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SEÇÃO II

A QUESTÃO DA EVIDÊNCIA

Introdução

A questão sobre a essência da evidência é daquelas que ocupam lugar preeminente na


filosofia em geral e na teoria do conhecimento em específico. Mas é na fenomenologia, diz
Heffernan (1999), que ela se reveste de um particular interesse.
Até certo ponto, predomina na filosofia em geral o ponto de vista lógico segundo o
qual a evidência é a marca da verdade necessária. O lógico “reduz a evidência à evidência racional
apodítica”, portanto, ao juízo “absolutamente indubitável”1. A evidência seria então o caráter de
necessidade e de apoditicidade das leis lógicas, e funcionaria assim como critério de
reconhecimento dessas leis. Na teoria do conhecimento em específico predomina a perspectiva
psicologista segundo a qual a palavra “evidência” designa “um caráter psíquico particular e bem
conhecido conforme a experiência íntima de cada um, um sentimento de natureza própria que
garante a verdade do juízo ao qual ele se relaciona”2.
Com relação ao primeiro ponto de vista, presente em geral na filosofia, Husserl
chama a atenção para certa insuficiência no “interesse pelo jogo lógico”. Nas palavras de Castilho
(2015, p. 32), o lógico encontra nas formações da linguagem o ponto de partida do seu trabalho, ele
as examina, distingue, relaciona, e assim por diante. Ele considera essas formações um “testemunho
de que o conhecimento já fez sua obra”, sabendo, por um lado, que seu modo de operar é reflexivo,
logo, posterior; e sabendo distinguir, por outro lado, o que se apresenta como conhecimento efetivo
e o que se apresenta como mera pretensão de conhecimento, suscetível de impugnação futura.
As regras do jogo (Spielregeln) permitem reflexivamente o exame, a distinção, a
relação, etc. O problema que surge é que elas conduzem, necessariamente, a uma Lógica da
verdade, e neste caso só são capazes de fornecer “as condições meramente negativas” da
possibilidade de juízos verdadeiros, isto é, as condições de validade e de não-contradição dos
argumentos. Assim, na mesma medida em que o ato de juízo que transgride as condições não
alcança a verdade, o ato de juízo que as obedece nem por isso é capaz de atingi-la 3. O ato de

1 Hua XVII § 60, p. 144.


2 Hua XVIII, § 49, p. 180.
3 “Assim eles só encerram as condições por assim dizer puramente negativas da possibilidade da verdade: um ato de
juízo que as violasse não poderia ter por resultado a verdade, nem, do ponto de vista subjetivo, a evidência, ele não
poderia ser um juízo evidente” (HUSSERL, Erfahrung und Urteil. Untersuchungen zur Genealogie der Logik.
Introdução, § 3, p. 8).
alcançar só acontece se são satisfeitas condições suplementares que “provêm da subjetividade” e
“dizem respeito à evidência, ou melhor, à efetuação da evidência” (CASTILHO, 2015, p. 33). A
proposta de Husserl, pelas razões supramencionadas, é que o estudo das formas e das leis pela
lógica deve ser seguido do estudo das condições subjetivas de efetuação da evidência (pela
fenomenologia).
Com relação ao segundo ponto de vista, próprio do empirismo psicologista, Husserl é
ainda mais radical, e rejeita veementemente a hipótese de que a evidência seja algum tipo de
sentimento. Para ele, não se trata em absoluto de algum tipo de sentimento acessório, que,
acidentalmente, ou conforme alguma suposta lei da natureza, juntar-se-ia a determinados juízos,
assim como os conteúdos sensoriais se vinculam a determinados conteúdos afetivos. Husserl reitera
assim, alto e bom som, que a evidência não possui um caráter psíquico4.
No final das contas, como diz Castilho (op. cit., p. 35), a Lógica tradicional e a
psicologia incidem no mesmo erro em se tratando da concepção geral da evidência: a Lógica, ao
operar “a identificação entre evidência e apoditicidade” e ao conceber a evidência como “critério
incondicional, absoluto”, fica paralisada diante desse criterium, ao passo que a Psicologia busca
registrar empiricamente ocasiões especiais de evidência que permitam ao psicólogo evitar o erro e
alcançar a verdade. Ambas perdem de vista determinações fenomenológicas fundamentais da
evidência.
Mas quais são, exatamente, as objeções levantadas contra a ideia de um suposto
sentimento de evidência que emprestasse aos juízos uma coloração emotiva? Por que a severidade
na oposição a ela? Husserl, praticamente, repele a teoria sentimental da evidência como “um index
veri místico”, “sentimentos inventados teoricamente”, ou seja, ficções psicológicas que “são
4 Heffernan (op. cit., pp. 158-159) realizou um estudo aprofundado da controvérsia que Husserl manteve com os
psicologistas sobre o estatuto da evidência. O autor apresenta um sumário com os proponentes da concepção de que a
evidência é um sentimento de necessidade ou de necessitação. Seu estudo mostra que a concepção é antecipada na
modernidade por David Hume, para quem o sentimento é um fator que permite distinguir a crença em confiável e não-
confiável. A origem remota da posição psicologista, a partir de Hume, encontra-se em Schleiermacher, para quem o
sentimento de evidência é primária e ultimamente o critério de decisão sobre a veracidade do conhecimento. A posição,
porém, ganha impulso de Ziegler, que propõe que “todo pensamento que reivindica ter validez necessária deve repousar
em um sentimento de evidência ou um sentimento de coerção”. Em grande parte, na verdade, os psicologistas alemães
seguem a proposta de Mill, que concebe a lógica como uma psicologia da evidência. “De acordo com Sigwart, a
evidência é um sentimento subjetivo e inerente de necessidade”. Höfler e Meinong, por sua vez, têm a evidência na
conta de um “fenômeno psíquico que envolve a intuição”. Para Rickert, a evidência é “no começo um sentimento de
prazer que indica a verdade”. Wundt, ao contrário, defende que evidência “é outra palavra para a intuitividade” e que o
estudo de suas leis é da alçada da psicologia. Elsenhans irá concebê-la como “um sentimento intelectual que envolve a
satisfação de um interesse”. Eisler a define como obviedade ou intuitividade”. Schmidkunz, por seu turno, a caracteriza
como aquilo que dispensa fundamentação, pois é algo que se auto-justifica. Isenkrahe recorre a uma definição
etimológica argumentando que devemos nos afastar dos atributos substantivos da evidência para encetar, ao contrário,
“uma apreciação completa de suas dimensões verbais”. Geyser, por último, define a “evidência’ nos termos de uma
presença”. Além dos representantes do psicologismo, o estudo de Heffernan traz a posição assumida por Brentano, que
afirma que a evidência “é uma característica especial dos atos intuitivos ou uma distinta peculiaridade de certos juízos”
e que nega haver graus ou níveis de evidência; e a posição crítica assumida por Heidegger em relação à noção de
evidência de Husserl.
possíveis somente enquanto ainda não se aprendeu a analisar os tipos de consciência em visão pura
e na forma de essências, em vez de fazer, de cima para baixo, teorias a respeito deles.”5
Uma pergunta que está no começo da caracterização fenomenológica da evidência é:
como colocar esta em relações de essência com o ver habitual? De saída, Husserl estabelece nos
Prolegômenos uma diferença entre “evidência real” e “evidência ideal”. Como sabido, o contexto
dessa divisão é a controvérsia com o psicologismo, que tende a reduzir o ideal ao real ao
psicologizar as leis lógicas e defender que o fundamento da lógica situa-se na psicologia. Para
Husserl, a solução dessa controvérsia deve ser buscada no conhecimento exato da diferença entre
real e ideal. A tarefa fundamental da teoria do conhecimento é elucidar todas as diferenças que se
desdobram dessa diferença inicial: leis, verdades, ciências, generalidades, singularidades, etc. Um
modo de destacar aquela diferença é mostrar que há uma infinidade de conversões possíveis entre
proposições reais e ideais. Quer dizer: a verdade é uma unidade ideal que admite ser convertida
numa “multiplicidade infinita e ilimitada de enunciados exatos de mesma forma e de mesma
matéria”6.
Por exemplo, os princípios combinados da contradição e do terceiro excluído são
equivalentes à proposição: “a evidência pode intervir para um, mas somente para um dos membros
de uma dupla de juízos contraditórios”. A é verdadeiro, por sua vez, pode ser vertido para “é
possível para qualquer um julgar com evidência que A existe”. Do mesmo modo, o resultado do
Teorema de Pitágoras: em um triângulo retângulo, a soma do quadrado dos catetos é igual ao
quadrado da hipotenusa, pode ser convertido numa proposição equivalente: “é possível para
qualquer pessoa demonstrar com evidência que a soma do quadrado dos catetos é igual ao quadrado
da hipotenusa”.
Para Husserl, a evidência intelectual da conexão entre proposições equivalentes
fornece “os meios de refutar a tentativa de reduzir a lógica pura a uma psicologia da evidência” 7.
Isso porque as leis ideais da lógica, para serem verdadeiras, não dependem em absoluto de seus
equivalentes reais empíricos. Do mesmo modo que o enunciado a + b = b + a assevera que a soma
de dois números é independente de sua posição na combinação, ele se mostra igualmente
independente dos atos de numeração e de adição efetuados por qualquer pessoa que seja em
qualquer época ou lugar. Salta aos olhos que as relações e leis ideais da matemática formam um
domínio próprio de investigação que em nada depende das operações reais de contar, numerar e
calcular. A sua evidência, portanto, é ideal; logo, irredutível aos sentimentos reais daquele que julga
ou que opera matematicamente.
5 Hua III, § 21, p. 65.
6 Hua XVIII, § 49, p. 180
7 Ibid. § 50, p. 184
A distinção entre real e ideal é corroborada ainda pelos casos em que a evidência se
realiza idealmente, mas não de modo real. Há números decimais com trilhões de caracteres
decimais, diz Husserl, e verdades que com eles se relacionam. “Mas ninguém é capaz de representar
realmente tais números nem efetuar as respectivas adições e multiplicações (…). A evidência, nesse
caso, é psicologicamente impossível, contudo, idealmente falando, ela é sem sombra de dúvida um
vivido possível”8.
Porém, mesmo que fique claramente assinalada e estabelecida essa diferença, seria
preciso ainda ter a clara compreensão do que é o ideal em si em relação ao real, e de que modo eles
estão referidos um ao outro. Reconhece Husserl que a divisão entre “teoria da evidência real” e
“teoria da evidência ideal” não é suficiente, porque ela pressupõe conceitos corretos de “evidência”
e “verdade”, que precisam ser determinados. Mas como levar esta determinação a termo?
Ao longo de sua produção filosófica, Husserl se exprimiu por diversas vezes sobre a
evidência em termos de teoria, problema, condições, ideal, sentido lato, sentido estrito,
fenomenologia da evidência, diferenças, legalidade, hierarquia, graus de evidência, gradação dos
problemas sobre a evidência, etc. A evidência constitui ao mesmo tempo um princípio, um método e
uma meta a ser perseguida9. Como se vê, ela candidata-se à posição de um dos conceitos de mais
amplo alcance em toda fenomenologia. Mas podemos introduzir na sequência uma concisa
compilação daquilo que diz Husserl sobre ela nalgumas de suas obras:
No parágrafo 51 dos Prolegômenos a uma Lógica Pura, a evidência é considerada
nada mais do que a “vivência” da verdade (Evidenz ist vielmehr nichts anderes als das “Erlebnis”
der Wahrheit.)
Nas Investigações Lógicas, Husserl privilegia na determinação da evidência a noção
de preenchimento (Erfüllung); na Sexta Investigação em particular, são apresentadas quatro
definições ligadas a uma leitura fenomenológica da concepção tradicional da verdade como
adæquatio.
No parágrafo 30 de Introdução à Lógica e à Teoria do Conhecimento, o problema da
evidência (Problem der Evidenz) é identificado com o problema da doação (Problem der
Gegebenheit), e Husserl diz que, “manifestamente, a evidência não é nada mais do que um título
para o caráter da doação” (Offenbar, ist Evidenz nichts anderes als ein Name für den Charakter der
Gegebenheit).
Na lição 5 da Ideia da Fenomenologia, por sua vez, a evidência é descrita como a
“autodoação no sentido absoluto” (Selbstgegebenheit im absoluten Sinn) e Husserl afirma que a

8 Ibid. § 50, p. 185


9 Cf., a propósito, o texto “Evidenz als Prinzip, Methode und Ziel der Phänomenologie” de Gerd Brand.
“evidência e o dar-se de algo são conceitos coextensivos: até onde chega a evidência efetiva chega
também o dar-se algo” (soweit wirkliche Evidenz reicht, soweit reicht Gegebenheit).
No parágrafo 137 de Ideias, tem-se a evidência na conta de uma posição
racionalmente motivada, de uma “tese racional caracterizada por uma referência motivacional ao
caráter originário da doação” (eine Motivationsbeziehung auf Originarität der Gegebenheit
charakterisierte Vernunftthesis).
Nas lições sobre Filosofia Primeira Parte II, no capítulo II chamado “A ideia da
evidência apodítica e a problemática do começo”, Husserl diz, sobre a relação entre evidência e o
problema do começo, que, na qualidade de filósofo que começa, ele não pode contentar-se com
nada menos do que “o acesso absoluto àquilo que nós visamos no conhecimento”, sem subsistir a
menor incerteza. A evidência é novamente caracterizada como a posse da coisa mesma na
autodoação originária, e “o ‘conhecido com evidência’ (Eingesehene) não é nada mais que a ‘coisa
mesma’ (Es selbst) em relação ao que é visado, que, por isso, é ao mesmo tempo o visado e o objeto
possuído em pessoa (Selbstgehabtes), o apreendido em pessoa”10.
No parágrafo 59 de Lógica Formal e Transcendental, chamado “Caracterização geral
da evidência enquanto doação das coisas mesmas”, Husserl formula o conceito de evidência como
“a efetuação intencional da doação das coisas mesmas” (die intentionale Leistung der
Selbstgebung).
No parágrafo 5 das Meditações Cartesianas, Husserl toma a evidência no sentido
mais abrangente do termo (allerweitesten Sinne) como a “experiência de um ente e de seu modo
entitativo, mais precisamente, de uma coisa ela mesma atingida pelo olhar do espírito.” (Erfahrung
von Seiendem und So-Seiendem, eben ein Es-selbst-geistig-zu-Gesicht-bekommen).
No parágrafo 4 de Experiência e Juízo, diz Husserl que o “discurso sobre evidência,
doação evidente, nada mais significa do que a doação dos objetos em sua ipseidade” (Die Rede von
Evidenz, evidenter Gegebenheit, besagt hier also nichts anderes als Seibstgegebenheit).
No texto A questão acerca da origem da Geometria como problema intencional
histórico, publicado como anexo III da Krisis, Husserl afirma que a evidência “não diz
absolutamente mais nada do que o apreender de um ente na consciência do seu si próprio aí
originário” (Evidenz besagt gar nichts anderes als Erfassen eines Seienden im Bewußtsein seines
originalen Selbst-da).
Pode-se reter dentro do quadro acima, como faz Heffernan (op. cit., p. 83), as duas
posições centrais de Husserl na tentativa de responder a questão: o que é a evidência? A posição
tomada pelo Husserl precoce das Investigações Lógicas, para quem “a evidência é o Erlebnis da

10 Hua VIII, Lição 31, p. 35.


verdade”; e a posição assumida pelo Husserl maduro em Lógica Formal e Transcendental e nas
Meditações Cartesianas, para quem “a evidência é a efetuação intencional da doação da coisa
mesma”. Há profundas alterações de concepção da primeira tentativa de definição para a segunda,
mas isso não significa que a posição do primeiro Husserl seja excluída pela do segundo.
Algo interessante a ser destacado na escrita da maior parte dessas formulações é que
Husserl recorre à expressão “nichts anderes als” para predicar a evidência, o sujeito dos enunciados
em questão. A expressão, que diz “nada mais do que”, parece realçar no fenômeno da evidência o
caráter de absoluta simplicidade e independência, ou seja, é um fenômeno que dispensa prova, é
auto-probante, que não precisa da admissão de nenhuma outra verdade, além da sua própria, para
manifestar-se diante dos olhos como verdadeiro11. Em suma, tratar-se-ia de um princípio. Um
princípio, por definição, não exige demonstração, por possuir, dentro da estrutura argumentativa da
lógica, um caráter axiomático. Assim, uma definição lógica de evidência já implicaria,
essencialmente, uma “petição de princípio”, na medida em que o definiendum estaria, de antemão,
pressuposto no definiens. Como entender, então, a descrição fenomenológica da evidência em
termos de princípio?

2.1 A evidência como princípio

Como diz Fink, a evidência é daqueles conceitos de Husserl sobre os quais algo já foi
decidido de antemão e que se encontra, por isso, dependente do “spekulativ12 da fenomenologia”
(CASTILHO, 2015, p. 30). Isso quer dizer que houve, de saída, uma decisão prévia sobre o estatuto
da evidência; temo-la, por isso, conceitualmente à mão naquele domínio fenomenológico das coisas
já-decididas13. Mas o que, exatamente, se decidiu? Em primeiro lugar, que a evidência não diz nada
11 A atual influência da língua inglesa sobre o idioma português pode levar a um “estrago fenomenológico” do conceito
de evidência, pois em inglês a palavra “evidence” comporta no geral o sentido de “indício” ou “elemento de prova”. A
soma de um conjunto de “evidences” resultaria ao final numa “proof”. Nas línguas latinas em geral, a palavra
“evidência” contém um significado mais próximo do sentido que Aristóteles dava ao termo, quando, nos Analíticos
Posteriores, ele dizia que os primeiros princípios da demonstração lógica são autoevidentes e não precisam ser
demonstrados, pois são conhecidos por um ato intuitivo imediato; logo, o conhecimento deles é um conhecimento por
presença e o desconhecimento deles é uma ignorância por ausência. Santo Tomás de Aquino, por sua vez, concebe a
evidência como uma propriedade da verdade e há dois tipos básicos de evidência: (I) o evidente primeiro, que é per se
nota ou quod se, algo que é em si e por si, e não meramente quoad nos, para nós, e que se manifesta à nossa inteligência
de modo imediato; e (II) o evidente segundo, obtido por demonstração num raciocínio através do termo médio.
12 Para mais detalhes, cf. FINK, Eugen. A análise intencional e o problema do pensamento especulativo. Comunicação
ao “Colóquio Internacional de Fenomenologia” realizado em Bruxelas de 12 a 14 de abril de 1951. Tradução de Fausto
Castilho. In: Problèmes actuels de la Phénoménologie, ed. H. L. van Breda, Desclée de Browner, 1952, Paris, pp. 53-86.
13 O lugar aqui não é o mais apropriado para discutir com Fink o significado exato do conceito de “especulação”. De
qualquer modo, ele não é usado no sentido tradicional, que entenderia especular como apostar as fichas numa
“hipótese” desprovida de prova empírica que apresenta maior ou menor probabilidade de concordância com a coisa
“real” “hipotetizada no vazio”. A decisão não tem um caráter arbitrário? E como fica a ligação da evidência com o ato
de ver? Em Husserl, tratar-se-ia efetivamente de uma decisão, ou, antes, de uma simples fidelidade àquilo que se mostra
na visão? Uma questão a ser ponderada, por exemplo, a partir desta passagem em Hua III, § 24, p. 69: “Se vemos um
mais do que um começo absoluto, ela é um ponto de partida, um “principium”, em conformidade
com o princípio de todos os princípios da fenomenologia (das Prinzip aller Prinzipien):
(…) toda intuição doadora originária é uma fonte de legitimação do
conhecimento, tudo que nos é oferecido originariamente na “intuição” (por assim
dizer, em sua efetividade de carne e osso) deve ser simplesmente tomado tal como
ele se dá, mas também apenas nos limites dentro dos quais ele se dá. Vemos com
clareza que toda teoria só poderia tirar sua verdade dos dados originários 14.

