?, protestei. Porque para ti o optimismo é o ópio do
gênero humano, rebentaram eles. O quê, o ópio do gênero humano?, disse eu ainda. Não
tens safa. Escreveste isso! Marx chamou à religião o ópio da humanidade, mas para ti o
ópio é o nosso optimismo! Escreveste-o a Marketa. Era bonito saber o que diriam os nossos
operários e os nossos trabalhadores de choque que ultrapassam os planos se soubessem que
o seu optimismo afinal é ópio, disse o outro. E o terceiro acrescentou: Para um trotskista, o
optimismo edificador nada mais é do que ópio. E tu és um
trotskista! Deus do céu, onde é que vocês foram inventar isso?, protestei. Negas que o
escreveste? É natural que o tenha escrito a brincar, já foi há dois meses, já nem me lembro.
Podemos refrescar-te a memória, disseram eles, e deram-me a ler o meu postal: O
optimismo é o ópio do gênero humano! O espírito são tresanda a estupidez! Viva Trotski!
Ludvik. No minúsculo gabinete do secretariado político estas frases adquiriam uma tal
ressonância que me assustaram e eu senti que elas abrigavam um poder devastador a que eu
não resistiria. Camaradas, era só uma graça, disse eu, e senti que ninguém podia acreditar
em mim. Vocês acham que isto pode ter graça?, disse um dos camaradas para os outros
dois. Eles abanaram a cabeça. Vocês deviam conhecer a Marketa, disse eu. Mas nós
conhecêrno-la, responderam. Então já vêem. Marketa toma tudo a
sério, nós sempre gostámos de a gozar um bocadinho para a atrapalhar. Interessante, disse
um dos camaradas, vendo as tuas cartas seguintes, não parece que não tomasses a Marketa
a sério. O quê, vocês leram todas as minhas cartas para a Marketa? Então, com o pretexto
de que Marketa toma tudo a sério, interrompe um outro, tu decides embarretá-la. Mas afinal
o que é que ela toma a sério? O Partido, não é verdade, o
41

@14
optimismo, a disciplina? E tudo isso que ela toma a sério, a ti só te faz rir. Camaradas, por
favor, eu nem me lembro bem como é que escrevi isso, foi num momento, duas linhas para
gozar, nem pensei no que escrevinhava, se eu tivesse uma má intenção não iria mandar isto
para um
estágio do Partido! Como o escreveste não interessa. Se foi depressa ou devagar, em cima
do joelho ou numa mesa, tu só podias escrever o que está em ti. Mais nada. Talvez se
tivesses pensado duas vezes não tivesses escrito. Assim escreveste-o sem máscara. Ao
menos, ficamos a saber quem tu és. Sabemos que tens vários rostos, um para o Partido e o
segundo para os outros. Senti que as minhas negações não tinham qualquer eficácia. Repeti
várias vezes o que já tinha dito: que era uma brincadeira, que eram palavras no ar, que
escondiam um estado de espírito e nada mais. Não quiseram ouvir nada. Disseram que eu
tinha escrito num postal aberto, que toda a gente podia ler, que as palavras tinham um
alcance objectivo e que não vinham acompanhadas de nenhuma explicação sobre o meu
estado de espírito. Depois perguntaram-me o que é que tinha lido de Trotski. Nada, disse
eu. Perguntaram quem me tinha emprestado os livros. Ninguém, disse eu. Perguntaram-me
com que trotskistas é que eu me dava. Nenhum, disse eu. Anunciaram-me que me demitiam
ali mesmo das minhas funções na União dos Estudantes e pediram para lhes dar a chave do
gabinete. Eu tinha-a no bolso e dei-a. Disseram-me a seguir que, ao nível do Partido, a
minha organização de base da Faculdade de Ciências resolveria o meu caso. Levantaram-se
sem olhar para mim. Eu disse "Honra ao trabalho" e parti.
Lembrei-me mais tarde que tinha muita coisa minha na sala da União dos Estudantes.
Nunca fui muito ordenado, por isso tinha meias numa
gaveta da secretária, além de papéis pessoais e, no armário dos dossiers, uma broa encetada
que a mãe me tinha mandado da terra. Tinha dado a chave ao secretariado do Partido mas
havia uma outra chave no porteiro do rés-do-chão, pendurada entre muitas outras num
painel de madeira; peguei nela; lembro-me de todos os pormenores: a chave estava atada
por um cordel grosso a uma minúscula etiqueta de madeira com o meu número da porta
escrito em branco. Entrei, pois, com essa chave e sentei-me na minha mesa de trabalho; abri
a gaveta e comecei a tirar de lá tudo o que me pertencia; sem pressa e distraidamente,
aproveitando este momento de calma relativa para reflectir no que se acabava de passar e
no que devia fazer.
Momentos depois a porta abriu-se. Eram os três camaradas do secretariado. Desta vez já
não estavam de rosto frio e fechado. Agora a sua voz era rude e forte. Sobretudo o mais
pequeno, responsável pelos qua-
42
dros do comité. Perguntou-me com dureza como é que eu tinha entrado. Com que direito.
Se eu queria que ele me mandasse pôr fora por um
agente da segurança. O que é que eu tinha que cheirar naquele escritório. Eu disse que só
tinha ido buscar a minha broa e as minhas peúgas. Ele disse-me que eu não tinha qualquer
direito de entrar ali, mesmo que tivesse um armário cheio de meias. Depois foi à gaveta e
espiolhou um
a um os papéis e os cadernos. Só lá havia, de facto, os meus objectos pessoais e ele acabou
por me autorizar a metê-los numa mala à sua vista. Enfiei lá as peúgas sujas, a broa que
estava num armário em cima de um papel gordurento cheio de migalhas. Eles observavam
cada um dos meus movimentos. Saí com a mala na mão e o chefe dos quadros disse-me, à
laia de adeus, que não tornasse a pôr lá os pés.
Mal me vi longe dos camaradas e da invencível lógica do seu interrogatório, tornou-se-me
evidente que eu estava inocente, que as minhas fórmulas nada tinham de terrível e que era
preciso procurar alguém que co-
nhecesse Marketa e que percebesse o grotesco de toda esta história. Fui ter com um
estudante da nossa faculdade, um comunista; quando lhe contei tudo, ele disse que os do
secretariado eram uns beatos, não tinham sentido de humor, mas que ele, que conhecia
Marketa, imaginava perfeitamente o que se tinha passado. Aconselhou-me a ir falar com
_Zemanek, que ia ser este ano presidente do Partido na nossa faculdade e que nos conhecia
bem, à Marketa e a mim.
43

A notícia de que Zemanek seria o próximo presidente da organização pareceu-me excelen


M?=,porque eu conhecia-o muito bem e tinha a certeza de que ele simpatizava comigo,
quanto mais não fosse pelas minhas origens morávias. Zemanek gostava imenso de cantar
as canções da Morávia; nesse tempo era moda cantarmos as cantigas populares com uma
voz rústica, de braço levantado, com expressões de verdadeiro homem do povo dado à luz
sob um címbalo no meio de uma dança.
Na verdade, eu era o único verdadeiro morávio da Faculdade de Ciências, o que me valia
alguns privilégios; nas ocasiões solenes, reuniões, festas ou no 1' de Maio, os camaradas
convidavam-me a puxar de um clarinete para imitar, com a ajuda de dois ou três amadores
recrutados entre os nossos colegas, uma música verdadeiramente morávia. Foi as-
sim que (com um clarinete, um violino e um contrabaixo) participámos dois anos no desfile
do l' de Maio, e Zemanek, que era bonito e gostava de se exibir, tinha-se juntado a nós;
vestindo um traje regional emprestado, ele dançava enquanto andava, de braço levantado e
a cantar. Este homem de Praga que nunca tinha ido à Morávia imitava com ardor o nosso
galo e eu olhava-o com amizade, contente por ver a música da minha pequena terra, desde
sempre paraíso da arte popular, tão apreciada.
Depois, Zemanek conhecia Marketa, o que era outra vantagem. Diversas circunstâncias da
nossa vida de estudante tinham-nos reunido aos três; um dia (éramos um grande grupo) eu
inventei que tribos de anões viviam nas montanhas checas - e citei a propósito extractos de
uma obra científica dedicada a este importante problema. Marketa espantava-se de nunca
ter ouvido falar do assunto. Eu dizia que não era de espantar: a ciência burguesa silenciava
voluntariamente a existência de tais anões porque os capitalistas os trocavam como
escravos.
44
Mas é preciso escrever sobre isso, indignava-se Marketa. Porque é que ninguém o faz?
Seria um belo argumento contra os capitalistas!
Talvez não o façam, disse eu com ar pensativo, por causa de al-
guns aspectos delicados e escabrosos desta questão: os anões eram capazes de
performances amorosas excepcionais, o que os torna muito procurados, e a nossa República
exporta-os secretamente com enormes
lucros, sobretudo para França, onde senhoras capitalistas já maduras os empregam como
criados, evidentemente para abusar deles para ou-
tros fins.
Os outros escondiam a sua vontade de rir causada não tanto pelas elocubrações geniais, mas
sobretudo pela expressão atenta de Marketa, sempre pronta a entusiasmar-se por qualquer
coisa (ou contra ela); eles mordiam os beiços para não estragar o prazer de Marketa a
aprender coisas novas e alguns deles (sobretudo Zernanek) faziam coro comigo inventando
ao desafio mais coisas sobre os anões.
Quando Marketa perguntou que aspecto tinham eles, lembro-me que Zemanek respondeu,
muito a sério, que o professor Cechura, que nós todos tínhamos a honra de ver
regularmente na sua cátedra universitária, era de ascendência anã, se não pelos dois lados,
pelo menos por um
deles. Hule, o assistente da faculdade, parece que tinha contado a Zemanek que numas
férias tinha encontrado o casal Cechura no hotel e que os dois, postos um em cima do outro,
não mediam mais de três metros de altura. Uma manhã, sem saber que eles ainda estavam a
dormir, ele tinha entrado no quarto deles e ficara pasmado: estavam deitados na
mesma cama, não lado a lado, mas pés com cabeça, Cechura enrolado aos pés e a mulher à
cabeceira.
Pois, confirmei eu: é evidente que neste caso tanto Cechura como a sua companheira são,
sem dúvida, anões das montanhas checas, visto que dormir nessa posição é um costume
atávico dos anões da região, os quais, em tempos passados, não construíam as suas cabanas
em plano circular ou quadrado, mas em rectângulo alongado porque toda a família dormia
alinhada nessa posição de cabeça com pés.
Recordando nesse dia negro as nossas loucuras de então, senti que delas se desprendia uma
pequena chama de esperança. Zernanek, a quem competiria decidir sobre o meu caso,
conhecia o meu estilo brincalhão; conhecendo também Marketa, perceberia que o postal
que eu lhe mandara era um gozo inocente com uma rapariga que todos admirávamos e que
(talvez por isso) gostávamos de enrolar. Assim, logo que pude, contei-lhe a minha
desgraça. Zemanek ouviu com atenção, franziu a testa
e disse que ia ver,
45

Eu ia vivendo dia a dia; ia às aulas e esperava. Chamavam-me muitas vezes perante


diversas comissões do Partido que se interessavam particularmente por saber se eu tinha
alguma filiação trotskista. Pelo meu
lado, tentava provar que nem sabia bem o que era o trotskismo; agarrava-me a cada olhar
dos meus camaradas inquisidores, ávido por neles descobrir uma luz de confiança; quando
isso acontecia, levava comigo esse olhar, guardava-o muito tempo dentro de mim e a ele ia
buscar nova esperança.
Marketa continuava a evitar-me. Vendo que a sua atitude se relacionava com o caso do
postal, eu recusava-me, por amor próprio e por despeito, a fazer-lhe a mínima pergunta. Um
dia foi ela que se me dirigiu num corredor da faculdade: "Queria dizer-te uma coisa."
Foi assim que voltámos a sair juntos passados muitos meses; o Outono estava de volta,
ambos íamos enrolados em impermeáveis muito compridos como os que se usavam naquela
época (época radicalmente não elegante); chuviscava ligeiramente e as árvores do cais
estavam despidas e negras. Marketa contou-me como tudo se tinha passado: quando ela
estava no estágio de férias, os camaradas da direcção convocaram-na um dia para perguntar
se ela recebia correio; ela disse que sim. Perguntaram de onde vinha esse correio. Ela disse
que a mãe lhe escrevia. E mais ninguém? De vez em quando um camarada de estudos, disse
ela. Qual?, perguntaram eles. Ela disse o meu nome. E o que é que ele te escreve, o
camarada Jalin? Ela encolheu os ombros porque não queria citar os termos do meu postal.
Tu também lhe escreveste? Escrevi, res-
pondeu ela. Sobre quê?, insistiram eles. Sei lá, sobre o estágio e não sei que mais. Gostas
do estágio, perguntaram eles. Sim, muito, respondeu ela. E tu disseste-lhe isso! Sim, claro.
E ele, o que é que te disse? Ele?, perguntou Marketa evasivamente. Ele é muito especial, se
vocês o conhecessem... Nós conhecemo-lo, disseram eles, e queremos saber o que ele te
escreveu. Mostras-nos o postal dele?
"Não te zangues comigo, acrescentou Marketa, não podia deixar de lhes mostrar o postal.
- Não peças desculpa, disse eu a Marketa. De qualquer maneira, eles já o tinham visto antes
de te falar nele, senão não te tinham chamado.
- Eu não me estou a desculpar, não tenho vergonha de o ter mostrado, não me interpretes
mal. És membro do Partido, e o Partido tem o direito de saber quem tu és e como pensas",
recalcitrou Marketa; depois disse-me que tinha ficado indignada com aquilo que lhe tinha
es-
crito, porque afinal nós sabemos todos que Trotski é o pior inimigo de tudo aquilo por que
lutamos e vivemos.
46

O que podia eu explicar a Marketa? Pedi-lhe para continuar e contar


o que se tinha passado.
Marketa disse que eles leram o postal e mostraram-se estupefactos. Perguntaram o que ela
achava. Ela disse que era abominável. Perguntaram-lhe porque é que ela não tinha ido
mostrar-lhes o postal espontaneamente. Ela encolheu os ombros. Perguntaram-lhe se não
conhecia as regras da vigilância. Ela baixou a cabeça. Perguntaram se não sabia que o
Partido tinha muitos inimigos. Ela disse que sabia, mas que não lhe parecia que o camarada
Jahn fosse... Eles perguntaram se ela me conhecia bem. Perguntaram-lhe que espécie de
homem era eu. Ela disse que eu era estranho. Que sem dúvida me considerava um comu-
nista sólido, mas que por vezes eu dizia coisas totalmente inadmissiveis para um comunista.
Perguntaram-lhe que coisas. Ela disse que não se lembrava de nenhuma precisamente, mas
que eu não respeitava nada. Eles disseram que este postal bem o mostrava. Ela disse-lhes
que discutia muitas vezes comigo sobre coisas várias. E disse-lhes ainda que eu falava de
uma maneira diferente nas reuniões ou com ela. Nas reuniões eu era todo entusiasmo,
enquanto com ela brincava com tudo e tudo punha a ridículo. Perguntaram se ela achava
que uma pessoa assim pode ser membro do Partido. Ela respondeu encolhendo os ombros.
Eles perguntaram se o Partido chegaria a construir o socialismo com membros que pensam
que o optimismo é o ópio do gênero humano. Ela disse que um Partido assim não
conseguiria construir o socialismo. Eles disseram que estava bem. Que não me dissesse
nada para já, porque eles queriam vigiar os meus escritos seguintes. Ela disse-lhes que não
queria voltar a
ver-me. Eles não estiveram de acordo. Aconselharam-na a escrever-me pelo menos
provisoriamente de modo a revelar o que havia ainda em mim.
"E depois disso tu entregaste-lhes as minhas cartas?, perguntei a Marketa corando no fundo
da alma das minhas efusões sentimentais.
- O que é que havia de fazer?, disse Marketa. Mas por mim não conseguia escrever-te
depois daquilo tudo. Eu não ia corresponder-me com uma pessoa só para servir de isco. Por
isso mandei-te um postal e foi tudo. Não queria encontrar-te porque me tinham proibido de
te falar nisto, receava que me fizesses perguntas, o que me teria forçado a mentir-te, e eu
não gosto de mentir."
Perguntei a Marketa o que é que a tinha levado então a procurar-me agora.
Ela disse-me que era por causa do camarada Zernanek, ele tinha-a encontrado no dia a
seguir ao começo das aulas num corredor da faculdade e tinha-a levado para o gabinete do
secretariado do Partido na Fa-
47

culdade de Ciências. Disse-lhe que o tinham informado que eu lhe tinha escrito um postal
para o estágio com afirmações hostis ao Partido. Perguntou-lhe que frases eram essas. Ela
disse-lhas. Ele aprovou e
perguntou-lhe se ela continuava a andar comigo. Perturbada, ela iludiu a resposta. Ele disse
que do estágio tinham mandado para a faculdade um relatório muito favorável sobre ela e
que a organização da faculdade contava com ela. Ela disse-lhe que ficava contente com
isso. Ele disse que não queria meter-se na sua vida privada, mas que achava que diz-me
com quem andas e dir-te-ei quem és e que continuar a andar comigo não era grande prova
em seu favor.
Segundo Marketa, andava a pensar nisto há várias semanas. Nós já não nos víamos há
alguns meses, por isso o conselho de Zemanek era
supérfluo; e foi no entanto esse conselho que a levara a reflectir e a pensar se não era cruel
e moralmente inaceitável incitar uma pessoa a cortar com o seu amigo pela única razão de
ele ter cometido um erro e, portanto, se não seria também injusto que ela me tivesse
deixado antes disso. Ela foi falar com o camarada que dirigia o estágio nas férias e
perguntou-lhe se a proibição de me falar sobre o que se tinha passado com o meu
postal se mantinha em vigor; como lhe disseram que não, ela decidiu pedir para falar
comigo. E ei-la a confiar-me o que a preocupa agora e lhe pesa: sim, ela agiu mal quando
tomou a decisão de não me ver mais; afinal nenhum homem está perdido mesmo quando se
torna culpado dos piores erros. Lembrou-se do filme soviético Tribunal de Honra (obra en-
tão muito apreciada nos meios do Partido), onde um médico investigador soviético revelava
ao público estrangeiro a sua descoberta antes de fazer beneficiar dela os seus compatriotas,
o que tresandava a cosmopolitismo (mais um pejorativo célebre na época) ou mesmo
traição; Marketa, comovida, recordava a conclusão do filme: o cientista via-se condenado
no fim por um júri de honra formado pelos seus colegas, mas
a esposa amante, longe de se afastar do marido humilhado, dedicava-se a infundir-lhe força
para reparar a sua grave falta.
"Então, decidiste não me abandonar, disse eu.
- Sim, disse Marketa, pegando na minha mão.
- Marketa, mas tu achas que o que eu fiz foi um crime?
- Acho que sim, disse Marketa.
- O que é que achas, tenho o direito de ficar no Partido?
- Não, Ludvik, acho que não." Eu sabia que, se tivesse entrado no jogo em que Marketa se
lançara e de que, pelo que me parecia, ela vivia intensamente o lado patético, eu teria
atingido tudo o que tentara em vão conquistar nos meses ante-
48

riores: levada pela paixão salvadora, como um navio pela força do vapor, ela ter-se-ia sem
dúvida dado a mim neste momento. Com uma condição evidente: que a sua paixão
salvadora fosse totalmente satisfeita; e para que o fosse, era preciso que o objecto da
salvação (a minha pessoa, infelizmente) consentisse em reconhecer a sua profundíssima
culpa. Ora isso era para mim impossível. Estava quase a possuir o corpo de Marketa, no
entanto eu não podia tomá-la por aquele preço, incapaz como era de reconhecer a minha
falta e rectificar um veredicto intolerável; ouvir urna pessoa que devia ser-me próxima
aceitar essa falta e esse veredicto era para mim impossível.
Eu não estava de acordo com Marketa, recusei a sua ajuda, e perdi-a. Mas será que eu me
sentia verdadeiramente inocente? É verdade que eu insistia em me convencer da futilidade
de todo aquele caso, mas ao mesmo tempo começava a ver as três frases do postal pelos
olhos dos meus inquiridores; as frases tornaram-se para mim um objecto de terror: sob uma
aparência ridícula talvez elas fossem revelar algo de verdadeiramente grave, como seja que
eu nunca me identificara integralmente com a carne do Partido, que eu nunca fora um
autêntico revolucionário proletário, mas que a partir de uma decisão pura e simples eu me
"juntara aos revolucionários" (porque a pertença à revolução era encarada por nós não tanto
como uma questão de escolha, mas de substância; ou
se é um revolucionário e forma-se um todo com o movimento, ou não se é, só se quer sê-lo;
mas, nesta alternativa, sentímo-nos eternamente culpados dessa alterídade).
Quando hoje penso na minha situação dessa altura, surge por analogia no meu pensamento
o imenso poder do cristianismo, que relembra ao crente o seu estado fundamental e
permanente de pecador. Foi assim que me mantive (todos nos mantivemos assim) de cabeça
constantemente baixa, perante a Revolução e o seu Partido, de modo que me tinha
habituado pouco a pouco à ideia de que o texto do meu postal, embora pensado como uma
graça, nem por isso era menos um delito, e o exame autocrítico arrancava dentro da minha
cabeça: dizia-me que as três frases não me tinham vindo ao espírito por acaso; já antes (e
sem dúvida com razão) os camaradas me acusavam de "resíduos de individualismo"; dizia-
me que me tinha tornado muito vaidoso, comprazendo-me no meu
próprio saber, na minha condição de estudante, no meu futuro de intelectual, e que o meu
pai, operário, morto num campo de concentração durante a guerra, decerto não
compreenderia o meu cinismo; acusava-me a mim próprio de ter secado em mim a sua
mentalidade operária; acusando-me de mil vilanias, acabei por admitir a necessidade de um
cas-
49

tigo; os meus esforços não tinham outro objectivo do que este: não ser
posto fora do Partido e assim considerado como seu inimigo; viver como inimigo
reconhecido daquilo que eu escolhera na adolescência, e que me era verdadeiramente caro,
parecia-me desesperante.
Uma tal autocrítica, que era ao mesmo tempo uma defesa suplicante, revolvia cem vezes no
meu pensamento, dez vezes pelo menos perante comités e comissões e, finalmente, em
reunião plenária da nossa faculdade, onde Zemanek apresentou, sobre mim e a minha falta,
um relatório de introdução (eficaz, brilhante, inesquecível) antes de propor, em
nome da organização, a minha exclusão do Partido. A discussão que se gerou no
seguimento da minha intervenção autocrítica voltou-se contra mim; ninguém veio em meu
auxílio, de tal modo que, no fim, todos (uma centena, entre os quais os meus professores e
os meus condiscípulos mais próximos), sim, todos até ao último, levantaram a mão para
aprovar não apenas a minha exclusão do Partido, mas ainda (coisa que não esperava) a
proibição de continuar a estudar.
Na noite a seguir à reunião tomei o comboio para voltar para casa, mas esse regresso não
me trazia qualquer reconforto, dado que durante dias seguidos me faltou a coragem para
confessar a minha desgraça à minha mãe, ela que tanta importância dava aos meus estudos.
Por outro lado, logo na manhã seguinte recebera a visita de Jaroslav, um camarada
d @@:[a:@!£@@ímbalo onde eu,tocava_q@WaAdp,andaya no
casa: ia casar daí a dois dias e queria que eu fosse o padrinho. Como desiludir um velho
amigo? Não
upix,i.p.,utta,çqisascrião festejax,a,minha queda com uma festa n cial.
melhor foi que, patriota morávio e folclorista convicto como era, Jaroslav aproveitou o seu
casamento para satisfazer a sua paixão etnográfica e organizou a festa segundo um modelo
dos antigos costumes populares: trajes regionais, orquestra com címbalo, "patriarca"
recitando textos floreados, a noiva levada em braços para dentro de casa, canções, todo um
cerimonial que durou um dia inteiro, reconstituído por Jaroslav a partir de manuais de
folclore mais do que da memória viva. Reparei no entanto numa coisa estranha: o meu
amigo Jaroslav, animador desde há pouco tempo de um grupo de canto e dança com notável
sucesso, se é verdade que observava todos os velhos ritos, provavelmente preocupado com
a sua carreira e dócil às palavras de ordem do ateísmo, teve o cuidado de não entrar na
igreja com o cortejo, por muito impensável que pudesse ser um casamento popular
tradicional sem padre nem bênção divina; também deixou o "patriarca" recitar todos os
discursos de
50
f,

circunstância, mas tinha-os expurgado de todos os temas bíblicos, embora estes fossem a
própria base da imagética dos discursos nupciais de antigamente. A tristeza que me impedia
de me identificar com a euforia desta quermesse matrimonial permitiu-me aperceber um
travo de clorofórmio na água pura das práticas ancestrais. De tal maneira que, quando
Jaroslav me pediu (recordando com ternura a minha participação activa nas
sessões de antigamente) para pegar num clarinete e ir para o pé dos outros músicos, eu
recusei. Acabava de me lembrar do 11 de Maio dos dois últimos anos, quando eu tocava
com o praguense Zemanek aos pulos ao meu
lado, de traje tradicional, a cantar de braço levantado. Eu não conseguia pegar no clarinete e
olhava para esta chinfrineira folclórica com um enorme, enorme enjoo....
51
v
Privado do direito de prosseguir os meus estudos, deixei de beneficiar do adiamento da
tropa e restava-me aguardar a incorporação; duas longas estadas em brigadas ocuparam-me
até lá: trabalhei primeiro na
reparação de uma estrada, algures perto de Gottwaldov, no fim do Verão consegui trabalho
temporário numa fábrica de conservas e, finalmente, numa manhã de Outono, depois de
uma noite sem dormir no comboio, fui dar ao quartel de um arrabalde desconhecido e feio
de Ostrava.
Encontrei-me assim num pátio de caserna, na companhia de outros recrutas pertencentes à
mesma companhia; não nos conhecíamos; na
penumbra deste primeiro anonimato mútuo, liberta-se duramente dos outros tudo o que é
grosseiro e estranho; o único laço humano que nos unia era a incerteza de um futuro sobre o
qual trocávamos hipóteses lacónicas. Alguns diziam que nóq fazíamos parte dos "negros",
outros diziam que não, outros ainda ignoravam o sentido desse termo. Eu, que sabia o que
era, ouvia estas hipóteses com horror.
Um sargento veio buscar-nos e levou-nos para a caserna; estávamos empilhados num
corredor e, a seguir, numa espécie de grande sala que tinha enormes painéis murais cheios
de slogans, fotografias e maus desenhos; ao fundo, um grande letreiro recortado em papel
vermelho: NóS CONSTRUíMOS O SOCIALISMO, e debaixo dessa inscrição uma cadeira
com um velho caquéctico ao lado. O sargento apontou para um
de nós e ele teve de sentar-se. O velho atou-lhe um pano branco ao pescoço, vasculhou
numa sacola encostada ao pé da cadeira, tirou de lá uma
máquina e enfiou-a nas melenas do rapaz.
Pela cadeira do barbeiro tinha início a cadeia que nos transformaria em soldados: da cadeira
onde tínhamos perdido os nossos cabelos, éramos levados para um local contíguo onde nos
obrigavam a despir com-
52

pletamente, meter as nossas roupas num saco de papel que atávamos com
um fio e entregávamos num guichet; rapados e nus atravessávamos o corredor para ir
buscar umas camisas de noite a uma outra sala; em camisa de noite atravessávamos uma
outra porta, para recebermos uns sapatos regulamentares; de sapatos e camisa de noite
desfilávamos pelo pátio fora para chegar a outro edifício onde nos davam as camisas, os
calções, as meias de lã, o cinturão e o uniforme (as divisas do blusão eram negras!); e
chegámos a um último edifício onde um oficial subalterno leu em voz alta os nossos
nomes, nos dividiu em grupos e nos indicou camaratas e
camas.
No mesmo dia fornos chamados a reunir, à refeição da noite, ao deitar; na manhã seguinte,
acordados e levados até à mina; uma vez ali postos, fomos divididos por grupos, em
equipas de trabalho, deram-nos ferramentas (martelo-pilão, pá e lanterna de mineiro) cujo
manejamento todos nós desconhecíamos; em seguida, a gaiola-elevador levou-nos para
debaixo da terra. Quando voltámos para cima com o corpo dorido, os
oficiais que nos esperavam mandaram-nos pôr em fila e levaram-nos para o quartel;
almoçámos e à tarde houve um exercício de ordem intensivo, trabalhos de limpeza,
educação política, canto obrigatório; à laia de intimidade, a camarata e as suas vinte
tarimbas. E os dias sucederam-se todos em conformidade. A despersonalização que nos
infligiam parecia perfeitamente opaca nos primeiros dias. Impessoais, impostas, as funções
que exercíamos substituíram todas as manifestações humanas; esta opacidade era,
evidentemente, muito relativa até porque derivava não só das circunstâncias reais mas de
um defeito de habituação da vista (como quando se passa de uma zona iluminada para uma
zona escura); com o tempo, ela iria lentamente dissipar-se e, mesmo com a penumbra de
despersonalização, o humano nos homens tornou-se pouco a pouco perceptível. Devo
confessar que fui um dos últimos a saber acomodar o meu olhar a essa mudança de
iluminação.
Isto porque todo o meu ser recusava aceitar o que lhe caíra em cima. Os soldados com
divisas negras, entre os quais eu me contava, praticavam sem armas os únicos exercícios de
ordem intensivos e trabalhavam no fundos dos poços da mina. O seu trabalho era
remunerado (o que, neste aspecto, era uma vantagem relativamente aos outros soldados),
mas para mim era pouca consolação quando eu pensava que éramos todos gente a quem a
jovem república socialista se recusava a entregar uma
espingarda por os considerar seus inimigos. Consequentemente, como é evidente, eram
tratados com maior crueza e pesava sobre eles a ameaça de um prolongamento do seu
tempo de serviço para lá dos dois anos da
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lei; no entanto, O que mais me assustava era o simples facto de me encontrar entre aqueles
que eu considerava meus inimigos declarados, e de para aqui ser enviado por decisão dos
meus próprios camaradas. Foi assim que passei os primeiros tempos da minha existência no
seio dos negros, numa solidão obstinada; eu não queria dar-me com os meus inimigos.
Quanto às saídas, era muito difícil nessa época (o soldado não tinha qualquer direito, elas
eram-lhes concedidas a título de recompensa), mas eu, enquanto os soldados corriam em
grupos as tascas e as mulheres, por mim preferia ficar só no meu canto; estendido na minha
tarimba, tentava ler ou estudar (aliás, quando se é matemático, basta um lápis e uma folha
de papel) e consumia-me na minha incapacidade de adaptação; julgava-me então investido
de uma única obrigação: prosseguir a luta pelo meu direito a "não ser um inimigo", pelo
meu direito a sair dali.
Por várias vezes fui ter com o comissário político da unidade e tentei convencê-lo de que a
minha presença entre os negros era resultado de um erro; que eu tinha sido excluído do
Partido por intelectualismo e cinismo, mas não por ser inimigo do socialismo; expliquei
vezes sem conta (quantas nem sei) a ridícula história do postal, a qual já nem era tão
ridícula, mas, ligada às minhas divisas negras, se apresentava cada vez mais duvidosa e
parecia ocultar qualquer coisa que eu calava. Devo, no entanto, à verdade dizer que o
comissário me ouviu pacientemente e sempre mostrou uma compreensão quase inesperada
relativamente à minha necessidade de justificação; ele acabara por levar o caso a uma
instância mais alta (misteriosa topografia), mas por fim tinha acabado por me chamar para
me dizer com amargura sincera: "Porque tentaste enganar-me? Agora sei que és um
trotskista."
Comecei a compreender que não havia hipótese de rectificar a imagem da minha pessoa,
depositada como estava num supremo tribunal de instância dos destinos humanos; acreditei
que essa imagem (ainda que tão pouco parecida) era infinitamente mais real que eu próprio;
e ela não era de modo algum a minha sombra, mas que era eu a sombra dela; que não era
possível acusá-la de não se parecer comigo, mas que eu é que tinha a culpa de não me
parecer com ela; e essa não parecença era a minha cruz, que eu não podia descarregar sobre
ninguém e estava condenado a transportar.
No entanto, não quis capitular. Quis verdadeiramente carregar a minha dissemelhança:
continuar a ser aquele que tinham decidido que eu era.
Precisei de quinze dias para me habituar como pude ao esgotante trabalho na mina, as mãos
crispadas sobre um pesado martelo-pilão cuja vibração me abanava a carcaça até à manhã
seguinte. Fosse como fosse,
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eu trabalhava honestamente e com uma espécie de frenesim; estava resolvido a conseguir


um rendimento de trabalhador de choque e depressa o consegui praticamente.
O pior é que ninguém viu nisso uma manifestação da minha convicção: éramos todos pagos
pelo trabalho feito (o preço da nossa alimentação e alojamento era-nos deduzido, é certo,
mas não deixávamos de ganhar menos mal), por isso, fosse qual fosse a opinião de cada
um, muitos trabalhavam no duro a fim de arrancar àqueles anos perdidos ao menos
qualquer coisa de útil.
Ainda que nos considerassem unanimemente inimigos confirmados do regime, todas as
formas de vida pública corrente nas colectividades socialistas eram praticadas no quartel;
nós, inimigos do regime, organizávamos reuniões improvisadas de dez minutos sob o
controlo do comissário político, participávamos diariamente em conversas sobre temas
políticos, tínhamos a responsabilidade dos jornais de parede em que colávamos fotografias
de políticos socialistas enfeitadas à mão com palavras de ordem sobre o futuro radioso. Ao
princípio, foi quase com ostentação que me
ofereci para esses trabalhos. Mas isso também não serviu para provar nada aos olhos de
ninguém: outros se ofereciam para as mesmas coisas quando precisavam de chamar a
atenção do chefe ou de conseguir licença para sair. Nenhum dos soldados encarava esta
actividade política enquanto tal, mas apenas como uma artimanha sem sentido que era
preciso executar perante aqueles que nos dominavam.
Acabei por compreender que a minha revolta era ilusória, que a minha dissemelhança só
era perceptível para mim próprio, e invisível para os outros.
Entre os oficiais subalternos que mandavam em nós havia um pequeno eslovaco de cabelos
pretos, um cabo que se distinguia pela sua moderação e total ausência de sadismo. Era bem-
visto pelos nossos, embora alguns maldizentes pretendessem que a sua bonomia era apenas
estupidez. Ao contrário de nós, os oficiais subalternos andavam armados e de vez em
quando iam atirar. Um dia, o cabo baixinho tinha voltado do campo de tiro com todas as
honras porque, segundo se dizia, totalizara o máximo de pontos. Imensa gente o foi
cumprimentar (em parte por simpatia, em parte por brincadeira); o cabo corava de vaidoso.
Nesse dia, por acaso, encontrei-me sozinho com ele. Para meter conversa perguntei-lhe:
"Como é que você faz para ter tanta pontaria?"
O pequeno cabo fixou-me antes de responder: "Tenho um truque especial. Penso: aquilo
não é um alvo, é um imperialista. Então furiosamente acerto no vinte!"
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Ardia de curiosidade para saber que espécie de criatura humana ele conceberia sob esse
conceito abstracto de imperialista, quando ele, antecipando-se à minha pergunta, disse,
grave e pensativo: "Não sei porque é que vocês me cumprimentam. Sim, porque se
estivéssemos em
guerra, era sobre vocês que eu atiraria!"
Quando ouvi isto da boca daquele ser cândido que nunca levantara a voz para nos
repreender - razão que levou à sua transferência mais tarde - compreendi que o fio que me
tinha ligado ao Partido e aos cama-
radas acabava de se partir irrevogavelmente. Eu era projectado para fora do caminho da
minha vida.
56

vi
Sim. Todos os fios estavam quebrados. Quebrados os estudos, a participação no
movimento, o trabalho, as amizades, quebrados o amor e a busca do amor, quebrado, numa
palavra, todo o curso, com sentido, da minha vida. Apenas me restava o tempo. Este, em
contrapartida, aprendi a conhecê-lo com uma intimidade totalmente nova. Não era já esse
tempo que antes me era familiar, transformado em trabalho, em amor, em toda a espécie de
esforços possíveis, um tempo que eu aceitava distraidamente porque ele próprio era
discreto, apagando-se delicadamente por detrás das minhas actividades. Ele chegava-me
agora despido, tal e qual, sob a sua aparência original e verdadeira, e forçava-me a chamá-
lo pelo seu nome (visto que agora eu vivia o tempo puro, um tempo puramente vazio), para
que eu não o esquecesse um só instante, pensasse permanentemente nele, experimentasse
sem ces-
sar o seu peso.
Quando se ouve uma música, nós captamos a melodia, esquecendo que ela é apenas um dos
modos do tempo; se a orquestra se cala, nós ouvimos o tempo; o tempo em si mesmo. Eu
vivia uma pausa. Não, decerto, uma pausa da orquestra (cuja duração é nitidamente
definida por um sinal convencional), mas uma pausa ilimitada. Não nos era permitido
(como se fazia em todas as outras unidades) ir cortando as divisões de uma fita métrica para
marcar cada dia a redução do nosso serviço militar: para os negros, o serviço podia durar
tanto tempo quanto julgassem bom. Ambroz, um homem de quarenta anos da segunda
companhia, já estava no seu quarto ano.
Estar no serviço activo quando se tinha em casa uma mulher ou uma namorada era coisa
bem amarga; era vigiar continuamente em pensamento a sua existência incontrolável. Era
também alegrar-se constantemente com
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a ideia da sua visita (tão rara!) e tremer de medo com a hipótese da recusa do comandante
em deixar sair nesse dia e que a mulher batesse com o
nariz na porta. Entre eles, os negros (com o seu humor negro) contavam que os oficiais
esperavam essas mulheres de soldados insatisfeitas abordando-as para recolher os frutos de
um desejo que deveria ter pertencido aos homens fechados no quartel.
E no entanto, para os que tinham uma mulher em casa, um fio atravessava a pausa, talvez
ténue, talvez angustiantemente frágil e pronto a partir-se, mas fio apesar de tudo. Esse fio,
eu não o tinha; rompera com Marketa e se algumas cartas recebia, eram da minha mãe... E
não era
um fio, esse?
Não; quando a casa é a casa dos pais não é um fio; é apenas o passado: as cartas que nos
chegam dos pais são mensagens de um continente
de que te afastas; pior, essa espécie de cartas não cessa de repetir-te que te extraviaste, ao
lembrar-te o porto donde partiste em condições tão honesta e laboriosamente reunidas; sim,
diz-te uma tal carta, o porto continua lá, imóvel, seguro e belo na sua antiga aparência, mas
o rumo, o
rumo perdeu-se!
Tinha-me assim habituado a pouco e pouco ao facto de a minha vida ter perdido a sua
continuidade, ter-me caído das mãos, não me restando outra coisa senão começar enfim a
ser, mesmo no meu foro íntimo, aí onde me encontrava realmente e sem apelo. E,
gradualmente, a minha vista acomodou-se a esta penumbra de despersonalização e comecei
a distinguir as pessoas à minha volta; com um certo atraso sobre os outros, mas não tão
grande, felizmente, que me tivesse tornado um estrangeiro para eles.
O primeiro a surgir dessa penumbra (tal como hoje emerge primeiro da penumbra da minha
memória) foi Honza, um rapaz de Brno (que falava o seu calão suburbano quase
ininteligível), caído no meio dos negros por ter espancado um polícia. Tinha-lhe dado uma
sova porque era um antigo colega da faculdade e tinham discutido, só que o tribunal não
aceitou a explicação e Honza tinha apanhado com seis meses de prisão antes de vir aqui ter.
Ajustador especializado, era evidente que tanto lhe fazia voltar ao seu emprego como vir a
fazer qualquer coisa; não estava ligado a nada e manifestava, frente ao seu futuro, uma
indiferença cheia de liberdade.
Quanto a esse raro sentido de liberdade, só Bedrich, o tipo mais estranho da nossa camarata
de vinte, podia medir-se com Honza; ele só se tinha juntado a nós dois meses depois da
incorporação normal de Setembro, porque estivera primeiro numa unidade de infantaria
onde se recusara,
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obstinadamente, a pegar numa arma por ser contrário aos seus princípios religiosos; não
sabiam o que lhe haviam de fazer, sobretudo depois de terem interceptado cartas suas
dirigidas a Truman e a Estaline nas quais, em tom patético, exortava os dois homens de
Estado a dissolverem todos os exércitos em nome do futuro da fraternidade socialista;
embaraçados, os seus superiores tinham a princípio autorizado a sua participação nos
exercícios de ordem intensivos, de modo que, único sem
arma no meio dos soldados, ele executava as ordens de comando de "ornbro arma" com
impecável perfeição, mas de mãos vazias. Também tomara parte nas primeiras sessões de
instrução política, apressando-se a pedir a palavra para criticar -às mil maravilhas os
fautores de guerra imperialistas. Porém, quando tomou a iniciativa de fazer e afixar na
caserna um cartaz que apelava à deposição de todas as armas, o procurador militar mandou
acusá-lo de rebelião. Os juizes, no entanto, ficaram tão perturbados pelas suas exortações
em defesa da paz que ordenaram um exame psiquiátrico, hesitaram longamente antes de o
absolver e mandaram-no para o nosso grupo. Bedrich era feliz: único voluntário para as
divisas negras, estava radiante de as ter conquistado. Eis porque se sentia livre - embora
nele tal sentimento se não manifestasse de forma insolente, como no caso de Honza, mas,
bem ao contrário, sob a aparência de uma disciplina calma e de um ardor sereno no
trabalho.
Todos os outros eram mais angustiados: Varga, trinta anos, húngaro da Eslováquia, que,
ignorando os preconceitos de nacionalidade, tinha feito a guerra em vários exércitos
sucessivos e tinha conhecido diversos campos de prisioneiros dos dois lados da frente;
Petran, um ruivo cujo irmão tinha fugido para o estrangeiro abatendo de passagem um
guarda-fronteira; José, o simples de espírito, filho de um agricultor rico do vale do Elba
(demasiado acostumado à vastidão da planície, sufocava agora de medo perante a
perspectiva do inferno dos poços e das galerias); Stana, vinte anos, um dandy de um
arrabalde operário de Praga, que o comité nacional do seu bairro tinha presenteado com um
relatório tremendo por se ter, segundo parece, embebedado no desfile no 1.' de Maio e ter
depois urinado de propósito à beira do passeio, à vista dos cidadãos animadíssimos; Petr
Pekny, estudante de Direito, que, durante as jornadas de Fevereiro, tinha ido, com um
punhado de condiscípulos, manifestar contra os comunistas (depressa deve ter
compreendido que eu pertencia ao campo daqueles que o tinham expulso da sua faculdade
depois de Fevereiro e era o único que me mostrava a sua venenosa satisfação por me ver
agora no mesmo barco do que ele).
59

Eu poderia aqui evocar a recordação de outros soldados que partilharam a minha sorte, mas
prefiro ater-me ao essencial: Honza era aquele de que eu gostava mais. Lembro-me de uma
das nossas primeiras con-
versas; durante um intervalo, encontrámo-nos os dois (comendo uma bucha) ao lado um do
outro e Honza deu-me uma palmada no joelho: "E tu, surdo-mudo, afinal quem és tu?"
Surdo-mudo, era o que eu era então (voltado para os meus eternos debates interiores) e,
laboriosamente, tentei explicar-lhe (em termos que logo senti artificiais e rebuscados) como
tinha ali chegado e porque não deveria ali estar, afinal. Ele disse-me: "ó meu palerma! Nós
o que é que estamos aqui a fazer? " Uma vez mais quis explicar-lhe o meu ponto de vista
(procurando termos mais simples) e Honza, acabando de engolir, disse-me pausadamente:
"Se eu fosse tão alto como tu és parvo, o sol queimava-me os miolos. " Através desta frase,
o espírito plebeu dos subúrbios troçava na minha direcção e de repente senti vergonha de
estar sempre a invocar, como um menino mimado, os meus privilégios perdidos, quando
afinal eu tinha edificado as minhas convicçôes sobre a recusa dos privilégios.
A pouco e pouco fui-me aproximando de Honza (ele concedia-me a sua estima porque eu
sabia resolver de cabeça os problemas de contas ligados ao pagamento do salário, evitando
assim mais de uma vez que nos aldrabassem); um dia, ele riu-se do meu hábito de ficar no
quartel a criar bolor como um idiota em vez de aproveitar as licenças, e arrastou-me com o
seu grupo. Lembro-me muito bem dessa saída; éramos um belo molho, talvez uns oito, ia o
Stana, o Varga e também Cenek, um rapaz das artes decorativas com os estudos
interrompidos (tinha vindo para os negros por causa dos quadros cubistas que insistia em
pintar na escola; agora, pelo contrário, talvez para sacar algum benefício por aqui e por ali,
decorava a carvão todo o quartel com enormes desenhos de guerreiros hussitas com
multidões e fiagelos de armas). Não tínhamos muitos sítios para onde ir: o centro da cidade
de Ostrava não nos era permitido; só alguns bairros nos eram autorizados e, nesses,
determinadas tascas. Chegados'ao arrabalde vizinho, a sorte favoreceu-nos: havia um serão
dançante na sala desafectada de um ginásio que não caía sob nenhuma proibição. Por um
preço de entrada insignificante, enflámo-nos por ali dentro. A grande sala continha imensas
mesas e cadeiras, mas pouca gente: ao todo umas dez raparigas; cerca de trinta homens,
metade deles militares vindos do quartel de artilharia de ali perto; quando nos aperceberam,
ficaram alerta e nós sentimos na pele que nos examinavam e nos avaliavam. Instalámo-nos
numa longa mesa que estava livre e encomendámos uma garrafa de vodca, mas a
empregada disse secamente que era proibido vender álcool e então
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Honza encomendou oito limonadas; depois cada um deu-lhe um talão e dez minutos depois
ela voltou com três garrafas de rum que iam melhorar, por baixo da mesa, os nossos copos
de limonada. Fazíamos isso com o máximo de discrição, porque os artilheiros nos
observavam de perto e sabíamos que eles não hesitariam em revelar o nosso consumo
clandestino de álcool. As formações armadas, é preciso que se diga, eram-nos
profundamente hostis: por um lado, os seus membros consideravam-nos elementos
suspeitos, assassinos, criminosos e inimigos prontos a (segundo a literatura de espionagem
em voga na época) massacrar à traição as suas inocentes famílias, e por outro lado ainda
(isto devia ser o mais importante) tinham inveja do dinheiro que nós tínhamos e que nos
permitia ter cinco vezes mais coisas do que eles.
A nossa situação era, com efeito, singular: a nossa vida era só cansaço e complicação, todos
os quinze dias rapavam-nos a cabeça com medo de que, com os cabelos, nos nascesse
alguma segurança deslocada, éramos deserdados que nada esperavam de bom da existência,
mas dinheiro tínhamos. Não muito, mas, para um soldado com duas saídas mensais,
representava uma fortuna que lhe permitia durante essas poucas horas de liberdade (nesses
raros lugares autorizados) portar-se como um ricaço e compensar assim a impotência
crónica dos outros intermináveis dias.
Enquanto num estrado uma orquestra medíocre de metais debitava valsas e poicas para dois
ou três pares que rodopiavam na pista, nós cobiçávamos tranquilamente as raparigas e
beberricávamos a nossa limonada, cujo pequeno travo de álcool nos punha de momento
acima de todos os outros; estávamos de excelente humor; eu sentia subir-me à cabeça uma
sociabilidade alegre, um sentimento de boa fraternidade entre companheiros que não
voltara a viver desde as últimas sessões com Jaroslav e a sua orquestra com címbalo. No
intervalo, Honza concebera um plano para sacar o máximo de raparigas aos artilheiros. O
plano era tão bom corno simples e imediatamente passámos à sua execução. Cenek
mostrou-se o mais decidido a pôr mãos à obra e, fanfarrão e gozão como era, para nos
divertir, ele desempenhava o seu papel com ostentação: convidou para dançar urna morena
muito pintada, que a seguir trouxe para a nossa mesa; pediu para ele e para ela uma
limonada com rum dizendo-lhe com ar
subentendido: "Então está cornbinado"; a morena concordou e bebeu um golo. Um
badameco que passava com as suas divisas de cabo nos ombros da sua farda de artilheiro
parou em frente da morena e com os modos mais grosseiros que arranjou disse a Cenek:
"Dás licença? - Com certeza, maninho!", consentiu Cenek. Enquanto a morena se
saracoteava ao ritmo imbecil de uma polca com o cabo apaixonado, Honza tinha ido
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telefonar a pedir um táxi; daí a dez minutos o táxi tinha chegado e Cenck dirigira-se à saída.
A morena acabou a dança, disse ao cabo que ia à casa de banho e logo a seguir oüviu-se um
carro arrancar. Depois do sucesso de Cenek foi a vez do velho Ambroz, que arrancou uma
mulher já um
pouco entrada e de péssimo aspecto (o que não impedira quatro artilheiros de lhe fazer um
cerco assíduo); ao fim de dez minutos, um táxi chegou e Ambroz fugiu com a rapariga e
com Varga (que afirmava que nenhuma quereria segui-lo), para irem ter com Cenek a uma
tasca com-
binada na outra ponta de Ostrava. Dois dos nossos conseguiram ainda arrancar uma
rapariga e só estávamos três no ginásio: Stana, Honza e eu. O olhar dos artilheiros era cada
vez mais furioso, porque começavam a suspeitar da relação entre a redução do nosso
efectivo e a desaparição das três mulheres do seu terreno de caça. Bem podíamos fazer
caras inocentes, sentíamos que havia pancadaria no ar. "E agora um último táxi para uma
retirada honrosa", disse eu, observando nostalgicamente uma
loura com quem conseguira dançar uma vez ao princíp@o da noite, sem
ousar propor-lhe que viesse comigo; contava fazê-lo na dança seguinte, mas os artilheiros
acarinhavam-na tanto que me fora impossível abordá-Ia. "É inútil insistir", disse Honza e
levantou-se para telefonar. Mas quando ele atravessava a sala, os artilheiros levantaram-se
das mesas e puseram-se à sua volta. Sim, chegara a hora da zaragata, ela ia rebentar e não
nos restava já, a Stana e a mim, senão deixar a mesa e ir em socorro do camarada
ameaçado. Um grupo de artilheiros cercava Honza em silêncio, quando de repente irrompeu
de entre eles um sargento-ajudante meio grosso (também devia ter uma garrafa escondida
debaixo da mesa) que cortou este inquietante silêncio: começou com um sermão, que o seu
pai tinha sido desempregado antes da guerra e que ele não podia olhar para estes burgueses
de merda que se divertiam com as suas divisas negras, que estava farto deles e que era
preciso que os camaradas o agarrassem para não ir à cara daquele. Honza aproveitou um
curto silêncio no discurso do sargento para perguntar educadamente o que os camaradas
artilheiros lhe queriam. Que se ponham daqui a andar depressa, disseram eles, ao que
Honza respondeu que era exactamente o que íamos fazer, mas que então o deixassem
chamar um táxi! Foi então que o sargento pareceu que ia ter um ataque: Já viram esta
merda, gritava ele em voz esganiçada, nós a esfalfar-nos, e sem dinheiro, enquanto eles, os
capitalistas, os agentes da subversão, os aldrabões, andam de táxi, ali, era o que faltava,
antes esganá-los com estas mãos do que deixá-los sair daqui de táxi!
Todos estavam metidos na discussão; aos tipos fardados juntaram-se civis e o pessoal do
estabelecimento, que temia um incidente. Foi então
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que reparei na minha loura; sozinha à sua mesa (indiferente à controvérsia), vi-a levantar-se
e dirigir-se aos lavabos; afastei-me discretamente e
na entrada onde era o vestuário e as casas de banho (não estava ninguém a não ser a
empregada) dirigi-lhe a palavra; era como uma pessoa que se deita à água sem saber nadar
e por muito que me custasse não podia ficar quieto; procurando nas algibeiras, tirei várias
notas de cem coroas amarrotadas e disse: "Que lhe parece vir daí connosco? Sempre se
goza mais que aqui!" Ela olhou de soslaio para as notas e encolheu os ombros. Acrescentei
que a esperava lá fora, ela concordou e desapareceu para a casa de banho, donde saiu de
casaco vestido; sorriu e disse logo que se via que eu não era como os outros. Gostei de
ouvir aquilo, enfiei o meu braço no dela e puxei-a para atravessar a rua até um ângulo de
onde nos pusemos a espiar a saída de Honza e de Stana em frente do ginásio iluminado com
uma única lanterna. A loura perguntou-me se eu era estudante, e, como disse que sim,
confiou-me que na véspera, nos vestiários da boite, tinham-lhe roubado dinheiro que não
era dela mas da fábrica, e que estava desesperada porque a podiam levar a tribunal por
causa disso: perguntou-me se não podia emprestar-lhe para aí uma nota de cem; procurei no
bolso e dei-lhe duas amarrotadas.
Não esperámos muito tempo, os dois companheiros apareceram de capote e bivaque.
Assobiei para eles, mas no mesmo instante surgiram três outros soldados (sem capote nem
bivaque), que se lançaram em sua perseguição. Senti o tom ameaçador das perguntas, de
que não distinguia as palavras mas adivinhava o sentido; procuravam a minha loira. Depois,
um deles atirou-se a Honza e começaram a brigar. Acorri logo. Se Stana se batia com um
artilheiro, Honza tinha dois pela frente; já estavam a derrubá-lo quando, por sorte, surgi
mesmo a tempo para es-
murrar um dos assaltantes. Eles contavam com a sua superioridade numérica; o ardor inicial
quebrou logo que as forças ficaram iguais; enquanto um deles se estatelou com um murro
de Stana, aproveitámos para nos escapulir.
Dócil, a loira esperava por nós à esquina. Quando a viram, os rapazes entraram em delírio,
declarando-me um craque, e queriam absolutamente abraçar-me. Honza arrancou de dentro
do capote uma garrafa cheia de rum (não sei como conseguiu salvá-la durante a zaragata) e
brandiu-a bem alto. Estávamos na melhor das disposições, a não ser que não sabíamos para
onde ir: acabávamos de ser postos fora de uma tasca, o acesso às outras estava-nos vedado,
rivais enfurecidos tinham-nos impedido de tomar um táxi e, mesmo cá fora, continuávamos
à mercê de uma possível expedição punitiva. Afastámo-nos rapidamente por uma tra-
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vessa; primeiro havia casas dos dois lados, a seguir só um muro de um lado e sebes de
outro; junto de uma sebe estava uma charrete e um pouco mais longe uma espécie de
máquina agrícola com um assento em chapa. "Um trono", disse eu, e Honza decidiu sentar
lá a loira, a um metro do chão. A garrafa passava de mão em mão, bebíamos os quatro, a
loira tornou-se comunicativa e lançou um desafio a Honza: "Aposto que não eras capaz de
me dar cem coroas! " Dito e feito, Honza enfiou-lhe uma nota de cem e enquanto o diabo
esfrega um olho a rapariga estava de casaco levantado e saia arregaçada; segundos depois
tirava as cuecas.
Agarrou-me na mão e procurou puxar-me para ela, mas eu estava assustado, esquivei-me e
empurrei Stana no meu lugar, que sem a mínima hesitação se pôs entre as pernas dela. Não
ficaram juntos mais de vinte segundos; a seguir tentei dar o lugar a Honza (eu queria portar-
me como anfitrião e por outro lado continuava pouco à vontade), mas desta vez
a loira impôs-se, colou-me a si e quando, depois de manobras encorajadoras, a minha
virilidade acordou, ela murmurou ternamente ao meu ouvido: "É por ti que eu aqui estou,
meu palerma", depois pôs-se a suspirar de tal maneira que me deu mesmo a impressão de
que se tratava de uma terna rapariguinha que me amava e que eu amava, e ela suspirava,
suspirava e eu ia na embalagem quando, de repente, a voz de Honza proferiu uma
obscenidade e eu tomei consciência de que ela não era a rapariga que eu amava e afastei-me
dela com tal brusquidão, sem acabar, que a loira quase se assustou e disse: "O que é que te
deu? " Mas Honza já estava com ela e os suspiros retomavam.
Nessa noite só voltámos para o quartel por volta das duas horas. Às quatro e meia tivemos
de nos levantar para o trabalho voluntário do do~ mingo, que representava um bónus para o
nosso chefe e para nós uma saída sábado sim, sábado não. Tínhamos dormido pouco,
tínhamos o corpo encharcado em álcool e, apesar da moleza fantasmática dos nossos
movimentos na penumbra da galeria, eu recordava com prazer a noite que tínhamos
passado.
Quinze dias mais tarde foi menos brilhante; por causa de uma história qualquer, Honza não
teve licença; saí por isso com dois rapazes de outra secção, que só conhecia vagamente. De
seguida fomos ter com uma mulherzinha cujo desproporcionado comprimento lhe tinha
valido o nome de Lampadário. Era um horror, mas não havia nada a fazer: o círculo
feminino de que dispúnhamos era muito reduzido, sobretudo por causa dos nossos poucos
tempos livres. A necessidade de aproveitar, fosse como fosse, os momentos de liberdade
(tão breves e tão raramente concedidos) levava os soldados a preferirem o acessivel ao
suportável. Com o
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tempo, e graças a explorações cujos resultados nos íamos comunicando mutuamente,


tínhamos constituído uma rede (por muito medíocre que fosse) de mulheres mais ou menos
acessíveis (e, verdade se diga, no limite do suportável) para nossa utilização comum.
Lampadário fazia parte desta rede comum; isso não me incomodava minimamente; quando
os dois companheiros se puseram a dizer graças sobre o seu tamanho anormal, repetindo
umas cinquenta vezes que era
preciso descobrir um tijolo para pormos debaixo dos pés quando chegasse o momento da
coisa, ouvi as graças deles como curiosamente agradáveis: elas estimulavam em mim o
violento desejo de mulher; de uma mulher qualquer; quanto menos individualizada, quanto
menos alma, me-
lhor. Ainda bem que era uma mulher qualquer.
Embora eu tivesse bebido muito, a minha fome frenética extinguiu-se quando vi a mulher a
quem chamavam Lampadário. Tudo me pareceu repugnante e vão e, como nem Honza nem
Stana ali estavam, ninguém que me fosse simpático, caí no dia seguinte numa ressaca
tremenda que envenenou retrospectivamente a aventura de quinze dias antes, e jurei a mim
próprio que nunca mais queria uma rapariga sentada em cima de uma máquina agrícola,
como não queria um Lampadário bêbedo...
Algum princípio moral ter-se-ia reanimado em mim? Não, era sim- plesmente repulsa. Mas
porquê repulsa, se horas antes eu sentia um violento desejo de mulher, violência
enraivecida que estava ligada precisamente ao facto de me ser indiferente saber quem seria
essa mulher? Seria mais delicado do que os outros, teria horror às prostitutas? Não: deixei-
me tomar pela tristeza.
Tristeza por descobrir que as aventuras que acabava de viver nada tinham de excepcional,
que eu não as tinha escolhido por luxo, por capricho, por inquieto desejo de tudo conhecer,
tudo viver (o nobre e o
abjecto), mas que elas se tinham tornado a condição fundamental e habitual da minha
existência presente. Que elas circunscreviam rigorosamente a área das minhas
possibilidades, que elas desenhavam com um
traço preciso o horizonte da vida amorosa que de ora em diante me estava destinada. Que
elas exprimiam não a minha liberdade (tal como eu
as teria encarado se me tivessem sido devolvidas por exemplo um ano
antes), mas o meu determinismo, os meus limites, a minha condenação. E tomei-me de
medo. Medo deste lamentável horizonte, medo deste fardo. Sentia a minha alma enrolar-se
sobre si própria, sentia-a recuar e
assustava-me a ideia de que, assim encerrada, ela não teria por onde escapar-se.
65

Vil
A tristeza que emanava do horizonte miserável da nossa vida amo-
rosa, todos ou quase todos a conhecíamos. Bedrich (o autor dos manifestos pela paz)
tentava escapar-lhe para as profundezas meditativas do seu foro interior, onde parecia
morar o seu deus místico; a essa interioridade piedosa respondia, no domínio do erotismo, o
vício solitário que praticava com ritual regularidade. Os outros tinham organizado para si
uma defesa mais falaciosa: completavam a sua cínica caça às pegas com o mais sentimental
dos romantismos; uns tinham em casa um amor que, à força de reminiscência concentrada,
ganhava o brilho mais resplandecente; outros acreditavam na Fidelidade eterna e na Espera
fiel; outros sonhavam em segredo que a rapariga que apanharam já tonta num qualquer café
nutria por eles um amor sagrado. Por duas vezes Stana tinha sido visitado por uma
praguense que conhecera antes de ir para a tropa (e que não tinha com certeza tomado
muito a sério nessa altura); desta vez, todo enternecido, decidiu logo casar com ela. Por
mais que nos dissesse que só o fazia por causa dos dois dias de licença que assim passava a
ter, eu cá sabia que ele estava apenas a armar em cínico. Estávamos no princípio de Março,
o comandante concedeu-lhe as tais quarenta e oito horas, e Stana foi sábado e domingo para
Praga casar-se. Lembro-me com muita precisão porque o dia do casamento de Stana foi
também para mim uma data importante.
Eu tinha tido licença para sair e, como andava triste desde a última saída gasta com o
Lampadário, fui sozinho, evitando os companheiros. Tomara um velho eléctrico que ligava
por via estreita e sinuosa os velhos bairros de Ostrava e deixei-me ir ao acaso. Depois desci
em qualquer lado e, à sorte, tomei outra linha; toda esta periferia interminável de Ostrava,
mistura estranha de oficinas e natureza, campos e lixeiras, tufos de ár-
66

vores e descampados, grandes blocos e pequenas vivendas, atraía-me e


perturbava-me extraordinariamente; deixado o elécrico de vez, comecei um longo passeio a
pé: quase com paixão, contemplava esta paisagem estranha e esforçava-me por lhe decifrar
o sentido; procurava o nome do que confere unidade e ordem a este quadro tão díspar; ao
passar junto de uma casa idílica coberta de hera percebi que era ali o seu lugar, exactamente
porque contrastava tanto com as altas fachadas leprosas que se erguiam a seu lado, como
com as silhuetas das armações, chaminés e altos-fornos que lhe serviam de fundo; caminhei
ao longo de um bairro de lata e vi mais longe urna vivenda, suja e parda, é verdade, mas
com um jardim e um gradeamento à volta; na esquina do jardim, um chorão parecia ter-se
perdido nesta paisagem - e no entanto, pensava eu, é exactamente por isso que é aqui o seu
lugar. Estas incompatibilidades perturbavam-me, não só porque me apareciam como
denominador comum da paisagem, mas sobretudo porque vi nelas a imagem do meu
próprio destino, do meu exílio aqui; e naturalmente: uma tal projecção da minha história
pessoal na objectividade de uma cidade inteira propunha-me uma espécie de consolação; eu
compreendia que não pertencia àqueles lugares, como lhes não pertencia o chorão e a casa
com a hera, como lhes não pertenciam as ruas curtas que levam a lado nenhum, ruas
compostas de construções díspares, eu pertencia tão pouco a esses lugares, dantes
alegremente rurais, como os horríveis bairros de barracões baixos, e dava-me conta de que
era porque não pertencia a esses lugares que era ali o meu lugar, nesta consternante
metrópole das incompatibilidades, nesta cidade cujo amplexo implacável unia tudo o que
era estranho entre si.
Encontrava-me numa longa artéria de Petrkovice, antiga aldeia hoje feita subúrbio de
Ostrava. Parei perto de um edifício pesado de um só piso em cVja, esquina se lia
verticalmente a inscrição: CINEMA. Ocorreu-me uma pergunta fútil como só a um
passeante pode ocorrer: como é que este cinema não tem nome? Olhei atentamente, mas
não havia nada escrito no edifício (que, de resto, em nada se parecia com um cinema).
Entre este e a casa contígua, um espaço de cerca de dois metros formava uma travessa;
meti-me por ela e entrei num pátio; só aí se descobria que o edifício tinha por trás uma ala,
no rés-doichão; na parede havia montras com cartazes publicitários e fotografias de filmes;
aproximei-me, mas também aí nada de nome do cinema; voltei-me e, através do
gradeamento, vi uma rapariguinha no quintal vizinho. Perguntei-lhe como se chamava o
cinema; a miúda olhou para mim com espanto e disse que não sabia. Resignei-me então a
admitir que era anónimo, que neste exílio ostraviano os cinemas não podiam sequer dar-se
ao luxo de ter um nome.
67

Voltei (sem intenção definida) às montras e só então reparei que o filme anunciado no
cartaz e nas duas fotografias era Tribunal de Honra, filme soviético. Esse mesmo cuja
heroína Marketa invocava quando se
deixou tomar pelo desejo de desempenhar na minha vida o papel de misericordiosa, esse
mesmo a cujas severidades os camaradas se referiram quando do processo do Partido contra
mim; tudo isso me tinha feito detestar o filme a ponto de não poder ouvir falar dele; mas eis
que nem
mesmo aqui em Ostrava eu conseguia escapar ao seu dedo acusador... Pois bem, se um
dedo apontado nos desagrada, basta que lhe viremos as costas. Foi o que fiz: ia voltar para a
rua.
Foi então que vi Lúcia pela primeira vez.
Ela avançava na minha direcção; ia entrar no pátio do cinema; porque não terei continuado
o meu caminho ao cruzar-me com ela? Terá sido pela estranha ociosidade do meu
deambular? Terá sido a luz insólita do pátio naquele fim de tarde que me demorou e
impediu de voltar à rua? Ou será que foi o ar de Lúcia? Ar, no entanto, que eu diria vulgar
e, embora essa mesma vulgaridade me tenha tocado e atraído, como explicar que, de
princípio, ela me tenha feito parar? Não tinha eu en-
contrado já tantas raparigas vulgares nos passeios de Ostrava? Onde estaria o invulgar desta
vulgaridade? Não sei. A verdade é que tinha ficado pregado ao chão a olhar a rapariga: com
passos lentos, devagar, dirigiu-se para a montra com as fotografias de Tribunal de Honra,
depois, sempre sem pressa, afastou-se e atravessou a porta que dava para a bilheteira. Sim,
era sem dúvida essa lentidão de Lúcia que me tinha de tal modo encantado, lentidão donde
irradiava o sentimento resignado de que não há fim que mereça que nos precipitemos e que
era inútil es-
tender as mãos impacientes para qualquer coisa. Sim, talvez fosse essa lentidão cheia de
melancolia que me tinha constrangido a seguir com os
olhos a rapariga, enquanto se dirigia à caixa, tirava o dinheiro, pegava no bilhete, olhava de
relance a sala e voltava para o pátio.
Não despreguei os olhos dela. Ela ficou de pé, de costas para mim, a contemplar para lá do
quintal os jardins e as casas rurais rodeadas de pequenas cercas até ao perfil de uma
pedreira escura que, lá no alto, quebrava a perspectiva. (Nunca poderei esquecer esse pátio,
nenhum dos seus
pormenores; lembro a vedação que o separava do quintal vizinho, onde uma rapariguinha
sonhava nos degraus de uma casa; lembro esses degraus com muretes dos lados rematados
por duas floreiras vazias e uma
bacia parda; lembro o sol nimbado que se deitava sobre a pedreira.)
Eram seis menos dez, o que significava que faltavam dez minutos para o começo do
espectáculo. Lúcia tinha-se voltado e, sem se apressar, saiu
68

do pátio para a rua; segui-a; tinha-se fechado atrás de mim o quadro do campo devassado
de Ostrava e era de novo uma rua citadina; a cinquenta passos havia uma pequena praça
bem cuidada, com vários bancos, e no centro um minúsculo gradeamento ajardinado e uma
fraca luz inclinada a dar no tijolo de um edifício falsamente gótico. Observei Lúcia: tinha-
se sentado num banco; a sua lentidão não a abandonara um só instante, quase diria que ela
estava sentada lentamente; não olhava à sua volta, não se mexia, sentada como que à espera
de uma operação cirúrgica ou de qualquer coisa que nos capta de tal modo que, ignorando o
que nos rodeia, nos concentramos no que nos vai dentro: talvez fosse devido a essa
circunstância que pude rondar à sua volta e examiná-la sem que ela desse por isso.
Fala-se muitas vezes de coup defoudre,- bem sei que o amor tende a criar a sua própria
lenda, a mitificar depois os seus inícios, por isso evitarei afirmar que se tratava aqui de um
amor tão súbito; mas desta vez houve realmente uma espécie de vidência; a essência de
Lúcia ou
- se quiser ser rigoroso - a essência do que Lúcia veio a tornar-se para mim, eu tinha-a
compreendido, sentido, visto, de repente e de uma só vez: era ela própria que Lúcia me
tinha trazido como se trazem verdades reveladas.
Olhei-a, observei a sua permanente de aldeia, que lhe desfiava os cabelos numa informe
carapinha, observei o seu casaquito castanho, miserável, coçado e até curto de mais,
observei o seu rosto discretamente bonito, bonitamente discreto, pressenti nessa rapariga
tranquilidade, simplicidade e modéstia, e senti que estes eram os valores de que eu
precisava; pareceu-me aliás que estávamos muito próximos; pareceu-me que bastaria
abordá-la, falar-lhe e que, no momento em que (enfim) ela me olhasse nos olhos, sorriria
como se visse de repente um irmão que não encontrava há anos.
Lúcia levantou então a cabeça; olhou para o relógio da torre (este movimento está para
sempre gravado na minha memória; movimento da rapariga que não tem relógio no pulso e,
por automatismo, se senta sempre em frente de um relógio). Ela deixou o banco e
encaminhou-se para o cinema; quis juntar-me a ela; não me faltava coragem, mas faltaram-
me de repente as palavras; tinha o peito cheio de sensações, mas na cabeça nem uma sílaba;
segui a rapariga até ao controlo, de onde se via a sala deserta. Algumas pessoas entraram e
dirigiram-se para a bilheteira; antecipando-me, comprei um bilhete para o detestado filme.
Foi então que a rapariga entrou na sala; eu fiz o mesmo; neste local meio vazio os números
nos bilhetes não faziam sentido, cada um sentava-
69

