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Vânia Rego
Macao Polytechnic Institute
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All content following this page was uploaded by Vânia Rego on 11 May 2019.
Vânia Rego ∗
Uma das muitas estratégias para atrair alunos para o estudo da língua
portuguesa no estrangeiro é mencionar a lusofonia. Por entre o leque
de argumentos comummente utilizados encontramos a questão do valor
económico ou do potencial valor económico da língua portuguesa
(PINTO, 2008; RETO, 2012), fator evocado como forma de cativar o
interesse de alunos que poderão ver na língua portuguesa um
instrumento de trabalho e de valorização profissional aquando da sua
entrada no mercado de trabalho. Outro dos argumentos
frequentemente esgrimidos prende-se com quantificações: faz-se
referência aos mais de 200 milhões de falantes, presentes em oito
países, dispersos em quatro continentes ou ainda à vertente
internacional da língua portuguesa, isto é, língua de trabalho ou pelo
menos presente em instituições internacionais como a União Europeia,
a Organização das Nações Unidas, o MERCOSUL, a União Africana,
entre outras (AA. VV., 2009). Sem sermos exaustivos, podemos ainda
evocar a questão muitas vezes levantada de a língua portuguesa ser
apresentada como um fator de relevo na união de culturas.
Quando as instituições académicas se servem destes argumentos,
procuram mostrar a importância do português no mundo e de que
forma se acredita que essa importância poderá ter algum impacto na
vida futura dos estudantes. No entanto, estes argumentos têm como
consequência direta colocar o professor de Português Língua
Estrangeira (PLE) face a uma circunstância para a qual ele não foi
devidamente preparado: ensinar a língua e a cultura da lusofonia, isto é,
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dado que essa escolha deve resultar de uma opção pessoal do professor
tendo em conta a norma na qual se sente mais confortável, desde que
essa opção não constitua um motivo de desvalorização das restantes
(CHRISTIANO, 2017). As considerações que aqui tecerei prendem-se
com a dificuldade na seleção de conteúdos a ensinar face a uma
realidade cultural tão diversa e tão complexa quanto a que envolve os
diferentes países de língua portuguesa.
Como lecionar disciplinas de história, cultura, literatura dos países
de língua portuguesa quando não se foi formado em termos de
conhecimentos históricos, sociológicos, antropológicos, culturais,
literários e até linguísticos? Num mundo ideal, a cultura popular
portuguesa teria uma resposta muito clara a esta questão: “cada macaco
no seu galho”, isto é, cada especialista ensina o seu domínio de
especialidade. No entanto, na prática, o que acontece é que as
necessidades institucionais, quer sejam de distribuição de serviço, quer
sejam de simples falta de especialistas, acabam por determinar outras
soluções.
O professor é, deste modo, empurrado para uma aula
extremamente complexa sem ter tido o tempo de preparação ideal, sem
ter aprendido o que são e como são ao certo todos estes países, sem ter
refletido sobre os acontecimentos contemporâneos a si e aos alunos,
pensando-os de um ponto de vista distanciado e ajudado pelos estudos
académicos em torno das questões fulcrais para compreender um país,
uma identidade, um povo, mas também das questões históricas que
levaram a certas circunstâncias do presente. Por todas estas razões, para
a maioria dos professores de PLE, é mais fácil explicar o pretérito
perfeito simples ou a voz passiva em português do que a crise política
na Guiné-Bissau.
Ao longo da formação inicial nas diferentes licenciaturas,
adquirem-se muitos conhecimentos normativos na língua que se vai
ensinar, adquire-se muitas vezes um certo distanciamento reflexivo
relativamente a certas questões gramaticais, mas nem sempre se
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a cultura lusófona.
Para o professor de PLE, esta pode ser a ocasião de demonstrar
uma riqueza histórica e que transforma o objeto de estudo dos alunos
numa caixa de surpresas com uma imensa riqueza cultural. A língua
portuguesa, habitualmente dissecada apenas na sua gramática, explorada
em termos vocabulares e sintáticos, pode transformar-se no ponto de
partida para o estudo da história dos países de língua portuguesa e de
como os contactos históricos entre povos a enriqueceram e a marcaram
para sempre.
Por outro lado, o vocabulário da língua portuguesa também serviu
para enriquecer outras línguas, por exemplo, a palavra mango no inglês
vem da palavra manga do português (que por sua vez vem do malaiala
da Índia); a palavra zebra, trazida pelos portugueses da região da atual
República Democrática do Congo, de uma língua de origem bantu, foi
adotada por praticamente todas as línguas europeias; a palavra laranja,
introduzida na língua portuguesa através do árabe naranja (derivada já
do persa e do sânscrito), está associada na Europa aos portugueses e a
Portugal, dado que eram os portugueses quem se dedicava ao comércio
de laranjas doces no século XVI na Europa (e não é demais relembrar
que este fruto é originário da China) e, por esta razão, muitos países
europeus adotaram como nome deste fruto uma palavra que significa
“portuguesas” nas suas línguas: assim, em grego, laranja diz-se portokali,
em turco portakal e em diferentes dialetos italianos diz-se portocala e
portogallo. Em japonês é comum falar-se na palavra tempura para mostrar
a influência do português, mas também podemos encontrar na língua
japonesa outras palavras de origem portuguesa, como é o caso da
palavra pan, que significa pão e biidoro que significa vidro, entre muitas
outras palavras que designam comidas e objetos de decoração e/ou de
construção de casas. Estas questões linguísticas estão tratadas e são,
com frequência, listadas em livros e artigos académicos sobre história
da língua portuguesa presentes nas bibliotecas e disponibilizados em
linha por diferentes universidades, sobretudo portuguesas e brasileiras,
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independente de Castela.
Podemos também evocar traços do urbanismo que marcam os
diferentes países lusófonos, como a calçada portuguesa, que existe não
só em Portugal, Brasil e restantes países lusófonos, como em regiões
como Goa, Macau e pode até ser encontrada em ruas e edifícios de
cidades como Hong Kong, Pequim e Xangai, refletindo não só um
percurso histórico dos elementos urbanísticos de influência portuguesa,
mas também o reconhecimento estético de tais elementos. Claro que
em regiões como Macau, observar a calçada portuguesa e os nomes de
ruas de Macau é um fator que pode despertar facilmente a curiosidade e
a compreensão dos alunos para um passado comum, mas o mesmo
exercício pode ser feito com alunos de todo o mundo que podem ficar
a descobrir esses elementos em pontos do mundo até então
desconhecidos.
Apesar de partir de referências maioritariamente portuguesas nos
exemplos anteriores, este mesmo exercício pode ser feito para todos os
outros países, pois todos têm eventos históricos e aspetos culturais
partilhados com o resto do mundo. Penso, por exemplo, no caso da
Bossa Nova, movimento musical brasileiro que se disseminou pelo
mundo no final dos anos 50 e nos anos 60 e que, embora tenha perdido
o seu fulgor no Brasil, continua a ser apreciado como um símbolo do
Brasil noutros lugares do mundo, sendo inclusivamente um estilo
musical que pode ser cantado nas línguas maternas dos músicos, como
acontece no Japão, na França ou nos Estados Unidos.
Referências
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20 | Actas do 4.º Fórum Internacional do Ensino da Língua Portuguesa na China
https://www.youtube.com/watch?v=nndGk1Ci2Bo&t=237s
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Texto Editores.