Nas Meditações Cartesianas a evidência é nomeada o “primeiro princípio metódico”,


que, uma vez assumido, destina-se a reger todos os passos ulteriores da investigação científica:
“(…) eu não poderei evidentemente emitir nem aceitar como válido nenhum juízo, se eu não o tiver
formulado na evidência, isto é, em ‘experiências’ nas quais as ‘coisas’ e os ‘fatos’ em questão se
fazem presentes ‘eles mesmos’ diante de mim”15.
Além de primeiro princípio, a evidência é, em segundo lugar, um recurso que permite
decidir toda questão de direito ou de razão na fenomenologia. Ou seja, “toda justificação procede da
evidência”16. Vale sublinhar na passagem acima a menção ao limite, que significa termo. “É pelo
fato de que a evidência fundamenta em última instância que a Análise Intencional faz dela o termo
da mostração, além do qual já não há o que mostrar” (CASTILHO, 2015, p. 30). A última palavra
ser-lhe-á, portanto, legitimamente concedida. A evidência pode ser comparada a uma zona
fronteiriça que tolhe os passos da exploração fenomenológica do dado e inibe os saltos
especulativos não autorizados pela intuição desse dado. Ao mesmo tempo o alfa e o ômega, ela é a
ponte lançada entre o ponto de partida e o término da mostração, pois, por um lado, coloca-nos em
solo firme e autoriza o pontapé inicial do procedimento mostrativo, por outro, funciona como termo
último destinado à fundamentação.
Essa relação entre começo e fim é aprofundada por Husserl na segunda parte de
Filosofia Primeira, dedicada à teoria da Redução Fenomenológica, e na qual são feitas meditações
preliminares sobre o começo apodítico da filosofia. A ideia da evidência apodítica é inseparável da
problemática do começo. Husserl diz que, na situação de filósofo do começo, mostra-se-lhe
absolutamente necessária uma ciência que pode ser genuinamente nomeada uma arqueologia (uma
ciência da ἀρχή, do começo, do princípio), que incumbir-se-á de “explorar sistematicamente o solo
originário último que contém em si todas as origens do ser e da verdade” 17. Como vemos, esse solo

objeto em plena clareza, se efetuamos a explicação e a apreensão conceitual fundados puramente na visão e no âmbito
do que se apreende vendo efetivamente, então vemos (numa maneira de ‘ver’) como é a índole do objeto, e o enunciado
que o exprime fielmente ganha sua legitimidade. Ao perguntar pelo porquê desta, seria contrassenso não conferir valor
algum ao ‘eu o vejo’ – como mais uma vez vemos com clareza”.
14 Hua III, § 19, p. 62.
15 Hua I, Meditação I, § 5, p. 11.
16 Ibid. Meditação II, § 26, p. 51.
17 Hua VIII, Lição 31, p. 29.
é ao mesmo tempo originário e último, posto que a ciência arqueológica destina-se também a
ensinar “como, a partir dessa fonte originária de todas as intenções e validades, toda espécie de
conhecimento pode ser elevada à forma racional suprema e última, aquela da fundação e da
justificação absolutas”18.
Mas Husserl deve introduzir uma distinção entre as evidências, mostrar que há uma
evidência que encobre em vez de expor à luz (a evidência ingênua da atitude natural), e apontar a
evidência específica que é chamada a cumprir o papel de arkhé. A arqueologia, com efeito,
(…) não poderá se sustentar em virtude da claridade ingênua que se nomeia
comumente “evidência” (evidência natural, evidência da positividade), mas em
virtude da evidência superior da claridade de origem (Urprungsklarheit)
transcendental na qual a origem da obra do conhecimento, dissimulada sob a
evidência da positividade, é desvelada com seu horizonte de motivações que ao
mesmo tempo determinam e limitam seu direito originário; ela é assim
compreendida a partir de suas origens. 19

Assim, Husserl extrai de uma decisão prévia o princípio que resolve o problema do
começo (antes dele não há nada a mostrar) e, ao mesmo tempo, o problema da fundamentação
última (depois dele já não há também mais nada). A fundamentação resulta do começo evidente
transcendental e sua conclusão é regida pelo mesmo critério, de só admitir como legítimo o que tem
retaguarda na intuição originária e de se manter rigorosamente dentro dos limites traçados pela
doação das “coisas mesmas”.
Assim, deixar a verdade a cargo de um “sentimento” não seria muito diferente de
arriscar a sorte numa loteria. Se este princípio de todos os princípios tivesse um caráter emotivo, só
um verdadeiro milagre, diz Husserl20, poderia assegurar a objetividade da verdade. Husserl, como
vimos, coloca-se no ponto de vista diametralmente oposto ao do empirismo psicologista, e recusa
haver qualquer analogia entre evidência e sentimento. Essa determinação, porém, é negativa.
Determinada positivamente, a evidência é um Erlebnis, quer dizer, “a vivência da verdade”21.
Devemos, porém, lembrar a distinção já feita entre ideal e real para não sucumbir à tentação de
interpretar esse Erlebnis no sentido psicológico, mas, antes, positivamente, no sentido em que “se
ouve que um ser ideal em geral pode ser um vivido no ato real. Em outras palavras: a verdade é
uma ideia da qual um caso particular, no juízo evidente, é um vivido atual”22.

18 Ibid. Lição 31, p. 29.


19 Ibid. Lição 31, p. 30.
20 Hua XVII § 59, p. 141. “(…) se, num tipo de substituição sensualista, fizer-se recurso aos assim chamados
sentimentos de evidência (…) então o fato de que a verdade permaneça sempre designada como objetivo da evidência
torna-se ele próprio um milagre (…)”.
21 Hua XVIII, § 51, p. 190.
22 Ibid. § 51, p. 190.
Estão assim determinados dois caracteres fundamentais da evidência: a idealidade e a
atualidade. Atual e imediato são coextensivos um ao outro, até onde chega o valor evidencial de um
chega o valor evidencial do outro23. O atual encontra-se atualizado diante dos olhos sem
intermediação de terceiros. Caso ele não fosse imediato, ele achar-se-ia em potência em relação ao
mediador. O conhecido atual é aquele que deixa-se enxergar a olho nu, sem intermediários. O
inatual, pelo contrário, só é enxergado pela mediação de um terceiro elemento, como, por exemplo,
uma lupa que trouxesse a menor partícula para dentro da escala de apreensão do olhar humano e só
assim tornasse possível sua visibilidade. Com relação ao caráter de idealidade, por sua vez, deve-se
assinalar que é ele que responde pela objetividade do conhecimento, ou seja, “(...) é a idealidade da
verdade que constitui sua objetividade.”24 A verdade pode ser pronunciada num juízo atual, mas
conserva sua idealidade independentemente do transcurso temporal do ato de julgar:
Não é um fato contingente que uma proposição pensada hic et nunc concorde com
o estado de coisas dado. Ao contrário, essa relação concerne à significação idêntica
da proposição e ao estado de coisas idêntico. A “validade” ou “objetividade” não
cai junto com o enunciado enquanto vivido temporal, mas com o enunciado in
specie (…)25

Em Lógica Formal e Transcendental, Husserl volta a separar o dado hic et nunc do


dado in specie: por um lado, a consciência tem a experiência do enunciar, que transcorre no tempo;
por outro, o enunciado é uma unidade de significação ideal-idêntica não sujeita à passagem do
tempo:

23 Mas cabe aqui uma reflexão sobre a relação entre atualidade e imediatidade. Na demonstração, o funcionamento do
mecanismo lógico de prova depende de evidências primeiras atuais e imediatas e evidências segundas mediatas, no
sentido tradicional de evidência. Consideremos, por exemplo, o seguinte raciocínio no modo Bárbara: A é B e B é C,
logo, A é C. As evidências surgem em diferentes níveis de atualidade e imediatidade. A evidência absolutamente
primeira é a evidência dos princípios (contradição e identidade). A evidência relativamente primeira é a evidência das
proposições assumidas como premissas, A é B e B é C. A evidência segunda é aquela obtida pelo resultado da
demonstração: A é C, que segue como consequência necessária das premissas. Contudo, a conclusão comporta outro
tipo de evidência que salta diante dos olhos, que é a evidência do nexo de identidade lógico entre as duas primeiras
proposições e o nexo de identidade entre os três termos A, B e C. Na evidência dos princípios, a atualidade e a
imediatidade coincidem absolutamente sob todos os aspectos. Toda vez que o princípio de contradição é pensado, a sua
verdade é atual e imediata. Na evidência das premissas, a atualidade e a imediatidade coincidem sob o aspecto lógico,
mas não sob o aspecto cronológico, pois quando a primeira premissa é atual, a segunda é inatual, e quando a segunda
premissa é atual, a primeira deixa de sê-lo, resvalando para a inatualidade. Na evidência da conclusão, ocorre o
contrário, a atualidade e a imediatidade coincidem cronologicamente, mas não logicamente, porque, do ponto de vista
cronológico, o conhecimento de A é C é captado diretamente e num instante atual do tempo, mas, do ponto de vista
lógico, não é um conhecimento imediato, porque foi obtido pela mediação de B. Com relação à evidência do nexo,
pode-se dizer que ela é absolutamente atual e imediata. Quando uma proposição afirmativa universal diz que todo
homem é mortal ela já está também dizendo implicitamente que cada um dos indivíduos humanos é mortal, que
Sócrates é mortal, etc. “Todo” equivale a “cada um” e esse nexo só pode ser percebido numa evidência atual e imediata.
O nexo não pode ser demonstrado, porque se exigisse demonstração todo raciocínio que fizesse recurso a ele
dependeria, para ser válido, de um raciocínio anterior que demonstrasse a validade do nexo, e o raciocínio que
demonstrasse a validade do nexo faria recurso também a um segundo nexo, que pediria também demonstração, e assim
ad infinitum. Por conseguinte, são três as condições de funcionamento do mecanismo lógico de prova: (I) a evidência; a
(II) possibilidade da prova através do nexo; (III) a evidência do próprio nexo.
24 Hua XVIII, § 51, pp. 190.
25 Ibid. § 51, pp. 190-191.
(…) juízos, deduções, etc., formados em atos repetidos semelhantes ou análogos,
são juízos, conclusões, etc., que não são simplesmente semelhantes ou análogos,
mas que são idênticos, que são numericamente os mesmos juízos, conclusões, etc.
Eles “fazem sua aparição” de modo reiterado na esfera da consciência (…) na
temporalidade objetiva (…) como processos psíquicos reais de homens reais (…)
mas os pensamentos no pensar (…) não são absolutamente objetos reais, objetos
espaciais, eles são formações irreais cuja essência característica exclui a extensão
espacial, a propriedade original de estar num lugar e de se mover (…)26.

Na reflexão sobre a experiência evidente, estamos sempre a um passo de tomar a


evidência no sentido psicológico porque os objetos ideais dados na evidência admitem ser postos
em analogia com os objetos individuais27. Isso porque os objetos ideais são identificados pela
consciência que tem deles uma experiência atual do mesmo modo como são identificados pela
experiência os indivíduos concretos que aparecem no tempo. “Quanto à efetuação, essa capacidade
de identificação é então realmente alguma coisa de semelhante a uma ‘experiência’, só que com
uma reserva: um objeto deste tipo não é absolutamente individualizado pela temporalidade que
pertence a ele originalmente”28.

2.2 O simbolismo da lógica

Nas Investigações Lógicas, a reflexão sobre a evidência surge num registro crítico
dominado pela preocupação com a “figura imperfeita do conceito”, como salienta Moura (1989, p.
45). Husserl chama a atenção para a imperfeição conceitual das ideias lógicas. O que isso significa?
Ora, não se deve esquecer que a explicitação da lógica pura é um dos temas que figuram de início
no horizonte da investigação fenomenológica, e este tema conduz Husserl a uma teoria do
conhecimento. Esta, por sua vez, tem um duplo interesse: fornecer uma explicação “filosófica” da
lógica e “evidenciar” a essência da relação entre subjetividade, idealidade e objetividade. A pedra de
tropeço que se põe no caminho do primeiro interesse, de explicitação da lógica, é o fato de que seus
conceitos apresentam uma imperfeição: as ideias lógicas são dadas num modo “puramente
simbólico”.
O emprego que se faz aqui da noção de “símbolo” remonta a um esquema geral que
Husserl reproduz de Brentano, e reconhece dever a ele. Esse esquema permite distinguir entre
representações próprias e impróprias. A representação própria é uma intuição autêntica que
apresenta efetivamente a coisa mesma diante de nós. A representação imprópria é um signo que
funciona como substituto do objeto designado. O conceito, por sua vez, é um tipo especial de signo,
26 Hua XVII § 57b, p. 138.
27 “(…) a evidência dos objetos irreais (…) em sua efetuação, é completamente análoga àquela dos objetos
individuais”. (Ibid. § 58, p. 139).
28 Ibid. § 58, p. 139.
que pode constituir uma representação própria. Os signos propriamente conceituais são aqueles que
trazem uma informação sobre a coisa a que fazem referência pela mediação de certas notas
distintivas dela. O esquema brentaniano, portanto, permite identificar como símbolo e conceito
coincidem entre si, mas permite também diferenciá-los, apontando uma assimetria na relação entre
ambos: todo conceito é uma representação simbólica, mas nem toda representação simbólica é um
conceito. Em suma, o símbolo não é um conceito quando carece de base intuitiva. O símbolo
conceitual, por sua vez, “é um nome geral cuja significação é formada por marcas distintivas, por
propriedades do objeto designado” (MOURA, 1989, p. 50).
O começo da discussão husserliana sobre o símbolo remonta à Filosofia da
Aritmética, onde Husserl ilustra o problema com um exemplo tirado da matemática. Ele menciona
uma dificuldade lógica que surge no cálculo: digo que 2 mais 3 é igual a 5; mas os conceitos 2 e 3
na soma permanecem sendo sempre 2 e 3, sem se transformar em 5. Percebe-se em tal dificuldade
que nas operações da matemática os números não se dão como abstracta. “O aritmético não opera
absolutamente com os conceitos de número enquanto tais, mas com os objetos representados em
geral desses conceitos; os signos que ele liga ao calcular têm o caráter de signos gerais formados
sobre a base dos conceitos de número”29. Assim, Husserl chama a representação por signos de
“simbólica” e “imprópria”, pois nela o conteúdo não é dado diretamente como isto que ele é, mas
apenas indiretamente por signos que o caracterizam de maneira unívoca.
Essa constatação que foi feita no caso da aritmética pode ser transposta, mutatis
mutandis, para a lógica: ela opera com signos representados em geral, logo, com referências
indiretas ao conteúdo. Suas figuras de conceito revelam-se, portanto, imperfeitas. Os signos são
ditos “imperfeitos” na medida em que são entendidos como índices de alguma coisa, como sinais
estabelecidos por convenção, mas que mantêm uma relação puramente exterior e arbitrária com a
coisa por eles designada. Dizer, portanto, que eles são conceitualmente deficitários equivale a dizer
que eles operam no “vácuo”, funcionam como substitutos do objeto designado, ao cumprir a função
de designação exterior, mas sem nada informar dos traços distintivos pertencentes ao designado
enquanto tal, sem poder caracterizá-lo.
Assim, se o interesse pelo jogo demonstrativo lógico leva com necessidade a um
interesse pela verdade, a uma Lógica da verdade, nesta última surgirá um “ponto cego” que a lógica
abandonada a si mesma será incapaz de preencher e que exigirá “uma complementação filosófica”
(MOURA, 1989). Com efeito, diz Husserl, a edificação da Lógica pura não pode ser deixada a
encargo apenas das disciplinas matemáticas, “como um sistema de proposições que vai crescendo
29 Hua XII, pp. 201-202. “Der Arithmetiker operirt überhaupt nicht mit den Zahlbegriffen als solchen, sondern mit den
allgemein vorgestellten Gegenständen dieser Begriffe; die Zeichen, die er rechnend verbindet, haben den Charakter auf
Grund der Zahlbegriffe gebildeter allgemeiner Zeichen”.
no quadro de uma validade ingenuamente objetiva”, porque a lógica assim, estabelecida sob o
simbolismo matemático, ressentir-se-á da falta de uma “clareza filosófica” sobre tais proposições e
de uma “visão intelectiva sobre os modos de conhecimento que entram em jogo com a consumação
e as aplicações idealmente possíveis destas proposições, bem como sobre as doações de sentido e
validades objetivas que (…) por essência se constituem”30.
O lógico, no entanto, tende a conviver pacificamente com tais obscuridades, sem se
incomodar com o ponto cego e com a falta de evidência congênita ao simbolismo puro. Isso
acontece porque os signos não deixam nada a desejar quando o interesse em causa é simplesmente
técnico: a operação “2 mais 3 é igual a 5” move-se no plano simbólico, mas nem por isso deixa de
funcionar e produzir seus resultados (de uma evidência, aliás, apodítica). Mas se, por um lado, a
aritmética e a lógica funcionam excelentemente do ponto de vista operatório, por outro, elas nos
armam uma cilada do ponto de vista epistemológico, pois a eficiência de seus procedimentos
técnicos tende a fascinar a visão e cegá-la, ou seja, colocá-la numa espécie de “piloto automático”,
enrijecê-la numa atitude simplesmente mecânica.
Nas áreas exatas de dedução, os métodos de cálculo desempenham um papel
extraordinário e possibilitam realizações que não seriam de forma alguma
alcançáveis operando da maneira comum com os conceitos originais. Sua essência
consiste no fato de que o pensamento e o raciocínio efetivos, que opera com os
próprios conceitos, estão subordinados a um procedimento mecânico que trata dos
meros signos e de suas regras fixas de funcionamento. Depois que os matemáticos,
por exemplo, fixam sua tarefa em fórmulas, eles procedem de forma puramente
mecânica de acordo com as regras de cálculo aprendidas, muitas vezes eles fazem
as transformações mais complicadas no quadro-negro, fazem eliminações, realizam
integrações e diferenciações, etc. E, em tudo isso, eles operam apenas com
símbolos, assim como com fichas e regras para símbolos que, por assim dizer,
representam as regras do jogo. Mas não importa quão maravilhosos sejam os
métodos de cálculo, eles só ganham significado e justificativa a partir da essência
dos conceitos e relações conceituais correspondentes aos símbolos e regras de
cálculo e, assim, mais uma vez, do pensamento fundamentador 31.