1
-se onde queria; enfiei-me na mesma fila que Lúcia e sentei-me ao seu
lado. Então, ecoou a música gritante de um disco cansado, apagaram-se as luzes e
apareceram os anúncios no ecrã.
Lúcia deve ter-se apercebido de que não era por acaso que um soldado de divisas negras se
tinha ido sentar exactamente ao seu lado, decerto tinha pressentido e sentido a minha
presença próxima, tanto mais que eu próprio estava todo concentrado nela; do que se
passava no ecrã eu não registava nada (que vingança irrisória: encantava-me a ideia do
filme, em nome do qual os pregadores de moral tantas vezes me mandaram embora, se
desenrolar agora perante mim sem que eu lhe desse a
mínima atenção).
Terminada a sessão, reacenderam-se as luzes, os raros espectadores deixaram os seus
lugares. Lúcia levantou-se, agarrou no casaco casta-
nho que tinha no colo, e enfiou uma manga. Enfiei rapidamente o boné com medo que ela
visse a minha cabeça rapada, e, em silêncio, ajudei-a a enfiar a segunda manga. Ela olhou-
me brevemente e não disse nada, talvez tenha inclinado ligeiramente a cabeça, mas não
percebi se foi para me agradecer, se um movimento totalmente involuntário. Depois, com
passo miúdo, saiu da fila das cadeiras. Vestindo por minha vez lestamente o meu capote
verde (que me ficava decerto mal, de tão comprido), fui-lhe no encalço. Mal chegáramos à
saída, já eu lhe dirigia a palavra.
Como se duas horas a seu lado, a pensar nela, me tivessem posto na mesma onda, de
repente eu sabia falar-lhe, como se a conhecesse bem; não comecei a conversa com
nenhuma graça daquelas que eram meu cos-
tume, fui completamente natural - o que a mim próprio surpreendeu, visto que, em frente de
raparigas, sempre me exibira debaixo de muitas máscaras.
Perguntei-lhe onde morava, o que fazia, se costumava ir ao cinema. Disse-lhe que
trabalhava nas minas, que era esgotante, que só saía de longe em longe. Ela disse que
estava empregada numa fábrica, que mo-
rava num lar de jovens operárias onde a hora de entrada era às onze, que ia muito ao
cinema porque os bailes não a divertiam. Eu disse que a acompanharia de boa vontade ao
cinema quando ela tivesse uma noite livre. Ela disse que estava habituada a ir sozinha.
Perguntei-lhe se era
por se sentir triste na vida. Ela disse que sim. Eu disse que também não andava alegre.
Nada aproxima mais as pessoas (mesmo que seja uma aproximação enganadora) do que um
encontro triste, melancólico; essa atmosfera de conivencia serena que adormece qualquer
espécie de medos ou resistências e que entendem tanto as almas sensíveis como as outras,
representa
70

o modo mais fácil de aproximação, no entanto tão raro: com efeito, torna-se necessário
afastar essa "pose mental" que compusemos, os gestos e as mímicas fabricados, e
comportar-nos com simplicidade; ignoro como cheguei aí (assim, sem preparação), como
tinha conseguido chegar a isso, eu que andava sempre às apalpadelas como um cego atrás
das minhas máscaras; não sei; mas senti isso como um dom inesperado, urna libertação
miraculosa.
Dizíamos um ao outro de nós mesmos as coisas mais simples; fomos a pé até ao lar dela e
aí parámos por momentos; uma luz inundava Lúcia e eu olhava o seu casaquinho castanho
e afagava não a sua cara ou os seus cabelos, mas o tecido gasto desse comovente vestuário.
Recordo ainda que o candeeiro balançava de um lado para outro, que à nossa volta
passaram, com grandes risos desagradáveis, raparigas que abriram a porta do lar, revejo a
perspectiva vertical do prédio, as suas paredes cinzentas e nuas, com janelas sem cantarias;
recordo ainda o rosto de Lúcia, que (comparado com o de outras raparigas que eu
conhecera em circunstâncias semelhantes) permanecia totalmente tranquilo, sem
perturbação, evocando a expressão dum aluno ao quadro que se limita à simples exposição
(sem obstinação amuada e sem astúcia) do que sabe, sem pensar nem na nota nem no
elogio.
Combinámos que lhe mandaria um postal para dizer quando tivesse nova licença e nos
pudéssemos rever. Separámo-nos (sem nos beijarmos, sem nos tocarmos) e fui-me embora.
Uns passos adiante voltei-me, e vi-a no patamar, de chave na mão, imóvel, a olhar para
mim; só agora, que eu me afastara, ela tinha abandonado a sua reserva, e os seus olhos (até
então tímidos) fixavam-me longamente. Em seguida, ela levantou a mão à maneira de quem
nunca fez um gesto assim, não sabe como fazê-lo, apenas sabe que se agita a mão em sinal
de adeus, e por esta razão decidiu desajeitadamente arriscar o gesto. Eu parara e retribuí o
seu gesto; tínhamo-nos olhado de longe, eu tornara a andar para parar de novo (Lúcia
continuava o seu movimento de mão), e assim docemente fui-me afastando até à esquina,
que nos escondeu um do outro.
71

VIII
A partir dessa noite, tudo em mim se transformou; eu estava de novo habitado; subitamente
alguém me tinha arrumado como um quarto e habitava nele. O relógio de parede, com os
ponteiros paralisados há meses, pôs-se de novo a fazer tiquetaque. Era importante: o tempo,
que até aí escorria como uma corrente indiferente, de nada em direcção a nada (porque eu
estava numa pausa), sem balizas, sem medidas, pouco a pouco retomava o seu rosto
humanizado: recomeçava a articular-se e a descontar-se. Comecei de súbito a dar
importância às licenças para sair e os dias tornaram-se degraus de uma escada que eu subia
para encontrar Lúcia.
Nunca depois disso dediquei a uma mulher tantos pensamentos, tanta atenção silenciosa
(não tive de resto nunca mais tanto tempo para isso). Nunca outra mulher acendeu em mil
tal gratidão.
Gratidão? De quê? Lúcia, para já, arrancava-me ao círculo do lamentável horizonte
amoroso que nos encerrava a todos. Claro, os recém-casados, o próprio Stana, tinham a seu
modo rompido o cerco; ele tinha em casa, em Praga, a mulher que amava e em quem podia
pensar. No entanto, não havia razões para invejá-lo. Ao casar, ele tinha posto em marcha o
destino, mas, desde que entrava no comboio para regressar a Ostrava, deixava por completo
de ter mão nele.
Por ter descoberto Lúcia, também eu tinha posto em marcha o meu destino, mas não o perdi
de vista; ainda que espaçados, os meus encon-
tros com Lúcia tinham uma periodicidade quase regular e eu sabia-a capaz de esperar por
mim quinze dias ou mais e de me acolher depois como se nos tivéssemos separado na
véspera.
Mas Lúcia não me tinha apenas libertado da náusea geral provocada pelo desespero das
aventuras amorosas de Ostrava. Eu já sabia. é certo,
72

que tinha perdido o meu combate e que nada podia fazer às minhas divisas negras, sabia
que era absurdo tentar fechar-me dentro de mim perante homens com quem tinha de passar
dois anos ou mais, que era absurdo reivindicar o direito de fazer o meu próprio caminho (de
que começava a descobrir o aspecto privilegiado), mas esta mudança de atitude era devida à
razão e à vontade e, portanto, incapaz de estancar as lágrimas interiores que eu chorava
pelo meu destino perdido. Essas lágrimas, acalmou-as Lúcia como que por encanto.
Bastava-me senti-Ia a
meu lado, com aquela sua vida em que cosmopolitismo e internacionalismo não tinham
lugar, nem a vigilância, nem a luta de classes, nem as controvérsias sobre a ditadura do
proletariado, nem a política, com.
a sua estratégia e a sua táctica.
Foi sobre essas preocupações (tão perfeitamente datadas que em breve o seu palavreado se
tornará ininteligível) que o meu naufrágio se dera: e era justamente a elas que me sentia
agarrado. Chamado a comparecer perante diversas comissões, tive ocasião de apresentar
dezenas de motivos que me tinham aproximado do comunismo, mas o que, no movimento,
me fascinava acima de tudo, a ponto de me encantar, era o troço da Hist6ria, de que estive
próximo (ou assim o pensava). Com efeito, nós podíamos realmente decidir a sorte das
pessoas e das coisas; e isso precisamente nas universidades: como nesse tempo os membros
do Partido nas assembleias de professores se contavam pelos dedos de uma mão, os
estudantes comunistas, nesses primeiros anos, dirigiam praticamente sozinhos as
universidades, decidindo acerca das nomeações de professores, da reforma do ensino e dos
programas. A euforia que experimentávamos chama-se normalmente bebedeira do poder,
mas com boa vontade poderei encontrar termos menos severos: estávamos encantados pela
História; entontecido5 por montar o cavalo da História, por sentir o seu
corpo sob o nosso; na maior parte dos casos, era de uma pura e simples sede de poder que
se tratava, mas (porque todas as coisas humanas são ambíguas) havia naquilo também a
bonita ilusão de que estávamos a inaugurar a era em que o homem (cada um dos homens)
não mais estaria fora da História, nem debaixo dela, mas estava a moldá-la e a conduzi-Ia.
Eu estava convencido de que, fora dessa perspectiva da História, a
vida não era mais do que semimorte, tédio, exílio, Sibéria. E eis que agora (ao fim de seis
meses de Sibéria) eu entrevia de repente uma hipótese de existir, nova e inesperada:
estendia-se diante de mim, dissimulada sob a asa da História em pleno voo, o verde campo
esquecido do quotidiano onde uma mulher pobre e modesta, digna de amor, no entanto, me
esperava: Lúcia.
73

O que podia Lúcia conhecer dessa grande asa da História? Não mais que um ruído
amortecido que lhe tivesse tocado os ouvidos. Ela ignorava tudo sobre a História; vivia sob
ela; não a desejava, ela não conhecia os problemas grandes e temporais, vivia para os seus
problemas pequenos e eternos. E eu, de repente, vi-me libertado; parecia-me que ela tinha
vindo buscar-me para me levar para o seu paraiso incolor, e o passo que, momentos antes,
me parecera perigosíssimo, o passo que me levara "para fora da História", tornou-se para
mim, de repente, o passo da serenidade e da alegria. Tímida, Lúcia pegava-me no braço e
eu deixava-me levar...
Lúcia era a minha obreira parda. Mas quem era Lúcia em termos mais concretos? Ela tinha
dezanove anos, mas na realidade tinha mais, como acontece às mulheres que tiveram uma
vida difícil e que foram atiradas de cabeça da infância para a idade adulta. Ela dizia que
tinha nascido em Cheb, que tinha andado na escola até aos catorze anos, antes de en-
trar para um estágio de formação. Da família não gostava de falar e, se o fazia, era só
quando a forçava a isso. Não fora feliz em casa: "Os
meus não gostavam de mim", dizia dando exemplos: a mãe tinha tor-
nado a casar; o padrasto bebia e tratava-a mal; uma vez tinham-na acusado de tirar
dinheiro; e batiam-lhe ainda por cima. Quando o mal-estar
chegou a um certo ponto, Lúcia aproveitou uma oportunidade para fugir para Ostrava. Vive
aqui há mais de um ano; tem umas amigas; mas prefere sair sozinha; as amigas vão dançar
e levam o namorado para o lar; e ela não gosta disso; é séria: prefere ir ao cinema.
Sim, ela considerava-se "séria" e ligava essa qualidade ao seu gosto pelo cinema; apreciava
sobretudo filmes de guerra, que passavam muito na altura; talvez ela os apreciasse por
serem interessantes, mas talvez fosse pelos muitos sofrimentos de que estavam recheados,
de que Lúcia bebia as imagens cheias de dor e aflição, sentimentos que ela julgava próprios
para a sua elevação e para confirmar o lado "sério" que gostava que fosse
o seu.
É claro que seria errado pensar que foi apenas o exotismo da sua simplicidade que me
atraiu em Lúcia; a sua ingenuidade, as lacunas da sua instrução não a impediam de me
entender perfeitamente. Essa compreensão não resultava nem de experiência, nem de saber,
nem de uma capacidade para discutir um problema ou dar um conselho, mas de uma
receptividade intuitiva que ela punha a escutar-me. Lembro-me de um dia de Verão: eu
tinha saído do quartel mais cedo do que Lúcia do seu trabalho; pegara num livro; sentado
num muro, estava a ler; no que dizia respeito à leitura as coisas não iam bem, eu tinha
74

pouco tempo e perdera o contacto com os meus amigos de Praga; mas


na minha bagagem de recruta trouxera três recolhas de versos que relia sem cessar,
buscando neles conforto: eram poemas de Frantisek Halas.
Esses livros desempenharam na minha vida um papel singular, já porque não sou leitor de
poesia e porque foram os únicos livros de versos a que alguma vez me liguei. Descobri-os
depois da minha exclusão do Partido; nessa época o nome de Halas voltara a ser falado
porque o principal ideólogo dessa altura tinha acusado o poeta, desaparecido há pouco
tempo, de morbidez, falta de fé, existencialismo e tudo o mais que então justificava o
anátema político. (A obra em que reunira as suas opiniões sobre poesia checa e sobre Halas
tinha saído com uma tiragem enorme e era texto obrigatório em milhares de círculos de
juventude.) Ainda que isto possa parecer ridículo, confesso-o: a minha procura dos versos
de Halas era motivada pelo desejo de conhecer um outro excomungado; eu queria saber se
o meu universo mental se parecia de facto com o seu. Queria tentar vez se a tristeza,
classificada de patológica e perniciosa pelo influente ideólogo, não poderia, por
consonância com a minha, provocar em mim uma forma de alegria (visto que, na minha
situação, a alegria, eu não poderia procurá-la na alegria). Eu tinha, antes de partir para
Ostrava, pedido os três pequenos volumes a um antigo condiscípulo, adepto de literatura,
conseguindo à força de argumentos que ele não exigisse a sua restituição.
Quando Lúcia, nesse dia, me encontrou no lugar combinado com um
livro na mão, perguntou o que estava eu a ler. Passei-lhe o livro aberto. "Poetrias, disse ela
espantada. - Parece-te estranho que eu leia poesia?" Encolhendo os ombros, respondeu:
"Porquê?" Mas julgo que a sua sur-
presa era real, porque provavelmente a poesia se confundia no seu espírito com leitura para
crianças. Andávamos a passear sob esse estranho Verão ostraviano cheio de fuligem, um
Verão negro percorrido lá no alto, como se fossem nuvens, por cestos de hulha a deslizar
nos seus longos cabos. Com o livro na mão, eu via que ele a seduzia. Por isso, quando nos
sentámos num bosquezito ralo, abri-o de novo e perguntei-lhe: "Então, interessa-te?" Fez
que sim, com a cabeça.
Eu nunca tinha na vida lido versos a ninguém; tenho incorporado um sistema aperfeiçoado
de curto-circuito pró-pudor que evita que me desnude perante as pessoas e exiba os meus
sentimentos; ora, para mim, ler versos não é só como se falasse dos meus sentimentos, mas
como se, ao fazê-lo, me estivesse a equilibrar sobre um pé só; qualquer coisa de
compassado, o próprio princípio do ritmo e da rima me havia de embaraçar se a isso me
entregasse sem estar só.
75

Mas Lúcia tinha esse poder mágico (que depois dela ninguém mais teve) de fazer funcionar
o interruptor e levantar os meus escrúpulos. Ã frente dela eu podia permitir-me tudo: até a
sinceridade, o sentimento, o patético. Por isso li:
Estreita espiga o teu corpo De onde o grão não germinará Como uma espiga estreita é o teu
corpo
Novelo de seda o teu corpo Com o desejo inscrito nele até à última ruga Como um novelo
de seda é o teu corpo
Céu queimado o teu corpo Na sua trama a Morte espreita e sonha Como um céu queimado
é o teu corpo
Silêncio único é o teu corpo Das suas lágrimas tremem minhas pálpebras Como é silencioso
o teu corpo
Tinha passado o meu braço por cima do seu ombro (coberto pelo tecido ligeiro de um
vestido de flores), que eu sentia sob os meus dedos; cedi à sugestão aberta pelos versos que
lera (essa lenta litania), que falavam da tristeza do corpo de Lúcia, corpo mudo, resignado,
condenado a morrer. Depois li outros poemas, e aquele que hoje ainda me devolve
a sua imagem e que termina com este terceto:
Oh demência das palavras enganadoras. Creio no silêncio Mais forte que a beleza mais
forte que tudo Oh festa daqueles que se entendem no silêncio
Bruscamente os meus dedos disseram-me que os ombros de Lúcia se agitavam em
pequenos estremeções; Lúcia soluçava.
O que é que poderia ter-lhe arrancado estas lágrimas? O sentido dos versos9 Ou, antes, a
indizível melancolia que emanava das palavras, do timbre da minha voz? Ou, talvez, o
hermetismo grave dos poemas tinha-a elevado e era essa elevação que a comovia até às
lágrimas? Ou então
76

eram os versos que tinham feito saltar nela um cadeado secreto e libertado um peso
longamente acumulado?
Não sei. Como uma criança, Lúcia agarrava-se ao meu pescoço 1com a cabeça encostada
ao cotim verde do meu peito e chorava, chorava, chorava.
77

IX
Quantas vezes, nestes últimos anos, mulheres tão diferentes me acu-
saram (só porque eu não correspondia aos seus sentimentos) de ser auto-suficiente. É
absurdo, não sou nada auto-suficiente, pelo contrário aflige-me ser incapaz, como adulto,
de encontrar a relação certa com uma mulher, de nunca ter, como dizem, conseguido amar
nenhuma. Não sei se conheço as razões desta falha, ignoro se este defeito do coração é
inato ou se mergulha as suas raízes na minha biografia; não quero dramatizar, mas é assim;
surge nas minhas recordações com frequência uma sala onde cem pessoas, de braço
levantado, decidem romper a minha vida; esta centena de pessoas não sabia que um dia as
coisas começariam lentamente a mudar; calcularam que a minha proscrição seria para a
eternidade. Não pelo prazer de voltar a mastigar a erva amarga, mas por uma teimosia que é
própria da reflexão, inventei já várias vezes variantes à minha história, imaginando o que se
teria passado se, em vez de proporem a minha exclusão, tivessem escolhido enforcar-me.
Nunca consegui chegar a ou-
tra conclusão que não fosse que, mesmo nesse caso, toda a gente teria levantado o braço,
sobretudo se o relatório preliminar fundamentasse em termos líricos a oportunidade
benéfica da pena. Desde então, ao fazer novos conhecimentos, homens e mulheres, novos
amigos ou amantes possíveis, transfiro-os em pensamento para esse tempo, para dentro
dessa sala e pergunto-me se levantariam o braço; ninguém resiste a esta prova: todos
levantam o braço como naquele tempo fizeram (uns pressurosamente, outros com
hesitação, por convicção ou por medo) os meus amigos e conhecidos. Reconheçam: é
difícil viver com gente capaz de vos mandar para o exílio ou para a morte, é difícil torná-los
nossos íntimos, é difícil arná-los.
Talvez fosse injusto submeter as pessoas com quem me dava a um
exame imaginário tão cruel quando era mais que provável que eles pas-
78

sariam a meu lado uma vida mais ou menos calma para além do bem e do mal, sem nunca
atravessarem a grande sala onde os braços se levantam. Haverá quem diga que o meu
comportamento tinha um único fito: içar-me, numa vaidade moral, acima dos outros. Mas a
acusação de auto-suficiência não era nada justa; é verdade que nunca votei a destruição de
fosse quem fosse, mas bem sabia que este mérito era teórico por me ter visto privado bem
cedo do direito de levantar o braço. É verdade que durante muito tempo tentei convencer-
me de que em circunstâncias semelhantes não me teria portado corno os outros, mas tinha
pelo menos a honestidade suficiente para, no fim, rir de mim próprio: então era eu
o único a não levantar o braço? Seria o único justo? Isso não, não encontrava em mim a
mínima garantia de ser melhor que os outros; mas o que é que isso muda na minha relação
com o próximo? A consciência da minha própria miséria não me reconcilia de modo algum
com a miséria do meu semelhante. Nada me repugna mais do que ver as pessoas
confraternizarem com aqueles em que reconhecem as suas próprias baixezas. Não me
interessa essa fraternidade viscosa.
Então como pude eu amar Lúcia? As reflexões que produzi acima são, felizmente, mais
recentes, por isso eu pude (nessa idade mais sofredora que reflexiva), com um coração
ávido e que não duvida, aceitar Lúcia como um dom; um dom do céu (céu pardo e
benevolente). Esse foi para mim um tempo feliz, talvez o mais feliz: eu estava cilindrado,
prostrado, imerso em complicações, mas no fundo de mim havia uma paz que crescia de dia
para dia mais azul. É engraçado: se as mulheres que hoje se queixam da minha suficiência e
acham que para mim toda a gente é imbecil tivessem conhecido a Lúcia, teriam achado que
ela era uma
parva e não perceberiam que eu a tivesse amado. E eu gostava tanto dela que nem admitia
que pudéssemos separar-nos; é verdade que nunca falara nisso com ela, mas vivia
profundamente convencido de que viria a casar com ela. E se essa união me parecia
desigual, tal desigualdade atraía-me em vez de me afastar.
Esses curtos meses de felicidade, devo agradecê-los também ao nosso
comandante de então; os sargentos perseguiam-nos o mais que podiam, rebuscavam-nos os
bolsos à procura da mais pequena porcaria, revolviam-nos as camas se não estavam
impecavelmente feitas, mas o comandante, não, esse era bom tipo. Já não muito novo,
tinham-no despejado ali vindo de um regimento de infantaria, portanto, despromovido,
segundo parece. Também ele era um punido e talvez isso o ligasse a nós secretamente; de
nós ele exigia, evidentemente, ordem e disciplina, além de um dia de trabalho voluntário 'ao
domingo uma vez por outra (a fim de poder dar con-
79

tas da sua actividade política aos superiores), mas nunca fazia nada por perseguição e
concedia sem dificuldade as licenças de saída sábado sim, sábado não; nesse Verão creio
que cheguei a ver Lúcia três vezes por mês.
Nos dias em que não a tinha escrevia-lhe inumeráveis cartas e postais. Hoje já não sei ao
certo de que lhe falava e como. Mas o que as minhas cartas foram não importa muito; o que
queria lembrar é que eu
escrevi imensas e Lúcia nem uma.
Conseguir que ela me respondesse ultrapassava as minhas capacidades; talvez as minhas
cartas a tivessem assustado; talvez achasse que não sabia o que escrever, que fazia erros de
ortografia; talvez tivesse vergonha da sua letra desajeitada, de que eu só conhecia a
assinatura, no seu
cartão de identidade. Não consegui convencê-la de que eram justamente as suas
imperfeições e ignorâncias que me enterneciam porque revelavam uma Lúcia intacta,
oferecendo-me assim a esperança de poder imprimir-me nela de maneira tanto mais
profunda e indelével.
A princípio Lúcia mais não fez do que agradecer-me timidamente as minhas cartas;
depressa sentiu vontade de me oferecer qualquer coisa em troca e, como não queria
escrever, decidiu-se por umas flores. Foi assim que aconteceu: passeávamos num
bosquezinho pouco denso, Lúcia de repente inclinou-se para apanhar uma flor que me
estendeu. Achei isso comovente e não me surpreendeu. Mas quando, na vez seguinte em
que nos encontrárnos, ela me esperava com um ramo inteiro, fiquei um pouco perturbado.
Eu tinha vinte e dois anos, fugia de tudo o que pudesse projectar sobre mim a sombra de
algo efeminado ou impúbere; na rua, tinha vergonha de levar as flores, desagradava-me
comprá-las, e mais ainda recebê-Ias. Incomodado, observei a Lúcia que eram os homens
que as ofereciam às mulheres, e não o contrário, mas, ao vê-Ia quase a chorar, apressei-me
a elogiá-las e a pegar-lhes.
Nunca mais houve nada a fazer. Desde esse dia, em cada um dos nossos encontros,
esperava-me um ramo e eu tinha acabado por me habituar porque a espontaneidade do
presente me desarmava e eu percebia que para Lúcia era importante esta forma de presente;
talvez ela sofresse com a carência da sua eloquência e via nas flores uma maneira de falar;
não segundo a pesada simbólica das linguagens antigas das flores, mas num sentido mais
arcaico ainda, mais nebuloso, mais instintivo, pré-Iinguístico; talvez, tendo sempre
preferido calar-se a discursar, Lúcia sonhasse com o tempo em que, não existindo palavras,
as pessoas se entendiam por pequenos gestos: mostravam com o dedo uma árvore, riam-se,
um tocava no outro...
80
1r,

Que eu tenha ou não elucidado o verdadeiro sentido dos presentes de Lúcia, eles tinham
acabado por comover-me e despertar em mim o desejo de lhe dar também a ela um
presente. Lúcia tinha apenas três ves-
tidos, que mudava sempre na mesma ordem, de modo que os nossos encontros se seguiam à
cadência de um compasso de três tempos. Eu gostava muito desses vestidinhos, tanto de um
como de outro, pelo próprio facto de estarem gastos, usados e serem de um gosto duvidoso;
gostava tanto deles como do casaco castanho (gasto nos punhos) que eu acariciara, aliás,
antes do rosto de Lúcia. E, no entanto, tinha-me metido na cabeça que havia de dar-lhe um
vestido, um bonito vestido, muitos vestidos. Um dia, arrastei Lúcia para uma loja de
pronto-a-vestir.
A princípio, ela pensou que íamos lá por curiosidade, observar a multidão que subia e
descia as escadas. No segundo andar, parei junto de uns longos varões onde estavam
pendurados vestidos de senhora em densa procissão, e Lúcia, vendo que eu os examinava
com interesse, aproximou-se e comentou alguns deles. "Este é bonito", disse ela apontando
para um vestido de flores vermelhas imitadas na perfeição. Havia pouca coisa realmente
bonita, mas conseguiríamos encontrar. Puxei um vestido e chamei um vendedor: "A
senhora pode provar este?" Lúcia teria protestado, mas, diante de um estranho, o
encarregado da secção, não ousou, por isso deu consigo numa cabina sem saber como.
Passados instantes, afastei um canto da cortina para a ver; embora o vestido não tivesse
nada de sensacional, eu nem queria acreditar: o seu corte mais ou menos moderno tinha,
como que por encanto, feito de Lúcia uma outra criatura. "Dá-me licença?", disse o
vendedor atrás de mim e encheu de prolixa admiração Lúcia e o seu vestido. A seguir
olhou-me, a mim e às minhas divisas, e perguntou-me (ainda que a resposta fosse evidente
de começo) se eu pertencia aos "políticos". Disse que sim com a cabeça. Ele piscou o olho,
sorriu e disse: "Tenho um artigo superior; não quer ver?", e vi imediatamente um sortido de
vestidos de Verão, mais um vestido preto de cerimônia. Lúcia vestiu-os uns após outros,
todos lhe ficavam muito bem, cada um a transformava e, com o bonito vestido preto, nem
conseguia reconhecê-la.
Os momentos decisivos na evolução do amor nem sempre procedem de acontecimentos
dramáticos, muitas vezes são resultado de circunstâncias perfeitamente insignificantes à
primeira vista. Foi o caso da nossa visita à loja de pronto-a-vestir. Até então, Lúcia tinha
representado para mim todos os possíveis: a criança, a fonte de enternecimento e de
consolação, o bálsamo e a evasão de mim mesmo, literalmente ela era para mim tudo -
excepto a mulher. O nosso amor, na acepção sensual do
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termo, não tinha passado os limites dos beijos. Aliás, mesmo a maneira que Lúcia tinha de
beijar era infantil (fascinavam-me os longos beijos castos de boca cerrada, seca, que, numa
troca de carícias, contam, inefavelmente comoventes, as suas finas estrias verticais).
Em resumo, até então eu sentia ternura por ela, não sensualidade; tinha-me habituado tão
bem a essa ausência que nem lhe prestava atenção; a minha ligação a Lúcia parecia-me tão
bela que não me aflorava sequer a ideia que pudesse faltar-lhe qualquer coisa. Que
harmoniosa as-
sociação: Lúcia; os seus vestidos cinzentos, monacais; e, monacalmente casta, a minha
relação com ela. No minuto em que Lúcia apresentou um vestido novo, perturbou-se toda a
equação: Lúcia desapareceu de repente das minhas imagens de Lúcia. Vi as pernas que se
desenhavam sob uma
saia bem cortada, as proporções do corpo equilibradas com graça, uma mulher bonita cuja
discrição descorada se dissolvera numa toilette de cor franca e forma elegante. Esta brusca
descoberta do seu corpo deixava-me sem respiração.
No lar, Lúcia ocupava um quarto com três outras raparigas; as visitas só eram admitidas
dois dias por semana, durante três horas apenas, das cinco às oito, e para mais o visitante
tinha de inscrever o seu nome
na portaria, no rés-do-chão, onde ficava depositado o seu cartão de identidade e tinha de
apresentar-se de novo à saída. Além disso, cada uma
das três companheiras de Lúcia tinha um ou mais amantes que era preciso receber na
intimidade do quarto comum, de tal modo que discutiam entre si, detestavam-se. e
acusavam-se de cada minuto que se tiravam mutuamente. Isto era tudo tão desagradável
que eu nunca me tinha arriscado a visitar Lúcia em casa dela. No entanto, sabia que as suas
três companheiras de quarto deviam ir daí a um mês para uma brigada agrícola durante três
semanas. Disse a Lúcia que queria aproveitar esse período para encontrá-la lá em casa. Ela
ficou triste e disse que a minha companhia lhe agradava mais cá fora. Eu disse-lhe que
queria encontrar-me com ela num lugar onde pudéssemos estar totalmente um com o outro;
e que além disso queria ver como ela estava instalada. Lúcia não sabia resistir-me e recordo
hoje ainda com emoção quando ela acabou por consentir com o meu pedido.
82

X
Eu tinha já passado cerca de um ano em Ostrava e o serviço, insuportável ao princípio,
havia-se-me tornado algo de banal e de habitual; no meio de todos os aborrecimentos
conseguia apesar de tudo subsistir, tinha arranjado dois, três camaradas, estava feliz; era
para mim um belo Verão (as árvores estavam cheias de fuligem, no entanto os meus olhos,
logo que afastados da sombra dos ramos, viam-nas extremamente ver- des), mas, sabe-se, o
germe da desgraça esconde-se no coração da felicidade: os tristes acontecimentos do
Outono foram concebidos durante esse Verão verde-negro.
Tudo começou com Stana. Ele casara-se em Março e, alguns meses mais tarde, era atingido
pelas primeiras notícias: a sua mulher arrastava-se pelas discotecas nocturnas; enervado, ele
enviou-lhe cartas sucessivas, as respostas chegavam-lhe, apaziguadoras; então (com o bom
tempo) a sua
mãe veio a Ostrava; estiveram juntos todo o dia de sábado e ele regressou ao quartel pálido
e taciturno; a princípio, nada queria dizer, por vergonha; no dia seguinte, contudo, abriu-se
com Honza, depois com mais alguns; e quando viu que todos estavam ao corrente, falava
disso ainda mais e cada dia e incessantemente: e que a sua mulher se comportava como
uma puta, e que ele tinha duas palavras a dizer-lhe, e que lhe ia torcer o pescoço. E logo a
seguir foi ter com o comandante para ter dois dias de licença, mas o comandante hesitava
em conceder-lhos porque justamente, nos últimos dias, tinha recebido numerosas queixas
(tanto do quartel como das minas) contra Stana, constantemente distraído e irritadiço. Este
suplicou, porém, que lhe fossem concedidas pelo menos vinte e quatro horas.
Compadecido, o comandante deu-lhas. Stana partiu e nunca mais voltámos a vê-lo. O que
se passou, só o sei por ouvir
dizer.
83
1

Tinha chegado a Praga, tinha-se atirado à mulher (digo mulher, mas


era uma rapariga de dezanove anos!), e ela, com descaramento (e deleite, talvez),
confessou-lhe tudo; ele começou por lhe bater, ela defendeu-se, ele tentou estrangulá-la e,
para acabar, bateu-lhe com uma garrafa na cabeça; a rapariga caiu no chão e ficou imóvel.
Stana, tomado de pânico, fugiu; Deus sabe como, desencantou um pequeno chalé ao fundo
das montanhas e aí viveu à espera de ser apanhado e enviado à forca. Vieram, com efeito,
prendê-lo ao cabo de dois bons meses, no entanto
foi julgado hão por homicídio, mas por deserção. Com efeito, pouco depois da partida de
Stana, a mulher havia recuperado os sentidos e, à ex-
cepção de um galo na cabeça, encontrava-se indeirine. Enquanto ele estava na prisão
militar, ela divorciou-se e é hoje a esposa de um actor de Praga conhecido que eu visito de
vez em quando, para me recordar o velho camarada que viria a acabar tristemente: tendo
terminado o serviço activo, tornou-se mineiro: um acidente de trabalho privou-o de uma
perna, e uma amputação mal cicatrizada, da vida.
Essa mulher, de quem se diz que continua a brilhar nos meios artísticos, não tinha trazido o
azar somente a Stana, mas a todos nós. Foi pelo menos essa a impressão com que ficámos,
se bem que não nos tenha sido possível desvendar com precisão se havia de facto (como
toda a gente pensava) uma relação de causa-efeito entre o escândalo envolvendo o
desaparecimento de Stana e a chegada, pouco depois, de uma comissão de controlo
ministerial à nossa caserna. De qualquer forma, o nosso coman-
dante foi despromovido e substituído por um jovem oficial (tinha apenas vinte e cinco anos)
cuja chegada modificou tudo.
Eu disse que ele tinha vinte e cinco anos, mas tinha um ar bastame mais jovem, parecia um
rapazinho; daí que se esforçasse bastante por fazer impressão. Não gostava de gritar, falava
secamente, fazendo-nos compreender com uma calma imperturbável que nos tomava a
todos poi criminosos: "Eu sei, o vosso mais caro desejo seria ver-me na forca, declarou-nos
aquela criança logo no seu discurso de posse, o chato é que se há alguém aqui a ser
enforcado, serão vocês, não eu."
Os primeiros conflitos não se fizeram esperar. A história de Cenek, em particular, ficou-me
na memória, provavelmente por nos ter parecido bastante divertida. Durante o ano da sua
incorporação, Cenek tinha feito muitos grandes desenhos murais que, sob o comandante
precedente, tinham sempre tido a sorte de agradar. Os seus temas favoritos, já o indiquei
atrás, eram Jan Zizka, o grande capitão das guerras hussitas, e os seus homens de armas
medievais; atencioso a divertir os rapazes, acompanhava os seus grupos com a imagem de
uma mulher nua que
84

- k_
apresentava ao comandante como um símbolo da liberdade ou da pátria. O novo
comandante da unidade, tendo por sua vez resolvido recorrer aos serviços de Cenek, tinha-o
mandado chamar a fim de lhe pedir que pintasse qualquer coisa para ornamentar a sala
reservada aos cursos de educação política. Ele tinha-lhe então dito que pusesse de parte,
desta vez, as velhas luas de Zizka para "de preferência se debruçar sobre o
contemporâneo"; o quadro deveria representar o Exército Vermelho e a sua união com a
classe operária, e também a sua importância na vitória do socialismo em Fevereiro. Cenek
havia dito: "Certo, meu comandante! ", e lançou mãos à obra; debateu-se várias tardes com
uma imensídão de papéis brancos, espalhados pelo chão, que prendeu em seguida com
punaises a todo o comprimento da parede do fundo. Quando nós' descobrimos o desenho
acabado (um metro e meio de altura, oito metros de largura pelo menos), o silêncio foi
total: ao meio, postado em pose de herói, um soldado russo fortemente agasalhado,
metralhadora a tiracolo, gorro de pele até às orelhas, rodeado por todos os lados de oito
mulheres nuas. Duas delas, a seu lado, olhavam-no com um ar maroto, enquanto ele as
abraçava, desenhando-se-lhe na cara um riso grosseiro; as outras rodeavam-no, estendiam-
lhe os braços ou estavam simplesmente para ali (havia também uma estendida), expondo as
suas belas formas.
Cenek pôs-se frente ao quadro (esperando o comissário, nós encontrávamo-nos sós na sala)
e proferiu um discurso neste gênero: Portanto, a que está à direita do sargento é Alena,
meus senhores, foi a primeira mulher da minha vida, tinha eu dezasseis anos quando ela me
possuiu, era a amante de um oficial, por isso está aqui mesmo no seu lugar. Desenhei-a com
a aparência que tinha então, ela está com certeza menos bonita agora, mas nessa altura já
ela era para o reforçado como podem constatar principalmente pelas ancas (que ele
apontava com o dedo indicador). Visto que ela era bem mais bonita de costas, desenhei-a
também nessa posição (dirigiu-se para um outro ponto da composição, apontou o dedo na
direcção de uma mulher que, mostrando o seu rabo nu ao
público, dava a ideia de se dirigir algures)! Podem ver o seu traseiro de rainha, é possível
que o gabarito ultrapasse um pouco a norma, mas é assim que gostamos dele. E olhem para
esta (ele indicava a mulher à esquerda do sargento), trata-se de Lojzka, quando a possuí, já
tinha idade para o fazer, ela tinha pequenos seios (descrevia apontando-os), pernas
compridas (e mostrava-as), uma cara incrivelmente bonita (indicando uma vez mais) e era
do meu curso na escola. Quanto à outra, aquela ali, era o nosso modelo nas Artes
Decorativas, conheço-a de cor, assim como
85

os outros vinte gajos que estavam comigo, pois ela posava sempre no
meio da sala de aula, enquanto nós nos treinávamos a desenhar o corpo humano a partir do
dela, e nunca um lhe tocou, a sua mãe esperava-a invariavelmente à saída para a levar de
imediato para o redil, que Deus perdoe a essa moça, rapazes, nunca entrámos com ela em
pormenores, excepto os do desenho. Pelo contrário, esta, meus senhores, era uma porca
(apontou uma pessoa espojada num singular canapé estilizado), aproximem-se, venham ver
(ao que nós acedemos), no ventre, este bocadinho ali, vêem?, queimado por um cigarro,
parece que por ciúmes, pela sua amante, porque esta donzela, meus senhores, dava para os
dois lados, tinha um sexo, um verdadeiro acordeão, meus senhores, onde cabia fosse o que
fosse, onde todos nós nos poderíamos ter metido, até com
as nossas esposas, as nossas amantes, os nossos filhos e os nossos bisavós...
Cenek ia obviamente atingir o auge do seu discurso quando o comissário fez a sua entrada
na sala, de tal forma que nós tivemos que retomar os nossos lugares. Habituado aos
trabalhos de Cenck, desde o tempo do antigo comandante, o comissário, completamente
indiferente ao novo
quadro, iniciou em voz alta a leitura de uma brochura esclarecendo as diferenças entre um
exército socialista e um exército capitalista. O discurso de Cenek ressoava ainda dentro de
nós; um doce sonho nos embalava, quando o comandantezito apareceu na sala. Vinha sem
dúvida assistir à sessão de estudo, mas, antes de ter podido receber o relatório regulamentar
do comissário, tinha apanhado com o choque do grande fresco mural; sem sequer deixar o
comandante retomar a sua leitura, num tom gélido perguntou a Cenek o que o quadro
pretendia significar. Cenek, de um salto, pôs-se em frente do seu quadro e declamou: Eis
uma
alegoria simbolizando a importância do Exército Vermelho para o com-
bate do nosso povo; aqui (e mostrou o sargento), o Exército Vermelho; de cada um dos
lados figuram os símbolos da classe operária (e apontou a amante do oficial) e das gloriosas
jornadas de Fevereiro (e indicou a
sua companheira de estudos). Eis (e mostrou outras mulheres) a alegoria da Liberdade, a da
Vitória, a da Igualdade; e aqui (indicou a amante do oficial exibindo o seu rabo) temos a
burguesia prestes a abandonar a cena da História.
Cenek calou-se e o comandante declarou que o quadro constituía um
insulto ao Exército Vermelho, e que era preciso retirá-lo imediatamente; quanto a Cenek, ia
ver o que lhe iria acontecer. Eu perguntava-me (entre dentes) porquê. O comandante, que
ouvira, perguntou-me se tinha objecções a apresentar. Levantando-me, disse que o quadro
me agradava.
86

O comandante disse não ter dúvidas a esse respeito, uma vez que era o ideal para os que
gostavam de se masturbar. Eu disse que o grande MysIbeck, ele próprio, tinha esculpido a
Liberdade sob a forma de uma mulher nua, e que o rio Jizera no célebre quadro de Ales está
representado por três nus; que os pintores fizeram o mesmo em todas as épocas.
O puto do comandante lançou-me um olhar perplexo e repetiu a sua
ordem de retirada do quadro. No entanto, nós tínhamos conseguido enrolá-lo, pois ele não
repreendeu Cenek: o que não impediu que o to-
masse de ponta, bem como a mim. Pouco depois, Cenek teve uma pena disciplinar e eu
também. O que se passou foi o seguinte: um dia, a sec-
ção trabalhava num canto afastado da caserna, com enxadas e pás; um
cabo molengão vigiava-nos com um olhar indiferente, se bem que a cada instante nós nos
apoiássemos nas nossas ferramentas para cavaquear, sem reparar no comandantezito que se
tinha colocado perto dali e nos observava. Só ao cabo de uns momentos nos apercebemos,
quando a sua voz ríspida gritou: "Soldado Jahn, vem cá!" Peguei na minha pá com um
ar decidido e pus-me em sentido em fren 'te dele. "É assim que você trabalha?",
perguntou-me ele. Já não sei realmente qual a resposta que lhe dei, mas não foi com certeza
arrogante, pois não tinha a menor vontade de complicar a minha vida no quartel, irritando
com ninharias um tipo que tinha todo o poder sobre mim. O que não impediu que, após a
minha resposta embaraçada e insignificante, o seu olhar endurecessê; aproximou-se de
mim, num rompante agarrou-me pelo braço e, num magistral truque de judo, arremessou-
me por sobre ele. Depois debruçou-se sobre mim e manteve-me imóvel no chão (não tinha
esboçado um gesto de defesa, apenas me espantara) "Chega?", perguntou-me firmemente
(de forma a que, a uma certa distância, todos o ouvissem); respondi-lhe que já chegava. Ele
ordenou-me que me voltasse a pôr em sentido e, face ao pelotão reagrupado em filas, disse:
"Dou dois dias de prisão ao soldado Jahn. Não porque ele tenha sido insolente comigo.
Disso tratei eu, como vocês viram, com um golpe de mão. Os dois dias de prisão deveram-
se ao facto de ele se esquivar. E outros tantos estão à vossa disposição." Deu meia volta e
foi-se, contente consigo próprio.
No momento, não senti por ele senão ódio, e o ódio projecta urna luz demasiado viva, em
que a forma dos objectos se perde. O meu comandante aparecia-me simplesmente como um
rato vingativo e sonso.
Hoje em dia vejo-o sobretudo como um homem que era novo e que brincava. Os jovens,
apesar de tudo, se brincam, não é por culpa deles; imaturos, a vida coloca-os num mundo
duro onde se lhes exige que se com-
portem como homens feitos. Por isso se apressam a apropriar-se de
87

formas e modelos, os que estão na moda, os que lhes convêm, os que lhes agradam - e
brincam.
O nosso comandante era ele próprio imaturo e, um belo dia, encontrou-se face ao nosso
grupo, perfeitamente incapaz de o compreender; mas soube safar-se, pois o que ele tinha
lido e ouvido servia-lhe de
máscara perfeitamente adaptada a situações análogas: o herói impiedoso das bandas
desenhadas, jovem macho com nervos de aço capaz de recu-
perar um bando de vagabundos, sem grandes palavras, apenas uma calma frieza, um humor
sem artefactos, que atinge o seu alvo, a confiança em si próprio e no vigor dos seus
músculos. Quanto mais consciência tinha da sua aparência de miúdo, mais fanaticamente
desempenhava o seu papel de super-homem.
Mas seria a primeira vez que eu encontrava um jovem actor como aquele? Quando do meu
interrogatório no secretariado sobre o postal, tinha pouco mais de vinte anos, os meus
interrogadores tinham apenas um ou dois anos mais. Também eles mais não eram do que
miúdos dissimulando os seus rostos inacabados sob a máscara que julgavam entre todas
excelente, a do revolucionário ascético e inflexível. E Marketa? Não teria ela escolhido
representar o papel de salvadora, papel aliás inspirado num sucesso cinematográfico do
momento? E Zernanek, apanhado su-
bitamente pelo pathos sentimental da moral? Não era um papel? E eu? Não tinha eu próprio
vários papéis? Desorientado, corria de um para outro até ao momento em que, corredor
confuso, fui apanhado.
A juventude é horrível: é um palco onde, com altos coturnos e os
mais variados disfarces, crianças se agitam proferindo fórmulas decoradas de que só
percebem metade, mas às quais se apegam fanaticamente. A História também é horrível,
serve muitas vezes de terreno de jogo aos imaturos; terreno de jogo para um Nero ainda
verde, para um Bonaparte ainda verde, para as multidões electrizadas de crianças cujas
paixões imitadas e os papéis simplistas se transfiguram numa realidade catastrofica-
mente real.
Quando penso nisso, é toda uma escala de valores que vacila na minha cabeça e sinto um
ódio profundo pela juventude - e inversamente uma espécie de indulgência paradoxal para
com os piratas da história em cuja acção eu subitamente não vejo senão uma assustadora
agitação de imaturos.
A propósito de imaturos, lembro-me de Alexej; ele também desempenhava um grandioso
papel que ultrapassava a sua razão e a sua experiência. Tinha algo de comum com o nosso
comandante: parecia mais novo do que era; no entanto, a sua juventude (ao contrário do
coman-
88

dante) era desprovida de graça: um pequeno corpo enfezado, uns olhos de míope por detrás
de umas espessas lentes, uma pele semeada de pontos negros (preço de uma puberdade que
se eternizava). Para já, como recruta, aluno de uma escola de oficiais de infantaria, ele viu-
se de um
dia para o outro privado dessa prerrogativa e transferido para o pé de nós. Com efeito,
estávamos na véspera dos famosos processos políticos e em muitas salas (do Partido, da
justiça, da polícia), incessantemente braços se erguiam para retirar aos acusados a
confiança, a honra, a liberdade; Alexej era o filho de uma importante personalidade
comunista recentemente encarcerada.
Ele fizera um dia a sua aparição no nosso grupo e nós atribuíramos-lhe a cama desocupada
de Stana. Tinha em relação a nós um olhar igual àquele que eu tinha, ao princípio, para os
meus novos companheiros; da mesma forma, ele era metido consigo, e os outros, logo que
o souberam membro do Partido (não tendo ainda a sua exclusão sido declarada),
começaram a tomar atenção ao que diziam na sua presença.
Quando soube que eu tinha pertencido ao Partido, Alexej tornou-se um pouco mais
comunicativo para comigo; confidenciou-me que tinha que passar, custasse o que custasse,
a grande prova que a vida lhe impusera e não trair o Partido. Em seguida leu-me um poema
seu (se bem que não tivesse nunca antes escrito versos), depois de ter sabido que se-
ria enviado para aqui. Nele havia a seguinte quadra:
Sois livres, camaradas, de fazer de mim um cão e cuspir-me em cima. Sob essa máscara de
cão, sob os vossos escarros, camaradas, fielmente, convosco, andarei na linha
Compreendia-o, uma vez que eu próprio havia sentido o mesmo um ano antes. No entanto,
encontrava-me agora bastante menos magoado: a redentora do meu quotidiano, Lúcia,
havia-me afastado dessa zona onde os Alexej se atormentavam tão desesperadamente.
89

XI
Enquanto o puto do comandante instaurava o seu regime na nossa
unidade, eu perguntava-me acima de tudo se conseguiria autorização para sair; as
companheiras de Lúcia encontravam-se já há muito na brigada delas enquanto eu havia já
um mês que não saía do quartel; o comandante tinha fixado bem a minha cara e o meu
nome, que é a pior coisa que pode suceder no regimento. Agora, não falhava uma ocasião
para me fazer compreender que cada hora da-minha existência estava ao sa-
bor dos seus caprichos. Quanto às licenças, nem pensar; de início, ele havia declarado que
só as obteriam aqueles que participassem regularmente nas equipas voluntárias de
domingo; então passámos a ir todos; só que era uma existência tramada, pois não tínhamos
um único dia sem descida à mina, e se um de nós beneficiava, num sábado, de um autêntico
turno livre até às duas horas da manhã, sucumbia de sono no domingo, ao retomar o seu
trabalho.
Eu tinha-me inscrito como os outros para essas tarefas de domingo, o que, de resto, não me
dava de todo a garantia de vir a obter a licença, pois bastava uma cama mal feita ou
qualquer outra ninharia para anular o mérito do esforço dominical. No entanto, a presunção
do poder não se manifesta somente na crueldade, mas também (se bem que mais raramente)
na indulgência. Assim, algumas semanas haviam decorrido, o puto do comandante
começara a fazer gosto em ser generoso e eu obtivera no último momento uma tarde de
licença, dois dias antes do regresso das companheiras de Lúcia.
Fiquei perturbado quando a velha senhora da entrada me inscreveu num registo,
autorizando-me em seguida a subir ao quarto andar, onde bati a uma porta, ao fundo de um
grande corredor. A porta abriu-se, mas Lúcia permaneceu escondida por detrás dela e à
minha frente só lia-
90

via o quarto, à primeira vista sem nenhuma relação com um quarto num
lar; poderia jurar encontrar-me num quarto preparado para não sei que ritos religiosos: a
mesa estava esplendorosa com um ramo de dálias, dois grandes ramos de figueira
entrelaçavam-se perto da janela e por toda a parte (em cima da mesa, em cima da cama,
pelo chão fora, atrás dos quadros) tudo estava juncado de ramos verdes (que eu logo
reconheci como espargos) como se se esperasse a vinda de Jesus Cristo no seu burro.
Puxei Lúcia contra mim (que continuava escondida por detrás da porta aberta) e dei-lhe um
beijo. Ela estava com um vestido preto de cerimónia, calçada com sapatos de salto alto que
eu lhe havia oferecido no dia em que compráramos os vestidos. Ela estava de pé como uma
sacerdotisa no meio daquela verdura solene.
Fechámos a porta e só então tive consciência de que me encontrava num banal quarto de
um lar e que a decoração vegetal apenas recobria quatro camas de ferro, quatro mesas-de-
cabeceira esfoladas, uma mesa
e três cadeiras. Mas isso não podia de modo algum diminuir a exaltação que me assaltara
desde o momento em que Lúcia me abrira a sua porta: depois de um mês, tinham-me
finalmente libertado por algumas horas; mas havia mais: pela primeira vez, depois de um
longo ano, eu encontrava-me de novo num pequeno quarto; o sopro de uma intimidade
envolvia-me com os seus eflúvios estonteantes e o seu vigor quase me prostrava.
Até ali, durante todos os passeios com Lúcia, o ar livre ligava-me à caserna e à condição
que aí era a minha; com o seu sopro invisível, por toda a parte o ar flutuando à minha volta
me ligava à grade que tinha por cima a inscrição: "Nós estamos ao serviço do povo";
nenhum lugar, parecia-me, existia em que eu pudesse, ao menos por um momento, cessar
de "servir o povo"; durante todo um ano não me tinha visto entre as quatro paredes de um
quarto privado.
Era uma situação totalmente inédita; eu tinha a impressão, durante três horas, de uma
liberdade total; podia, por exemplo, despojar-me sem apreensão (contra todos os
regulamentos militares) do boné e do cinturão, mas também do blusão, das calças, dos
sapatos, de tudo, e podia, se fosse caso disso, pisá-los; podia fazer fosse o que fosse sem
que me vissem de lado algum; além disso, o quarto estava agradavelmente aquecido, e esse
calor e essa liberdade subiam-me à cabeça. Abracei Lúcia e levei-a para a cama coberta de
verdura. Aqueles raminhos sobre a cama (com uma feia coberta cinzenta) perturbaram-me.
Eu não conseguia interpretá-los senão como símbolos nupciais; a ideia surgiu-me (e
comoveu-me) que na candura de Lúcia inconscientemente ressoavam os
91

mais antigos costumes, de forma que ela resolvera despedir-se da sua virgindade numa
liturgia solene.
Foi-me necessário um certo tempo para me aperceber que Lúcia, se
bem que me beijasse e me abraçasse, o fazia com uma reserva evidente. Os seus lábios,
qualquer que fosse a sua avidez, permaneciam cerrados; ela pressionava o seu corpo contra
o meu com toda a força, mas quando eu lhe meti a mão por debaixo da saia de maneira a
sentir sob os meus
dedos a pele das suas pernas, ela desprendeu-se. Compreendi que a es-
pontaneidade a que eu queria, numa vertigem cega, entregar-me com ela permanecia
isolada; lembro-me de ter então (ainda nem há cinco minutos me encontrava no quarto de
Lúcia) sentido nos meus olhos lágrimas de decepção.
Sentámo-nos então lado a lado em cima da cama (esmagando os pobres ramos sob as
nossas nádegas) e pusemo-nos a conversar. Após algum tempo (a conversa esmorecia),
tentei de novo beijá-la, mas ela resistiu; comecei, pois, a lutar com ela, no entanto depressa
reconheci que aquilo não era uma agradável briga de amor, mas uma luta que apenas
serviria para degradar a nossa relação em não sei que fealdade, uma vez que Lúcia
continuava a defender-se, selvagem, quase desesperada. Não me restava senão parar.
Tentei palavras para a persuadir; pus-me a falar; dizia-lhe, sem dúvida, que a amava e que
amar significa entregar-se um ao outro, totalmente; apesar da sua indigência, a
argumentação era completamente irrefutável, também Lúcia não tinha de todo ar de querer
refutá-Ia. Em vez disso, ela guardava silêncio ou então implorava: "Não, peço-te, não!" ou:
"Hoje não, hoje não! ... ", esforçando-se então (com uma comovente falta de jeito) por
desviar a atenção para qualquer outro assunto.
Eu recomeçava: És como essas raparigas que ateiam o seu companheiro para em seguida o
ridicularizar? És assim tão insensível, tão má?... e abracei-a uma vez mais, e mais uma vez
começou uma luta curta e chocante que, dura e sem um grama de amor, uma vez mais me
deixou uma sensação de fealdade.
Eu parei; de repente pareceu-me compreender porque me empurrava Lúcia; meu Deus,
como não me tinha eu apercebido mais cedo? Lúcia é uma criança, o amor deve assustá-la,
ela é virgem, tem medo do desconhecido; decidi imediatamente banir do meu
comportamento aqueles modos bruscos que só serviam para a desencorajar, mostrar-me
doce, delicado, para que o acto do amor em nada diferisse das nossas ternuras, para que ele
fosse uma dessas ternuras. Não insisti, portanto, e acariciei
92
'01@

Lúcia. Beijava-a (tanto tempo que já não sentia prazer algum), apaparicava-a (sem
sinceridade), procurando, sem o aparentar, deitá-la em todo o seu comprimento. Consegui;
acariciava-lhe os seios (Lúcia nunca se tinha oposto); murmurava-lhe que queria ser terno
para com todo o seu corpo porque esse corpo era ela, e eu queria-me terno para com toda
ela; consegui mesmo levantar um pouco a sua saia, bem como beijá-la dez ou vinte
centímetros acima do joelho; mas não consegui ir mais longe; quando me preparava para
fazer deslizar a minha cabeça até ao seu sexo, Lúcia, aterrorizada, escapou-me e saltou da
cama. Olhei-a, e vi no seu rosto não sei que esforço convulsivo, expressão que jamais lhe
havia conhecido.
Lúcia, Lúcia, é por causa da luz que te envergonhas? Queres que esteja escuro?, perguntei-
lhe, e ela, agarrando a minha pergunta como uma tábua de salvação, aquiesceu: a claridade
perturbava-a. Dirigi-me para a janela para baixar os estores, mas Lúcia disse: "Não, isso
não! Deixa.
- Porquê?, perguntei. - Tenho medo. - O que é que te faz medo, a noite ou o dia?" Muda, ela
desfez-se em lágrimas.
Longe de me apiedar, a sua recusa parecia-me insensata, preconceito, iniquidade; torturava-
me, não a compreendia. Eu perguntei-lhe se ela me
resistia porque era virgem, se temia a dor física que experimentaria. A cada pergunta deste
gênero, ela aquiesceu docilmente, porque via aí um argumento para a sua recusa. Eu disse-
lhe que era bom que ela fosse virgem, e que só comigo ela ia descobrir tudo, comigo que a
amava. "Então não te alegras de ser minha mulher, totalmente?" Ela disse que sim, que se
alegrava com esse pensamento. Mais uma vez, abracei-a e mais uma vez ela se retraiu.
Custava-me dominar a minha cólera. "Enfim, o que é que te faz reagir contra mim?" Ela
respondeu: "Suplico-te, espera pela próxima vez, sim, eu quero, mas não esta noite, uma
outra vez. - E porque não hoje? - Não, esta noite não. - Mas porque não? - Suplico-te, agora
não! - Então quando? Como se tu não soubesses tão bem como eu que é a nossa última
ocasião de estarmos sós os dois, as tuas companheiras voltam depois de amanhã! Onde,
depois, poderemos nós encontrar-nos sem ninguém? - Tu arranjarás uma maneira, disse ela.
- De acordo, disse eu, eu encontrarei uma solução, mas promete-me que virás, porque as
hipóteses de eu desencantar um cantinho simpático como o teu quarto são remotas. - Não
tem importância nenhuma, disse ela, nenhuma! Será onde tu quiseres. -
Pois bem, seja, só que tu me vais prometer que uma vez lá vais ser a minha mulher e
deixarás de te obstinar. - Sim, disse ela. - Juras?
- Sim. "
93

Eu compreendi que daquela vez não teria mais do que uma promessa. Era pouco, mas já era
qualquer coisa. Ultrapassei a minha decepção e passámos o resto do tempo a conversar. À
saída, eu sacudi o meu uniforme cheio de bocadinhos de espargos, acariciei a face de Lúcia
dizendo-lhe que não pensaria senão no nosso próximo encontro (e não mentia).
94

XII
Alguns dias depois daquele último reencontro com Lúcia (foi numa chuvosa tarde de
Outono), nós marchávamos em fila da mina para o quartel, por um caminho acidentado,
semeado de charcos profundos; enlameados, deprimidos, encharcados até aos ossos,
tínhamos sede de re-
pouso. Havia já um mês que a maioria de nós não tinha tido liberdade um único domingo.
No entanto, mal o almoço foi engolido, o puto do comandante fez soar o toque de formatura
para nos anunciar que havia constatado diversas desordens quando da inspecção das nossas
camaratas. Então, ele passou o comando aos suboficiais, ordenando-lhes que os nossos
exercícios fossem prolongados por mais duas horas a título de sanção.
Uma vez que nos encontrávamos sem armas, os nossos exercícios militares eram
particularmente absurdos; não tinham por objectivo senão desvalorizar o tempo da nossa
vida. Lembro-me de que uma vez, sob o reino do puto do comandante, nós tivemos que,
durante uma tarde, transportar pesadas tábuas de um canto da caserna para o outro, repô-Ias
no dia seguinte no mesmo sítio, e assim continuar dez dias a fio. Tudo o que fazíamos no
pátio da caserna após regressarmos da mina lembrava aliás esse deslocar de tábuas. No
entanto, naquele dia, não eram tábuas, mas os nossos corpos que deslocávamos da seguinte
forma: fazíamo-los andar, virávamo-los à esquerda e à direita, atirávamo-los de barriga para
baixo, fazíamo-los correr e treinávamo-los arrastando-nos no cascalho. Três horas se
tinham passado nestes propósitos quando o
comandante apareceu: deu as suas instruções aos suboficíais para nos levarem à educação
física.
Ao fundo, por detrás dos pavilhões, encontrava-se uma espécie de estádio bastante
pequeno, onde se podia jogar futebol, bem como fazer
95

exercícios -ou correr. Os suboficiais tinham imaginado organizar-nos uma corrida de


estafetas; a companhia contava nove grupos de dez homens: nove equipas concorrentes
todas prontas. Naturalmente, os suboficiais
tinham por bem limpar-nos o sebo, mas, como eles tinham, na sua maioria, de dezoito a
vinte anos e as ambições da sua idade, também quiseram entrar na corrida, para nos provar
que não lhes chegávamos aos calcanhares; assim, eles formariam contra nós a sua própria
equipa, que reunia dez cabos ou soldados.
Precisaram de um bom bocado para nos fazer compreender o seu
plano: os dez primeiros deviam correr de uma ponta do terreno à outra; na linha de
chegada, a série seguinte devia estar pronta a pular em sentido inverso, ela própria esperada
por um terceiro grupo de corredores já preparados à partida, e por aí fora. Os suboficiais
tinham-nos contado e repartido pelas duas extremidades da pista.
Depois da mina e da sessão de exercício, nós estávamos mortos de cansaço e a perspectiva
dessa corrida punha-nos loucos de fúria; então eu sugeri a dois, três camaradas um pequeno
truque: vamos todos engonhar! A ideia pegou instantaneamente, espalhou-se de boca em
boca e, rapidamente, uma onda de chacota satisfeita secretamente reanimava a massa
esgotada dos soldados.
Nós estávamos finalmente cada um nos seus lugares, prontos para uma competição cujo
projecto global era puro disparate: se bem que em uniforme e com pesados sapatos,
devíamos partir da posição de joelhos; tendo que passar entre nós o testemunho de uma
maneira nunca vista (uma vez que o seu destinatário ia a correr ao nosso encontro), era um
verdadeiro bastão-transmissor que nós encerrávamos na palma da mão e o sinal de partida
era dado por uma autêntica pistola de starter. Um cabo (primeiro corredor da equipa dos
graduados) tendo tomado fôlego para um sprint desenfreado, nós por nossa vez levantámo-
nos (eu encontrava-me na fila dianteira) para começar a correr em ralenti,- mal tínhamos
corrido vinte metros e já só a grande custo reprimíamos a nossa
vontade de rir, porque o cabo se aproximava já do outro extremo do terreno enquanto o
nosso grupo inacreditavelmente alinhado, ainda perto da linha de partida, parecia esbaforir-
se num esforço excepcional; rapazes que se tinham juntado nas duas extremidades do
percurso davam-nos alento dizendo: "Vá, vá, vá lá! ... " A meio caminho cruzámo-nos com
o número dois dos suboficiais, o qual se precipitava já para a linha
que nós acabáramos de deixar. Enfim, atingimos o outro extremo e, ao mesmo tempo que
transmitíamos o testemunho, bastante atrás de nós, um terceiro graduado, bastão em punho,
tinha já deixado a linha inicial.
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Lembro-me daquela corrida de estafetas como do último grande desfile dos meus
camaradas negros. A sua invenção era sem limites: Honza corria ao pé-coxinho, todos o
encorajavam freneticamente e ele, de facto, chegava à estafeta (sob uma tempestade de
bravos) como um herói, dois passos adiante dos outros. Matlos, o Cigano, tínha-se
reerguido oito ve-
zes durante a corrida. Cenck, esse, levantava os joelhos à altura do queixo (o que,
certamente, o devia fatigar bastante mais do que se ele tivesse puxado ao máximo a sua
resistência). Ninguém quebrou o jogo: nem o disciplinado e resignado redactor de
manifestos em favor da paz, Beldrích, que agora, grave e digno, seguia o ritmo lento de
cada um, nem Josef, o filho do agricultor, nem esse Peti--- Pekny que não gostava de mim,
nem o velho Ambroz que corria hirto, de braços cruzados atrás das costas, nem o ruivo
Petran cujo falsete soava sobreagudo, nem Varga, o Magiar, que cructava o seu "Hurra!" à
medida que corria, nenhum deles estragou aquela admirável e simples encenação cujo
espectáculo nos fazia desmanchar a rir.
Nisto, saindo do lado dos pavilhões, nós vislumbrámos o puto do comandante. Um cabo,
que o tinha visto, tomou a dianteira a fim de lhe dar conta do sucedido. O comandante
escutou, depois veio ver as nossas
proezas, da borda do terreno. Enervados, os graduados (a sua equipa tinha já há muito
atingido o final) gritavam na nossa direcção: "Vá, rápido! Organizem-se! Força!", mas os
seus encorajamentos perdiam-se nos nossos. Desorientados, os nossos suboficiais não
sabiam o que fazer, perguntavam-se se deviam acabar com a competição, andavam
apressadamente de uns para os outros, concertavam-se, deitando o rabo do olho na direcção
do comandante, o qual, sem lhes dirigir um olhar, se limitava a observar a corrida com uma
expressão glacial.
O último grupo partiu; Alexej fazia parte dele; eu tinha esperado o seu comportamento com
curiosidade, e não me havia enganado: ele queria quebrar o jogo: de repente atirou-se com
toda a sua força e após uma vintena de metros tinha, pelo menos, cinco de avanço. Mas
aconteceu uma coisa estranha: o seu ritmo esmoreceu e ele não aumentou mais o seu
avanço: compreendi subitamente que Alexej não podia quebrar o jogo mesmo que quisesse:
era um rapaz frágil a quem, ao fim de dois dias, de bom ou de mau grado, tiveram de ser
entregues os trabalhos ligeiros, porque ele não tinha músculo nem fôlego! Pareceu-me
então que a sua
corrida seria o máximo do nosso espectáculo; Alexej entregava-se a fundo, mas parecia-se a
ponto de se confundir com os tipos que se arrastavam
cinco passos atrás, na mesma fila; o comandante e os suboficiais deviam pensar que a
fulminante partida de Alexej fazia parte do programa da
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comédia, nem mais nem menos que a claudicação simulada de Honza, as quedas de MatIos
ou os nossos gritos de encorajamento. Alexej corria de punhos cerrados exactamente da
mesma maneira daqueles que atrás de si fingiam fatigar-se e resfolegavam ostensivamente.
Mas Alexej tinha uma verdadeira pontada, e era por causa de ele se aplicar a dominá-Ia
com um grande esforço que um verdadeiro suor lhe cobria o rosto; a meio da pista, Alexej
teve ainda de reduzir a velocidade, de forma que todos os outros o apanharam sem se
apressar; trinta metros antes da chegada, ultrapassaram-no: quando lhe faltavam apenas
vinte metros, parou de correr para terminar titubeante, com uma mão a comprimir o seu
lado esquerdo.
O comandante havia ordenado formatura. Queria saber o porquê da nossa lentidão.
"Estávamos esgotados, camarada capitão." Ele pediu a
todos os fatigados que levantassem a mão. Nós levantámos a mão. Eu tinha reparado bem
em Alexej (encontrava-se à minha frente na fila); só ele não levantara a mão. Mas o
comandante não reparara. Ele disse: "Ora bem, portanto toda a gente. - Não, disse alguém. -
Quem é que não está cansado?" Alexej respondeu: "Eu. - Ah, você não está?, espantou-se o
comandante encarando-o. Como é isso de você não estar cansado? - Porque eu sou
comunista", respondeu Alexej. A estas palavras, a companhia riu trocista. "Então era você,
a lanterna vermelha à chegada?, perguntou o comandante. - Sim, disse Alexej. - E não
estava cansado?, perguntou o comandante. - Não, respondeu Alexej. -
Uma vez que você não estava cansado, fez de propósito para sabotar o treino. Portanto dou-
lhe quinze dias de prisão por tentativa de rebelião. Vocês, os outros, estavam cansados, de
maneira que têm desculpa. Visto que o vosso rendimento nas minas não vale dois caracóis,
a vossa fadiga deve-se às saídas. No interesse da vossa saúde, não haverá licenças durante
dois meses."
Antes de ir para a prisão, Alexej insistiu em falar-me. Repreendeu-me por não me
comportar como um comunista; com um olhar severo, perguntou-me se, sim ou não, eu era
pelo socialismo. Respondi-lhe que era pelo socialismo, mas que aquilo, no quartel dos
negros, isso era absolutamente indiferente, porque aqui existe uma linha de demarcação
diferente do exterior; de um lado, há aqueles que perderam o seu próprio destino e, do
outro, aqueles que lho roubaram e que dispõem dele a seu
bel-prazer. Alexej não estava de acordo: segundo ele, a linha de demarcação entre
socialismo e reacção passava por toda a parte; o nosso quartel não era, bem feitas as contas,
senão um meio de defesa contra os inimigos do socialismo. Eu perguntei-lhe como é que o
puto do comandante
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defendia o socialismo contra os inimigos uma vez que o mandava a ele, Alexej, para o
buraco por quinze dias e tratava as pessoas de maneira a fazer delas os piores inimigos do
socialismo. Alexej admitiu que o comandante não lhe agradava. Mas quando eu lhe disse
que se a caserna era um meio de defesa contra os inimigos, ele, Alexej, não deveria ter sido
para lá mandado, ele respondeu-me violentamente que lá se encon-
trava de pleno direito: "O meu pai foi preso por espionagem. Medes o alcance disso? Como
é que o Partido pode ter confiança em mim? O Partido tem o dever de não ter confiança em
mim! "
Depois conversei com Honza; queixei-me (pensando em Lúcia) dos dois meses sem saídas
que nos esperavam. "Velho camarada, disse-me ele, saíremos mais do que antes!"
A alegre sabotagem da corrida de estafetas tinha fortificado, junto dos meus camaradas, o
sentido de solidariedade e despertado o seu espírito de iniciativa. Honza havia criado uma
espécie de comité restrito que rapidamente se encarregara de estudar as possibilidades de
saltar a parede. Em quarenta e oito horas, tudo estava preparado; um fundo secreto tinha
sido obtido para as gratificações; dois graduados responsáveis pelas nossas camaratas
tinham-se deixado subornar; tínhamos encontrado o lugar mais propício para cortar
discretamente o gradeamento; era mesmo ao fundo da caserna, onde só havia a enfermaria;
cinco pequenos metros separavam o gradeamento da primeira casa baixa da aglomeração,
onde habitava um mineiro que nós conhecíamos; com ele, os camaradas tinham-se
entendido; não fecharia à chave a porta do seu quintal; o soldado em fuga devia atingir o
gradeamento às escondidas, depois, num abrir e fechar de olhos, transpô-lo e correr os
cinco metros; passada a porta do pátio, estava salvo: atravessava a casinha e saía para uma
rua dos arrabaldes.
A maneira era pois relativamente segura; desde que não se abusasse;
se um grande número de rapazes tivesse deixado a caserna no mesmo
dia, a sua ausência seria facilmente descoberta; por isso o comité de Honza era obrigado a
regulamentar as saídas.
Mas antes de ter chegado a minha vez, todo o empreendimento de Honza se foi por água
abaixo. Uma noite, o comandante fez pessoalmente uma visita aos pavilhões e apercebeu-se
da ausência de três homens. Apertou com o cabo (chefe de camarata), que não havia dado
parte dos desaparecidos, e perguntou-lhe, como se tudo soubesse, quanto é que lhe tinha
cabido. O cabo, crendo-se traído, nem mesmo tentou negar.
O comandante mandou vir Honza para o confronto, e o cabo confessou que fora ele quem
lhe dera o dinheiro.
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O puto do comandante tinha-nos apanhado, xeque-mate. Mandou o