Para Husserl, isso leva a uma alienação, que é a mesma alienação técnica que
acomete as ciências positivas em geral. “As obscuridades da lógica pertencem ao quadro de uma
alienação cuja tematização percorre a obra de Husserl como um todo: a alienação técnica da
30 Hua XIX.2. Introdução, § 1, pp. 5-6.
31 Hua XXIV. § 8, p. 26. “In den exakten Deduktionsgebieten spielen sie eine au ßerordentliche Rolle und ermöglichen
Leistung, die auf dem gewöhnlichen, mit den ursprünglichen Begriffen operierenden Wege gar nicht erreichbar wären.
Ihr Wesen besteht darin, daß dem eigentlichen Denken und Begründen, das mit den Begriffen selbst operiert, ein
mechanisches, mit den bloßen Zeichen und ihren festen Operationsregeln beschäftiges Verfahren untergeschoben wird.
Nachdem z. B. Der Mathematiker seine Aufgabe in Formeln gesetzt hat, verfährt er rein mechanisch nach den
angelernten Rechnungsregeln, er macht auf der Tafel oft die kompliziertesten Umformungen, macht Eliminationen,
vollzieht Integrationen und Differentiationen usw. Und bei all dem operiert er nur mit dem Symbolen so wie mit
Spielmarken und mit den Regeln der Symbole, die gewissermaßen die Spielregeln darstellen. Aber wie Wunderbares
die rechnerischen Methoden auch leisten, sie gewinnen Sinn und Rechtfertigung nur aus dem Wesen der den Symbolen
und Rechnungsregeln entsprechenden Begriffe und Begriffsbeziehungen und damit wieder aus dem begründenden
Denken”.
ciência”, o que significa, em suma, que a praxis científica “se desenvolve sem a intelecção da ratio
da efetuação realizada” (MOURA, 1989, pp. 47-48) Ao operar no plano dos “signos”, o mais
afastado da intuição, a lógica torna-se uma pura mecânica, um puro cálculo, que reduz-se a deduzir
signos a partir de signos.

2.3 Análise fenomenológica da linguagem

Como providenciar, então, a intelecção da ratio lógico-científica? Onde devem ser


buscadas a clareza filosófica e a visão intelectiva dos modos de conhecimento acima mencionados?
Husserl deixa claro desde o começo: a partir do estado de coisas descrito, sente-se a
necessidade de investigações fenomenológicas que respondam pela preparação e pela clarificação
crítico-gnosiológica da Lógica pura. Na primeira investigação lógica, a decisão é começar por uma
análise do discurso tal como este se realiza na língua. Com efeito, as primeiras distinções essenciais
são fixadas no plano da linguagem, a saber, nos componentes verbais e nas expressões.
O componente básico da linguagem é a “palavra”, que pode ser grafada no papel ou
proferida foneticamente. Nos dois casos, deve-se distinguir a aparição meramente física da palavra,
na escrita ou na fala, dos atos que desempenham no interior da mesma uma função significante. Um
som de palavra não é um simples ruído, não é um mero flatus vocis. Do mesmo modo, a escrita não
é simples tinta deitada no papel. Som e escrita, pelo contrário, são dotados de significação. Há
intenções, ou atos, que desempenham no interior do proferir, do escrever, a função de doação de
sentido, por meio da qual o complexo de sons ou caracteres da palavra adquire um significado e este
pode ser transposto, na comunicação, de um interlocutor até o outro, com mútuo entendimento do
“assunto” colocado em discussão.
Husserl nota no fenômeno do comunicar que a palavra é condição necessária e
suficiente para a entabulação do diálogo, mas a atenção que se dirige para ela, enquanto palavra, é
marginal. A coisa “sobre a qual” falamos, designada pela palavra, atrai o pensamento e monopoliza
a atenção discursiva, em detrimento do “através de que” a coisa é dita. Assim, não é na palavra que
prestamos atenção quando falamos ou ouvimos, ela fica na conversa como simples coadjuvante,
como que sai de cena para ceder o lugar àquilo que ela expressa. Por isso o discurso
metalinguístico, que coloca a palavra ela mesma em foco, situa-se num plano diferente da
linguagem. No discurso comunicativo corrente, pelo contrário, a palavra está no máximo semi-
presente, como diz Husserl, ela “(…) está, decerto, intuitivamente presente, ela ainda aparece, mas
não é para ela que olhamos”32. Como signo verbal, sua função limita-se a designar a coisa, a

32 Hua XIX.2. Investigação I, § 10, p. 46.


sinalizar para ela. Metaforicamente, dir-se-ia que a palavra é uma janela que, uma vez descerrada,
abre a visão para o “designado”, descortina o cenário para o “designado” entrar em cena, fá-lo
despontar indiretamente no horizonte abrangido pelo diálogo. Por isso, “assunto” significa
literalmente “o que foi levantado”. Mesmo na ausência do objeto da conversação, a palavra como
que faz o objeto ausente pairar diante de nós.
Isso não acontece sem consequências importantes. Lembra Husserl que a palavra, na
sua manifestação física, “sofre uma modificação fenomenal essencial quando o seu objeto toma o
valor de uma expressão”33. Ex-pressão, que quer dizer literalmente um “pressionar de dentro para
fora” (em alemão Aus-druck), em oposição à im-pressão, que significa literalmente um “pressionar
de fora para dentro” (Ein-druck), contém já no próprio nome aquela modificação essencial: o valor
funcional de transmissão de significado. O significado, que é de início pensado por uma
consciência, uma vez exprimido na interlocução, como que salta para fora na direção de outra
consciência.
Do ponto de vista da descrição fenomenológica pura, a expressão, animada de
sentido, assim como a palavra, é também um fenômeno concreto – manifesto no discurso solitário
ou no diálogo – que se desmembra no fenômeno físico do falar e nos atos que emprestam a ele a
significação. Atos que Husserl caracteriza como “atos doadores de sentido” ou “intenções doadoras
de sentido” (atos e intenções são usados aqui como sinônimos). Mas a linguagem se ordena não
somente em torno desses atos conferidores de significado: o significado, que é simbólico, portanto,
vazio, exige ser preenchido por novos atos, capazes de tornar o “designado” efetivamente presente.
Os atos que desempenham essa função de preenchimento do vazio são nomeados então por Husserl
de “atos preenchedores de sentido”.
As intenções preenchedoras respondem pela “plenitude intuitiva”, é nelas que se
“constitui a referência a uma objetividade expressa”34. Se, por força das intenções signitivas35, a
“expressão é algo mais do que um simples som de palavra”, isto é, ela “visa a qualquer coisa”, por
força das intenções de preenchimento, ela não só visa, “mas refere-se ao objetivo” 36. O elemento
objetivo aparece graças às intuições acompanhantes, ou é presentificado, por exemplo, através da
lembrança ou de imagens da fantasia.
Duas espécies de ato animam assim a expressão. Por um lado, ela ganha vida através
de atos que, enquanto doadores de sentido, emprestam a significação correspondente. O
preenchimento de significação, por sua vez, incumbe-se de pôr o objeto diante dos olhos, ele é
33 Ibid. Investigação I, § 10, p. 47.
34 Ibid. Investigação I, § 9, p. 44
35 Signitiven: Husserl usa este último termo como sinônimo abreviado de significativo (significativen), aquilo que é
dotado de significado (Bedeutung) ou significação (Signifikation).
36 Hua XIX.2. Investigação I, § 9, p. 44
atendido pelos atos preenchedores que introduzem um “recheio intuitivo” junto à intenção signitiva,
recheio (Fülle) que a confirma, reforça ou ilustra, atualizando a referência objetiva.
É claro que a expressão pura e simples, uma vez animada de sentido, dispensa a
intuição acompanhante para funcionar como portadora de significado; como vimos, ela constitui
uma intenção que sinaliza para a coisa, semelhante ao gesto de apontar o dedo na direção de algo,
uma intenção que, ao designar o objeto com um nome, remete instantaneamente a ele, serve como
índice vazio do objeto, mesmo na falta dele. Mas quando essa intenção de significação, que paira de
início no vácuo, se preenche na intuição, “realiza-se, então, a referência objetiva, o nomear, torna-se
uma referência atualmente consciente entre nome e nomeado”37. Cruzam-se, então, na mesma
latitude, o dedo que aponta e a coisa por ele apontada.
A situação fenomenológica do começo pode ser descrita, basicamente, nos termos
acima. No entanto, as coisas são bem mais complexas do que parecem ser à primeira vista. Se as
expressões remetessem de modo unívoco aos respectivos significados, a situação deixar-se-ia
inteligir sem maiores dificuldades. Há, porém, um sem-número de equivocidades que se interpõem
entre expressão, significado expresso e objetividade. Como Husserl adverte, noções como
“sentido”, “conteúdo”, “estado de coisas”, estão acometidas de equívocos tão poderosos que
poderiam dar ampla margem a más interpretações. Constata-se, além disso, certa flutuação das
significações das palavras que torna problemática a conexão delas com seu correspondente
intuitivo. Husserl deixa-nos já de sobreaviso quanto a tais equivocidades. Uma delas é: o que se
deve entender por “conteúdo” da expressão? O significado? O objeto? Para o filósofo, é necessário
distinguir entre conteúdo subjetivo e objetivo, a saber, entre “(I) o conteúdo enquanto sentido
intentante ou enquanto sentido, significação pura e simples; (II) o conteúdo enquanto sentido
preenchedor; (III) o conteúdo enquanto objeto.”38
Mas tais distinções são ainda insuficientes, e Husserl menciona um parágrafo adiante
as demais equivocidades entre (I) sentido intentante e sentido preenchente; entre (II) sentido e
significação, que são empregados aqui como sinônimos, mas que outros autores, como Frege 39,
fizeram questão de distinguir; entre (III) atos manifestados, sentido ideal e objetividade expressa;
entre (IV) a plurivocidade dos nomes universais e a polivalência dos nomes equívocos, nomes
coletivos e nomes universais; (V) entre significação e intuição preenchedora; (VI) entre a unidade
ideal intelectualmente captada e o ato real de julgar. Outras ambiguidades semelhantes podem
constar nessa lista, e outras confusões que uma análise fenomenológica não pode dar-se ao luxo de
omitir, pois elucidá-las é uma obrigação incontornável da fenomenologia.
37 Ibid. Investigação I, § 9, p. 44
38 Ibid. Investigação I, § 14, p. 57.
39 A distinção de Frege encontra-se no famoso artigo Über Sinn und Bedeutung (Sobre o sentido e a referência).
O espaço aqui, porém, não é suficiente para entrar nos detalhes do problema, nem no
esforço gigantesco de solução do mesmo, que ocupam vários capítulos das Investigações.
Limitamo-nos a dizer: um dos modos centrais de solucionar as ambiguidades é insistir no caráter de
idealidade pertencente à expressão e à significação, que são vistas como unidades ideais. A
idealidade da expressão e da significação mostra-se imediatamente quando a consideração subjetiva
cede lugar à objetiva. Quando perguntamos, por exemplo, pela significação de uma expressão
qualquer, como, por exemplo, “resto quadrático”, não visamos, “sob o título de expressão, a esta
formação sonora exteriorizada hic et nunc, o som fugidio que jamais retorna de um modo idêntico.
Visamos à expressão in specie. A expressão resto quadrático é identicamente a mesma, seja quem
for que a possa expressar”40.
Com o ato de julgar e aquilo que é julgado acontece o mesmo. Se o juízo enquanto
proferição vocal reduz-se a uma formação sonora com tempo e lugar determinados, tendo caráter
subjetivo, por outro lado,
(…) aquilo que é asserido na asserção não é absolutamente nada de subjetivo. O
meu ato de julgar é uma vivência fugidia, que aparece e desaparece. O que a
asserção assere, este conteúdo: que as três alturas de um triângulo se cruzam num
ponto, não é, porém, algo que apareça e desapareça. Todas as vezes que eu, ou seja
quem for, exteriorize esta mesma asserção com igual sentido, haverá, em cada uma
dessas vezes, um novo julgar. Os atos de julgar são diferentes de caso para caso. O
que eles julgam, porém, o que a asserção quer dizer, isso é por toda parte o mesmo.
É algo idêntico, no sentido estrito da palavra, uma e a mesma verdade geométrica 41.

Uma forte ambiguidade também se encontra do lado daquilo que é expresso por uma
expressão. Pois o que é expresso acha-se pendente da manifestação em geral, do ato que empresta o
sentido e do ato que o preenche. A asserção, por exemplo, dá expressão tanto ao juízo quanto a
percepções e outros atos que respondem pelo preenchimento do sentido. A expressão, ademais,
afirma qualquer coisa, mas também diz algo acerca de qualquer coisa.
Husserl observa que é necessário distinguir entre significado (conteúdo) e objeto a
partir do momento “em que nos convencemos, pela comparação de exemplos, de que várias
expressões podem ter a mesma significação, mas diferentes objetos” 42, como, por exemplo: (I)
Bucéfalo é um cavalo; (II) este sendeiro é um cavalo 43. Ambas as expressões significam “cavalo”,
mas de uma para outra produz-se uma ligeira alteração na representação doadora de sentido. Por
outro lado, as expressões podem ter significações diferentes, mas o mesmo objeto, como é o caso,
40 Hua XIX.2. Investigação I, § 11, pp. 48-49.
41 Ibid. Investigação I, § 11, p. 50.
42 Ibid. Investigação I, § p. 52.
43 O exemplo do cavalo é também usado por Frege: “Um pintor, um cavaleiro e um zoólogo irão provavelmente
associar ao nome ‘Bucéfalo’ representações bem diferentes” (FREGE, Gottlob. Über Sinn und Bedeutung. Zeitschrift
für Philosophie und philosophische Kritik, NF 100, 1892, S. 25-50. Sobre o sentido e a referência. Tradução de Sérgio
R. N. Miranda. FUNDAMENTO – Rev. de Pesquisa em Filosofia, v. 1, n. 3, maio – ago. 2011, p. 24).
por exemplo, de Napoleão, se lançarmos mão das expressões (I) “O Vencedor de Iena” e (II) “O
Vencido de Waterloo”. Ambas possuem o mesmo objeto “Napoleão”, mas a primeira delas evoca
no seu teor de sentido a ideia de vitorioso, ao passo que a segunda evoca no seu teor de sentido a
ideia de derrotado44. “A significação expressa é, em cada um desses pares, manifestamente
diferente, se bem que, de um lado e do outro, seja visado o mesmo objeto”45.
Pode-se ainda incluir junto a esses exemplos o caso das expressões que Husserl
menciona como “tautológicas”, que apresentam igual significação e nomeação e que correspondem
umas às outras em diferentes línguas: London, Londres; dois, deux, duo, etc. Assim, pode ocorrer
“que os sons pronunciados sejam os mais diferentes, enquanto a relação cognitiva é a mesma, como
no caso de uma ‘mesma’ palavra proferida em diferentes línguas; o objeto é conhecido
essencialmente como o mesmo, não obstante pronunciemos subsidiariamente diferentes sons”46.

2.3 Caracterização fenomenológica dos atos de consciência

O resultado mais importante que Husserl extrai de toda a análise da linguagem é


justamente a caracterização dos atos de consciência. Como vimos, há atos que respondem pela pura
doação de sentido e atos intuitivamente concordantes que respondem pelo preenchimento de
significação. As Investigações Lógicas são em grande parte reservadas à tarefa de caracterizar
fenomenologicamente os atos de consciência conforme estruturas gerais essenciais que pertencem a
esses atos.
A noção de ato é utilizada como sinônimo de intenção. Qual o exato teor dessa
sinonímia? A noção de “ato” tem a particularidade de ressaltar o caráter atuante da vivência. O ato é
atualizante, ele cumpre a função de tornar algo atualmente presente – na intuição; ou de tornar algo
“quase” presente – na presentificação da lembrança ou da fantasia. A noção de “intenção”, por sua
vez, ressalta o caráter correlacional da vivência, designado nas Investigações pelo nome de
“intencionalidade”. Todo ato tem o caráter correlacional da intenção, quer dizer, ele tende na
direção de algo (in-tendere e in-tentio são os vocábulos latinos que deram origem ao conceito de
intencionalidade, forjado por Brentano). O tender é um dirigir-se para, seja na percepção do que é

44 A análise de Frege é semelhante à de Husserl, mas a terminologia entre eles sofre mudanças consideráveis. Frege
emprega o termo “pensamento” (Gedanke) onde Husserl emprega “significação” (Bedeutung). E ele emprega o termo
Bedeutung no sentido de “referência”, de “objeto”, onde Husserl escreve “objeto” (Gegenstand). Veja-se o conhecido
exemplo da estrela vésper e da estrela da tarde: “Admitamos uma vez que a frase tenha uma referência (Bedeutung)! Se
nela substituímos uma palavra por outra que tenha a mesma referência, mas um sentido diferente, isso não pode ter
qualquer influência sobre a referência da frase. Mas notamos agora que o pensamento (Gedanke) modifica-se em uma
situação dessas; por exemplo, o pensamento da frase ‘a estrela a manhã é um corpo iluminado pelo sol’ é diferente
daquele da frase ‘a estrela da tarde é um corpo iluminado pelo sol” (Ibid. p. 27).
45 Hua XIX.2. Investigação I, § 12, p. 53.
46 Hua XX.1. Investigação VI, § 7, p. 27.
atualmente, seja na presentificação de algo não mais presente (re-tendere), seja na antecipação de
algo que será presente (pro-tendere). Re-tendere e pro-tendere, oriundos de intentio, darão
nascimento aos conceitos de retenção e protensão que desempenharão um papel fundamental na
análise husserliana do tempo.
(I) Sob certo aspecto, os atos podem ser determinados conforme seu “caráter”. O
conceito introduzido por Husserl de “caráter de ato” permite diferenciar a consciência de algo
universal da consciência de algo singular. O caráter torna um ato de consciência essencialmente
diferente de outro, e, por consequência, torna igualmente diferentes em seu sentido os conteúdos
consciencizados. “Os objetos universais tornam-se conscientes para nós em atos essencialmente
diferentes daqueles em que nos tornamos conscientes dos objetos individuais”47. Com essa
determinação do ato pelo caráter, Husserl põe-se incansavelmente a desencobrir as sutilezas quase
imperceptíveis do conhecimento de objetos universais, decidido a mostrar as evidentes contradições
em que cai o nominalismo de Locke, de Hume, de Cornelius, etc., ao contestar a existência do
conhecimento universal como “ficção”, ou submetê-lo a uma psicologia associativa das
semelhanças baseada numa suposta função generalizante do “nome” concebido como “economia do
pensamento”.
Mas vamos passar por alto as considerações críticas de Husserl, a respeito das
concepções nominalistas, para nos deter diretamente nas suas formulações positivas da noção de
“caráter de ato”. Diz ele que, no intervalo de tempo em que aparece, por exemplo, “o objeto
vermelho e o momento de vermelho nele realçado, visamos, antes, ao mesmo vermelho idêntico e
visamo-lo num modo de consciência de tipo novo, por meio do qual se nos torna objetiva,
precisamente, a espécie, em vez do individual”48.
Numa consideração comparativa, é-nos ensinado que o ato no qual visamos a algo de
específico difere essencialmente do ato em que visamos a algo de individual (um indivíduo concreto
ou uma parte ou traço individual desse indivíduo):
Certamente que há em ambos uma certa comunidade fenomenal. Em ambos
aparece, de fato, o mesmo elemento concreto e, na medida em que aparece, são
dados em ambos os mesmos conteúdos sensíveis nos mesmos modos de apreensão;
quer dizer, o mesmo montante de conteúdos de sensação ou de fantasia atualmente
dados subjaz à mesma “apreensão” ou “interpretação”, nas quais se constitui para
nós o aparecimento do objeto com qualidades apresentadas através daquele
conteúdo. Mas o mesmo aparecimento suporta, em ambos, atos diferentes. Da
primeira vez, o aparecimento é o fundamento representativo de um ato de visar
individual, quer dizer, de um ato tal no qual nós, num simples voltar-se para,
visamos ao próprio aparecente, esta coisa ou esta nota, este pedaço na coisa. Da
segunda vez, ele é o fundamento de representação de um ato de apreender e de
visar especializante; quer dizer, enquanto aparece a coisa, ou melhor, a nota na
47 Hua XIX.2, Investigação II, § 1, p. 113.
48 Hua XIX.2, Investigação II, Introdução, p. 111.
coisa, não visamos a esta nota objetiva, a este aqui e agora, mas visamos sim ao seu
conteúdo, à sua ideia; não visamos a este momento de vermelho na casa, mas sim
ao vermelho49.

(II) Sob um segundo aspecto, os atos podem ser determinados como objetivantes e
como propriamente objetivantes. Husserl entra nos detalhes do caráter objetivante dos atos no
segundo livro das Ideias, dedicado a “Investigações Fenomenológicas sobre a Constituição”. A
partir da pergunta: “como as vivências são executadas em função do conhecimento?”, Husserl põe-
se a considerar a transformação geral de atitude que desencadeia o comportamento teórico. O
sujeito – ele diz – vive em seus atos, de representar, perceber, recordar, pensar, de uma maneira
fenomenologicamente assinalada, mas cada um desses atos comporta, por essência, a possibilidade
de converter-se num ato teórico mediante uma mudança de atitude, ou seja, a partir de uma
modificação intencional da vivência.
Husserl observa que a atitude prática e a atitude axiológica ou valorativa (referente
aos valores éticos e estéticos) correm paralelamente à atitude teorética. E ele recorre a uma imagem
para ilustrar a modificação de uma atitude para outra: uma coisa é um ter na consciência a visão do
céu azul, outra coisa é a execução teórica deste ato. Na atitude prática, vivemos a visão do céu azul
sob o interesse, por exemplo, de prever uma possível tempestade ou de nos orientar pela posição do
sol. Na atitude axiológica, vivemos num agradável arroubo diante de um céu resplandecente.
Se fazemos isto, não estamos na atitude teórica ou cognoscitiva, e sim na atitude
emotiva. Ao contrário, bem pode haver agrado enquanto nos movemos na atitude
teórica, quando, na condição de físicos, estamos dirigidos, a observar o céu azul
resplandecente; mas então não vivemos no agrado. Esta é uma modificação
fenomenológica essencial do agrado, o do ver e o do julgar, segundo a qual
passamos de uma atitude à outra. Esta peculiar mudança de atitude pertence como
possibilidade a todos os atos (...)50.

Todas as vivências intencionais, sob o título geral de consciência, comportam


referência a objetividades dadas – em atos práticos, teóricos ou valorativos, cujos correlatos são
objetividades práticas, teóricas ou valorativas. Mas os atos teóricos são considerados por Husserl os
atos propriamente objetivantes:
Toda espécie fundamental de atos é caracterizada por uma espécie fundamental de
“qualidades de ato”. Assim, os atos objetivantes pela qualidade da doxa, da crença
em suas distintas modificações; a espécie fundamental de atos que, em um sentido
igualmente amplo, designamos como valorativos, precisamente pela qualidade do
valorar, etc. Os atos teóricos são os atos própria ou explicitamente objetivantes;
para o ter-objeto propriamente dito, para o ter-objeto, requer-se a atitude
particularmente captadora, posicional, do sujeito teórico. De todo ato não
objetivante podem extrair-se objetividades mediante uma virada, mediante uma

49 Hua XIX.2, Investigação II, § 1, pp. 113-114.


50 Hua IV, § 4, p. 8.
mudança de atitude; nisto radica o fato de que todo ato é ao mesmo tempo e
implicitamente, conforme sua essência, essencialmente objetivante, o fato de que
não somente está edificado em um nível superior sobre atos objetivantes, mas
também que é objetivante a respeito do novo ato que o mesmo comporta 51.

(III) Sob um terceiro aspecto, os atos podem ser caracterizados conforme sua
qualidade e sua matéria. Husserl distingue qualidade e matéria “como dois momentos, ou como dois
constituintes internos de todos os atos”52. Sob o título de qualidade encontra-se a determinidade
interna de um ato que o diferencia de outro ato, por exemplo, o juízo da esperança, a esperança do
desejo, o desejo da lembrança, etc. Determinado pela qualidade “judicativa”, o ato de julgar
distingue-se de outros atos como desejar, esperar, lembrar, etc. Essa determinidade interna, porém,
na mesma medida em que discrimina o juízo dos outros atos, torna qualitativamente comuns todos
os juízos entre si. O que, então, diferencia um juízo de outro juízo é justamente a matéria, ou seja,
aquilo que é julgado no ato de julgar. Por exemplo, o juízo sobre X é qualitativamente igual ao juízo
sobre Y, só que materialmente diferente dele porque X é diferente de Y. Em suma, os juízos são
homogêneos entre si pela qualidade judicativa e são heterogêneos entre si pelo objeto julgado que
entra no ato como matéria.
No entanto, a matéria constitui ao mesmo tempo um fator unificante que subjaz a
uma multiplicidade de atos e os reúne numa idêntica referência. Se ela, por um lado, torna
materialmente heterogêneos os atos que são qualitativamente homogêneos entre si, por outro lado,
ela pode constituir um momento comum de vários atos qualitativamente diferentes. Por exemplo, o
mesmo momento material “vermelho” pode ser julgado, desejado, esperado, lembrado, etc. A
matéria surge então como o uno no múltiplo, a unidade na multiplicidade. A matéria, como base
idêntica para uma variedade de atos, é chamada então por Husserl de representação subjacente:
(…) a identidade da matéria ao longo da variação da qualidade assenta na
identidade “essencial” da representação subjacente. Dito de outra maneira: aí onde
os atos têm o mesmo “conteúdo” e não se diferenciam, segundo a sua essência
intencional, senão porque é um juízo, o outro, um desejo, o terceiro, uma dúvida,
etc., com precisamente esse conteúdo, aí possuem eles essencialmente a mesma
representação como base. Se a representação subjaz a um juízo, então ela é (no
sentido atual de matéria) conteúdo de um juízo. Se ela subjaz a um desejo, então é
conteúdo de um desejo, etc53.

Nós vemos assim que de um lado acha-se a multiplicidade dos atos, qualitativamente
desdobrados, e de outro lado acha-se a unidade da matéria subjacente a esses atos. A consciência se
consuma na multiplicidade dos atos (de julgar, desejar, lembrar, esperar, etc.) em um “representar”
que torna o objeto presente, e faz dele um uno e um idêntico no meio da variedade. Esta variedade,

51 Ibid. § 7, pp.15-16.
52 Hua XIX.2, Investigação V, § 22, p. 441.
53 Ibid. Investigação V, § 23, p. 445.
porém, não significa uma fragmentação dos atos como se eles corressem em série, justapostos uns
aos outros. O “representar” do objeto nos atos, pelo contrário, é também uma espécie de unidade,
uma fusão. Para esclarecer isso, Husserl recorre aqui à bem conhecida proposição de Brentano:
(…) em cada ato, o objeto intencional é um objeto representado num ato de
representar e que, quando não se trata desde o início de um mero representar
simples, um representar está sempre tão peculiar e intimamente entretecido com
um ou vários outros atos – ou melhor, caracteres de ato – que, assim, o objeto
representado se apresenta ao mesmo tempo como ajuizado, desejado, esperado e
coisas semelhantes. Esta variedade da relação intencional não se realiza, por
conseguinte, numa justaposição ou sucessão enlaçada de atos, pela qual o objeto
estaria de novo intencionalmente presente com cada ato, mas antes num ato
estritamente unitário, no qual um objeto aparece uma única vez, mas, neste estar
presente único, é o ponto de chegada de uma intenção complexa 54.

(IV) Por último, é preciso ressaltar que, no quadro descritivo da experiência atuante,
o conceito de “intuição” (Anschauung) é promovido à função de diferenciar essencialmente os atos
entre si. Ao entrar em cena, ele introduz a diferença fundamental que existe entre as intenções: o ato
intuitivo é aquele que atinge efetivamente o objeto; o ato significativo é aquele que apenas o visa.
Lévinas, que aprofundou a teoria da intuição no Husserl das Investigações, assinala que entre os
dois não reside uma simples diferença de graus de claridade. Trata-se, antes, de uma diferença
essencial. Nas palavras de Husserl:
A cada intenção intuitiva pertence – falando no sentido da possibilidade ideal –
uma intenção signitiva que se ajusta a ela de maneira exata, segundo a matéria. (…)
Na transição de uma intenção signitiva para a intuição correspondente, não temos
somente a vivência de um mero acréscimo gradativo, como no caso da transição de
uma imagem empalidecida ou de um mero esboço para uma pintura cheia de vida.
Em vez disso, falta à representação signitiva, tomada por si só, todo e qualquer
recheio, que só lhe é proporcionado pela representação intuitiva, que nela o
incorpora, por meio da identificação55.

Por conseguinte, a intenção significativa opera no vazio, num puro visar objetivante,
ao passo que a intuição atualiza a pura e simples visada pondo a consciência numa relação direta
com o objeto. Numa relação face a face, por assim dizer. A presença do objeto está ao alcance da
consciência. O objeto está, por assim dizer, ao pé do ato intuitivo, que o atinge.
O ato significativo, ao contrário, mira o objeto sem tê-lo presente diante de si. Mas a
conversação corrente, no fim das contas, é composta na esmagadora maioria dos casos de atos
meramente signitivos, ela é em geral um processo de transmissão de significados vazios, pois nós
não precisamos ter perante os olhos a presença de todos os objetos dos quais falamos e cujo sentido
comunicamos, mediante palavras e expressões, a nosso interlocutor. Quando “não temos imagem ou
percepção alguma, nós nos limitamos ao simples ato de visar o objeto, na medida em que

54 Ibid. Investigação V, § 23, p. 443.


55 Hua XX.1. Investigação VI, § 21, p. 60
compreendemos o que é dito e compreendemos isto que nós próprios dizemos” (LÉVINAS, 1994,
p. 102).
Os atos signitivos carecem de preenchimento, ao passo que os intuitivos respondem
pela doação plena do fenômeno. São exemplos de atos intuitivos a percepção e a afiguração. O
plenum que os dois atos comportam, por sua vez, apresenta diferenças graduais para mais ou para
menos. Mas entre os dois reside a diferença essencial de que a afiguração não dá o próprio objeto,
ela oferece apenas a sua imagem, ao passo que a percepção dá o objeto ele próprio, em diferentes
graus de perfeição e sombreamento. “O caráter intencional da percepção consiste no presentar (das
Gegenwärten, Präsentieren) em oposição ao mero presentificar (Vergegenwärtigen) da
afiguração”56.
Segundo Husserl, a mirada no vazio da significação, embora animada de sentido,
ainda não constitui um “conhecer”, que só se perfaz no preenchimento, ato que põe o objeto mesmo
ao alcance da intuição que o visa. Há garantia de que o “conhecer” se deixa definir legitimamente
como “um caráter de ato mediador entre a aparição das palavras pronunciadas, ou da palavra inteira
vivificada pelo sentido, e a intuição da coisa”57. O nomear opera em função da identidade de
sentido, o nome é dotado do caráter homogêneo da significação. A mera circunstância de os dois,
nome e sentido, aparecerem juntos, não autoriza conceber entre eles uma relação interna, nem
mesmo uma relação extrínseca, como uma simples justaposição. Diz Husserl que o que constatamos
“não é uma mera soma e sim a mais íntima unidade (...)”58. A unidade intencional de uma fusão, que
emerge de tal maneira “que os momentos implícitos dessa unidade – a aparição física da palavra
vivificada pelo momento da significação, o momento da cognição e a intuição do denominado – não
se destacam com nitidez uns dos outros”59.
Com efeito, Husserl destaca o fato de que há uma unidade fenomenológica dos atos 60,
uma unidade intimamente fundida, que possui um caráter peculiar. Na vivência completa
(representação da palavra, ato doador de sentido, etc.), a intenção de significação encontra o
preenchimento no ato correlativo. Ela tende a esse encontro, por assim dizer, para absorver-se na
consumação de seu sentido. A tendência é determinada pelo fato de que os atos de significar e de
preencher são mutuamente pertinentes.
Mas uma questão que se impõe é a seguinte: sob que concepção deve ser
compreendida a generalidade que a palavra apresenta? É certo que o universal abrange uma
multiplicidade idealmente delimitada de intuições individuais possíveis, como a palavra geral
56 Hua XX.1. Investigação VI, § 37, p. 90.
57 Ibid. Investigação VI, § 7, p. 25.
58 Ibid. Investigação VI, § 7, p. 26.
59 Ibid. Investigação VI, § 7, p. 27.
60 Conf. Hua XIX.2, Investigação II, § 10, p. 45 e Hua XX.1, § 7, p. 25.
vermelho e as múltiplas tonalidades de vermelho que podem ser intuídas visualmente. É por meio
de uma síntese identificante que chegamos a reconhecer o momento “vermelho” que aparece como
o mesmo em tais intuições. Mas a generalidade da palavra não deve ser reduzida aos conceitos
genéricos que se opõe aos conceitos individuais. O “conhecer” – diz Husserl – “não deve ser
concebido diretamente como um classificar atual que se perfaz pela inclusão, numa classe, de um
objeto representado intuitivamente ou mesmo conceitualmente”61.
A generalidade, em suma, não se esgota na classificação. Husserl mostra 62 que há
outro tipo de generalidade pertencente ao “nome próprio”, e que este possui um caráter
completamente diverso da generalidade presente no nome de classe. Aos objetos que são
designados por um nome próprio pertence também uma síntese de intuições possíveis, nas quais a
mesma pessoa, ou a mesma cidade, aparecem “e todas estas aparições têm uma unidade não
meramente intuitiva, mas também cognitiva”. Assim conhecemos João como João, Berlim como
Berlim, etc. Este conhecer é um ato que permanece idêntico ao longo da proferição das palavras que
designam na forma de nomes próprios.
Estendemo-nos bastante, decerto, na caracterização dos atos intencionais. Mas
convém lembrar que isso era indispensável para a correta compreensão da evidência como vivência
da verdade. Pelo que foi dito, conclui-se que a essência específica da intencionalidade em geral
pode ser compreendida como uma “ação constituinte” 63 e que os atos, enquanto constituintes, são
doadores de sentido, que as intenções outorgam sentido objetivo às coisas intencionadas e são, por
isso, objetivantes, na atitude prática e valorativa, e propriamente objetivantes, na atitude teórica.