cabo, Honza e os três soldados clandestinamente saídos ao procurador militar nessa mesma
noite. (Não pude sequer dizer adeus ao meu melhor companheiro, tudo se passou
rapidamente durante a manhã, enquanto nós estávamos nas minas; só soube bem mais tarde
que tinham sido todos condenados, Honza a um ano inteiro de prisão.) Durante a formatura,
ele anunciou que a companhia seria consignada por um período suplementar de dois meses,
para além de que sofreria doravante o re-
gime das unidades disciplinares. E ordenou a construção de dois miradouros angulares, com
projectores, sem contar com a vinda de dois tipos com os seus pastores-alemães para a
guarda do aquartelamento.
A intervenção do comandante havia sido tão,, fulminante e precisa que um mesmo
sentimento nos assaltou a todos: alguém devia ter traído o
empreendimento de Honza. Não é que se possa dizer que a delação florescesse
particularmente junto dos negros; todos nós a desprezávamos, mas sabíamos que enquanto
possibilidade ela estava sempre presente, uma vez que se nos oferecia como meio mais
eficaz de melhorar a nossa situação, de mais rapidamente atingir a saída, com um bom
certificado assegurando um futuro vivível. Tínhamos conseguido (a maioria de nós) não
cair nessa última baixeza, mas não conseguiramos não suspeitar dos outros muito
facilmente.
Mais uma vez, esse gênero de suspeita rapidamente criou raiz, cedo transformada em
convicção colectiva (se bem que, evidentemente, o golpe do comandante se pudesse
explicar de outro modo que não como consequência de uma denúncia) visando com
incondicional certeza Alexej. Este cumpria então os seus últimos dias de prisão; o que não
impedia que fosse todas as manhãs, como era evidente, para a mina connosco; por isso toda
a gente sustentava que ele podia muito bem ter sido informado ("com os seus ouvidos de
bófia") do plano de Honza.
O pobre estudante de óculos via-se e desejava-se: o chefe da equipa (um dos nossos)
encarregava-o das tarefas mais lastimosas; as suas fer-
ramentas desapareciam regularmente, e ele tinha que, à sua custa, reembolsar o preço;
alusões e insultos não lhe eram poupados, para além das mil troças que tinha que suportar;
sobre o tabique de madeira ao pé do qual se encontrava instalada a sua cama, alguém
borrara, em grandes letras negras: ATENÇÃO, CRÁPULA.
Poucos dias após a partida sob escolta de Honza e dos outros quatro culpados, eu fui, ao
fim da tarde, deitar uma vista de olhos à camarata do nosso grupo; não estava ninguém,
excepto Alexej, curvado sobre a
sua cama, que estava a refazer. Perguntei-lhe porque fazia a cama. Ele
100

respondeu-me que os rapazes a revolviam várias vezes por dia. Disse-lhe que todos estavam
convencidos que tinha sido ele quem denunciara Honza. Protestou, quase a chorar; não
estava ao corrente de nada, e
nunca teria mexericado. "Porque dizes isso?, perguntei-lhe. Tu tomas-te por um aliado do
comandante. Portanto, é lógico que possas mexericar.
- Eu não sou aliado do comandante! O comandante é um sabotador! ", disse numa voz
entrecortada. E expôs-me a sua opinião, à qual, dizia ele, o tinham levado as suas reflexões
na prisão: as formaturas de soldados negros, o Partido criou-as para aqueles a quem não
pode confiar uma arma, mas que entende reeducar. No entanto, o inimigo de classe não
dorme, ele quer a todo o custo fazer frente a essa educação; o que ele quer é manter os
soldados negros num ódio furioso ao comunismo para que possam servir de reserva à
contra-revolução. E se o puto do comandante age para com cada um de forma a provocar a
sua cólera, é evidente que isso faz parte do plano do inimigo! Eu não tenho, parece,
nenhuma ideia de todos os recantos onde se escondem os inimigos do Partido. O
comandante, certamente, é um agente do inimigo. Alexej sabe qual o seu dever e escreveu
um relatório detalhado das tramóias do comandante. Caí das nuvens: "De quê? O que é que
tu escreveste? Para onde é que enviaste isso?" Ele respondeu-me que tinha enviado uma
queixa ao Partido contra o comandante.
Entretanto, nós saíramos do pavilhão. Ele perguntou-me se eu não tinha medo de me
mostrar na sua companhia perante os outros. Disse-lhe que era preciso ser parvo para fazer
uma pergunta dessas e duplamente parvo por pensar que a sua carta chegaria ao seu destino.
Ao que me respondeu que na sua condição de comunista devia em todas as circunstâncias
comportar-se de forma a não ter de que se envergonhar. E que eu me lembrasse uma vez
mais que eu próprio era comunista (mesmo excluído do Partido) e que devia comportar-me
de outra forma: "Nós, os comunistas, respondemos por tudo o que aqui se passa." Isto fez-
me desmanchar a rir; disse-lhe que a responsabilidade era impensável sem a liberdade.
Disse-me que se sentia suficientemente livre para agir como comunista; ele deveria provar
e provaria que era comunista. Ao dizer isto, tremia-lhe o queixo; quando, hoje, depois de
tantos anos, me lembro daquele instante, estou mais do que nunca consciente de que Alexej
na altura mal tinha vinte anos, que era um adolescente, um miúdo, e que o seu destino
pairava sobre ele como um fato de gigante sobre um corpo minúsculo.
Lembro-me que, pouco depois da conversa com Alexej, Cenek me
perguntou porque conversava eu com aquele crápula. Alexej é um parvo,
r 101

disse-lhe, mas não um crápula; e contei-lhe o que Alexej me relatara a propósito da sua
queixa contra o comandante. Isso não impressionou Cenek: "Parvo, não sei, mas é com
certeza um crápula." Eu não o com-
preendia; ele espantava-se que eu não estivesse ao corrente: o comissário em pessoa tinha-
lhes mostrado jornais velhos de há uns meses, onde havia uma declaração de Alexej: ele
renegava o pai, que tinha, segundo ele, traído e sujado de baba aquilo que o seu filho via
como mais sagrado.
Na tarde desse dia, do alto de um miradouro (construido nos dias precedentes), pela
primeira vez projectores iluminaram o aquartelamento; um guarda e o seu cão percorriam o
gradeamento. Uma insondável tristeza caiu sobre mim: estava sem Lúcia, sabia que não a
encontraria antes de dois intermináveis meses. Escrevi-lhe nessa mesma tarde uma longa
carta; dizia-lhe que não poderia vê-Ia durante muito tempo, que nós não tínhamos o direito
de sair do quartel, e quanto lamentava que ela me tivesse recusado aquilo que eu desejava e
cuja lembrança me ajudaria a suportar essas semanas sombrias.
No dia seguinte àquele em que enviei a minha carta, fazíamos os eternos sentido, em frente
marche, deitar. Eu executava os movimentos prescritos automaticamente e não via nem o
cabo enfurecer-se, nem os meus camaradas a marchar ou a deitar-se ao chão; também não
via o que estava em volta: em três lados do pátio, barracas, no quarto um gradeamento ao
longo de uma estrada. Aí, de vez em quando, paravam passantes (crianças as mais das
vezes, sós ou com os seus pais, que lhes explicavam que, por detrás do gradeamento, os
soldadinhos faziam os
seus exercícios). Tudo isto se transformava para mim em cenário sem vida, em tela pintada
(tudo o que se encontrava para lá da rede de arame não passava de tela pintada); no entanto,
não teria olhado para esse lado se não tivesse ouvido nessa direcção: "Estás a sonhar,
boneca?"
Só então a vi. Era Lúcia. Encontrava-se de pé contra o gradeamento, no seu velho e gasto
casaco castanho (porquê ter esquecido, no dia das nossas compras, que, passado o Verão,
viria o frio?), tinha calçados os
elegantes sapatos negros de saltos altos (meu presente). Ela observava-nos, imóvel. Com
um interesse crescente, os soldados comentavam o seu ar curiosamente paciente e punham
nos seus comentários todo o desespero sexual de homens mantidos num celibato forçado.
Mesmo o
suboficial acabou por se dar conta da distraída efervescência dos soldados e, bem
rapidamente, da sua causa; enfureceu-se perante a sua própria impotência: ele não podia
proibir a rapariga de estar ali: fora da rede de arame estendia-se uma área de relativa
liberdade que escapava às suas
injunções. Tendo pois ordenado aos rapazes que guardassem os comen-
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tários para si próprios, elevou o tom das suas ordens e o ritmo da instrução.
Ora Lúcia se deslocava alguns passos, ora saía totalmente do meu
campo de visão, mas voltava finalmente ao lugar de onde nos podíamos ver. Depois, a
sessão de ordem cerrada terminou, mas não tive tempo de me aproximar de Lúcia, porque
prontamente se impunha a lição de educação política; ouvimos frases sobre o campo da paz
e sobre os imperialistas, e só ao fim de uma hora pude fugir (já ao lusco-fusco), e
ver se Lúcia tinha permanecido junto do gradeamento; estava lá; corri ao seu encontro.
Ela dizia-me que não lhe guardasse rancor, amava-me, odiava-se por me saber triste por sua
causa. Disse-lhe que não sabia quando teria a possibilidade de ir ao seu encontro. Ela disse
que isso não tinha importância, que voltaria aqui com muita frequência. (Rapazes passaram
por trás de mim e gritaram-nos uma obscenidade.) Perguntei-lhe se as ordinarices dos
soldados não seriam incomodativas para ela. Assegurou-me que isso não tinha importância,
uma vez que me amava. Ela passou-me, entre os fios de ferro, uma rosa (o clarim soou;
chamavam-nos para a
formatura); beijámo-nos através de uma malha da rede.
103

X111
Quase todos os dias, Lúcia vinha ao recinto da caserna, quando eu estava na mina de
manhã, e portanto passava no quartel as horas da tarde; todos os dias, recebia um pequeno
ramo (o sargento deitáva-mos todos para o chão, quando da revista às mochilas) e trocava
com Lúcia algumas curtas frases (frases estereotipadas, porque em suma nada tínhamos a
dizer um ao outro; não trocávamos ideias ou notícias, apenas confirmávamos uma única
verdade tantas vezes expressa); ao mesmo tempo, escrevia-lhe quase quotidianamente; foi a
fase mais intensa do nosso amor. Os projectores do miradouro, os breves latidos dos cães à
tarde, o puto que reinava sobre tudo isto, mal tinham lugar no meu pensamento, todo ele
virado para a vinda de Lúcia. 1
De facto, eu era bastante feliz na caserna guardada por cães ou no
fundo das minas, onde me apoiava no martelo-pilão que estremecia. Estava feliz e
orgulhoso porque em Lúcia possuía uma riqueza que nenhum dos meus camaradas, nem
mesmo os graduados, tinha: eu era amado, era amado perante todos, ostensivamente.
Embora Lúcia não encarnasse o ideal feminino dos meus camaradas, embora a sua ternura
se manifestasse - na opinião deles - de um modo bastante estranho, era, apesar de tudo, o
amor de uma mulher e isso provocava a admiração, a nostal-
gia e a inveja.
Quanto mais se prolongava a nossa clausura longe do mundo e das mulheres, mais as
mulheres apareciam, com todos os pormenores nas nos-
sas conversas. Evocavam-se os sinais de beleza, desenhavam-se (a lápis no papel, com a
enxada na argila, com a ponta dos dedos na areia) os contornos dos seus seios e das suas
nádegas; discutia-se para apurar qual dos traseiros ausentes oferecia o perfil perfeito;
reconstituíam-se com exac-
tidão palavras e gemidos acompanhando as cópulas; tudo isto era discu-
104

tido e rediscutido, e sempre com novos pormenores. Também eu era interrogado e os


camaradas estavam tanto mais curiosos uma vez que a rapariga de quem eu falava lhes
aparecia todos os dias e portanto eles podiam facilmente ligar a sua aparência concreta às
minhas descrições. Não podia desiludir os meus companheiros, apenas podia contar; falei
pois da nudez de Lúcia, que nunca tinha visto, das nossas noites de amor, que nunca tinha
vivido, e subitamente a meus olhos compunha-se o quadro minucioso e preciso da sua
paixão tranquila.
Como é que tinha sido, a primeira vez que a tinha amado? Tinha sido em sua casa, no
quarto do lar; ela tinha-se despido à minha frente, dócil, dedicada, na defesa, porém, porque
ela era uma rapariga do campo e eu o primeiro homem a vê-Ia nua. Isso excitava-me até à
loucura, aquela dedicação imbuída de pudor; quando me aproximei, ela encolheu-se, as
mãos pregadas sobre o púbis...
Porque põe ela sempre esses sapatos pretos de saltos altos? Eu tinha-lhos comprado de
propósito com a intenção de a fazer evoluir à minha frente, toda nua, só com esses sapatos,
ela tinha vergonha, mas fazia tudo o que eu queria; eu ficava sempre vestido o mais tempo
possível e ela passeava-se nua com os seus sapatinhos (dava-me imenso gozo que ela
estivesse nua e eu vestido!), nua, ia buscar vinho ao armário e, nua, vinha encher o meu
copo...
Assim, quando das chegadas de Lúcia ao gradeamento, não era eu
o único a observá-la, mas comigo uma boa dezena de camaradas, sabendo com exactidão
como Lúcia amava, o que dizia então ou como suspirava, e todas as vezes eles constatavam
com um ar entendido que ela tinha ainda calçados os sapatos de salto alto pretos, e
imaginavam-na nua, passeando-se, pernalta, de um canto para o outro do seu quartinho.
Cada um dos meus camaradas podia recordar uma mulher e partilhá-la assim com os
outros, mas ninguém excepto eu tinha o poder de oferecer a visão daquela mulher; só a
minha era real, viva e presente. A solidariedade que me tinha levado a pintar a nudez e o
comportamento erótico de Lúcia haviam tido por consequência a concretização do meu
desejo até à dor. Os camaradas, comentando as suas vindas com baixezas, não me
indignavam nada: a sua maneira de possuir Lúcia não podia desapossar-me (o gradeamento
e os cães protegiam-na de todos, incluindo de mim próprio); todos, pelo contrário, ma
ofereciam: todos apuravam para mim uma perburbadora imagem dela, todos a modelavam
comigo e a dotavam de uma sedução desvairada; tinha-me entregado aos meus
companheiros e, juntos, nós tínhamo-nos entregado ao desejo de Lúcia. Quando em seguida
eu ia ao seu encontro junto ao gradeamento,
105

percorriam-me arrepios; não podia falar, tal era o desejo que tinha dela; não compreendia
como é que tinha podido frequentá-la seis meses, tímido estudante, sem discernir a mulher
nela; teria sacrificado tudo por um só coito com ela.
Não quero com isto dizer que a minha ligação se tenha tornado bruta, vulgar, que tenha
perdido em ternura. Eu diria que experimentava então
- pela única vez na minha vida - o desejo total de uma mulher, que implicava todo o meu
ser: corpo e alma, concupiscência e ternura, dor e gosto furioso de viver, fome violenta de
vulgaridade bem como de carinho, sede de um segundo de prazer bem como de eterna
posse. Eu es-
tava totalmente envolvido, tenso, concentrado, e lembro-me daqueles momentos como de
um paraíso perdido (paraíso singular guardado por cães e por sentinelas).
Estava disposto a tudo desde que pudesse encontrar-me com Lúcia fora do quartel; ela
tinha-me dado a sua palavra que, da próxima vez, "não voltaria a defender-se" e que iria
onde eu quisesse. Várias vezes, ela me renovara essa promessa através dos fios de ferro.
Portanto, bastava ousar uma acção arriscada.
O caso cedo amadureceu na minha cabeça. O essencial do plano de Honza havia
permanecido desconhecido do comandante. O arame da cerca continuava secretamente
lasso e o acordo feito com o mineiro que morava ao lado do quartel mantinha-se. A
vigilância era, seguramente, agora tão completa que fugir em pleno dia estava fora de
questão. De noite, os guardas e os seus pastores-alemães erravam pelas circunvizinhanças,
os projectores estavam acesos, mas, no fundo, tudo isto funcionava mais para prazer do
comandante do que em nome das nossas improváveis evasões; ser apanhado teria custado o
tribunal militar e isso era um grande risco, demasiado grande. Por isso, justamente, eu dizia
a mim próprio que tinha a minha pequena hipótese.
Tive pois de descobrir para nós um esconderijo que não fosse muito longe do quartel. A
maioria dos mineiros que habitavam na vizinhança desciam pelo mesmo elevador que nós,
de maneira que depressa me en-
tendi com um deles (um viúvo quinquagenário) que consentiu (com a ajuda de trezentas
coroas da altura) em me emprestar o seu alojamento. Era um pavilhão cinzento de um
andar, que se vislumbrava da caserna; mostrei-o a Lúcia da cerca, explicando-lhe o meu
plano; ela não se alegrou com ele; tentou dissuadir-me de correr um risco por sua causa e
só acabou por aceitar porque não sabia dizer que não.
O dia propício chegou. Começou de forma bastante bizarra. Mal tínhamos entrado na mina,
o puto do comandante tinha-nos feito reunir
106

para ouvirmos um dos seus discursos. Normalmente, ele realçava os horrores da guerra
iminente e da crueldade com que se tratariam os reaccionários (no seu pensamento, tratava-
se de nós em primeiro lugar). Desta vez, ele havia acrescentado novas ideias: o inimigo de
classe tinha-se infiltrado no Partido Comunista; mas que os espiões e os traidores fiquem a
saber: os inimigos camuflados seriam tratados de forma cem vezes pior do que aqueles que
não escondiam as suas opiniões, porque o inimigo disfarçado é um cão tinhoso. "E nós
temos um aqui mesmo", disse o
puto do comandante, e fez sair da fila o jovem Alexej. Depois tirou do bolso um papel
amarrotado que lhe pôs por debaixo do nariz: "Esta carta aqui, diz-te alguma coisa? - Sim,
disse Alexej. - Tu és um desses cães tinhosos; ainda por cima um bufo e um chui. Só que os
latidos de um
cão não chegam ao céu!" E, sob os seus olhos, rasgou a sua carta.
"Tenho outra carta para ti, disse ainda estendendo um sobrescrito aberto a Alexej: lê isto
em voz alta!" Alexej tirou um papel do sobrescrito, percorreu-o com um olhar - e guardou
silêncio. "Lê!", repetiu o oficial. Alexej calava-se. "Não queres?", perguntou o comandante
e, perante o mutismo de Alexej, ordenou: "Deitado!" Alexej deitou-se na
lama. O puto do comandante ficou a olhá-lo de cima e nós todos sabíamos que então só
poderia vir um de pé! deitado! de pé! deitado! e que Alexej deveria levantar-se, deitar-se,
levantar-se, deitar-se. No entanto, o comandante não prosseguiu com as suas ordens,
afastou-se de Alexej e dirigiu-se lentamente para a primeira fila de homens; verificou o
equipamento com uma olhadela, deslocou-se até ao fim da fileira (o que demorou alguns
minutos), voltou-se e, sem pressa, voltou para o soldado que estava deitado de barriga para
baixo: "E agora, lê!", disse.
Alexej endireitava o seu casaco sujo de lama, estendia a sua mão direita na qual tinha
durante todo esse tempo mantido a carta agarrada e, sempre deitado, lia: "Informanio-lo de
que na data de 15 de Setembro de 1951, foi excluído do Partido Comunista da
Checoslováquia. Pelo comité regional ... " O comandante ordenou a Alexej que retomasse o
seu lugar na fileira, passou o comando a um graduado e obrigaram-nos a fazer o exercício.
Após a ordem unida, houve instrução política e, por volta das seis horas e trinta minutos
(era já noite), Lúcia esperava junto do gradeamento; dirigi-me para ela, ela inclinou a
cabeça, sinal de que tudo corria bem, e partiu. Em seguida veio a sopa da noite, o apagar
dos lumes e
fomo-nos deitar; na minha cama, esperei que o cabo da camarata adormecesse. Então enfiei
os meus sapatos e, tal qual, em longas ceroulas brancas e camisa de dormir, deixei o quarto.
Atravessado o corredor,
107

encontrava-me no pátio; tinha frio. A passagem pela vedação havia sido feita no fundo do
aquartelamento, por detrás da enfermaria, o que era bom, pois em caso de encontro
inesperado podia sempre fingir que es-
tava maldisposto e que ia procurar o médico. No entanto, não encontrei ninguém; contornei
a parede do edifício sanitário deslizando pela sua som-
bra; um projector incidia preguiçosamente sobre o mesmo ponto (o tipo do miradouro
obviamente não levava o seu trabalho muito a sério) e a parte do pátio que tinha de
atravessar estava escura; eu tinha apenas uma
preocupação: não dar de caras com o guarda que toda a noite fazia a ronda com o seu cão
ao longo da vedação; tudo estava calado (temível silêncio que complicava a minha
espreita); estive ali uns bons dez minutos, quando enfim ouvi um latido; vinha da outra
ponta do quartel. Afastando-me da parede, corri para o lugar onde, depois da intervenção de
Honza, o gradeamento se encontrava lasso ao nível do solo. Rastejando, escorreguei por
debaixo dele; agora, já não havia que hesitar; mais alguns passos e estava na paliçada de
madeira do mineiro; tudo se en-
contrava em ordem: a porta não estava fechada à chave, entrei no patiozinho da casa, cuja
janela (com os estores corridos) filtrava a luz interior. Bati na vidraça e alguns segundos
depois um homem aparecia na entrada, convidando-me ruidosamente a segui-lo. (Essas
ruidosas demonstrações quase me fizeram calafrios, pois eu não podia esquecer que me
encontrava tão perto da caserna).
A porta dava directamente para um quarto; permaneci no patamar, um pouco atordoado: no
interior, bastante à vontade à volta de uma mesa
(uma garrafa aberta encontrava-se aí pousada), sentavam-se cinco tipos; quando me viram
começaram a rir do meu embaraço; disseram que eu devia tremer de frio em camisa de
dormir e deram-me um copo; eu provei; tratava-se de álcool de 90 graus apenas aligeirado
com um pouco de água; encorajaram-me e eu bebi tudo de um trago; tossi, o que de novo
os fez rir fraternalmente, e ofereceram-me uma cadeira; interessaram-se pela maneira como
eu havia conseguido "passar a fronteira" e mais uma vez olharam o meu traje buriesco e
riram a bandeiras despregadas, chamando-me "ceroulas em fuga". Todos os mineiros entre
os trinta e os quarenta deviam ter o costume de se encontrar aqui; eles bebiam mas não
estavam embriagados; após a primeira surpresa, a sua descontraída presença aliviou a
minha angústia.
Não me opus a outro copo daquele líquido forte e sufocante. O mineiro tinha, entretanto,
dado um salto até ao quarto contíguo e voltara com um fato escuro na mão. "Servir-te-á?",
perguntou. Dei-me conta de que o mineiro era uns bons dez centímetros maior do que eu e,
em
108

proporção, consideravelmente mais corpulento, mas eu disse: "Tem de servir." Enfiei as


calças por cima das ceroulas regulamentares, mas tinha de segurá-las com a mão, senão
caíam-me. "Não há ninguém que tenha um cinto?", perguntou o meu protector. Ninguém
tinha. "Pelo menos um cordel", disse eu. Encontrou-se um e graças a ele a farpela segurou-
se mais ou menos. Enfiei o casaco e os tipos decidiram (não sei bem porquê) que eu fazia
lembrar Charlie Chaplin, que só me faltava o chapéu de coco e a bengala. Com o intuito de
lhes ser agradável, afastei as pontas dos pés, calcanhares juntos. Sobre a pala imponente
dos sapatos, as calças enfolavam, os tipos rejubilavam, jurando que nessa noite qualquer
uma se poria de gatas por minha causa. Fizeram-me es-
vaziar um terceiro copo e acompanharam-me até ao passeio. O homem assegurou-me que
eu podia vir bater à sua janela à hora que me apetecesse passar para me mudar.
Saí para a rua mal iluminada do subúrbio. Andei aí um quarto de hora a descrever um vasto
círculo à volta do recinto militar antes de me dirigir à rua onde ia encontrar-me com Lúcia.
De caminho, era de qualquer forma obrigado a passar em frente do portão iluminado da
nossa caserna; um pequeno aperto de angústia mostrou-se no entanto supérfluo: o meu traje
civil protegia-me na perfeição e a sentinela olhou-me sem me reconhecer; cheguei são e
salvo. Abri a porta da casa (iluminada por um lampião solitário) e avancei de memória
(guiando-me só pela descrição do mineiro): a escada à esquerda, primeiro andar, a porta em
frente. Bati. A chave rodou na fechadura e Lúcia abriu-me a porta.
Beijei-a (ela esperava-me ali desde as seis horas, tendo vindo depois da partida do mineiro,
que era da equipa da noite); perguntou-me se eu
bebera; respondi-lhe que sim e contei-lhe como é que tinha vindo. Ela disse-me que tinha
tremido todo esse tempo, com medo que algo me acon-
tecesse. (Então dei-me conta de que ela tremia mesmo.) Contei-lhe com que enorme alegria
tinha vindo ao seu encontro; nos meus braços, sentia os seus repetidos arrepios. "O que é
que tu tens?, inquietei-me. - Nada, disse ela. - Mas porque tremes? - Tinha medo por ti",
disse e, docemente, afastou-se.
Dei uma olhadela em redor. O quarto era minúsculo, austeramente mobilado: mesa, cadeira,
cama (estava feita, os lençóis longe de se en-
contrarem limpos); uma irrWgem piedosa por cima; junto à parede oposta, um armário
enfeitado com compotas em frascos (única coisa um pouco doce naquele quarto), e sobre
tudo aquilo ardia, solitária no tecto, urna lâmpada sem quebra-luz, ferindo
desagradavelmente os olhos e iluminando com brutalidade toda a minha pessoa, cujo
sinistro cómico na al-
109

",o
tura me fez sentir mal: a gigantesca vestimenta, as calças apertadas com um cordel, as
pontas enegrecidas dos sapatos; e, no cimo de tudo, o meu
cranio rapado de fresco que, sob a luz da âmpola, devia brilhar como
uma lua esbranquiçada.
"Pelo amor de Deus, Lúcia, perdoa-me por estar assim", implorei, e voltei a explicar-lhe a
necessidade do meu disfarce. Lúcia assegurou-me que isso não tinha importância, mas eu,
levado pela espontaneidade devido ao álcool, declarei que era impossivel permanecer assim
em frente dela e deixei cair rapidamente casaco e calças; mas, por debaixo, havia a camisa
de dormir e as atrozes ceroulas do casão (até aos tornozelos), conjunto ainda dez vezes mais
cómico do que o fato que o escondia um minuto antes. Dei a volta ao interruptor para
apagar a luz, mas nenhuma escuridão veio em minha salvação porque da rua vinha a luz do
lampião. A vergonha do ridículo prevalecendo sobre a da nudez, mandei passear a camisa e
as ceroulas e fiquei nu, de pé diante de Lúcia. Abracei-a. (Mais uma vez senti que ela
tremia.) Disse-lhe que se despisse, que se
desfizesse de tudo o que nos separava. Acariciava todo o seu corpo e, mais uma vez, fazia-
lhe a minha súplica, mas Lúcia disse-me que esperasse um pouco, que não podia, que não
podia já, que não podia tão rapidamente.
Agarrei-lhe na mão e sentámo-nos na cama. Anichei a minha cabeça no seu ventre e
quedei-me um momento imóvel; subitamente dei-me conta de todo o absurdo da minha
nudez (fracamente iluminada pela suja luz do lampião); veio-me a ideia de que tudo corria
ao contrário daquilo que eu havia sonhado: não havia uma jovem nua ao pé de um homem
vestido, mas um homem nu anichava-se no ventre de uma mulher vestida; eu tinha a
impressão de ser Jesus descrucificado entre as mãos de Maria compadecida e essa ideia
logo me assustou, pois eu não tinha vindo aqui em busca de compaixão mas sim de outra
coisa - e mais uma vez comecei a beijar Lúcia no rosto e no vestido que eu discretamente
tentava desapertar.
Mas falhei; Lúcia soltou-se: perdi o meu vigor inicial, a minha confiante impaciência, havia
esgotado a minha reserva de palavras e de apalpadelas. Estendido, inerte, nu, permanecia
sobre a cama, Lúcia estava debruçada sobre mim e acariciava-me o rosto com as suas mãos
rugosas. E, durante esse tempo, pouco a pouco, amargura e cólera assentavam em mim: em
espírito, recordava a Lúcia todos os riscos que correra para a encontrar hoje; recordava-a
(em espírito) de todos os castigos que podia valer-me a excursão dessa noite. Mas eram
apenas repreensões su-
perficiais (por isso - pelo menos em espírito - podia confessá-las a Lú-
110

cia). A verdadeira fonte da minha cólera era infinitamente mais profunda (teria vergonha de
a confessar): a minha miséria trespassava-me, miséria desoladora da minha juventude
estragada, miséria dessas longas sema-
nas insaciadas, infinito humilhante do desejo desatendido; evocava a vã conquista de
Marketa, a vulgaridade dessa loira sobre a máquina agrícola, e uma vez mais a vã conquista
de Lúcia. E tinha vontade de gritar a minha queixa: porque é que em tudo tenho de ser
adulto, como adulto julgado, excluído, proclamado trotskista, como adulto enviado para as
minas, enquanto no amor não tenho o direito de ser adulto e me obrigam a beber toda a
vergonha da imaturidade? Detestava Lúcia, tanto mais que sabia do seu amor por mim, o
que tornava a sua resistência aberrante e incompreensível, e me impelia à fúria. Assim,
após meia hora de obstinado mutismo, voltei ao ataque.
Atirei-me sobre ela; empregando toda a minha força, consegui levantar-lhe a saia, rasgar-
lhe o soutien' tocar o seu peito desnudado, mas Lúcia opunha-me uma defesa cada vez mais
veemente e (dominada por uma violência tão cega como a minha) ela soltou-se, saltou da
cama e colou-se contra o armário.
"Porque te defendes?", gritei. Incapaz de uma resposta, ela balbuciou que não devia zangar-
me, nem ofender-me, mas nada disse de esclarecedor, nada de lógico. "Porque te defendes?
Então não sabes como te amo? És doida varrida!, insultei-a. - Pois bem, manda-me embora,
disse ela, ainda colada ao armário - Sim, vou-te mandar embora porque tu não me amas,
porque estás a gozar comigo!" Gritei-lhe o meu
ultimato, ou ela seria minha, ou então não quereria mais saber dela, nunca mais.
E mais uma vez me dirigi para ela e beijei-a. Desta vez, não se defendeu, mas estava nos
meus braços sem forças, como morta. "Quem é que te julgas com a tua virgindade? Para
quem queres protegê-la?" Ela calou-se. "A que propósito é que te calas? - Tu não me amas,
disse ela. -
Eu não te amo? - Não! Pensava que me amavas ... " Desfez-se em lágrimas.
Ajoelhei-me em frente dela; beijei-lhe as pernas, supliqueí-lhe. Ela repetia, soluçando, que
eu não a amava.
De um só golpe, a fúria invadiu-me. Uma espécie de força sobrenatural parecia barrar-me o
caminho, arrancando-me continuamente das mãos aquilo por que eu pensava viver, aquilo
que desejava, o que me pertencia; essa força parecia-me a mesma que me havia roubado o
Partido, os camaradas, a faculdade; a mesma que de cada vez me levava tudo e sempre por
um nada e sem qualquer razão. Compreendi que essa
111

força sobrenatural erguia Lúcia contra mim e eu detestava Lúcia por se ter tornado seu
instrumento; bati-lhe na cara - não pensando em atingir Lúcia, mas essa força hostil; gritei
que a detestava, que não queria vê-Ia mais, nunca mais, na minha vida.
Atirei-lhe com o seu casaco castanho abandonado na cadeira e gritei-lhe que se fosse.
Ela vestiu o casaco e saiu. Depois atirei-me para cima da cama com o vazio na alma e
começava a recordá-la, sentindo já a falta dela no momento em que a mandava embora,
porque, sabia-o, valia mil vezes mais estar com uma Lúcia vestida e rebelde do que estar
sem Lúcia.
Eu sabia-o, e no entanto não tive um movimento para a fazer voltar. Durante muito tempo
fiquei nu sobre a cama daquele quarto alugado, porque me era impensável, naquele estado,
ver pessoas, aparecer na casa em frente da caserna, gracejar com os mineiros e responder ao
seu galhofeiro interrogatório.
Mesmo assim (já a noite ia alta), acabei por me vestir e ir-me embora. No passeio em
frente, o lampião incidia ainda sobre a casa que deixei. Dei a volta ao quartel, bati à janela
(agora às escuras), esperei três minutos, tirei as minhas vestes em presença do mineiro que
bocejava, respondi vagamente à medida que ele me interrogava sobre a minha boa sorte, e
(novamente em camisa e ceroulas) dirigi-me para a ca-
serna. Cansado de desespero, tudo me era indiferente. De que lado se
encontrava o guarda com o pastor-alemão, eu não queria saber, nem mais nem menos do
que da luz do projector. Escorreguei por debaixo do gradeamento, avancei tranquilamente
para o meu abarracamento. Percorria justamente a parede da enfermaria quando ouvi: "Alto
aí!" Parei. Uma lanterna de bolso incidiu sobre mim. "Que está aí a cheirar?"
- Estou a vomitar, camarada sargento, explicava eu apoiando-me
com uma mão no muro.
- Continue, continue!", respondeu o sargento, recomeçando a sua
ronda com o animal.
112

XIV
Sem mais histórias (o cabo estava bastante ensonado), tinha atingido a minha cama, incapaz
no entanto de pregar olho, de maneira que fiquei contente quando a voz áspera do graduado
da semana (vomitando: "De pé, aí dentro! ")-veio pôr cobro a esta desagradável noite.
Calcei os meus sapatos e corri aos lavabos a fim de me borrifar com água fria. Na volta,
observei em torno da cama de Alexej uma esquadra de companheiros semivestidos que
riam baixinho. Percebi: Alexej (deitado de costas, por debaixo do cobertor, com a cabeça
enfiada na almofada) dormia como urna pedra. Lembrou-me logo Franta Petrasek, o qual,
uma manhã, furioso com o seu chefe de secção, havia fingido um sono tão profundo que
três superiores o tinham, à vez, abanado sem resultado; havia sido preciso, em desespero de
causa, transportá-lo com a sua cama para o pátio, onde só havia preguiçosamente esfregado
os olhos depois de lhe terem apontado uma mangueira de incêndio. Mas Alexej não podia
ser
suspeito de rebelião, e o seu sono profundo não tinha com certeza outra origem que a sua
fraca constituição. Um cabo (o chefe da nossa camarata) foi do corredor para o quarto, com
uma enorme marmita cheia de água entre os braços; fizeram-lhe cortejo muitos dos nossos
que, aparentemente, lhe tinham assoprado esse estúpido golpe da água, que convém tão
admiravelmente aos cérebros dos oficiais subalternos de todos
os tempos.
Esta tocante conivência dos homens e do graduado (habitualmente tão desprezado) irritou-
me; fiquei indignado por ver todas as velhas querelas entre eles subitamente apagadas pelo
seu ódio comum por Alexej. Todos tinham, evidentemente, interpretado no sentido da sua
própria suspeita as palavras do comandante falando ontem de um Alexej denunciador e
bruscamente haviam experimentado a onda calorosa do consenti-
113

mento para com a crueldade do oficial. Uma raiva cega subiu-me à cabeça, raiva por todos
eles, à minha volta, por essa pressa em acreditar na primeira acusação que viesse, pela
crueldade deles sempre disponível
- e adiantei-me ao cabo e à sua matilha. À beira da cama, eu disse em voz alta: "Levanta-te,
Alexej, não sejas parvo!"
Nesse momento, alguém, por trás de mim, torceu-me o pulso, obrigando-me a cair de
joelhos. Virei a cabeça e reconheci Petr Pekny. "Então, bolchevique, queremos estragar a
festa?", sussurrou-me ele. Libertei-me com uma sacudidela e preguei-lhe uma bofetada.
íamo-nos pegar mas os outros apressaram-se a acalmar-nos, temendo um prematuro
despertar de Alexej. De resto, havia o cabo que esperava com a sua marmita. Tendo-se
colocado por cima de Alexej, vociferou: "De pé!", despejando sobre ele dez bons litros de
água.
E passou-se algo de estranho: Alexej continuava deitado como dantes. Alexej não se havia
movido nem uma polegada. Estupefacto por alguns segundos, o cabo gritou: "Soldado! De
pé!" Mas o soldado não se mexia. O cabo debruçou-se sobre ele e sacudiu-o (o cobertor
estava ensopado, a cama e o lençol também, caíam gotas no chão). Conseguiu voltar o
corpo de Alexej, cujo rosto pudemos ver: enfiado, pálido, imóvel :
O cabo gritou: " Médico! " Ninguém se mexeu, todos olhavam AlexeJ na sua molhada
camisa de dormir, e o cabo voltou a gritar: "Médico!" e apontou para um soldado que saiu
imediatamente. (Alexej jazia sem um movimento, mais mirrado, mais miserável do que
nunca, mais jovem ainda, como uma criança, a não ser os lábios que ele tinha fortemente
cerrados, como as crianças não os cerram; gotas caíam por debaixo dele. Alguém disse:
"Chove ... ")
O médico acorreu, tomou o pulso de Alexej e disse: "Bom ... " Em seguida levantou o
cobertor molhado: nós vimo-lo em todo o seu (curto) comprimento, com as suas longas
ceroulas brancas e húmidas, a planta dos seus pobres pés nus à mostra. O médico examinou
à volta dele e levantou dois tubos da mesa-de-cabeceira; examinou-os (encontravam-se
vazios) e disse: "O bastante para matar dois." Depois tirou um lençol da cama vizinha e
estendeu-o sobre Alexej.
Tudo isto nos atrasara; tivemos que tomar o pequeno-almoço a cor-
rer e três quartos de hora depois descemos às minas. Depois veio o fim do trabalho, veio
nova sessão de exercício, educação política, canto obrigatório, trabalho de limpeza, veio o
deitar e pensei que Stana já não se encontrava ali, que o meu melhor amigo, Honza, já não
se encontrava ali (não voltei a vê-lo nunca, tudo o que me contaram foi que, tendo
terminado o seu tempo de serviço, ele se tinha clandestinamente passado
114

para a Áustria, e que Alexej também já ali não estava; tinha assumido o seu louco papel
cega e corajosamente e não era culpa sua se, de repente, já não o podia representar, se já
não sabia ficar na linha, com a sua máscara de cão, se as forças lhe faltavam; não era o meu
companheiro, devido ao furor da sua fé era-me um estranho, mas, pelo seu destino, era-me
o mais próximo de todos; parecia-me que ele havia ocultado na sua morte uma censura à
minha pessoa, como se me houvesse querido dar a entender que, a partir do momento em
que o Partido bane um homem do seu seio, esse homem deixa de ter razões para viver.
Senti-me subitamente culpado de o não ter amado, pois encontrava-se agora
irremediavelmente morto e eu nunca tinha feito nada por ele, se bem que tivesse sido o
único aqui a poder ter feito alguma coisa.
Mas eu não perdera apenas Alexej e a única ocasião de salvar um homem; considerando as
coisas com o recuo de hoje, foi então também que perdi o quente sentimento da minha
solidariedade com os meus com-
panheiros negros e, por conseguinte, a última possibilidade de recuperar a minha confiança
nas pessoas. Pus-me a duvidar do valor da nossa solidariedade devida somente à pressão
das circunstâncias e ao instinto de sobrevivência que nos aglutinava num compacto
rebanho. E comecei a pensar que a nossa colectividade de negros era capaz de perseguir um
homem (enviá-lo para o exílio e para a morte), tal como a colectividade da sala de outrora,
e como talvez todas as colectividades.
Eu estava, naqueles dias, como que atravessado por um deserto; eu era um deserto dentro
do deserto e apetecia-me chamar Lúcia. Não podia assim de repente compreender porque
havia desejado tão loucamente o seu corpo; parecia-me agora que ela não era talvez uma
mulher de carne, mas uma coluna transparente de calor que atravessava o império do frio
infinito, coluna transparente que se afastava de mim, expulsa por mim próprio.
Depois outro dia veio e, durante os exercícios no pátio, os meus olhos não deixaram a
vedação; esperava a sua vinda. Mas durante todo esse tempo veio apenas urna velha que
parou e nos mostrou ao seu fedelho lambuzado. À noite, escrevi uma carta, longa e
lânguida; pedia a Lúcia para vir, tinha que vê-Ia, não lhe pedia mais nada senão que ela
existisse, e que eu pudesse vê-Ia e saber que ela estava comigo, que ela existia...
Como que por troça, o tempo tinha aquecido, o céu estava azul, es-
tava um maravilhoso mês de Outubro. As árvores estavam cheias de cor e a natureza (essa
pobre natureza ostravense) festejava o seus adeus outonal num êxtase louco. Deve ter-me
parecido ironia já que as minhas
115

desoladas cartas continuavam sem eco e que no gradeamento apenas paravam (sob um sol
provocante) pessoas insuportavelmente estranhas. Cerca de quinze dias mais tarde, o
correio devolveu-me uma das minhas cartas; no envelope, a morada encontrava-se riscada
e, a lápis, haviam escrito: ausente com paradeiro desconhecido.
Fiquei atónito. Mil vezes depois do meu último encontro com Lúcia, relembrei tudo o que
nos havíamos dito então, cem vezes me amaldiçoei, e cem vezes me justifiquei perante mim
mesmo, cem vezes acreditei tê-la
repudiado para sempre e cem vezes me garanti que, apesar de tudo, Lúcia saberia mesmo
assim compreender-me, e me perdoaria. Mas estes gatafunhos do carteiro soaram como um
veredicto.
Dominado por uma agitação que já não controlava, no dia seguinte meti-me em mais uma
loucura. Digo loucura, mas esta não era mais arriscada do que a minha anterior fuga do
quartel, a insensatez dessa proeza aparece-me apenas retrospectivamente e mais devido ao
seu insucesso que aos seus riscos. Antes de mim, Honza, e eu sabia-o, por diversas vezes
tinha tentado a coisa quando, no decorrer do Verao, saia com uma búl-
gara cujo marido trabalhava fora durante a manhã. Imitei pois o seu método; apresentei-me
com os outros para o turno da manhã, tirei a ficha, a minha lâmpada de segurança, sujei a
cara com fuligem e desapareci discretamente; corri para o lar de Lúcia e interroguei a
porteira. Soube da partida da rapariga havia quinze dias, com uma pequena mala onde
metera todos os seus pertences; ninguém sabia do seu paradeiro, ela nada dissera a
ninguém. Assustei-me; e se alguma coisa lhe tivesse acontecido? A porteira olhou-me e
esboçou um gesto negligente; "Bah! essas miúdas que vêm em brigadas são sempre as
mesmas. Vêm e vão-se, nunca dão satisfações a ninguém." Fui em busca de informações à
sua fábrica, ao gabinete do pessoal, mas nada adiantei. Em seguida vagueei por Ostrava e
voltei à mina mesmo antes do fim do trabalho, para me misturar com
o grupo dos camaradas na sua subida de volta; no entanto, um pormenor devia escapar-me
na receita arranjada por Honza para este gênero de passeios; fui caçado. Duas semanas mais
tarde, comparecia no tribu-
nal militar e apanhava dez meses por deserção.
Sim, foi nessa altura, no momento em que perdi Lúcia, que começou t
a es od ssa O ro e de, v.azio que me havia evocado o feio cenário suburbano
da minha cidade-jiat4,,QndzxJwg@4=a-u=
estada ..Sim, foi só nesse momento que isso começou. Durante es- _M ses dez meses por
detrás das grades, a minha mãe morreu e nem sequer pude ir ao seu enterro. Voltei então
para Ostrava, para junto dos ne-
gros, e cumpri mais um ano de serviço. Nessa época, assinei o contrato
116

de trabalho por três anos nas minas, depois dos meus tempos de soldado, porque corria que
aqueles que recusassem seriam mantidos no quartel por mais alguns anos. Assim, trabalhei
ainda nas minas como civil durante três anos.
Não gosto de pensar nisso, não gosto de falar nisso e, diga-se de passagem, não aprecio
quando, hoje em dia, pessoas rejeitadas como eu pelo movimento no qual acreditavam se
vangloriam do seu destino. Sim, é verdade, eu próprio me gabei do meu destino de banido,
mas não passava de falso orgulho. Com o tempo, tive, sem indulgência, que ter em
conta que não havia feito parte dos negros por ter sido corajoso, por ter lutado, por ter
confrontado a minha ideia com outras; não, a minha queda não havia sido precedida de
nenhum verdadeiro drama, eu era o
objecto mais que o sujeito da minha história e, consequentemente, nao
Xe tenho (não recon -cen3õ -vãror ao @õTr'Ímento, à aflição, ao falhanço) a mínima razão
de estar vaidoso por isso. Lúcia? Ah, sim: passaram-se quinze anos sem que lhe tenha posto
a vista em cima e estive muito tempo sem nada saber dela. Somente após o meu serviço
militar ouvi dizer que ela podia estar algures na Boémia Ocidental. Mas não andava à
procura dela.
117

QUARTA PARTE
JAROSLAV

tol,
t, A
Ei
11À

Vejo um caminho nos campos. Vejo a terra desse caminho sulcada pelas rodas das charruas
campestres. E, ao longo do caminho, a erva
tão verde que não consigo deixar de a acariciar.
Em redor, pequenos campos, nada de vastas superfícies reconstituídas das cooperativas.
Como? Não é uma paisagem do nosso tempo que percorro? Que paisagem é então?
Vou mais longe e eis diante de mim, na orla de um campo, uma roseira. Repleta de
pequenas rosas selvagens @@paro _@ _sinto-me@e_Iiz. §ento-me na erva
me. Si-n,t,o--- as_ minhas
ao pé da moita e não tardo a stendê-r--' -- ---
costas tocarem a terra macia. Apalpo-a com as minhas costas. Retenho-a com as minhas
costas e suplico-lhe que não tema ser-me pesada e que descanse todo o seu peso sobre mim.
Depois ouço um matraquear de tamancas. Ao longe levanta-se uma fina nuvem de poeira.
à medida que se aproxima, torna-se translúcida. Dela emergem cavaleiros. Jovens a cavalo,
uniformes brancos. Mas, quanto mais se aproximam, mais se nota a negligência das suas
vestes. Alguns dólmanes estão enfeitados com botões dourados, outros encontram-se
desabotoados e há homens em mangas de camisa. Alguns levam bonés, outros têm a cabeça
descoberta. Oli, não, não é um destacamento normal, são desertores, transfugas, bandidos!
Éa
nossa cavalaria, a nossa! Levanto-me, observo-os a aproximarem-se.
O primeiro cavaleiro desembainhou e brandiu o seu sabre. A tropa parou.
O homem do sabre inclinou-se sobre o pescoço do seu animal para
me encarar.
"Sim, sou eu, digo.
- O refl, diz o outro, surpreso. Reconheço-te."
121

Baixei a cabeça, feliz. Há tantos séculos que eles cavalgam aqui e reconheceram-me.
"Como vives, meu rei?, perguntou o homem.
- Tenho medo, amigos, digo.
- Perseguem-te?
- Não é isso, é pior. Trama-se qualquer coisa contra mim. Não conheço as pessoas que me
rodeiam. Vou para casa e é outro quarto, outra mulher, tudo é diferente. Digo-me que me
devo ter enganado, volto a sair, mas, de fora, é mesmo a minha casa! Minha do exterior,
estranha no interior. E é o mesmo esteja onde estiver. Passam-se coisas que me
assustam, amigos."
O homem pergunta-me: "Ainda sabes montar?" Reparo então que ao lado do seu cavalo se
encontra, completamente selada, uma montada sem cavaleiro. O homem aponta-ma. Meto
um pé no estribo e alço-me.
O animal mexe-se, mas já os meus joelhos apertam os seus fiancos com delícia. O homem
tira do bolso um lenço vermelho que me estende: "Ata-o ao teu rosto, para que te não
reconheçam! " Com o rosto tapado, tinha-me tornado cego. A voz do homem chega até
mim: "O cavalo te conduzirá. "
Todo o pelotão largou a galope. A meu lado sentia os meus vizinhos galopar. A barriga das
minhas pernas tocava as deles e por instantes sentia a respiração irregular das suas
montadas. Uma hora talvez cavalgámos assim, corpo contra corpo. Depois parámos. A
mesma voz de homem dirigiu-se-me: "Cá estamos, meu rei!
- E onde estamos nós?, perguntei.
- Não ouves murmurar o grande rio? Eis-nos sobre as margens do DamIbio. Aqui, meu rei,
estás em segurança.
- É verdade, digo, sinto-me protegido. Gostaria de tirar o lenço.
- Não é preciso, meu rei, ainda não. Para que necessitas tu dos teus olhos? Só poderiam
enganar-te.
- Mas eu quero ver o meu DamIbio, o meu rio, quero vê-lo!
- Não precisas dos teus olhos, meu rei! Vou descrever-te tudo. Será bem melhor. À nossa
volta, está a planície a perder de vista. Pastagens. Uma silva aqui e ali, aqui e ali ergue-se
uma longa haste de madeira sobre um poço. Mas só estamos na margem, na erva. A dois
passos daqui, a erva transforma-se em areia porque, nestas paragens, o leito do Danúbio é
arenoso. E agora desce do cavalo, meu rei!"
Descemos e sentámo-nos no chão. "Os rapazes'acendem uma fogueira, continua a voz do
homem, o Sol põe-se lá longe no horizonte e o fresco não tardará.
122

- Gostaria de ver V_1ast@L, disse eu subitamente.


- Vê-la-ãs.
- Onde está ela?
- Não está longe. Irás ter com ela. O teu cavalo há-de levar-te lá. "
Levantei-me de um salto e pedi para a ver imediatamente. Mas um pulso viril prendeu-me
no ombro. "Fica sentado, meu rei. Deves repousar e comer. Entretanto, falar-te-ei dela.
- Conta, onde está ela?
- A uma hora daqui, há uma cabana de madeira com um telhado de colmo. Está rodeada por
uma pequena paliçada.
- Sim, sim, disse eu, com o coração oprimido de alegria, tudo é em
madeira. E está muito bem assim. Não quero um único prego de metal nessa cabana.
- Sim!, prossegue a voz, a paliçada é feita de estacas mal talhadas, de tal modo que se pode
reconhecer a forma primitiva dos ramos.
- Todos os objectos talhados em madeira se parecem com um gato ou com um cão, disse
eu. São mais seres do que coisas. Amo o mundo da madeira. Só nele me sinto em casa.
- Por detrás da paliçada crescem girassóis, lisimáquias e dálias, e
há também uma velha macieira. Eis justamente VIasta de pé no patamar!
- Como está ela vestida?
- Tem uma saia de linho, um pouco suja, uma vez que volta do estábulo. Leva uma selha
em madeira. Está descalça. Mas é bela, porque é jovem.
- É pobre. É uma pobre serva.
- Sim, mas não deixa de ser uma rainha! E porque é rainha, tem de estar escondida. Nem
mesmo tu te podes aproximar dela, por medo de que ela seja descoberta. Só o poderás fazer
se tiveres o rosto coberto.
O cavalo conhece o caminho." `-O conto do homem era tão belo que uma suave languidez
me adormeceu. Deitado sobre a erva, ouvia a voz, depois a voz acabou, e não se ouvia mais
do que o barulho da corrente, o crepitar do fogo. Estava tão belo que eu não ousava abrir os
olhos. Mas não havia nada a fazer. Sabia que a hora havia soado e que tinha de os abrir.
123

11
Debaixo de mim, o colchão assentava em madeira envernizada. Não gosto da madeira
envernizada. Os pés metálicos arqueados que sustentam o divã também não me agradam.
Sobre mim pende do tecto um globo de cristal cor-de-rosa rodeado por três faixas brancas.
Também não gosto dessa bola. Nem do guarda-loiça à minha frente, cujas portas de vidro
deixam entrever muita loiçaria que de nada serve. De madeira, há apenas o harmónio do
canto. É a única coisa de que gosto neste quarto. Ficou em memória do meu pai. O meu pai
morreu há um ano.WI(,
Levantei-me do divã. Continuava fatigado. Era uma seM-feira à tarde, dois dias antes do
domingo da Cavalgada dos Reis. Tudo estava à minha responsabilidade. Tudo aquilo que,
no nosso distrito, tem a ver com folclore, está sempre à minha responsabilidade. Quinze
dias sem ter dormido o suficiente por causa das preocupações, dos afazeres, das disputas.
Depoi@)üãstaIentrou no quarto. Frequentemente me surpreendo a pensar que
el@__devia'engordar. As mulheres fortes passam por ser boas donas de casa. VIasta é
magra, com finas rugas no rosto. Perguntou-me se, ao regressar da escola, eu não me
esquecera de passar na lavandaria, a buscar a roupa. Esquecera-me. "Já desconfiava", disse
ela, e quis saber se, por uma vez, eu tencionava ficar hoje em casa. Foi inevitável
responder-lhe que não. Tinha, dentro de instantes, reunião na cidade. "Tinhas prometido
ajudar VIadimir a fazer os trabalhos." Encolhi os ombros. "E quem irá a essa reunião?"
Comecei a dizer nomes, VIasta interrompeu-me: "A Hanzlik também vai? - Bem, sim",
concedi. VIasta ofendeu-se. Estava tudo estragado. A senhora Hanzlik tinha má reputação.
Sabia-se que se deitara com fulano e com sicrano. VIasta não suspeitava de mim em relação
a nada, mas desprezava as sessões de traba-
124

lho em que participava a Hanzlik. Não havia maneira de conversar com


ela. Mais valia fugir imediatamente.
A reunião era consagrada aos últimos preparativos para a Cavalgada dos Reis. Tudo corria
ao contrário. O Comité Naciona@ come@@u a
mostrar-se avarento em relação a nós. Ainda há poucos anos, atribuía somas consideráveis
para as festas folclóricas. Agora, cabe-nos a nós su-
portar as finanças do Comité Nacional. A União da Juventude já não exerce qualquer
espécie de atracção sobre os jovens, então que lhe confiem a organização da Cavalgada
para lhe dar prestígio! Dantes, empregavam-se os lucros da Cavalgada dos Reis para
subvencionar ou-
tros empreendimentos folclóricos menos lucrativos; pois bem, desta vez, que aproveite à
União da Juventude, que os utilizará como lhe aprouver. Nós pediramos aos serviços de
segurança para suspender o trânsito rodoviário enquanto se desenrolava a Cavalgada. Ora,
acabáramos, no próprio dia da reunião, de receber uma resposta negativa. Não era possíveI,
diziam, perturbar a circulação por causa de urna Cavalgada dos Reis. Mas então que
cavalgada vai ser essa, com pilecas a correr desenfreadas por entre os automóveis?
Complicações, só complicações.
A reunião prolongara-se e eram cerca de oito horas quando eu voliava para casa. Na praça,
vi L~. Caminhava em sentido inverso, no passeio oposto. Quase senti um calafrio. O que o
trazia aqui? Surpreendi o olhar que ele me lançara por um segundo, antes de se voltar
rapidamente. Fingira não me ver. Dois velhos companheiros. Oito anos passados na mesma
universidade! E finge não me ver!
Ludvik, a primeira brecha na minha vida. Hoje, estou habituado. A minha vida é uma casa
pouco sólida. Encontrando-me ultimamente em Praga, fui a um desses pequenos teatros que
abriram em grande quantidade com os anos sessenta e fizeram rapidamente sucesso graças
a jovens animadores de espírito estudantil. Representava-se uma farsa desinteressante, mas
havia canções cheias de graça e bom jazz. Repentinamente, os músicos enfiaram os
chapéus de feltro redondos com
penas que se utilizam aqui com o traje popular e começaram a imitar uma orquestra com
címbalo. Estridulantes, gozando à farta, parodiavam os movimentos das nossas danças e o
gesto típico - o braço hirto a apontar para o céu. O público fartava-se de rir. Eu não podia
acreditar nos
meus olhos. Há cinco anos apenas, ninguém teria tido a audácia de nos
gozar assim. De resto, ninguém se teria rido. E agora eis-nos aqui como
fantoches. Porque somos nós como fantoches, assim de repente?
E VI imir. O que ele me fez passar nestas últimas semanas. O Co-
imi' mité @acíonãI] do distrito tinha aconselhado a União da Juventude a
125

escolhê-lo para rei deste ano. Tal escolha significava sempre uma home-
nagem ao pai. Era em mim que haviam pensado. Pretendiam, na pessoa do meu filho,
recompensar-me por tudo o que eu fizera pela arte popular. VIadimir, no entanto, fazia-se
rogado. Esquivava-se o melhor que podia. Dizia que queria ir a Brno nesse domingo, para
as corridas de motos. Sustentara mesmo que tinha medo dos cavalos. Finalmente, declarou
que se recusava a fazer de rei uma vez que era uma decisão tomada superiormente. Que não
admitia cunhas.
O que isso me custou. Como se ele tivesse empenho em apagar da sua vida tudo o que
pudesse lembrar-lhe a minha. Ele nunca quisera frequentar o grupo infantil de canto e de
dança que eu criara em paralelo
com a nossa organização. Já aí ele se esquivava. Dizia que não era dotado para a música.
No entanto tocava bastante bem viola e, regularmente, reunia-se com companheiros para
cantar não sei bem que lengalengas americanas.
É verdade que VIadimir tem apenas quinze anos. E gosta bastante de mim. Tivemos nestes
dias uma conversa a dois. talvez ele me tenha compreendido.
126
111
Recordo-me muito bem. Eu encontrava-me sentado sobre o tamborete giratório, VIadimir
no divã, à minha frente. Eu tinha o cotovelo apoiado na tampa fechada do harmónio, esse
instrumento que me é tão caro. Escutava-o desde a minha infância. Meu pai tocava-o todos
os dias. Sobretudo canções populares em arranjos simples. Como se eu escutasse
o murmúrio de longínquas fontes. Isto se VIadimir consentisse em escutá-lo. Se se
decidisse a compreendê-lo.
Nos séculos xvii e xvIii, o povo checo, por assim dizer, cessou de existir. O século xix
assistTiu-,_UTaRT6,"Tô'seu segundo nascimento. @4õ cÍrcti@1o_das velhas nações
europeias, era uma criança. Também ele, é certo, tinha o seu grande passado, mas
encontrava-se separado dele por um fosso de duzentos anos. Durante esse tempo, a língua
checa tinha-se refugiado das cidades para os campos, passando a ser pertença exclusiva dos
iletrados. No entanto, mesmo entre eles, ela continuou a produzir a sua
cultura. Cultura modesta e totalmente escondida aos olhos da Europa. Cultura de canções,
de contos, de ritos quotidianos, de provérbios e ditados. A única ponte de ligação sobre dois
séculos.
única ponte, única ligação. único ramo de uma tradição nunca quebrada. E foi precisamente
sobre ela que, no limiar do século xix, os iniciadores das novas,letras checas enxertaram as
suas criações. Eis porque os nossos primeiros poetas tantas vezes se dedicaram à recolha de
contos e canções. As suas primeiras poesias pareciam-se com árias populares.
VIadimir, meu caro, que não te dignes compreender isto! O teu pai não é só um maluquinho
do folclore. Talvez também haja um pouco disso, no entanto, para além dessa mania, ele
visa mais fundo. Através da arte popular, ele ouve subir a seiva sem a qual a cultura checa
mais não seria do que uma árvore seca.
127

Compreendi tudo isto durante a guerra. Quiseram-nos fazer acreditar que não tínhamos
direito à existência, que éramos simplesmente alemães que falavarricheco. Fomos forçados
a assegurar-nos de que havíamos existido e que existíamos. Todos, na altura, tínhamos feito
a nossa peregrinação às fontes.
Eu tinha então a meu cargo o contrabaixo numa pequena equipa de alunos de liceu que
tocavam jazz. E eis que um belo dia as pessoas do Círculo Morávio vieram ter connosco,
para que ressuscitássemos uma or-
questra de címbalo.
Quem poderia ter-se recusado nessa altura? Fui para lá tocar violino. Arrancávamos as
velhas canções ao seu sono de morte. No século xix, quando os patriotas consignaram a arte
popular nas suas compilações, chegaram no último momento. A civilização moderna
suplantava já o folclore. Assim, no começo do nosso século, nascem círculos folclóricos
para que a arte popular, salvaguardada nos livros, entre de novo na vida. Na vida das
cidades, em primeiro lugar. Depois na do campo. Isto passou-se sobretudo na Morávia.
Organizaram-se orquestras populares, Cavalgadas dos Reis, incentivaram-se festas
populares. Esforço con-
siderável, mas que se arriscava a permanecer estéril: os fo lcloristas não sabiam
ressuscitar tão rapidamente como a civilização desaparecer.
A guerra veio insuflar-nos um novo vigor. No último ano da ocupaçao nazi, organizara-se
uma Cavalgada dos Reis. Na cidade, havia um
quartel e, entre a multidão nos passeios, oficiais alemães misturavam-se com as pessoas. A
nossa Cavalgada tornara-se numa manifestação.
O esquadrão de rapazes pintalgados, sabre em punho. Aparição das lonjuras da história.
Todos os checos o entendiam então dessa forma e os
seus olhos brilhavam. Eu tinha quinze anos e fora eleito rei. Apressava a minha montada,
rodeada por dois pagens, e o meu rosto encontrava-
-se tapado. Estava orgulhoso. Meu pai também. Sabia que me haviam feito rei para o
honrar. Director da escola da aldeia, patriota, toda a
gente gostava dele.
VIadimir, meu pequeno, acredito que as coisas têm um sentido. Creio que os destinos
humanos se encontram unidos entre eles por um cimento de sabedoria. Que te tenham feito
rei este ano parece-me um sinal. Estou orgulhoso como há vinte anos. Mais. Porque, através
de ti, é a mim que eles querem prestar homenagem. E, porquê negá-lo, essa honra conta a
meus olhos. Quero remeter-te a minha realeza. Quero que a tomes das minhas mãos.
Talvez me tenha compreendido. Prometeu-me aceitar ter sido esco-
lhido para rei.
128

IV
Se ele quisesse compreender como é interessante. Não posso imaginar nada de mais
interessante. Nada de mais cativante.
Isto por exemplo. Durante muito tempo os musicólogos de Praga defenderam que os cantos
populares da Europa provinham do barroco. Nas orquestras dos castelos tocavam e
cantavam músicos camponeses que transportavam em seguida para a vida das gentes
simples a cultura musical dos nobres. Assim, a canção popular não seria de modo algum
uma forma artística sui generís. Derivaria da música erudita.
Mas qualquer que tenha sido o caso da Boémia, as árias que nós can-
tamos na Morávia escapam a essa explicação. Para já sob o ponto de vista tonal. A música
erudita da época barroca escrevia-se em maior e
em menor. As nossas canções cantam-se em tons inconcebíveis para as orquestras de
castelo!
Por exemplo em modo lídio. É aquele que leva uma quarta aumentada. Lembra-me sempre
a nostalgia dos idílios pastoris de outrora. Vejo o deus Pá dos pagãos e oiço a sua flauta:
C)
A música do barroco e o período clássico consagravam um culto fanático à bela ordenação
da sétima maior. Ela não conhecia outra via para a tónica que não a disciplina da nota
sensíveL A sétima menor, subindo à tónica pela segunda maior, horrorizava-a. E o que eu
adoro, eu, nas nossas árias populares, é justamente essa sétima menor, pertença ela ao
129

estilo eólico, dórico ou mixolídio. Pela sua melancolia. Pela sua recusa em correr tolamente
ao tom fundamental pelo qual tudo se termina, o canto e a vida:
- A Ju- 4
UUK
UU1
1 -,dl -
Mas há canções de tonalidades de tal modo singulares que é impossível classificá-las sob
qualquer dos tons ditos de IgreJa. Perante estes fico estupefacto:
11 à r----, 1 1 @I 49 7 1 d 4 R o, 4@ 2@

Os cantos morávios apresentam uma inimaginável complexidade de tonalidades. O seu
pensamento harmónico é enigmático. Começando em
menor, acabam em maior, parecem hesitar entre diferentes tons. Muitas vezes, quando
tenho de os harmonizar, não sei de todo como lhes compreender o tom.
E possuem a mesma ambiguidade na ordem rítmica. Principalmente as árias lentas que
Bartok caracterizou pelo termo parlando. Não existe qualquer meio de lhes transcrever o
ritmo para o nosso sistema de notação. Por outras palavras, na perspectiva do nosso sistema
de notação, todos os intérpretes populares cantam essas canções num ritmo impreciso.
Como explicá-lo? Leos Janacek afirmava que essa complexidade indefinível do ritmo
resultava das variações momentâneas de humor do cantor. Pela maneira como canta, ele
reage aos coloridos das flores, ao tempo que faz, à extensão da paisagem.
Mas não será esta interpretação demasiado poética? Logo no nosso primeiro ano na
Universidade, um professor comunicara-nos uma das suas experiências. Fizera cantar,
separadamente, por diversos executantes populares, a mesma ária de ritmo refractário à
notação. Medidas ob-
130

tidas com a ajuda de aparelhos electrónicos rigorosos haviam-lhe permitido estabelecer que
todos cantavam de idêntica forma.
A complicação rítmica desses cantos não tem, pois, por causa o defeito de precisão, ou o
humor do cantor. Ela obedece às suas leis secretas. É assim que, num certo tipo de canção
morávia para dançar, por exemplo, o segundo meio-compasso é sempre uma fracção de
segundo mais longo do que o primeiro. Mas como consignar essa complexidade na
partitura? A métrica da música erudita repousa na simetria. A semibreve vale duas
mínimas, uma mínima vale duas semimínimas, o com- passo divide-se em dois, três ou
quatro tempos de igual valor. Mas como tratar um compasso com dois tempos
desigualmente longos? Para nós, hoje, o mais duro quebra-cabeças é a forma de notar o
ritmo original das canções morávias.
Um coisa é, portanto, certa. As nossas canções não podem ter nascido da música barroca.
As da Boémia, talvez. Na Boémia, o nível civilizacional era superior, mais estreito, era
também o contacto das cidades com o campo, dos rurais com o castelo. Na Morávia
também havia castelos. Mas o mundo rural, mais primitivo, encontrava-se bastante mais
isolado em relação a estes. Ali, não era de modo algum costume os músicos camponeses
fazerem parte de uma orquestra de castelo. Nestas condições, os cantos do povo, mesmo
aqueles dos tempos mais recuados, puderam conservar-se entre nós. Tal é a explicação da
sua diversidade. Datam de diferentes fases da sua longa, lenta história. Quando te encontras
cara a cara com a nossa música popular, é como se teuLqJhQL~@@,q m ulher
p@s@@ s@jc s@Í@vam y _ ' ' __ _@ _£aç---4V. 14p9Â_y=_
Olha! O primeiro véu. O tecido tem estampados motivos triviais. Trata-se das mais jovens
canções, dos cinquenta, dos setenta últimos anos. Vieram do Ocidente, da Boémia. Os
mestres ensinavam-nas às crianças das nossas escolas. A maioria delas são em maior, só
que um pouco adaptadas aos nossos hábitos rítmicos.
Mas eis o segundo véu. Nitidamente já mais alto em cor. Esses cantos são de origem
húngara. Acompanhavam a expansão da língua ma-
giar. Orquestras ciganas difundiram-nos no século xix. Czardas e refrões de soldados.
Quando a dançarina se despoja desse véu, aparece o seguinte. Canções dos eslavos
autóctones, séculos XVIII e xvil.
Mas o quarto véu é ainda mais belo. São cantos que remontam ao século xiv. Nessa altura
peregrinavam pelas encostas dos Cárpatos valáquios vindos do Sudoeste. Pastores. As suas
pastorais e os seus cantos
131

de salteadores ignoram tudo sobre acordes e harmonias. São concebidos de uma forma
puramente melódica. Tonalidades arcaicas determinadas pelos instrumentos, flauta de Pá e
charamela.
Esse véu enfim caído, não há mais nenhum por debaixo. A mulher dança completamente
nua. As árias mais antigas. Nascidas no tempo do paganismo. Repousam sobre o mais
antigo sistema do pensamento mu-
sical. Sobre o sistema de quatro notas, o tetracórdio. Cantos do tempo das ceifas. Cantos
das colheitas. Cantos ligados aos ritos da aldeia patriarcal.
Canção ou cerimonial popular, é um túnel sob a história onde se guardou uma boa parte de
tudo o que, por cima, desde há muito, destruíram guerras e revoluções, a civilização. Um
túnel por onde vejo longe para trás. Vejo Rostilav e Svatopluk, os primeiros príncipes
morávios. Vejo o mundo eslavo antigo.
Mas porquê falar apenas no mundo eslavo? Perdíamo-nos em con-
jecturas face ao enigma de um texto de canção. Canta-se nele o lúpulo e uma qualquer
obscura relação de um carro com uma cabra. Alguém dá voltas numa cabra, alguém se
passeia num carro. E louva-se o lúpulo que das virgens fará noivas. Os próprios cantores
populares, aqueles que cantavam essa ária, não lhe compreendiam as palavras. Só a força
da inércia de uma tradição imemorial manteve na cançao uma associaçao de palavras
tornada ininteligível após inumeráveis luas. No fim apareceu uma única explicação
possível: as Dionisíacas da antiga Grécia. Uma sátira sobre o dorso de um bode e o deus
brandindo uma lança envolta em lúpulo.
A Antiguidade! Parecera-me inacreditável! No entanto, devia por con-
seguinte estudar, na Universidade, a história do pensamento musical. A estrutura dos
nossos mais velhos cantos populares concorda, com efeito, com a da música antiga. O
tetracórdio lídio, frígio ou dórico. Concepção descendente da escala, que tem por
fundamental o tom alto e não o inferior, como acontecera só quando a música começara a
pensar em
termos harmónicos. As nossas can õ p.QpjAlgç
antigas pertencem pois à mesma época do i)ensamento m canta- ,@à-m
na Grecia antiga. Elas conservam-nos os tempos da Antiguidade.
132

v
Esta noite, ao jantar, eu não parava de ver os olhos de Ludvik a evitar os meus. E sentia o
quanto eu estava mais ligado a VIadimir. E subitamente tive medo de o ter negligenciado.
De nunca vir a conseguir fazê-lo entrar no seio do meu próprio universo. Terminada a
refeição, VIasta ficara na cozinha, VIadimir e eu tínhamos ido para a sala. Tentei voltar a
falar-lhe das canções. Mas a coisa não engrenava. Eu parecia um mestre-escola. Temia
aborrecê-lo. Ele, claro, continuava sentado, mudo, como se me escutasse. Sempre carinhoso
para comigo. Mas como é que eu havia de saber o que se passava verdadeiramente na
cabeça dele?
Havia já um bom bocado que o enfadava com o meu sermão quando VIasta apareceu e
disse que eram horas de ir dormir. Que fazer? É ela a alma da casa, o seu calendário, o seu
relógio.
Nada de complicações. Vamos lá, rapaz, boa noite. Deixei-o no quarto do harmónio. É lá
que ele dorme, no divã dos tubos cromados. Eu durmo no quarto ao lado, na cama que
partilho com VIasta. Não iria já dormir. Não pararia de me mexer, e temeria acordá-Ia. Vou
ficar ainda um pouco cá fora. A noite está quente. Por detrás da velha casa baixa onde
estamos instalados, o jardim está cheio de antigos odores campestres. Por debaixo da
pereira, há um banco de madeira.
Malvado Ludvik! Mas porque havia ele de vir logo hoje? É prenúncio de desgraça, temo-o.
O meu mais velho companheiro! Ã sombra daquela pereira, quantas vezes nos instalámos,
quando éramos rapazes. Eu gostava muito dele. Já desde o sexto ano do liceu, quando o
conheci. Tinha mais genica nas pontas dos dedos do que nós no corpo todo, o
que não impedia que nunca levasse a melhor. A escola, os professores, estava-se nas tintas.
O que o divertia era fazer tudo o que era contrário ao regulamento da escola.
133