2.3 Evidência e adæquatio

Viu-se nas seções anteriores que a vivência da unidade de uma consciência de


preenchimento se perfaz quando a expressão que desempenha de início uma função meramente
simbólica é recoberta pela intuição mais ou menos correspondente que se associa a ela. Assim, do
ponto de vista descritivo, “o ato do puro significar, tal como uma intenção que mira uma meta, se
preenche no ato de visualização”64. Na intuição a mesma objetidade, de começo não mais do que
uma objetidade pensada, desponta diante dos olhos, presencialmente, e recebe nesta aparição
presencial as mesmas determinações com que fora concebida no pensamento. Mas agora as
determinações podem ser enxergadas a olho nu, confirmadas ou parcialmente retificadas. Desse

61 Hua XX.1. Investigação VI, § 7, p. 28.


62 Ibid.. Investigação VI, § 7, pp. 28-29.
63 Ibid. Investigação VI, § 85, p. 183.
64 Ibid. Investigação VI, § 8, p. 29
modo, “a essência intencional do ato da intuição se adapta (mais ou menos perfeitamente) à essência
significacional do ato que exprime”65.
Entre o ato significativo e o ato intuitivo vigora uma estrutura fenomenológica que
determina essencialmente a passagem de um ato para outro. Husserl mostra que essa passagem, ou
transição, pode ser descrita estaticamente ou dinamicamente. Na relação estática, a transição
temporal de um ato ao outro não é levada em conta, a relação é vista em bloco, como resultado
acabado. Temos então “uma consciência de unidade, eventualmente sem ter sido precedida por uma
fase visivelmente delimitada de intenção não preenchida” 66. Na relação dinâmica, pelo contrário,
não se trata de um imóvel estar preenchido, mas de uma transição que se consuma no tempo, “os
membros da relação e o ato de conhecer que os relaciona estão afastados temporalmente, mas
desdobram-se numa figura temporal”67. Nesse transcurso o mero pensar insatisfeito recebe seu
preenchimento mais ou menos adequado.
Nos parágrafos acima, a expressão “mais ou menos” foi propositadamente grifada
para destacar as gradações do preencher dinamizado no tempo. Com efeito, os atos admitem
diferenças para mais ou para menos no percurso do intencionar até o recobrir preenchente. No
limite da diferença para mais encontra-se a confirmação plena. No limite da diferença para menos
encontra-se a decepção plena. Na confirmação plena, todas as intuições preenchedoras são
unânimes em apresentar o objeto tal como ele foi visado ao nível do pensamento. Na decepção
plena, todas as intuições preenchedoras convergem na direção de um objeto completamente
diferente daquele visado pela significação. Mas a plenitude de um lado e a nulidade de outro não
são as únicas possibilidades. Entre os dois extremos repousam certas gradações de confirmação e de
decepção. Falaremos delas adiante.
Husserl passa pelas noções de confirmação e decepção para chegar aos conceitos
seguintes de “identificação” e “diferenciação” que são fundamentais na caracterização
fenomenológica da evidência. A identificação ocorre pela concordância entre intenção e intuição; a
diferenciação ocorre pela possibilidade correlata da discordância, do conflito, que surge quando a
“intuição não ‘concorda’ com a intenção de significação, mas ‘conflita’ com ela” 68. Mas merece
atenção o fato de que os atos de identificar pela concordância e de diferenciar pelo conflito
inscrevem-se igualmente na relação dinâmica, e ambos transcorrem no tempo em forma de síntese.
É certo que o “conflito ‘separa’, mas a vivência do conflito põe em relação e em unidade, é uma

65 Ibid. Investigação VI, § 8, p. 30 (grifo nosso).


66 Ibid. Investigação VI, § 8, p. 31.
67 Ibid. Investigação VI, § 8, p. 30.
68 Ibid. Investigação VI, § 11, p. 36.
forma de síntese. Na medida em que a síntese anterior foi da espécie de uma identificação, a de
agora é da espécie de uma diferenciação (…)”69.
Ou seja: a decepção dá o objeto como “outro” e sabota a confirmação, mas ela não é
uma simples exclusão ou privação do preenchimento, a decepção é “uma forma de síntese tão
específica quanto o próprio preenchimento”70. Assim, a diferenciação assume o mesmo caráter de
passagem sintética da identificação, porque a decepção “pressupõe como que um certo terreno de
concordância”, como quando eu penso A é vermelho e logo em seguida ele se mostra verde: “(…)
nesse mostrar-se (...) no ajustamento à intuição, a intenção do vermelho conflita com a intuição do
verde (...) Mas é inegável que tal coisa só é possível quando tem por fundamento uma identificação
do A (…) é só assim que a intenção pode aproximar-se dessa intuição.” 71 A rasura não redunda em
prejuízo para a clareza intuitiva, diz Castilho (op. cit., p. 46), ela não impede que haja clarificação,
mesmo no caso do anulamento, “ocorre apenas que, aqui, se chega a um contrassenso ‘claro”.
Para Husserl, a identificação e a diferenciação são fundamentos fenomenológicos
comuns da predicação e da determinação. Na identificação, o substrato e o predicado são ligados
pela cópula “é” que determina positivamente o estado de coisas em questão: S é P. Ela responde à
pergunta “o que é” e define-se eo ipso pelo sentido positivo do conhecimento, que rege-se pelo
princípio de identidade. Na diferenciação, o substrato e o predicado são separados pela expressão
“não é” que determina negativamente o estado de coisas de que trata: S não é P. Ela responde à
pergunta “o que não é” e define-se eo ipso pelo sentido negativo do conhecimento, que rege-se pelo
princípio de contradição. Na identificação, as infinitas possibilidades são reduzidas a uma única, o S
é justamente P e nenhuma outra coisa no universo. Na diferenciação, pelo contrário, a negação do S
como P abre o horizonte para infinitas possibilidades, o substrato não é “isto” exatamente e pode ser
qualquer outra coisa no mundo. Pelo fato de reduzir as possibilidades a uma só, a identificação
possui uma prioridade lógica em relação à diferenciação. Como vamos ver, Husserl mantém esse
primado da identidade na caracterização fenomenológica da evidência.
Todavia, deve ser explicado que existem graus de identificação e diferenciação, estas
podem ser totais (na confirmação e decepção plenas) ou apenas parciais. A identificação parcial
ocorre quando o preenchimento corrobora apenas em parte a significação de início visada, e a rasura
pode obrigar a uma revisão: a coisa preenchida é apenas parcialmente o que eu julguei que fosse. A
diferenciação parcial ocorre quando parte da coisa concorda com a significação visada, e outra parte
apresenta disparidades que a contradizem, mas a parte constatada é suficiente para manter intacta a
identidade entre intuição e significação. Quando a comprovação na síntese tende a ser maior do que
69 Ibid. Investigação VI, § 11, p. 36.
70 Ibid. Investigação VI,§ 11, p. 35.
71 Ibid. Investigação VI, § 11, p. 36.
a decepção, a crença na coisa preenchida é motivada e, portanto, robustecida; quando o conflito
tende a ser maior, a crença é desmotivada e, portanto, enfraquecida.
A identificação possui uma prioridade em relação à diferenciação porque mesmo as
diferenças são “identificadas” como “diferenças” e são distinguidas como tais das intuições
confirmadoras. Logo, a estrutura predicativa da diferenciação regida pela identidade é A não é B e
sim C, na qual a diferença é estabelecida a partir da tripla identificação de A como A, B como B (ou
B como indeterminado), e de C como C.
O primado da identidade na definição da evidência é mantido pelo Husserl tardio.
Voltamos a vê-lo, por exemplo, em Lógica Formal e Transcendental, no parágrafo 16, em que
Husserl trata da evidência da clareza e da evidência da distinção no que diz respeito aos modos de
realização do juízo. Com relação à obtenção da evidência judicativa, Husserl fala de uma passagem
sintética do juízo confuso para o distinto, do obscuro para o claro, que equivale a uma relação
dinâmica de preenchimento regida pela identificação:
Se à atividade de opinião que julga de maneira “vaga”, “confusa”, no caso de uma
ideia que sobrevém ao espírito, se junta um tal processo do julgar explícito, então
nós dizemos, baseando-nos na síntese de identificação preenchedora que entra
então em cena, que a opinião confusa torna-se distinta, que só agora nós julgamos
propriamente falando e que o juízo é dado propriamente falando e dado ele
mesmo, enquanto que até aí ele não era senão pré-figurado pela opinião 72.

Husserl estabelece então um contraste entre distinção e clareza. Quando os juízos


eles mesmos são dados em pessoa, no ato de julgar, eles são denominados juízos distintos, e sua
evidência é “proveniente da efetuação do juízo real e propriamente dito” 73. Quando a pessoa que
julga, porém, tem diante de si “isto a que ela quer chegar por intermédio do juízo, ou seja, isto que
ela quer conhecer”, o juízo é emitido com clareza, uma vez que “julgar com clareza é possuir na
efetuação dos passos do juízo a claridade das coisas e no juízo tomado como um todo a claridade
dos estados de coisa”74.
Dito isso, podemos voltar a atenção agora para o capítulo específico da sexta
investigação lógica que trata da questão da evidência. Em primeiro lugar, convém lembrar que a
evidência, definida como “vivência” da verdade, deve ser descrita em conexão com a noção de
adæquatio (adequação), e que a adequação é um ideal, uma meta, que equivale ao ideal da verdade
como “correspondência entre o intelecto e a coisa”.
Na ciência natural hipotético-dedutiva, a ideia da correspondência se traduz em
atividades de comparação das hipóteses com os fatos com o objetivo de corroborar as teorias como

72 Hua XVII, § 16a, p. 50.


73 Ibid. § 16a, p. 53.
74 Ibid. § 16a, p. 53.
próximas da realidade ou provavelmente verdadeiras, ou, no caso contrário, refutá-las como
definitivamente falsas (critério da falseabilidade). O probabilismo do primeiro caso não impede que
o processo da investigação científica seja orientado pelo ideal da constatação definitiva do valor de
verdade das proposições, e, portanto, da comprovação última. A suposição teórica a nível do
pensamento está, desde o início, comprometida com um duplo ideal: a verificação dos estados de
coisas supostos e a consequente exatidão da coincidência entre o modelo dedutivo e os fenômenos
que deste se deduz – aqui, no primeiro nível empírico que é o da experiência (Erfahrung), da pura
observação –, em seguida, pretende-se que as hipóteses explicativas por causalidade sejam
reproduzidas artificialmente em laboratório e resistam ao escrutínio dos testes que possam impugná-
las – aqui, no segundo nível empírico que é o do experimento (Experiment), com recurso à técnica e
com interesse nos resultados técnicos dela provenientes. A atividade científica parte no encalço
desse duplo ideal como uma meta.
Na fenomenologia, a noção tradicional da verdade (Wahrheit) como adæquatio sofre
algumas modificações fundamentais de acordo com os resultados obtidos no estudo das sínteses de
recobrimento. O ideal em leitura fenomenológica é o do completo preenchimento das intenções de
significado, no qual a união sintética das intuições alcança a evidência em estado de perfeição. Diz
Husserl: “Assim, o exame das possíveis relações de preenchimento aponta para uma meta definitiva
dos acréscimos de preenchimento, na qual a intenção pura e global se preenche, não de um modo
intermediário e parcial, mas de um modo último e definitivo.”75
Na adequação ideal, as intuições doadoras se harmonizam completamente com as
intenções significantes sem restar nenhuma lacuna a ser preenchida. O preenchimento é realizado na
íntegra, sem confirmações parciais ou decepções. É claro que, em se tratando da “verdade”, o
modelo de preenchimento que Husserl tem em vista é o da percepção, que tem o caráter intencional
do presentar e não o presentificar puro e simples de uma lembrança ou afiguração. Somos gratos à
percepção pela doação da coisa em sua ipseidade76.
Porém, como sabemos, o objeto da percepção é apreendido em graus diferentes de
perfeição e sombreamento (Abschattung), pois o presentar comporta uma gradação: o objeto só se
exibe por um de seus lados de cada vez, só pela face atual, enquanto os perfis inatuais não-
aparecentes jazem nas sombras. Mesmo assim, as gradações do sombreamento se estendem até um

75 Hua XX.1, § 37, p. 91.


76 A palavra alemã para percepção, “Wahrnehmung”, pode ser etimologicamente decomposta no verbo nehmen (tomar,
captar) e no adjetivo wahr (verdadeiro), com o interessante resultado “captação do verdadeiro”. Husserl explora esse
potencial analítico-etimológico do termo em Hua XXIV § 38, p. 231. “(…) evident ist es zum Wesen der Wahrnehmung
gehörig, daβ sie etwas wahrnimmt, einen Gegenstand, und ich kann nun fragen, als was nimmt sie den Gegenstand für
wahr.” (Tradução problemática: (…) evidentemente, pertence à essência da percepção que ela capta alguma coisa como
verdadeira, um objeto, e eu posso perguntar agora de que modo ela toma o objeto por verdadeiro).
limite ideal: o “limite ideal até onde pode aumentar o recheio do sombreamento, no caso da
percepção, é o próprio no sentido absoluto (assim como, na afiguração, é a imagem absolutamente
semelhante), para cada lado e para cada elemento presentado do objeto” 77. Os sombreamentos são
uniformes na sua apresentação da coisa por lados, sem sobrar nenhum dado intuitivo que não esteja
em conformidade com a intenção a nível do pensamento. Isso recebe o nome de adæquatio: o
consenso de todas as intuições na exibição sintética da coisa por Abschattungen.
E, quando uma intenção de representação é definitivamente preenchida por meio
dessa percepção idealmente perfeita, produz-se uma genuína adæquatio rei et
intellectus: O objetal está ‘efetivamente’ ‘presente’ ou ‘dado’ exatamente como
aquilo-como-o-que (genau als das, als welches) é intencionado; nenhuma intenção
parcial que careça de preenchimento permanece implícita. (…) E assim fica
também eo ipso designado o ideal de todo preenchimento, inclusive o do
significativo; o intellectus é aqui a intenção a nível do pensamento, a intenção da
significação. E a adæquatio é realizada quando a objetidade significada é dada, no
sentido estrito, na intuição, e dada exatamente como aquilo-como-o-que é pensada
e nomeada. Não há intenção a nível do pensamento que não seja preenchida, e
definitivamente preenchida, quando no próprio componente preenchedor da
intuição não estão mais implicadas intenções insatisfeitas 78.

O primeiro “como” (als) da expressão acima genau als das, als welches refere-se à
coincidência perfeita entre o visado e o dado, enquanto o segundo “como” refere-se à estrutura do
modo intencional, o modo pelo qual (como-o-que) o visado deixa-se acomodar na perfeição da
coincidência com o dado. Do conceito de adequação, fenomenologicamente determinado, Husserl
passa à consideração da evidência: é o ideal da adequação que nos dá a evidência. Esta, porém,
pode ser compreendida no sentido lato ou no sentido estrito.
Falamos em evidência, no sentido lato, sempre que uma intenção posicionante
(sobretudo, uma afirmação) é confirmada por uma percepção correspondente e
perfeitamente adequada, mesmo que se trate de uma síntese adequada de
percepções singulares conexas. É legítimo falar então em graus de evidência (…) O
sentido estrito da evidência, na crítica do conhecimento, refere-se exclusivamente a
essa meta última e insuperável, ao ato dessa síntese de preenchimento, a mais
perfeita de todas, que dá à intenção, por exemplo, à intenção do juízo, a absoluta
plenitude de conteúdo, a plenitude do próprio objeto.79

A consideração fenomenológica da “ideia” da evidência como princípio, no sentido


lato, alça-se então à altura do “ideal” da evidência como meta a ser atingida, no sentido estrito. Por
ser um ideal, a realização ocorre por aproximações que se estendem ao infinito, o ideal é uma ideia
regulativa. Sua exequibilidade mede-se pela escala de aproximatividade sempre possível. O que a
regra é o modelo de conformação absoluta entre começo e fim: não há nada no objeto que já não

77 Hua XX.1, Investigação VI, § 37, pp. 90-91.


78 Ibid. Investigação VI, § 37, p. 91.
79 Ibid. Investigação VI, § 37, p. 93.
esteja pré-figurado na intenção, não há nada na intenção que não “caia como uma luva” para
expressar o objeto e vesti-lo com os significados que lhe convêm. A fisionomia do objeto deixa-se
atestar tal como fora traçada, em retrato, pela intenção signitiva, sem distorções.
Na extremidade da meta, a evidência mostra-se “o ato daquela síntese de
recobrimento” que alcança o grau limite de perfeição, é um ato de identificação objetivante cujo
“correlato objetivo é chamado de ser no sentido da verdade ou também de verdade (…)” 80. A
correlação entre evidência e verdade é retomada posteriormente em Lógica Formal e
Transcendental: “‘Verdade’ é a expressão objetiva, ‘evidência racional’, razão, é a expressão
subjetiva e relativa”81.
Pelas considerações acima, põe-se de manifesto que o princípio da identificação (a
identidade) possui um primado na caracterização husserliana da evidência. A partir desse primado,
Husserl pode então concluir com os quatro significados de evidência:
Primeiro significado: a evidência é a vivência da concordância e o “perfazer-se atual
da identificação adequada”, enquanto que a verdade é o correlato desse ato identificante, “é um
estado de coisas, e, enquanto correlato de uma identificação por recobrimento, uma identidade: a
plena concordância entre o visado e o dado como tal.”82
Segundo significado: a verdade é a relação ideal que vigora na unidade do ato de
recobrimento da evidência, ou seja, “a ideia da adequação absoluta como tal”. A evidência, por sua
vez, é a unidade “entre as essências cognitivas dos atos que se recobrem (…) é a ideia que pertence
à forma do ato (...)”83.
Terceiro significado: a verdade é “o objeto dado à maneira do que é visado: ele é o
próprio recheio”84, enquanto que a evidência é a vivência correspondente da verificação desse dado.
Quarto significado: a verdade é “a correção da intenção” em vários níveis: a
“correção do juízo”; a correção como “adequação ao objeto verdadeiro”; “a correção da essência
cognitiva da intenção in specie”85. Esse conjunto de significados que o conceito de verdade
comporta resulta da evidência compreendida como relação entre a intenção vazia e o estado de
coisas efetivamente presente na doação.
Assim, se a verdade decorre do aperfeiçoamento último da Erfüllung, a falsidade será
proveniente da contradição, que comporta sua evidência própria. Mais tarde, nas Meditações
Cartesianas, Husserl fala dessa contraparte negativa da evidência: “A contradição entre nossa

80 Ibid. Investigação VI, § 37, p. 93.


81 Hua XVII § 11b, p. 38.
82 Hua XX.1, Meditação VI, § 39, p. 94.
83 Ibid. Investigação VI, § 39, p. 94.
84 Ibid. Investigação VI, § 39, p. 94.
85 Ibid. Investigação VI, § 39, p. 94.
‘intenção’ e a coisa que nos mostra essa ‘experiência’ produz a negativa da evidência ou a evidência
negativa, cujo conteúdo é a falsidade evidente”86.

2.4 A evidência como efetuação intencional

A concepção madura de Husserl sobre a evidência define esta aqui em termos de


“efetuação intencional da doação das coisas elas mesmas”. O que se deixa destacar nesta última
formulação, particularmente, é o caráter atuante da intencionalidade, ou seja, as operações
constitutivas da consciência que se exercem sobre os objetos. Desse caráter atuante depreende-se,
por sua vez, (I) a correlação entre constituição e doação, isto é, as operações constituintes da
consciência têm sempre um correlato dado, um “objeto”; (II) o objeto está marcado, na doação
evidente, com o selo do “original”, ele é dado originaliter87.
Deve-se ter em vista, porém, que o caráter atuante da evidência pressupõe uma
passividade de fundo, e que esta passividade comporta sua evidência própria. Husserl falou em
Experiência e Juízo de uma “regressão da evidência predicativa à evidência ante-predicativa, ou
objetiva, como regressão à evidência da experiência do mundo da vida” 88. Com a elaboração do
conceito de “mundo da vida”, Husserl se arma do instrumental fenomenológico apropriado para
tratar das evidências anteriores à predicação que radicam num solo de pré-doação passiva. Na
superfície deste solo originário, os objetos estão previamente dispostos e deixam-se abordar pelo
julgar atual como substratos possíveis de predicação e temas possíveis de atividade de
conhecimento.
A palavra “experiência”, no referido contexto, deve ser tomada num sentido mais
concreto, familiar e quotidiano; faz-se com ela uma alusão mais particular à conduta da atividade
prática e axiológica do que à atividade cognoscitiva. As atividades práticas e axiológicas, por seu
turno, pressupõem uma crença passiva no ser. A crença passiva corresponde à “consciência da pré-
doação dos substratos do juízo”89 e cada experiência singular desses substratos ocorre no horizonte
do mundo. Nos termos husserlianos, dizemos que esse horizonte do mundo é o “domínio da
passividade dóxica”, da crença passiva no ser. É claro que, no estudo da doxa passiva, a
“percepção” deve figurar como item fundamental da descrição, mais particularmente: a percepção

86 Hua I, § 5, p. 10.
87 Hua XVII § 59, p. 142. “(...) consciência original: é ‘tal coisa ela mesma’ que eu apreendo, originaliter, em contraste
com a apreensão por imagem ou com toda pré-opinião, intuitiva ou vazia”.
88 HUSSERL, Erfahrung und Urteil. Untersuchungen zur Genealogie der Logik. Introdução, § 12, p. 51. Cabe observar
que é em Experiência e Juízo que Husserl introduz o conceito de Lebenswelt (mundo da vida).
89 Ibid. § 12, p. 52.
externa. A propósito disso, Husserl distingue entre experiência simples, ou sensível, e experiência
fundada. Mas não vamos entrar nos detalhes dessa divisão.
O capítulo primeiro de “Experiência e Juízo” é consagrado à tematização da
experiência ante-predicativa e à descrição das estruturas gerais da receptividade. Husserl entende
que o conceito de receptividade é indispensável. Fenomenologicamente falando, ele corresponde à
orientação do Eu em direção às coisas e ao movimento pelo qual o Eu “acolhe em si isto que lhe é
pré-dado através dos estímulos que o afetam”90. Assim se mostra como as sínteses predicativas se
edificam sobre as experiências ante-predicativas da recepção, e em que consiste a essência de tais
operações. Mas como o tema da “evidência” é o que mais particularmente nos interessa, devemos
nos limitar aqui à tarefa de esclarecer a oposição entre evidência passiva e evidência ativa, tal como
esta última é pressuposta na definição “efetuação intencional da doação das coisas mesmas”.
Em que medida os dois casos de evidência se opõem? Husserl, na verdade, afasta a
ideia de oposição. Entre passividade e atividade reside, antes, uma diferença de grau, e não de
natureza:
Esse conceito fenomenologicamente indispensável de receptividade não está, de
nenhum modo, em posição de exclusão com o conceito de atividade do Eu, sob o
qual será preciso compreender todos os atos saídos de modo específico do Eu como
polo; será preciso, ao contrário, considerar a receptividade como o grau inferior da
atividade. O Eu consente com isto que lhe advém, e o acolhe no seu seio 91.