Porque é que emparelháramos os dois? Um golpe das Parcas, provavelmente. Tanto ele
como eu éramos órfãos de um dos nossos pais. Minha mãe morrera de parto. Quando
Ludvik tinha treze anos, os Alemães haviam levado o pai, pedreiro, para um campo, e ele
jamais o voltara
a ver.
Ludvik era o filho mais velho. E naquela altura, filho único, após a morte do irmão mais
novo. Com o pai preso, mãe e filho não tinham
mais ninguém. A sua miséria era grande. Andar na universidade saía caro. Ludvik, ao que
parecia, teria de renunciar a isso.
A salvação chegou, no entanto, no último momento.
O pai de Ludvik tinha uma irmã que, bastante tempo antes da guerra, tinha conseguido
casar-se com um rico empresário local. Desde então, ela tinha praticamente deixado de ver
o irmão pedreiro. No entanto, após a sua detenção, o seu coração de patriota inflamara-se
repentinamente. Propôs à cunhada tomar Ludvik a seu cargo. Ela própria tinha apenas uma
filha um pouco atrasada, por isso, o sobrinho, rapaz dotado, provocava nela um sentimento
de inveja. Eles não se limitaram a ajudá-lo materialmente, começaram a convidá-lo
diariamente. Apresentaram-no à alta-roda que regularmente se encontrava sob o seu tecto.
Ludvik era obrigado a manifestar-lhes o seu reconhecimento, já que os seus estudos
dependiam do apoio deles. Ora, o seu amor por eles assemelhava-se ao
do fogo pela água. Chamavam-se Koutecky e, desde então, esse apelido servia-nos para
designar todos os pretensiosos.
A senhora Koutecky olhava a cunhada com desconfiança. Quanto ao irmão, guardava-lhe
rancor por ele não ter sabido casar-se. E mesmo quando ele esteve na prisão, não mudou de
atitude em relação à mulher dele. As armas da sua caridade apontou-as só sobre Ludvik.
Ela via nele o herdeiro do seu sangue e desejava torná-lo seu filho. A existência da
cunhada, para ela, não passava de um erro lamentável. Nem uma vez a convidou para vir a
casa deles. Ludvik, que reparava em tudo isso, rangia os dentes. Por diversas vezes, quisera
revoltar-se. Mas a mãe, à custa de choros e de preces, conseguia sempre que ele se
mostrasse sensato.
Por essa razão, ele sentia-se tanto mais feliz em nossa casa. Éramos como gêmeos. Por um
triz, o meu pai tê-lo-ia preferido a mim. Encantado por Ludvik devorar a sua biblioteca, de
que conhecia todos os títu-
los. Quando do começo do nosso jazz no liceu, ele empenhou-se em participar comigo.
Comprou na feira da ladra um clarinete por quatro vinténs e depressa aprendeu a tocá-lo
bastante bem. Após o que nos dedicámos juntos ao Jazz, e juntos introduzimos o címbalo
na orquestra.
134

A menina Koutecky casou-se lá para o fim da guerra. A mãe projectou umas bodas
espampanantes com cinco pares de damas e pajens de honor atrás dos jovens recém-
casados. Impôs a maçada de um desses papéis a Ludvik, emparelhando-o para a ocasião
com a rapariguinha (de onze anos) do farmacêutico da cidade. Ludvik estava aterrado.
Corava de vergonha por ter de fazer de palhaço nessa mascarada nupcial de snobs de
subprefeitura. Pelava-se por passar por adulto, e teve vergonha de oferecer o seu braço a
uma criançola de onze anos. Enraivecia-se por ter de beijar um crucifixo lambuzado,
durante a cerímónia. Quando a
noite viera, fugira do banquete para se juntar a nós na sala de dentro da estalagem. Nós
estávamos à volta do címbalo, bebíamos e ele rebentou e proclamou o seu ódio aos
burgueses. Depois amaldiçoou as pompas do casamento religioso, declarou que escarrava
na Igreja e que faria com que o seu nome fosse riscado do registo dos fiéis.
Não tomáramos as suas palavras a sério, mas, alguns dias após o fim da guerra, Ludvik fez
o que anunciara. Assim, escandalizava de morte os Koutecky. Isso não o perturbava. Com
prazer, zangou-se com eles. Frequentava as conferências dadas pelos comunistas.
Comprava as brochuras por eles publicadas. A nossa terra era fortemente católica e em
particular o nosso liceu. Apesar disso, estávamos prontos a perdoar a Ludvik a sua
excentricidade comunista. Reconhecíamos-lhe privilégios.
Em quarenta e sete, acabámos o liceu. Depois do Outono, Ludvik foi para Praga estudar, e
eu para Brno. Não o voltei a ver durante todo
o ano.
135

vi
Estava-se em quarenta e oito. Toda a vida acabava de virar-se de cabeça para baixo.
Quando, com as férias, Ludvik nos veio ver ao círculo, o nosso acolhimento foi para o
embaraçado. O golpe de Estado dos co-
munistas, em Fevereiro, apresentara-se-nos como a chegada do terror. Ludvik trouxera o
seu clarinete, mas não precisou dele. Passámos a noite em discussões.
É de então que data a discórdia entre nós os dois? Não o creio. Nessa noite, mais uma vez,
Ludvik conquistou-me. Evitando o melhor possível as discussões políticas, falou da nossa
orquestra. Devíamos, segundo ele, compreender o sentido do nosso trabalho numa
perspectiva mais vasta do que dantes. De que serve contentar-se em reanimar um passado
perdido? Quem olha para trás acabará como a mulher de Loth.
Então, nós: Mas afinal o que deve fazer-se? É claro que, respondia ele, é preciso gerir o
património da arte popular, mas isso não basta. Vivemos um tempo novo. Vastos
horizontes s 'e abrem à nossa acção. Cabe-nos a nós depurar a cultura musical comum, a
de todos os dias, dessas lengalengas, dessas estrofes mal feitas com que os burgueses
empanturravam as pessoas, e substituí-Ias pela arte original do povo.
Curioso. O que Ludvik nos dizia tinha sido antes a velha utopia dos patriotas morávios
mais conservadores. Eles haviam-se sempre insurgido contra a corrupção de uma cultura
citadina e sem Deus. As melodias do charleston eram aos meus ouvidos a flauta de Satanás!
Ao fim e ao cabo, pouco importava. As afirmações de Ludvik eram, por isso, tanto mais
evidentes para nós.
No entanto, a sua reflexão seguinte era mais original. Falava sobre jazz. O jazz tem origem
na música popular negra e subjugou todo o Oci-
136

dente. A nós, ele pode servir de prova encorajante de que a música popular possui um poder
maravilhoso. Que ela pode dar origem ao estilo musical geral de uma época.
Escutando Ludvik, experimentávamos um misto de admiração e de antipatia. A sua
segurança irritava-nos. Tinha aquele ar que arvoravam então todos os comunistas. Como se
ele tivesse, com o próprio futuro, um qualquer pacto secreto que lhe conferisse um mandato
para agir em
seu nome. Se ele nos bulia com os nervos, isso era sem dúvida também porque se
comportava de uma maneira subitamente diferente da do jovem que conhecêramos. Para
nós, ele sempre fora o bom companheiro, o brincalhão. E ei-lo agora descaradamente
lançado na ênfase, nas grandes palavras. Além disso, claro, contrariava-nos aquela maneira
de as sociar, com facilidade e prontidão, o gênero da nossa orquestra aos destinos do
Partido Comunista, já que nenhum de nós era comunista. Mas, por outro lado, o seu
discurso atraía-nos. As suas ideias davam resposta aos nossos sonhos mais escondidos.
Elevavam-nos subitamente ao nível da grandeza histórica.
Em espírito, chamo-lhe o Caçador de Ratos. Era exactamente isso. Um trinado da sua flauta
e, espontaneamente, estávamos a seus pés. Onde as suas ideias permaneciam incompletas,
nós voávamos em seu socorro.
Recordo-me do meu próprio raciocínio. Eu falava da evolução da música europeia desde a
época barroca. Depois do período do impressionismo, ela cansou-se de si própria. Tinha já
esgotado quase completamente a sua seiva, tanto para as sonatas e sinfonias como para as
coisas menos eruditas. Foi por isso que o jazz operou sobre ela uma espécie de milagre.
Não seduziu apenas as discotecas e os dancings da Europa. Fascinou também Stravinski,
Honegger, Milhaud, que abriram as suas composições àqueles ritmos. Mas cuidado. Ao
mesmo tempo ou, digamos, uma dezena de anos antes, a música europeia fizera provisão do
folclore antigo do Velho Continente, que em parte alguma permanecia tão vivo como aqui
na Europa Central. Janacek, Bartók. Assim, a própria história da música punha em paralelo
as origens antigas da música popular europeia e do jazz. Uma e outra contribuíam
igualmente para a gênese da música moderna séria do século xx. No entanto, para a música
das grandes massas, as coisas passaram-se de forma diferente. As velhas árias dos povos da
Europa não deixaram aí qualquer marca. Aqui, o jazz instalou-se soberanamente. E aqui
começa o nosso trabalho.
Sim, era a nossa convicção: nas raízes da nossa música popular encontra-se a mesma força
que naquelas do jazz. Este tem a sua melódica bem peculiar, onde constantemente
transparece o hexacórdio pri-
137

mitivo das velhas árias negras. Mas a nossa canção popular também possui a sua melódica,
e, tonalmente, bastante mais diversificada. O jazz dispõe de uma originalidade rítmica cuja
prodigiosa complexidade se formou durante as dezenas de séculos de cultura dos tocadores
de tambor e dos tantãs africanos. Mas, simultaneamente, os ritmos da nossa música só a ela
pertencem. Finalmente, o jazz fundou-se sobre o improviso. Mas o espantoso concerto dos
tocadores de rabeca que nunca souberam ler as suas notas repousa, também ele, no
improviso.
Apenas uma coisa nos separa do jazz, acrescentou Ludvik. Ele evo-
lui e muda rapidamente. O seu estilo está em movimento. O caminho sobe abruptamente,
da polifonia de Nova Orleães, através da orquestra do swing, ao encontro do bop e mais
além. Nem mesmo em sonho Nova Orleães poderia ter concebido as harmonias que
conhece o jazz dos nossos dias. A nossa música popular é uma bela adormecida dos séculos
passados. Devemos despertá-la. Ela deve entrar na vida de hoje e desenvolver-se com ela.
A exemplo do jazz. Sem cessar de ser ela própria, sem nada perder da sua melódica nem
dos seus ritmos, há que descobrir fases sempre novas do seu estilo. É difícil. É uma obra
que se impõe. Que não se pode levar a cabo senão no socialismo.
Para que é o socialismo para aqui chamado?, protestávamos. Ele explicou-nos. O campo de
antanho vivia em comunidade. Ritos balizavam o ano aldeão de lés a lés. A arte popular
vivia apenas no interior desses ritos, Na época do romantismo, imaginava-se que uma cam-
ponesa nos campos era visitada pela inspiração, e imediatamente um canto brotava dos seus
lábios como a água do rochedo. Mas a canção popular nasce de forma diferente de um
poema erudito. O poeta cria a fim de se exprimir a ele próprio, de dizer o que em si há de
único. Pela canção popular, as pessoas não procuravam distinguir-se, mas unir-se aos
outros. Ela fez-se à maneira das estalactites. Gota a gota, envolvendo-se de novos motivos,
de novas variantes. Transmitia-se de geração em geração, cada cantor acrescentava algum
elemento novo. Cada uma destas canções teve, portanto, bastantes criadores que, todos,
mo-
destamente se apagaram por detrás da sua própria contribuição. Nenhuma canção popular
existiu assim, por si própria. Tinha a sua função precisa. Havia-as para as bodas, para as
festas das colheitas, Carnaval, Natal, a ceifa, havia canções para dançar e para enterrar.
Mesmo as canções de amor não possuíam existência fora de certos costumes. Passeios
vespertinos, serenatas à janela, pedidos de casamento, tudo isto eram ritos colectivos, e as
canções tinham neles o seu lugar estabelecido,
138

O capitalismo destruiu essa vida colectiva. A arte popular perdeu as-


sim a sua base, a sua razão de ser, a sua função. Em vão se tentaria ressuscitá-la numa
sociedade onde o homem vive afastado dos outros, para si próprio. Mas eis que o
socialismo vai libertar as pessoas do jugo da solidão. Viverão numa nova colectividade.
Unidos pelo mesmo interesse comum. A sua vida privada aderirá fortemente à vida pública.
Estarão ligados por uma imensidão de rituais. Alguns serão inspirados no passado: festas
das colheitas, serões de dança, costumes relacionados com
o trabalho. Outros serão inovações: celebração do Primeiro de Maio, comícios, aniversário
da Libertação, reuniões. Por toda a parte, a arte do povo encontrará o seu lugar. Por toda a
parte se desenvolverá, se transformará, se renovará. Será que enfim a compreendemos?
De facto, cedo se constataria que o inacreditável se transformava em realidade. Jamais
ninguém fez tanto pela nossa arte como o Governo comunista. Consagrou somas colossais à
criação de novos conjuntos. A música popular, violino e címbalo, todos os dias era tocada
no programa da rádio. Os cantos morávios invadiram as universidades, as festas do
Primeiro de Maio, as danças aos pulos dos jovens, as galas oficiais. Não só o jazz
desapareceu completamente da superfície, mas simbolizou o capitalismo ocidental e os seus
gostos decadentes. A juventude deixou o tango como o boogie-woogie, e passou a dançar a
roda em coro, de mãos pousadas sobre os ombros dos vizinhos. O Partido Comunista
aplicou-se na criação de um novo estilo de vida. Apoiou-se na famosa definição que
Estaline dera da arte nova: um conteúdo socialista numa forma nacional. Essa forma
nacional, ninguém podia conferi-Ia à nossa
música, à nossa dança, à nossa poesia, senão a arte popular.
A nossa orquestra começou a vogar nas grandes ondas dessa política. Cedo se tornou
conhecida em todo o país. O seu efectivo de cantores e dançarinos aumentou, tornou-se um
grande conjunto que actuava em grandes palcos e partia todos os anos em tournée para o
estrangeiro. E não cantávamos apenas, à moda antiga, a canção do malvado que ma-
tara a sua bem-amada, mas também as árias que nós mesmos compúnhamos. Por exemplo,
uma canção sobre Estaline ou sobre as ceifas cooperativas. A nossa canção já não era
simples evocação dos tempos passados. Fazia parte da história mais contemporânea.
Acompanhava-a.
O Partido Comunista apoiava-nos. As nossas reticências políticas também se dissiparam
rapidamente. Entrei para o Partido desde os princípios do ano de quarenta e nove. Os
companheiros do conjunto juntaram-se-me um após outro.
139

Vil
Mas continuávamos amigos. De quando é que data, pois, a primeira sombra entre nós? Com
certeza que o sei. Sei-o perfeitamente. Foi no dia do meu casamento.
Em Brno, era aluno da Escola de Altos Estudos Musicais ao mesmo tempo que seguia, na
Universidade, os cursos de musicologia. No terceiro ano, já não me sentia muito bem
dentro da minha própria pele. Em casa, o meu pai ia de mal a pior. Teve uma congestão
cerebral. Salvou-se, mas foi obrigado a ter muito cuidado. A ideia da sua solidão obcecava-
me. Se algo lhe acontecesse, não poderia sequer mandar-me um
telegrama. Era a tremer que voltava para junto dele todos os sábados e deixava-o na
segunda-feira de manhã com nova angústia. Um dia, essa angústia foi mais forte do que eu.
Torturara-me uma segunda-feira, na
quarta ainda mais e na quinta enfiei todas as minhas coisas na mala, acertei contas com a
estalajadeira e disse-lhe que partia para não voltar.
Ainda me vejo no caminho da estação para a nossa casa. Para atingir a minha aldeia,
vizinha da cidade, havia que atravessar o campo. Era Outono, antes do crepúsculo. O vento
soprava, pelos carreiros, catraios lançavam para o céu papagaios de papel que
ziguezagueavam na ponta de intermináveis fios. Também o meu pai, em tempos, me
construíra um. Acompanhava-me aos campos, largava-o e corria para que o ar lhe desse
balanço e o levantasse bem alto. Isto não me divertia muito. O meu pai divertia-se mais.
Esta lembrança enternecia-me, e apressava o passo. Tinha-me passado pela cabeça que o
meu pai enviava esses papagaios à minha mãe.
Desde sempre que a imagino no céu. Não, já não acredito em Deus, na vida eterna ou em
coisas semelhantes. Não é uma questão de fé. Trata-se de imagens. Não sei porque hei-de
abandoná-las. Sem elas, sentir-
140

-me-ia órfão. VIasta repreende-me por ser um sonhador. Parece que não @Vejo as coisas
tal como são. De modo nenhum, vejo-as bem como são, @mas, para além das visíveis,
apercebo-me de outras. Não é em vão que existem imagens. E delas que nós somos tecidos.

Nunca conheci a minha mãe. Por isso nunca a chorei. Regozijo-me, pelo contrário, por a
saber, jovem e bela, no céu. As outras crianças não tinham mães tão jovens como a minha.
Adoro imaginar São Pedro, sentado num banquinho, na sua janelinha de onde se vê a Terra.
Frequentemente, a mãe vai ter com ele a essa janela. Por ela, Pedro faria qualquer coisa,
porque ela é bela. Ele permite-lhe olhar. E ela vê-nos. A mim e ao pai.
O rosto da mãe nunca estava triste. Pelo contrário. Quando ela nos
observava pela janelinha do torreão de Pedro, ria-se frequentemente. Quem vive na
eternidade não conhece a mágoa. Sabe que a vida dos homens não dura senão um segundo
e que os reencontros estão próximos. Mas quando eu estava em Brno e deixara o pai só, os
traços da mãe pareciam-me tristes e pesados de recriminações. E eu entendia viver em paz
com ela.
Assim,,apL!Ls @ava-iLie para casa e olhava os^p@ a s no
p . ga@os-suspen,so céu. Estava feliz. Não lamentava nada do que abandonava.
Evidentemente, estava ligado ao meu violino e à musicologia. Mas não me esforçava por
fazer carreira. Mesmo o maior sucesso não teria rivalizado com a minha alegria de voltar a
casa.
Quando anunciei ao meu pai que não regressaria a Brno, ele zangou-se muito. Não admitia
que eu pudesse estragar a minha vida por sua causa. Então, contei-lhe que tivera de deixar a
escola por causa das minhas notas medíocres. Quando por fim acreditou em mim, ainda se
zangou mais comigo. Mas isso não me atormentou por aí além. Tanto mais que eu não
regressara para permanecer ocioso. Voltara à minha posição de primeiro -violino na
orquestra do nosso conjunto. Além disso, obti-
vera um lugar de professor de Violino na escola municipal de música. Assim podia
consagrar-me àquilo que amava.
O que significava, também, a VIasta. Ela habitava numa aldeia vizinha que, tal como a
minha, forma hoje um dos arrabaldes da cidade. Dançava no nosso conjunto. Conhecendo-a
aquando dos meus estudos em Brno, tivera prazer em encontrá-la quase quotidianamente
desde o
meu regresso. O verdadeiro amor desabrocharia, no entanto, um pouco mais tarde -
inesperadamente, quando de um ensaio em que ela dera uma queda tão desastrada que
partira uma perna. Eu transportara-a nos meus braços, até à ambulância que chamáramos de
urgência. Sentira nos
141
meus braços o seu corpo delgado, frágil, débil. Subitamente, espantado, dera-me conta que
eu media um metro e noventa, que pesava cem quilos, que poderia abater carvalhos e que
ela era tão frágil, tão frágil.
Foi então que se fez luz. Em VIasta, pequena criatura ferida, vi subitamente um outro
personagem, bastante mais conhecido. Como não o
notara eu antes? VIasta era a pobre serva, personagem de inúmeras can-
ções populares! A pobre serva que outros bens não possui senão a sua
honestidade, a pobre serva que se humilha, a pobre serva de vestimentas velhas, a pobre
serva órfã.
Não era, claro, exactamente isto. Ela tinha os seus pais, e nada pobres. Mas justamente
porque eram grandes cultivadores, a nova era começava a abafá-los. Não era raro que
VIasta chegasse aos nossos ensaios desfeita em
lágrimas. Impunham-lhes entregas consideráveis. Seu pai fora declarado koulak. Haviam-
lhe requisitado o tractor e as máquinas. Ameaçavam-no de prisão. Eu lamentava-a.
Acalentava a ideia de me ocupar dela. Da pobre serva.
Desde que a reconhecia assim iluminada por uma palavra de canções populares, era como
se eu imitasse um amor mil vezes vivido. Como se o tocasse a partir de uma partitura
imemorial. Como se essas canções me cantassem. Entregue a essa vaga sonora, sonhava
com casamento.
Dois dias antes do acontecimento, Ludvik chegou sem aviso prévio. Fui esperá-lo com
efusão. Imediatamente, anunciei-lhe a grande novidade, acrescentando que, uma vez que
ele era o meu mais querido companheiro, contava com ela para padrinho. Deu-me a sua
palavra. E veio.
Os meus amigos do conjunto faziam questão em me organizar umas verdadeiras bodas
morávias. Na primeira hora, apareceram todos sem excepção em nossa casa, com música e
trajes. Um quinquagenário virtuoso do címbalo era o pagem de honor mais velho. Cabiam-
lhe os deveres do "patriarca". Antes de tudo, o pai ofereceu a todos aguardente de ameixa@
pão e toucinho. Depois, ordenando silêncio com um gesto, o patriarca recitou com voz
sonora:
Honrados jovens e donzelas também, Senhores e Senhoras! Convocado vos ei a este lugar
porque o donzel desta casa nos suplicou que com ele caminhemos até à casa do pai daquela
que ele escolheu por noiva, nobre donzela...
O patriarca é o chefe, a alma, a mola real de toda a cerimônia. Assim foi desde sempre.
Durante dez séculos. O noivo, esse, nunca foi su-
142

jeito do seu casamento. Ele não se casava. Casavam-no. O matrimónio apoderava-se dele e
levava-o como uma grande onda. Não lhe cabia agir, falar. Em seu lugar, falava e
discursava o patriarca. E nem sequer o patriarca. Era a tradição ancestral que passava de
homem em homem, arrastando-os na sua doce corrente.
Conduzidos pelo patriarca, partimos para a aldeia da minha noiva. Atravessávamos os
campos e os meus amigos tocavam pelo caminho. Já defronte da casa de VIasta, os seus,
trajados, esperavam-nos.
O patriarca declarou:
Somos viajantes fatigados. Vós que sois generoso deixai-nos ser entrados sob o vosso tecto
bondoso.
Do grupo que se encontrava frente à porta destacou-se um velho. "Se sois pessoas
honradas, bem-vindos sejais!" E convidou-nos para entrar. Precipitámo-nos para o interior
sem dizer palavra. Uma vez que o patriarca nos apresentara como simples viajantes
cansados, não tínhamos, a princípio, de revelar o nosso verdadeiro intento. O velho, porta-
voz da parte da noiva, encorajou-nos: "Se algum peso oprime vossos corações, falai! "
Então o patriarca começou a falar, a princípio de forma obscura, por enigmas, e o seu
interlocutor respondeu-lhe de idêntica forma. Após bastantes evasivas, acabou por revelar a
razão da nossa visita.
Ao que o velho lhe pôs a seguinte questão:
Pergunto-vos, caro compadre, porquê esse honesto aspirante pretende tomar esta honesta
jovem para esposa. É pela flor ou pelo fruto?
O patriarca respondeu:
Toda a gente o sabe bem, a flor desabrocha, beleza e esplendor, e faz-nos alegres. Mas a
flor fenece e o fruto cresce. A nossa noiva não é pois de modo algum pela flor, mas pelo
fruto, pois o fruto nos alimenta.
'143

4_
Por um momento ainda, trocaram-se as réplicas, até à conclusão do velho: "Nestas
condições, façamos aparecer a noiva, que ela diga se con-
sente ou não." Passou ao quarto contíguo, de onde, daí a momentos, voltou trazendo pela
mão uma mulher mascarada. Magra, longa, toda ossos, a cara envolta num lenço: "Ei-la, a
tua promessa!"
No entanto, o patriarca abanava a cabeça e nós próprios com grande ruído manifestávamos
todos o nosso desacordo. O velhote, tendo hesitado um pouco, resolveu-se a levar a mulher
mascarada. Só então chamou VIasta. Ela tinha botas pretas, avental vermelhão e um bolero
de cores vivas. Sobre a cabeça, uma coroa entrançada. Pareceu-me bela. Ele pegou-lhe na
mão e pô-la na minha. Depois, voltado para a
mãe da noiva, o velho interpelou-a com uma voz chorosa: "Oh, mãezinha! "
Ouvindo estas palavras, a minha futura retirou-me a sua mão, prostrou-se diante da mãe e
baixou a fronte. O velho prosseguiu:
Mãezinha querida, perdoai o mal que vos fiz! Mãezinha bem amada, por amor de Deus,
perdoai-me o mal que vos fiz! Mãezinha tão adorada, pelas cinco chagas de Cristo, perdoai-
me o mal que voz fiz.
Nós só ali estávamos como figurantes mudos de um texto imemorial. E o texto era belo,
envolvente, e tudo isso era verdade. A música, em
seguida, recomeçou a tocar e nós tomámos o caminho da cidade. A cerimónia teve lugar na
câmara municipal, sempre com música. E depois fomos almoçar. Ã tarde, toda a gente
dançou.
À noite, as damas de honor tiraram a VIasta a sua coroa de rosmaninho e entregaram-ma
com solenidade. Dos seus cabelos soltos elas fizeram uma trança enrolada à volta da sua
cabeça, e puseram-lhe uma coifa justa. Este rito representava a passagem do estado de
virgem ao de mulher. VIasta, claro, já há muito que não era virgem. Não tinha, portanto
direito ao símbolo da coroa. Mas isso não me parecia importante. A um
nível superior, muito mais importante, era só agora que ela perdia a vir-
gindade, no instante em que as suas damas de honor me ofereciam a sua
coroa.
Deus, como é possível que a lembrança dessa pequena coroa me emo-
cione mais que a nossa primeira união e que o verdadeiro sangue de VIasta? Não sei, mas é
assim. As mulheres cantavam e, nas suas canções, esta pequena coroa flutuava na água e a
corrente desatava as suas
144

fitas encarnadas. Eu tinha vontade de chorar. Estava embriagado. Via-a, aquela coroa que
flutuava, o riacho passava-a à ribeira, a ribeira ao rio, o rio ao Danúbio e o Danúbio ao mar.
Eu via-a, a coroa da virgindade, partida sem retorno. Sim, sem retorno. Todas as situações
capitais da
Para que um homem seja um homem, é preciso que ele esteja plenamente consciente de
este não re-
torno. Que não faça batota. Que não vá fazer de conta que de nada sabe.
O homem moderno faz batota. Esforça-se por contornar todos os grandes momentos que
são sem retorno e por passar assim sem pagar do nascimento à morte. O homem do povo é
mais honesto. Desce cantando ao fundo de cada situação capital. Quando VIasta tinha
ensanguentado a toalha que eu estendera debaixo dela, eu estava longe de suspeitar que
encontrava a grande situação sem retorno. No entanto, nesse minuto da cerimônia e dos
cantos, o não retorno estava lá. As mulheres cantavam despedidas. Espera, espera, meu
doce galã, que eu me despeça da minha mãezinha. Espera, espera, aguenta a tua montada, a
minha irmãzinha chora, deixá-la é difícil. Adeus, adeus, minhas companheiras amadas,
parto para sempre, parto para nunca mais.
Depois, a noite adensava-se e o casamento tinha feito cortejo até à
nossa casa.
Abri a porta de entrada. VIasta, no limiar, voltou-se uma última vez para os meus amigos
reunidos diante da casa. Um deles arrancou então com uma última canção:
Ela estava na soleira, como parecia bela, rosa, minha rosinha. A soleira jd passou,
desapareceu o encanto, murchou a minha rosinha.
Depois a porta fechou-se sobre nós. Estávamos sós. VIasta tinha vinte anos, eu pouco mais.
Mas eu pensava comigo que ela acabara de atravessar o limiar e que a partir desse minuto
mágico o seu encanto iria cair dela como folhas de uma árvore. Eu via nela a queda
próxima das folhas. A queda que começara já. Pensava que ela não era só uma flor, que,
nesse instante, o instante futuro do fruto está já presente nela. Eu sentia em tudo isso a
ordem inexorável com que me confundia, que eu consentia. Pensava em VIadimir, que não
conhecia então e de quem não
145

pressentia sequer o aspecto. Pensava nele, todavia, e, através dele, olhava as lonjuras da sua
posteridade. Depois VIasta e eu afundámo-nos na cama e parecia-me que era a sábia
infinitude da espécie humana que nos recebia nos seus braços macios.
146
- @k

O que Ludvik me fez, no dia do meu casamento? Pode-se dizer o


mesmo que nada. Tinha a boca gelada, estava estranho. À tarde, enquanto se dançava, os
rapazes tinham-lhe proposto um clarinete. Queriam vê-lo tocar com eles. Ele recusou.
Pouco depois, eclipsava-se. Foi uma sorte que eu, um pouco aéreo ., não tenha prestado
atenção. No entanto, no dia seguinte, notei que o seu desaparecimento tinha sido como uma
pequena mancha no dia da véspera. O álcool, à medida que se diluía no
meu sangue, aumentava essa mancha. E VIasta mais ainda do que o álcool. Ela nunca tinha
gostado de Ludvik.
Quando lhe anunciei que ele ia ser meu padrinho, ela não pareceu entusiasmada. Por isso
até lhe calhou bem, logo no dia seguinte ao do nosso casamento, poder lembrar-me o
comportamento dele. A cara que ele fez todo o tempo, corno se toda a gente o maçasse!
Vaidoso.
Na mesma noite, Ludvik veio visitar-nos. Com uns presentinhos para VIasta e as suas
desculpas.. Pediu -nos 9 L@_11@e@5.@doá@s r@ ontem não estava nos seus dias.
Contou o que lhe tinha,ac @pia
x-
puls do N --- ...... da---fa
9 culdade, Sçm @gbg o, que ia ser dele. Eu não queria crer nos meus ouvidos
e não sabia o que dizer. Aliás, não querendo que o lamentássemos, Ludvik apressou-se a
mudar de conversa. O nosso conjunto devia partir, daí a quinze dias, para uma grande
tournée no estrangeiro. Nós, provincianos, não cabíamos em nós de contentes. Ludvik pôs-
se a fazer-me perguntas sobre a viagem. Só que eu
me lembrei logo que, desde pequeno, ele sonhava com uma viagem ao estrangeiro, e agora
já não poderia fazê-la. Às pessoas marcadas politicamente não as deixavam passar a
fronteira. Eu via que as nossas situações respectivas eram bem diferentes a partir de agora.
Era impossível para mim falar em voz alta da nossa tournée, com medo de iluminar o
147

precipício subitamente cavado entre os nossos destinos. Preocupado com


manter esse abismo na obscuridade, eu temia cada palavra que pudesse iluminá-lo. Mas não
havia nenhuma que o não fizesse. A mínima frase que respeitasse à nossa vida mostrava
que estávamos longe um do outro. Que as nossas perspectivas, o nosso futuro, bifurcavam.
Que éramos levados em direcções opostas. Tentei pois falar de banalidades. Mas foi pior. A
insignificância voluntária da conversa tornou-se logo transparente e por isso insuportável.
Ludvik despediu-se e foi-se embora. Ofereceu-se como voluntário para um trabalho fora da
cidade enquanto eu conduzi o meu conjunto ao es-
trangeiro. Desde então não tornei a vê-lo durante vários anos. Mandei-lhe uma ou duas
cartas para a tropa, em Ostrava. De cada vez, sentia uma insatisfação igual à da nossa
última conversa. Não podia olhar de frente a queda de Ludvik. Tinha vergonha do meu
sucesso. Era-me intolerável dirigir ao meu amigo, do alto dos meus sucessos, as palavras de
encorajamento ou de compaixão. Procurava antes fingir que entre nós nada estava mudado.
As minhas cartas pormenorizavam-lhe tudo o que fazíamos, o que havia de novo no seio do
conjunto, como se afirmava o novo tocador de címbalo. Falava-lhe desse meu mundo como
se ele continuasse a ser-nos comum.
Depois, um dia o meu pai recebeu uma comunicação. A mãe de Ludvik morrera. Ninguém
em nossa casa tinha ideia que ela estivesse doente. Quando Ludvik desapareceu do meu
horizonte, deixei de me preocupar com ela. Tinha o cartão tarjado de negro na mão e
descobria a minha indiferença pelas pessoas que, por pouco que fosse, se tinham afastado
do caminho da minha vida. Da minha vida bem sucedida. Sentia-me culpado. Foi então que
me apercebi de uma coisa que me transtornou. Em baixo, no cartão, figuravam, como única
família. o casal Koutecky. De Ludvik não havia menção.
Veio o dia do funeral. Nessa manhã tinha-me tomado o nervoso ao imaginar o encontro
com Ludvik. Mas ele não estava lá. Poucas pessoas iam atrás do caixão. Perguntei aos
Koutecky onde estava Ludvik. Encolhendo os ombros, disseram que não sabiam. O
pequeno grupo e o caixão pararam junto de uma sepultura sumptuosa com uma pesada
pedra mármore e uma estátua branca de um anjo.
Como tinham confiscado a totalidade dos bens deste rico empresário e da família, eles
viviam agora de uma magra pensão. Não lhes restava mais nada senão este imponente
jazigo de família com um anjo. Eu já sabia isso, mas não conseguia perceber porque
levavam o caixão justamente para aí.
148

Só mais tarde vim a saber que nessa altura Ludvik se encontrava preso. Na nossa cidade só
a sua mãe o sabia. Quando ela morreu, os Koutecky tomaram posse do cadáver da cunhada
mal-amada. Podiam enfim vingar-se do seu ingrato sobrinho. Roubavam-lhe a mãe.
Escamoteavam-na sob o seu bloco de mármore com um anjo em cima. Esse anjo de cabelos
anelados e com uma palma não deixou de aparecer-me desde então. Ele planava sobre a
vida pilhada do meu companheiro, a quem tinham sa-
queado os próprios corpos dos seus pais mortos. O anjo da pilhagem.
149

IX
VIasta não gosta de extravagâncias. Descansar de noite no banco do jardim é uma
extravagância. Ouvi pancadas enérgicas no vidro. A sombra severa de uma silhueta
feminina em camisa de noite recortava-se na janela. Obedeci. Sou incapaz de fazer frente
aos mais fracos. E visto que tenho um metro e noventa e levanto com uma mão'um saco de
cem quilos, nunca me aconteceu encontrar alguém que pudesse enfrentar.
Por isso fui-me deitar ao lado de VIasta. De passagem, disse que tinha encontrado Ludvik.
"E então?", disse ela com um desinteresse estudado. Decididamente ela não o suportava.
Ainda hoje não pode com ele. De resto não tem razão de queixa. Só o viu uma vez desde
que casámos. Em cinquenta e seis. Dessa vez eu não tinha conseguido dissimular o
abismo que nos separava.
Ludvik tinha já atrás de si o serviço militar, uma prisão e vários anos de trabalho na mina.
Em Praga, ele conseguira voltar aos estudos e se
reaparecera na nossa cidade era só porque tinha de arrumar algumas formalidades de
polícia. A ideia de me encontrar em sua companhia punha-me em desassossego. Mas o
homem que encontrei não tinha nada de um desgraçado destruido. Bem pelo contrário. Este
Ludvik era diferente daquele que conhecera antes. Havia nele uma aspereza, uma solidez e
talvez mais calma. Nada que atraísse a compaixão. Pareceu-me que íamos transpor sem
custo o abismo que me apavorava. Impaciente de reatar, convidei-o para um ensaio da
nossa orquestra. Pensava que continuava a ser a dele também. Que importância tinha que
um outro estivesse no címbalo, e outro no segundo violino, que até o clarinetista tivesse
mudado, restando apenas eu da velha guarda.
Ludvik tinha-se sentado muito perto do címbalo. Tocámos primeiro as nossas canções
favoritas, aquelas que cultivávamos quando ainda an-
150

dávamos no liceu. A seguir, umas novas que fomos descobrir em aldeias perdidas no sopé
das montanhas. Por fim vieram aquelas de que nos orgulhamos mais. Não já cantigas
tradicionais autênticas, mas umas inventadas por nós à maneira de arte popular.
Cantávamos a imensidão dos campos cooperativos ou os pobres, hoje senhores no seu país,
ou
o tractorista a quem a cooperativa não deixa que falte nada. A música destas canções
parecia-se com as melodias populares autênticas e a sua
letra era mais actual que o texto de jornais. Neste florilégio, era-nos particularmente cara a
canção dedicada a Fucik, herói torturado pelos nazis durante a ocupação.
Sentado na cadeirinha, Ludvik seguia com os olhos o percurso dQs malhetes do tocador de
címbalo. Ia-se servindo de vinho com frequência. Observava-o por cima do cavalete do
meu violino. Ele estava recolhido, e nem uma só vez levantou a cabeça na minha direcção.
Depois, uma após outra, esposas entraram na sala. Sinal de que o
ensaio chegava ao fim. Convidei Ludvik a acompanhar-me a minha casa. VIasta fez-nos
qualquer coisa para jantar e, deixando-nos um com o ou-
tro, foi dormir. Ludvik falou disto e daquilo. Mas senti que ele só falava tanto para poder
calar-se sobre aquilo de que eu queria falar. Mas como não dizer nada ao meu melhor
amigo do que constituía a mais preciosa riqueza de nós os dois? Por isso interrompi Ludvik
na sua tagarelice. Que pensas das nossas canções? Ludvik respondeu que tinha gostado.
Não o deixei ficar-se por essa boa educação. Fiz-lhe mais perguntas.
O que achava das canções novas que tínhamos composto?
Ludvik evitava a discussão. Pouco a pouco fui-lha impondo e ele acabou por falar. O
conjunto de velhos cantos populares é de uma grande beleza. Quanto ao resto, o nosso
repertório deixa-o frio. Conformamo-nos demasiado ao gosto do dia. Não é de espantar.
Actuando perante o grande público, procuramos agradar. Por isso limamos das nossas
canções todos os seus traços originais. Apagamos o seu ritmo inimitável adaptando-as a
uma métrica convencional. Vamos entroncar na camada cronológica mais superficial
porque isso passa mais facilmente
a rampa.
Protestei. Nós só estamos no começo. O que pretendemos é promover ao máximo a difusão
da canção popular. Por isso temos de a aco-
modar aos hábitos de um maior número. O importante é que já tenhamos criado um folclore
contemporâneo, canções populares novas que contam a nossa vida de hoje.
Ele não estava de acordo. Eram justamente essas novas canções que lhe dilaceravam os
ouvidos. Que ersatz lamentável! E que falsidade!
151

Ainda me custa pensar nisso. Quem é que nos tinha ameaçado de acabar como a mulher de
Loth se insistíssemos em olhar para trás? Quem é que nos tinha contado que, da música do
povo, iria sair o novo estilo da época? E quem é que nos tinha exortado a dar um piparote
nessa música popular para a forçar a andar ao lado da história do nosso tempo?
Tudo isso era utopia, disse Ludvik. Utopia como? Essas canções estão aí! Existem! Riu-me
na cara. O vosso conjunto canta-as. Mas, fora do conjunto, mostra-me um só homem que as
cante! Encontra-me um só cooperante que as assobie para seu prazer, essas vossas
cantilenas à glória das cooperativas! Haviam de fazer uma linda cara, de tal maneira elas
são falsas! O texto de propaganda salta fora dessa música pseudopopular como
um colarinho mal ajustado! Uma canção simili-morávia sobre Fucik! Que desafio ao bom
senso! Um jornalista de Praga! O que é que ele tem a ver com a Morávia?
Fucik, objectei, pertence a todos, e nós também temos o direito de o cantar à nossa maneira.
À nossa maneira, dizes tu? Vocês cantam à maneira da agit-prop e
nada à nossa maneira! Lembra-te lá das palavras! E depois, porquê uma cançao sobre
Fucik? Não houve mais ninguém na Resistência? Não torturaram outros?
Mas ele é o mais conhecido! Naturalmente! O aparelho encarregado da propaganda vela
pela boa ordem na galeria dos grandes mortos. De entre os heróis, precisa de um herói
chefe.
Para que são esses sarcasmos? Não tem cada época os seus símbolos? Seja, mas é
interessante saber quem foi escolhido para servir de símbolo! Na mesma altura, houve
centenas que foram tão valentes como ele e foram esquecidos. E eram muitas vezes gente
extraordinária. Políticos, escritores, cientistas, artistas. Deles não fizeram símbolos. As suas
fotografias não enfeitam as paredes das secretarias nem das escolas. No entanto, eles
deixaram uma obra. Mas é exactamente a obra que incomoda. É difícil arranjá-la, podá-la,
cortá-la por dentro. É a obra que incomoda na galeria de propaganda dos heróis.
Nenhum deles é o autor de Reportagem Escrita sob a Forca! Aí está! O que fazer de um
herói que se cala? Quem se abstém de utilizar os seus últimos momentos para um
espectáculo? Para uma lição pedagógica? Fucik, se bem que não tivesse nenhuma obra atrás
de si, considerou importante comunicar ao universo o que pensava, sentia, vivia na prisão,
os seus avisos e recomendações à humanidade. Estas coi-
152

sas, anotava-as em pequeníssimos papéis, fazendo arriscar a pele àqueles que às escondidas
os passavam para o exterior para os conservar em
lugar seguro. Em que alta conta devia ele ter os seus próprios pensamentos e impressões!
Em que alta conta se devia ter a si mesmo!
Isto era mais do que eu podia suportar. Então Fucik era apenas podre de vaidoso?
Ludvik parecia um cavalo embalado. Não, não era a vaidade que o levava a escrever. Era a
fraqueza. Pois ser corajoso no isolamento, sem
testemunhas, sem o assentimento dos outros, face a face consigo mesmo, requer um grande
orgulho e muita força. Fucik precisava da ajuda do público. Na solidão da sua cela, ele
criava ao menos um público fictício. Precisava de ser visto! Fortificar-se com os aplausos!
Imaginários, à falta de outros! Transformar a sua cela num palco e tornar suportável o seu
destino expondo-o, exibindo-o.
Eu estava preparado para o abatimento de Ludvik. Para o seu azedume. Mas este furor, esta
zombaria rancorosa apanhavam-me desprevenido. Que mal lhe tinha feito o pobre Fucik?
Vejo o valor de um homem na sua fidelidade. Bem sei, Ludvik sofreu um castigo injusto.
Mas é tanto mais grave! Porque, então, as razões da sua mudança de opinião são demasiado
transparentes. Então pode-se mudar totalmente de atitude perante a vida pela única razão de
se ter sido ofendido?
Tudo isso, não esperei para o dizer a Ludvik. Então passou-se uma
coisa inesperada. Ludvik não me respondeu. Como se essa febre de raiva o tivesse
abandonado de repente. Ele sondava-me, de olhar intrigado, e depois disse-me em voz
baixa e calma para não me zangar. Ele podia estar enganado. Disse-o tão estranhamente,
com uma tal frieza, que a
sua insinceridade me pareceu flagrante. Sobre uma tal insinceridade eu
não queria que terminasse a nossa conversa. Apesar de toda a minha amargura, continuava
firme na minha intenção inicial. Queria explicar-me com Ludvik e restaurar a nossa
amizade. Por mais duro que tivesse sido o confronto, esperava, no entanto, que houvesse
em qualquer parte, no fim de uma longa disputa, um canto de terra comum onde
antigamente se estava tão bem e onde poderíamos de novo habitar os dois. No entanto, o
esforço que empreguei para continuar a conversa caiu no va-
zio. Ludvik desfazia-se em desculpas: mais uma vez, tinha cedido à sua
mania do exagero. Pedia-me para esquecer as afirmações que fizera.
Esquecer? E porque diabo seria preciso esquecer uma conversa séria? Não seria bem
melhor continuá-la? Só no dia seguinte pude entrever o sentido oculto do pedido de Ludvik.
Ele tinha passado a noite em nossa casa e almoçado de manhã. A seguir, tínhamos ainda
meia hora
153

para conversar. Contou-me os difíceis passos que tivera de dar para conseguir licença para
terminar nos próximos dois anos os seus estudos na faculdade. Que marca para a vida
representava a sua exclusão do Partido. A desconfiança que todos lhe testemunhavam por
toda a parte. Só graças à ajuda de um pequeno número de amigos, que o tinham conhecido
antes da sua exclusão do Partido, talvez ele conseguisse tornar a
sentar-se nos bancos das salas de aula.
A seguir falou de alguns conhecidos que estavam numa situação parecida com a sua.
Assegurou que eles eram seguidos e as suas conversas
cuidadosamente registadas. Que as suas relações eram interrogadas, e qualquer testemunho
zeloso ou mal-intencionado podia valer-lhes alguns anos suplementares de complicações.
Depois ele deslizou de novo para futilidades e, chegado o momento de nos separarmos,
declarou que tinha gostado de me ver. Repetiu o pedido para eu não pensar mais no que
tinha dito na véspera.
A ligação deste pedido com as alusões à experiência vivida pelos seus amigos era
demasiado clara. Eu não estava em mim. Ludvik tinha deixado de falar comigo porque
tinha medo! Ele tinha medo que a nossa
discussão viesse a ser divulgada! Medo de uma denúncia! Medo de mim! Era horrível. E -
uma vez mais - totalmente imprevisto. O abismo entre nós era mais profundo do que eu
pensava, tão profundo que não nos deixava acabar sequer uma conversa.
154

X
VIasta já dorme. Pobre pequena. De vez em quando, ligeiramente, ressona. Tudo dorme em
nossa casa. E eu estou estendido, largo, comprido, grande, e penso como estou sem força.
Tive essa cruel sensação daquela vez. Antes, crédulo, pensava que tudo repousava nas
minhas mãos.. Ludvik e eu nunca nos tínhamos magoado. Um pouco de boa von-
tade e o que é que me impediria de tornar a aproximar-me dele?
A prova está feita de que isso não está nas minhas mãos. Nem a nossa
ruptura nem a nossa reaproximação estiveram jamais nas minhas mãos. Por isso voltei a pô-
las nas mãos do tempo. O tempo passava. Decorreram nove anos desde o nosso último
encontro. Ludvik terminou os estudos e encontrou um excelente posto como técnico
científico num sector
que o interessa. De longe, sigo o seu destino. Sigo-o com afeição. Nunca poderei considerar
Ludvik como um inimigo ou como um estranho. É meu amigo, mas encantado. Como numa
versão revista do conto onde a noiva de um príncipe é transformada em serpente ou em
sapo. Nos contos, a fiel paciência do príncipe sempre salvou tudo.
Mas eu, o tempo não acorda o meu amigo do seu encantamento. Várias vezes, nesses anos,
soube que ele tinha passado pela nossa cidade. Nem uma vez veio a minha casa. Encontrei-
o hoje e evitou-me. Diabo de Ludvik.
Tudo começou depois de nós termos conversado pela última vez. De um ano para o outro,
senti o deserto alargar-se à minha volta e uma an-
siedade crescer no meu coração. Havia cada vez mais fadigas e cada vez menos alegrias e
sucessos. Antigamente o conjunto partia todos os anos
em tournée ao estrangeiro, depois os convites espaçaram-se e agora já quase não nos
convidam. Estamos sempre a trabalhar, redobramos de esforços, mas é o silêncio à nossa
volta. Fiquei numa sala vazia. E parece-
155

-me que foi Ludvik que mandou que eu ficasse só. Porque não são os inimigos, mas os
amigos que condenam o homem à solidão.
Desde esse tempo, cada vez com mais frequência, fui tomando o hábito de me evadir por
este caminho de terra bordejado de campos. Por este caminho campestre onde, isolada num
talude, cresce uma roseira. Aí, encontro os últimos fiéis. Há o desertor com os seus rapazes.
Há um músico vagabundo. E há, atrás do horizonte, uma casa de madeira e lá dentro VIasta
- a pobre serva.
O desertor chama-me seu rei e jura-me que posso, quando quiser, refugiar-me sob a sua
protecção. Basta que eu venha para junto da ro-
seira. Ele lá estará sempre.
Como seria simples encontrar a paz num mundo de imagens! Mas tenho sempre tentado
viver nos dois universos ao mesmo tempo, sem deixar nem um nem outro. Não tenho
direito de renunciar ao mundo real, ainda que nisso perca tudo. Talvez, ao fim e ao cabo,
baste que eu leve a bom termo uma só coisa. A última:
Entregar a minha vida, como mensagem clara e inteligível, ao único indivíduo que a
compreenderá e a levará mais longe. Até lá, não tenho o direito de me ir embora com o
desertor para o Danúbio.
Este homem único em quem penso, minha esperança última após tantas derrotas, separa-o
de mim um tabique e está dormindo. Amanhã, montará um cavalo. Terá o rosto velado.
Tratá-lo-ão por rei. Vem, meu pequenino. Disponho-me a adormecer. Eles hão-de dar-te o
meu título. Vou dormir. Quero ver-te a cavalo no meu sonho.
156

QUINTA PARTE
LUDVIK

Dormi muito tempo e muito bem. Levantei-me depois das oíto horas, não me lembrava de
nenhum sonho, nem bom nem mau, não me doía a cabeça, simplesmente não me apetecia
levantar-me; por isso fiquei deitado; o sono tinha erguido entre mim e o encontro de ontem
uma espécie de cortina; não que Lúcia, esta manhã, se tivesse desvanecido da minha
consciência, mas tinha-se tornado de novo uma abstracção.
Abstracção? Sim: depois do seu desaparecimento tão enigmático e doloroso, em Ostrava,
eu não tinha tido ainda qualquer meio prático de lhe procurar o rasto. E como (depois do
meu serviço militar) os anos passaram, pouco a pouco eu perdia o desejo de tais buscas.
Dizia-me que Lúcia, por muito que a tivesse amado, por perfeitamente única que ela fosse,
era inseparável da situação em que nos conhecêramos e nos apaixonáramos um pelo outro.
Era, pensava eu, um erro de raciocínio abstrair a mulher amada do conjunto das
circunstâncias em que se conheceu e frequentou, e aplicar-se à custa de uma obstinada con-
centração mental a depurá-la de tudo o que não fosse ela própria, e
portanto da história que se vivia com ela e que dava a sua forma ao
amor.
De facto, eu amo na mulher não o que ela é em si mesma, mas aquilo que nela se me dirige,
o que ela representa para mim. Amo-a como a
um personagem da nossa história comum. Que sentido faria um HarnIet privado do castelo
de Elsenor, de Ofélia, de todas as situações concretas que atravessa, do texto do seu papel?
Que lhe restaria para além de não sei que essência oca e ilusória? Do mesmo modo, Lúcia,
sem os arredores de Ostrava, sem as rosas passadas pelas grades, sem os seus vestidos
coçados, sem as minhas longas semanas de espera sem esperança, já não seria sem dúvida a
Lúcia que eu amava.
159

Assim eu concebia, assim eu explicava as coisas, e à medida que passavam os anos tinha
quase medo de revê-Ia, porque sabia que nos voltaríamos a encontrar num sítio onde Lúcia
não seria mais Lúcia, e que eu já não teria com que reatar a ligação. Não quero dizer com
isto que teria cessado de amá-la, que a tinha esquecido, que a sua imagem empalidecera;
pelo contrário: ela habitava-me dia e noite, como uma nostalgia silenciosa; desejava-a
como se desejam as coisas perdidas para sempre.
E como Lúcia se tornara num passado definitivo (que enquanto passado vive sempre, e
enquanto presente está morto), lentamente ela perdia para mim a sua aparência carnal,
material, concreta, para pouco a
pouco se desfazer em lenda, em mito inscrito em pergaminho e escon-
dido num pequeno cofre de metal depositado no fundo da minha vida.
Talvez por isso, justamente, o impensável tinha sido possível: a minha incerteza frente à
sua cara, na cadeira do barbeiro. Ainda por isso, esta manhã tivera a impressão de que esse
reencontro não fora real,- que se tinha desenrolado, ele também, ao nível da lenda, do
oráculo ou da adivinhação. Se, na noite passada, a presença real de Lúcia me tinha surgido
e projectado de repente no tempo longínquo em que ela reinava, nesta manhã de sábado
perguntava-me unicamente de coração em paz (repousado pelo sono): porque voltei a
encontrá-la? Que si@@fic;j e§te acaso, e o que ter@ _par@@ mç @fiZ@?
As histórias pessoais, além de se passarem, também dizem alguma coisa? Apesar de todo o
meu cepticismo, restou-me um pouco de superstição irracional, como aquela curiosa
convicção de que tudo o que me acontece tem para além do mais um sentido, que significa
qualquer coisa; que pela sua própria aventura a vida nos fala, nos revela gradualmente um
segredo, que se nos oferece como um enigma a decifrar, que as histórias que vivemos
formam ao mesmo tempo uma mitologia da nossa
vida e que essa mitologia detém a chave da verdade e do mistério. Será uma ilusão? É
possível, é mesmo verosímil, mas não posso reprimir essa necessidade de continuamente
decifrar a minha própria vida.
Ainda deitado na minha cama de hotel que rangia, pensava em Lúcia de novo transformada
em simples ideia, em simples ponto de interrogação. A cama rangia e essa particularidade
que aflorava de novo à minha consciência operou um desvio (brusco, discordante) de
pensamento para Helena. Como se essa cama a ranger fosse a voz que me chamava ao
dever, soltei um suspiro, tirei os pés para fora da cama, sentei-me na
borda, espreguicei-me, passei os dedos pelo cabelo, olhei o céu através dos vidros e depois
levantei-me. O encontro de ontem com Lúcia absorvera e sufocara, apesar de tudo, o meu
interessa por Helena, tão intenso
160

alguns dias antes. Esse interesse, agora, não era mais que a lembrança de um interesse; que
o sentimento de dever em relação a um interesse perdido.
Aproximei-me do lavatório, despi o casaco do pijama e abri completamente a torneira; as
mãos em concha sob o jacto, com gestos precipitados, esfreguei longamente o pescoço, os
ombros, o corpo, antes de me
enxugar com a toalha; queria activar o sangue. Assusteí-me subitamente com o meu
desinteresse pela chegada de Helena; receei que essa indiferença estragasse uma ocasião
excepcional que tinha poucas hipóteses de se repetir. Prometi-me uma sólida colação,
pontuada de uma vodca.
Desci à sala do café, mas nada mais encontrei do que um desolador cortejo de cadeiras
empilhadas, de pés para o ar, sobre mesas redondas sem toalha, entre as quais vagueava
uma velhota com um avental sujo.
Na recepção, perguntei ao porteiro, enfiado detrás do balcão, numa cadeira tão profunda
como a sua indolência, se era possível tomar o pequeno-almoço no hotel. Sem um
movimento, disse que hoje era o dia de encerramento do café. Saí para a rua. O dia
anunciava-se bonito, pequenas nuvens passeavam-se no céu e o vento ligeiro levantava a
poeira do passeio. Apressei-me em direcção à praça. Defronte do talho havia bicha; de
alcofa ou saco de rede no braço, as mulheres esperavam pacientemente a sua vez. Entre os
transeuntes reparei nalguns segurando na mão, como se fosse uma tocha em miniatura, um
cone de gelado encimado por um capuz cor-de-rosa, que lambiam. Nesse instante, eu
entrava
na grande praça. Havia aí uma casa de um só piso - um seIf-service.
Entrei. A sala era espaçosa, o chão de tijoleira; de pé, frente a mesas
muito altas, pessoas mordiam pequenos pães recheados e bebiam café ou cerveja.
Não me apetecia almoçar ali. Desde o acordar, tomara-me a obsessão de uma refeição
substancial de ovos e toucinho fumado, com um copo de vinho, para me revigorar. Veio-me
à lembrança um restaurante situado um pouco mais à frente, numa outra praça ajardinada e
com um
monumento barroco. Não devia haver nada de muito aliciante, mas chegava-me uma mesa,
uma cadeira e um criado disposto a servir-me.
Passei ao lado do monumento: o pedestal sustinha um santo, o santo
sustinha uma nuvem, a nuvem um anjo, o anjo uma outra nuvem, sobre a qual estava
sentado um anjo, o último; olhei, ao longo do monumento, a comovente pirâmide de santos,
de nuvens e de anjos, cuja pesada massa de pedra simulava os céus e a sua profundidade,
enquanto o céu real, azul-pálido, se mantinha desesperadamente longe dessa poeirenta
porção de terra.
161

Assim, atravessei a praça, com os seus bocados de relva e os seus bancos (suficientemente
nua, no entanto, para não alterar uma atmosfera
de vazio poeirento) e agarrei no puxador da porta do restaurante. Fechada. Comecei a
perceber que o pequeno festim tão desejado permanecia sonho, e isso alarmava-me,
tomando-o, com uma obstinação infantil, como condição decisiva para o sucesso daquele
dia. Percebi que as
pequenas cidades não se preocupavam com os originais que gostavam do pequeno-almoço
sentado, pois só abriam os restaurantes muito mais tarde. Desisti então de procurar um, dei
meia volta e voltei a atravessar
a praça no sentido inverso.
Voltei a ver as pessoas com os seus pequenos cones encimados por capuzes cor-de-rosa, e
voltei a repetir-me que aqueles cones me faziam lembrar tochas e que essa aparência
comportava talvez um certo significado, visto que as ditas tochas o não eram, mas só
imitações de tochas, e aquilo que transportavam solenemente, aquele traço fugidio de
prazer rosado, não era uma voluptuosidade mas uma imitação de voluptuosidade, o que,
segundo toda a verosimilhança, exprimia o inevitável ca-
rácter de imitação de todas as tochas e voluptuosidades daquela cidade de pó. Depois
calculei que, desde que tornasse a passar pela corrente dos porta-tochas lambedores, tinha
uma hipótese de chegar a uma pastelaria onde haveria uma ponta de mesa e um assento,
quem sabe se um café
forte e até uns bolinhos.
De facto, acabei num milk-bar; havia bicha para conseguir chocolate ou leite com
croissants e de novo as mesas montadas em andaimes e os clientes a beber e a comer em
cima deles. Na sala de trás sempre havia algumas mesas, cadeiras, mas tudo ocupado.
Escolhi, pois, a fila que avançava a pequenos passos; após dez minutos de espera consegui
um
leite com chocolate e dois croissants, levei-os para uma alta prateleira atravancada por meia
dúzia de imperiais vazias, e aí, numa extremidade da superfície sem líquido entornado,
pousei o meu copo.
Comi a uma velocidade aflitiva: apenas três minutos mais tarde, encontrava-me na rua:
soaram as nove horas; tinha ainda duas horas à minha frente: Helena tomara nessa manhã
em Praga o primeiro avião para Brno de forma a poder apanhar o autocarro que aqui chega
um pouco antes das onze horas. Eu sabia que seriam duas horas perfeitamente em branco.
Claro que podia ir visitar os velhos lugares da minha infância, deter-me perto da casa onde
nascera e onde a minha mãe viveu até ao fim dos seus dias. Penso muitas vezes nela, mas,
aqui, na cidade, onde o seu pequeno esqueleto jaz sob um mármore estranho, as minhas
recordações
162

são envenenadas: a acre sensação da minha impotência de então agrava-as - e é disso que
me defendo.
Não me restava, pois, senão sentar-me num banco da praça para me erguer logo de seguida,
ir ver as montras, percorrer as capas dos livros nos escaparates das livrarias, e acabar por
comprar o Rude Pravo numa
tabacaria, voltar a instalar-me num banco, dar uma vista de olhos sobre os títulos insípidos,
ler duas informações de algum interesse na rubrica estrangeira, tornar a levantar-me do
banco, voltar a dobrar o jornal e
introduzi-lo, intacto, num caixote do lixo; depois, lentamente aproximar-me da igreja,
deter-me defronte a ela, olhar os dois campanários, depois subir os enormes degraus, passar
o pórtico e entrar na nave, timida.mente, para que as pessoas não se aterrorizassem por o
recém-chegado não se ter benzido e não ter vindo aqui senão para passear, como num
parque.
Quando deixou de haver gente, senti-me rapidamente um intruso que não sabia que atitude
tomar naquele lugar, por isso saí dali, olhei para o relógio e constatei que o meu tempo livre
me pesava. De forma a aproveitar esse tempo vazio, apliquei-me a recordar Helena, a
pensar nela; mas esse pensamento recusava-se a evoluir, permanecia estático e só a custo
conseguia evocar a imagem visual de Helena. Aliás, já se sabe: quando um homem espera
uma mulher, só a grande custo consegue re-
flectir sobre ela e anda para trás e para a frente sobre a sua imagem imóvel.
Eu andava para trás e para diante. Em frente à igreja, vi uma dezena de carrinhos de bebé
parados, vazios, defronte do edifício da câmara mu-
nicipal (actualmente comité nacional da cidade). Não podia compreender o que se passava.
Depois, um jovem afogueado veio colocar um car-
rinho ao lado dos outros, a sua companheira (um pouco agitada) tirou de lá um embrulho de
tecidos e bordados brancos (contendo sem dúvida alguma um bebé), e o casal desapareceu
apressadamente no interiorda câmara municipal. Pensando que tinha uma hora e meia para
qpeimar, segui-o.
Na escada principal havia bastantes basbaques, mais numerosos à me-
dida que eu subia. O corredor do primeiro andar estava a abarrotar enquanto as escadas que
conduziam mais acima se encontravam vazias.
O acontecimento que atraíra toda aquela gente devia, pois, aparentemente, desenrolar-se no
primeiro andar, provavelmente no salão cuja porta principal aberta para o corredor se
encontrava obstruída por uma multidão considerável. Fui lá; as dimensões da sala eram
modestas, havia cerca de sete filas de cadeiras já ocupadas por pessoas que pareciam
esperar
163

um espectáculo. Na parte da frente havia um estrado suportando uma longa mesa coberta
por um pano vermelho com uma jarra e um grande ramo; por trás, na parede, as pregas de
uma bandeira com as cores do Estado tombavam, dispostas com arte; por debaixo e em
frente ao estrado (a três metros da primeira fila no solo), oito cadeiras encontravam-se
dispostas em semicírculo; na outra extremidade da sala, ao fundo, havia um pequeno
harmónio; um senhor velho de óculos, sentado, inclinava a sua calvície sobre o teclado
destapado.
Várias cadeiras encontravam-se ainda livres; ocupei uma. Durante bas- -
tante tempo não se passou nada, mas o público não mostrava o menor
aborrecimento; inclinavam-se para os vizinhos, conversavam em voz
baixa. Entretanto, os pequenos grupos retidos no corredor haviam acabado de encher a sala,
tomando os últimos lugares sentados ou dispondo-se em barra em redor da sala.
Por fim algo aconteceu: por detrás do estrado, abriu-se uma porta; uma senhora com um
vestido castanho, com uns óculos sobre um nariz longo e afilado, apareceu; deu uma
olhadela à assistência, e ergueu a mão direita. O silêncio envolveu-me. Em seguida, essa
mulher voltou-se para o lado do compartimento de onde surgira, como que para dirigir um
sinal ou uma palavra a alguém, mas regressou imediatamente e encostou-
-se à parede, enquanto no mesmo momento um sorriso solene e estático lhe cobriu o rosto.
Tudo estava bem sincronizado porque atrás de mim o harmónio co-
meçou ao mesmo tempo que o sorriso.
Alguns segundos mais tarde, na porta por detrás do estrado, apareceu uma jovem, corada,
de cabelos amarelados, muito encaracolada e
maquilhada, com um ar perdido, nos braços um saco branco com o bebé. A senhora de
castanho, para lhe facilitar a passagem, encostou-se ainda mais à parede, enquanto o seu
sorriso pretendia encorajar a portadora do bebé. E a portadora avançava, hesitante,
apertando o seu recém-nascido; uma segunda surgiu com o mesmo saco branco e por detrás
dela (uns atrás dos outros) todo um pequeno cortejo; eu observava ainda a primeira: os seus
olhos, que a princípio haviam errado pelo tecto, tinham baixado e certamente encontrado o
olhar de alguém na sala, uma vez que, descontrolando-se, ela tentara subitamente olhar
noutra direcção e sorrira, no entanto esse sorriso (esse esforço para sorrir) tinha-se
rapidamente desfeito numa contracção dos seus lábios crispados. Tudo isto se passou no
seu rosto no espaço de alguns segundos (o tempo de percorrer apenas seis metros a partir da
porta); como, avançando a direito, ela não virou a tempo em frente à meia-lua das cadeiras,
a senhora
164

de castanho saltara da parede de expressão um pouco carregada e chegara-se a ela a fim de


lhe lembrar, com um toque de mão, a direcção certa. Corrigindo ali mesmo o seu desvio, a
mulher descreveu um movimento de retorno, seguida das outras portadoras de crianças.
Eram oito no to-
tal. Acabado o percurso prescrito, elas haviam parado, de costas para o público, cada uma
delas de pé em frente de uma cadeira. A senhora de castanho fez um sinal de cima para
baixo; lentamente, uma após ou-
tra, as mulheres (sempre de costas voltadas para o público) compreende~ ram e (com os
embrulhos dos recém-nascidos) sentaram-se.
A senhora de castanho sorriu de novo e encaminhou-se para a porta que permanecia
entreaberta. Imobilizou-se um instante no patamar, depois deu três ou quatro passos rápidos
e voltou recuando para a sala, onde se recolocou contra a parede. Então apareceu um
homem dos seus
vinte anos, vestido de negro, de camisa branca, cujo colarinho, ornamentado com uma
gravata de motivos pintados, se lhe incrustava no pescoço. Tinha a cabeça baixa e o passo
pesado. Outros sete homens caminhavam atrás dele, de idades diversas, mas todos de
escuro e de camisas de domingo. Contornaram as mulheres com os bebés e pararam. Nesse
momento, dois ou três deles mostraram uma espécie de inquietação, lançando olhares em
redor, como se procurassem não se sabia o quê. A se-
nhora de castanho (o seu rosto recobrira-se imediatamente da nuvem de humor de há
pouco) acorreu e um dos homens perplexos murmurou-lhe algumas palavras, ela aprovou
com a cabeça; então, esses homens mudaram rapidamente de lugar.
De novo sorridente, a senhora de castanho retomou ainda a direcção da porta por detrás do
estrado. Desta vez, não precisou sequer de esboçar qualquer sinal. Um novo destacamento
fazia a sua entrada, e devo dizer que era disciplinado, sabia bem o que fazia, marchando
sem embaraço, com a naturalidade dos profissionais; as crianças que o compunham podiam
ter dez anos; avançavam uns atrás dos outros, rapazes e raparigas alternadamente; os
rapazes levavam umas calças azul-escuras, uma camisa branca com um lenço triangular
vermelho com uma ponta caída sobre as omoplatas, as outras duas atadas sob o queixo; as
rapariguinhas tinham uma pequena saia azul-escura, uma blusa branca e, à volta do
pescoço, o mesmo lenço que os rapazes; todos tinham um pequeno ramo de rosas na mão.
Marchavam, corno já disse, com tanta segurança como elegância, e não como os dois
destacamentos precedentes: não seguiram o semicírculo das cadeiras, andaram ao longo da
parte da frente do estrado; aí pararam, depois deram meia volta, de maneira que a sua fila
ocupava todo o comprimento do estrado, face às mulheres sentadas e à sala.
165