Feitas as devidas considerações, no que diz respeito à relação entre ativo e passivo, e
pelas quais constatamos que a evidência é uma atividade exercida sob um solo de passividade
originária, que tem sua clareza própria, podemos nos deter então no segundo conceito que aparece
na caraterização geral da evidência como “efetuação intencional”, a saber, no conceito de
“intencionalidade”. Que significados “intencional” comporta neste caso, e que um olhar
corretamente treinado na amostragem fenomenológica deve fazer sobressair?
Conforme está implícito nas considerações já feitas, a evidência é uma forma de
intencionalidade que desempenha papel preeminente na vida da consciência, e sua determinação,
decerto, deve incluir o conceito de intencionalidade reservando a ele uma posição privilegiada. Isso
se vê pelo que Husserl afirma, num determinado momento: “(…) a evidência é a forma geral por
excelência da ‘intencionalidade”, para, logo em seguida, reiterar: “(…) A intencionalidade em geral
(...) e a evidência, a intencionalidade da doação das coisas mesmas, são conceitos que, por
essência, são aparentados (…) a evidência é um modo de intencionalidade universal, relacionado à
vida inteira da consciência”92.
90 Ibid. § 17, p. 83.
91 Ibid. § 17, p. 83.
92 Hua XVII, § 59 e § 60, pp. 142-143.
Os traços gerais da intencionalidade, segundo Castilho (op. cit., p. 46 a 48), são a
“modificação (Abwandlung)”, a “remissão (Verweisung)” e sua “propriedade recíproca”, a
“prescrição reflexiva”, a “passagem sintética”, a estrutura do “possibilitamento” e do “horizonte”, o
“fluxo temporal”. Por ora, ser-nos-á de mais estrito interesse explicitar a modificação e a remissão.
Será o caso de adiantar que elas são estruturas pertinentes à vida intencional que organizam a
consciência enquanto “consciência de”.
Na primeira estrutura, temos em vista modos de consciência modificados que
derivam de um modo original. Insiste Husserl em dizer que o modo original do “estar em presença
do objeto” dá nascimento a uma série de modificações intencionais, que são derivadas do ato
doador original. É o caso da percepção que entra na origem de uma série de modificações modais da
intentio como a “lembrança” da coisa percebida, a sua “afiguração”, a sua “intelecção”, etc. “Um
único e mesmo objeto será, assim, consciencizado segundo modos-de-consciência diferentes e esses
modos-de-consciência não são contingentes; possuem, ao contrário, em cada caso (je), um ‘Eidos
bem determinado” (CASTILHO, 2015, p. 44).
Este Eidos, ou seja – a essência de determinado modo intencional –, é que estabelece
o tipo de experiência que coloca consciência e consciencizado em relação. O exemplo mais à mão
que surge para ilustrar essa determinação eidética é o da vivência espacial:
(…) a intencionalidade sempre proporciona ou uma “experiência-do-próximo”
(Erfahrungsnähe) ou uma “experiência-do-afastado” (Erfahrungsferne). Pode-se
dizer (…) que as intencionalidades “se ordenam” segundo uma “escala de
distância” com respeito às coisas de que são de. (…) em face de cada
intencionalidade, é lícito afirmar que ela está disposta “idealmente” numa escala,
segundo sua “originariedade” (Ursprunglichkeit) ou sua “derivatividade”
(Abkünftigkeit). (CASTILHO, 2015, p. 44).

Em que pese, todavia, o grau de modificação pelo qual passa o objeto, no juízo, no
desejo, na imagem, no sentimento, e afins, em que o objeto fica mais ou menos perto ou longe, isso
não altera em nada o fato de haver sempre na intencionalidade uma estrutura de remissão que se
reporta ao original. Esse segundo traço geral da intencionalidade põe sempre a consciência derivada
no encalço da consciência original, o que equivale a dizer que a modalidade de ato modificada
segue os rastros da modalidade que lhe deu origem, a qual pode por sua vez ser a modificação de
outra modalidade, e assim por diante. No entanto, a remissão não anda em círculos e sempre
termina numa modalidade última, que não reenvia a outra e que fecha a estrutura de remissão.
Castilho, (op. cit., p. 45) chama a esta modalidade última o “imodificado”, o
“irremetente”. Trata-se justamente do original, presente na percepção, que impõe à consciência esse
limite remissivo, pois no ser consciente perceptivo a intencionalidade se vê imodificada, não há
mais para onde remeter, ela não se reporta “a um outro qualquer, e sim à coisa ‘ela própria”. Com
efeito, diante do modo-de-doação intencional modificado, sempre se pode perguntar a que outro
modo-de-doação ele remete, ao passo que “o imodificado se determina então como o irremetente”,
que interrompe a migração remissiva diante do ponto final inscrito pela coisa ela própria “dada” na
doação.
Mas a propriedade da remissão ao original não se estrutura sem que haja recíproca. A
consciência tanto pode sintetizar os derivados e remetê-los ao original, obedecendo a uma “típica
determinada”, quanto pode pôr-se na passagem da recordação de uma ideia para a percepção da
idealidade (visão eidética), sob a prescrição de uma típica diferente (cf. CASTILHO, 2015, p. 46).
Não é um simples episódio acidental o fato de Husserl recorrer com frequência à
analogia da oposição entre polos – o polo do Eu e o polo do objeto – para descrever a correlação
intencional e se valer da imagem da esfera para ilustrar essa polarização. Se a analogia não segue
sem inconvenientes, como a excessiva formalização geométrica da coisa, por outro lado, ela cumpre
à risca a função de fornecer os símiles apropriados para descrever a estrutura remissiva das
modalidades originais e derivadas de consciência. No centro da esfera está instalado o Eu, e, deste
centro, as intenções saem como raios na direção do objeto, as intenções irradiam, por assim dizer,
do centro da esfera na direção da circunferência. Consideremos as quatro figuras abaixo:

Na figura de número 4 acha-se traçado o raio A-E, enquanto nas figuras 1, 2 e 3 estão
traçados apenas alguns segmentos de reta recortados do raio A-E, respectivamente, A-B, A-C e A-
D.
Na figura 1, consideremos que o segmento de reta A-B, que começa no centro A do
círculo e termina no ponto B, seja a relação intencional da fantasia, logo, o ponto A representa o
polo Eu que fantasia, enquanto o ponto B representa o polo objeto fantasiado.
Na figura 2, consideremos que o segmento de reta A-C, que começa no centro A do
círculo e termina no ponto C, seja a relação intencional da recordação, logo, o ponto A representa o
polo Eu que recorda, enquanto o ponto C representa o polo objeto recordado.
Na figura 3, consideremos que o segmento de reta A-D, que começa no centro A do
círculo e termina no ponto D, seja a relação intencional da ideação por conceito, logo, o ponto A
representa o polo Eu que idealiza, enquanto o ponto D representa o polo objeto ideado
conceitualmente.
Na figura 4, consideremos que o raio A-E, que parte do centro A do círculo e termina
no ponto B da circunferência, seja a relação intencional da percepção, logo, o ponto A representa o
polo Eu que percebe, enquanto o ponto B representa o polo objeto percebido.
Agora pensemos no seguinte. Nas figuras 1, 2 e 3, onde são traçados apenas alguns
fragmentos de reta recortados do raio traçado na figura 4, as modalidades de ato não passam de
derivações modificadas recortadas do modo originário da percepção, representado pelo raio A-E.
Isso traduz em imagem o que dissemos acima sobre a “modificação” (Abwandlung).
Ponderemos, por outro lado, o fato de que só na figura 4 o segmento de reta alcança a
circunferência e converte-se num dos raios possíveis do círculo. Isso traduz em imagem os
diferentes níveis de polarização entre Eu e objeto. Nos polos derivados, a consciência não alcança o
original, quer dizer, não chega à situação-limite da doação, que é a da coisa mesma. No polo
imodificado ou irremetente, pelo contrário, a consciência atinge o original. No ponto E o objeto é
finalmente dado como percebido, e a percepção tem de especial o fato de que coincide com o limite,
com a extremidade do círculo, ou seja, com a circunferência. Para além dessa extremidade não há
mais doação possível do objeto. Portanto, a remissão de qualquer dos pontos a outro ponto, de B
para C e de C para B, ou de C para D e de D para C, ou de D para B e de B para D, vai sempre
culminar no ponto E, que se oferece como fronteira ou limite remissivo. Isso ilustra, por sua vez, a
estrutura da remissão (Verweisung).
Podemos pontuar agora, em relação à evidência, que, quanto mais a reta se afasta do
centro da esfera e se aproxima da periferia, mais aumenta a originalidade do dado e, por
conseguinte, mais a consciência do objeto ganha em evidência originária. É exatamente no ponto E
que a vivência da doação do objeto alcança a plenitude intuitiva, e a consciência se vê iluminada
pela luz da evidência. Na reta A-E, que representa a relação intencional por excelência, o objeto é
dado no “original”, por isso dizemos que se trata de uma relação “di-reta”, quer dizer, a reta
atravessa a área que vai diretamente do centro à borda e toca o ponto-limite do círculo. Na
evidência, o objeto mesmo cruza no caminho do raio intencional e fica a descoberto diante dele, o
objeto encontra-se “exposto” ao olhar que o a-borda, por assim dizer.
Essa ilustração que tiramos da geometria, porém, não faz completa justiça ao estado
de coisas descrito por Husserl, pois leva a pensar que a evidência da percepção é o ponto derradeiro
do segmento de reta, e que ele é o último a ser atingido pelo raio intencional. Mas o que acontece é
justamente o contrário. Para o filósofo, a percepção é “o modo primitivo da doação das coisas
mesmas”93. Por ser primitivo, o objeto percebido deve ser visto como o ponto de partida da reta, e
não como o ponto de chegada. Na doação evidente originária, a reta parte da extremidade para o
núcleo, e não o inverso. Com relação à “experiência-do-próximo” (Erfahrungsnähe) e à
“experiência-do-afastado”, (Erfahrungsferne), assinaladas por Castilho, resulta que mais próximo
encontra-se justamente o ponto que coincide com a circunferência, embora apresente na figura
maior distância em relação ao centro, e resulta que mais afastados do centro se acham os pontos
intermédios, localizados no interior do círculo, embora na figura a porção de área entre eles e o
centro seja menor.
No entanto, dever-se-á introduzir aqui duas ressalvas:
(I) Primeiro, que a modalização do original nos derivados não implica numa
precarização do conhecer, e não é correto supor que Husserl estivesse a orientar o conceito de
conhecimento pela percepção e, em geral, pela percepção sensível, cometendo com isso uma
violência contra o saber lógico. Fink (1966, p. 105) nos esclarece, quanto a isso, que nas
Investigações Lógicas “não está em questão um primado da intuição enquanto faculdade de
conhecer, mas um primado da intuitividade de todo conhecimento face à realização do
conhecimento puramente simbólico”. Desse modo, Husserl não toma o caráter de intuitividade da
percepção, a simples apreensão ou posse das coisas mesmas na autodoação, como referência para o
conceito de conhecimento, de sorte que ela fosse “proclamada o caráter fundamental de todo
conhecimento em geral, o que faria violência ao conhecimento lógico” (Ibid., p. 105).
É justamente o contrário. Deve-se dizer, em atenção ao fato de que a prioridade na
fenomenologia é dada à intuitividade do conhecer em geral, que Husserl, ao invés de partir de uma
predileção por uma faculdade cognoscitiva em detrimento das demais, restabelece a dignidade
epistêmica de todo modo cognoscitivo. “A pura e simples autodoação que se apresenta num só
golpe não é senão um caso particular característico da percepção sensível”, e que outros casos
particulares, como “o conhecimento categorial e o eidético, pelos quais a autodoação não é possível
senão ao termo de uma construção por múltiplas fundações de ordem superior”, apresentam também
“por toda parte e de todo modo sua evidência, autodoação da coisa nela mesma evidente (estados de
coisas, valores e estados de valores, etc)” (Ibid., p. 105), e que o conjunto constitui o conhecimento
no sentido pregnante do termo como evidência. Assim,

93 Ibid. § 59, p. 141.


(…) a novidade fundamental da doutrina de Husserl é a primeira elucidação da
essência intencional da evidência como modo fundamental que pertence à
intencionalidade em geral (a todos os tipos de atos), que encontra sempre seu modo
contrário na intenção “simbólica” “vazia”. Sempre em referência a isto que é
consciente na consciência de evidência, pode-se notar: conforme a evidência é
simples ou fundada, os objetos dados se dividem, na intenção evidente, em objetos
simplesmente sensíveis e objetos categoriais. (Ibid., pp. 105-106).

(II) Segundo, não é como se a consciência se visse hipnotizada pela visão clara desta
ou daquela singularidade objetiva e, induzida a um sonambulismo epistêmico pela evidência,
permanecesse cega para o horizonte de mundo que circunscreve toda atividade cognoscitiva. A
Erlebnis ou vivência é sempre em cada caso uma consciência de alguma coisa, conforme o termo
intencionalidade exprime, mas se aquela palavra for tomada em toda a extensão que seu significado
comporta, dever-se-á assinalar que a vivência não pode ser reduzida a uma consciência de isto ou
de aquilo. “Ao contrário, a Fenomenologia, como Filosofia, trata de alcançar por mostração, não
obstante a experiência de isto ou de aquilo, o todo da experiência ou, como diz Husserl, a
experiência como experiência-de-mundo (Welterfahrung)” (CASTILHO, 2015, p. 31).

2.5 Hierarquização fenomenológica das evidências

A partir da evidência considerada primeira em si, Husserl fala de uma hierarquização


das evidências. Para o filósofo, a hierarquia das evidências corresponde a uma hierarquia dos juízos
e de seu sentido. Portanto, como o juízo mais efetivamente original é o que se volta para a
determinação dos indivíduos, “as verdades e as evidências primeiras em si devem ser as verdades e
as evidências individuais”94, que são dadas na experiência.
Algo que importa muito assinalar é que, com a concepção de hierarquia, Husserl tem
em vista a descrição de diferentes níveis de evidência, e que essa concepção de “níveis” encontra
um forte rival na doutrina de Brentano sobre a evidência, que sustenta a posição contrária de que
não há níveis de evidência: ou um conhecimento é evidente ou não é. De acordo com Heffernan
(1999, p. 126), Brentano vê a evidência “como uma característica dos atos ou uma propriedade dos
juízos”, tratar-se-ia assim de um “fenômeno lógico” que se opõe à mera “motivação psicológica”.
Brentano, portanto, é o primeiro “a arguir sistematicamente contra a noção do psicologismo lógico
de que a evidência é um sentimento” (HEFFERNAN, 1999, p. 126), e, nesse sentido, ele antecipa
Husserl. No entanto, para Brentano, a presença da evidência no juízo é um “tudo ou nada”:
Não pode haver graus de evidência, como às vezes se supõe, porque se um
juízo é caracterizado como correto, não pode ser mais ou menos correto. Só

94 Ibid. § 84, p. 182.


que existem, certamente, muitos perigos de engano, e estes podem ser
maiores num caso e menores em outro. Isso explica as maneiras de falar:
mais plausível, plausível no mais alto grau, e assim por diante95.