Decorreram ainda alguns segundos quando, à porta, um novo personagem apareceu, que
ninguém seguia, e que se dirigiu directamente para o estrado e para a sua comprida mesa
com a toalha vermelha. Era um homem de meia-idade, careca. O seu modo de andar era
digno, o seu porte rígido, fato preto, na mão uma grande pasta vermelho-púrpura; parou a
meio caminho da mesa, olhou para o público e inclinou-se para o saudar. Via-se a sua cara
inchada e, à volta do pescoço, uma fita larga vermelha, azul e branca com uma medalha
dourada à altura do estômago e que oscilara várias vezes sobre a tribuna durante as
cortesias.
De repente, um dos rapazinhos alinhados diante do estrado pôs-se a discursar em voz alta.
Dizia que a Primavera chegara, que os paizinhos e as mãezinhas exultavam e que toda a
terra estava cheia de alegria. Continuou por momentos nesta linha até que uma rapariguinha
o interrompeu para dizer coisas análogas, de sentido pouco claro, mas onde se repetiam as
mesmas palavras: mãezinha, paizinho e também Primavera, e, por vezes, a palavra rosa.
Depois disto, um outro rapazinho cortou-lhe a palavra, até que uma nova rapariguinha o
interrompeu; impossível dizer-se que discutiam porque todos diziam praticamente a mesma
coisa. Um dos rapazinhos declarou, por exemplo, que a criança é a paz. A rapariguinha que
se seguiu disse, por seu lado, que a criança é a flor. A unanimidade fez-se, aliás, em torno
desta última ideia, que o coro das crianças retomou em uníssono avançando de braço
estendido e ramo de flores na ponta. Como eram oito, tantas quantas as mulheres sentadas
em semicírculo, cada uma recebeu um ramo. As crianças voltaram para junto do estrado e
calaram-se.
Em compensação, o homem de pé no estrado abriu a sua grande pasta púrpura e começou a
ler em voz alta. Falou também da Primavera, das flores, das mãezinhas e dos paizinhos,
falou do amor que, segundo ele, dava os seus frutos, mas o seu vocabulário cedo sofreu
uma metamorfose e deixou de falar em paizinho e mãezinha, mas antes em pai e mãe,
começou a enumerar tudo o que o Estado lhes (aos pais e às mães) oferecia, sublinhando
que deviam, em retorno, para bem do Estado, educar as crianças como cidadãos modelos.
Findo isto declarou que todos os pais ali presentes iam selar o seu solene compromisso com
uma assinatura e mostrava a ponta da mesa onde, numa encadernação de pele, se
encontrava um grosso volume.
Neste momento, a senhora de castanho veio pôr-se atrás da mãe sen-
tada no fim do semicírculo, tocou-lhe o ombro, a mãe voltou-se e a senhora tirou-lhe das
mãos o bebé. Depois a mãe levantou-se e dirigiu-se à mesa. O homem da fita abriu o livro e
estendeu uma caneta à mãe.
166

Ela assinou, voltou para o seu lugar e a senhora de castanho devolveu-lhe o bebé. O pai foi
assinar por sua vez; depois a senhora de castanho agarrou no bebé da mãe seguinte, que
encaminhou para o estrado; depois dela assinou o marido, depois dele uma outra mãe, um
outro ma-
rido, e por aí fora até ao fim. Depois o harmónio emitiu uma nova série de sons enquanto os
meus vizinhos se apressavam para ir apertar as mãos às mães e aos pais. Eu tinha seguido o
movimento (como se quisesse também ir dar apertos de mão); quando de repente ouvi gritar
o meu nome: era o homem da fita que me perguntava se eu não o reconhecia.
Claro que não o reconhecia, apesar de o ter observado durante todo o discurso. Para não dar
uma resposta negativa à pergunta um pouco melindrosa, perguntei-lhe como estava. Ele
disse que estava menos mal e eu reconheci-o: Kovalik, um camarada da universidade.
Como que diluídos por um certo empastamento da sua fisionomia, os seus traços só agora
me eram reconhecíveis; aliás, de entre os meus condiscípulos, Kovalik sempre pertencera
àquela zona cinzenta, nem corajoso nem patife, nem sociável nem solitário, médio nos
estudos; tinha nesse tempo a testa coroada com um tufo de cabelos que hoje faltavam - eu
tinha, portanto, alguma desculpa por não o ter reconhecido logo.
Perguntou o que estava a fazer ali, se tinha parentes entre as mães. Eu disse que não tinha,
que estava ali por curiosidade. Sorrindo de contentamento, desatou a explicar-me que o
comité nacional da cidade tinha desenvolvido um máximo de esforços para que as
cerimônias cívicas se desenrolassem com autêntica dignidade, e com tímido orgulho
acrescentou que ele, encarregado dos assuntos civis, estava ali por qualquer coisa e que a
esse título recebera mesmo elogios dos seus superiores. Eu perguntei-lhe se o que acabara
de ter lugar era um baptismo. Ele disse-me que não era um baptismo, mas umas boas-
vindas à vida aos novos cidadãos. Ele estava obviamente encantado por poder conversar.
Duas grandes instituições, segundo ele, opunham-se: a Igreja Católica com os seus ritos, de
tradição milenar, e, frente a ela, instituições civis cujo jovem cerimonial se deve substituir a
esses ritos imemoriais. Ele dizia que as pessoas não renunciariam a celebrar os baptismos e
os casamentos na
igreja senão quando as nossas cerimônias cívicas tivessem tanta grandiosidade e beleza
como as cerimônias religiosas.
Eu dizia-lhe que, segundo as aparências, isso não era assim tão fácil. Ele concordou e
considerou-se feliz por eles próprios, os encarregados dos assuntos civis, encontrarem
enfim um pouco de apoio junto dos nos-
sos artistas, que tinham (esperemos!) compreendido que era uma grande honra dar ao nosso
povo enterros, casamentos e baptizados (lapso que
167

ele emendou vivamente dizendo: boas vindas aos novos cidadãos) verdadeiramente
socialistas. Quanto aos versos, acrescentou, que os que jovens pioneiros haviam dito
naquele dia, eram belos. Aquiesci e perguntei-lhe se não seria mais eficaz, para desabituar
as pessoas das cerimônias eclesiásticas, dar-lhes pelo contrário a plena possibilidade de
evitar toda e qualquer cerimônia.
Ele disse que as pessoas jamais se deixariam privar dos seus casamentos
ou dos seus funerais. Além de que, do nosso ponto de vista (ele sublinhou a palavra nosso,
como que para me fazer compreender que, também ele, tinha entrado para o Partido
Comunista), seria uma pena não utilizar tais cerimônias para aproximar essas pessoas da
nossa ideologia e do nosso Estado.
Perguntei ao meu velho camarada de classe como é que ele se arranjava com os
recalcitrantes, supondo que os havia. Ele disse-me que essas pessoas existiam naturalmente,
porque nem toda a gente assimilou ainda a nova mentalidade, mas se eles hesitam, nós
enviamos-lhes convite sobre convite, de forma que a maior parte acabe por vir de qualquer
maneira, oito ou quinze dias depois. Eu perguntei se a assistência a esse gênero de
cerimônias era obrigatória. Não, respondeu-me ele com um sorriso, mas é através dela que
o Comité Nacional julga o nível de consciência dos cidadãos bem como a sua atitude para
com o Estado, e à medida que cada um, finalmente, se apercebe disso, acaba por vir.
Disse a Kovalik que o Comité Nacional trata os seus fiéis com mais rigor do que a Igreja
manifesta aos seus. Kovalik sorriu e disse que não havia nada a fazer. Depois convidou-me
a passar um momento pelo seu escritório. Disse-lhe que infelizmente não tinha muito
tempo, que tinha de ir esperar alguém à estação das camionetas. Ele perguntou-me ainda se
eu tinha visto alguém "da malta" (ele queria dizer: dos colegas de escola). Eu disse-lhe que
não, mas que estava contente por o ter encontrado, porque, quando eu tivesse uma criança
para baptizar, não deixaria de fazer a viagem até aqui, e de me dirigir a ele. Rindo-se às
gargalhadas, ele deu-me uma palmada no ombro. Apertámos as mãos e voltei a descer para
a praça, pensando que faltavam quinze minutos para a chegada do autocarro.
Quinze minutos, já não era muito tempo. Quando cheguei à praça, passei de novo próximo
do salão de cabeleireiro, lancei um novo olhar através dos vidros (embora soubesse da
ausência de Lúcia, ela só lá estaria à tarde); depois vagueei em direcção à, estação e
lembrei-me de Helena: o seu rosto com um tom ligeiramente queimado, a sua cabeleira
168

ruiva, obviamente oxigenada, a sua linha, longe se ser esbelta mas guardando no entanto a
elementar harmonia de proporções que permite perceber uma mulher como mulher, eu
lembrava-me de tudo o que a situava na excitante fronteira do desapetecível e do atraente, a
sua voz, mais ampla do que o desejável, e a sua mímica excessiva, que traia contra a sua
vontade a impaciente ambição de ainda agradar.
Eu só vira Helena três vezes na minha vida, ou seja, muito pouco para que a minha
memória conservasse dela uma imagem exacta. De cada vez que a tentava evocar, algum
traço dessa imagem saía de tal forma acentuado que Helena se transformava para mim
constantemente na sua
caricatura. No entanto, por mais inexacta que fosse a minha imaginação, creio que era
exactamente por causa dessas deformações que ela alcançava em Helena qualquer coisa de
essencial que se ocultava sob a sua aparência.
Desta vez, aquilo de que eu era incapaz de me desembaraçar era so-
bretudo da imagem da inconsistência corporal de Helena, o seu amoleci-
mento, sinais não só da sua idade, da sua maternidade, mas acima de tudo do seu psiquismo
(erotismo) desarmado, da sua incapacidade de re-
sistir (em vão dissimulada pela suficiência dos seus propósitos), da sua
vocação de presa sexual. Esta imagem reflectiria verdadeiramente a es-
sência de Helena ou apenas a minha relação com ela? Quem sabe. O autocarro chegaria de
um momento para o outro e eu queria que Helena aparecesse tal como a minha fantasia a
tinha delineado. Escondi-me no
átrio de um dos edifícios da praça que circundam a paragem das carnio-
netas, queria observá-la por um momento, vê-Ia arregalar os olhos à sua volta, impotente,
assaltada pela ideia de que viajara em vão e que não me veria aqui.
Um autocarro expresso parou no terrapleno e Helena desceu entre os primeiros. Trazia um
impermeável azul que (o colarinho levantado, a cintura bem apertada com um cinto) lhe
conferia um porte jovem e
desportivo. Ela virou-se para um lado e para o outro e, longe de ficar perplexa, deu meia
volta e dirigiu-se sem hesitar para o meu hotel, onde um quarto lhe fora reservado.
Mais uma vez, verifiquei que a minha imaginação não me oferecia senão uma imagem
deformada de Helena. Felizmente, a Helena da realidade revelava-se sempre mais bela do
que aquela das minhas ficções, como, uma vez mais, o constatava vendo~a, de costas, sobre
os seus sal-
tos altos, tornar o caminho do hotel. Eu seguia-a.
Ela estava já na recepção, debruçada sobre o balcão, onde o porteiro indiferente a inscrevia
no seu registo. Ela soletrava-lhe o seu nome: "Ze-
169
@k\@
,VdO

maneI@,-@_e-ma-n@." De pé por detrás dela, escutava-a. Quando o porteiro po-us-õu-- a-


'--s'-ua caneta, Helena perguntou-lhe: "O camarada JaIm está cá no hotel?" Eu avancei e,
por detrás, pousei a minha mão sobre o seu ombro.
170

11
Tudo o que houvera entre mim e Helena tinha sido o seguimento de um cálculo
minuciosamente estabelecido. Não há dúvida de que, a partir do nosso primeiro encontro,
Helena também alimentou um qualquer projecto, mas é pouco provável que as suas
intenções fossem além de um vago desejo de mulher que pretende preservar a sua
espontaneidade, a sua poesia sentimental, e, consequentemente, está pouco desejosa de
regular e reger antecipadamente o desenrolar dos acontecimentos. Eu, pelo contrário, agira
desde o princípio ao mesmo tempo como autor e como realizador da aventura que ia viver,
e não abandonara ao capricho da imaginação nem a escolha das minhas palavras, nem a
escolha do quarto onde pretendia ficar a sós com ela. Eu era sensível ao mínimo risco de
perder a ocasião oferecida que tanto desejava, não porque Helena fosse especialmente
jovem, agradável ou bela, mas pela única e exclusiva razão de ela se chamar como se
chamava; por ela ter como marido o homem que eu odiava.
Quando, no nosso instituto, me tinha um dia sido anunciada a visita de uma camarada
Zernanek, da rádio, que me caberia documentar sobre o tema das nossas pesquisas, tinha-
me, é verdade, imediatamente lembrado do meu antigo companheiro de estudos, mas a
identidade de nome parecera-me simples fruto do acaso, e se a perspectiva de receber essa
pessoa me contrariava era por motivos de uma natureza completamente diferente.
Não gosto dos jornalistas. São as mais das vezes superficiais, loquazes e de uma suficiência
sem igual. Que Helena se apresentasse pela rádio e não por um jornal só me arrefecia mais.
É que os jornais podem, a meu ver, gabar-se de uma circunstância atenuante, e de peso: não
são barulhentos. A sua futilidade permanece silenciosa; não se impõem; é
171

possível metê-los no cesto dos papéis. Igualmente fútil, a rádio não usufrui dessa
circunstância atenuante; ela persegue-nos no café, no restaurante, ou até durante as nossas
visitas a pessoas que se tornaram incapazes de viver sem a alimentação ininterrupta dos
ouvidos.
Em Helena, mesmo a maneira de falar me repelira. Compreendi imediatamente que as suas
opiniões sobre o nosso instituto e sobre as nossas pesquisas estavam formadas, de maneira
que agora mais não havia a fazer senão surripiar-me alguns exemplos concretos destinados
a dar corpo aos clichés habituais. Fiz o que me era possível para lhe dificultar o tra-
balho, empregando linguagem difícil, impossível de compreender, e
aplicando-me a contrariar todas as suas opiniões preconcebidas. Quando pressenti o perigo
de que ela, apesar de tudo, conseguiria entender-se por entre as minhas explicações, tentei
escapar-lhe passando à confidência; disse-lhe que o ruivo da sua cabeleira lhe ficava muito
bem (eu pensava exactamente o contrário), interroguei-a sobre o seu trabalho na rádio,
sobre as suas leituras preferidas. E, numa reflexão silenciosa bem subterrânea em relação à
nossa conversa, veio-me a ideia de que a homonimia talvez não fosse fortuita. Esta
jornalista faladora, mexida, arrivista, possuía, pareceu-me, um ar de família com esse
personagem que eu conhecera igualmente falador, mexido e arrivista. Assim, adoptando o
tom ligeiro do flirt, informei-me sobre o seu marido. A pista era boa, duas ou três questões
identificaram com segurança Pavel Zernanek. Devo dizer que nesse instante não pensava
em me aproximar dela da maneira como veio a acontecer. Pelo contrário: a antipatia que
sentira por ela desde a sua entrada só se agravara após a minha descoberta. Procurei
imediatamente um pretexto que me permitisse interromper a entrevista com a jornalista
importuna, rementendo-a para um colega; eu pensava mesmo no regozijo que
experimentaria em pôr na rua aquela mulher de sorriso incessante, e lamentei que isso fosse
impossível.
Mas, no momento exacto em que eu estava mais cansado, Helena, fazendo eco ao tom
íntimo das minhas questões e observações (cuja função puramente investigativa não lhe era
evidente), tinha-se manifestado por alguns gestos tão naturalmente femininos que o meu
rancor subitamente se revestiu de uma nova cor: sob o véu da afectação profissional de
Helena, discerni uma mulher, apta a funcionar como mulher. Com uma gargalhada interior,
persuadi-me em primeiro lugar de que Zemanek tinha merecido uma companheira
daquelas, sim senhora, que lhe era com certeza castigo suficiente, mas tive de me recompor
quase imediatamente: essa apreciação altiva era demasiado subjectiva, talvez até mais
produto do meu desejo; aquela mulher, sem dúvida alguma, tinha sido
172

bastante bela e nada levava a crer que Pavel Zernanek, hoje em dia, não se utilizasse dela
de bom grado como mulher. Complacentemente, prolonguei a brincadeira sem trair o que
pensava. Um não-sei-quê impelia-me a prosseguir o mais longe possível a minha
descoberta dos traços femininos da jornalista sentada à minha frente, e isso determinava o
rumo da nossa conversa.
A mediação de uma mulher é susceptível de comunicar ao ódio certos aspectos
característicos da simpatia, por exemplo a curiosidade, o interesse carnal, o desejo de
atingir o limiar da intimidade. Eu atingia uma espécie de êxtase: imaginava Zemanek,
Helena, todo o seu mundo (mundo que me era tão estranho), e, com uma volúpia singular,
acariciava o meu
rancor (rancor atencioso, quase terno) pela aparência de Helena, rancor pela sua cabeleira
ruiva, pelos seus olhos azuis, pelas suas pestanas curtas, rancor pela sua cara redonda, pelas
suas narinas sensuais, rancor pelo ligeiro afastamento dos incisivos, rancor pelo cheio do
corpo maduro. Eu observava-a como se observam as mulheres que se amam, no~ tava cada
pormenor como que para o encaixar na minha memória, e, para dissimular o meu interesse
rancoroso, escolhia palavras cada vez
mais ligeiras, cada vez mais amáveis, de tal modo que Helena se tornava
cada vez mais feminina. Eu não conseguia evitar pensar que a sua boca, os seus seios, os
seus olhos, a sua cabeleira pertenciam a Zemanek e,
no meu espírito, agarrava tudo isso, apalpava-o, pesava-o, tentava determinar se seria
possível triturá-lo entre as palmas das minhas mãos ou
esmagá-lo contra urna parede; depois, observava tudo aquilo mais uma
vez, atentamente, tentava vê-lo com os olhos de Zemanek e, de novo,
com os meus.
A ideia talvez me tivesse tocado, impraticável e completamente platónica, de que eu
poderia perseguir essa mulher do areal exíguo da nossa conversa de sedução até à cama.
Mas tinha sido uma dessas ideias que irrompem. pela cabeça e depois se extinguem. Helena
declarou que me agradecia pelas minhas preciosas informaçoes e que não me tomaria mais
tempo. Despedimo-nos e fiquei contente com a sua partida. A curiosa exaltação fora-se de
novo; não sentia mais, por aquela mulher, do que a minha antipatia de há pouco e achava
aborrecido ter-lhe concedido provas tão directas de solicitude e de afabilidade (mesmo
fingidas).
As coisas ter-se-iam sem dúvida ficado por ali se, alguns dias mais tarde, Helena não me
tivesse telefonado a marcar um encontro. É possível que ela tivesse inesmo necessidade de
me submeter o texto da sua emissão, no entanto eu tive logo a impressão de que era um
pretexto e que o tom em que ela me falava se reclamava mais do lado ligeiro e familiar
173

da nossa recente entrevista do que da sua parte séria e profissional. Eu adoptei esse tom
rapidamente e sem reflectir e não mais o deixei. Encontrámo-nos no café; ostensivamente,
fiquei indiferente a tudo quanto dizia respeito ao seu trabalho; desprezei sem vergonha
aquilo por que ela se interessava enquanto jornalista. A minha atitude desconcertava-a, mas
ao mesmo tempo constatei que começava a dominá-la. Propus-lhe um passeio fora de
Praga. Ela protestou e lembrou-me que era casada. Nada podia satisfazer-me mais do que
aquela maneira de resistir. Eu concentrava-me na sua objecção, tão cara para mim; divertia-
me com
ela; voltava a ela; brincava com ela. Ela ficou felicíssima no fim por poder fugir a esse
assunto aceitando o convite. Depois disto, tudo ia correr
ponto por ponto segundo o meu plano. Eu sonhara-o com a força de quinze anos de rancor e
voltava a sentir a incompreensível certeza de que ele resultaria e se cumpriria.
Sim, o plano cumpria-se bem. Peguei na malinha de Helena, perto do balcão da recepção e,
acompanhando-a, subi ao seu quarto, diga-se de passagem, tão feio como o meu. Apesar da
sua original propensão para qualificar todas as coisas como melhores do que o eram na
realidade, a própria Helena teve de concordar. Disse-lhe que ela não devia importar-se com
isso, que tudo se havia de arranjar. Ela deitou-me um olhar cheio de significado. Depois,
disse que queria ir num instante arranjar-se, eu respondi-lhe que era uma boa ideia e que a
esperaria no hall do hotel.
Quando ela desceu (sob um impermeável desabotoado, tinha uma saia preta e um pulôver
cor-de-rosa), pude uma vez mais convencer-me da sua elegância. Disse-lhe que
almoçaríamos num restaurante que era medíocre, mas de qualquer maneira o melhor na
zona. Ela disse-me que, uma vez que eu tinha nascido aqui, se submeteria e me obedeceria
em tudo. (Ela parecia escolher um vocabulário um pouco dúbio; essa aplicação era tão
ridícula como reconfortante.) Refizemos o meu trajecto matinal quando da minha busca vã
por um bom pequeno-almoço e, por diversas vezes, Helena reafirmou a sua alegria em
conhecer a mi-
nha cidade natal, mas, embora ela com efeito aí se encontrasse pela primeira vez, não
olhava em redor, não se interessava pelo que abrigava este ou aquele edifício, como deveria
fazer o visitante de uma cidade desconhecida. Perguntava-me se essa indiferença procedia
de um
certo endurecimento de uma alma que já não sabia voltar a sentir a curiosidade habitual ou
se, antes, totalmente concentrada em mim, Helena nada mais tinha na cabeça; eu queria
acreditar na segunda hipó-
tese.
174

Passámos perto do monumento barroco; o santo segurava a


nuvem, a nuvem o anjo, o anjo uma outra nuvem, esta um outro anjo; o azul do ar era mais
áspero do que de manhã; Helena tirou o seu impermeável, pô-lo debaixo do braço e disse
que estava calor; aquele calor reforçava ainda mais a obsessiva impressão de vazio
poeirento; o monumento erguia-se no meio da praça, como um bocado de céu que não
podia voltar para lá; eu pensei que também nós os dois havíamos sido atirados para essa
praça estranhamente deserta, com o seu largo e o seu restaurante, irrevogavelmente
atirados; que, por muito que os nossos pensamentos e as nossas palavras se elevassem às
alturas, os nossos actos eram baixos como esta mesma terra.
Sim, o sentimento da minha baixeza assaltou-me fortemente; fiquei surpreendido; mas
fiquei ainda mais surpreendido por não ter ficado horrorizado e por aceitar essa baixeza
com prazer, mesmo com alegria e alívio; prazer aumentado pela certeza de que a mulher
que a meu lado caminhava se deixava levar para as duvidosas horas da tarde por
motivações pouco mais elevadas do que as minhas próprias.
O restaurante já abrira as suas portas, mas a sala encontrava-se vazia: era apenas meio-dia
menos um quarto. As mesas estavam postas; em frente de cada cadeira, um prato de sopa
coberto por um guardanapo de papel sobre o qual se entrecruzavam colher, garfo e faca.
Não havia ninguém. Sentámo-nos a uma mesa, pegámos nos talheres e no guardanapo,
dispusemo-los de um lado e de outro do prato, e esperámos. Alguns minutos mais tarde, um
empregado apareceu à porta da cozinha, o seu olhar enfastiado arrastou-se um momento em
volta da sala, e
preparava-se já para se ir.
Eu chamei-o: "Se faz favor!" Girando sobre os calcanhares, deu alguns passos na direcção
da nossa mesa. "Desejam alguma coisa?, disse ele, a uma distância de cinco ou seis metros
de nós. - Gostaríamos de comer", disse eu. Ele replicou: "Só a partir do meio-dia! " e,
voltando-se uma vez mais, tornou a partir para o seu refúgio. "Se faz favor!", chamei de
novo. Ele voltou-se. "Por favor, tive de gritar por causa da distância, tem vodca? - Não, não
há vodca. - Então o que nos pode servir? - Genebra, respondeu ele de longe. - Que miséria,
gritei; bem, de qualquer maneira traga duas genebras!"
"Nem sequer lhe perguntei se você bebe genebra", disse eu dirigindo-me a Helena.
Ela desatou a rir: "Não, não faz parte dos meus hábitos!
175

- Não faz mal, disse eu. Habituar-se-á. Aqui, você está na. Morávia, e a genebra é o álcool
favorito do povo morávio.
- Ainda bem!, exclamou Helena, toda satisfeita. Para mim, não há nada que valha um
restaurantezinho barato como este, local de encontro dos motoristas e capatazes, onde se
comem e bebem coisas absolutamente vulgares,
- Talvez você tenha o hábito de esvaziar um copo de rum na sua
caneca de cerveja?
- Bem, nem tanto!, disse Helena
- Mas gosta do meio popular.
- É verdade, assentiu ela. Detesto as discotecas chiques, esses bandos de criados com as
suas pilhas de pratos...
- Absolutamente de acordo, nada se compara a uma tasca onde o
criado nos ignora, um local cheio de fumo, que cheira mal! E, sobretudo, não há nada
melhor do que a genebra. Quando eu era estudante, não bebia outra coisa.
- Eu também gosto das comidas mais simples, digamos um sonho de batatas, ou salsichas
com cebola, não há nada melhor ... "
A minha incredulidade é a tal ponto inveterada que se alguém me con-
fia aquilo de que gosta ou não gosta não levo de todo isso a sério ou, mais exactamente, não
vejo nisso senão um simples testemunho da imagem que a pessoa quer dar de si própria.
Nem por um segundo eu acreditara que Helena respirasse mais à vontade em sórdidos
botequins de atmosfera confinada do que nas salas de restaurante limpas e
convenientemente arejadas, ou que ela preferisse um álcool vulgar aos bons vinhos.
O que não quer dizer que a sua profissão de fé não fosse desprovida de valor a meus olhos,
revelando com efeito o seu gosto por uma certa afectação, desde há muito fora de moda,
que floresceu nos anos de entusiasmo revolucionário, em que as pessoas se extasiavam
perante tudo o
que era "vulgar", "popular", "simples", "rústico", e se apressavam a desprezar toda e
qualquer forma de "requinte" e de "elegância". Nessa afectação, eu reconhecia a época da
minha juventude e, em Helena, antes de tudo, a mulher de Zemanek. A minha ociosidade
distraída dessa manhã rapidamente se dissipava e começava a concentrar-me.
O empregado reapareceu com uma minibandeja em que estavam dois copos de genebra,
que pousou na mesa, ao mesmo tempo que uma folha escrita à máquina onde se decifrava
(dificilmente, era a enésima cópia) a ementa.
Ergui o meu copo dizendo: "Vamos, brindemos a esta genebra, a esta bebida popular! "
176
Ela riu, fez tilintar o seu copo, declarando então: "Sempre tive a nos-
talgia de um ser simples e recto. Não sofisticado. Límpído."
Bebemos um gole e eu disse: "Pessoas assim são raras.
- Encontramo-las, disse Helena. Você é uma delas.
- Isso é o que você pensa!, disse eu.
- Sim, sim." A estupefacção apoderou-se de mim perante a inacreditável capacidade
humana de remodelar o real à imagem do seu ideal, mas não hesitei e confirmei a
interpretação de Helena da minha própria pessoa.
"Sabe-se lá. Talvez, disse eu. Recto e límpido. Mas que quer isso dizer? O importante é ser-
se como se é, não corar por se querer o que se quer, por se desejar o que se deseja. Os
homens são escravos das normas. Alguém lhes disse que era preciso ser assim ou assado,
por isso eles esforçam-se e nunca aprenderão quem foram nem quem são. Por isso não são
ninguém. Acima de tudo, há que ousar ser-se nós próprios. Declaro-lhe, Helena, que desde
o princípio você me agradou e que a desejo, por muito casada que seja. Não posso dizê-lo
de outra maneira e não posso deixar de lhe dizer."
O que eu dizia era incómodo, mas necessário. O manuseamento do pensamento feminino
tem as suas regras inflexíveis; aquele que meter na sua cabeça persuadir uma mulher,
refutar o seu ponto de vista à força de boas razões, tem poucas hipóteses de conseguir. É
bem mais sensato detectar a imagem que ela pretende dar de si própria (os seus princípios,
ideais, convicções), depois tentar estabelecer (por sofismas) uma ligação harmoniosa entre
a dita imagem e a conduta que nós dese- jamos vê-Ia seguir. Por exemplo, Helena
consumia-se em sonhos de "simplicidade", de "natural", de "limpidez". Estes ideais
provinham do antigo puritanismo revolucionário e aliavam-se à ideia de homem "puro",
"sem mácula", moralmente firme e estrito. Só que, como o mundo dos-) princípios de
Helena não repousava sobre uma reflexão, mas (corno éf\ o caso da maioria das pessoas)
sobre alguns imperativos sem nexo ló- `Í gico, nada havia de mais fácil do que associar a
imagem de um "personagem límpido" a um comportamento totalmente imoral, e desse
modo impedir que a conduta desejada de Helena (o adultério) entrasse em con-
flito traumatizante com os seus ideais. O homem tem o direito de querer seja o que for de
uma mulher, mas, se não se quiser comportar como um bruto, ele deve fazer de maneira a
que ela possa agir em harmonia com as suas mais profundas ilusões.
Durante esse tempo, um após outro, foram chegando clientes, que logo ocuparam a maior
parte das mesas. O empregado, que reaparecera,
177

fazia-lhes a ronda e perguntava o que ia ter de servir. Passei a ementa a Helena. Ela
devolveu-ma dizendo que eu era melhor apreciador de cozinha morávia do que ela.
Claro que era inútil ser-se apreciador de cozinha morávia, visto que a lista não variava uma
única palavra daquelas de todos os outros res-
taurantes da mesma categoria e consistia numa enumeração sumária de alguns pratos
triviais e dos quais nunca se sabe o que escolher. Eu considerava (com melancolia) a lista,
mas, já impaciente, o empregado ali estava, esperando a encomenda.
"Um instante, disse-lhe eu.
- Há já um quarto de hora que os senhores desejavam almoçar, e mesmo assim o senhor
ainda não escolheu! ", censurou-me ele, e deu meia volta.
Por sorte, voltou depressa e nós fomos autorizados a pedir dois bifes enrolados e mais
rodadas de genebra com soda.
Helena (mastigando o seu bife) declarou que era soberbo (ela era doida por este adjectivo)
darmos connosco de repente sentados numa cidade que ela não conhecia, com a qual
sonhava sempre quando fazia parte do Conjunto Fucik, onde se cantavam árias desta
região. Ela também disse que era errado, sem dúvida, mas que nada podia fazer, que se
sentia bem comigo, que era mais forte do que ela. Eu respondi que ter vergonha dos seus
sentimentos era uma hipocrisia ignóbil. E chamei o empregado para pagar a conta.
Lá fora, o monumento barroco erguia-se frente a nós. Pareceu-me ridículo. Apontei-o com
o dedo: "Veja, Helena, aqueles santos acrobatas! Veja como eles trepam! Como têm
vontade de subir ao céu! E o céu está-se nas tintas para eles! O céu nem sequer sabe que
eles existem, esses pobres terrenos com asas!
- É verdade, concordava Helena, a quem o ar livre acentuava o efeito do álcool. O que é
que elas fazem ali, essas estátuas de santos? Porque não construir na praça uma coisa à
glória da vida e não à da religião?" Devia, contudo, restar-lhe um pouco de controle, pois
acrescentou: "Estou a disparatar? Diga que não estou a disparatar!
- Não, não está a disparatar, Helena. Tem toda a razão, a vida é bela, as pessoas podem
dizer o que quiserem, a vida é soberba, e além disso, aos profetas da desgraça tenho-lhes
horror; porque, se me quisesse queixar, teria mais motivos do que qualquer pessoa, só que
evito isso; para quê queixar-se, confesse, quando lhe pode calhar um dia como o de hoje; é
totalmente soberbo: uma cidade onde nunca tinha vindo, e
estou consigo ... "
178

Helena prosseguia e depressa estávamos em frente a uma nova fachada.


"Onde é que estamos?, perguntou Helena.
- Oiça, disse-lhe eu, estas tascas são uma chatice. Proponho-lhe uma
tabernazinha particular que tenho naquela casa. Vá, venha!
- Para onde é que me está a levar?, protestou Helena, seguindo-me para a entrada do
imóvel.
- A autêntica taberna privada, estilo morávio. Não conhece?
- Não", disse Helena. No terceiro andar, abri a porta com a chave e entrámos.
179

III
Helena não se preocupava de maneira nenhuma com o facto de a levar para um
apartamento emprestado e não tinha necessidade de fazer qualquer comentário. Pelo
contrário, mal entrámos, ela estava, parecia, repentinamente decidida a passar do jogo
equívoco dos galanteios para esse comportamento que não tem mais do que um significado,
e que crê não ser um jogo mas a própria vida. Parou no meio do quarto, semivoltada na
minha direcção, e o seu olhar mostrou-me que nada mais esperava do que a minha
aproximação, o meu beijo e o meu abraço. Nesse preciso instante, ela era a Helena dos
meus sonhos: desarmada e à disposição.
Fui ao seu encontro: ela levantou o rosto e encarou-me; em vez do beijo (tão esperado),
sorri e tomei entre os meus dedos os ombros do seu impermeável azul. Ela compreendeu e
desabotoou-o. Levei-o para a entrada e pendurei-o no cabide. Não, agora que tudo estava
perfeito (o meu apetite e o seu abandono), não ia precipitar-me e arriscar-me talvez a
perder, por pressa, um elemento do todo de que me queria apropriar. Comecei a falar de
não sei o quê; convidando-a a sentar-se, mostrei-lhe todos os géneros de pormenores
domésticos; abri o armário da vodca para o qual, na véspera, Kostka me chamara a atenção;
abri a garrafa, pousei-a sobre a pequena mesa com dois copos que enchi.
"Vou ficar tonta, disse ela.
- Ficá-lo-emos ambos", disse eu (sabendo muito bem que não me embriagaria, decidido a
preservar a minha memória em perfeito estado).
Ela não se descontraiu; grave, bebeu e disse: "Sabe, Ludvik, seria horrível que você me
tomasse por uma dessas mulherzinhas que, porque se aborrecem, têm aventuras cheias de
fantasia. Eu não sou ingénua e
180

sei que você conheceu muitas mulheres que o ensinaram a olhá-las depreciativamene. Só
que eu ficaria triste...
- Eu também ficaria triste, disse eu, se você não passasse de uma mulherzinha como as
outras, aceitando de coração ligeiro cada aventura que a afasta do seu marido. Se você fosse
dessas. o nosso encontro perderia todo o sentido.
- A sério?
- A sério, Helena. Você tem razão, tive muitas mulheres que me en-
sinaram a não temer mudar de umas para as outras de coração ligeiro, mas este nosso
encontro é outra coisa.
- Não está a dizer isso por dizer?
- Não. A primeira vez que a vi, apercebi-me imediatamente de que há anos que a esperava,
precisamente a si.
- Você não é um fala-barato, apesar de tudo! Não diria o que está a dizer se não o sentisse.
- É verdade, não sei simular sentimentos, é mesmo a única coisa que as mulheres nunca
conseguiram ensinar-me. Além disso, não lhe estou a mentir, Helena, por pouco verosímil
que isto lhe possa parecer: ao encontrá-la, apercebi-me de que já há muito que a esperava.
Que a esperava sem a conhecer. E que agora a quero para mim. É tão fatal como
o destino.
- Meu Deus", disse Helena, baixando os olhos; ela corava e era cada vez mais a Helena dos
meus sonhos: desarmada e à disposição.
"Ludvik, se você soubesse! Comigo foi exactamente igual! Soube imediatamente ao vê-lo
pela primeira vez que não era um flirt e foi isso mesmo que me assustou, uma vez que sou
casada, e sabia que tudo o que havia entre nós era a verdade, que você era a minha verdade
e que eu nada podia fazer.
- Também você, Helena, você é a minha verdade", disse-lhe eu. Sentada no divã, ela
fixava-me com os olhos muito abertos, enquanto da cadeira em frente dela eu a observava
avidamente. Pousei as minhas mãos sobre os seus joelhos, depois, lentamente, levantei-lhe
a saia até pôr a descoberto a orla das meias e as ligas, que, sobre as coxas já gordas de
Helena, evocavam algo de triste e de pobre. Imóvel sob o meu
contacto, Helena continuava ali, sem um gesto nem um olhar.
"Ah, se você soubesse tudo...
- Se eu soubesse o quê?
- Como eu vivo.
- Como é que você vive?" Ela sorriu amargamente.
181
De repente tive medo de que ela recorrese ao expediente banal das esposas infiéis,
caluniando o seu casamento, retirando-lhe o valor no momento em que ela se tornava a
minha presa.
"Não me venha dizer que é infeliz na sua vida conjugal, que o seu
marido não a compreende!
- Não era isso que eu queria dizer, defendeu-se Helena, um pouco embaraçada com o meu
ataque, se bem que...
- Se bem que seja isso que você está a pensar neste momento. Isso vem à cabeça de cada
mulher que se vê sozinha com outro homem, mas é aí, justamente, que começa a mentira;
ora você, Helena, pretende continuar verdadeira, não é verdade? Você gostou certamente
do seu ma-
rido. Não se teria dado a ele sem amor.
- Sim, disse ela devagarinho.
- No fundo, que tipo de homem é o seu marido?" Ela encolheu os ombros e sorriu: "Um
homem.
- Há muito tempo que se conhecem?
- Treze anos de casamento e já nos conhecíamos antes.
- Você ainda era estudante?
- Sim, no primeiro ano. "
Ela quis descer a saia, eu agarrei-lhe as mãos e não deixei. Continuei a perguntar: "E ele?
Onde o encontrou?
- Nos ensaios do conjunto.
- Do conjunto? Ele cantava no coro, o seu marido?
- Sim. Como nós todos.
- Então foi no coro que se conheceram... Belo quadro para um amor nascente.
- Ah! isso foi!
- Todo esse tempo, aliás, foi muito bonito.
- Você também gosta de o recordar?
- Foi o melhor período da minha vida. Mas conte lá, o seu marido fo i o seu primeiro
amor?"
Ela hesitou: "Não me apetece pensar nele!
- Helena, eu quero conhecê-la. A partir de agora quero saber tudo a seu respeito. Quanto
mais claro eu vir em si mais você será minha. Diga lá, antes dele, teve alguém?"
Abanou a cabeça: "Tive." Que Helena tenha, muito nova, pertencido a um homem e que,
por isso, a sua união com Pavel Zemanek perdesse importância, era algo que me
desagradava: "Um verdadeiro amor?"
Ela abanou a cabeça: "Uma curiosidade pateta.
182

- Portanto o seu primeiro amor foi de facto o seu marido.


- Sim, concedeu ela, mas já lá vai muito tempo...
- Que ar tinha ele?, insisti a meia voz.
- Mas porque lhe interessa tanto saber?
- Porque a quero inteira, com tudo o que essa cabeça esconde!", e acariciei-lhe os cabelos.
Se alguma coisa existe que impede uma mulher de falar do marido ao amante raras vezes é
a nobreza, a delicadeza ou o pudor autêntico, mas apenas o medo de irritar o amante.
Quando este dissipar essa apreensão, a sua amante ficará agradecida, sentir-se-á mais à
vontade, mas, sobretudo, passa a ter de que falar porque o número de temas de conversa
não é ilimitado e, para a mulher casada, o marido fornece o tema so-
nhado, o único em que se sente segura de si, o único em que se sabe perita, e todo o ser
humano, afinal, gosta de se mostrar perito nalguma coisa e de fazer vista. Por isso, logo que
teve a certeza de que isso não me incomodava, Helena pôs-se a falar descontraidamente de
Pavel Zemanek, tão encantada com a recordação que não emprestou ao retrato que traçou a
mínima mancha negra; contou-me como se tinha apaixonado por ele (daquele rapaz louro,
com um ar muito direito), a consideração que lhe tinha inspirado o facto de ele ser nomeado
responsável político do conjunto, como ela o admirava com todas as amigas dela (ele sabia
falar tão bem!), como a sua história de amor se confundia em harmonia com toda aquela
época, que defendeu em duas ou três frases (tínhamos nós nessa altura a mínima suspeita de
que Estaline tinha mandado fuzilar comunistas fiéis?), não, decerto, por querer dissertar
sobre política, mas porque isso lhe dizia pessoalmente respeito. A maneira como defendia a
época da sua juventude e a ela se identificava (falava disso como de um lar perdido) quase
tomava foros de pequena manifestação, como se Helena me quisesse prevenir: podes
tomar-me sem condições, excepto uma: deixar-me ser o que sou, aceitares as minhas
convicções. Uma tal exibição de convicções numa altura em que não era de convicções que
se tratava, mas de corpo, tem qualquer coisa de anormal, que revela que as convicções
traumatizaram de certa maneira a mulher em questão: ou
ela receia que se suspeite que não as tem e por isso se apressa a exibi-Ias, ou (o que no caso
de Helena era o mais provável) ela duvida secretamente da sua validade e, para as valorizar,
põe em perigo, por elas, o que a seus olhos é um valor inquestionável: o acto de amor em si
mesmo (talvez ela tivesse a subtil certeza de que, para o amante, o acto de amor importa
mais do que a discussão sobre convicções). Essa manifestação não me desagradava em
Helena, visto que me aproximava do nó da minha paixão.
183
1e i

4 If.
"Olhe, vê isto?" Ela mostrava-me uma minúscula plaqueta de prata pendurada por uma
curta corrente ao seu relógio de pulso. Inclinei-me para ver, enquanto Helena me explicava:
tinha gravado o Kremlin. "Foi um presente de Pavel", e contou-me a história daquele
berloque, outrora oferecido por uma jovem russa apaixonada ao seu compatriota Sacha, que
partia para uma longa guerra que, no fim, o levou até Praga, que salvou do desastre, mas
onde encontrou a própria morte. No andar que Pavel Zemanek ocupava com os pais, foi
instalada uma enfermaria pelo exército russo; aí, gravemente ferido, o tenente Sacha tinha
vivivo os seus últimos dias acompanhado de Pavel, de quem se tornara amigo. Ao mor-
rer, Sacha deixara, como recordação, a Pavel esse Kremlin em miniatura que ele usara ao
pescoço, num fio, durante a guerra toda. Pavel conservava esse presente como a sua
relíquia mais preciosa. Um dia
- quando ainda se namoravam - Helena e Pavel tinham-se zangado e chegaram a pensar em
se separar; então Pavel tinha vindo entregar-lhe, em sinal de reconciliação, essa jóia sem
valor (e tão cara recordação); desde então Helena nunca larga esse pequeno objecto, que é
para ela uma espécie de mensagem (que mensagem?, perguntei, ela res@ondeu: "Uma
mensagem de alegria") que quer usar até ao fim dos seus dias.
Com as faces coradas, estava sentada à minha frente (a saia levantada descobria as ligas
presas a uma cinta-calça preta, então na moda), mas, nesse momento, ela desapareceu sob a
imagem de um outro: brutalmente, o relato do berloque oferecido por três vezes tinha feito
irromper perante mim toda a pessoa de Pavel Zemanek.
Eu não acreditara um minuto no guarda vermelho Sacha. Mesmo que tivesse existido um, a
sua existência real apagava-se atrás do gesto espectacular com que Pavel Zemanek o
transformara num personagem lendário da sua própria vida, em estátua sagrada, em
instrumento de enternecimento, em argumento sentimental e objecto de piedade que a
mulher (claramente mais constante do que ele) havia de adorar (por zelo e por desafio) até à
morte. Parecia-me que o coração de Pavel Zemanek (coração viciosamente exibicionista)
estava ali presente; e de repente revi-me no meio daquela cena de há quinze anos atrás: o
grande anfiteatro da Faculdade de Ciências; no estrado, ao meio da mesa comprida,
Zemanek; a seu lado, uma rapariga gorda e bochechuda, com uma trança e uma camisola
feia, e do outro lado um homem novo, delegado do distrito. Por trás do estrado, o vasto
rectângulo do quadro preto, e à esquerda, pendurado na parede, o retrato de Fucik. Em
frente do estrado, as bancadas onde, como toda a gente, eu me sentara, eu que olho agora,
com quinze anos de recuo, com os meus olhos de então, Zemanek a anun-
184

ciar que se vai proceder ao exame do "caso do camarada Jalm", vejo-o a declarar: "Vou ler-
vos as cartas de dois comunistas." Uma breve pausa pontuou as palavras, pegou num livro
fino, passou a mão nos cabelos compridos e ondulados e, com uma voz insinuante, quase
doce, começou a leitura.
"Levaste tempo a chegar, dona Morte! E, no entanto, esperei não ter de conhecer-te antes
de longos anos, viver ainda a existência de um homem livre, trabalhar ainda muito, amar
muito e cantar e andar por esse mundo ... "
Eu reconhecera Relato Escrito à Beira da Forca, de Fucik: "Eu amava a vida e foi pela sua
beleza que fui para a guerra. Homens, eu amava-vos e ficava feliz quando me amáveis de
volta, e sofria quando não me compreendIeis ... " Escrito em segredo numa cela da prisão,
este texto, tirado a milhões de exemplares, difundido na rádio, estudado obrigatoriamente
nas escolas, era o livro sagrado da época; Zemanek lia-nos as passagens mais célebres, que
qualquer pessoa sabia de cor. "Que a tristeza nunca esteja ligada ao meu nome. É a última
vontade que vos digo, a ti, pai, a ti, mãe, a vós'minhas irmãs, a ti, minha Gustina, a vós,
meus camaradas, a vós todos que eu amei ... "
Na parede via-se a efigie de Fucik, reprodução do famoso desenho de Max Svabinsky, o
velho pintor da Belle Epoque, especialista de alegorias, mulheres carnudas, borboletas e
belezas; diz-se que os camaradas, quando acabou a guerra, tinham ido a casa dele
encomendar um Fucik, que lhe pediram que fizesse a partir de uma fotografia, e Svabinsky
tinha-o representado em desenho (de perfil), com essa inefável delicadeza que o seu gosto
lhe ditava: por pouco deixava-lhe uma ex-
pressão de rapariga, com um rosto nimbado de fervor e aspirações, como que transparente,
e tão belo que quem conhecia o modelo preferia aquele desenho à recordação do rosto vivo.
E Zemanek continuava, enquanto na sala silenciosa todos ouviam, tensos, e, na tribuna, a
rapariga gorda não largava o deciamador com os seus olhos cheios de admiração; de
repente ele mudava de registo e a entoação tornava-se quase ameaçadora; tratava-se do
traidor Mirek: "Lembrarmo-nos de que ele foi um homem corajoso que não fugia diante das
balas quando combatia na frente espanhola, que não vergara perante a terrível prova do
campo de concentração em França! E agora o bastão de um agente da Gestapo fá-lo
empalide cer e trair para salvar a pele. Como era superficial essa valentia que alguns golpes
conseguiram apagar! Tão pouco profunda como as
suas convicções... Perdeu tudo a partir do instante em que começou a pensar em si próprio.
Para salvar a carcaça sacrificou os companheiros.
185

Abandonou-se à cobardia, e por cobardia traiu ... " Na parede sonhava o belo rosto de
Fucik, tal como sonhava na parede de milhares de lugares públicos pelo país fora, tão belo;
com a expressão radiosa de uma rapariguinha apaixonada, que ao contemplá-lo eu sentia
vergonha não só da minha falta mas da minha cara. E Zemanek terminava: "Eles bem
podem tirar-nos a vida, não é, Gustina? Mas a nossa honra e o nosso
amor, esses não nos podem tirar. Ah, gente, podeis imaginar o que seria a nossa existência
se nos pudéssemos encontrar depois de este calvário? Para retomar uma vida livre,
iluminada por um trabalho criador? Quando se realizará aquilo por que aspirávamos, aquilo
em que empenhávamos as nossas forças e por que agora vamos morrer?" Pronunciadas
pateticamente as últimas frases, Zemanek calou-se.
Depois disse: "Era uma carta de um comunista, escrita à beira da forca. Agora vou-vos ler
uma outra." Então debitou as três fórmulas lapidares, ridículas, abomináveis, do meu postal.
Depois calou-se, o anfiteatro também, e eu soube que estava perdido. O silêncio
prolongava-se e Zernanek, prodigioso encenador, nada fez para o encurtar. Por fim,
convidou-me a falar. Eu sabia que nada podia já salvar; se, dez vezes antes, a minha defesa
tinha sido tão pouco eficaz, que efeito poderia ela ter hoje depois de Zemanek ter feito
passar as minhas frasezinhas pelo crivo absoluto dos tormentos de Fucik? Nada mais
restava senão levantar-me e falar. Expliquei uma vez mais que tinha escrito o postal por
simples graça, denunciei no entanto os termos deslocados e a inconveniência e a grosseria
da piada, falei do meu individualismo, das minhas veleidades de "intelectual", do meu
afastamento do povo, até descobri em mim vaidade, tendência para o cepticismo, cinismo,
mas jurei que, apesar de tudo isso, eu era dedicado ao Partido e de modo algum seu
inimigo. Estabeleceu-se a discussão, em que os camaradas recusaram o meu ponto de vista
como contraditório; perguntaram-me de que maneira um homem que se declara cínico pode
ser dedicado ao Partido; uma companheira de estudos lembrou-me algumas afirmações
obscenas e quis saber se, na minha opinião, tais palavras eram toleráveis na boca de um
comunista; outros estendiam-se em considerações abstractas sobre o es-
pírito pequeno-burguês para que eu aparecesse como um seu exemplo concreto; de uma
maneira geral consideravam que a minha autocrítica não tinha sido profunda e que era
pouco sincera. Depois, a rapariga gorda sentada na cátedra ao lado de Zemanek interrogou-
me: "Na tua opinião, o que pensariam das tuas afirmações os camaradas torturados pela
Gestapo e que não sobreviveram?" (Lembrei-me do meu pai e percebi que toda a gente ali
fingia ignorar como ele tinha acabado.) Fiquei calado.
186

Ela repetiu a pergunta. Obrigou-me a responder. Eu disse: "Não sei."


- Vá, pensa lá, insistiu ela, talvez acabes por descobrir! " Ela queria que eu pronunciasse
pela boca imaginária dos camaradas mortos um julgamento severo sobre mim próprio; mas
um tal assomo de fúria inundou-me de repente, imprevisto, inesperado, que, farto de todas
estas semanas de autocrítica, eu disse: "Esses enfrentaram a morte. Esses não eram com
certeza mesquinhos. Se tivessem lido o meu postal, talvez tivessem rido! "
No fundo, a rapariga gorda tinha acabado de me oferecer uma hipótese de salvar ao menos
qualquer coisa. Era a ocasião última de compreender a dura crítica dos camaradas, de me
aliar a ela, de com ela me identificar, e, através dessa identificação, de poder esperar, em
retorno" uma certa compreensão da parte deles. Mas, pela minha resposta inopinada,
separei-me de um só golpe da sua esfera de pensamento, recusei-me a representar o papel
muito frequente em centenas de reuniões de processos disciplinares e mesmo de centenas
de audiências judiciárias: o papel do acusado que, acusando-se a si próprio com paixão (e
identificando-se assim com os seus acusadores), tentava implorar piedade.
Um novo silêncio se fez. Zemanek pôs-lhe fim. Afirmou-se incapaz de imaginar o que
poderia dar vontade de rir nas minhas formulações antípartido. Ele invocou uma vez mais
as palavras de Fucik e afirmou que, nas situações críticas, tortuosidade e cepticismo
transformam-se invariavelmente em traição e que o Partido é uma fortaleza que não tolera
traidores no seu interior. A minha intervenção, acrescentou, provava que eu nada tinha
entendido e que não só o meu lugar não era dentro do Partido, mas nem sequer merecia que
a classe operária me fornecesse os meios de assegurar os meus estudos. Propôs a minha
exclusão do Partido e da faculdade. As pessoas na sala lavantaram o braço e Zemanek
disse-me para restituir o cartão do Partido e ir-me embora.
Levantei-me para ir entregar o cartão na cátedra diante de Zernanek. Ele nem olhou para
mim; já tinha começado a não me ver. Só que eu, agora, vejo a sua mulher sentada na
minha frente, inebriada, com o rosto em fogo, e a saia enrolada até à cintura. As suas pernas
fortes estão debruadas em cima pela cinta preta de elástico; ao abrir-se e fechar-se, o seu
ritmo marcou as pulsões de uma dezena de anos de Zernanek. As minhas mãos poisam
sobre essas pernas e eu sinto que encerro nelas a própria vida de Zemanek. Olhei o rosto de
Helena, os seus olhos semicerrados sob as minhas mãos.
187

IV
"Dispa-se, Heiena", disse eu a meia voz. Ela levantou-se do divã, a saia voltou a tapar-lhe
os joelhos. Ela olhava-me nos olhos e depois, sem palavra (sem deixar de me olhar), abriu
lentamente o fecho da saia. Solta, esta desceu-lhe ao longo das pernas; ela libertou o pé
esquerdo, levou-a com o pé direito à altura da mão e
pousou-a numa cadeira. Estava de camisola e combinação. Tirou a seguir a camisola,
passando-a pela cabeça e atirou-a para junto da saia.
"Não olhe, disse ela.
- Eu quero vê-Ia, disse eu.
- Não, não enquanto me dispo." Aproximei-me dela. Agarrando-a debaixo dos dois braços,
deixei escorregar as minhas mãos até às ancas dela; sob a seda da combinação, um pouco
húmida de suor, eu sentia a forma mole do seu cgrpo. Ela estendia a cara, a boca entreabria-
se pelo longo hábito (o tique),do beijo. Mas eu não tinha vontade de beijá-la, o que eu
queria era olhá-la muito tempo, o mais tempo possível.
"Dispa-se, Helena, repeti enquanto me afastava para tirar o casaco.
- Há muita luz aqui, disse ela.
- Assim é que é bom", disse eu, e pus o meu casaco nas costas da cadeira.
Ela tirou a combinação e atirou-a para cima da camisola e da saia; desprendeu e tirou as
meias, uma após outra; não as atirou, mas foi até à cadeira para as pousar com cuidado;
depois, arqueou o peito e pôs as mãos por trás das costas; passaram vários segundos até que
os seus
ombros erguidos se endireitaram e o soutien lhe escorregou para a ponta dos seios; estes,
apertados entre os ombros e os braços, uniram-se, volumosos cheios, pálidos e,
evidentemente, um pouco pesados.
188

"Dispa-se, Helena", disse eu uma última vez. Ela olhou-me nos olhos, e tirou a cinta-calça
preta que a moldava estreitamente, e atirou-a para o lado das meias e da camisola. Estava
nua.
Registei os mínimos pormenores desta cena com atenção: não me interessava atingir um
prazer rápido com uma mulhr (uma qualquer), o
que eu queria era apropriar-me de um universo íntimo, estranho, muito determinado, e era
preciso que dele me apropriasse numa só tarde, através de um só acto de amor, em que eu
seria não só aquele que se abandona ao prazer mas aquele que espreita uma presa fugidia e
que deve manter-se em vigilância total.
Até aí só me apropriara de Helena pelo olhar. Ainda agora, mantinha-me à distância,
enquanto ela, pelo contrário, ansiava já pelo calor dos contactos que cobririam o seu corpo
exposto ao frio do olhar. Mesmo
* esta pequena distância eu conseguia sentir a humidade da sua boca e
* impaciência sensual da sua língua. Um segundo ainda, dois, e encostei-me a ela. Entre as
duas cadeiras cobertas com a nossa roupa, entregámo-nos um ao outro ali, de pé, no meio
do quarto.
Ela murmurava: "Ludvik, Ludvik, Ludvik ... " Levei-a para o divã. Deitei-a. "Vem, vem!,
dizia ela. Para ao pé de mim, muito perto ... "
É extremamente raro que o amor físico se confunda com o amor da alma. O que faz a alma,
exactamente, enquanto o corpo se une (nesse movimento tão imemorial, universal,
invariável) a um outro corpo?
O que ela iLafirinar @ s@!@s@perioridade sobre a monotonia
da vida corporal! De que desprezo ela é capaz face ao corpo que apenas lhe serve (como o
corpo do outro) de pretexto face à imaginação mil vezes mais carnal do que as duas carnes
juntas. Ou então inversamente: como ela é hábil a rebaixá-lo, abandonando-o ao seu sobe e
desce pendular, enquanto ela se afasta com o pensamento (já farta dos caprichos do corpo)
para um outro além: uma partida de xadrez, a memória de um almoço, ou para um livro já
lido.
Que dois corpos estranhos se confundam, não é raro. Até a união das almas pode acontecer
por vezes. Mas é bem mais raro que um corpo se una à sua alma e se entenda com ela para
partilhar uma paixão...
O que fazia então a minha alma enquanto o meu corpo fazia amor
com Helena? -_X-mÍ@@@aIma viu o corpo de uma mulher. Foi indiferente a esse
corpo. Ela sabia que esse corpo não tinha para ela significado, a não
ser por alguém que ali não estava o ver e amar do mesmo modo; por isso ela tentava olhar
esse corpo através do olhar do ausente; ela
189

esforçava-se por se tornar o médium desse terceiro; ela vía a nudez de um corpo feminino,
a sua perna flectida, a prega do ventre, o seio, mas tudo isso só fazia sentido se os meus
olhos se tornassem os do terceiro ausente; a minha alma entrava, então, no olhar do outro e
confundia-se com ele: a perna flectida, a prega do ventre, o seio, apossava-se deles como
faria o olhar do terceiro ausente.
Não só a minha alma se tornava médium desse terceiro, mas mandava ao meu corpo que
substituísse o corpo dele, e depois afastava-se para observar a união dos dois esposos, e
depois, de repente, ordenava ao meu corpo que retomasse a sua identidade e fazia-o entrar
nessa cópula conjugal para a quebrar com brutalidade. ,
Uma veia inchou no pescoço de Helena, sacudida pelo espasmo; ela desviou a cabeça e
mordeu com força a almofada.
Murmurou o meu nome e os seus olhos pediram um momento de repouso.
Mas a minha alma ordenou-me que prosseguisse: que a perseguisse de volúpia em volúpia,
que forçasse o seu corpo em todas as atitudes de modo a arrancar à sombra e ao segredo
todos os ângulos sob que a via esse terceiro ausente; sobretudo, não podia haver descanso;
repetir uma vez mais e outra e outra essa convulsão em que ela é verdadeira e autêntica, em
que ela não finge nada, pela qual está gravada na memória desse terceiro que não está aqui,
gravada como uma marca, um selo, um número, um emblema. Conseguir roubar esse
número secreto! Esse selo real! Assaltar a casa secreta de Pavel Zernanek, vasculhar-lhe
todos os cantos e dar a volta a tudo!
Olhei para a cara de Helena, encarnada, deformada pelo esgar; pus nela uma mão como se
põe num objecto que se pode virar de um lado para o outro, amassar, desfazer; senti que
aquela cara aceitava bem as-
sim aquela mão: como coisa ávida de ser amassada e desfeita; fiz-lhe virar a cabeça para a
direita; depois para a esquerda, várias vezes a seguir; depois esse movimento transformou-
se numa bofetada; noutra, numa terceira. Helena começou a soluçar, a gritar, mas não de
dor, ela uivava de gozo, de queixo espetado para mim, e eu batia-lhe, batia-lhe, batia-lhe;
depois vi que não era só o queixo mas o peito que se erguia para mim e, à toa (estendido
por cima dela), zurzia-lhe os braços, as coxas, os seios...
Tudo tem um fim; este belo saque também teve o seu. Ela estava de barriga para baixo,
atravessada no divã, cansada, esgotada. Nas costas tinha um sinal preto e mais em baixo, às
riscas nas nádegas, os sinais rubros da pancada.
190

Levantei-me e atravessei o quarto a cambalear; abri a porta da casa


de banho, abri a torneira, encharquei a cara de água fria, as mãos, o
corpo inteiro. Levantei a cabeça e vi-me no espelho; a minha cara sor-
ria; quando a surpreendi assim (a sorrir), o sorriso pareceu-me estranho e dei uma
gargalhada. Depois, enxuguei-me e sentei-me na borda da banheira. Apetecia-me estar
sozinho, nem que fossem uns segundos, para gozar o meu súbito isolamento, para gozar a
minha alegria.
Sim, estava contente; talvez perfeitamente feliz. Sentia-me vencedor, e os minutos e as
horas seguintes pareciam-me inúteis e sem interesse.
Então voltei. Helena já não estava de barriga para baixo, mas deitada de lado; olhava para
mim: "Querido, vem para o pé de mim", disse ela.
Muitas pessoas, depois de terem unido os corpos, pensam que uniram também as almas e
acham-se automaticamente autorizadas, por causa dessa crença ilusória, a tratarem-se por
tu. Porque nunca partilhei a con-
vicção na harmonia síncrona do corpo e da alma, o "tu" de Helena espantou-me e pôs-me
de mau humor. Desobedeci ao convite e dirigi-me para a cadeira, onde estavam as minhas
coisas para enfiar a camisa.
"Não te vistas já ... ", pediu Helena, e com a mão estendida na minha direcção repetiu:
"Anda, vem!"
Só tinha um desejo: que os instantes que se iam seguir não acontecessem e, se o meu desejo
era impossível, que ao menos esses instantes se perdessem na insignificância, que fossem
sem peso, mais ligeiros que a poeira; não queria mais contacto com Helena, a ideia da
ternura apavorava-me, mas apavorava-me igualmente a eventualidade de uma tensão ou de
uma qualquer dramatização; por causa disso, bem contra o que sentia, renunciei à camisa
para acabar por me sentar no divã, ao
pé de Helena. Foi horrível: ela arrastou-se até mim, a cara contra a minha perna, que
beijava; num minuto a minha perna ficou molhada, mas não era dos seu beijos: quando ela
levantou a cabeça, verifiquei que a sua cara estava cheia de lágrimas. Ela limpou-as e disse:
"Não te zangues, meu amor, não te zangues de eu estar a chorar." Agarrou-se ainda mais a
mim, estreitou-me o corpo sem dominar mais os soluços.
"O que é que te deu? ", perguntei eu. Abanou a cabeça e disse: "Nada, nada, meu tontinho",
e pôs-se a encher-me a cara e todo o corpo de beijos febris. "Estou louca de amor",
acrescentou a seguir, e como eu não disse nada, continuou: "Vais fazer troça de mim, mas
é-me indiferente, estou louca de amor, louca de amor!" e como eu continuava a não dizer
nada, disse: "E sinto-me feliz ... ", depois apontou para a mesa e para a garrafa de vodca
meio cheia: "Vá, serve-me! "
191

Não tinha a menor vontade de servir um copo a Helena ou a mim próprio; tinha medo que
mais copos de vodca se saldassem por um prolongamento perigoso desta sessão (que era
esplêndida, mas com a condição de ter acabado, de estar atrás das costas).
"Querido, peço-te por tudo!" Continuava a apontar para a mesa e acrescentou à laia de
desculpa: "Não te zangues comigo, estou feliz. Quero estar feliz...
- Talvez não precises de vodca para isso, disse eu.
- Se não te importas, apetece-me." Não havia nada a fazer; enchi-lhe um copo. "E tu não
queres mais?", perguntou ela; respondi que não com a cabeça. Esvaziou o copo e disse: "
Deixa-me isso aqui! " Pousei a garrafa e o pequeno copo no chão, perto do divã.

Ela recompunha-se do seu cansaço de há momentos com uma rapidez surpreendente; de


repente era uma miúda, queria divertir-se, estar alegre e manifestar a sua felicidade. Sentia-
se obviamente libérrima e na-
tural na sua nudez (só tinha nela o relógio de pulso onde tintilava a miniatura do Kreirilin
pendurada numa corrente), tentava toda a espécie de posições para se sentir o melhor
possível: cruzou as pernas à turca debaixo dela e depois, quando libertou os tornozelos,
apoiou-se no cotovelo; depois tornou a deitar-se de bruços, com a cara enfiada nas minhas
coxas. Continuava a repetir-me como era feliz; ao mesmo tempo tentava beijar-me, o que
eu suportava cheio de abnegação, sobretudo porque ela tinha a boca muito húmida e os
meus ombros e a minha cara não lhe chegavam e pr ocurava a minha boca (e eu não gosto
de beijos molhados, sem ser na cegueira do desejo).
Tornou a dizer-me que nunca até aqui tinha vivido nada de comparável; eu respondi~lhe
(assim mesmo) que ela exagerava. Começou a jurar que em amor nunca mentia e a dizer
que eu não tinha nenhuma razão para não acreditar nela. Continuando a dizer o que
pensava, afirmou que tinha pressentido tudo, que tinha pressentido tudo desde o nosso
primeiro encontro, que o corpo tem o seu instinto que nunca engana; que, evidentemente,
tinha ficado subjugada pela minha inteligência e o meu
fogo (sim, fogo!, onde é que ela foi buscar isso?), mas que também sabia, embora não
tivesse ousado dizer nada antes, que tinha havido logo entre nós um desses pactos secretos
que os corpos só assinam uma vez na vida. "É por isso que estou tão feliz, sabes?" Inclinou-
se para agarrar na garrafa e serviu-se de outro trago. Esvaziado o copo, disse a rir: "Tenho
mesmo de beber sozinha, porque parece que tu não queres mais! "
192

Se bem que a aventura para mim tivesse acabado, devo confessar que as palavras de Helena
não me desagradaram: confirmavam o sucesso da minha iniciativa e o bem fundado da
minha satisfação. Só porque não tinha nada a dizer e não queria parecer taciturno, objectei
que com certeza ela exagerava ao falar de uma experiência que só se passa uma vez
na vida; e com o marido, não tinha vivido um grande amor?
Estas palavras mergulharam Helena numa meditação séria (estava sentada no divã, com os
pés no chão, ligeiramente afastados, os cotovelos apoiados nos joelhos, o copo vazio na
mão direita), e concluiu ao dizer baixinho: "Vivi."
Ela considerava, sem dúvida, que o patético da experiência que aca.bava de viver a
obrigava a uma sinceridade não menos patética. Repetiu que sim e que provavelmente seria
mau denegrir o passado em nome do milagre de há momentos. Bebeu outro copo e depois,
loquaz, desenvolveu a teoria que precisamente as experiências mais fortes são
incomparáveis entre si; para a mulher, amar aos vinte ou aos trinta anos são coisas
completamente diferentes. E era preciso que eu percebesse que era assim não só psíquica
mas também fisicamente.
Depois (sem muita lógica e nenhuma coerência) garantiu-me que eu tinha qualquer coisa de
parecido com o marido! Não sabia muito bem o quê; claro que não era nada de exterior,
mas ela não se enganava no seu instinto infalível, que a fazia descobrir para lá da aparência
das coisas.
"Gostava muito de saber em que é que me pareço com o teu marido", disse eu.
Ela disse que pedia desculpa, que eu é que lhe tinha feito perguntas sobre ele, que tinha
querido que ela falasse dele e que só por isso é que ousava falar. Mas se eu queria mesmo
saber a verdade nua e crua, então tinha de dizer que só duas vezes na vida tinha sido atraída
com uma violência tão incondicional: pelo marido e por mim. Segundo ela, o que havia de
comum era uma espécie de energia vital; a alegria que emanava de nós; uma juventude
eterna; a força.
Ao querer esclarecer a minha parecença com Pavel Zemanek, Helena empregava palavras
muito confusas, mas era indubitável que ela via essa semelhança, a sentia, e insistia
teimosamente nela. Não posso dizer que essas afirmações me ofendessem ou ferissem,
estava unicamente estupefacto pelo seu ridículo insondável; aproximei-me da cadeira e
comecei-me a vestir lentamente.
"Estás zangado, meu amor?" Helena sentiu o meu desagrado, levantou-se e veio até mim;
fez-me festas na cara e pediu-me que não estivesse. Não queria que me vestisse. (Não sei
por que razões misterio-
193

sas, considerava as minhas calças e a minha camisa seus inimigos.), Dizia-me que me
amava verdadeiramente, que não costumava abusar deste verbo; que me provaria
oportunamente; que logo que lhe fiz- as primei@ ras perguntas sobre o marido percebeu
que era estúpido falar-me dele; não queria a intrusão de outro homem, de um estranho, na
nowa relação; sim, de um estranho, porque desde há muito o seu marido já não era dela. "A
verdade, meu tontinho, é que tudo acabou com ele há já três anos. Não nos divorciámos por
causa da miúda. Vive cada um do seu lado. Como dois verdadeiros estranhos. Para mim só
representa o
passado, um passado longínquo...
- Isso é verdade?, perguntei eu.
- É verdade, disse ela.
- Não mintas assim, é absurdo!, disse eu.
- Mas eu não estou a mentir! Vivemos debaixo do mesmo tecto, mas não como marido e
mulher, garanto-te, há anos que já não falamos disso! "
Era a cara suplicante de uma pobre mulher apaixonada que olhava para mim. Várias vezes a
seguir me reafirmou que tinha dito a verdade, que não mentia; eu não tinha nenhuma razão
para ter ciúmes do marido; o marido era o passado; por isso ela hoje não tinha sido infiel,
não tinha a quem; e eu não tinha que me torturar: a nossa tarde de amor tinha sido não só
bela como também pura.
Invadido por um terror lúcido, percebi de repente que não podia deixar de a acreditar.
Quando ela percebeu isso, aliviada, pediu-me e tornou-
-me a pedir que lhe dissesse alto que me tinha convencido; depois serviu-se de vodca e quis
fazer uma saúde comigo (recusei); beijou-me; apesar da minha pele de galinha, não
consegui desviar o olhar; os seus olhos estupidamente azuis e a sua nudez (móvel e agitada)
fascinavam-me.
Já não via essa nudez como antes; de repente era uma nudez desnudada, privada do poder
excitante que escondia todos os defeitos da sua idade em que a história do casal Zemanek
parecia concentrada, e que depois me tinham cativado. Agora que ela estava diante de mim,
despojada, sem marido nem laços conjugais, só ela, os seus defeitos físicos tinham perdido
bruscamente o seu encanto perverso, e também eles não passavam do que eram: simples
defeitos físicos.
Helena estava cada vez mais bêbeda e mais contente; estava feliz por eu ter acreditado no
seu amor e não sabia como manifestar as suas sensações de felicidade: de repente teve a
ideia de abrir a telefonia (virou-me as costas, agachou-se diante do aparelho e acendeu-o);
ouviu-sejazz; Helena pôs-se de pé, olhos brilhantes; esboçou desajeitadamente os mo-
194

vinientos ondulantes de um twist (apavorado, eu via os seus seios voarem para a esquerda e
para a direita). Ela deu uma gargalhada: "Gostas? Nunca dancei isto, sabes?" Riu em voz
alta, veio-se agarrar a mim; queria dançar comigo; zangou-se de eu não querer; dizia que
não conhecia essas danças e que eu lhas devia ensinar; que contava comigo para lhe ensinar
muitas coisas, que queria voltar a ser jovem comigo. Pediu-me que lhe dissesse que ainda
era nova (eu disse). Verificou que eu es-
tava vestido e ela não; riu; isso parecia-lhe curiosamente insólito; perguntou se o dono da
casa não teria um espelho grande onde nos pudesse ver. Como espelho, só havia os vidros
de uma biblioteca; tentou distinguir-nos aí, mas a imagem não tinha nitidez; aproximou~se
dos livros e tornou a dar uma gargalhada diante dos títulos nas lombadas: a Bíblia, a
Institution, de Calvino, Les Provinciales, de Pascal, as obras de Hus; tirou a Bíblia,
instalou-se numa pose solene, abriu o volume ao acaso e pôs-se a ler num tom de pregação.
Quis saber se daria um bom padre. Disse-lhe que a leitura sagrada dizia bem com ela mas
que era melhor que se fosse vestir porque o senhor Kostka estava a voltar. "Que horas são?,
perguntou ela - Seis e meia", respondi. Ela agarrou-me no pulso esquerdo em que uso o
relógio e gritou: "Mentiroso! Seis menos um
quarto! Queres-te ver livre de mim!"
Queria-a ver longe, que o seu corpo (tão desesperadamente material) se desmaterializasse,
se desfizesse, se fosse como um riacho, ou então desaparecesse feito vapor pela janela -
mas esse corpo permanecia, corpo que eu tinha roubado a ninguém, em que não tinha
vencido nem destruído ninguém, corpo deixado por conta, abandonado pelo marido, corpo
de que eu tinha querido abusar mas que tinha abusado de mim, e que agora gozava
impertinentemente esse triunfo, exultava, pulava de alegria.
Não me foi dado poder abreviar o meu estranho suplício. Por volta das seis e meia começou
finalmente a vestir-se. Viu então no braço o sinal encarnado das minhas pancadas; fez-lhe
festas, disse que era uma
recordação minha até ao próximo encontro; depois emendou depressa: de certeza que nos
íamos tornar a ver muito antes que essa memória se
apagasse da sua carne! De pé encostada a mim (com uma meia já calçada e outra na mão)
queria que lhe prometesse que nos veríamos de certeza muito antes; eu disse que sim com a
cabeça; isso não chegava, ela exigiu a minha palavra que nos encontraríamos ainda muitas
vezes até lá.
Demorou muito tempo a vestir-se. Saiu poucos minutos antes das sete horas.
195
I- @ r
7_

(-V 11
Abri a janela, suspirando pela corrente de ar que levasse depressa todas as recordações
dessa tarde inútil, todos os resíduos de cheiros ou de sensações. Levei a garrafa, arranjei as
almofadas no divã e quando me
pareceu que todos os sinais tinham desaparecido afundei-me no sofá ao
pé da janela na espera (quase veemente) de Kostka: da sua voz de homem (tinha uma
grande necessidade de uma voz de homem, profunda), da sua figura alta com o peito chato,
das suas frases agradáveis, na espera também do que ele me dissesse de novo sobre Lúcia,
que, ao con-
trário de Helena, tinha sido tão docemente imaterial, abstracta, tão afastada dos conflitos,
das tensões e dos dramas, e no entanto não sem influência na minha vida: veio-me a ideia
que essa influência se exercia da mesma maneira que, segundo os astrólogos, os
movimentos das es-
trelas influenciam a vida humana; do fundo do sofá (diante da janela toda aberta que
expulsava o cheiro de Helena) eu pensava ter decifrado
* meu rébus supersticioso e adivinhado por que tinha Lúcia atravessado
* céu desses dois dias: Só Dara reduzir a -vuigança~a resolver em bruma tudo o
que me tinha trazido aqui; porque Lúcia, essa mu,lh,er,qg"u tinha amado tanto e que,
inexplicavelmente, me tinha es-
capado no último.momento, era a deusa da fuga, a deu,sla,da, perseguiçao va, a deusa das
brumas; tem sewpj:@e_a,=àaha_~xj@Uc_a&~s mãos.,
196

SEXTA PARTE
KOSTKA
1 @ 11
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Há muito tempo que não nos víamos, mas, na realidade, vimo-nos poucas vezes. É estranho
porque, em imaginação, eu encontro~o muitas, muitas vezes, a Ludvik Jalin, e destino-lhe
os meus solilóquios como ao meu principal adversário. Tinha-me habituado de tal maneira
à sua presença imaterial que ontem, quando o encontrei inesperadamente, em carne e osso,
depois de muitos anos, fiquei sem fala.
Chamei a Ludvik meu adversário. Terei o direito de lhe chamar assim? Por coincidência,
cada vez que nos encontrámos eu estava a precisar de ajuda e foi ele que, de cada vez, me
ajudou. No entanto, sob esta aliança existiu sempre um desacordo abissal. Não sei se
Ludvik o mediu como eu. Em todo o caso ele dava mais importância à nossa ligação ex-
terior do que à nossa dife ença interior. Irreconciliável com os inimigos exteriores e
tolerante quanto aos diferendos interiores. Eu, não. Comigo é exactamente o contrário. O
que não quer dizer que não goste de Ludvik. Gosto dele como gostamos dos nossos
adversários.
199

1!It
11
Conheci-o numa dessas reuniões movimentadas que fervilhavam pelas faculdades no ano
de quarenta e sete. O futuro da nação estava em jogo. Eu participava em todas as
discussões, polémicas e votações do lado da minoria comunista, contra os que constituíam
na época a maioria nas universidades. Muitos cristãos, católicos ou protestantes, me
criticavam. Consideravam uma traição que me tivesse solidarizado com um movimento que
tinha inscrito o ateísmo na sua insígnia. Aqueles que hoje vou encontrando pensam que
tomei consciência do meu erro depois destes quinze anos. Mas sou forçado a desiludi-los.
Não mudei de atitude até agora.
Claro que o movimento comunista não tem Deus. No entanto, só os cristãos que se recusam
a ver a tranca que têm no olho podem acusar só o comunismo. Digo: os cristãos. Mas onde
estão eles ao certo? Em redor só vejo pseudocristãos, que vivem exactamente como não
crentes. Ora, ser cristão significa viver de outra maneira. Significa seguir o caminho de
Cristo, imitar Cristo. Significa desprendermo-nos dos interesses particulares, do bem-estar
e do poder pessoais, virarmo-nos para os pobres, os humilhados, os que sofrem. Era isso
que as Igrejas faziam?
O meu pai era um operário sempre desempregado, humilde na sua fé. Virava para Deus o
seu rosto piedoso, mas a Igreja, essa, nunca virou o seu rosto para ele. Ele ficou
abandonado no meio dos seus semelhantes, abandonado no seio da Igreja, só com o seu
Deus, até à sua doença e à sua morte.
As Igrejas não compreenderam que o movimento operário era a su-
bida dos humilhados e dos que suspiravam com fome de justiça. Não se preocuparam em
instaurar, com eles e por eles, o reino de Deus sobre a terra. Aliaram-se aos opressores, e
assim tiraram Deus ao movimento
200

operário. E agora pretendem culpá-lo de não ter Deus? Que farisaísmo! É verdade que o
movimento socialista é ateu, mas eu vejo nisso uma censura divina que nos interpela!
Censura pela nossa falta de coração para com os miseráveis e os atormentados.
E o que devo então fazer? Assustar-me com o número cada vez menor dos fiéis?
Horrorizar-me por a escola ensinar às crianças um pensamento anti-religioso? Não. A
verdadeira religião não tem nenhuma ne-
cessidade dos favores do poder temporal. A má vontade do século só serve para fortificar a
fé.
Ou será que deverei combater o socialismo por ele ser, por nossa culpa,
4teu? Resta-me deplorar o trágico mal-entendido que afastou o socia '-
lismo de Deus. Não posso senão esforçar-me por pô-lo em evidência e traba.lh_ar---
PIara- -9.repgrgr.,
De resto, cristãos, meus irmãos, porquê esta inquietação? Tudo se c
--pre pela votita c---de Deus e muitas vezes pergunto-m s, um d
e e não é de propósito que Deus dá a entender à humanidade que o homem não pode sentar-
se impunemente no seu trono e que, por muito justa que seja a
ordenação das coisas deste mundo, ela só pode correr mal e corromper-se fora da sua
participação'.
Lembro-me 1daq 1, üeles 1--- anos quando por cá as pessoas já se imaginavam a dois
passos do paraíso. E como estavam orgulhosas: era o seu
paraíso, iam poder chegar a ele sem que ninguém tivesse de as ajudar do alto dos céus! Só
que, depois, ele se evaporou sob os seus olhos.
201

111
Antes de Fevereiro de 1948 o meu cristianismo convinha aos comunistas. Eles gostavam de
me ouvir explicar o conteúdo social do Evangelho, bramar contra esse velho mundo de
vermes que desabava sob os seus tesouros e as suas guerras, demonstrar o parentesco entre
o cristianismo e o comunismo. Tratava-se para eles de ganhar para a sua causa as mais
largas camadas e portanto os crentes também. Mas, depois de Fevereiro, tudo com, eçou a
mudar. Na minha qualidade de as-
sistente, assum i a defesa de vários estudantes ameaçados de expulsão da faculdade por
causa das ideias políticas dos pais. O meu protesto valeu-me um conflito com a direcção do
estabelecimento. Levantaram-se vozes para dizer que um homem com convicções
religiosas tão definidas não podia educar a juventude socialista, Parecia que eu iria ser
obrigado a lutar para subsistir- Foi então que soube que o estudante Ludvik Jahn tinha
acabado de depor a meu favor numa reunião plenária do Partido. Esquecer o que eu tinha
representado para o Partido nas vésperas de Fevereiro seria, para ele, ingratidão pura. E
como lhe objectassem o meu cristianismo, ele tinha respondido que, na minha vida, a
religião seria uma fase transitória que eu ultrapassaria graças à minha juventude.
Fui agradecer-lhe o seu apoio. Disse-lhe, no entanto, que, não pretendendo enganá-lo,
queria lembrar-lhe que era mais velho do que ele e que não havia esperança de que pudesse
"ultrapassar" a minha fé. Estabeleceu-se um debate sobre a existência de Deus, sobre a
finitude e a eternidade, a posição de Descartes face à religião, a questão de saber se
Espinosa era materialista e muitas outras coisas. Não conseguimos entender-nos. No fim,
perguntei a Ludvik se ele não estava arrependido de me ter apoiado, já que eu lhe aparecia
como irrecuperável. Ele disse-
202

-me que a minha crença religiosa era comigo e que, bem vistas ascoisas, ninguém tinha
nada com isso.
Não tornei a encontrá-lo na faculdade. Mas os nossos destinos viriam a aproximar-se. Cerca
de três meses depois da nossa conversa, Jaim foi afastado do Partido e da faculdade. E seis
meses mais tarde foi a minha vez de deixar a Universidade. Fui posto na rua? Forçado a ir-
me embora? Não sei. É verdade que se falava cada vezmais contra a -minha pessoa e as
minhas convicções. É verdade que certos colegas me tinham dado a entender que eu
deveria fazer uma espécie de declaração pública com laivos de ateísmo. É verdade que
tinha havido durante as minhas aulas intervenções agressivas da parte dos alunos
comunistas que ofendiam a minha fé. Havia no ar um convite para que me fosse embora.
Mas não émenos verdadeque eu continuava a ter, entre os comunistas da faculdade,
bastantes amigos que me estimavam por causa da minha atitude antes de Fevereiro. Talvez
tivesse bastado pouco: que eu começasse a defender-me. Decerto me teriam apoiado. Só
que não fiz nada.
203

IV
"Segui-me", disse Jesus aos seus discípulos e, sem discutir, eles deixaram as suas redes, as
suas barcas, as suas casas, as suas famílias, e seguiram-no. "Quem agarrar na charrua e
olhar para trás, não é digno do reino de Deus."
Se ouvirmos o chamamento de Cristo, devemos segui-lo sem condições. Tudo isto é
arquiconhecido através do Evangelho, mas na época moderna estas palavras limitam-se a
soar como um conto de fadas. Um chamamento, que rima pode ser essa na prosa das nossas
existências? Para onde teríamos de ir e quem deveríamos seguir, abandonando as nos-
sas redes?
E, no entanto, a voz do chamamento ressoa mesmo no nosso mundo por pouco apurado que
seja o nosso ouvido. É certo que o chamamento
não nos chega pelo correio como uma carta registada. Chega velado, ra-
ramente sob um disfarce rosado e sedutor. "Não é pela acção que tu escolherás, antes deves
aceitar o que sobrevier contra a tua escolha, contra * teu pensamento e contra o teu desejo,
é aí que está o teu caminho, * que eu te chamo, para onde me deves seguir, é aí que o teu
mestre passou ... ", escreveu Lutero.
Eu tinha muitas razões para querer conservar o meu lugar de assistente. Relativamente
confortável, dava-me muito tempo livre para continuar os meus estudos e assegurava-me
uma carreira de professor universitário até ao fim dos meus dias. Mas o que me assustou,
precisamente, foi sentir-me agarrado ao meu lugar. Isso assustou-me tanto mais que eu via
então muitas pessoas de valor, pedagogos ou estudantes, afastados por causa do seu
trabalho. Tive medo de me instalar numa boa situação cujas perspectivas seguras me
pudessem separar da sorte precária dos meus semelhantes. Compreendi que as sugestões no
sentido de que
204

eu saísse da faculdade eram um chamamento. Ouvi alguém chamar-me. Alguém que me


precavia contra o conforto da minha carreira susceptível de agrilhoar o meu pensamento, a
minha crença e até a minha consciência.
A minha mulher, que me tinha dado uma criança, então com cinco anos, pressionava-me,
como é evidente, de mil maneiras para que me defendesse e fizesse tudo por me manter na
faculdade. Pensava no miúdo, no futuro da família. Nada mais existia para ela. Quando
olhava para os seus traços já gastos, acometia-me o terror destes cuidados infinitos,
cuidados pelo dia seguinte e pelo ano seguinte, cuidados por todos os dias e os anos que
restavam para vir. Eu temia este peso e ouvia na minha alma as palavras de Jesus: "Não vos
preocupeis com o dia de amanhã, pois o amanhã tomará conta de si mesmo. A cada dia
basta a sua pena".
Os meus inimigos pensavam que eu ia entrar em tormentos, mas aconteceu que senti uma
ligeireza imprevista. Eles pensavam que eu sentiria a minha liberdade constrangida, e foi
exactamente então que descobri para mim a liberdade real. Compreendi que o homem não
tem nada a perder, que o seu lugar é em toda a parte, em toda a parte onde Cristo passou, o
que quer dizer: em toda a parte entre os homens.
Surpreendido, ao começo, e contrito, fui ao encontro da maldade dos meus adversários.
Aceitei o mal que eles me infligiam como um chamamento cifrado.
205

v
Os comunistas acreditam, de um modo religioso, que o homem culpado em relação ao
Partido pode obter a absolvição se for trabalhar durante um certo tempo entre os
agricultores ou os operários. Durante os
anos que se seguiram a Fevereiro, muitos intelectuais tomaram assim, por um período mais
ou menos longo, o caminho das minas, das fábricas, das obras ou das propriedades
agrícolas do Estado, de onde, depois de uma purificação misteriosa no ambiente desses
lugares, lhes era possível emergir para reintegrar as administrações, escolas ou secretarias.
Quando propus à direcção da faculdade ir-me embora sem pedir a
atribuição de um lugar de investigador científico, desejando, pelo con-
trário, um emprego num meio popular, de preferência como operário especializado algures
numa quinta do Estado, os meus colegas comunistas, amigos ou adversários, interpretaram
a minha iniciativa não no sen-
tido da minha fé, mas no da deles: como manifestação de uma excepcional capacidade de
autocrítica. Devidamente apreciada, ajudaram-me a encont@ar um bom lugar numa quinta
do Estado na Boémia Ocidental, com um director e uma bela paisagem. Como viático,
organizaram-me uma ficha pessoal singularmente elogiosa.
A minha nova situação encheu-me de uma alegria verdadeira. Sentia-me renascer. A quinta
do Estado tinha sido criada numa comuna abandonada, próxima da fronteira e só meio
repovoada depois da deportação dos alemães no fim da guerra. A toda a volta estendiam-se
colinas, em grande parte nuas, cobertas de pastagens. Pequenas casas de aldeia espalhavam-
se ao fundo dos vales. As brumas que flutuavam eram como um guarda-vento móvel entre
mim e a terra habitada, de maneira que o mundo parecia no quinto dia da criação, quando
Deus hesitava ainda se o ia confiar aos homens.
206

Até as pessoas tinham mais consístência. Confrontavam-se com a na-


tureza, com as pastagens sem fim, com as manadas de vacas e os rebanhos de ovelhas. Eu
respirava bem na sua companhia. Vieram-me logo ideias sobre o m~ partido a tirar da
vegetação desta paisagem acidentada: adubos, ensilagem racional dos fenos, campos
experimentais para plantas medicinais, estufas. O director agradecia-me as minhas
iniciativas e eu agradecia-lhe poder ganhar o meu pão através de unia tarefa átil.
207

vi
Estava-se em 1951. Setembro tinha sido fresco, mas em meados de Outubro tornara a
aquecer bruscamente, e o Outono manteve-se bonito ao longo de quase todo o mês de
Novembro. As medas que secavam à beira dos campos exalavam o seu cheiro em redor. Na
erva brilhava o frágil corpo dos narcisos. Nos lugares ali à volta começava a falar-se da
jovem vagabunda.
Grupos de uma aldeia vizinha tinham ido ao fananço nos campos. Quando contavam,
ruidosamente, uns aos outros as suas histórias, viram uma rapariga que saía de uma meda
toda despenteada, com bocados de palha no cabelo, uma rapariga que nenhum deles tinha
ainda visto nas redondezas. Assustada, ela tinha-se virado para todos os lados antes de fugir
para a floresta. Mal tinham pensado em ir atrás dela, já ela desaparecera. A isto juntava-se o
relato de uma camponesa local: uma tarde em que andava pelo pátio tinha aparecido uma
rapariga de uns vinte anos com um casaco muito velho pedindo-lhe, de cabeça baixa, um
bocado de pão. "Para onde vais assim?", tinha dito a mulher. A rapariga tinha respondido
que tinha um longo caminho diante dela. "E vais a pé? -
Perdi o dinheiro que me restava." A camponesa não insistiu e deu-lhe pão e leite.
Depois o nosso pastor também contou a sua história. Uma vez, na montanha, tinha deixado
a sua fatia de pão e a caneca de leite junto de um tronco. Afastou-se um momento em
direcção ao seu rebanho e, quanto voltou, o pão e o leite tinham desaparecido
misteriosamente.
As crianças souberam logo essas histórias, que a sua imaginação multiplicava avidamente.
Bastava que se anunciasse a perda de qualquer objecto para que aí se visse a confirmação
da existência da desconhecida. Apesar de a água estar muito fria neste começo de
Novembro, tinham-
208

-na visto ao anoitecer a tomar banho num tanque perto da aldeia. Outra vez, tinha-se ouvido
à tarde algures na distância o canto frágil de urna voz feminina. Os adultos diziam que era
uma telefonia numa das casas das encostas, mas os miúdos bem sabiam que era ela, a
rapariga selvagem, que passeava no alto dos montes, de cabelos em desalinho, e cantava.
De outra vez, tinham feito uma queimada num campo e deitado batatas nas brasas. A
seguir, olharam para a orla da floresta, e urna miúda gritou que a tinha visto a observá-los
da penumbra. Logo um rapaz tinha agarrado num torrão de terra e lançou-o na direcção que
a miúda tinha indicado. Curiosamente não se ouviu nenhum grito, mas aconteceu outra
coisa. Todas as crianças se viraram contra o que lançara o torrão e quase lhe caíram em
cima.
Sim, era assim: nunca a habitual crueldade das crianças se deixou despertar pela história da
rapariga errante, apesar dos pequenos roubos ligados à ideia que tinham dela. Desde o
primeiro instante ela contava com simpatias ocultas. Eram corações tocados pela inocência
e insignificância dos roubos, pela sua tenra idade? Ou era a mão de um anjo que a protegia?
De uma maneira ou outra, o torrão lançado tinha acendido o amor das crianças pela
vagabunda. Ao afastarem-se do fogo quase extinto deixaram perto dele algumas batatas
assadas sob uma camada de brasas para as manterem quentes e cobertas com rama de
pinheiro. Baptizaram mesmo a rapariga. Numa folha arrancada de um caderno, tinham
escrito a lápis em letras grandes: Maria Vagabunda, são para ti. Puseram o papel ao pé das
batatas com uma por cima. A seguir foram-se esconder nas moitas para seguir a
aproximação da tímida silhueta. A tarde volveu-se em noite e ninguém apareceu. As
crianças tiveram por fim de sair dos seus esconderijos para voltarem para casa. Mas no dia
seguinte de manhã cedo todos voltaram a correr para o campo. As batatas tinham
desaparecido e também o papel e o ramo de pinheiro.
A rapariga tornou-se uma fada que as crianças mimavam. Punham-lhe uma caneca de leite,
pão, batatas, com recadinhos. De cada vez mudavam de sítio para os seus presentes.
Evitavam deixar-lhe as coisas num sítio fixo, como teriam feito para um pedinte.
Brincavam com ela. À caça ao tesouro.
A partir do sítio em que tinham deixado as primeiras batatas assadas, afastavam-se pouco a
pouco da aldeia em direcção ao campo. Deixavam os seus tesouros junto dos troncos, ao pé
de um rochedo, junto de uma via-sacra, perto de uma roseira. Ninguém soube destes
esconderijos. Nunca deram um passo em falso ao tecer a teia deste jogo, nunca espiaram a
Maria Vagabunda, nunca lhe tolheram o caminho. Aceitaram-na invisível.
209
r.

vil
Este conto não durou. O director da nossa quinta foi um dia com o presidente do Comité
Nacional da comuna à montanha, a fim de fazer um inventário de várias casas desabitadas
que pretendiam converter em
dormitórios para os trabalhadores agrícolas em tarefas mais longe da aldeia. No caminho
foram surpreendidos por uma chuvada. Ali perto só havia um pequeno bosque de coníferas
e à sua beira um celeiro. Correram para lá, tiraram o pau que servia de tranca e irromperam.
A luz entrava tanto pela porta como pelas fendas do telhado. Num canto, o feno estava
amachucado como que para uma cama. Aí se estenderam; ouviam o gotejar da chuva no
telhado, respiravam o forte odor e con-
versavam. De repente, ao enterrar a mão na parede de forragem à sua direita, o presidente
sentiu uma superfície dura debaixo dos ramos se-
cos. Era uma pequena mala. Vetusta, feita em cartão de dez réis. Não sei quanto tempo os
homens hesitaram diante do mistério. A verdade é que abriram a mala e nela descobriram
quatro vestidos de rapariga, novos e soberbos. A bela aparência dos vestidos parece que
contrastava insolitamente com o aspecto da mala, e fazia pensar em roubo. Os vestidos
escondiam roupa de baixo feminina e um molho de cartas atado com uma fita azul. Nada
mais. Até agora não soube nada dessa correspondência, não sei mesmo se o director e o
presidente a leram. Só sei que ela lhes revelou o nome da destinatária: Lúcia Sebetkova.
Depois de terem meditado algum tempo sobre a sua descoberta, o presidente descobriu um
segundo objecto no feno. Uma caneca de leite falhada. A caneca, em esmalte azul, de cuja
perda enigmática o pastor da quinta falava todas as noites na estalagem.
Depois, o caso seguiu o seu caminho. O presidente pôs-se à espreita nas moitas enquanto o
director foi à aldeia para mandarem um polícia.
210

Quando veio a noite, a rapariga regressava ao seu perfumado abrigo. Deixaram-na entrar,
fechar a porta atrás de si, esperaram meio minuto e entraram por sua vez.
211

VIII
Os dois homens que apanharam Lúcia no celeiro eram boas pessoas.
O presidente, antigo trabalhador agrícola, era um homem honesto, pai de seis filhos. O
polícia era um homem rústico de ar cândido e bonacheirão, de grandes bigodes. Nem um
nem outro teriam feito mal a uma
mosca.
E, no entanto, eu senti um sofrimento curioso no momento em que soube como Lúcia foi
apanhada. Ainda hoje, o meu coração sufoca quando imagino o director e o presidente a
vasculhar na sua mala, detendo entre as mãos toda a sua intimidade materializada, os doces
segredos da sua roupa de baixo usada, a olharem para onde não se deve olhar.
Tolhe-me o mesmo sofrimento com a outra imagem; a imagem dessa frágil toca de feno
sem fuga possível, com a única saída bloqueada por dois matulões.
Mais tarde, quando soube melhor a história de Lúcia, percebi com
espanto que, através destas duas imagens angustiantes, foi a própria essência do seu destino
que se me revelou imediatamente. Estas duas imagens representavam uma situação de
violação.
212

1X
Nessa noite, Lúcia já não dormiu no celeiro, mas numa cama de ferro posta numa loja
desafectada que servia de posto da guarda. No dia seguinte interrogaram-na no Comité
Nacional. Souberam que até aí ela tinha trabalhado em Ostrava, onde morava. Tinha
fugido, incapaz de aguentar mais tempo. Quando quiseram precisões, depararam com um
silêncio obstinado. Porquê esta fuga para aqui, para a Boémia Ocidental? Os seus pais,
disse ela, moravam em Clieb. Por que razão não voltara para casa deles? Tinha descido do
comboio muito antes de chegar a essa cidade, tomada de um medo pânico. O pai só lhe
sabia bater.
O presidente do Comité Nacional declarou a Lúcia que a iam mandar para Ostrava, de onde
ela tinha partido sem ter pedido licença como devia ter feito. Lúcia disse-lhes que sairia do
comboio na primeira estação. Eles gritaram um pouco, mas depressa perceberam que isso
não resolvia nada. Por isso perguntaram-lhe se a deviam mandar para casa. em Clieb. Ela
sacudiu a cabeça com veemência. Eles continuaram com severidade ainda por momentos e
depois o presidente cedeu à sua própria bondade. "Então o que é que tu queres? " Ela quis
saber se não poderia ficar, arranjar trabalho aqui. Eles encolheram os ombros e
responderam que iam ver, na quinta do Estado.
A penúria da mão-de-obra causava ao director dificuldades constantes, por isso aceitou sem
hesitação a proposta do Comité Nacional. E anunciou-me que eu ia enfim receber, para a
estufa, a trabalhadora que há tanto tempo reclamava. E nesse mesmo dia o presidente do
Comité Nacional veio apresentar-me Lúcia.
Lembro-me bem desse dia. Aproximava-se o fim de Novembro e, depois de semanas de
sol, o Outono apresentava a sua face de vento e chuva. Chuviscava. De casaco castanho,
mala na mão, cabeça inclinada e olhar
213
.r

indiferente, ela estava ao lado do presidente. Ele tinha na mão a caneca de leite azul e disse
solenemente: "Se fizeste mal, perdoámos-te e temos
confiança em ti. Podíamos mandar-te de volta para Ostrava, mas deixamos-te ficar aqui. A
classe operária precisa de pessoas honestas em
toda a parte. Não a desiludas!"
Enquanto ele foi ao escritório pôr o pote de leite para o nosso pastor, levei Lúcia à estufa,
apresentei-a às suas duas companheiras de trabalho e dei-lhe instruções.
214

Na minha memória, Lúcia eclipsava tudo o que eu vivia nessa altura. Na sua sombra
desenha-se, apesar de tudo com alguma nitidez, a silhueta do presidente do Comité
Nacional. Quando você estava ontem diante de mim, Ludvik, sentado nesta poltrona, não
quis magoá-lo. Agora que você está de novo comigo, tal como me é mais familiar, uma
imagem, uma sombra, vou dizer-lhe: esse antigo trabalhador agrícola que queria construir
um paraíso para os seus companheiros de miséria, esse homem honesto que pronunciava
com um entusiasmo ingénuo as grandes palavras de perdão, de confiança, de classe
operária, estava muito mais perto do meu coração e do meu pensamento que você, embora
nunca me tenha feito favor nenhum. Noutro tempo, você defendia que o socialismo tinha
brotado do tronco do racionalismo e do cepticismo europeus, fora da religião ou contra a
religião, e que não era concebível de outra maneira. Pretenderá você sustentar ainda com
seriedade que não se pode edificar uma sociedade socialista sem se acreditar no primado da
matéria? Tem a certeza absoluta de que homens que acreditem em Deus não podem
nacionalizar as fábricas?
Eu acredito profundamente que a linhagem espiritual que se reclama da mensagem de Jesus
leva à igualdade social e ao socialismo com bastante mais naturalidade. E quando me
lembro dos mais ardentes comu-
nístas da primeira fase socialista do meu país, como por exemplo esse presidente que pôs
Lúcia entre as minhas mãos, essas pessoas parecem-me muito mais próximas dos zeladores
da religião do que dos doutores voltairianos. A época revolucionária depois de 1948 não
tinha quase nada qp co,:@@im com o cepticismo ou o racionalismo. Era o tempo da grande
fé colectiva. uem, aprovando-a, aderia a essa época, estava habita(fá por sensações muito
próximas das que a religião provoca: renunciava ao
215

seu eu, ao seu interesse, à sua vida privada, por algo de mais elevado, de suprapessoal. É
verdade que as teses do marxismo têm uma origem profana, mas o alcance que se lhes
reconhecia era comparável à do Evangelho e dos mandamentos bíblicos. Criava-se um
círculo de ideias intocáveis, portanto, na nossa terminologia, sagradas.
Essa época, quase ou já mesmo passada, tinha nela qualquer coisa do espírito das grandes
religiões. Pena que não tenha sabido levar até ao fim o seu religioso conhecimento de si!
Da religião, ela tinha os gestos e os sentimentos, mas por dentro continuava oca e sem
Deus. No entanto, eu acreditava sempre que o Senhor teria compaixão, de que se
daria a conhecer, que no fim santificaria essa &rande@ @f@ Esperava em vão.
No fim, essa época traiu a sua religiosidade e pagou o preço da herança racionalista de que
só se reclamava porque não se entendia a si própria. Há séculos que o racionalismo céptico
corrói o cristianismo. Corrói-o, mas não o destruirá. E dentro de alguns decênios fará tábua
rasa da teoria comunista, que, no entanto, foi obra sua. Em si, Ludvik, já a matou. Você
bem o sabe.
216

XI
Quando as pessoas conseguem evadir-se para o reino da fantasia, pode ser que se
encontrem cheias de nobreza, de compaixão, de poesia. Infelizmente, no reino da vida
quotidiana são dominadas pelas cautelas, a
desconfiança e as suspeitas. Foi assim que eles se portaram com Lúcia. Logo que ela saiu
do domínio dos contos para crianças para se converter numa rapariga de carne e osso que
partilhava as ocupações e o sono das outras trabalhadoras, tornou-se imediatamente alvo da
curiosidade não desprovida de maldade que os humanos reservam aos anjos caídos ou às
fadas escorraçadas das histórias.
A sua natureza calada não a serviu muito. A quinta do Estado recebeu, de Ostrava, ao fim
de um mês o dossier de Lúcia, mandado pelo serviço de pessoal. Soube-se por eles que ela
começara por trabalhar como aprendiza num cabeleireiro em Clieb. Em consequência de
uma falta aos bons costumes, fora um ano para uma casa de correcção e daí é que tinha ido
para Ostrava. As suas qualidades de operária afirmaram-se en-
tão de maneira incontestável. O seu comportamento no lar era exemplar. Antes de
desaparecer, fora apanhada num delito absolutamente insólito: rog4~,âo cemitério.,
- As informações eram sumárias e, longe de esclarecerem o segredo de Lúcia, tornavam-no
ainda mais enigmático.
Eu tinha prometido ao director ocupar-me de Lúcia. Ela atraía-me. Taciturna, entregava-se
ao trabalho. Havia calma na sua timidez. Eu não encontrava nela nenhum dos sinais de
excentricidade que seriam de esperar em quem vivera várias semanas como vagabunda. Ela
afirmava que estava muito bem na quinta e que não tencionava ir-se embora. Doce, pronta a
ceder nas discussões, tinha atraído as boas graças das colegas.
O seu laconismo conservava, no entanto, uma qualquer marca de um
217
destino doloroso e de uma alma mortificada. Eu desejava ardentemente que ela se confiasse
a mim, mas sabia que ela tinha, na sua vida, passado por situações que lhe evocavam um
interrogatório. Por isso nada lhe perguntei, antes me pus eu próprio a contar. Falava com
ela todos os dias. Contei-lhe o meu projecto de criar ali na quinta um campo de ervas
medicinais. Contei-lhe que os camponeses antigos se tratavam com
tisanas ou infusões de várias plantas. Falei-lhe na pimpinela usada contra a cólera e a peste,
da saxífraga que desfaz as pedras da bexiga e da vesícula. Lúcia ouvia. Ela gostava das
plantas. Mas que ingénua simplicidade! Nada sabia delas, era incapaz de chamar a uma
única pelo nome.
O Inverno apertava e Lúcia, para além dos seus lindos vestidos de Verão, não tinha nada
para vestir. Ajudei-a a dividir o seu dinheiro. Levei-a a comprar uma gabardina e um
casaco de lã e, a seguir, outras coisas mais: sapatos, pijama, meias, casacão quente...
Perguntei-lhe um dia se acreditava em Deus. Achei a sua resposta no-
tável. Não tinha dito nem que sim nem que não. Tinha encolhido os ombros dizendo só:
"Não sei." Perguntei-lhe se sabia quem era Jesus Cristo. Dissera que sim. Na verdade, nada
sabia a respeito dele. O nome ligava-se para ela vagamente à imagem do Natal, a uma
névoa de duas ou três representações que não faziam grande sentido entre si. Lúcia nunca
tinha até então conhecido nem a fé nem a descrença. Senti uma vertigem semelhante à que
conhece um apaixonado quando descobre que nenhuma carne masculina o precedeu dentro
da sua bem-amada. "Gostavas que eu te falasse nele?", ofereci; ela fez sinal que sim. As
pastagens e as colinas estavam já sob a neve. Eu contava. Lúcia ouvia-me...
218

Xil
Tinham pesado demasiadas coisas sobre os seus ombros frágeis. Era preciso que alguém a
tivesse ajudado, mas ninguém soube fazê-lo. O so-
corro que a religião te oferece é simples, Lúcia: entrega-te. Entrega-te com esse fardo que
te faz tropeçar. No dom de si existe um grande alívio. Eu sei que não tinhas a quem te
entregar porque temias as pessoas. Mas existe Deus. Entrega-te a ele. Vais sentir-te leve.
Entregar-se, quer dizer despojar-se da vida passada. Extirpá-la da alma. Confessar-se. Diz-
me, Lúcia, por que razão fugiste de Ostrava? Por causa dessas flores numa sepultura?
Também. Mas porque tinhas agarrado nelas? Porque estava triste. Punha-as numa jarra, no
quarto do lar. Também as apanhava ao ar livre, só que Ostrava é uma cidade negra e não há
natureza ao seu redor; só lixeiras, tapumes, terrenos incultos, um tufo de árvores por aqui e
ali, cheias de fuligem. Flores bonitas, Lúcia só as conseguira encontrar no cemitério. Flores
sublimes, flores solenes. Gladíolos, rosas ou lírios. E também crisântemos, essas bolas
volumosas de pétalas frágeis...
E como é que eles te apanharam? Ela ia muitas vezes ao cemitério, o lugar agradava-lhe.
Não só por usados ramos que raz ia ma .s-pô ---r ---I ca us1a a ca ma. ssa calma
trazialhe alív'iõ'.'C"à"d'@á túmuio era, 'um "p'equeno jardi.ra, e ela demorava-s.e junt 11o
de cada um, com o seu m o num ento eo sseu s
éla* Iraüava .as m 1aneí ras --- de ---c erto1s11. v1i1s1itantes, que não a incomodassem,
pessoas de idade sobretudo, que se ajoelhavam junto dos túrnulos. Uma vez, sentira-se bem
junto de uma sepultura ainda fresca. O caixão fora enterrado poucos dias antes. A terra
ainda estava solta, juncada de co-
219
roas, e à frente, numa jarra, havia um ramo de rosas. Lúcia estava aj oe-
lhada e, por cima dela, o choupo formava como que uma abóbada íntima e sussurrante. Ela
sentia-se esvair numa felicidade indescritível. No mesmo instante aproximou-se um senhor
de idade com a mulher. Talvez fosse o túmulo do filho, do irmão, quem sabe. Viram uma
jovem desconhecida prosternada diante da sepultura. Ficaram admirados. Quem seria? Essa
aparição parecia esconder um segredo, um segredo de família, talvez fosse uma parente
desconhecida, ou uma amante do desaparecido... Pararam, sem ousar importuná-la.
Olhavam-na de longe. Eis que se levanta, tira da jarra o ramo de bonitas rosas que eles
próprios lá tinham posto há pouco tempo, volta-se e afasta-se. Foram no seu encalço. Quem
é você, perguntaram-lhe. Ela não sabia o que dizer e gaguejava, confusa. Perceberam que
ela não sabia nada do seu defunto. Chamaram uma jardineira em seu apoio. Obrigaram a
rapariga a mostrar os documentos. Insultaram-na aos gritos afirmando que não havia nada
pior do que roubar os mortos. A jardineira confirmou que não era o primeiro roubo de
flores no seu cemitério. Mandaram vir um polícia, fizeram mais perguntas a Lúcia e ela
confessou tudo.
220

i
xiii
"... E que os mortos enterrem os seus mortos", disse Jesus. As flores das sepulturas
pertencem aos vivos. Tu não conhecias Deus, Lúcia, mas aspiravas a ele. Na beleza das
flores naturais encontravas a revelação do sobrenatural. Não querias essas flores para
ninguém. Eram só para ti. Para o vazio da tua alma. E eles apanharam-te e humilharam-te.
Mas foi só por essa razão que fugiste da cidade negra?
Ela calava-se. Depois, com a cabeça, fez sinal que não. Alguém te fez mal? Disse que sim
com a cabeça. Conta, Lúcia!
O quarto era minúsculo. No tecto, sem quebra-luz, nua, obscena, havia uma lâmpada
pendurada, oblíqua, do casquilho. Uma cama encostada à parede, uma imagem pendurada
por cima e, na imagem, um ho-
mem belo com uma longa túnica azul, ajoelhado. Era o Jardim de Getsérnani, mas Lúcia
não sabia. Ele tinha-a levado aí e ela tinha-se defendido e tinha gritado. Ele queria violá-la,
arrancou-lhe o vestido e ela escapou-se e fugiu para longe.
Quem era, Lúcia? Um soldado. Gostavas dele? Não, não gostava dele. Mas então porque
foste com ele a esse quarto onde só havia uma lâmpada nua e uma cama?
Era o vazio na sua alma que a tinha atraído para ele. E para preencher esse vazio, a infeliz
só tinha encontrado um fedelho que fazia o ser-
viço militar.
221
-i

Mesmo assim, Lúcia, não consigo perceber muito bem. Se foste com ele a esse quarto onde
só havia uma cama, porque fugiste depois?
Ele era mau e brutal, como todos os outros. De quem estás a falar, Lúcia? Quais todos os
outros? Ela não respondia. Quem é que tinhas conhecido antes do soldado? Fala, Lúcia!
Conta!
222
XIV
Eles eram seis e ela era a única. Seis, entre os dezasseis e os vinte anos. Ela tinha dezasseis.
Formavam um grupo, de que falavam com res-
peito, como de unia seita pagã. Nesse dia, tinham pronunciado a palavra de iniciação.
Tinham trazido várias garrafas de um mau vinho. Ela associara-se à bebedeira com uma
submissão cega, onde punha todo o seu amor frustrado pela mãe e pelo pai. Bebeu quando
eles beberam, riu quando eles riram. A seguir, mandaram-na despir. Nunca o tinha feito na
presença deles. Mas como, perante a hesitação dela, o chefe do grupo se pôs nu primeiro,
ela compreendeu que a ordem não era de maneira nenhuma dirigida contra ela e executou-a
docilmente. Confiante neles, confiante até na grosseria deles. Eles eram o seu abrigo, o seu
escudo, não podia imaginar ficar sem eles. Eram a sua mãe, eram o seu pai. Beberam,
riram, e deram-lhe outras ordens. Ela abriu as pernas. Tinha medo, sabia o que isso
significava, mas obedeceu. Deu um grito e o sangue correu dela. Os rapazes berravam,
levantavam os copos e regavam de mau espumante as costas do chefe, o corpo frágil Lúcia,
o ventre dela, e proferiram vagas fórmulas de baptismo e de iniciação e depois o chefe
largou-a, pôs-se de pé, enquanto um outro do grupo lhe sucedia e por aí fora à vez, por
ordem de idades, o benjamim em último lugar, tinha dezasseis anos como ela e Lúcia não
podia mais com dores, ansiava por descanso, por solidão, e como ele era o mais novo, teve
a audácia de o repelir. Mas ele, precisamente porque era o mais novo, não admitia que o
humilhassem! Fazia parte do grupo! Tinha direitos iguais aos ou-
tros! Queria-o provar e deu uma bofetada a Lúcia, e ninguém levantou um dedo por ela
porque todos sabiam que o benjamim estava no seu direito e exigia o que lhe era devido. As
lágrimas de Lúcia saltaram, mas ela não ousou resistir e abriu as pernas pela sexta vez...
223
1 :1
01

Onde se passou isso, Lúcia? Em casa de um dos do grupo, os pais trabalhavam os dois no
turno da noite, havia a cozinha e um quarto, no quarto uma mesa, um canapé e uma cama,
por cima da porta, num caixilho, a inscrição: Que Deus nos faça felizes! E, numa moldura à
cabeceira da cama, uma bela se-
nhora de vestido azul com uma criança ao colo.
A Virgem Maria? Ela não sabia. E depois, Lúcia, o que se passou depois? Depois tudo
recomeçou muitas vezes, na mesma casa e depois noutras, e também ao ar livre, nos
bosques. Tornou-se um hábito para o grupo.
Gostavas, Lúcia? Não, tratavam-na cada vez pior, eram cada vez mais grosseiros, mas não
havia saída, nem para a frente nem para trás.
E como acabou? Uma noite, numa dessas casas vazias. A polícia chegou e levou toda a
gente. Os rapazes do grupo tinham feito assaltos. Lúcia não estava ao
corrente, mas sabia-se que ela alinhava com o grupo e que ela lhe dava tudo o que uma
rapariga pode dar. Ela foi a vergonha de toda a cidade de Cheb e, em casa, bateram-lhe
como se fosse de gesso. Os rapazes apanharam penas diversas e ela foi mandada para a casa
de correcção. Aí ficou um ano - até aos dezassete. Depois disso não quis nem por nada
voltar para a família. Foi assim que ela foi dar à cidade negra.
224

XV
Fiquei surpreendido e preocupado quando anteontem, ao telefone, Ludvik me revelou que
conhecia Lúcia. Felizmente, só a conhecia de vista. Parece que em Ostrava teria tido uma
leve ligação com uma rapariga que vivia no seu lar. Ontem, a nova pergunta sua, contei-lhe
tudo. Há muito tempo que tinha necessidade de me libertar deste peso, mas não tinha
ninguém a quem me confiar abertamente. Ludvik simpatiza comigo e está ao mesmo tempo
suficientemente longe da minha vida e mais ainda da de Lúcia. O segredo de Lúcia não
estava em jogo.
Não, não divulguei a ninguém as confidências de Lúcia, a não ser ontem a Ludvik. No
entanto, todos os da quinta tinham sabido a ver-
dade sobre a casa de correcção e as flores do cemitério pelas fichas do serviço de pessoal.
Eram simpáticos com ela, mas lembravam-lhe constantemente o seu passado. Para o
director, ela era a pequena assaltante de sepulturas. Embora dissesse isto sem malícia, falar
nessas coisas tornava os velhos pecados de Lúcia de novo presentes. Ela sentia-se sempre, e
sem cessar, culpada. Enquanto o que ela mais precisava era de uma absolvição total. Sim,
Ludvik, a absolvição, era disso que ela precisava, essa purificação misteriosa que você
desconhece e não compreende.
Na verdade, as pessoas não sabem perdoar por elas próprias, não têm mesmo poderes para
isso. Não conseguem anular o pecado cometido. Isso ultrapassa as simples forças do
homem. Fazer com que um pecado não conte, apagá-lo, suprimi-lo do tempo, por outras
palavras, transmutar uma coisa em coisa nenhuma, é um acto impenetrável e sobrenatural.
Só Deus pode lavar os pecados, transmutá-los em nada, só Ele pode absolvê-los, porque
escapa às leis deste baixo mundo, porque é livre, porque sabe criar milagres. O homem só
pode absolver o homem se se apoiar na absolvição divina.
225

Ora, como você, Ludvik, não acredita em Deus, não sabe perdoar. Você continua obcecado
por essa reunião plenária onde braços unânimes se levantaram contra si e aprovaram a ruína
da sua vida. Você nunca lhes perdoou isso. E não apenas a cada um deles. Eles eram cerca
de cem, número que é já de si uma espécie de micromodelo da humanidadde. Você nunca
perdoou ao gênero humano. Desde aí, retirou-lhe a sua con-
fiança e prodigalizou-lhe o seu ódio. Mesmo que eu o compreenda, isso não muda nada ao
facto de que um ódio assim votado aos homens é apavorante e cheio de pecado. Tornou-se
a sua maldição. Porque viver num mundo em que ninguém é perdoado, em que a redenção
é recusada, é viver no inferno. Você vive no inferno, Ludvik, e faz-em pena.
226

Tudo o que nesta terra pertence a Deus, pode pertencer ao Diabo. Mesmo os movimentos
dos amantes no amor. Para Lúcia eles passaram a representar o mundo do odioso.
Confundiam-se para ela com as ex-
pressões selvagens dos adolescentes do grupo e, mais tarde, com a do soldado cheio de
raiva. Ah! estou a vê-lo como se o conhecesse! Mistura as banalidades do amor,
peganhentas e adocicadas, com as desprezíveis brutalidades do macho privado de fêmea
atrás dos arames do quartel! E Lúcia subitamente descobre que as palavras ternas são
apenas um véu enganador velando a face grosseira da bestialidade. E todo o universo do
amor se esboroa diante dela e enche o poço da desilusão.
Eu tinha localizado o abcesso, era por aqui que devia começar.
O homem que ronda as falésias e agita, frenético, uma lanterna na mão pode ser um louco.
Mas à noite, quando as ondas desviam uma barca perdida, esse homem é um salvador. O
planeta em que vivemos é a fronteira entre o céu e o inferno. Nenhuma acção é em si
mesma boa ou má. Só- o seu lug a ordem das coisas a torna boa ou má. Da mesma
maneira, L úci-a, as relações carn is nã cont ra em`s`i-vi`c`Íõ ou virtude. Se estiverem de
acordo com a ordem que,Deus estabeleceu, se amares com um amor fiel, mesmo o amor
sensual será uma bênção e tu serás feliz. Porque Deus decretou: "O homem deixará o seu
pai e a sua mãe, ligar-se-á à sua mulher, e tornar-se-ão uma só carne."
Dia após dia, conversava com Lúcia, e sempre lhe repetia que ela estava perdoada, que não
tinha que se torturar, que devia desapertar o co-
lete-de-forças da sua alma, repousar humildemente na ordem divina, onde mesmo o amor
carnal terá o seu lugar.
E as semanas passavam... Depois, um dia de Primavera chegou. As macieiras floriam nas
encostas das colinas, e as suas coroas pareciam si-
227

nos a balouçar ao vento. Eu fechava os olhos para ouvir o seu som de veludo. E depois abri-
os e vi Lúcia com uma blusa azul e uma enxada na mão. Olhava para baixo, para o vale, e
sorria.
Observei esse sorriso, e concentrei-me avidamente na sua leitura. Será possível? Até aqui, a
alma de Lúcia tinha sido uma fuga constante, diante do passado e diante do futuro. Tudo
lhe fazia medo. O passado e o futuro eram para ela remoinhos. Ela agarrava-se
angustiadamente ao barco furado do presente, frágil refúgio.
E eis que hoje sorriu. Sem motivo. Assim só. E esse sorriso anunciava-me que ela olhava o
futuro com confiança. E eu sentia-me como um navegador que desembarca numa margem
depois de muitos meses. Estava feliz. Encostado a um tronco bifurcado, voltei a fechar os
olhos. Ouvia a brisa e o canto das macieiras brancas, ouvia o chilrear dos pássaros e esses
chilreios transformavam-se para mim em mil luzes levadas por mãos invisíveis como para
uma festa. Eu não via essas mãos, mas ouvia os tons agudos das vozes que me pareciam de
criança, um cortejo alegre de crianças... De repente, uma mão pousou na minha cara. E uma
voz: "O senhor é bom, senhor Kostka ... " Eu não tinha tornado a abrir os olhos. Não tinha
mexido as mãos. Continuava a ver as vozes dos passarinhos transformadas em arcos
luminosos, continuava a ouvir o murmúrio das macieiras. Mais fraca, a voz concluía:
"Gosto de si ... "
Talvez eu devesse ter esperado este instante e depois ir-me embora muito depressa, porque
a minha tarefa estava cumprida. Mas antes de entender fosse o que fosse, a fraqueza
paralisou-me. Estávamos sozinhos naquela paisagem aberta, no meio das pobres macieiras;
beijei Lúcia e estendi-me com ela na cama da natureza.
228

XVII
Aconteceu o que não devia ter acontecido. Quando, através do seu sorriso, pude ver a alma
apaziguada de Lúcia, tinha atingido a meta e devia ter-me ido embora. Mas não o fiz. E a
seguir foi mau. Continuávamos a viver na mesma quinta. Lúcia desabrochava, parecia a
Primavera que, à nossa volta, lentamente se volvia em Verão. Mas eu, em vez de me sentir
feliz, assustava-me com essa grande primavera feminina a meu lado, que eu próprio
desencadeara e que abria agora para mim todas as suas corolas, que eu sabia que não eram
minhas, que não deviam ser minhas. Eu tinha, em Praga, o meu filho e a minha mulher,
sempre à espera das minhas raras idas a casa.
Eu receava quebrar esse começo de intimidades, o que iria magoar Lúcia, mas não ousava
desenvolvê-las, visto que bem sabia que não ti-
ha direito a eles. Eu desejava Lúcia e, ao mesmo tempo, tinha medo o seu amor porque não
sabia o que havia de fazer-lhe. Só à custa de im tremendo esforço fui conseguindo manter a
naturalidade das nossas )rimeiras conversas. As minhas dúvidas meteram-se entre nós.
Tinha a mpressão de que o meu auxílio espiritual a Lúcia tinha sido desmascakado. Que, no
fundo, eu a desejara fisicamente desde o primeiro mo- ,@mento em que me aparecera. Que
eu tinha agido como um sedutor disfarçado de padre consolador. Que todos os lindos
discursos sobre Deus e Jesus apenas encobriam os mais baixos apetites carnais. Parecia-me
que, ao dar livre curso à minha sexualidade, eu conspurcara a pureza do meu
primeiro desígnio e assim desmerecera junto de Deus. d
v s'
v
nd
s@ à
L
Mas logo que aqui chegava, a minha reflexão girava em torno de si própria: que presunção,
admoestava-me eu a mim próprio, que pretensiosa vaidade isso de querer ser merecedor, de
querer agradar a Deus!
O que são os méritos humanos perante Ele? Nada, nada, nada. Lúcia
229
r

J'U@ f"0amor@Ceve:@e@Í@devoI é Ia ao desespero, por cuidado com a minha própria


pureza? Não irei antes, com issT,"áTrà-Í-rõ_d~e@sprezo di,7in-6@T-s"e' MMEM-p- =ixé
pecado, o que será mais importante, a vida de Lúcia ou a minha inocência? Isto será, afinal,
o meu pecado, só eu o suportarei, ele só a mim perderá!
No meio destas dúvidas e pensamentos, um golpe surgiu, vindo de fora. As instâncias
centrais tinham engendrado uma acusação política ao meu director. Como ele se defendia,
com unhas e dentes, acusaram-no ainda por cima de se rodear de elementos suspeitos. Eu
encontrava-me entre eles: irradiado da Universidade pelas suas opiniões hostis ao Estado,
clerical. O director tentara em vão provar que eu não era clerical e que não me tinham posto
fora da Universidade. Quanto mais ele me defendia mais comprovava a nossa conivência e
agravava o seu caso. Para mim, tinha-se tornado insustentável.
Injustiça, Ludvik? Sim, é essa a palavra que mais vezes lhe vem à
boca, ao ouvir este caso ou outros semelhantes. Mas eu não sei o que é a injustiça. Se nada
houvesse acima das coisas humanas e se os actos não tivessem outro alcance senão o que
vêem aqueles que os praticam, seria legítima a noção de injustiça, e eu próprio poderia
servir-me dela, ao ver-me despedido de uma quinta do Estado onde trabalhava com afinco.
Até talvez fosse lógico tentar erguer-me contra essa injustiça e lutar furiosamente pelos
meus pequenos direitos humanos.
Mas geralmente os acontecimentos contêm um outro sentido para além do do espírito dos
seus cegos autores; muitas vezes, outra coisa não são do que instruções veladas, vindas de
cima, e as pessoas ue os tornaram realidade são apenas mensageiras inconscieni
Ztade suprema que nem suspeitam existir.
Eu acreditava que era o que acabara de se passar. Por isso acolhi os
acontecimentos na quinta como um alívio. Reconheci neles uma directiva clara: afasta-te de
Lúcia antes que seja tarde. Cumpriste a tua missão. Os seus frutos não te pertencem. O teu
caminho passa ao largo.
Assim, agi como na Faculdade de Ciências, dois anos antes. Despedi-me de Lúcia,
debulhada em lágrimas, desesperada, e avancei em direcção à catástrofe aparente. Propus
eu próprio sair da quinta do Estado. Se é verdade que o director protestou, sei que o fez por
delicadeza e que, no seu íntimo, se sentiu aliviado.
Mas acontece que o carácter voluntário da minha saída, desta vez, não comoveu ninguém.
Não havia aqui amigos comunistas de antes de Fevereiro para juncar a minha estrada de
saída de boas notas e de bons conselhos. Saí da quinta como um homem que era indigno de
continuar a fazer fosse que trabalho fosse neste Estado. Foi assim que me tornei operário da
comnst - . .1.
ULUÇ@
230

XVIII
Era um dia de Outono, em 1956. Pela primeira vez, cinco anos passados, encontrei Ludvik
no vagão-restaurante do rápido Praga-Bratislava. Eu ia para as obras de uma fábrica no
Leste da Morávia. Ludvik acabara o seu contrato com as minas de Ostrava. Tinha ido a
Praga entregar o requerimento para poder continuar a estudar. E regressava a casa, na
Morávia. Nem queríamos acreditar. Quando nos reconhecemos, ficámos espantados com a
similitude dos nossos destinos.
Lembro-me muito bem, Ludvik, a atenção com que você ouviu a história da minha saída da
faculdade, depois as intrigas na quinta do Estado que me converteram num pedreiro.
Agradeço-lhe essa atenção. Você ficou furioso, falou de injustiça e de imbecilidade. Até se
zangou comigo: acusou-me de não me ter defendido, de ter capitulado. Nunca se deve partir
de lado nenhum de livre vontade. Devemos obrigar o nosso adversário a recorrer ao pior!
Para quê dar-lhe boa consciência?
Você mineiro, eu pedreiro. Destinos tão parecidos e pessoas tão dife-
1pronto a perdoar, você irreconciliável, eu pacífico, você reTão próximos por fora e tão
afastados no fundo de nós
Sobre essa distância interior, você sabia menos do que eu. Ao explicar-me em pormenor o
seu afastamento do Partido, você estava convencido como se fosse a coisa mais natural que
eu estava de acordo consigo, igualmente escandalizado com a tacanhez dos camaradas que
o castigavam por você ter brincado com o que para eles era sagrado. Havia alguma razão
para se escandalizarem?, perguntava você, sinceramente espantado.
Vou dizer-lhe uma coisa: em Genebra, quando Calvino lá ditava a lei, vivia um homem que
talvez se parecesse consigo, rapaz inteligente
231

e brincalhão. Apanharam-lhe os cadernos cheios de irreverências sobre Jesus Cristo e a


Escritura. Haverá razão para zangas?, disse com certeza o rapaz que se parecia tanto
consigo. Afinal, ele nada tinha feito de mal, limitou-se a brincar, só isso. O ódio?
Desconhecia-o. Só conhecia a troça e a indiferença. Foi executado.
Não vá pensar que sou partidário de tal crueldade! Quero só dizer que nenhum grande
movimento que pretenda transformar o mundo pode tolerar o sarcasmo e a troça, porque é
uma ferrugem que corrói tudo.
Examine a sua própria atitude, Ludvik. Excluíram-no do Partido, puseram-no fora da
faculdade, incorporaram-no com os soldados politicamente perigosos, mandaram-no dois a
três anos para as minas. E você? Está azedo, convencido de uma monumental injustiça.
Esse sentimento de injustiça determina, hoje ainda, todo o seu comportamento. Não o
compreendo! O que é que você tem que falar de injustiça? Eles mandaram-no para junto
dos negros - os inimigos do comunismo. Está bem. Mas terá sido uma injustiça? Não terá
antes sido para si uma grande oportunidade? Você podia ter agido nas fileiras inimigas!
Haverá missão mais importante e mais alta? Não enviou Jesus os seus discípulos "como
ovelhas para o meio dos lobos"? "Não são os que estão de boa saúde que precisam de
médico, mas sim aqueles que estão doentes", disse Jesus. "Vim chamar não os justos, mas
os pecadores ... " Só que você não estava interessado em ir para o meio dos pecadores e dos
que estão doentes!
Dir-me-á que a minha comparação é inadequada. Que Jesus enviava os discípulos "para o
meio dos lobos" com a sua bênção enquanto você foi primeiro excomungado e declarado
anátema, e só depois enviado para o meio dos inimigos, como inimigo, como lobo para o
meio dos lobos, como pecador para o meio dos pecadores.
Mas será que você nega mesmo o seu pecado? Não sente nenhuma culpabilidade em
relação à sua comunidade? De onde lhe vem esse orgulho? O homem dedicado à sua fé é
humilde e humildemente receberá o castigo, ainda que injusto. Os humildes serão
exaltados. Os arrependidos serão perdoados. Aqueles a quem se faz mal têm uma ocasião
de provar a sua fidelidade. Se sente amargura com os seus só porque carregaram os seus
ombros com um fardo demasiado pesado para eles é porque a sua fé é fraca e porque não
saiu vencedor da prova que lhe impu-
seram.
No seu litígio com o Partido, eu não estou do seu lado, Ludvik, porque sei que as grandes
coisas neste mundo só podem criar-se com uma comunidade de indivíduos dedicados para
além de todos os limites, que humildemente oferecem a sua vida em nome de um desígnio
superior.
232

Você, Ludvik, não é ilimitadamente dedicado. A sua fé é frágil. Como não havia de sê-lo se
você nunca teve outra referência que não fosse você próprio e a sua miserável razão!
Eu não sou ingrato, Ludvik, eu sei o que você fez por mim e por tantos outros que o regime
actual quebrou. Graças às suas relações, anteriores a Fevereiro, com comunistas
importantes, e forte com a sua situação presente, você não se poupa a esforços, você
intervém e ajuda. Por isso sou seu amigo. Mas deixe-me dizer-lhe pela última vez: olhe
para o fundo da sua alma! O que motiva a sua bondade não é o amor, é o ódio! O ódio para
com aqueles que lhe fizeram mal em tempos, ao levantarem o braço na sala grande! Ao
ignorar Deus, a sua alma ignora o perdão. Você deseja a vingança. Identifica os que lhe
fizeram mal no
passado aos que fazem mal aos outros hoje, e vinga-se. Sim, vinga-se! Está cheio de ódio,
mesmo quando ajuda as pessoas! Sinto-o. Sinto-o em cada uma das suas palavras. Mas o
que produz o ódio senão mais ódio, e mais e mais? Você vive no inferno, Ludvik, repito-
lhe, no inferno, e tenho pena de si.
233

XIX À"V Q@ . -)
Se Ludvik escutasse o meu solilóquio, podia pensar que sou ingrato. Bem sei que ele me
ajudou muito. Quando, em cinquenta e seis, nos encontrámos no comboio, ficou
impressionado com a minha sorte e pôs-se logo à procura de um lugar para mim, onde eu
pudesse mostrar o que valia. A sua prontidão, a sua eficácia surpreenderam-me. Na sua
terra falou a um amigo. Queria que eu fosse para professor de Ciências Naturais num liceu.
Era muito ousado. Numa altura em que a propaganda anti-religiosa estava no auge,
aceitarem um crente como professor do ensino secundário era praticamente impossível. Foi
essa, aliás, a opinião do amigo que arranjou outra coisa: o serviço de virologia do hospital
onde, desde há oito anos já, cultivo germes e bactérias em ratos e coelhos.
É assim mesmo. Sem Ludvik, eu não viveria aqui e Lúcia também não. Ela tinha casado
alguns anos depois de eu ter deixado a quinta. Não tinha ficado lá porque o marido
procurava emprego na cidade. Como não sabiam para onde haviam de mudar-se, decidiram
fixar-se na cidade onde eu morava.
Nunca na minha vida recebi presente mais belo, recompensa mais preciosa. A minha
ovelhinha, a minha pomba, a criança a quem eu restituíra a saúde, que eu alimentara com a
minha alma, voltou a mim. Sem me pedir nada. Tem o seu marido. Mas quer sentir-se perto
de mim. Precisa de mim. Precisa de ouvir-me de longe em longe. Ver-me na missa de
domingo. Encontrar-me na rua. Fiquei feliz e senti nesse momento que já não era novo, que
era mais velho do que imaginava, e que talvez Lúcia fosse a única obra da minha vida.
É pouco, Ludvik? Não. É bastante e eu estou feliz. Estou feliz. Estou feliz...
234

Ah! como consigo enganar-me! Fixar-me como um maníaco na certeza de que só o meu
caminho é bom! Gabar-me do poder da minha fé diante de um ateu.
Sim, consegui levar Lúcia a acreditar em Deus. Consegui tranquilizá-Ia, curá-la.
Desembaracei-a do seu horror às coisas da carne. Por fim afastei-me do seu caminho. Sim,
mas o que lhe arranjei eu assim?
O casamento não correu bem. O marido é grosseiro, engana-a à vista de toda a gente e
dizem que lhe bate. Lúcia nunca mo confessou. Sabia a tristeza que isso me daria. Fazia por
me dar uma ideia feliz da sua vida. Mas numa terra pequena não se pode esconder nada.
Ah! como posso ser teimoso! Eu tinha interpretado as manobras políticas contra o director
da quinta do Estado como um apelo cifrado de Deus para que eu partisse. Mas entre tantas
vozes, como reconhecer a de Deus? E se a voz que então ouvi não era senão a da minha
cobardia?
Porque tinha em Praga mulher e filho. Eles contavam pouco para mim, mas eu não fora
capaz de romper. Temia urna situação sem saída.
O amor de Lúcia assustava-me. Não sabia o que fazer dele. Receava as complicações que
me traria.
Armava-me no anjo da salvação e afinal era apenas mais um aproveitador. Depois'de a ter
amado uma só e única vez, afastei-me dela. Fazia como se lhe perdoasse quando era ela que
tinha de perdoar-me. Ela tinha chorado de desolação quando eu parti e mesmo assim, ao
fim de alguns anos, veio instalar-se cá, por minha causa. Falava comigo. Falava comigo
como com um amigo. Perdoou-me. Aliás tudo está bem claro. Não me acontecera muitas
vezes na vida, mas esta rapariga amava-me. Eu tinha a vida dela nas minhas mãos. A sua
felicidade dependia de mim. E eu
tinha fugido. Nunca ninguém terá sido tão culpado em relação a ela-
235
1

De repente, vem-me a ideia de que os pretensos apelos divinos que evoco são simples
pretextos para me escapar às minhas obrigações humanas. As mulheres assustam-me. Temo
o seu calor. Tenho medo da sua presença contínua. A perspectiva de viver com Lúcia
assustou-me, tal como me assusta a ideia de partilhar de maneira durável as duas
assoalhadas da professora da cidade vizinha.
E porque parti eu, afinal, há quinze anos da Universidade? Eu não amava a minha mulher,
seis anos mais velha do que eu. Não podia suportar mais a sua voz, a sua expressão, nem o
tiquetaque regular do relógio caseiro. Não aguentava mais viver com ela, mas era-me
igualmente impossível despedaçá-la com um divórcio porque ela fora sempre boa e não o
merecia. Então ouvi de repente a voz salvadora de um apelo su-
blime. Ouvi Jesus exortar-me a abandonar as minhas redes.
ó Senhor, será mesmo isso? Serei tão desgraçadamente ridículo? Diz-me que não é isso!
Assegura-me que não é! Faz-te ouvir, meu Deus, mais alto, mais alto! Neste chinfrim de
vozes misturadas, não consigo de todo ouvir-Te!
236

SÉTIMA PARTE
LUDVIK, HELENA, JAROSLAV

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LP@w -

Voltei a casa de Kostka à noite, já tarde, e regressei ao meu hotel decidido a partir para
Praga muito cedo no dia seguinte, porque já nada tinha a fazer aqui: estava acabada a minha
ilusória missão na minha cidade natal. Por azar, era tal a salsada que fervilhava na minha
cabeça que passei grande parte da noite às voltas na cama (que rangia) sem con-
seguir pregar olho; quando enfim pensei que dormia, acordei muitas ve-
zes sobressaltado, só consegui adormecer de verdade de madrugada. Por isso acordei tarde
de mais, por volta das nove horas, os autocarros e os comboios da manhã já tinham partido
e tinha de esperar até às duas da tarde pela próxima ligação com Praga. Senti-me quase
desesperado, como
um náufrago, com uma brusca e viva nostalgia de Praga, do meu ser-
viço, da minha mesa de trabalho em casa, dos meus livros. Mas não havia nada a fazer
senão cerrar os dentes e descer à casa de jantar.
Esgueirei-me para lá com cautela, temendo a possível presença de Helena. Mas ela não
estava lá (sem dúvida andava já de gravador a tiracolo, a correr pela cidade vizinha,
importunando quem passava com o
seu microfone e as suas perguntas); em compensação, a sala regorgitava de uma clientela
barulhenta à mesa e a fumar diante das suas imperiais, dos seus cafés e dos seus conhaques.
Ai de mim, também esta manhã a minha cidade natal não me daria o prazer de um pequeno-
almoço decente!
Saí para a rua; céu azul, pequenas nuvens esfarrapadas, primeiro peso do ar, ligeiro pó em
suspensão, a rua que desemboca na grande praça com a sua torre do sino (sim, a que
parecia um cavaleiro medieval com o seu elmo), todo esse cenário me envolveu no seu
sopro de tristeza árida. Ao longe ouvia-se o grito ébrio de uma arrastada canção morávia
(onde a nostalgia, a planície e as longas cavalgadas dos ulanos recrutados à força
239
U@@

me pareciam unidos num feitiço) e no meu pensamento apareceu Lúcia, essa história há
muito tempo passada que agora se parecia com essa can-
ção arrastada e interpelava o meu coração atravessado por tantas mu-
lheres (como se atravessassem a planície) sem nada deixarem atrás delas, como este pó em
suspensão não deixa nenhum vestígio neste terreiro anódino, pousa entre as pedras da
calçada e depois voa para mais longe com um sopro de vento.
Eu andava por essas calçadas cheias de pó e sentia a densa leveza do
vazio que pesava sobre a minha vida: Lúcia, a deusa das brumas, havia- -me outrora
privado dela própria, ontem tinha volvido em nada a minha
vingança premeditada com exactidão e logo a seguir transformou até a recordação que eu
tinha dela em não sei que desesperante história sem
sentido, que engano grotesco, pois que as revelações de Kostka provavam que durante
todos estes anos me lembrei de outra mulher, visto que na verdade eu nunca soube quem
era Lúcia.
Desde sempre me repeti que Lúcia era para mim uma espécie de abstracção, uma lenda e
um mito, mas agora entrevia, por detrás da poesia destas palavras, uma verdade sem poesia
nenhuma: eu não conhecia Lúcia, não sabia quem ela era realmente, quem ela era em si
própria e para ela. Eu só tinha apercebido (no meu egocentrismo de jovem) as facetas
do seu ser directamente viradas para mim (para a minha solidão, a minha servidão, o meu
desejo de ternura e de afeição); só tinha existido para mim em função da situação que eu
tinha vivido; tudo o que nela ultrapassava essa situação concreta da minha vida, tudo o que
ela era em si, me escapava. Mas se na realidade ela só existiu para mim em função de uma
situação, era lógico que logo que essa situação se transformasse (que uma outra situação lhe
tivesse sucedido, que eu envelhecesse e mudasse), a minha Lúcia tivesse também
desaparecido, porque ela só era o que dela me escapava, o que não me dizia respeito, o que
nela me
ultrapassava. Também era absolutamente lógico que depois de quinze anos eu não a tenha
de todo reconhecido. Há muito tempo que ela era
para mim (e eu nunca a considerei senão "para, mim") outra pessoa, uma desconhecida.
A notícia da minha derrota andou à minha procura quinze anos e
deu comigo. Kostka (que eu sempre ouvi distraidamente) significava mais para ela, fazia
mais por ela, conhecia-a mais do que eu, e tinha-a sabido amar melhor (de certeza não
mais, porque a força do meu amor tinha chegado ao paroxismo): a ele, tinha-lhe confiado
tudo - a mim, nada; ele tinha-a feito feliz - eu, infeliz; ele tinha conhecido o seu corpo -
eu, nunca. E, no entanto, para conseguir nessa altura esse corpo dese-
240

jado até ao desespero, tinha bastado uma coisa tão simples: compreendê-Ia, orientar-me
nela, amá-la não só por essa parte da sua personalidade que se dirigia a mim, mas também
por tudo aquilo que não me dizia respeito directamente, pelo que ela era em si mesma e
para ela. Eu não sabia e fiz-nos mal aos dois. Inundou-me uma vaga de fúria contra mim
mesmo, fúria contra a minha idade nessa altura, contra a estúpida idade lírica em que somos
aos nossos próprios olhos um enigma demasiado grande para nos podermos interessar pelos
enigmas que estão fora de nós e em que os outros (mesmo os que nos são mais queridos) se
limitam a ser espelhos móveis onde, espantados, encontramos a imagem do nosso próprio
sentimento, da nossa própria preocupação, do nosso próprio valor. Sim, durante estes
quinze anos, só pensei em Lúcia como no espelho que conserva a minha imagem de outros
tempos!
De repente revi o quarto nu, só com a cama, iluminado pelo lampião através da vidraça
suja, revi a recusa selvagem de Lúcia. Tudo isso lembrava uma brincadeira de mau gosto:
eu pensava que ela era virgem e ela defendia-se precisamente porque já não era e devia ter
medo que eu descobrisse a verdade. A menos que a sua defesa tivesse outra explicação (de
acordo com a maneira corno Kostka a via): as suas primeiras experiências sexuais tinham-
na marcado profundamente e tinham aos seus olhos despojado o acto de amor do sentido
que a maior parte das pessoas lhe dá; tinham esvaziado o acto de amor de toda a ternura, de
todo o sentimento de amor; para Lúcia, o corpo era horrível e o amor incorpóreo; entre a
alma e o corpo tinha-se instalado uma guerra silenciosa e pertinaz.
Esta análise (quão melodramática, mas tão plausível) relembrava-me o trágico desacordo
entre a alma e o corpo (de que vivi tantas variantes) e trouxe-me a memoria (porque o triste,
aqui, se misturava sempre ao ridículo), uma aventura que me fez rir noutros tempos: uma
boa amiga minha, mulher de costumes fáceis (de que me aproveitei muitas vezes), estava
noiva de um certo físico, absolutamente resolvida a viver, dessa vez, enfim o amor,- mas
para o sentir como amor verdadeiro (diferente das dúzias de ligações que tinha
experimentado), tinha proibido ao noivo relações íntimas até à noite de núpcias e passeava-
se com ele pelas áleas vesperais, dava-lhe a mão, trocava beijos debaixo dos candeeiros, e
deixava assim a sua alma (libertada do peso do corpo) planar nas nuvens e sucumbir às
vertigens. Divorciou-se um mês depois do casamento e queixou-se amargamente que o
marido atraiçoara o seu grande sentimento e se revelara um amante medíocre e quase
impotente.
241