O espaço nesta tese não é suficiente para detalhar a controvérsia entre Brentano e
Husserl no que diz respeito aos graus de evidência. Logo, vamos passá-la por alto para nos referir
mais particularmente à diferença de grau mais importante que Husserl estabelece entre as
evidências. A saber, a diferença entre evidência adequada e inadequada, que é extraída do conceito
de adequação.
Lemos a seguinte descrição nas Meditações Cartesianas: quando o cogito vive em
suas intenções, comporta igualmente a possibilidade de voltar o olhar reflexivo para sua cogitatio
ela mesma de maneira a convertê-la em objeto. Trata-se da mudança da percepção transcendente
para a imanente. O cogito, assim, assume a forma de uma nova cogitatio que se dirige sobre a
primeira de modo a tê-la como alvo direto da apreensão. Aí se trata de uma percepção do cogito
sobre si mesmo que possui uma evidência adequada, porque a percepção e o percebido formam por
essência uma unidade sem mediação, a unidade de uma única cogitatio concreta.
A percepção transcendente, porém, só pode ser inadequada, porque o objeto dito
“externo” está excluído por essência do vivido, ele pertence à natureza real (reale) e não se encontra
no encadeamento do vivido. O vivido, assim, só pode alcançá-lo instalando-se em pontos de vista
parciais que deixam sempre uma multiplicidade de lados do objeto a repousar nas sombras enquanto
dirigem o olhar para o lado atual. A mesa, por exemplo, ocupa uma posição no espaço, junto à
mobília da casa. Para reparar em todos os detalhes dela, somos obrigados a percorrê-la com o olhar,
sempre mudando os pontos de vista possíveis. Assim, damos a volta em torno da mesa, vemos os
diferentes lados dela que interpelam a atenção atual, o lado de baixo, de cima, o direito, o esquerdo,
etc. Sob determinada perspectiva, a superfície da mesa aparece no formato de uma elipse; quando a
olhamos do alto, porém, constatamos que seu formato, na verdade, é circular. Só podemos enxergar
a mesa nos colocando em determinado ponto de vista. Husserl observa que a mesa aparece sempre
por esboços, por perfis sucessivos de aparecimento. Está claro, porém, que nenhum esboço em
particular mostra a mesa por inteiro. Ela é simplesmente pressuposta em cada uma das aparições.
Como vimos, Husserl usa o termo “Abschattung” para se referir ao modo de
aparecimento por esboços. O que chamamos de “mesa”, afinal, não passa da síntese de uma
infinidade de aspectos que o olhar apreende, embora esteja excluída a possibilidade de todas as
95 BRENTANO, Franz. Die Lehre vom richtigen Urteil (1874–1895). Bern: ed. Franziska MayerHillebrand, 1956, pp.
111-112. “Grade der Evidenz, wie dies zuweilen angenommen wird, kann es nicht geben, denn wenn ein Urteil in sich
als richtig charakterisiert ist, kann es dies nicht mehr oder weniger sein. Bloß das ist richtig, daß es Gefahren der
Täuschung gibt, und daß diese im einen Fall größer sind als im anderen. So erklären sich die Redeweisen:
einleuchtender, im höchsten Grade einleuchtend u. dgl”.
silhuetas possíveis aparecerem de uma só vez. Nas Abschattungen, a visão do objeto é lacunar, ela
se atualiza no tempo sem nunca chegar a se completar por inteiro. Assim, o objeto não cessa de
reaparecer “diferente” dependendo do ponto de vista que tomamos sobre ele. É a consciência, por
sua vez, que efetua a ligação sintética entre as aparições concordantes, e o conhecimento do objeto
como uma totalidade unificada depende da atividade da consciência exercida sobre ele. Assim, o
mundo só pode ter uma evidência presuntiva, por causa da forma unilateral pela qual e como ele
aparece.
Essa imperfeição da evidência tende a diminuir em e pela realização de cadeias
originárias de atos que conduzem, por passagens sintéticas, de evidência a
evidência. Mas nenhuma síntese concebível pode atingir a adequação completa e
acabada, e sempre ela se acompanha de pré-intenções e de co-intenções não-
preenchidas. No entanto, a experiência externa (…) é por essência a única instância
de verificação confirmadora, na medida, evidentemente, em que a experiência –
que decorre passiva ou ativamente – possui a forma de uma síntese de
concordância96.

Quais são então todas as diferenças de gradação da evidência? Diz Heffernan que das
estruturas heurísticas dos pares “vazio” e “cheio”, “presente” e “ausente”, a descrição
fenomenológica extrai as seguintes distinções fundamentais da evidência:
1. Absolute evidence versus relative evidence. 2. Adequate evidence versus
inadequate evidence. 3. Apodictic evidence versus dubitable evidence. 4. Authentic
evidence versus inauthentic evidence. 5. Determinate evidence versus
indeterminate evidence. 6. Final evidence versus provisional evidence. 7. Genuine
evidence versus deceptive evidence. 8. Immediate evidence versus mediated
evidence. 9. Perfect evidence versus imperfect evidence. 10. Presuppositionless
evidence versus contingent evidence. (HEFFERNAN, 1997, p. 132).

96 Hua I § 28, p. 52.


REFERÊNCIAS COMPLEMENTARES:

CASTILHO, Fausto. Husserl e a via redutiva da pergunta-recorrente que parte da


Lebenswelt. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2015.
FINK, Eugen. La philosophie phenomenologique d’Edmund Husserl face à la
critique contemporaine. Traduit de l’allemand par Didier Franck. In: De la Phénoménologie, by
Martinus Nijhoff, La Haye, 1952, Paris, pp. 95-175.
HEFFERNAN, George. An Essay in Epistemic Kuklophobia: Husserl’s Critique of
Descartes’ Conception of Evidence. Netherlands: Kluwer Academic Publishers, pp. 89–140, 1997.
___________________. A Study in the Sedimented Origins of Evidence: Husserl
and His Contemporaries Engaged in a Collective Essay in the Phenomenology and Psychology of
Epistemic Justification. Netherlands: Kluwer Academic Publishers, pp. 83–181, 1999.
LÉVINAS, Emmanuel. Théorie de l’Intuition dans la Phénoménologie de Husserl.
Paris: Libraire Philosophique J.Vrin, 1994.
MOURA, Carlos Alberto Ribeiro de. Crítica da razão na fenomenologia. São Paulo :
Nova Stella: Editora da Universidade de São Paulo, 1989.
SEÇÃO III

A RELAÇÃO HUSSERL – DESCARTES. CARTESIANISMO E ANTI-


CARTESIANISMO NA FENOMENOLOGIA

Introdução

Uma primeira parte será dedicada a apresentar as meditações de Descartes e sua ideia
de uma Prima Philosophia.
Uma segunda parte será dedicada a considerar a crítica de Husserl ao caráter circular
da evidência cartesiana, baseada no estudo de Heffernan: “An Essay in Epistemic Kuklophobia:
Husserl’s Critique of Descartes’ Conception of Evidence”. Aqui a relação entre Husserl e Descartes
será considerada do ponto de vista estrito da crítica de Husserl da noção cartesiana de evidência.
Para Heffernan, o que Husserl diz sobre Descartes decorre principalmente do que ele diz sobre a
noção de Descartes sobre a evidência.
Uma terceira parte será dedicada a considerar as diferenças entre Husserl e Descartes
baseada na proposta de que em Husserl há um primado do Princípio de Identidade na caracterização
da evidência, ao passo que em Descartes há um primado do Princípio de Distinção, conforme uma
leitura de Brentano dos conceitos cartesianos de clareza e distinção.
Uma quarta parte será dedicada a considerar a relação geral entre Husserl e
Descartes, baseada em estudos recentes de Jean-Luc Marion “En quel sens la phénoménologie peut-
elle ou non se réclamer de Descartes?” e Renaud Barbaras “Qu’est-ce qu’une chose qui pense?”, de
modo a determinar o alcance, o sentido e a consistência do “cartesianismo” e do
“anticartesianismo” na fenomenologia husserliana.

3.1 Descartes e as meditações sobre Prima Philosophia

3.1.1 Primeira Meditação

Na primeira das seis meditações, Descartes se dá conta de que admitira muitas


opiniões falsas ao longo da vida, acreditando serem verdadeiras, e que hoje, refletindo melhor, ele
percebe que nada que sobre elas construiu parece certo, sendo possível colocá-las todas sob a
suspeita de falsidade. Descartes vê assim que, se quiser estabelecer algo de firme e certo nas
ciências, será necessário colocar abaixo todas as antigas opiniões em que até então acreditara, a
começar dos próprios fundamentos em que elas repousam.
Para negar o assentimento às ciências – diz o filósofo – basta que encontre em cada
uma delas uma só razão que seja de duvidar. Assim, depois de ter derrubado os princípios gerais
que se mostrarem duvidosos, todas as ciências desmoronam, sem que seja preciso percorrer todas
elas. A proveniência de cada conhecimento em particular é o primeiro item a ser examinado.
Descartes declara que tudo o que ele havia consentido ser o mais verdadeiro, até o momento, fora
recebido justamente dos sentidos, isto é, através de algum órgão sensorial. Sobre isso, cabe notar
que é um sinal de prudência não confiar inteiramente nos sentidos, uma vez que eles já nos
enganaram, e nada garante que aquilo que já nos enganou uma vez não esteja a nos enganar sempre.
No entanto, parece que a utilidade de tamanha dúvida não seja tão evidente, a
princípio. Descartes deve apresentar, por isso, alguns motivos que falam a favor da necessidade da
dúvida: (a) libertar dos preconceitos; (b) aplainar um caminho para a mente ficar livre dos sentidos;
(c) mostrar em seguida como é impossível suspeitar das coisas que se descobrirem verdadeiras,
depois de resistirem a tamanha dúvida.
O procedimento da dúvida universal revela-se então necessário, assim que nos
propomos não agir, mas quando assumimos a pretensão de encontrar algo certo e indubitável nas
ciências. A partir das coisas que se revelarem indubitáveis, o próximo passo será encontrar os
princípios nos quais o conhecimento está fundado. Descartes levanta nessa altura as razões por que
podemos, de algum modo, duvidar do conhecimento obtido pelas sensações: (a) os sentidos às vezes
enganam, sendo por isso prudente nunca confiar cegamente no que uma vez já nos enganou; (b)
posto que, com alguma frequência, estando adormecidos, havemos nos persuadido de coisas usuais,
como se estivéssemos despertos, é manifesto que a vigília não pode ser distinguida do sono por
indícios certo; (c) segue, portanto, a pôr-se crédito nos argumentos anteriores, que as coisas reais
podem não ser mais do que coisas imaginárias, sem que nos demos conta de que o sejam.
No entanto, após uma breve reflexão, Descartes chega à conclusão de que será
preciso confessar pelo menos, com relação às coisas tidas por reais no sonho, que se, por um lado,
elas não são verdadeiras, por outro lado, elas só puderam parecê-lo por similute de outras coisas
que, na certa, o são. Aqui, é possível recorrer a uma analogia com um pintor que, para figurar
personagens imaginárias, não inventa formas novas e desconhecidas, mas, antes, ele usa do artifício
de misturar partes e membros de criaturas já vistas. Ou, então, se esse pintor conseguiu inventar
algo novo, pelo menos as cores que usou para compô-lo são as mesmas que já estiveram, alguma
vez, presentes aos seus sentidos.
Vê-se que as partes e as cores usadas pelo pintor, para compor figuras de ficção,
devem pelo menos ser verdadeiras, embora as figuras não o sejam. Ao pegar esse argumento e
transpô-lo para o caso de certos princípios, somos levados a decidir a favor da existência dos
mesmos, pois é preciso admitir que existem algumas coisas simples e gerais que estão na base de
nossos pensamentos, do mesmo modo como as formas e cores reais estão na base da imagem
figurada na pintura.
Propriedades como a extensão, a figura, a quantidade ou grandeza, o número, o
lugar, o tempo, parecem possuir esta natureza da simplicidade e da generalidade, pois são
propriedades que pertencem por igual a todos os corpos materiais, e não podem ser separadas da
natureza deles. Isso leva a concluir, necessariamente, que as disciplinas tais como Astronomia,
Física, Medicina, não são do mesmo gênero daquelas como a Aritmética e a Geometria, na medida
em que elas dependem da consideração de coisas compostas, sendo, por isso, suscetíveis à dúvida,
ao passo que essas últimas disciplinas, ao tratarem de coisas tão simples e tão gerais, contêm algo
independente dos sentidos, não estando, por isso, sujeitas a nenhuma espécie de dúvida.
Mas a acrescentar a essas considerações, resta ainda o fato – observado aqui por
Descartes – de que ele possui, fixa em sua mente, certa opinião de que há um Deus onipotente e
criador. E já que esse Deus, que dizem ser sumamente bom, não pode ter desejado enganar sua
criatura, ao fazê-la acreditar, pelos sentidos, que há um mundo, só pode seguir-se então, como
resultado, que essas mesmas coisas, ao serem apreendidas, são-no verdadeiramente, ou seja, elas
existem deveras.
Com efeito, logo que se tenha como certo que Deus é sumamente perfeito e
poderoso, a conclusão que se chega não pode ser outra além desta última, pois se Ele houvesse
criado um ser que sempre erra, julgando acertar, isso seria testemunho de que Ele não é tão perfeito
e poderoso como dizem, a avaliar Sua perfeição por comparação com o grau de perfeição do ente
criado. Assim, a probabilidade de que estou a errar tanto mais aumenta quanto menos poderoso for
o ser que me criou. Mas, tomando a matéria pelo lado inverso, se Deus é perfeito como dizem-No
ser, é evidente que eu não erro nos meus juízos. Contudo, como salta aos olhos que, pelo menos em
algumas ocasiões, eu estou sujeito ao erro, deveria contrariar também a Deus que eu errasse de vez
em quando, assim como repugna a Ele que eu erre sempre. Pois o erro, estando na criatura, mesmo
que seja uma única vez, diminui proporcionalmente a perfeição do criador.
Descartes resolve, por conseguinte, recusar por enquanto o assentimento a quaisquer
opiniões não esclarecidas, pelo menos até o momento em que algo seja descoberto de maneira clara
e evidente. Assim, a título provisório, ele supõe haver não um Deus sumamente bom, mas um gênio
maligno que, detendo o mesmo poder divino, esteja a enganá-lo, colocando diante dele a mera
imagem de um céu, uma terra, um ar, etc., para fazê-lo acreditar que tais coisas existem, quando não
passam de um sonho. Descartes assim o faz, confessando ao mesmo tempo que, se ele não for capaz
de chegar por fim à verdade, que, pelo menos, resista em continuar a ser iludido, negando depositar
qualquer crença em tais falsidades. Desse modo, o enganador já não será capaz de impor a ele algo
que não contenha realidade.

3.1.2 Segunda Meditação

Na segunda das meditações, Descartes relata como a mente, no uso de sua própria
liberdade, decide levar a cabo a operação proposta de estender o alcance da dúvida até onde for
possível, na esperança de deparar com algum limite, isto é, algo que seja, por si mesmo, indubitável,
capar de barrar o caminho da dúvida. A mente se encarrega, portanto, de remover todas as coisas
que admitem, o mínimo que seja, algum motivo de suspeição. Para isso, sua investigação deve
prosseguir até onde suceda a ela conhecer algo certo, ou então, caso isso não seja possível, tornar
evidente pelo menos que a única certeza é a de que nada há que seja perfeitamente certo.
Assim, os modos da coisa sensível: a extensão, a figura, o movimento, o corpo, o
lugar, caem sob o crivo da dúvida, podendo ser simples fantasia. Descartes não permite que seja
feita nem mesmo a suposição de que há um Deus, já que o que supomos ser o criador, na verdade,
pode revelar-se, no final, ser apenas criatura, ou seja, Deus pode ser um simples produto criado pela
imaginação, a qual é capaz de misturar formas, membros e cores tirados da sensação, tal como
ocorre na pintura.
Descartes assume o discurso em primeira pessoa: se existe a possibilidade de que eu
mesmo seja o autor de tudo que creio existir, como simples ficção, não se torna então manifesto que
eu, pelo menos, que assim o imagino, não devo existir deveras? Por que, depois de compilar todas
as coisas que podem ser postas em dúvida, não é verdade que resta, ao menos, eu, que duvido? Não
estou, por isso mesmo, isento de toda possibilidade de não existir? Porque a existência é a primeira
condição, única e indispensável, para se estar em erro. E mesmo que exista um gênio maligno, e que
ele me engane, isso não exclui o fato de que devo existir, primeiro, para que ele depois me induza
em erro. Posso, na verdade, não estar unido a corpo algum, todos os meus sentidos podem ser um
mero sonho. Nada disso basta para fazer com que eu, que penso, seja capaz de duvidar que exista,
porque, para pensar-me como não existindo, a primeira condição é justamente que eu exista. Para
Descartes, portanto, o eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeiro toda vez que proferido ou
concebido pela mente.
Mas se essa série de meditações, por um lado, resolve o problema do ponto
arquimediano – sobre o primeiro dado firme, evidente e indubitável – por outro lado, ela não ajuda
em nada a decidir que tipo de coisa é esta, que pensa, e que não pode duvidar de si quando pensa. O
primeiro impulso que temos, em relação a essa pergunta, é responder com base na tradição: eu sou
um animal racional. Descartes, no entanto, rejeita logo esta solução, já que ela, na sua opinião, em
lugar de resolver, acaba duplicando o problema. Porque, com efeito, surge logo em seguida a
dificuldade de definir o que seja homem e o que seja animal, e a questão, por esse caminho, ver-se-
ia embaraçada em duas complicações ao invés de uma.
Parece, no entanto, que a solução esteve clara desde o início, pois, se é mister admitir
que eu penso, para duvidar, e que existo necessariamente, ao pensar, fica manifesto que a única
propriedade que não pode ser separada de mim, sem que eu deixe de existir, é o próprio
pensamento. O resto: braços, pernas, mãos, cabeça, podem ser mera ilusão sem que isso
comprometa em nada o fato de que existo, deveras. Além disso, parece que as coisas que dissemos,
antes, pertencerem à natureza do corpo (terminar em alguma figura, ser extenso e ocupar um lugar
que lhe é próprio, com exclusão de outros corpos), não podem ser atribuídas à natureza da mente,
porque todo corpo é percebido pelos sentidos, e pode haver de fato um gênio maligno empenhado
em enganar estes últimos. Por conseguinte, será prudente não afirmar por enquanto a existência de
coisas corporais.
Com o pensamento, as coisas se passam de outra maneira. Com efeito, somente o
pensamento não pode ser separado daquilo que sou. Descartes reserva então o título de coisa
pensante (res cogitans) para designar esse ente singular, que existe enquanto pensa. Parece, pois,
que tudo o que foi suposto até agora como não existindo, por obra de um gênio enganador, admite
ser pensado assim por diferença da coisa pensante, cuja possibilidade de não existir está, em
absoluto, fora de cogitação. Acontece, com efeito, que a mente possui modos que não podem ser
separados dela (como, por exemplo, entender, afirmar, negar, duvidar, querer, desejar, sentir), ao
passo que os modos da coisa corporal (cor, som, frieza, impenetrabilidade, etc.) podem ser
separados dela por um ato de imaginação.
Descartes declara, portanto, que para que a mente consiga apreender
apropriadamente sua natureza, sem ser desviada, é preciso preveni-la para que se mantenha afastada
da imaginação, que só se aplica aos sentidos, os quais podem não ser senão um sonho. Mas importa
reter ainda, com relação à imaginação, que mesmo que se trate de uma faculdade enganadora, na
medida em que se aplica aos sentidos, nem por isso é menos certo que o eu, que dela faz uso, exista
necessariamente, embora toda coisa a mais por ele imaginada seja falsa. A própria força de
imaginar, que reside no eu, não está sujeita a ser simples ilusão, mesmo que as demais coisas, por
ela imaginadas, sejam-no inteiramente.
De onde extrai-se a conclusão de que todas as aparências podem ser falsas, já que
existe a possibilidade de que eu esteja dormindo. No entanto, parece-me de tal modo que vejo, que
ouço, que sinto, que isso não pode ser posto em dúvida. Ainda que imagine e sinta ficções, o ato de
imaginar e sentir é indubitavelmente real. Para Descartes, sentir, ouvir, ver, considerados
apropriadamente, nada mais são do que pensar.
Causa admiração, no entanto, que as coisas que são tocadas, vistas, ouvidas, possuam
menos clareza e distinção do que eu mesmo, quando penso nelas. Tomemos, então, como exemplo,
um pedaço de cera: parece não haver nada nela que não seja manifesto, de imediato, à mente. Sua
dureza, sua cor, sua temperatura, o ruído que ela faz ao ser golpeada com a mão, etc. Contudo, ao
aproximar a cera do fogo, tudo que de evidente havia nela, do ponto de vista dos sentidos, se desfaz,
não sobrando senão uma massa desfigurada em nada semelhante à cera. Não obstante, ninguém
nega que se trata do mesmo pedaço de cera de antes.
Fica claro, assim, que aquilo que constitui a cera, fazendo-a ser concebida como tal
pelo entendimento, não se reduz à doçura, nem à fragrância, nem à dureza, nem nada que seja
referente aos sentidos. O que resta da cera, depois que removemos as qualidades sensíveis, é
unicamente a extensão. Contudo, a percepção da cera, enquanto extensão, não é um ato deixado a
cargo da visão, nem do tato, nem da imaginação, nem de nenhum dos órgãos sensoriais. Trata-se –
como diz Descartes – de uma inspeção só da mente.
O que foi descrito, no caso da cera, vale igualmente para os transeuntes que passam
em frente à minha janela: julgo, num primeiro momento, distinguir homens. Depois de uma breve
consideração, porém, percebo que nada vejo na rua senão chapéus e trajes, e que nada na visão me
certifica de que, por trás deles, haja homens efetivamente, e não autômatos. O que os olhos puderam
captar não basta para certificar-me da existência de homens, ser-me-á então preciso, para assim o
concluir, de uma faculdade de julgar que só reside na mente.
Além disso, isso que acaba de ser observado pode ser aplicado a todas as coisas que
se apresentam fora de mim. Pode-se perfeitamente admitir que nada disso que atribuo ao mundo
exterior exista realmente. Pode ser que eu não tenha sequer os olhos com que julgo ver alguma
coisa. Mas que eu pense ver, que eu veja-me vendo: sobre isso, não há discussão. É impossível que
o eu não seja alguma coisa, na medida em que o pensamento se vê habitado por ele.
Por conseguinte, Descartes pode passar para a próxima meditação, depois de
adquirir, como dado inquestionável, a noção de que os corpos deixam-se perceber não propriamente
pelos sentidos ou pela faculdade de imaginar, por sua vez, mas tão somente pelo intelecto. E
justamente porque os corpos não são percebidos por serem tocados ou vistos, mas unicamente
porque entendidos, conheço de modo manifesto que nada pode ser por mim percebido mais
facilmente e mais evidentemente do que minha própria mente.