Longínquo, interminável, o longo grito ébrio da canção morávia con-


fundia-se com o fundo grotesco desta história, como vazio cheio de pó da cidade e com a
minha tristeza que a fome aumentava ainda. Mas es-
tava a dois passos do milk-bar; tentei entrar, mas estava fechado. Um transeunte disse-me
ao passar: "Hoje foi tudo para a festa! - A Caval-
gada dos Reis? - Claro! Têm lá um stand."
Praguejei, mas tive de me conformar; fui em direcção à canção. As minhas cólicas de
estômago levavam-me para essa feira de folclore de que tinha fugido como da peste.
242
li U Cansaço. Cansaço desde a madrugada. Como se tivesse andado na estroina toda a
noite. No entanto, dormi a noite inteira. Só que o meu sono já não é mais que um sono
desnatado. Disfarcei um bocejo enquanto tomava o pequeno-almoço. As pessoas
começaram logo a chegar. Amigos de VIadimir, e toda a espécie de inaralhal. Um rapaz da
cooperativa trouxe para o nosso pátio um cavalo para o VIadimir. No meio daquela gente
toda apareceu Kalasek, o responsável cultural do Comité Nacional do distrito. Há dois anos
que ando em guerra com ele. Tinha-se vestido de preto, vinha com um ar solene, trazia com
ele uma rapariga elegante. Uma jornalista da rádio, de Praga. Parece que tenho de ir com
Uma jornalista da rádio, de Praga. Parece que tenho de ir com eles. A rapariga quer gravar
entrevistas para um programa sobre a Cavalgada.
Vão para o diabo! Não me apetece fazer de palhaço. A jornalista parecia entusiasmada de
me conhecer e, claro, Kalasek, entrou na onda. Parece que tenho o dever político de ir.
Palhaço. Eu bem me podia haver com eles. Tinha-lhes dito que o meu filho ia fazer de rei,
que queria ficar para o ver vestir-se. Mas VIasta tinha-me traído. Vestir o filho, era com ela.
Eu que me fosse embora e fosse falar à rádio.
Vencido, obedeci. A jornalista tinha-se instalado num canto do Comité Nacional. Tinha lá o
gravador, com um rapazito a tomar conta.
O que ela dava à língua, de ficar com ela de fora! Enquanto falava, não parava de rir.
Depois, com o microfone debaixo do nariz, fez a primeira pergunta a Kalasek.
Ele tossiu um bocadinho e começou. A prática das artes populares fazia parte da educação
comunista. O Comité Nacional do distrito tinha plena consciência disso. Por isso ele dava o
seu pleno apoio. Desejava-lhes muito sucesso e partilhava totalmente. Agradecia a todos os
que
243

tinham participado. Os organizadores entusiastas e essa juventude entusiasta que,


plenamente.
Cansaço, cansaço. As mesmas, eternas frases. Ouvir desde há quinze anos as mesmas,
eternas frases. E ouvi-Ias da boca de um Kalasek que se está marimbando para a arte
popular. A arte popular para ele é um
meio. Que lhe permite gabar-se de uma nova acção. Cumprir uma directiva. Insistir sobre
os seus próprios méritos. Ele não mexeu um dedo para a Cavalgada dos Reis, discutindo
connosco até ao último tostão. Apesar disso a Cavalgada entrará no seu activo. É ele que
reina na cultura do distrito. Um antigo empregado de balcão que não distingue um violino
de uma guitarra.
A jornalista aproximou então o microfone da minha boca. Se eu es-
tava satisfeito este ano com a Cavalgada? Quase me desmanchei a rir: a Cavalgada ainda
nem tinha começado! Mas foi ela que riu: um folclorista tão experiente como eu sabia com
certeza como as coisas se iriam passar. É verdade que eles são assim. Sabem tudo antes.
Sabem como
vão desenrolar-se as coisas antes que aconteçam. O futuro já aconteceu e, para eles, apenas
vai repetir-se.
Apetecia-me desembuchar tudo o que tinha cá dentro. Que a Cavalgada não ia chegar aos
calcanhares da dos outros anos. Que a arte popular tinha cada vez menos adeptos. Que as
autoridades a deixavam morrer. Que esta arte estava quase morta. Que não se deixasse levar
ao engano por ouvir constantemente na rádio um simulacro de música popular. Todos esses
conjuntos de instrumentos populares, coros e ranchos populares eram mais ópera, ou
opereta, música para passar o tempo, mas não tinham de certeza nada de popular. Uma
orquestra de instrumentos populares com maestro, partituras e estantes! Quase uma
orquestração sinfónica! Que abastardamento! Senhora jornalista, o que lhe oferecem esses
conjuntos e grupos não é mais do que o velho romantismo musical com coisas roubadas à
melodia popular! A verdadeira arte do povo morreu, minha senhora, está morta.
Eu queria ter despejado isto para o microfone de uma vez, mas disse outra coisa. A
Cavalgada dos Reis era de uma grande beleza. O vigor da arte popular. O festival das cores.
Eu partilhava plenamente. Agradecia todos os apoios. O entusiasmo dos animadores e das
crianças que, plenamente.
Tinha vergonha de falar como eles queriam que eu falasse. Serei assim tão cobarde? Ou tão
disciplinado? Ou apenas tão cansado?
Estava contente de ter acabado o meu número e de poder escapar-me. Tinha pressa de
voltar para casa. No pátio, um exército de mirones
244

e de auxiliares de toda a espécie agitava-se, com fitas e laços na mão, à volta do cavalo.
Decidi ir ver VIadimir a vestir-se. Entrei em casa, mas a porta da sala, onde estavam a
vesti-lo, estava fechada à chave. Bati e chamei. VIasta respondeu-me. Isto não é nada
contigo. O rei está a vestir-se. Valha-me Deus, porque não hei-de assistir? É contra a
tradição, respondeu a voz de VIasta. Não via em que podia a presença do pai no vestir do
rei ser contra a tradição, mas não tentei dissuadi-Ia. Agradava-me sabê-los metidos no meu
universo. O meu universo pobre e órfão.
Voltei então para o pátio para conversar com os que estavam a enfeitar o cavalo. Era um
pesado animal de tiro emprestado pela cooperativa. Paciente e de confiança.
Ouvi então uma barulheira na rua, vinda do portão. Pouco depois, chamaram e tocaram o
tambor. Era chegada a minha hora. Estava emocionado. Abri a porta e saí. A Cavalgada dos
Reis ali estava, alinhada à nossa porta. Cavalos cheios de fitas, engalanados. Montados por
rapazes com belos trajes tradicionais. Como há vinte anos. Como há vinte anos, quando
tinham vindo buscar-me. Quando tinham vindo pedir ao meu pai para lhes dar o seu filho
para rei.
À cabeça do cortejo, encostados à nossa porta, os dois escudeiros montavam, mascarados
de mulheres, de sabre na mão. Esperavam VIadimir para o acompanhar e tomar conta dele
até à noite. Um cavaleiro destacou-se da coluna, parou a sua montada e declamou:
Olá, old! Ouvi todos! Gentil pai, deixai que em grande equipagem sejamos de vosso filho
pagem!
Prometeu que fariam boa guarda ao rei. Que o fariam atravessar sem
dano as forças hostis. Que o não deixariam entre mãos inimigas. Que estavam prontos a
lutar por ele. Olá, olá.
Virei a cabeça. Na penumbra do nosso portão já se desenhava, no seu cavalo engalanado, a
silhueta com os tradicionais adereços femininos, mangas tufadas, fitas de cor caindo sobre a
cara. O rei. VIadimir. De súbito, esqueci o cansaço e as contrariedades e senti-me bem. O
rei velho envia para o mundo um rei jovem. Cheguei ao pé dele. Perto do cavalo, pus-me
em bicos de pés, de cara estendida para o seu rosto mascarado. "Boa viagem, VIadimir",
murmurei. Não respondeu. Não se mexeu. E VIasta dísse-me a sorrir: Ele não pode
responder-te. Não pode dizer uma só plaavra durante todo o dia.
245
III
Em menos de um quarto de hora cheguei à aldeia (quando eu era adolescente estava
separada da cidade pelos campos; hoje formam um todo); a canção que ainda há momentos
ouvia na cidade vibrava agora com força nos altifalantes presos nas fachadas ou em postes
eléctricos (hei-de ser
eternamente ingénuo: há bocado fiquei triste pela nostalgia e o supostG* abandono dessa
voz distante e afinal era apenas uma voz reproduzida por uma instalação eléctrica e alguns
discos riscados!); à entrada da aldeia tinham posto um arco de triunfo atravessado por uma
grande tarja onde se lia, em letras enfeitadas, a inscrição: SEJAM TODOS BEM-VINDOS;
aqui havia mais gente reunida, pessoas na maior parte vestidas à cidade, embora houvesse
três ou quatro velhos que tinham ido desencantar os seus trajes regionais: botas à cossaco,
calções de linho branco e camisa com motivos bordados. Depois, a rua alargava-se numa
comprida praça de aldeia: entre a calçada e o alinhamento das casas havia um espaço de
terra com algumas árvores pequenas e alguns stands (para a festa de hoje) onde se vendia
cerveja, limonada, amendoins, chocolates, pães de erva-doce, salsichas com mostarda e
filhoses; o milk-bar municipal também tinha uma barraca: leite, queijo, manteiga, iogurte e
natas; se bem que nenhum stand vendesse álcool, quase toda a gente me pareceu com os
copos; as pessoas empurravam-se, apertavam-se junto dos vendedores, andavam sem
destino; de vez em quando levantava-se um braço num gesto desmesurado, alguém
começava a cantar, mas era sempre rebate falso, dois ou três compassos logo submersos na
barulheira ambiente, dominada pelo disco do altifalante. Embora a festa estivesse no
começo, já se viam por toda a
parte no chão da praça copos de papel para cerveja e papéis sujos de mostarda.
246

Com a sua política de antialcoolismo, o stand dos produtos lácteos desencorajava o público;
consegui, quase sem esperar, um copo de leite e um croissant e afastei-me dos encontrões
para beber o meu leite devagarinho. Nesse momento ouviu-se um clamor na outra ponta da
praça: a Cavalgada dos Reis começava.
Pequenos chapéus de feltro pretos de copa redonda e pena de galo, grandes mangas com
pregas das camisas brancas, curtas sobrecasacas azuis com pompons de lã encarnada,
serpentinas de papel penduradas dos arreios dos cavalos, enchiam a praça; ao zunido das
vozes humanas e à canção do altifalante novos sons se misturaram: o relinchar dos cavalos
e os apelos dos cavaleiros:
Olá, olá, ouvi todos gentes do vale e das encostas o que aconteceu no domingo de
Pentecostes. Temos um rei necessitado mas virtuoso e prendado, roubaram-lhe mil cães do
castelo onde não havia vintém...
Para os ouvidos e para os olhos nascera uma imagem confusa, cada elemento brigava ao
desafio: folclore dos altifalantes contra folclore a cavalo; cores dos fatos e dos cavalos
contra o castanho e o cinzento dos fatos mal feitos dos espectadores; a espontaneidade
activa dos cavaleiros contra os activos esforços dos homens de braçadeira encarnada que
corriam entre os cavalos e o público tentando manter a bagunça nos limítes do razoável,
tarefa nada menos do que ingrata, não só por causa da indisciplina dos mirones (felizmente
poucos), mas sobretudo porque não tinham fechado a rua à circulação; em frente e atrás do
cortejo, os homens de braçadeira encarnada faziam aos automóveis sinais para abrandarem;
por entre os cavalos acumulavam-se carros de turismo, pesos-pesados e motos barulhentas
que enervavam os cavalos e desconcertavam os cavaleiros.
Para dizer a verdade, na minha obstinação em desprezar esta festa folclórica (esta ou
qualquer outra), temia uma coisa diferente daquela que via: esperava o mau gosto, a mistura
de arte popular autêntica e de sucedâneos, as discursatas inaugurais de oradores estúpidos,
sim, esperava o pior, a pompa para encher o olho, mas não estava à espera daquilo que,
desde o começo, marcava esta festa, uma triste e comovente pobreza que estava como que
colada a tudo: a este miserável conjunto
247

de stands provincianos, àquele público espalhado mas perfeitamente desordenado e


distraído, ao conflito entre a circulação automóvel e a festa anacrónica, a esses cavalos que
se precipitavam por um nada, a esse altifalante tonitruante cuja inércia mecânica não parava
de expelir os seus
dois versos que abafavam, com a ajuda das motocicletas, o esforço dos jovens cavaleiros
que gritavam as suas estrofes com as veias do pescoço inchadas.
Acabado o meu leite, deitei fora o copo, e a cavalgada, que tinha dado voltas suficientes à
praça, começava a sua peregrinação de várias horas pela aldeia. Sabia isso tudo há muito
tempo: no último ano da guerra eu tinha participado como escudeiro (vestido a rigor de
mulher e de sabre na mão) ao lado de Jaroslav, que era o rei. Não me queria deixar
emocionar pelas minhas recordações, no entanto (conici, se a pobreza do espectáculo me
tivesse desarmado) também não me queria forçar a voltar as costas a esse quadro; segui
longamente o grupo a cavalo que ocupava agora a calçada inteira; ao centro avançavam três
cavaleiros: o rei acolitado pelos seus dois escudeiros, vestidos de mulher e com
um sabre. Um pouco à parte os outros cavaleiros da escolta real trotavam à sua volta: os
chamados ministros. Os outros tinham-se dividido em duas filas e cavalgavam pelos dois
lados da rua; aqui também os papéis estavam distribuídos com exactidão: havia os porta-
bandeiras (a haste do estandarte estava fixada no cano da bota, de maneira que a franja do
tecido encarnado flutuava à altura do fianco do animal), havia os arau-
tos (que recitavam em cadência diante de cada casa um texto sobre o rei necessitado, mas
prendado, a quem tinham roubado mil cães do castelo onde não havia vintém) e, para
acabar, os do peditório (cujo papel era pedir: "Para o rei, tiazinha, para o rei!", e estendiam
um cesto de vime).
248

IV
Agradeço-te, Ludvik, só há oito dias que te conheço e amo-te como nunca amei ninguém,
amo-te e acredito em ti, não penso em nada e acredito, porque mesmo que a razão, o
sentimento e a alma me enganassem, o corpo é sem malícia, o corpo é mais honesto do que
a alma, e o meu corpo sabe que nunca viveu o que viveu ontem, luxúria, fervor, crueldade,
prazer, violências, o meu corpo nem em sonhos tinha jamais entrevisto nada de parecido, os
nossos corpos ligaram-se ontem num juramento e as nossas cabeças não podem senão
obedecer, só há oito dias te conheço e agradeço-te, Ludvik.
Agradeço-te também porque chegaste no último minuto, porque me salvaste. Estava uma
manhã linda, o céu azul, tudo cheio de azul dentro de mim, tudo estava a correr bem a essa
hora, fomos a casa dos pais gravar a Cavalgada que vem buscar o seu rei, e foi aí que ele
me abordou de imprevisto, fiquei tolhida de surpresa, não o esperava tão cedo vindo de
Bratislava, e ainda esperava menos tanta crueldade, imagina, Ludvik, que ele teve o
desplante de vir com ela!
E eu que imaginava como uma idiota que o meu casamento não estava ainda
definitivamente arruinado, que havia ainda maneira de lhe insuflar ar novo, eu, idiota, que
quase te sacrifiquei a essa união falhada, que quase te recusei este encontro, eu, idiota, que
não andei longe de me deixar enrolar mais uma vez pela sua voz melada quando ele me
disse que parava aqui para me vir buscar no regresso de Bratislava, que tinha montes de
coisas para me dizer com toda a sínceridade, e em vez disso ei-lo que aparece agarrado a
ela, a essa miúda, esse rato de vinte e dois anos, menos treze do que eu, que afronta perder
lá porque nasci mais cedo, é caso para gritar de impotência, só que nada podia fazer na
altura, tive de sorrir e estender-lhe bem
249

educaciamente a mão, ali Ludvik, obrigado por me teres dado força para isso.
Enquanto ela se afastava um pouco, ele disse que íamos poder discutir sinceramente os três,
seria mais honesto assim, honestidade, honestidade, eu conheço a honestidade dele, há dois
anos que anda à minha volta com o divórcio, ele sabe que das nossas conversas não sairá
nada, por isso o que ele esperava era que eu perdesse a pedalada diante dessa rapariga, que
eu recuasse diante do papel vergonhoso da esposa renitente, que eu me desfizesse,
soluçasse, capitulasse. Detesto-o, com os seus golpes baixos enquanto eu estou em
reportagem, quando preciso de estar sossegada, devia ao menos respeitar o meu trabalho,
um bocadinho que fosse, mas há anos e anos que é assim, com respostas tortas, com
desconsiderações e humilhações contínuas, mas desta vez endireitei-me, sentia-te atrás de
mim, a ti e ao teu amor, sentia-te ainda em cima de mim e dentro de mim, e esses belos
cavaleiros que gritavam e jubilavam como se dissessem que tu existes, que a vida existe,
que o futuro existe, e eu senti em mim a dignidade que quase tinha perdido, essa dignidade
inundou-me, consegui um belo riso e disse-lhe que com certeza não é preciso que lhes
inflija a minha presença até Praga, tenho o carro da rádio, e quanto às combinações que te
preocupam, isso resolve-se num instante, posso-te apresentar o homem com quem quero
viver, não haverá dificuldade nenhuma em nos pormos de acordo.
Talvez tenha feito uma loucura, se fiz, tanto pior, valeu certamente esse minuto de orgulho
delicioso, de repente a amabilidade dele multiplicou-se por cinco, estava visivelmente
satisfeito mas com medo que eu tivesse falado no ar, fez-me repetir, e no fim disse-lhe o teu
nome e o teu apelido, Ludvik Jalin, Ludvik Jalin, e no fim disse-lhe expressamente, não
tenhas medo, tens a minha palavra quanto ao nosso divórcio, não te ponho mais paus nas
rodas, não te preocupes, não te quero mais, mesmo que tu me quisesses. A isto respondeu
que ficaríamos corri
certeza bons amigos, eu sorri e respondi-lhe que não tinha dúvidas.
250

v
Quando eu ainda tocava clarinete, no tempo em que ainda fazia parte da orquestra,
matávamos a cabeça para tentar entender o significado da Cavalgada dos Reis. Quando o
rei Matias, vencido, fugiu da Boémia e
voltou à sua Hungria natal, teria sido obrigado a esconder-se dos seus perseguidores
checos, ele e a sua cavalaria, neste recanto da Morávia onde teriam sobrevivido a mendigar
o pão de cada dia. A tradição diria que a Cavalgada conservava a memória desse facto
histórico do século xv, mas uma rápida consulta aos documentos antigos revelou que este
costume vinha de muito antes da desventura do rei magiar. Qual será, pois, a sua origem e
que quererá ela significar? Será do tempo do paganismo, reminiscência das cerimônias que
davam aos adolescentes entrada na idade adulta? E por que razão estarão, o rei e os seus
escudeiros, vestidos de mulheres? Será eco de um subterfúgio graças ao qual um grupo de
homens armados (os de Matias ou outros, em época anterior) terão feito atravessar o seu
chefe, assim mascarado, o território inimigo? Ou antes sobrevivência da antiga crença pagã
acerca da virtude protectora da máscara contra os gênios malfazejos? E porque será o rei
obrigado ao silêncio de uma ponta a outra? E porque se chamará Cavalgada dos Reis se
há só um rei? O que quererá dizer tudo isto? Nada se sabe. Não faltam hipóteses mas
nenhuma está comprovada. A Cavalgada dos Reis é um
rito misterioso; ninguém lhe conhece o sentido ou a mensagem, mas, assim como os
hieroglifos do Egipto antigo parecem mais belos aos que os não sabem ler (e apenas os
vêem corno desenho@ fantásticos), pode ser que a Cavalgada dos Reis seja tão bela porque
o conteúdo da sua comunicação se perdeu há muito e dela sobressaem por isso mais os
gestos, as cores, as palavras, atraindo a atenção sobre eles próprios, o seu aspecto, a sua
forma.
251

Foi assim que a minha desconfiança inicial perante o início confuso deste cortejo tinha
caído, para espanto meu, e deixei-me arrastar de repente pela imagem deste bando a cavalo
que avançava lentamente de casa em casa; ainda por cima, os altifalantes que difundiam, há
momentos, a voz estridente de uma cantora, tinham-se calado e nada mais se ouvia (sem
contar com o ruído dos carros que há muito eu aprendera a subtrair das minhas impressões
auditivas) senão a estranha música dos apelos.
Apetecia-me ficar ali, fechar os olhos e ouvir simplesmente: no coração desta aldeia da
Morávia, eu tinha a consciência de ouvir versos, versos no sentido mais primitivo da
palavra, daqueles que nem a rádio, nem a televisão, nem o palco jamais me trariam, versos
como solene apelo rítmico na fronteira do falado e do contado, versos que cativavam quem
os ouvia pela única força da sua métrica, como decerto teriam cativado o auditório os
versos ditos nos anfiteatros antigos. Era uma música sublime e polifónica: cada um dos
personagens recitava num tom monocórdico, mas a uma altura diferente, de modo que as
vozes se associavam involuntariamente em acorde; além disso, os apelos dos arautos não
eram simultâneos, cada um lançava os seus versos num momento diferente, numa outra
casa, de tal modo que as vozes, desfiando-se por aqui e por ali, compunham um cânone a
muitas vozes; um terminava, outro estava no meio, nessa ia inserir-se uma terceira a uma
altura diferente.
A Cavalgada dos Reis seguiu durante muito tempo a rua principal (perturbada amiúde pelos
carros que passavam), depois, num cruzamento, repartiu-se: a ala direita continuou em
frente, a da esquerda virou para uma travessa, atraída por uma casinha amarela com uma
cerca baixa e um jardinzinho coberto de flores multicores. O arauto estava em onda de
improvisos jocosos: a casinha podia gabar-se da linda fonte e a dona da casa tinha um filho
que era um belo mastodonte; de facto havia uma
bomba de água em frente da entrada e a gorda quadragenária, decerto envaidecida pelo
título atribuído ao filho, ria enquanto dava uma nota ao cavaleiro (que pedia) e dizia: "Para
o rei, tiazinha, para o rei! " Mal a nota desaparecera no cesto pendurado no pau já um novo
arauto surgia a chamar à quadragenária jovem e ardente, mas que preferia ainda provar a
sua aguardente: de cabeça inclinada fingia beber de uma concha feita com as mãos. Todos
riam à volta e a quadragenária lá se foi toda contente: estava com certerza tudo preparado
porque reapareceu imediatamente com uma garrafa e um copo e deu de beber aos
cavaleiros.
Enquanto eles bebiam e se divertiam, um pouco à parte, o rei, en-
quadrado pelos seus escudeiros, mantinha-se hirto no cavalo, imóvel, grave, como pertence
talvez aos reis envolverem-se da sua gravidade, au-
252

sente e solitário no meio do tumulto dos seus exércitos. Os cavalos dos dois escudeiros
comprimiam de um lado e de outro a montada real, pelo que os três cavaleiros quase se
tocavam, bota contra bota (os animais tinham no peito um grande coração feito de pão doce
coberto de espelhinhos e envolto em açúcar colorido, na testa rosas de papel, as crinas
entrançadas com várias cores). Os três cavaleiros mudos estavam vestidos de mulher; saia
larga, mangas tufadas engomadas, uma coifa na ca-
beça ricamente ornamentada; só o rei usava, em vez da coifa, um diadema de prata
brilhante de onde pendiam três fitas compridas, a do meio vermelha e azuis as dos lados,
que lhe cobriam todo o rosto e lhe davam um ar estranho e patético.
Fiquei em êxtase perante esta trindade muda; vinte anos antes também eu me sentara sobre
um cavalo ornado, mas vendo então de dentro a Cavalgada dos Reis não tinha visto nada.
Só agora a vejo realmente e posso desviar o meu olhar: o rei está montado (a poucos metros
de mim) e parece uma estátua envolta numa bandeira, guardada à vista; e
quem sabe, talvez não seja um rei mas uma rainha; talvez seja a rainha Lúcia que veio
manifestar-se sob o seu aspecto verdadeiro, porque o seu
aspecto verdadeiro é exactamente o aspecto velado.
Nesse momento pensei que Kostka, que reunia nele a teimosia da reflexão e o delírio, era
um original e por isso tudo o que ele me contara era possível mas incerto; é claro que ele
conhecia Lúcia e sabia muitas coisas dela, mas o essencial ter-lhe-ia escapado: esse soldado
que queria possuí-Ia num quarto emprestado, em casa de um mineiro, Lúcia gostava mesmo
dele; como podia eu tomar a sério a história de uma Lúcia a apanhar flores por vaga
inclinação para a piedade, quando me lembrava que era para mim que as apanhava? E se
ela não tinha dito nada disto a Kostka, nem falara dos nossos ternos seis meses de amor, era
porque, mesmo para ele, ela reservara esse segredo inacessível, e, portanto, ele também não
a conhecia; e, então, não era certo que fosse por causa dele que ela escolhera viver nesta
cidade; talvez tivesse lá ido parar por acaso, mas era igualmente possível que tivesse sido
por minha causa visto que ela sabia que era a minha terra. Eu sentia que a violação original
de Lúcia era verdade, mas tinha dúvidas sobre as circunstâncias precisas: a história coloria-
se, aqui e ali, através do olhar ensanguentado de alguém a quem o pecado excitava, e
noutros momentos era tão, tão azul que só podia vir de um homem acostumado à
contemplação dos céus; era claro: na narração de Kostka a verdade unia-se à poesia e
tornava-se uma lenda mais (talvez mais bela ou mais profunda) a vir acrescentar-se à lenda
antiga.
253

Eu olhava o rei velado e vi Lúcia atravessar (irreconhecível e irreconhecida)


majestosamente (e ironicamente) a minha vida. Depois (por uma estranha pressão exterior),
o meu olhar desviou-se para o lado, e caiu em cheio no de um homem que devia estar a
olhar-me há algum tempo e que sorria. Ele disse " Olá! " e, infelizmente, avançou para
mim. "Olá", disse eu. Estendeu-me a mão; apertei-lha. "Então, o que estás a fazer? Vem cá
para eu te apresentar! " A rapariga (alta, elegante, cabelos e olhos castanhos) chegou ao pé
de mim e disse "Brozova". Estendeu a mão e eu respondi: "Muito gosto. Chamo-me Jahn."
Ele, jovial, exclamou: "Rapaz, há quantos anos não nos víamos!" Era Zernanek.
254

vi
Cansaço, cansaço. Não conseguia livrar-me dele. Agora que tinha o seu rei, a Cavalgada
partira em direcção à praça e eu limitava-me a arrastar-me atrás dela. Respirava fundo para
dominar o cansaço. Parava diante das casas dos vizinhos que punham o nariz de fora e
ficavam de boca aberta. Tive de repente a sensação de que tinha chegado a minha vez de
me arrumar. Que estavam acabadas as ideias de viagens e aventuras. Que estava
irremediavelmente fechado nas duas ou três ruas onde passava a minha vida.
Quando cheguei à praça, a Cavalgada já se afastava lentamente ao longo da rua principal.
Tinha querido arrastar-me atrás dela, mas de repente vi Ludvik. Estava de pé, na erva da
berma, com os olhos sonhadores postos nos rapazes a cavalo. Sacrísta do Ludvik. Que vá
para o diabo! Até agora era ele que me evitava, pois hoje sou eu que não o quero ver! Fiz
meia volta e dirigi-me a um banco debaixo de uma das macieiras da praça. Assim, bem
sentado, poderei ouvir o eco amortecido dos apelos dos cavaleiros.
E fiquei sentado no banco, a ouvir e a olhar. A Cavalgada dos Reis afastava-se pouco a
pouco, apertava-se com dificuldade nos rebordos da calçada, onde passavam
incessantemente carros e motos. Seguida por alguns basbaques. Por quatro carecas e um
pelado. Há cada vez menos gente para ver a Cavalgada dos Reis. Em contrapartida, há o
Ludvik. Que diabo veio cheirar ele aqui? Diabos te levem, Ludvik. Já é demasiado tarde.
Demasiado tarde para tudo. Chegaste como um mau augúrio. Um augúrio negro. E
justamente quando o rei é o meu VIadimir! Desviei os olhos. Na praça da aldeia já só havia
meia dúzia de retardatários, à volta dos stands, à entrada da tasca. Quase todos bêbedos. Os
bêbedos são os mais fiéis defensores dos programas folclóricos. Os seus
255
1

últimos defensores. De quando em vez dá-lhes um álibi privilegiado para beber uns copos.
Um velhote, o tio Pechacek, sentou-se ao meu lado. Parece que já não é como noutros
tempos. Concordei. Já não é como era. Como deviam ser belas as Cavalgadas, decênios ou
séculos atrás! Eram decerto menos sarapintadas do que hoje. Hoje em dia puxam para o
postal ilustrado, teatro de feira. Os corações de pão de ervas no peito dos cavalos! E as
toneladas de grinaldas de papel compradas nos grandes armazéns! Dantes os fatos não
tinham menos cor, mas eram mais simples. O único ornamento dos cavalos era um grande
lenço encarnado atado ao pescoço. E o rei não tinha essa máscara de fitas de cor, só um
simples véu. E ti.nha uma rosa entalada entre os dentes. Para não poder falar.
Pois é, tiozinho, era bem melhor noutros tempos. Ninguém tinha de andar atrás dos jovens
para que eles façam o favor de participar na Cavalgada. Não eram precisas todas estas
reuniões preliminares com discussões que nunca mais acabam para saber quem se
encarrega da organização, para quem revertem os lucros! A Cavalgada brotava da vida dos
campos como uma fonte. Galopava de aldeia em aldeia, a pedir para o seu rei mascarado.
Às vezes acontecia que encontrava outra, de outra região, e havia luta. Ambas defendiam
furiosamente o seu rei. Às vezes, no relâmpago das facas e dos sabres, o sangue corria.
Quando a Cavalgada capturava um rei estrangeiro, embebedava-se de morte, na estalagem,
à custa do pai desse rei.
Sem dúvida, tiozinho, tem razão. Ainda quando eu fui feito rei, sob a ocupação, não era
como é hoje. E mesmo ainda, depois da guerra, era sempre uma coisa que valia a pena. Nós
pensávamos que íamos criar um mundo novo. E que as pessoas voltariam a viver segundo
as antigas tradições. Que a própria Cavalgada brotaria da profundidade das suas vidas. Nós
queríamos encorajar esse brotar. Matávamo-nos a organizar festas populares. Mas uma
fonte não pode ser organizada. Ou bem que brota, ou não existe. Tiozinho, bem vê ao que
chegámos: as nossas cantiguinhas, as nossas cavalgadas e tudo o resto, é já o secar da
roupa. As últimas gotas, uns pingos, os últimos.
Uf. Desapareceu a Cavalgada. Deve ter voltado para uma rua trans-
versal. Mas continuava-se a ouvir o seu apelo. O seu apelo era esplêndido. Fechei os olhos
e por um momento imaginei que vivia num outro tempo. Num outro século. Muito antigo.
Depois abri os olhos e disse para comigo que ainda bem que o Viadimir era o rei. É o rei de
um reino quase morto mas esplêndido. De um reino a que me manterei fiel até que acabe.
256

Tinha saído do banco. Alguém me falou. Era o velho Koutecky. Há muito tempo que não o
via. Andava com dificuldade, apoiado numa bengala. Nunca gostei dele, mas a sua velhice
fez-me pena. "Então onde vai?", perguntei-lhe. Ele disse que o passeiozinho de domingo
era bom para a saúde. "Gostou da Cavalgada?" Fez um gesto desiludido: "Nem sequer
olhei. - Mas porquê?", perguntei-lhe. Novo gesto mais irritado; no mesmo instante,
adivinhei a razão: Ludvik estava entre os espectadores. Koutecky queria evitar encontrá-lo
ainda mais do que eu.
"Percebo o que quer dizer, disse-lhe eu. O meu filho vai na Cavalgada e mesmo assim não
me apeteceu segui-los. - O seu filho, ali?
O VIadimir? - Claro, disse eu, até é o rei! " Koutecky disse: "Essa agora, tem piada. - O que
é que tem piada?, respondi eu. - Tem mesmo muita piada!, disse Koutecky com os olhinhos
a brilhar. - Mas porquê?, insisti eu. - Porque VIadimir está com o nosso Milos", disse
Koutecky. Eu não conhecia Milos nenhum. Ele explicou-me que era o neto, o rapaz da sua
filha. "Mas isso não pode ser, protestei eu, então eu não o vi sair de nossa casa a cavalo! -
Eu também o vi. Saíram de nossa casa e ele ia na moto do Milos, asseverou o velho. - Isso
não tem pés nem cabeça!", disse eu, apressando-me a acrescentar: "E onde é que eles iam?
- Ora, se você não está ao corrente não sou eu quem lhe vai dizer! ", disse Koutecky e foi-se
embora.
257

Vil
Não contei com a possibilidade de encontrar Zemanek (a Helena tinha-me garantido que ele
só a viria buscar à tarde) e claro que me era extremamente desagradável encontrá-lo. Mas
não podia fazer nada. Estava ali, absolutamente igual a si próprio: os seus cabelos amarelos
continuavam a ser amarelos, se bem que já não penteados para trás em longas madeixas
onduladas. Usava-os curtos e caídos para a testa, como a moda exigia; continuava a espetar
o peito, de nuca sempre entesada para trás; sempre jovial e satisfeito, invulnerável,
alimentado pelo favor dos anjos e de uma rapariga cuja beleza me trouxe logo à memória a
dolorosa imperfeição do corpo com que ontem passei a tarde.
Na esperança de acabar rapidamente com a conversa, esforcei-me por responder o mais
banalmente possível às banalidades que ele me dirigia: repetiu que não nos víamos há
séculos, exprimindo a sua surpresa de me encontrar precisamente aqui, "neste buraco
perdido, do diabo"; eu disse-lhe que era onde eu tinha nascido; ele desculpou-se e concedeu
que, nesse caso, o lugar evidentemente não era do diabo; a menina Brozova pôs-se a rir. Eu
não reagi à piada, notei simplesmente que não me espantava de o encontrar aqui porque, se
bem me lembrava, ele sempre tinha gostado de folclore; a menina Brozova tornou a rir e
declarou que não tinham vindo para a Cavalgada dos Reis; perguntei-lhe se não gostava da
Cavalgada; ela disse que não a divertia; eu perguntei-lhe porquê; ela encolheu os ombros e
Zemanek disse-me: "Meu caro Ludvik, os tempos mudaram."
Entretanto, a Cavalgada tinha avançado uma casa, e dois cavaleiros lutavam com os cavalos
que se começavam a agitar. Gritavam um com o outro e acusavam-se de conduzir mal o
cavalo e os insultos "estúpido!" e "idiota!" misturavam-se comicamente ao ritual da festa. A
menina Brozova suspirou: "Era óptimo se eles desarvorassem!" Zemanek riu, mas
258

os cavaleiros depressa conseguiram acalmar os cavalos e o olá, olá voltou a ressoar


solenemente através da aldeia.
Seguindo passo a passo este agrupamento sonoro ao longo dos pequenos jardins cheios de
flores, eu procurava em vão um qualquer pretexto natural para me despedir de Zemanek;
vi-me obrigado a continuar docilmente ao lado da sua bela companheira e a trocar frases:
soube que em Bratislava, onde estavam ainda de manhã cedo, o tempo estava bom como
aqui; que tinham vindo no carro de Zemanck e tinham tido que mudar as velas logo que
saíram de Bratislava; e também que ela era aluna dele. Helena tinha-me dito que ele dava
cursos de marxismo-leninisno na Universidade, mesmo assim perguntei-lhe o que ensinava.
Ele respondeu filosofia (esta denominação da sua cadeira pareceu-me significativa; há
quatro ou cinco anos ainda teria dito marxismo, mas desde aí era tal a desgraça em que
tinha caído essa disciplina, sobretudo entre os jovens, que Zemanek, para quem o ser
admirado era sempre a preocupação principal, escondeu pudicamente o marxismo, num
termo mais geral). Fingi surpresa e disse que me lembrava muito bem de que Zemanek
tinha estudado biologia; a minha observação escondia uma alusão irónica ao frequente
amadorismo dos professores de marxismo que eram promovidos a especialistas não graças
aos seus conhecimentos científicos mas graças às suas qualidades de propagandistas. A
menina Brozova interveio en-
tão para declarar que os professores de marxismo tinham no crânio um panfleto político à
laia de cérebro, mas que o Pavel era um caso muito diferente. Para Zemanek, estas palavras
eram pão abençoado; protestava timidamente, assim mostrando a sua modéstia e
provocando a jovem a outros elogios. Soube assim que o seu amigo era um dos professores
mais populares entre os estudantes pelas mesmas razões que o
prejudicavam junto da direcção: dizia sempre o que pensava, era teso e terçava armas pela
juventude. Zemanek continuava a protestar com moleza e a sua companheira enumerava-
me os diversos conflitos que ele tivera de enfrentar nestes últimos anos: quiseram mesmo
correr com ele do lugar porque, ultrapassando os programas anacrónicos, ele entendia dever
pôr os jovens ao corrente do que mexia na filosofia moderna (acusavam-no de importar em
contrabando a "ideologia do inimigo"): teria salvo um rapaz que queriam expulsar da
faculdade por causa de uma criancice (discussão com um polícia) que o reitor (hostil a
Zemanek) apresentava como um delito político; depois desta história os estudantes tinham
organizado um voto secreto sobre o professor mais popular, e era ele quem tinha ganho.
Zemanck deixou de protestar contra o dilúvio de elogios e
eu disse à menina Brozova (com uma ironia subentendida mas infelizmente
259

quase imperceptível) como a compreendia, visto que me lembrava que no tempo dos meus
próprios estudos, o seu professor de agora era dos mais considerados. Então ela sublinhou
com ênfase: não era espanto para ninguém, o Pavel não tinha igual no seu dom da palavra,
e numa discussão não havia como ele para deitar por terra o adversário! "Sim, é verdade",
admitiu Zemanek a rir, "mas se eu os deito por terra numa discussão, eles podem fazer-me
o mesmo por meios muito mais eficazes! "
Na vaidade do que dizia, eu reencontrava o Zemanek tal como o tinha conhecido; mas o
conteúdo dessas palavras apavorava-me; Zemanek parecia ter abandonado radicalmente a
sua atitude de outrora, e se
agora eu vivesse no seu meio, estaria, quer quisesse quer não, do seu lado. E isso era
horrível, para isso eu não estava preparado, embora uma tal mudança de atitude não tivesse
em si nada de extraordinário, pelo contrário, ela era experimentada por muitos, a sociedade
inteira vivia-a progressivamente. Mas justamente em Zemanek não a esperava, na minha
memória ele tinha ficado petrificado sob a forma em que o tinha visto pela última vez, e
negava-lhe agora furiosamente o direito de ser diferente do que eu tinha conhecido.
Há pessoas que proclamam o seu amor pela humanidade e outras
objectam-lhe, com razão, que só se pode amar as pessoas no singular; estou de acordo e
acrescento que o que vale para o amor vale para o ódio. O homem, essa criatura que aspira
ao equilíbrio, compensa o peso do mal que lhe deitaram para cima das costas com o peso do
seu ódio. Mas experimentem concentrar o ódio na pura abstracção dos princípios, a
injustiça, o fanatismo, a barbárie, ou então, se chegarem ao ponto de' pensar que o próprio
princípio do homem é detestável, tentem odiar a humanidade! Odios assim são demasiado
sobre-humanos e é por isso que o homem, se quer descarregar a sua cólera (de que conhece
as limitadas forças), acaba por a concentrar num único indíviduo.
Daí a minha consternação. A partir de agora, em cada momento, Zemanek poderá reclamar-
se de uma metamorfose (a qual, aliás, tinha aca-
bado de me demonstrar com uma celeridade suspeita) e pedir o meu perdão. E era isso que
me parecia horrível. Que lhe diria eu? Que lhe responderia eu? Como explicar-lhe que não
me posso reconciliar com ele? Como explicar-lhe que, se o fizesse, destruiria com isso o
meu equilíbrio interior? Como explicar-lhe que uma das extremidades do braço da minha
balança interior iria bruscamente ao ar? Como explicar-lhe que o
meu ódio para com ele contrabalança o peso do mal que desabou sobre a minha juventude?
Como explicar-lhe que ele encarna esse mal? Como explicar-lhe que preciso de o odiar?
260

VIII
Os corpos dos cavalos enchiam toda a travessa. Vi o rei, a alguns passos de mim. Estava em
cima do cavalo, afastado dos outros. Ao seu lado, dois outros cavalos, dois outros rapazes:
os seus escudeiros. Eu estava desconcertado. Ele arqueava um pouco as costas, ao jeito de
Viadimir. Estava imóvel, quase apático. Será ele? Talvez. Mas também podia
ser outro.
Esgueirei-me para mais perto. Impossível não o reconhecer. Enfim, o seu porte, o menor
dos seus gestos habituais, tudo isso eu conheço de cor. Amo-o, e o amor tem o seu instinto!
Escapei-me até ele. Podia chamá-lo. Nada seria mais simples. Mas seria inútil. O rei não
deve falar.
A Cavalgada avançou uma casa. Ah, agora vou reconhecê-lo! O passo do cavalo vai obrigá-
lo a fazer um movimento que o trairá. O animal levantou o joelho, o rei endireitou-se, mas
esse gesto não o traiu. As fitas diante da sua cara permaneciam desesperadamente opacas.
261

IX
A Cavalgada avançou mais algumas casas, o punhado de curiosos (nós entre eles) fez o
mesmo e a nossa conversa abordou novos assuntos: a menina Brozova passou de Zemanek
à sua própria pessoa explicando o
seu gosto pela boleia. Falava disso com uma tal insistência (um pouco afectada) que
imediatamente percebi que estava a ouvir o manifesto da sua geração. Repugnava-me
sempre a submissão a uma mentalidade de geração (esse orgulho do rebanho). Quando a
menina Brozova desenvolveu o raciocínio dá o ouvi pelo menos cinquenta vezes) que a
espécie humana se divide entre aqueles que dão boleia (as pessoas humanas que gostam da
aventura) e os que não dão (as pessoas desumanas que têm medo da vida), chamei-lhe, a
brincar, "dogmática da boleia". Ela res-
pondeu-me secamente que não era nem dogmática, nem revisionista, nem sectária, nem
desviacionista, que tudo isso eram palavras nossas, que as tínhamos inventado, que nos
pertenciam e lhes eram, a eles, estranhas.
"Sim, disse Zemanek, eles são diferentes. Felizmente são diferentes! E felizmente o seu
vocabulário também. Os nossos sucessos não lhes interessam, os nossos erros também não.
Talvez não acredites, mas, nos exames de admissão à faculdade, estes jovens já não sabem
o que foram os processos de Moscovo, Estaline não é mais do que um nome para eles.
Imagina que a maior parte deles nem sabe que há dez anos aconteceram os processos
políticos em Praga.
- É exactamente isso que me parece abominável, disse eu.
- A verdade é que isso não prova a sua instrução. Mas para eles há nisso uma libertação,
Fecharam-se ao nosso mundo. Recusaram-no em bloco.
- Uma cegueira substitui outra.
262

- Não diria isso. Admiro-os exactamente porque são diferentes de nós. Eles gostam do seu
corpo. Nós tínhamo-nos esquecido do nosso. Eles gostam das viagens. Nós fechávamo-nos
na nossa carapaça. Eles gostam das aventuras. Nós perdemos o nosso tempo em reuniões.
Eles gostam de jazz. Nós, sem sucesso, copiámos o folclore. Eles tratam de si próprios. Nós
queríamos salvar o inundo. E por um pouco, com o nosso messianismo, não o destruímos.
Talvez eles, com o seu egoísmo, o venham a salvar."
263

X
Como é que pode ser? O rei! Figura a cavalo, disfarçada, velada por cores. Quantas vezes o
vi, o imaginei! Imagem íntima entre todas! E agora, transformada em realidade, toda a sua
intimidade desapareceu. Subitamente, não passa de uma larva pintalgada que esconde não
sei o quê. Mas o que pode haver de íntimo neste mundo real senão o meu rei?
O meu filho. O ser mais próximo. Em pé diante dele ignoro se, sim ou não, é ele. Então o
que sei eu, se nem isso sei? De que tenho a certeza
neste mundo, se nem essa certeza tenho?
264

XI
Enquanto Zemanek se abandonava ao elogio da geração ascendente, eu contemplava a
menina Brozova e constatava com tristeza que era bonita e simpática; sentia despeito por
não ser minha. Ia ao lado de Zemanek, de três em três segundos dava-lhe o braço, virava-se
para ele, e eu realizava (como me acontece cada vez mais à medida que os anos passam)
que não tive, depois da era de Lúcia, nenhuma rapariga que amasse e respeitasse. A vida
fazia troça de mim mandando-me a confirmação do meu logro, precisamente sob a forma
da amante deste homem que eu pensara vencer ontem numa grotesca luta sexual.
Quanto mais a menina Brozova me agradava, mais eu registava que ela pertencia
totalmente aos seus contemporâneos, para quem eu e os
da minha geração se confundem na mesma massa indistinta, marcados pelo mesmo calão
ininteligível, pelo mesmo pensamento sobrepolitizado, as mesmas angústias, as mesmas
bizarras experiências de uma época ne~
gra e ultrapassada.
Nesse momento, comecei a compreender: a semelhança entre mim e Zemanek não se
limitava ao facto de ele se ter aproximado de mim quando mudou de opiniões; essa
semelhança era mais profunda e englobava os nossos destinos inteiros. o olhar da menina
Brozova e dos seus contemporâneos tornava-nos idênticos mesmo onde nós nos
confrontávamos ferozmente. Senti de repente que, se fosse obrigado a relatar diante dela a
minha exclusão do Partido, o acontecimento lhe pareceria longínquo e demasiado literário
(sim, coisa tantas vezes descrita em tantos romances maus) e ser-lhe-íamos os dois
igualmente antipáticos nessa história, as minhas ideias e as dele, a minha atitude e a dele
(ambas igualmente torcidas e monstruosas). Por cima da nossa querela, que me continuava
a parecer tão viva e presente, via fecharem-se as águas consoladoras do
265

tempo que, como todos sabem, apaga as diferenças entre épocas inteiras, e portanto quanto
mais facilmente entre dois pobres indivíduos. Mas defendi-me furiosamente contra toda a
oferta de reconciliação que o
tempo me propunha; apesar de tudo, não vivo na eternidade, estou ancorado nos meus trinta
e sete anos e não quero serrar a corrente (como Zernanek, que se conformou tão depressa
aos mais novos), não, quero ficar no meu destino e na minha idade, mesmo se os meus
trinta e sete anos não representam mais do que um fragmento do tempo, ínfimo e
fugaz, que vamos esquecer, de que já nos esquecemos.
E se o Zemanek se inclinar familiarmente para mim, começar a falar do passado e quiser
fazer as pazes, eu recusarei; sim, recusarei essas pazes, mesmo que por elas intercedam a
menina Brozova e todos os seus
contemporâneos e o próprio tempo.
266
X11
Cansaço. De repente, tive a tentação de mandar tudo passear. De me
ir embora e largar as minhas preocupações. Não quero ficar mais neste mundo de coisas
materiais que não compreendo e que me enganam. Existe outro mundo. O mundo onde me
sinto em casa, onde me encontro. Há lá um caminho, um desertor, um tocador vagabundo, a
minha mãe.
Acabei por me sacudir, apesar de tudo. Tem de ser. Tenho de levar até ao fim a minha luta
com o mundo das coisas materiais. Tenho de ver até ao fundo de todos os erros e enganos.
Deverei perguntar a alguém? Aos miúdos da Cavalgada? E se todos gozarem comigo?
Pensei outra vez nesta manhã. O vestir do rei. E de repente, soube onde ir.
267

xiii
Temos um rei necessitado, mas que é prendado, clamavam os cava-
leiros três ou quatro casas mais adiante, e nós íamos atrás deles, com as garupas enfeitadas
dos cavalos, azuis, cor-de-rosa, verdes ou lilases, quando de repente Zernanek, apontando
na sua direcção, disse: "Olha, vem aí a Helena." Olhei para onde ele indicava, mas
continuava a só ver os corpos coloridos dos cavalos. Zemanek apontou outra vez: "Ali! "
Avistei-a de facto, meio escondida por um cavalo, e senti-me corar: a maneira como
Zemanek ma tinha mostrado (ele não dissera a "minha mulher", mas "Helena") provava que
ele sabia que eu a conhecia.
De pé, à beira do passeio, Helena brandia um microfone; um fio ligado ao gravador
pendurado ao ombro de um rapaz de blusão de couro
e dejeans, com os auscultadores nos ouvidos. Parámos perto deles. Zemanck disse (de
repente, como se nada fosse) que Helena era uma mulher admirável, não só porque
continuava a ter uma bela figura mas porque era muito competente, e que não se admirava
nada que eu me desse bem com ela.
Sentia a cara corada: não havia agressividade nesta observação, pelo contrário, Zemanek
tinha-a pronunciado num tom simpático e a menina Brozova olhava-me com um sorriso
eloquente, como se se esforçasse por me fazer compreender que estava dentro do assunto e
que eu tinha a sua
simpatia, melhor ainda, a sua cumplicidade.
Zernanek, descontraído, continuava a falar da sua mulher, esforçando-se por mostrar (por
alusões e meias palavras) que sabia tudo, mas não tinha nada a dizer, dada a maneira liberal
como encarava a vida privada de Helena; para emprestar às suas palavras uma ligeireza
despreocupada, apontou o jovem que carregava o gravador dizendo que o rapaz (com uns
auscultadores que o faziam parecer um grande insecto, dizia ele) es-
268

tava loucamente apaixonado por Helena desde há dois anos e que eu tivesse cuidado. A
inenina Brozova pôs-se a rir e perguntou que idade teria ele há dois anos. Dezassete anos,
disse Zernanek, os suficientes para se
poder ficar apaixonado. Depois acrescentou a brincar que Helena não se
interessava por garotos, que era uma mulher virtuosa, mas que um rapaz assim, quanto
menos consegue os seus intentos mais se enraivece e tem decerto um soco rápido. A
menina Brozova (como quem comenta uma
coisa sem importância) acrescentou que eu era capaz de chegar para ele.
"Não tenho nada a certeza, brincou Zernanek.
- Não esqueças que trabalhei nas minas. Isso deu-me músculo, respondi no mesmo tom
ligeiro, sem reparar que esta observação destoava daquela conversa fútil.
- Ah, você trabalhou nas minas?, perguntou a menina Brozova.
- Estes rapazitos de vinte anos, prosseguiu Zemanek, teimosamente agarrado ao seu tema,
quando andam em grupo, é preciso desconfiar deles. Tratam da saúde a um tipo que não
lhes agrade.
- Muito tempo?, insistiu a menina Brozova.
- Cinco anos, respondi eu.
- E quando foi isso?
- Ainda lá estava há nove anos.
- Então é história antiga. Os seus músculos já se devem ter atrofiado entretanto ... ",
acrescentando a sua gracinha ao bom humor geral. Mas eu, na altura, pensava mesmo nos
meus músculos: pensava que não estavam nada atrofiados, que continuava em excelente
forma e que podia bater, por todos os meios possíveis, o louro com quem conversava
- mas que (e era o mais importante e o mais triste em tudo isto) eu nada mais tinha que os
músculos para saldar a minha velha dívida.
Imaginei uma vez mais que Zemanek se voltava para mim a sorrir e que me pedia para
esquecer tudo o que se tinha passado entre nós e
senti-me apanhado: o seu pedido de perdão apoiava-se não só na sua mu-
dança de opiniões, não só no tempo, não só na menina Brozova e nos
da sua idade, mas também em Helena (sim, todos estavam por detrás dele e contra mim!),
porque, ao perdoar-me o seu adultério, Zemanek tinha-me comprado o seu próprio perdão.
Quando vi (na minha imaginação) a sua cara de chantagista seguro dos seus poderosos
aliados, senti-me inflamado de um tal desejo de lhe bater que cheguei a ver-me mesmo a
atacá-lo. Os cavaleiros vociferavam à nossa volta, a menina Brozova contava já não sei
quê, o sol estava esplendidamente dourado e eu via, diante dos meus olhos esgazeados, o
sangue a escorrer-lhe pela cara.
269

Sim, era na minha imaginação; mas que faria eu na verdade quando ele me pedisse perdão?
Com horror, percebi que não faria nada. Chegámos ao pé de Helena e do seu técnico, que
tinha acabado de tirar os auscultadores. "Vocês já se conheceram, disse Helena
surprecendida ao ver-me com Zemanek.
- Conhecemo-nos há muito tempo, disse ele.
- Como?" Ela estava espantada. "Desde os nossos anos de estudantes: estivemos juntos na
faculdade! ", explicou Zemanek, e tive então a impressão de que acabara de franquear uma
das últimas pontes por onde ele me conduzia ao lugar da infância (semelhante ao
cadafalso), onde ia pedir-me perdão.
"Meu Deus, há acasos assim.... disse Helena.
- São coisas que acontecem, disse o técnico, com medo de que se esquecessem de que ele
existia.
- É verdade, eu não vos apresentei a vocês dois, reparou ela antes de me dizer: "É o Jindra."
Estendi a mão a Jindra, e Zemanek disse a Helena: "Então, a menina Brozova e eu
tínhamos pensado levar-te, mas
agora vejo que não te convém, preferes voltar com Ludvik ... "
"Você vem connosco?", perguntou o rapaz de jeans em tom nada amigável.
"Vieste de carro?, perguntou-me Zemanek.
- Não tenho carro, respondi-lhe,
- Então vais com eles, disse ele.
- Mas eu ando a 130! Se tem medo.... avisou o rapaz de jeans.
- Jindra!, repreendeu Helena.
- Podias vir connosco, disse Zernanek, mas eu creio que preferirás a nova amiga ao amigo
antigo. " Como quem não quer a coisa, ele tinha-me chamado amigo e eu tinha a certeza de
que a reconciliação humilhente estava apenas a dois passos: Zernanek, de resto, tinha-se
calado um instante, como se hesitasse, como se quisesse logo ali chamar-me à parte e falar-
me a sós (eu curvara a cabeça como que oferecendo a minha nuca ao machado), mas
enganava-me: ele deu uma olhadela ao relógio e disse: "Na verdade, já não temos muito
tempo se queremos chegar a Praga antes das cinco horas. Vá. Temos de nos despedir! Ciao,
Helena!" Agarrou a mão de Helena, depois ainda disse "Ciao" a mim e ao técnico e deu-nos
um aperto de mão. A menina Brozova também apertou a mão a toda a gente, e lá se foram
de braço dado.
Eles iam-se embora. Não conseguia largá-los de vista: Zemanek andava muito direito. com
a cabeça loura orgulhosamente erguida (vito-
270

riosamente), e a rapariga morena a seu lado. Mesmo de costas era bonita, tinha um andar
ligeiro, agradável; agradava-me quase dolorosamente, porque a sua beleza, que se afastava,
fazia-me sentir a sua indiferença glacial, a mesma que me manifestava todo o meu passado
de que queria vingar-me, mas que acabara de se cruzar comigo aqui, sem me olhar, como se
não me conhecesse.
Eu sentia-me abafar de humilhação e vergonha. Só queria desaparecer, ficar só, apagar toda
esta aventura, esta graça de mau gosto, apagar Helena e Zernanek, apagar anteontem,
ontem e hoje, apagar tudo isso, apagar até ao mais pequeno traço. "Não se importa que eu
diga duas palavras em particular à camarada jornalista?", perguntei ao técnico. Afastei-me
com Helena; ela quis explicar-me murmurando qualquer coisa sobre Zemanck e a sua
amiga, desculpava-se confusamente de ter tido de lhe dizer tudo; mas nada mais me
interessava já; um único desejo me
conduzia: ver~me longe daqui, longe daqui e desta história; passar um risco sobre tudo isto.
Sentia que não tinha o direito de enganar Helena mais tempo; ela estava inocente em
relação a mim e eu tinha agido mal ao convertê-la numa simples coisa, numa pedra, que eu
quisera (mas não soubera) lançar sobre outrem. Eu sufocava com o falhanço irrisório da
minha vingança e estava decidido a arrurná-lo, ao menos agora, é certo que demasiado
tarde, mas ao menos antes que fosse pior do que tarde de mais. Mas eu não podia explicar-
lhe nada: não só porque a verdade a teria ferido, mas porque a não teria compreendido. Não
me restava, pois, outra coisa do que repetir-lhe várias vezes: estivéramos juntos pela última
vez, eu não ia voltar a vê-Ia, eu não a amava e era preciso que ela o compreendesse.
Foi muito pior do que eu imaginava: Helena pôs-se lívida e começou a tremer; recusava-se
a acreditar-me, a largar-me; vivi um momento de suplício antes de conseguir libertar-me e
desaparecer.
271

XIV
Por toda a parte cavalos e fitas e eu ficara ali no meio e lá permaneci muito tempo, depois
Jindra aproximou-se de mim, pegou-me na mão, perguntou-me o que tinha e eu deixei a
minha mão na dele e disse-lhe, nada, Jindra, não tenho nada, o que é que hei-de ter, e tinha
uma voz
que não era a minha, uma voz aguda, e eu encadeei com precipitação, o que ainda temos de
gravar, os apelos dos arautos, já temos duas entrevistas, ainda falta gravar uns depoimentos,
e eu continuava assim a atirar coisas cá para fora em que não conseguia pensar, e ele de pé
a meu
lado, calado e a apertar-me os dedos.
Ele nunca me tocara até então, nunca me tocara, era demasiado tímido, mas é claro toda a
gente sabia que ele andava louco por mim, e ei-lo a apertar-me a mão enquanto eu
balbuciava sobre o programa que estávamos a fazer, mas só pensava em Ludvik, e depois,
que graça, que figura faço eu perante Jindra, assim desfeita, devo estar feia, mas
talvez não, espero que não, não choraminguei, só me enervei. nada mais...
Olha, Jindra, deixa-me agora um bocadinho, vou escrever o texto e
gravamo-lo logo a seguir, ele agarrou-me na mão alguns minutos ainda, perguntou-me com
ternura, Helena, o que é que tem, o que é que se passa,
mas eu fugi-lhe, corri para o Comité Nacional onde tínhamos um espaço à nossa
disposição, consegui chegar lá, estava enfim só no vazio daquela sala, atirada para uma
cadeira, de testa na mesa, e fiquei assim uns mo-
mentos. Tinha uma horrível dor de cabeça. Abri a carteira para tirar um comprimido, mas
para que fui abri-Ia, sabia muito bem que não tinha trazido comprimidos, depois lembrei-
me de que Jindra traz sempre uma farmácia com ele, a gabardina dele estava pendurada
num cabide, procurei nos bolsos, consegui encontrar um tubo, que dizia para as dores
272

de cabeça, dores de dentes, ciática, nevralgias, para os sofrimentos da alma não há remédio,
mas ao menos alivia-me a cabeça.
Fui à torneira, num canto da sala ao lado, deitei água num copo de mostarda e engoli dois
comprimidos. Dois, deve chegar, vão fazer efeito, mas quanto ao mal da alma, aí nada a
fazer, a não ser que engula todos os comprimidos deste tubo de Algena porque, em doses
massivas é tóxico e o tubo de Jindra está quase cheio, talvez chegasse.
A ideia aflorou-se muito ligeiramente, só por um segundo, mas a ideia começou a voltar e
fez-me pensar porque é que eu vivia, para que perseverava, mas no fundo não era bem
assim, eu não pensava nada disso, eu não pensava em nada, naquele momento só imaginava
que não viveria e sabia-me bem, tão bem que tive vontade de rir e talvez tenha começado a
rir
Pousei mais dois comprimidos na língua, não estava nada decidida a envenenar-me, apenas
apertava o tubo na mão pensando tenho a minha morte na mão e sentia-me transportada de
tanta felicidade, como se, pé ante pé, me aproximasse de um abismo sem fundo, não para
me atirar, mas só para olhar lá para dentro. Fui beber mais água do copo, engoli os
comprimidos e voltei para a nossa sala, a janela estava aberta, ao longe ouvia-se
constantemente olá, olá, com a barulheira dos carros, das camionetas sujas, as motos sujas,
as motos que trilham tudo o que é bonito, tudo aquilo em que acreditei e para que vivi,
aquela barulheira era insuportável, e insuportável era até essa fraqueza impotente das vozes
a chamarem, por isso fechei a janela e senti de novo essa dor longa e teimosa na alma.
Em toda a vida, nunca Pavel me fez sofrer tanto como tu, Ludvik, num só minuto, perdoo a
Pavel, compreendo-o tal como é, a sua chama gasta-se depressa, precisa sempre de novo
alimento, de espectadores e um público novo, feriu-me muitas vezes, mas agora, através da
minha dor, é sem zanga, maternalmente, que o vejo, esse mata-mouros, esse cabotino,
sorrio do seu esforço de todos estes anos para se escapar dos meus braços, ah! vai lá, Pavel,
vai lá, eu compreendo-te, mas a ti, Ludvik, não compreendo, vieste disfarçado, vieste
ressuscitar-me para depois, ressuscitada, me destruíres, tu, e só tu, quero-te maldito e quero
que voltes, que voltes e tenhas piedade.
Meu Deus, talvez seja só um terrível mal-entendido, pode ser que Pavel te tenha dito
qualquer coisa quando vocês estavam só os dois, sei lá, eu
perguntei-te, insisti para que me explicasses porque já não me amavas, eu não queria largar-
te, agarrei-te quatro vezes, mas tu não querias ouvir nada, só repetias, acab'ou-se, acabou-
se, para sempre, sem apelo, pois
273
-,/ N

.@N ,oi
bem, acabou-se, concordei no fim e tinha uma voz de soprano como se fosse outra a falar,
uma rapariguinha antes da puberdade, disse-te com essa voz aguda então, faz boa viagem,
tem graça, sei lá por que razão te desejei boa viagem, mas voltava sempre a dizer, desejo-te
boa viagem, então boa viagem... @
Com certeza não sabes como te amo, sem dúvida não sabes como te amo, deves imaginar
que sou daquelas que procuram uma aventura e nem imaginas que és o meu destino, a
minha vida, tudo... Talvez me
encontres aqui, debaixo de um lençol branco, e saberás então que ma-
taste o que tinhas de mais precioso na vida... ou talvez tu chegues, queira Deus, quando eu
ainda estiver viva e possas salvar-me e hás-de ajoelhar ao pé de mim e desfazer-te em
lágrimas, e eu hei-de acariciar-te as mãos, os cabelos, e perdoar-te, perdoar-te tudo...
274

XV
Não havía mesmo outra saída, era preciso varrer esta história lastimável, esta graça de mau
gosto que não se bastava a si própria e se ia multiplicando em mais e mais brincadeiras de
igual mau gosto, eu queria anular todo este dia acontecido por inadvertência, pela exclusiva
razão de eu ter acordado tarde e de ter perdido o comboio, mas queria tambem anular tudo
o que conduzira a este dia, toda a minha estúpida conquista erótica que, também ela,
assentava num erro.
Apressei-me como se ouvisse atrás de mim os passos de Helena a perseguírem-me e pensei:
mesmo que eu pudesse apagar da minha vida estes poucos dias inúteis, de que me serviria
isso, visto que toda a história da minha vida foi concebida no erro, com a brincadeira
daquele postal? Senti com horror que as coisas concebidas por erro são tão reais como as
coisas concebidas por razão e necessidade.
Como gostaria de revogar toda a história da minha vida! Mas com que direito iria eu
revogá-la, se os erros de que foi feita não foram meus? Na realidade, quem se enganou
quando a brincadeira do postal foi tomada a sério? Quem se enganou quando o pai de
Alexej (hoje reabilitado, mas nem por isso menos morto) foi metido na prisão? Tais erros
eram tão correntes e comuns que não representavam excepções ou "faltas" na ordem das
coisas, mas constituíam, pelo contrário, essa mesma ordem. Quem foi então que se
enganou? A própria História? A divina, a racional? Mas porque havemos de imputar-lhe
erros? É só para o meu
entendimento de homem que as coisas têm essa aparência, mas se a História tem a sua
própria razão, porque há-de essa razão preocupar-se com a compreensão dos homens e
mostrar-se séria como uma professora primária? E se a História brincasse? Nesse momento
percebi que me era impossível anular a minha própria brincadeira, quando eu próprio e a
275

minha vida toda nos encontramos incluídos numa brincadeira muito mais vasta (que me
ultrapassa) e totalmente irrevogável.
Apoiado contra uma das paredes da praça (de novo silenciosa visto que a Cavalgada dos
Reis contõrnava o outro lado da aldeia), um grande painel anunciava em letras vermelhas
que hoje, às quatro da tarde, a or-
questra com címbalo tocava no jardim do café-restaurante. Ao lado do painel era a porta
desse restaurante; como tinha duas horas até à partida do autocarro e eram horas de comer,
entrei.

XVI
Era maravilhoso, esse desejo de me aproximar um pouco mais do abismo, queria inclinar-
me sobre o gradeamento para espreitar, como se
olhar para lá me fosse consolar ou apaziguar, como se lá dentro, no fundo do abismo, visto
que noutro lado isso não fora possivel, nós fôssemos encontrar-nos, juntar-nos, sem mal-
entendidos, ao abrigo da maldade humana, do envelhecimento, dos desgostos, e para
sempre... Voltei para o quarto ao lado, ainda só tinha cá dentro quatro comprimidos, o
mesmo
que nada, estava ainda muito longe do abismo, nem sequer perto do gradeamento. Despejei
o resto dos comprimidos na minha mão. Nesse momento ouvi abrir a porta do corredor, tive
um sobressalto, meti os comprimidos na boca e apressei-me a engoli-los de uma vez só,
havia demasiados ao mesmo tempo, por mais que bebesse grandes golos ardia-me a
garganta dilatada.
Era Jindra, perguntou como ia o meu trabalho, e de repente fiquei diferente, sem uma ponta
de perturbação, tinha desaparecido a estranha voz de soprano, sentia-me consciente e
resoluta. Jindra, ainda bem que apareceste, queria pedir-te uma coisa. Ele corou, disse que
faria sempre o que fosse preciso por mim e que estava contente por me ver recuperada.
Sim, já estou bem, espera só um minuto, vou escrever uma coisa sentei-me e peguei numa
folha e na caneta. Meu Ludvik adorado, amei-te com toda a minha alma e todo o meu
corpo, o meu corpo e a minha alma não têm mais razão para viver. Digo-te adeus, amo-te,
Helena. Nem reli o que escrevi, Jindra estava sentado à minha frente, olhava-me, não sabia
o que eu estava a escrever, dobrei o papel, quis metê-lo num sobrescrito, mas não consegui
encontrar um, Jindra, não tens um sobrescrito, se faz favor?
Tranquilamente, Jindra foi a um armário perto da mesa, abriu-o e
pôs-se a remexer, noutra altura eu teria dito que não é costume mexer
277
nas coisas das outras pessoas, mas agora era preciso depressa, depressa esse sobrescrito, ele
trouxe-me um com o cabeçalho do Comité Nacional dali, meti lá dentro a carta, fechei-o e
escrevi Ludvik Jahn, lembras-te, Jindra, aquele homem que esteve há bocado connosco,
estavam também o meu marido e aquela rapariga, sim, o moreno alto, eu não posso sair
daqui agora e queria que o procurasses e lhe entregasses isto.
Voltou a pegar-me na mão, pobre pequeno, que estaria ele a imaginar, como interpretaria a
minha agitação, a mil léguas de suspeitar daquilo em que se metia, tudo o que podia
adivinhar era que eu estava com
problemas, agarrava a minha mão, senti-me de repente miserável, ele inclinou-se para mim,
abraçou-me, deu-me um beijo na boca, quis' defender-me, mas ele apertava-me com força e
veio-me à ideia que era
o último homem que eu beijava na minha vida, que era o meu último beijo, e, num desvario
súbito, beijei-o por minha vez, apertei-o contra mim, abri a boca, senti a língua dele na
minha e os seus dedos no meu
corpo, e senti como uma vertigem, era agora totalmente livre, nada tinha importância, visto
que todos me tinham abandonado e que o meu universo ruíra, eu era livre e podia fazer o
que me apetecesse, livre como aquela técnica que tínhamos despedido, já nada me separava
dela, nunca mais voltaria a colar os cacos do meu velho mundo, seria fiel, porquê e a quem,
sentia-me perfeitamente livre de agora em diante, exactamente como a nossa técnica,
aquela putazita que mudava de cama todas as noites, se continuasse a viver também havia
de mudar de cama todas as noites, sentia a língua de Jindra na minha boca, estava livre,
sabia que podia fazer amor com ele, queria fazê-lo, em qualquer lado, em cima da mesa ou
no chão, já, sem esperar mais, depressa, fazer amor uma última vez, fazê-lo antes do fim,
mas já Jindra se endireitara e, com um sorriso orgulhoso, disse que ia e voltava já.
278

XVII
Entre as cinco ou seis mesas da sala pequena afogada no fumo e na
confusão, um criado corria de braço estendido com um enorme tabuleiro cheio de uma
pirâmide de pratos, onde reconheci de soslaio bifes à moda de Viena com puré de batata
(que parecia ser o único prato de domingo); depois abriu caminho sem cerimônia e sumiu-
se num corredor. Fui atrás dele e descobri que o corredor acabava numa porta aberta para o
jardim, onde também se comia. No fundo, debaixo de uma tília, havia uma mesa vaga;
instalei-me.
Por cima dos telhados da aldeia, apelos comoventes, olá, olá, chegavam de tão longe que
aqui, no jardim cercado pelas paredes das casas vizinhas, tinham um ar quase irreal. E essa
irrealidade aparente fez-me pensar que tudo o que me rodeava era não o presente, mas o
passado, um passado de há quinze ou vinte anos, que os olá, olá eram o passado, Lúcia era
o passado, Zemanek era o passado, e Helena era a e eu tinha querido deitar a esse
passado; estes t IWh_TCatM_dICP_@ ---o
O @-uê-,sõ-e-s-t-es-tM dias? Toda a minha vida foi sempre sobrepovoada de sombras e o
presente teve nela um papel talvez muito pouco digno. Imagino um tapete rolante (o
tempo), com um homem (eu próprio) que corre em cima d~eTê--em sentido inverso; mas o
taDete anda, mais deDpressa do que ç@u, o u n ele me leve lentaq@ç.nte na
direcção oposta ao_gi @y desIàio,@__e@sjç§tinq e@Uanbq dest n _@i- _@u_adoatrds!)
,Mcessos políticos, o passado das salas
aos se levantam. 9 em que dos soldados ne ros e de Lúcia, passado que
me enfeitiça, que me esforço por decifrar, destrinçar, desataí@_ê_ ---é-fiãÓ--Se-7@xã
viver como um homem deve vMíver,a 'õTfiár
279

E o elo com que eu me quereria ligar ao passado é a vingança, mas a vingança, como me
convenci R£Ltes como o meu cami-
nho no tapete rolante. Sim, devia ter sido nessa altura, quando Zemanek deciamava Z5-
R"e7atõ Escrito à Beira da Forca, sim, nessa altura e só então é que eu devia ter avançado
para ele para o esbofetear! Adiada, a vingança transforma-se em ilusão, em rel@gião '"
Ressoal, em mito cada dia mais desligado dos seus próprios actores, que, no mito da
vingança, se mantêm imutáveis, embora na verdade (o tapete não pára de rolar) já não
sejam o que eram: um outro Jalin tem diante de si um outro Zemanek e a bofetada que eu
lhe devo não pode ser ressuscitada, nem re-
constituída, qtá perdida para sempre.
Cortava no meu prato o_grande escalope panado e ouvia o olá, olá! que planava sobre as
casas da aldeia, melancólico e quase imperceptível; reapareceu no meu espírito o rei
mascarado com a sua Cavalgada e como-
veu-me a ininteligibilidade dos gestos humanos:
Desde há séculos, como hoje, nas aldeias da Morávia, que rapazes saltam para cima dos
cavalos para partirem com uma mensagem de que soletram, com uma fidelidade
comovente, as palavras que não compreendem, escritas num idioma desconhecido. Homens
muito antigos quiseram certamente dizer algo de muito importante e renascem hoje.nos
seus descendentes, semelhantes aos oradores surdos-mudos que arengám o público com
gestos esplêndidos e incompreensíveis. Nunca a sua mensagem será decifrada, não só por
falta de chave mas também porque as pessoas não têm paciência para ouvir, num tempo tão
cheio de mensagens, antigas ou novas, que os seus conteúdos, que se sobrepõem, não
podem ser captados. Já hoje a História não é mais do que o frágil fio do recordado por
sobre o oceano do esquecido, mas o tempo avança e virá a época dos milénios avançados
que a memória inextensível dos indivíduos não poderá abarcar mais; então séculos e
milénios cairão por grandes zonas, séculos de quadros de música, séculos de descobertas,
de batalhas, de livros, e por isso será mau porque o homem perderá a noção de si próprio, e
a sua história inagarrável, inabarcável, reduzir-se-á a alguns sinais esquemáticos
desprovidos de sentido. Milhares de Cavalgadas dos Reis surdas-mudas partirão ao
encontro dessas pessoas longínquas com as suas mensagens ininteligíveis cheias de
queixumes, e ninguém terá tempo para as ouvir.
Estava sentado num canto desse restaurante no jardim, diante do prato vazio, sem reparar
tinha comido a minha fatia de vitela, e sentia-me parte (desde já!)
O criado apareceu, agarrou no prato, sacudiu as migalhas da toalha com a borda do guar-
280

danapo e passou lestamente a outra mesa. Invadiu-me um arrependimento por esse dia, não
só por causa do seu sem-sentido, mas pela ideia de que esse próprio sem-sentido será
esquecido, mesmo com esta mosca que me zunia ao ouvido, com a poeira de ouro que a
tília em flor espalhava na toalha, e até o serviço lento e medíocre tão revelador de um
estado da sociedade em que vivo, a qual será igualmente esquecida, mesmo com
todos os seus erros e injustiças que me obcecavam, me consumiam, que eu me esgotava a
corrigir, a sancionar, a endireitar, em vão, porque o
que está feito está feito, irreparavelmente.
S , de repente via claro: a maior parte das pessoas entregam-se à
im mirage de uma dupla crença: acreditam na_oerenidade da, memória (dos home " as
coisas, dos actos, das nações) e na possibilidade de reparar (actosn, serros, pecados,
injustiças). São as duas 'iguãlme*'nte 'W1@W_Ã @verdade situa-se justamente nos
antípodas: 1 Xrç@parad @o. O papel da reparação (pela vingança e pelo perdão) será re-
resentado pelo esquecimento. Ninguém reparará as injustiças cometiIas, mas todas as
injustiças serão esquecidas.
De novo pousei um olhar atento nesse mundo antecipadamente esquecido, na tília, nas
pessoas à mesa, no criado (esgotado depois dos almoços), nesta estalagem que (rebarbativa
vista da rua), vista daqui, do jardim, graças à armação de um latada, chegava a ser
simpática. Olhei para a porta aberta do corredor por onde o criado (coração cansado deste
canto já abandonado e devolvido ao silêncio) acabava de desaparecer e de onde surgiu um
rapaz de blusão de couro e bluejeans; avançou pelo jardim e olhou em volta, viu-me e
encaminhou-se para mim; só o reco-
nheci depois de alguns segundos: o técnico de Helena.
Sinto sempre uma angústia quando uma mulher que gosta de mim e de quem eu não gosto
agita a ameaça dos seus regressos; quando o rapaz me estendeu o sobrescrito "<mandado
pela senhora Zernanek"), o meu primeiro movimento foi de retardar de qualquer maneira a
leitura
da carta. Convidei-o a sentar-se; ele acedeu (cotovelo em cima da mesa, testa enrugada,
com um ar contente, contemplava a folhagem da tília ardente de sol), pousei o sobrescrito à
minha frente e perguntei: "Não tomamos nada?"
Ele encolheu os ombros; propus vodca; ele recusou e disse que tinha de guiar e a lei proíbe
qualquer álcool a quem conduz, mas acrescentou que ficaria com prazer a ver-mo beber.
Não me apetecia nada álcool, mas como tinha debaixo dos olhos aquele sobrescrito e não o
queria abrir, qualquer coisa me servia. Pedi ao criado que por ali passava que me trouxesse
uma vodca.
281

"O que é que a Helena me quer, sabe?, perguntei.


- Como é que quer que eu saiba? Leia a carta!, respondeu.
- É urgente?, perguntei.
- O que é que lhe parece? Que me obrigaram a decorar a carta para o caso de ser atacado
pelo caminho?", disse ele.
Com as pontas dos dedos agarrei no sobrescrito (oficial, com o cabeçalho impresso: Comité
Nacional local), e pousei-o na toalha diante de mim, e como não sabia o que havia de dizer,
disse: "E pena que você não beba!
- Bem vistas as coisas, é também para sua segurança...", disse ele. Percebi a alusão, que de
resto não era gratuita: o rapazinho aproveitava estar comigo à mesa para tirar a limpo as
condições da viagem de re-
gresso e que hipóteses tinha de a fazer sozinho com Helena. Ele era sim- pático; lia-se na
sua cara (pequena, deslavada, com sardas e o nariz curto e arrebitado) tudo o que ia nele;
era uma cara transparente porque incorrigivelmente infantil (digo incorrigivelmente por
causa dessas funções anormalmente finas que com a idade não ficam mais viris e chegam a
fazer de uma cara de velho uma cara de criança envelhecida). Um aspecto assim infantil
não pode agradar a um rapaz de vinte anos, de maneira que só lhe resta mascará-Ia de todas
as maneiras possíveis (como outrora o puto do comandante mascarava a dele - ali!, o eterno
teatro das sombras!): pela maneira de se vestir (o blusão de couro de ombros largos, a
assentar bem, de bom corte) e pelo comportamento (um ar atrevido, um tudo-nada
ordinário, com uma afectação de indiferença desenvolta em certas alturas). Esta
camuflagem estudada rebentava a todo o momento: o rapaz corava, colocava mal a voz, que
esganiçava à menor perturbação (eu apercebera-me disso logo no primeiro contacto), e não
dominava os olhos nem os gestos (deve ter tentado significar-me a sua indiferença por
saber se eu faria ou não com eles a viagem para Praga, mas como lhe garanti que ficava
aqui, o seu olhar distendeu-se demasiado visivelmente).
Quando o criado distraído trouxe à nossa mesa dois copos de vodca em vez de um, o
técnico fez um gesto e disse que não tinha importância, que me fazia companhia: "Apesar
de tudo não vou deixá-lo beber sozinho." E ergueu o copo: "Então, à sua saúde! - À sua!",
respondi eu, e tocámos os copos. Engrenámos na conversa e soube que ele previa a
partida daí a duas horas, visto que Helena tinha a intenção de preparar, aqui, tudo o que já
estava gravado e até de gravar o seu texto pessoal, para que tudo pudesse ser transmitido a
partir de amanhã. Perguntei-lhe se o seu trabalho com a Helena corria bem. Mais uma vez
se fez cor de
282

púrpura e respondeu que a Helena se defendia bem, mas que era um bocado bera com as
pessoas da sua equipa porque estava sempre disposta a ultrapassar o tempo de trabalho e
não se preocupava com saber se os
outros tinham pressa de ir para casa. Perguntei-lhe se ele também tinha pressa de ir para
casa. Disse que não, que o trabalho o divertia. Depois, aproveitando as minhas perguntas
sobre Helena, como quem não quer a coisa, de passagem, perguntou: "É verdade, e você,
como é que conheceu a Helena?" Eu disse-lhe e ele tentou aprofundar: "É porreira a
Helena, não é?"
Sobretudo quando se tratava de Helena arvorava uma cara feliz, que eu levava ainda à conta
do seu esforço de dissimulação, porque toda a gente devia saber da sua paixão desesperada
por Helena e ele tinha de lutar para não usar a coroa de mal-amado, essa coroa reputada
infamante. Mesmo não tomando muito a sério a serenidade do rapaz, ela aliviava um pouco
o peso da carta que estava à minha frente, de maneira que acabei por pegar nela e rasguei o
sobrescrito: "O meu corpo e a minha alma... já não têm razão para viver... despeço-me de ti
... "
Descortinei o criado na outra ponta do jardim e gritei-lhe: "A conta!" Disse-me que sim
com a cabeça, mas, fiel à sua órbita, desapareceu logo no corredor.
"Venha, não há tempo a perder!", disse eu ao rapaz. Levantei-me e atravessei o jardim; ele
seguia-me. Tínhamos passado o corredor e chegado à saída do restaurante, de maneira que
o criado, quer quisesse quer não, teve de correr atrás de nós.
"Um bife, uma sopa, duas vodcas, ditei-lhe eu.
- O que é que se passa?", disse o miúdo timidamente com um ar inquieto.
Paguei a conta e pedi-lhe que me levasse depressa ao pé da Helena. famos depressa.
"Mas o que é que aconteceu?, perguntou-me ele.
- É longe?", perguntei por minha vez.
Ele apontou para a frente e eu comecei a correr. O Comité Nacional era um simples rés-do-
chão, caiado, com uma porta e duas janelas. Entrámos; estávamos numa desagradável
repartição administrativa: debaixo da janela, duas secretárias encostadas; em cima de uma
delas o gravador, um bloco e uma carteira (sim, a de Helena); diante das duas secretárias
havia duas cadeiras e, num canto, um cabide metálico. Estavam pendurados dois
impermeáveis: um de mulher e um de homem.
"É aqui, disse o rapaz.
- Foi aqui que ela lhe deu a carta?
283

- Foi." Só que agora o espaço estava desesperadamente vazio; chamei "Helena! " e
assustou-me o som incerto e angustiado da minha voz. Não houve resposta. Chamei outra
vez: "Helena!", e o rapaz perguntou-me:
"Ela ter-se-ia ... ?
- Tem todo o aspecto, murmurei eu.
- Ela falava disso na carta?
- Claro, disse eu. Só vos tinham dado estas instalações?
- Só, disse ele.
- E no hotel?
- Deixámos os quartos esta manhã.
- Então ela tem de estar aqui", disse eu, e ouvi a voz de cana rachada do rapaz,
estrangulada: "Helena!"
Abri uma porta que dava para a sala ao lado; era outro escritório: mesa, cesto de papéis, três
cadeiras, um armário e um cabide (parecido com o da primeira sala: a haste de metal,
assente em três pés, dividia-se em cima em três braços; nada estava pendurado; parecia um
órfão na sua silhueta vagamente humana; a nudez metálica e os braços ridiculamente
levantados encheram-me de angústia); exceptuada a janela por cima da mesa, só havia
paredes; os dois escritórios eram, evidentemente, as duas únicas divisões da casota.
Voltámos à primeira sala; agarrei no bloco e comecei a folheá-lo; eram notas dificilmente
legíveis para (a julgar por algumas palavras que consegui decifrar) uma descrição da
Cavalgada dos Reis; nenhum recado, nenhuma outra despedida. Abri a carteira: havia um
lenço, um porta-moedas, um bâton, um pó-de-arroz, dois cigarros soltos, um isqueiro;
nenhum vestígio de tubo de comprimidos nem de frasco de veneno bebido. Pensei
febrilmente no que Helena poderia ter escolhido e, entre todas as suposições, o veneno
impunha-se; mas devia ter ficado um frasco ou um tubo. Fui ao cabide ver os bolsos do
impermeável dela: estavam vazios.
"Não estará no sótão?", disse de repente o rapaz com impaciência, sem dúvida por achar
que as minhas buscas na sala, embora não tenham durado mais do que alguns segundos,
não nos podiam levar a nada. Corremos pelo corredor em que havia duas portas: por uma
delas, que tinha vidros em cima, adivinhava-se, mais do que se via, um pátio; abrimos a
segunda, mais perto de nós, apareceu-nos uma escada com degraus de pedra coberta de uma
camada de pó e fuligem. Trepámos; a única fresta no telhado (com o seu vidro sujo) dava
uma luz fosca, lívida. Era uma arrecadação (caixotes, utensílios de jardinagem, enxadas,
sachos, anci-
284
nhos, além de enormes maços de dossiers e de uma velha cadeira desmantelada);
tropeçámos.
Queria chamar "Helena!", mas o medo não me deixava, horrorizava-me o silêncio que se
teria seguido. O rapaz também não chamava. Revolvíamos as coisas e apalpávamos, em
silêncio, os cantos obscuros; eu sentia como ambos estávamos agitados. E o mais aterrador
era o nosso
mutismo, que equivalia a reconhecermos que já não esperávamos resposta da boca de
Helena, que era só do seu corpo que andávamos à procura, pendurado ou por terra.
Não encontrámos nada e voltámos para o escritório,. Mais uma vez passei os olhos sobre os
móveis, as mesas, as cadeiras, o cabide com dois impermeáveis, e depois na sala ao lado:
mesa, cadeiras e outro cabide com os seus braços nus levantados em desespero. O rapaz
chamou (em vão) Helena! e eu (em vão) abri o armário, que me mostrou as suas prateleiras
cheias de papelada, de objectos de escritório, fita-cola e réguas.
"Meu Deus, tem de haver mais qualquer coisa! Casas de banho! Uma cave! ", disse eu e
chegámos outra vez ao corredor; o rapaz abriu a porta do pátio. Era minúsculo, uma
capoeira de coelhos jazia a um canto; mais longe estendia-se um jardim todo cheio de ervas
daninhas, com árvores de fruto (num recanto longínquo do meu pensamento tive tempo de
inscrever a beleza deste lugar: os troços de céu azul pendurados entre a folhagem, os
troncos torcidos e desiguais e, entre eles, a luz de alguns girassóis); na ponta do jardim vi, à
sombra idílica de uma macieira, uma casa de banho. Precipitei-me para ela.
O trinco que girava numa peça metálica pregada na madeira da porta (para se poder fechar
de fora colocando-o na posição horizontal) estava virada para cima. Metendo os dedos no
intervalo entre a porta e a umbreira, bastou-me um movimento ligeiro para verificar que a
casa de banho estava fechada por dentro, o que só podia querer dizer que Helena estava lá.
Chamei em voz baixa: "Helena! " Nada respondeu; só se ouvia o som dos ramos da
macieira que o vento tinha agitado e roçavam a parede.
Eu sabia que aquele silêncio pressagiava o pior, mas também que só restava arrombar a
porta e que era eu que o devia fazer. Enfiei outra vez os dedos no intervalo entre a porta e a
umbreira e puxei com toda a força. A porta (fixada não com um fecho, mas, corno muitas
vezes no campo, com uma simples ponta de cordel) cedeu facilmente e
escancarou-se. Diante de mim, Helena estava sentada na retrete, no meio de um cheiro
fétido. Estava lívida mas viva. Olhou para mim aterrorizada e baixou a saia, que, apesar dos
seus esforços, só lhe chegava ao
285

meio das coxas; segurava a bainha com as duas mãos e apertava as pernas uma contra a
outra. "Por favor, vá-se embora!, disse ela com angústia.
O que é que se passou?, gritei-lhe. O que é que tomou? Vá-se embora! Deixe-me." Atrás de
mim, o rapaz apareceu e Helena gritou: "Vai-te embora, Jindra, vai-te embora, gira! "
Soergueu-se, a mão estendida para a porta, mw eu pus-me entre ela e o batente de maneira
que ela teve, cambaleante, de se sentar outra vez na retrete.
No mesmo segundo, levantou-se outra vez e atirou-se a mim com uma força desesperada
(verdadeiramente desesperada, porque lhe restava muito pouca depois do seu grande
esgotamento). Agarrada ao forro do meu casaco, empurrava-me para fora; estávamos os
dois à entrada das casas de banho. "Besta, porco, besta, porco, besta, porco!", gritava ela (se
se pode chamar gritar a esse esforço para forçar uma voz enfraquecida), e sacudiu-me;
depois largou-me bruscamente e pôs-se a fugir pela erva fora em direcção ao pequeno
pátio. Queria fugir, mas não conseguiu: tinha deixado a casa de banho numa confusão que a
impediu de se ves-
tir, de maneira que as cuecas (as mesmas que eu tinha visto ontem, de lastex, que servem ao
mesmo tempo de cinta) tinham ficado enroladas nos joelhos, impedindo-a de andar (a saia
já tinha descido, mas as meias estavam enfoladas sobre os tornozelos e via-se a parte de
cima mais escura, com as ligas); fez alguns pequenos passos ou, melhor, alguns saltos
muito curtos (tinha sapatos de saltos altos), andou apenas uns me-
tros e caiu (caiu na erva cheia de sol, debaixo dos troncos de uma árvore, ao pé de um
grande girassol resplandecente); agarrei-lhe na mão para a ajudar a levantar; libertou-se
com um empurrão, e quando me inclinei outra vez para ela começou a esbracejar
furiosamente à volta e bateu-me várias vezes: tive de a agarrar com toda a força, levantá-la
e apertá-la nos meus braços como num colete-de-forças. "Besta, porco, besta, porco, besta,
porco!", soprava ela sem parar enquanto me batia nas costas com a mão livre; quando lhe
disse (o mais docemente possíve): "Helena, calma", cuspiu-me na cara.
Sem a largar, disse-lhe: "Não a deixo enquanto não me disser o que é que tomou.
- Vá-se embora! Vá-se embora!", repetiu ela com raiva, mas de repente calou-se, cessou
toda a resistência e disse-me: "Largue-me", com uma voz tão profundamente mudada (fraca
e cansada) que a libertei e olhei para ela; via a sua cara crispada por um esforço
abominável, dentes cerrados, olhar perdido e o corpo encarquilhado, dobrado para a frente.
286

"O que é que foi?", disse eu, e ela, sem uma palavra, deu meia volta e dirigiu-se para a casa
de banho; nunca hei-de esquecer esse andar: a lentidão dos pequenos passos irregulares, das
suas pernas travadas; faltava-lhe fazer quatro metros, mas teve de parar várias vezes e cada
paragem revelava (pelas contorções de todo corpo) o cruel combate que ela travava contra
as suas entranhas enlouquecidas: chegou enfim à casa de banho, agarrou-se à ponta da porta
(tinha ficado escancarada) e
fechou-se atrás dela.
Eu fiquei onde a tinha levantado; e agora que da casa de banho se
levantava forte uma respiração, um estertor de sofrimento, recuei mais. Foi só então que
reparei na presença do rapaz plantado ao meu lado. "Fique aí, ordenei-lhe. Tenho de
encontrar um médico."
Entrei no escritório; reparei logo no telefone das mesas. Mas a lista não estava em parte
nenhuma; agarrei no puxador da gaveta do meio, estava fechada à chave, e as dos lados
também; a mesa da frente também estava fechada. Fui à outra sala; aqui, a secretária só
tinha uma gaveta que, se bem que aberta, só tinha algumas fotografias e uma faca de papel.
Não sabia o que fazer e senti (sabendo que Helena estava viva e sem
dúvida fora de perigo) um cansaço súbito; fiquei um instante sem me me-
xer e olhei o cabide (magro cabide metálico de braços levantados como
um soldado que se rende) e depois (sem saber o que fazer) abri o armário; em cima de um
monte de dossiers descobri a capa azul-esverdeada da lista; levei-a para junto do telefone e
encontrei o hospital. Liguei e ouvi o barulho do sinal de chamada, quando o rapaz entrou
afogueado.
"Não chame ninguém! É inútil", gritou. Eu não compreendia. Arrancou-me o auscultador e
pousou-o no descanso. "Estou a dizer que não vale a pena ... "
Eu queria que ele explicasse o que se passava. "Não é um envenenamento! ", disse ele
aproximando-se do cabide; procurou no bolso do impermeável e tirou um tubo; tirou a
tampa e deu-mo; estava vazio.
"Foi isto que ela tomou?", perguntei. Ele aquiesceu em silêncio. "Como é que sabe?
- Ela disse-me.
- Este tubo é seu?" Ele aquiesceu. Tirei-lho das mãos. O rótulo dizia "Algena". "Então você
pensa que analgésicos nesta quantidade são inofensivos? disse eu enfurecido.
287

- Não eram analgésicos, disse ele.


- Então o que é que aí estava dentro?, gritei eu.
- Comprimidos laxativos", murmurou ele. Berrei: que não gozasse comigo, era preciso que
eu soubesse o que era, e as impertinências dele não tinham graça. Ordenei-lhe que me res-
pondesse imediatamente.
Ouvindo-me gritar, ele gritou também: "Se lhe estou a dizer que é um laxativo! Será
preciso que toda a gente saiba que os meus intestinos funcionam mal?" Assim, o que eu
tinha tomado por uma piada estúpida, era a verdade.
Olhei para ele, com a cara pequena e corada, o nariz esborrachado (pequeno e apesar de
tudo suficientemente grande para ter muitas sardas), e tudo se fez claro: a marca do tubo
tinha sido posta para esconder o rídiculo dos seus problemas intestinais, como os seus
blues-jeans e o
seu blusão de homem forte, o rídiculo da sua personagem infantil; tinha vergonha dele
próprio e arrastava como uma tara a sua adolescência tenaz; nesse momento, gostei dele; o
seu pudor (essa nobreza da adolescência) tinha salvo a vida de Helena e as minhas noites de
sono durante os próximos anos. Com um reconhecimento embrutecido, olhava para as suas
orelhas em abanico. Sim, ele tinha salvo a vida de Helena, mas ao preço de uma
humilhação inútil, sem nenhum sentido e sem sombra de equidade: um novo irreparável na
cadeia dos irreparáveis; sentia-me culpado, e uma imperiosa (se bem que imprecisa)
necessidade levou-me a correr e a ir ter com ela, libertá-la do seu ultraje, rebaixar-me
diante dela, atribuir-me toda a culpa e toda a responsabilidade dessa história absurdamente
feroz.
"Acha que ainda não olhou bastante para mim?", atirou-me o rapaz à queima-roupa. Não
respondi e passei ao lado dele para chegar ao cor-
redor; dirigi-me à porta do pátio.
"O que é que vai lá fazer?" Por detrás, agarrou no ombro do meu casaco e tentava segurar-
me contra ele; os nossos olhares confrontaram-se um segundo; apertei-lhe o pulso e tirei-
lhe a sua mão do meu ombro. Deu-me a volta e barrou-me o caminho. Avancei para ele e
fiz um gesto para o afastar. Então, avançando o braço, assentou-me um murro no peito.
Tinha sido um golpe insignificante, mas saltou para trás para se co-
locar outra vez à minha frente numa ingénua atitude de boxe; na sua
cara misturavam~se o medo e a audácia irreflectida.
"Não tem nada que ir para o pé dela! ", gritou-me ele. Fiquei imóvel.
O rapaz, provavelmente, falava verdade: eu não estava à altura de repa-
288

rar o irreparável. Então, vendo que eu ficava ali sem responder, ele vociferou: "Ela acha-o
infecto! Ela caga-se para si! Ela disse-me! Caga-se para si! "
Num estado de tensão de nervos, chora-se facilmente, mas também se ri: o sentido não
figurado das suas últimas palavras fez~me tremer os cantos da boca. Ele ficou furioso:
desta vez atingiu-me no beiço e por pouco evitei outro murro. Depois recuou mais, como
num ringue, os punhos diante da cara, de que só se viam as duas orelhas muito coradas.
Eu disse-lhe: "Pronto, acabou-se! Vou-me embora." Ele ainda gritou nas minhas costas:
"Cagão, cagão! Eu sabia que eras um cobardola! Não tenhas medo que te hei-de encontrar
outra vez! Cabrão! Cabrão!"
Eu tinha saldo para a rua. Estava vazia corno as ruas ficam vazias depois da festa; só o
vento levantava a poeira devagarinho e afastava-a diante de si, sobre o chão plano, tão
deserto como a minha cabeça, a
minha cabeça vazia e oca, onde durante muito tempo nenhuma ideia apa-
receu.
Só mais tarde, realizei de repente que tinha na minha mão o tubo com o rótulo "Algena";
examinei-o: tinha um ar velho de uso e porcaria; devia servir há muito tempo para disfarçar
os laxativos do rapaz.
Um bom bocado depois, o tubo lembrou-me outros tubos, os dois tubos de barbitúricos de
Alexej; e percebi que o rapaz não tinha de maneira nenhuma salvo a vida de Helena: bem
feitas as contas, mesmo que o tubo contivesse "Algena", não lhe teria senão desarranjado o
estômago, para mais o rapaz e eu não estávamos longe; a desesperança de Helena tinha
feito contas com a vida a uma distância respeitável das portas da morte.
289

XVIII
Ela estava na cozinha. Debruçada sobre o forno. De costas. Como se nada fosse. "O
VIadimir?" tinha-me ela respondido sem se voltar. "Viste-o com os teus olhos! O que é que
tens que me perguntar? - Estás a mentir, disse-lhe eu, o VIadimir partiu esta manhã na moto
do neto de Koutecky. Vim-te dizer que sei tudo. Sei porque é que a rapariga da rádio vos
fez jeito. Sei porque é que eu não podia estar presente enquanto o rei se vestia. Sei porque é
que ele observava a regra do silêncio mesmo antes de ir tomar o seu lugar na Cavalgada.
Combinaram tudo muito bem".
A minha certeza tinha-a desconcertado. Mas recompôs-se rapidamente e quis-se salvar
passando ao ataque. Era um curioso ataque. Curioso, quanto mais não fosse porque os
adversários não estavam cara a cara.
Ela tinha as costas voltadas, inclinada sobre a sopa de massa que fervia. A sua voz era
calma. Quase indolente. Como se só a minha incompreensão a obrigasse agora a formular
em voz alta uma velha e banal evidência. Se eu quero ouvir, foi assim. Desde o começo que
o Viadimir refilou com fazer de rei. E Viasta não se admirou. Noutros tempos, os rapazes
não precisavam de nada para fazer a Cavalgada. Agora, há trinta e seis organizaçoes que
tratam dela, até ao Comité Distrital do Partido. Hoje em dia, as pessoas já não podem fazer
nada sozinhas, quando lhes apetece. Tudo tem de ser dirigido de cima. Dantes, eram os
miúdos que escolhiam o rei. Desta vez, de cima, tinham-lhes recomendado Viadimir, para
dar prazer ao pai, e todos tinha tido que obedecer. O VIadimir, por seu lado, tinha vergonha
de ser o menino das cunhas. Ninguém gosta dos meninos das cunhas.
"Queres dizer que o Viadimir tem vergonha de mim? - Ele não quer ser um menino de
cunhas, repetiu VIasta. - É por isso que ele é unha com carne com os Koutecky? Com esses
idiotas? Esses burgueses limita-
290
1 o

dos?, perguntei eu. - Sim, é por isso!, respondeu VIasta. Por causa do avô, o Milos não
pode estudar. Só porque o velho era dono de uma em-
presa. Enquanto o nosso VIadimir tem todas as portas abertas. Pela única razão que és tu o
pai dele. É difícil para o miúdo. És capaz de perceber isso, ao menos?"
Pela primeira vez na minha vida, senti cólera contra ela. Tinham-me enganado. Friamente,
dia após dia, tinham-me observado os dois a esperar a Cavalgada. Tinham observado a
minha impaciência, a minha exaltação. Tranquilamente tinham observado, tranquilamente
tinham-me en-
ganado. "Era preciso enganarem-me assim?"
VIasta punha sal na massa e dizia que comigo não era fácil. Eu vivia no meu universo. Era
sonhador. Eles não tinham nada contra os meus ideais, mas o VIadimir é diferente. Os meus
paleios são latim para ele. Não o divertem. Acha-os uma chatice. É preciso que eu perceba
isso.
O VIadimir é um homem moderno. Vem-lhe do pai dela. Esse tinha o sentido do progresso.
Na cornuna deles, tinha sido o primeiro a comprar um tractor ainda antes da guerra. Depois
confiscaram-lhe tudo. De qualquer maneira, desde que os campos deles pertenciam à
cooperativa. não produziam tanto.
"Estou-me nas tintas para os vossos campos! Quero saber onde foi o VIadimir! Foi às
corridas de moto em Brno. Confessa!"
Ela continuava com as costas voltadas, punha sal na massa e prosseguia na sua. O VIadimir
é como o avô. Tem o queixo e os olhos dele. E a Cavalgado dos Reis é latim para ele. Sim,
já que eu queria saber, ele foi às corridas. Porque não? As motos interessavam-lhe mais do
que os burros enfeitados. Porque não. O VIadimir é um homem moderno.
Motos, guitarras, motos, guitarras. O mundo estúpido e estranho. Perguntei-lhe: "Importas-
te de me dizer o que é um homem moderno?"
Ela continuava com as costas voltadas, punha sal na massa e respondeu que, por pouco, não
tinha podido ter uma casa moderna. O que eu
tinha rezingado por causa do candeeiro moderno. E o lustre moderno também não tinha
nada que ver comigo! E toda a gente sabe que este candeeiro moderno é uma beleza! Em
toda a parte as pessoas compram estes candeeiros.
"Cala-te", disse eu. Mas era impossível pará-la, Estava lançada. De costas voltadas. As
costas pequenas, más, magras. Era tudo isso o que me exasperava mais. Aquelas costas.
Aquelas costas sem olhos. Aquelas costas estupidamene seguras de si próprias. Aquelas
costas com que é impossível alguém entender-se. Resolvi fazê-la calar. Voltar-se para mim.
Só que ela me repugnava de mais. Não lhe queria tocar. Havia'de conse-
291

guir de outra maneira. Abri o armário e agarrei num prato. Deixei-o cair. Ela calou-se logo.
Mas não se voltou. Outro prato, outros ainda. Continuava de costas voltadas. Agachada
nela própria. Nessas costas, eu lia-lhe o medo. Sim, ela tinha medo, mas era teimosa e
recusava render-se. Parou de mexer a sopa e apertava, sem um movimento, o cabo da
colher de madeira. Como se tivesse de a salvar. Eu odiava-a e ela odiava-me. Ela não se
mexia e eu não deixava de olhar para ela enquanto continuava a fazer cair mais e mais
peças de louça das prateleiras para o chão. Eu odiava-a, e com ela, toda a sua cozinha. A
sua cozinha standard moderna, com a sua mobília moderna, os seus pratos modernos. os
seus copos modernos.
Não me sentia excitado. Olhava placidamente, com tristeza e cansaço, o chão juncado de
destroços, de panelas e caçarolas espalhadas. Deitava por terra a minha casa. A minha casa
querida, o meu refúgio. A minha casa posta sob a terna protecção da minha pobre serva. A
minha casa que eu tinha enchido de histórias, de canções de bons duendes. Olha, as três
cadeiras onde nos sentávamos para almoçar. Ali, esses pacíficos almoços de família que
tinham visto um pai de família dispensador e crédulo ser mimado e enganado. Uma após
outra, agarrei nessas cadeiras e parti-lhes os pés e depois pu-las ao lado das caçarolas e dos
copos partidos. Tombei a mesa por cima. VIasta mantinha-se imóvel diante do seu fogão,
sempre de costas voltadas.
Saí da cozinha para ir para o meu quarto. Lá estavam o globo cor-de-rosa pendurado do
tecto, o candeeiro e o horrível divã moderno. Em cima do harmónio, o meu violino no
estojo preto. Agarrei nele. Às quatro horas, temos o nosso concerto no jardim do
restaurante. Mas é só uma hora. Onde me vou meter?
Ouvia soluços do lado da cozinha. VIasta chorava. Os seus soluços eram dilacerantes e no
fundo de mim mesmo tinha uma imensa piedade. Porque é que ela não chorou dez minutos
antes? Teria podido ceder à minha velha ilusão e ir ter com a minha pobre serva. Mas agora
era tarde de mais.
Saí de casa. O apelo da Cavalgada tremulava por cima das casas. Temos um rei necessitado
mas tanto mais prendado. Para onde ir? As ruas eram da Cavalgada, a casa de VIasta, as
tabernas dos bêbados. E o meu lugar, onde é? Eu sou o velho rei, abandonado e banido. Rei
velho e mendigo. Rei sem sucessor. O último rei.
Há ainda uma hipótese, para lá da aldeia há os campos. O caminho. E dez minutos depois, a
água do Morava. Deitei-me na margem. A caixa do violino debaixo da cabeça. Fiquei
muito tempo assim. Uma hora, tal-
292

vez duas. Com a ideia de ter chegado ao fim. Tão subitamente, tão ínopinadamente. Pronto,
era assim. Não via continuação. Sempre vivi em
dois mundos ao mesmo tempo. Acreditava na harmonia deles. Era um
engano. De um desses mundos, estou agora banido. Do mundo real. Só me resta o outro, o
imaginário. Mas não me chega para viver, o mundo imaginário. Mesmo se lá me esperam.
Mesmo se o desertor me chama, mesmo se ele continua a guardar para mim um cavalo e
um véu rubro. Ah, como o compreendia desta vez ! Agora sabia porque é que ele me
tinha proibido de tirar o véu, preferindo contar-me tudo ele próprio! Só agora percebia
porque devia o rei ir mascarado! Não para que não o ve-
jam, mas para que ele não veja nada!
Era impossível pôr-me de pé para andar. Impensável dar um passo. Às quatro horas, vão
estranhar. Mas não tenho força para me levantar, para ir até lá. Só aqui me sinto bem. Aqui,
a água corre lentamente, desde há milhares de anos. Lentamente corre e eu, lentamente e
longamente, vou ficar estendido aqui.
Então, alguém me falou. Era Ludvik. Esperava um novo golpe. Mas já não tinha medo. Já
nada me podia surpreender.
Ele sentou-se na erva ao meu lado e perguntou se eu não ia daí a pouco ao concerto dessa
tarde. "Queres ir, por acaso?, perguntei eu. - Quero, disse-me ele. - Foi para isso que vieste
de Praga? - Não, disse ele, não foi para isso, mas as coisas acabam de maneira diferente do
previsto.
- Sim, disse eu, completamente diferente! - Há uma hora que ando a vaguear pelos campos.
Não imaginava nada encontrar-te aqui. - Nem eu. - Tenho um pedido a fazer-te", disse ele a
seguir, sem me olhar nos olhos. Mas, nele, isso não me perturbava. Pelo -contrário, dava-
me prazer. Achava que era por pudor. E esse pudor aliviava-me e curava-
-me. "Tenho um pedido a fazer-te, tinha ele dito. Não me deixas tocar com vocês daqui a
bocado?"
293

XIX
Restavam ainda algumas horas antes da partida do autocarro e por isso, levado pela minha
perturbação, deixei a aldeia e tentei, nos campos, varrer da cabeça todas as recordações do
dia. Não era fácil: o meu
beiço ferido pelo punho insignificante do rapaz ardia-me, e o reaparecimento da figura de
Lúcia relembrava-me que sempre que eu tinha tentado ajustar contas com a injustiça, no
fim me tinha feito sair a mim próprio da toca como causador do mal. Afastei todas essas
ideias, pois bem sabia agora o que elas me repetiam sem parar; esforcei-me por manter a
cabeça vazia e deixar entrar nela só os apelos longínquos (que já mal se ouviam) dos
cavaleiros, a música que me levava para fora de mim próprio e assim me consolava.
Num círculo largo, por atalhos, tinha contornado a aldeia, cheguei à beira do Morava e
segui-o para jusante; na outra margem havia alguns gansos, um bosque no horizonte e, fora
disso, só campos. E depois, ainda longe de mim, reparei num homem deitado na erva da
margem. Quando cheguei mais perto, reconheci-o: deitado de costas, cara para o ar, tinha o
estojo do violino debaixo da cabeça (à volta, os campos eram infinitos e planos, os mesmos
durante séculos, só arranhados aqui por pilares de aço que sustentavam os pesados cabos de
uma linha de alta tensão). Teria sido fácil evitá-lo: ele fitava o céu e não me via. Mas desta
vez não era dele que eu queria fugir. Aproximei-me e dirigi-lhe a palavra. Ele levantou os
olhos para mim (olhos que me pareceram tímidos e cheios de medo) e notei (estava a revê-
lo de perto pela primeira vez desde há muitos anos) que, da espessa juba que noutros
tempos acrescentava alguns centímetros à sua grande estatura, não restava senão um tufo
muito esparso com três ou quatro madeixas que, em vão, tentavam cobrir-lhe a cabeça;
esses cabelos desaparecidos evocaram-me os anos da nossa se-
294

paração e, subitamente, tive pena desse tempo, esse longo tempo em que não o vi, em que o
evitei (mal se ouviam os chamamentos dos cavaleiros que chegavam de longe) e senti por
ele um brusco impulso de amor culpado. Estendido aos meus pés, ele tinha-se soerguido
apoiado num co-
tovelo; era grande e desajeitado, e a caixa do seu instrumento era preta e pequena como o
caixão de uma criança. Lembrei-me de que a sua or-
questra (que noutros tempos também tinha sido a minha) dava um concerto antes do fim da
tarde e perguntei-lhe se podia tocar com eles.
Formulei esse pedido antes de o ter pesado verdadeiramente (como se as palavras tivessem
vindo mais depressa do que a ideia), formulei-o por isso sem pensar, mas em uníssono com
o meu coração: na verdade eu estava cheio de amor por esse mundo que outrora tinha
desertado, esse mundo longínquo e antigo em que cavaleiros e o seu rei mascarado
contornam a aldeia, em que se usam camisas brancas plissadas e se cantam canções, esse
mundo que para mim se confunde com a imagem da minha cidade natal, da minha mãe
(minha mãe confiscada) e da minha juventude; todo o dia, em silêncio, esse amor em mim
tinha crescido para se manifestar agora quase à beira das lágrimas; eu amava esse velho
mundo e pedia-lhe que me concedesse refúgio.
Mas como e com que direito? Não tinha eu ainda anteontem evitado o Jaroslav unicamente
porque o seu personagem encarnava para mim a
música irritante do folclore? E mesmo esta manhã, não me tinha aproximado da festa
folclórica com custo? Donde vinha este súbito apagar das barreiras que durante quinze anos
me impediram a feliz evocação da minha juventude passada na orquestra com címbalo, os
regressos regulares e comovidos à minha cidade natal? Seria de ter, algumas horas mais
cedo, ouvido o Zemanek gozar com a Cavalgada dos Reis? Seria possível que tivesse sido
ele a inspirar-me horror pela canção popular e também ele a torná-la agora pura? Seria eu
somente o braço de um ponteiro de bússola de que ele fosse a ponta? Estar-lhe-ia tão
ignominiosamente ligado? Não, não era só graças ao sorriso de Zemanek que eu conseguia
bruscamente amar de novo este mundo; consegui amá-lo porque esta manhã o tinha
reencontrado (inopinadamente) na sua pobreza; na sua pobreza e sobretudo na sua solidão;
estava abandonado pela pompa e a publicidade, abandonado pela propaganda política e
pelas utopias sociais, pelas hordas de funcionários da cultura, abandonado pela adesão
afectada das pessoas da minha geração, abandonado (também) por Zemanek; esta solidão
purificava-o; cheia de acusações para mim, ela purificava-o como a alguém a quem já não
resta muito tempo; iluminava-o com uma irresistível última beleza; essa solidão devolvia-
mo.
295

O concerto devia ter lugar- no jardim do restaurante onde, pouco antes, eu tinha almoçado e
lido a carta de Helena; quando Jaroslav e eu chegámos, encontrámos já instaladas algumas
pessoas de idade (que esperavam pacientemente a tarde musical) e quase outros tantos
bêbedos que tropeçavam de uma mesa para a outra; no fundo estavam dispostas algumas
cadeiras à volta de uma tília e, contra o tronco, estava apoiado um contrabaixo ainda na sua
mortalha cinzenta; a dois passos o címbalo estava aberto, um homem de camisa branca
plissada, sentado, passeava em surdina os seus malhetes leves sobre as cordas; os outros
membros da orquestra estavam de pé, um pouco afastados, e Jaroslav fez as apresentações:
o segundo-violino é um médico do hospital de cá; o homem do contrabaixo é inspector dos
assuntos culturais do Comité Nacional do distrito; o do clarinete (que vai ter a bondade de
me emprestar o seu instrumento, vamo-nos revezar) é professor; o tocador de címbalo,
planificador na fábrica; à excepção deste último, de quem me lembrava, uma equipa
inteiramente renovada. Depois de Jaroslav, solenemente, me ter
apresentado por minha vez como um veterano da orquestra, um dos seus fundadores,
portanto um clarinetista de honra, tomámos lugar nas cadeiras à volta da tília e começámos
a tocar.
Há muito tempo que não pegava num clarinete, mas como conhecia bem a música com que
atacámos, depressa venci o medo, de tal maneira que, quando acabámos, os músicos se
desfizeram em cumprimentos, recusando-se a acreditar que eu já não tocava há muito
tempo; o criado (o mesmo a quem eu tinha pago precipitadamente a conta do meu almoço)
veio-nos então pôr debaixo da árvore uma mesa com seis copos de vinho e um garrafão
empalhado; devagarinho começámos a beber. Depois de quatro ou cinco trechos fiz sinal ao
professor; agarrando no seu clarinete, repetiu que eu me tinha saído brilhantemente;
contente com o elogio, fui-me encostar ao tronco da tília; enchia-me o sentimento de uma
camaradagem cheia de calor e agradeci-lhe por me ter vindo em socorro no fim deste dia
áspero. E então, de novo Lúcia ressurgiu diante dos meus olhos e julguei compreender
enfim por que me tinha aparecido no cabeleireiro e depois no dia seguinte em casa de
Kostka, na narrativa que era lenda e verdade ao mesmo tempo: talvez ela me tenha querido
dizer que o seu destino (destino de rapariguinha profanada) estava próximo do meu; que
nós os dois éramos sem dúvida falhados porque ninguém nos compreendeu, mas que as
histórias das nossas vidas eram fraternas e conjuntas, eram as duas histórias de devastação;
assim como em Lúcia o amor carnal tinha sido devastado e a sua existência privada de um
valor elementar, também a minha vida foi espoliada dos valores
296

sobre que ela se queria apoiar e que, na origem, eram inocentes; sim, inocentes: o amor
físico, se bem que devastado na vida de Lúcia, é inocente, da mesma maneira que os
cantares do meu país e a orquestra com címbalo e a minha cidade natal que eu detestava são
inocentes, e Fucik, de que o retrato me tinha dado volta ao estômago, é, também ele,
inocente em relação a mim, e a palavra camarada, que me tinha soado como uma ameaça,
como a palavra tu e a palavra futuro e muitas outras palavras. O erro estava noutro lado e
era tão grande que a sua sombra cobria amplamente o universo inteiro das coisas (e das
palavras) inocentes e as devastava. Vivíamos, a Lúcia e eu, num universo devastado, e por
não termos sabido compadecer-nos dele, afastámo-nos, agravando a sua infelicidade e a
nossa. Lúcia, tanto amada, tão mal amada, é isso que me viste dizer no fim dos tempos?
Advogar a compaixão por um mundo devastado?
Quando a canção acabou, o professor passou-me o clarinete declarando que não o queria
mais hoje, que eu tocava melhor do que ele e merecia ficar com ele, até porque não se sabia
quando eu ia voltar. Cruzei um instante o olhar de Jaroslav e disse que não queria outra
coisa do que voltar o mais depressa possível. Jaroslav perguntou-me se eu estava a falar a
sério. Disse que sim e atacámos o trecho seguinte. Já há um bocado que Jaroslav se tinha
levantado da cadeira; com a cabeça inclinada para trás, apoiava o violino, com desprezo por
todos os princípios, muito baixo contra o peito e, sem parar de tocar, ia e
vinha continuamente; o segundo-violino e eu também nos levantávamos constantemente,
sobretudo sempre que queríamos dar o maior fulgar possível à improvisação. Nesses
momentos que requerem fantasia, precisão e uma profunda cumplicidade, o Jaroslav era a
alma de nós todos e eu admirava o espantoso músico escondido atrás dessa espécie de
gigante que também (e antes de todos os outros) contava entre os valores devastados da
minha vida; tinha-me sido roubado e eu (para minha grande perda e minha vergonha) tinha
deixado que mo levassem, embora ele fosse talvez o meu companheiro mais fiel, mais
ingénuo, mais inocente.
Entretanto, o público tinha mudado pouco a pouco: aos que estavam sentados às mesas,
poucos de resto, que desde o começo nos seguiam com uma atenção cheia de entusiasmo,
tinha-se juntado um grupo de rapazes e raparigas que, instalados nas mesas livres, tinham
encomendado (aos gritos) copos de cerveja ou vinho e (à medida em que tinha subido o
nível das ondas de álcool) tinham feito questão de manifestar a sua necessidade selvagem
de serem vistos, ouvidos, reconhecidos. En-
297
tão, a atmosfera depressa mudou, tornou-se mais barulhenta e agitada (havia rapazes que
cambaleavam entre as mesas, chamavam-se uns aos
outros ou faziam sinal às raparigas), até que me surpreendi, distraído da nossa música, a
olhar para o jardim e a observar com franca hostilidade as caras dos fedelhos. Diante dessas
cabeças de cabelos compridos que escarravam com ostentação, para a esquerda e para a
direita, cuspo e palavras, senti ressurgir o meu velho ódio pela idade imatura e tive a
impressão de só ver actores a quem tivessem posto máscaras para fingir uma virilidade
estúpida, uma grosseria suficiente; e não considerava circunstância atenuante a possível
presença debaixo da máscara de outra cara (mais humana), porque o que era horrível,
justamente, era que as caras mascaradas estavam furiosamente cometidas à barbárie e à
vulgaridade das máscaras.
Acredito que Jaroslav partilhava dos meus sentimentos porque de re-
pente baixou o violino e confidenciou-nos que não lhe dava o menor prazer tocar diante de
um público daqueles. Sugeriu que nos fôssemos em-
bora, pelos campos fora, através do atalho, como dantes; o tempo está lindo, vai cair o
crepúsculo de um momento para o outro, a noite vai estar quente, vai haver estrelas,
paramos ao pé de uma roseira e tocamos só para nós, para nosso prazer, como fazíamos
dantes; agora há o cos-
tume (absurdo costume) de só tocar em sessões organizadas, e ele começava a estar farto
disso.
Ao começo todos aprovaram, quase com entusiasmo, visto que eles próprios sentiam que a
sua paixão pela música exigia um ambiente mais íntimo, mas o contrabaixo (o inspector
dos assuntos culturais) objectou a seguir que estava combinado que tocávamos até às nove
horas, que os camaradas do distrito e também o gerente do café contavam com isso, tinha
sido planificado assim, por isso devíamos cumprir a tarefa como nos tínhamos
comprometido sob pena de perturbar o desenrolar do programa das festas; poderíamos tocar
no campo uma outra vez.
Nesse momento acenderam-se as luzes suspensas em longos fios es-
tendidos entre as árvores; como ainda não estava noite e o dia apenas começava a baixar,
longe de dar uma luz viva, eram como que grandes lágrimas imóveis no espaço cinzento,
lágrimas brancas que não se podiam enxugar e que não podiam correr; uma espécie de
langor súbito, inexplicável, tinha-se abatido e ninguém tinha força para lhe resistir. Jaroslav
ainda disse (quase implorando desta vez) que não podia mais, que se queria ir embora para
os campos, para o pé da roseira, tocar para dar alegria, depois fez um gesto desencorajado,
apoiou o violino contra o peito e continuou.
298

Sem dar atenção ao público, tocávamos agora com mais recolhimento do que ao princípio;
quanto mais o clima do jardim era desenvolto e grosseiro, quanto mais nos rodeava da sua
indiferença barulhenta, fazendo de nós um ilhéu abandonado, mais a neurastenia se
apoderava de nós e mais mergulhávamos em nós mesmos, e tocávamos mais para nós do
que para os outros, esquecendo os outros, a música era uma cerca protectora na qual, entre
os bêbedos barulhentos, estávamos como numa campânula de vidro suspensa nas
profundidades das águas frias.
"Se as montanhas fossem de papel - se a água se volvesse em tinta
- e as estrelas em escribas - se todo o vasto mundo quisesse redigir
- nada chegaria ao fim - do testamento do meu amor", cantava Jaroslav sem descolar o
violino do peito, e eu sentia-me feliz nessas canções (na campânula de vidro dessas
canções) onde a tristeza não é ligeira, o riso não é um rito, o amor não é risível, o ódio não
é tímido, onde as pessoas amam corpo e alma (sim, Lúcia, corpo e alma), onde a felicidade
as faz dançar e o desespero saltar para o Danúbio, onde portanto o amor permanece amor, a
dor permanece dor, e onde os valores ainda não estão devastados, e parecia-me que no
interior dessas canções estava a minha saída, a minha marca original, a minha casa que eu
tinha traído mas que por isso era tanto mais a minha casa (porque a queixa mais an-
gustiante se levanta da nossa casa traída), mas ao mesmo tempo compreendia que essa
minha casa não era deste mundo (mas que minha casa
é essa, se não é deste mundo?), que tudo o que nós cantávamos era só uma recordação, um
monumento, a conversação imaginária do que já não existe, e sentia que o chão dessa casa
me fugia debaixo dos pés e
que eu escorregava, com o clarinete na boca, para a profundidade dos anos, dos séculos,
para uma profundidade sem fim (onde o amor é amor, dor é dor) e dizia-me com espanto
que a minha única casa era essa descida, essa queda, indagadora e ávida, e abandonei-me a
ela e à volúpia da minha vertigem.
Depois olhei para Jaroslav para verificar na sua cara se eu estava só na minha exaltação e
notei (urna lâmpada pendurada na ramagem da tília iluminava-lhe a cara) que ele estava
estranhamente pálido; já não can-
*ava enquanto tocava, tinha a boca fechada; os seus olhos assustados exprimiam ainda mais
receio, dava notas falsas, a mão que segurava o arco do violino tinha tendência para
escorregar. Depois deixou de tocar e desmoronou-se na cadeira, pus-me ao lado dele com
um joelho em terra.
"O que é que tens", perguntei-lhe; com a testa cheia de suor agarrava na parte de cima do
braço esquerdo. "Dói-me horrivelmente", disse ele. Os outros não se tinham apercebido da
indisposição de Jaroslav e
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entregavam-se ao transe da música, sem primeiro-violino e sem clarinete; o do címbalo,


aproveitando o silêncio dos dois, fazia maravilhas com o seu instrumento, apoiado só pelo
segundo-violino e o contrabaixo. Aproximei-me do segundo-violino (que Jaroslav me tinha
apresentado como médico) e levei-o junto do meu amigo. Só se ouvia o címbalo e o baixo
enquanto o segundo-violino tomava o pulso esquerdo de Jaroslav; e durante muito tempo,
muito, muito tempo, conservou-o na sua
mão; a seguir levantou-lhe as pálpebras e examinou-lhe os olhos; depois tocou na sua testa
húmida. "O coração?, perguntou. - O braço e o coração", respondeu Jaroslav, e estava
verde. Alertado por sua vez, o contrabaixo encostou o seu instrumento contra a tília e
juntou-se a nós, de maneira que só se ouvia o címbalo porque o cimbalista não se dava
conta de nada e tocava, feliz, em solo. "Vou telefonar para o hospital", disse o segundo-
violino. Prendi-o: "Mas o que é? - Tem o pulso por um fio. Sua gelo. Deve ser um enfarte. -
Bolas!, disse eu. - Não te preocupes, ele recupera", consolou-me ele antes de se precipitar
para o restaurante. As pessoas que ele teve de empurrar já estavam bêbedas de mais para
sequer perceberem que a nossa música se tinha calado: estavam ocupados unicamente com
eles próprios, com a sua cerveja, as futilidades e os insultos que, no outro lado do jardim,
tinham acabado de desencadear uma algazarra.
Finalmente o címbalo calou-se também e rodeámos Jaroslav, que olhou para mim e me
disse que tudo isto era porque tínhamos ficado ali e ele não queria ficar, queria que
fôssemos para o campo, ainda por cima eu tinha vindo, ainda por cima eu tinha voltado,
tínhamos podido tão bem tocar debaixo das estrelas. "Não fales tanto, disse-lhe eu, precisas
de calma", e pensei que sem dúvida ele escaparia a este enfarte, como disse o segundo-
violino, mas que depois seria uma vida completamente mudada, uma vida sem dedicação
apaixonada, sem tocar a fundo na or-
questra, o segundo acto, o acto depois da derrota, e veio-me a ideia que
que o momento do fim não coincide com a morte, e que o destino de Jaroslav tinha chegado
ao fim. Abatido por uma pena terrível, fiz festas na sua cabeça quase sem cabelos, nos
longos cabelos finos que tentavam tristemente cobrir a sua careca, e constatei com terror
que esta viagem à minha cidade na-
tal onde tinha querido atingir o odiado Zemanek me levava por fim a trazer nos meus
braços o meu amigo prostrado (sim, nesse instante via-me a pegar-lhe nos meus braços, a
pegar-lhe e a levá-lo, imenso e pesado, como se levasse a minha própria falta obscura, via-
me a levá-lo através da multidão, via-me a chorar).
300

Ficámos à volta dele mais ou menos dez minutos, depois o segundo-violino reapareceu e
fez-nos sinal; ajudámos Jaroslav a pôr-se de pé e, pegando-lhe debaixo dos braços,
mergulhámos com ele no barulho dos fedelhos bêbedos na rua, onde esperava, com as luzes
todas acesas, uma ambulância.
Acabado no dia 5 de Dezembro de 1965.
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NOTA DO AUTOR
Um dia, em 1961, fui ver uns amigos na região mineira onde vivi em tempos. Contaram-me
a história de uma jovem operária que roubava, para o seu amante, flores nos cemitérios. A
sua imagem não me largava e diante dos meus olhos desenhava-se o destino de uma mulher
jovem para quem o amor e a carne eram mundos separados, para quem a se-
xualidade estava nos antípodas do amor. Uma outra imagem se vinha juntar em contraponto
à da rapariga que roubava flores: um longo acto de amor que não era,em realidade senão
um soberbo acto de ódio. Assim nasceu a ideia do meu primeiro romance, que acabei em
Dezembro de 1965 e a que chamei A Brincadeira.
Os redactores da editora em Praga, dirigida pela União dos Escritores, gostaram dele
imediatamente, mas o manuscrito tinha de ser submetido à comissão de censura. Durante
um ano chamaram-me não sei quantas vezes. Pediam-me transformações profundas, cortes
imensos. Sempre recusei mudar o que quer que fosse e, curiosamente, as exigências dos
censores diminuíam de uma vez para a outra. História hoje difícil de acreditar: nos anos
sessenta, pela sua força de contágio, a mentalidade liberal decompunha o sistema,
culpabilizava o poder, de maneira que mesmo os censores não censuravam como devia ser;
para grande surpresa de toda a gente o manuscrito foi um dia mandado para a tipografia tal
qual era.
Uma vez editado (estávamos na Primavera de 1967), o romance foi acolhido com um favor
quase unânime e a União dos Escritores Checos concedeu-lhe o seu prêmio no ano de 1968.
Autor até aí pouco conhecido, vi num curto espaço de tempo três edições rapidamente
esgotadas e a tiragem global atingir 120 000 exemplares. Um ano depois, a invasão russa
deu a volta a tudo. A Brincadeira foi coberta de injúrias no de-
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curso de uma longa campanha de imprensa, proibida (como os meus ou-


tros livros) e retirada das bibliotecas públicas.
Em 1966, quando o destino do manuscrito impedido pela censura era ainda incerto,
Antonin Liehrn, um dos intelectuais checos mais cosmopolitas, agarrou numa cópia
dactilografada, trouxe-a clandestinamente para França e entregou-a a Aragon. Devo
relembrar aqui uma coisa pouco conhecida: Aragon ajudou muitas vezes os artistas do
outro lado da Cortina de Ferro; ao publicar artigos elogiosos sobre um espectáculo
ameaçado de interdição ou sobre um escritor perseguido, o semanário Les Lettres
Françaises (o único jornal cultural ocidental que se podia comprar nos países comunistas)
servia-lhes de escudo. Lembro-me, por exemplo, do prefácio que Aragon escreveu para a
tradução francesa de Uma Noite com HamIet, de VIadimir Holan', poeta que a seguir ao
golpe comunista de 1948 não tornou a sair do seu apartamento em Praga, onde se tinha
retirado ostensivamente, como se num mosteiro. Liehrn dirigiu-se pois a Aragon, que não
pôde resistir à sua insistência e que, sem conhecer o meu romance (ainda não estava
traduzido), o recomendou a Claude Gallimard com toda a sua autoridade e prometeu um
prefácio que co-
meçou a escrever - assim quis o acaso - em Agosto de 1968, quando a Checoslováquia foi
invadida. Foi assim que nasceu um muito belo texto de um pessimismo lúcido ("Recuso-me
a acreditar que lá se vai fazer um
Biafra do espírito. No entanto não vejo nenhuma claridade no fim deste caminho de
violência"), um ajuste de contas com o comunismo único na sua obra. Este texto, que
durante dezasseis anos conservei como prefácio de A Brincadeira, não diz grande coisa
sobre o meu livro mas, juntamente com o inesquecível artigo de lonesco publicado no
Figaro, é uma das raras palavras pul !icadas em França sobre a tragédia de Praga e me-
rece não ser esquecido.
Em Outubro de 1968, Claude Gallimard convidou-me para vir a Paris assistir à saída do
meu romance. Foi então que vi Aragon pela primeira vez, na sua casa da Rue de Varenne.
Estavam lá um velho cientista russo e a mulher. Como muitas pessoas dos países
comunistas, viam em Aragon um liberal cuja influência sobre as autoridades do seu país
podia proteger os intelectuais não ortodoxos. "Louis, insistiam eles, não se pode romper
com a Rússia. É preciso fazer a distinção entre o russo e o seu Governo! É preciso que você
volte à Rússia! " Aragon, extasiado pelo furor que a invasão da Checoslováquia lhe tinha
inspirado,
1 VIadimir Holan; Une nuit avec Hamiet, Gallimard, 1968.
303

de cabeça erguida, a andar de um lado para o outro na sala, respondeu: "Mesmo que eu
quisesse lá ir, as minhas pernas haviam de recusar-se." Admirava-o. Alguns anos mais tarde
as suas pernas, na máxima obediência, levaram-no a Moscovo, onde ele se deixou
condecorar por Brejnev, e ainda alguns anos mais tarde obedeceram-lhe de novo e levaram-
no até à tribuna do congresso do Partido que aplaudia outra invasão, a do Afeganistão...
Apesar de tudo, sem ele, A Brincadeira nunca teria visto a
luz do dia em França e o meu destino teria tomado um caminho completamente diferente (e
certamente bem menos feliz). No momento em que, na Checoslováquia, o meu nome era
banido das letras checas (e certamente que para sempre porque "não vejo nenhuma
claridade no fim deste caminho de violência"), o aparecimento de A Brincadeira na editora
Gallimard lançou o meu romance no mundo inteiro, de maneira que em vez
dos leitores checos subitamente perdidos obtive (do mesmo modo súbito) leitores novos.
Um dia, em 1979, Alain Finkielkraut entrevistou-me longamente para o Corriere della Sera.
"O seu estilo, florido e barroco em A Brincadeira, tornou-se despojado e límpido nos seus
livros seguintes. Porquê esta mu-
dança?" O quê? O meu estilo florido e barroco? Então li pela primeira vez a versão francesa
de A Brincadeira. (Até aí não tinha o costume de ler e controlar as minhas traduções; hoje,
infelizmente, consagro a essa
actividade sisifiana quase mais tempo do que à escrita propriamente dita.) Fiquei
estupefacto. Sobretudo a partir do segundo quarto, o tradutor (ah!, não, não era François
Kérel, que se veio a ocupar dos meus livros se-
guintes) não traduziu o romance; reescreveu-o:
1) Introduziu uma centena (verdade!) de mefáforas de embelezamento (eu dizia: o céu
estava azul; ele dizia: sob um céu de pervinca Outubro içava o seu pavês faustoso; eu dizia:
as árvores estavam coloridas; ele dizia: nas árvores pululava uma polifonia de tons; eu
dizia: ela começou a bater no ar furiosamente à volta dela; ele dizia: os seus punhos
desbragavam-se em moinho de vento frenético; eu dizia: fiquei triste; ele dizia: fiquei preso
no nó corredio de uma enorme tristeza; eu dizia: Lú-
cia perdoa; ele dizia: ela concede a esmola do seu perdão; eu dizia: He-
lena saltava de alegria; ele dizia: ela saltava num sabbat diabólico, etc., etc.).
2) Ludvik, narrador de dois terços do romance, exprime-se na minha
versão numa linguagem sóbria e precisa; na tradução tornou-se um cabotino afectado que
misturava calão, preciosidades e arcaísmos para tornar o seu discurso engraçado a todo o
custo (na minha versão: as mulhe-
res estão nuas; na tradução: trazem o traje de Eva: na minha versão:
304

bateu-lhe com uma garrafa na cabeça; na tradução: enfiou-lhe urna garrafada na pinha; na
minha versão: um médico volta o corpo morto de Alexej; na tradução: vira-o como um
crepe; na minha versão: um harmónio emite urna série de sons; na tradução, emite uma
série de borborigmos; na minha versão, Helena fala em voz baixa; na tradução, ela arrulha;
na minha versão, ela diz a Ludvik: "Você não é um fala-barato! "; na tradução: "As saladas
não são a sua especialidade! "; etc., etc.). Desta maneira, o carácter das personagens foi
desnaturado: Helena tornou-se caricaturalmente pateta; Lúcia não passava de uma pobre
rapariga falhada.
3) Na minha versão, as reflexões são de uma exactidão escrupulosa; na tradução mal se
percebiam; por causa das fórmulas subtilizadas#("os momentos decisivos na evolução do
amor" tornaram-se "os nós que permitem ao amor subir", "a história de nós os dois" tornou-
se "a trama de acontecimentos que nós tecemos juntos"; etc., etc.), mas também porque o
tradutor seguiu de maneira desmesurada a famosa regra do "bom estilo", que proíbe a
repetição da mesma palavra. Sempre execrei essa regra. O pensamento que se quer exacto
não pode jogar com sinónimos. Além de que a repetição dá ao meu texto um ritmo, uma
melodia, que na tradução desapareceram completamente. (Só Claude Roy, na sua crítica no
Nouvel Observateur, deu nessa altura pela impressionante falta de música em A
Brincadeira.)
Sim, ainda hoje isso me faz sofrer. Pensar que durante doze anos, em numerosas
reimpressões, A Brincadeira se exibia em França sob essa roupagem extravagante!...
Durante dois anos, com Claude Courtot, refiz a tradução. A nova versão ("inteiramente
revista por Claude Courtot e pelo autor") apareceu em 1980. Quatro anos mais tarde reli
essa versão corrigida. Achei perfeito tudo o que tínhamos mudado e corrigido. Mas
infelizmente descobri quantas afectações, frases complicadas, inexactidões, obscuridades e
exageros me tinham escapado! Acontece que na altura o meu conhecimento do francês não
era suficientemente subtil e Claude Courtot (que não sabe checo) só tinha podido corrigir o
texto nas passagens que eu lhe tinha indicado. Acabo por isso de passar de novo alguns
meses à volta de A Brincadeira. Mme Claudine Méal, que nas Edições Gallimard trata dos
meus livros, deu-me uma ajuda inestimável, sem a qual, sem dúvida, esta versão enfim
definitiva da tradução nunca teria visto a luz do dia
1 Claude Courtot, autor do admirável Bonjour, monsieur Courtot! (Ellébore, 1984), é um
desses escritores secretos por quem 'nutro a mais profunda estima.
305

_ft`I
("tradução do checo de Marcel Aymonin, inteiramente revista por Claude Courtot e pelo
autor - versão definitiva").
A história de A Brincadeira entre Praga e Paris está a acabar. Em
1967, na atmosfera já muito liberal da anteprimavera de Praga, o meu
livro não causou a menor sensação política. Para se compreender a maneira como este
romance foi @colhido na Boémia, cito de memória alguns títulos de artigos nessa altura
consagrados a A Brincadeira em revistas checas: "A ironia e a nostalgia"; "A versão anti-
sartreana do romance existencial"; "A lição de anatomia do paradoxo"; "A fenomenologia e
o romance"; "A geometria de A Brincadeira". O acolhimento em Paris, no ano seguinte,
envaideceu-me e entristeceu-me ao mesmo tempo: o meu
romance foi coberto de elogios, mas lido de uma maneira unilateralmente política. A culpa
foi das circunstâncias históricas do momento (o romance apareceu dois meses após a
invasão), do prefácio de Aragon (que apenas falou de política), dos comunicados para a
imprensa, da tradução (que fazia eclipsar-se o aspecto artístico do romance) e também da
transformação progressiva da crítica literária ocidental em comentário jornalístico
apressado, sujeito à ditadura da actualidade. Hoje, no entanto, os trituradores da actualidade
já há muito se esqueceram da Primavera de Praga e da invasão russa. Graças a este
esquecimento, paradoxalmente, A Brincadeira vai por fim poder ser aquilo que sempre foi:
romance e nada mais que romance.
Maio de 1985
306

v-

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