3.1.3 Terceira Meditação

Na terceira das meditações, Descartes estabelece a regra geral de que tudo aquilo que
é percebido muito clara e distintamente é verdadeiro (illud omne esse verum, quod ualde clare et
distincte percipio) e introduz o argumento que lhe parece o principal dentre os argumentos que
depõem a favor da existência de Deus; a saber, “que a ideia que reside em nós de um ente
sumamente perfeito possui tanta realidade objetiva que não pode ser senão a partir de uma causa
sumamente perfeita” (idea entis summe perfecti, quæ in nobis est, tantum habeat realitatis
objectivæ, ut non possit non esse a causa summe perfecta).
Sensações e imaginações, como vimos, constituem certos modos de pensar, e só são
dados como certos, enquanto tais, na medida em que estão na mente. O requisito para se estar certo
de alguma coisa é uma percepção clara e distinta. Nada do que for por mim percebido clara e
distintamente pode ser falso, antes, é preciso admitir que a clareza e a distinção são critérios seguros
para se obter a verdade a respeito de algo. Se antes dei por verdadeiras as percepções dos sentidos,
julgando-as claras e distintas – isso se deve a um hábito de crer que adquiri. No entanto, ocorre
agora de me vir à mente que um Deus poderia, muito bem, ter me dotado de uma natureza tal que
não pudesse deixar de me enganar, mesmo em relação às coisas mais óbvias e manifestas.
Do que chega a ocasião de examinar dois pontos fundamentais: (a) se existe, de fato,
um Deus; (b) se, havendo Deus, ele pode ou não ser enganador. A ordem que Descartes se propôs
seguir nas Meditações é a de começar pelas noções mais básicas, encontradas na mente, para depois
passar a outras, decorrentes por necessidade das primeiras. Seguindo essa ordem, o filósofo distribui
seus pensamentos por gêneros, distinguindo-os pelo critério da verdade e da falsidade. Os
pensamentos que parecem constituir imagens das coisas são denominados ideias: o pensamento de
um homem, de uma quimera, do céu, de um anjo, etc. Os pensamentos, por sua vez, que assumem o
modo do querer, do negar, do desejar, etc., sempre por referência a algum sujeito (subjectum), são
chamados de vontade, afeto, juízo, etc., e constituem certos modos de pensar.
Descartes salienta, a respeito das ideias, que quando são consideradas em si mesmas,
sem referência às coisas, não podem ser chamadas propriamente de falsas. A falsidade, além disso,
sequer pode ser atribuída à vontade, pois o querer é sempre verdadeiro, mesmo que seja o querer de
algo que não existe. Só o juízo, portanto, é suscetível de comportar falsidade, quando reporta a ideia
a algo de externo a ela, postulando haver entre ambos uma semelhança ou conformidade. Se me
limito a considerar as ideias apenas como certos modos do pensamento, sem reportá-las a outra
coisa, elas só poderão, no máximo, dar ensejo a alguma matéria de erro.
As ideias podem ser divididas em: (a) inatas; (b) adventícias; (c) criadas pela
imaginação. Algumas ideias, com efeito, não parecem ter sido produzidas por mim, e sim obtidas de
certas coisas situadas fora de mim. Outras, no entanto, não parecem ter sido obtidas de outro lugar a
não ser do próprio pensamento, conforme sua natureza. Parece, de algum modo, que minha razão
foi instruída pela natureza a estimar as ideias obtidas de fora como semelhantes às coisas que elas
representam. Um dos motivos para essa crença é que tudo indica que tais ideias não dependem, em
absoluto, de nossa vontade para serem como são. Descartes, quando menciona acima que foi
instruído pela natureza, está a dizer que foi levado a acreditar naquelas coisas por um impulso
espontâneo, e não por uma luz natural – que é aquela que me mostra que, ao duvidar, é necessário
que eu seja. Os impulsos naturais, por sua vez, não são tão dignos de confiança, a julgar pela
experiência tida com eles no passado.
Apesar de estabelecer que algumas ideias são adventícias, provenientes de fora,
Descartes observa que não se trata de uma origem necessária, pois nada impede que haja, assim
como acontece com os impulsos espontâneos, alguma faculdade totalmente desconhecida que,
atuando em sigilo dentro de nós, produza as ideias que costumamos referir às coisas externas.
Descartes faz notar, porém, que mesmo que as ideias adventícias procedam de algo externo à mente,
isso não significa, necessariamente, que elas sejam semelhantes às coisas. Parece, pelo contrário,
que o mais das vezes há discrepância entre o objeto e sua ideia, como, por exemplo, na que há entre
a ideia do sol, recebida pelos sentidos, e a ideia do sol adquirida por noções astronômicas. Enquanto
que, na primeira, o sol se apresenta muito pequeno, na outra a mente entende que ele é diversas
vezes maior do que a Terra. A ideia, pois, que parece emanar mais diretamente do sol é a que, na
verdade, menos se lhe assemelha.
Enquanto que as ideias são apenas modos de pensar, não há entre elas nenhuma
diferença. Mas assim que elas passam a referir-se a algo, então há diferença, visto que uma ideia
está a representar uma coisa, outra, outra coisa. Mas, na medida em que as ideias representam
substâncias, elas contêm mais realidade objetiva do que aquelas que só representam modos ou
acidentes, “ou seja, elas participam por representação de mais graus de ser ou de perfeição” (c’est-
à-dire participe par représentation à tant de degrés d’être et de perfection). Daí, sem dúvida que a
ideia referente a Deus, que é infinito, possui mais realidade objetiva do que qualquer ideia reportada
a alguma substância finita.
Logo, a ideia que reside em nós, de um ente sumamente perfeito, não pode ter sido
extraída dos sentidos, nem mesmo ter sido produzida pela mente, pois contém mais realidade
objetiva (plus realitatis objectivæ in se continent) do que a mente é capaz de produzir, ela “participa
por representação de tantos graus de ser e de perfeição” que sua causa deve possuir, na mesma
medida, tanta perfeição quanto há na coisa produzida. Quando fazemos a comparação entre a ideia
de Deus e a ideia de uma máquina perfeita que fora, de começo, concebida pela mente de algum
artífice, obtemos com isso ilustrar que a ideia de Deus, ao residir em nós, tem tanta perfeição que
não pode ter senão Deus ele mesmo como sua causa.
Descartes observa que, do ponto de vista da luz natural, é manifesto que deve haver
na causa eficiente e total tantos graus e ordem de perfeição, pelo menos, quanto existe em seu
efeito, visto que o efeito só recebe sua realidade da causa. O mesmo grau de ser, portanto, que há no
efeito, deve ter existido na causa. Resulta evidente também que nenhum efeito pode ter recebido sua
realidade do nada, muito menos a ideia de perfeição pode ter recebido sua realidade de algo menos
perfeito que ela própria. Isso é válido tanto para a realidade atual e formal (a ideia como modo do
pensamento ou como evento mental), quanto para a realidade objetiva (a ideia que representa
alguma coisa).
Descartes recorre, para ilustrá-lo, ao exemplo da pedra, que não existia num ponto
qualquer do tempo e que depois começou a existir devido a alguma causa, que para produzi-la
possuía formal e eminentemente tudo o que agora está presente nela. Do mesmo modo, o sujeito
que antes era frio e passou a ser quente só pode ter recebido o calor de uma causa que comportava
em si a mesma ordem, grau ou gênero de perfeição do efeito. Assim, a ideia de pedra ou a de calor,
estando na mente, deve ter sido posta lá por uma causa cuja realidade em nada difira da realidade
que a mente concebe haver agora na ideia. Seja, neste último caso, uma ideia inata, adventícia ou
inventada. A causa, porém, não transmite à ideia nada de sua realidade atual ou formal. Isso porque
as ideias, quando tomadas em si mesmas, são apenas modos de pensar, sem representação. Mas na
medida em que as ideias representam alguma coisa, deve ter havido, para isso, uma causa formal ou
atual.
Acrescenta Descartes que toda ideia é uma obra da mente. Portanto, que a ideia tenha
realidade formal, segue-se que só pode tê-la recebido da própria mente, na qual as ideias são modos
ou feitios do pensamento. Mas que a ideia tenha esta ou aquela realidade objetiva, diferente de
outras, deve-o ela certamente a outra causa, e esta última comporta, no mínimo, tanta realidade
formal quanto a ideia contém de realidade objetiva. É absurdo então supor que a ideia contenha algo
que a causa não contenha, na mesma proporção, porque assim a ideia teria obtido sua realidade
objetiva do nada. E embora a ideia, presente no intelecto, seja imperfeita, seguramente que ela não é
um nada nem pode ter recebido sua realidade do nada.
Resulta, então, que, pelo menos com relação às causas primeiras e principais, deve
ser dito que lhes pertence por natureza o modo de ser formal. É possível admitir que uma ideia atue
na geração de outra, no entanto, isso não progride infinitamente, devendo parar, afinal, em uma
primeira ideia. A causa desta ideia, por sua vez, surge como uma espécie de arquétipo que contém
“formal e efetivamente toda realidade e perfeição que na ideia está contida apenas objetivamente ou
por representação” (archetypi, in quo omnis realitas formaliter et en effet contineatur, quæ est in
idea tantum objective). As ideias, na medida em que aparecem sob o modo de imagens, podem ser
um tanto indigentes ou deficitárias em relação à perfeição das coisas de que foram tiradas. Por outro
lado, elas nunca contêm algo maior ou mais perfeito do que essas coisas.
Uma de minhas ideias, por conseguinte, possui tanta realidade objetiva que sou
obrigado a concluir que a causa dela não pode estar em mim, nem formal nem eminentemente. De
onde se segue, com absoluta necessidade, o fato de que não estou só no mundo, pois a causa dessa
última ideia também existe. Convenço-me então, a partir desses argumentos, que nada há nas ideias
que representam coisas corporais, anjos, animais, homens, que não possa ter sido produzido por
mim mesmo, uma vez que as coisas que percebo nelas clara e distintamente reduzem-se à extensão
em comprimento, largura e profundidade, figura, movimento, substância, duração e número, ao
passo que as qualidades sensíveis são percebidas muito confusamente. E o fato de a falsidade só
encontrar-se nos juízos não exclui, absolutamente, que haja também nas ideias uma espécie de
falsidade material, quando elas representam um não-ser como se fosse ser, tal o caso do frio, que
não sabemos ao certo se se trata de um ser independente ou se é mera privação de calor.
Desse ponto de vista, nada exclui a possibilidade de que o autor dessas últimas ideias
seja eu mesmo. Sua percepção confusa, assim, seria proveniente de alguma deficiência em minha
própria natureza. Quanto ao que é claro e distinto nas coisas corporais, isso seria tomado de
empréstimo da ideia que tenho de mim mesmo, enquanto substância, duração, número, etc. Pois
parece que as coisas extensas e as coisas corporais, embora diferentes, são concordantes no que diz
respeito à substância. Mas Descartes faz aqui uma ressalva, dizendo que extensão, figura, situação e
movimento, não estão na mente formalmente, uma vez que ela é coisa pensante. Mas, na medida em
que os modos acima pertencem à substância, como trajes que lhe revestem, podem assim estar
contidos na mente eminentemente, já que ela é também uma substância.
Resta, então, a ideia de Deus, como a única suscetível de conter algo que deve ser
considerado como não proveniente de mim. Descartes usa para aludir a esse “algo” atributos tais
como os da infinitude, da independência, eternidade, imutabilidade, sumo poder e inteligência. Tais
atributos, com efeito, não parecem provir da mente, que é uma substância finita. De onde cabe
observar que a ideia de infinito não deve ter sido adquirida por simples negação do finito, uma vez
ser manifesto ao entendimento que há mais realidade na substância infinita do que em qualquer uma
das finitas. A ideia de Deus, inclusive, é anterior à ideia que possuo de mim mesmo, o que fica claro
quando me dou conta de que duvido, de que desejo, sendo assim indigente de algo, e só posso saber,
na verdade, que sou indigente de algo por comparação com a ideia de algo perfeito, completo, em
relação à qual apareço com todos os meus defeitos.
A ideia de Deus, sendo clara e distinta ao máximo: a) contém mais realidade objetiva
do que todas as outras; b) é real e verdadeira, na medida em que tudo que é claro e distinto o é; c)
pelo fato de não poder ser compreendida, nem por isso é menos perfeita, pois decorre precisamente
de minha natureza, que é finita, não ser capaz de compreender o infinito. Todavia, cabe levar
também em consideração a possibilidade de que todas as perfeições que atribuo a Deus, na verdade,
não residem nele, mas estejam como que em potência dentro de mim mesmo, ou seja, ainda não
apareceram nem se manifestaram em ato.
Essa suposição tem como base o fato de que o conhecimento aumenta
gradativamente, sem nada que possa impedi-lo de continuar a crescer infinitamente. O mesmo se dá
com as restantes perfeições. Isso tudo, porém, é desmentido por três razões: a) na ideia de Deus
tudo é atual e efetivo, nada nela está em potência; b) o fato de aumentar paulatinamente, por sua
vez, já constitui um sinal de imperfeição incompatível com a ideia de Deus; c) e embora o
conhecimento em mim tenda a crescer ao infinito, ele é incapaz de chegar a um ponto que não
permita um incremento ainda maior.
Fica mais claro agora que somente um ser atual e formal pode produzir a realidade
objetiva contida na ideia. Ao dedicar a essa questão a devida atenção, tornam-se manifestas à luz
natural muitas coisas, como o fato de que eu não poderia ter recebido o ser de mim mesmo, pois, se
assim fosse, eu, que tenho a ideia de perfeição, ter-me-ia produzido em conformidade com essa
ideia, em suma, teria me concedido as mesmas perfeições que entendo estarem em Deus.
Ora, o que falta em mim não parece ser mais difícil de obter do que aquilo que já
possuo. Mas, supondo agora que eu fosse um nada, ser-me-ia muito mais difícil obter por mim
mesmo o ser, emergindo desse nada, do que adquirir o conhecimento do infinito número de coisas
que até o momento ignoro. Assim, se eu fosse capaz de efetuar a primeira tarefa, que é mais difícil,
naturalmente que me seria fácil então realizar a segunda, adquirindo todos os conhecimentos de que
careço. Mas, como não sou capaz de obtê-los, fica manifesto que eu, muito menos ainda, devo ser o
autor de minha existência, nem emergi por mim mesmo do nada; pelo contrário, devo ter,
certamente, recebido o ser de algo mais perfeito do que sou capaz de sê-lo.
Além disso, fica esclarecido também, por essas mesmas razões, que eu não poderia
existir, de instante a instante, sem que estivesse atuando uma causa capaz de conservar o meu ser,
impedindo que ele desapareça em algum ponto do tempo. E cada nova criação continuada desse
tempo, dividido em instantes sucessivos, decerto que exige a mesma força que fora empregada na
criação do primeiro instante. Para a luz natural, é manifesto que “a conservação só difere da criação
por razão” (conservatione sola ratione a creatione differe). Se eu, com efeito, fosse o autor dessa
força de conservação, que permite que um instante suceda ao outro sem que seja aniquilado, decerto
que estaria consciente dela. De onde se segue que a força não está em mim, mas no ser de que sou
dependente.
Meus pais, por outro lado, não podem ser meus autores, na medida em que sou coisa
pensante, mas somente com relação ao corpo. Pois é preciso que exista na causa tanta realidade
quanto há no efeito, e assim a ideia de Deus, que contém infinitas perfeições, só pode tê-las
recebido de uma causa portadora também de infinitas perfeições. Com a adição de que ela possui
em ato todas as perfeições concebíveis, tais como unidade, simplicidade, inseparabilidade.
Assim fica demonstrado que o fato de que só há na mente a ideia de um ente
perfeitíssimo porque Deus existe, de modo a tê-la depositado ali, tal qual a marca do artífice
impressa em sua obra. Com a inclusão de que a marca não difere da própria obra. Trata-se de uma
ideia, portanto, inata, que toda vez que surge na mente informa-a do fato de que ela é imperfeita,
incompleta, mas que aspira a adquirir maiores perfeições indefinidamente. Perfeições que existem
em Deus real e infinitamente, ao passo que na mente só podem sê-lo em potência. Porque a mente
não pode compreender tais perfeições, isso não a desmerece, uma vez que ela pode atingi-las, de
algum modo, pelo pensamento, dando-se conta de que é impossível que a ideia de Deus esteja nela
sem que Deus exista, de fato, como sua causa. Fica claro também que Deus, que é perfeito, não
pode ser enganador, já que isso levaria a constatar no ente perfeitíssimo uma imperfeição
incompatível com sua natureza.

3.1.4 Quarta Meditação

Na quarta das meditações, diz Descartes que a ação de querer, ou de duvidar, anuncia
aos meus próprios olhos o fato de que sou um ente incompleto, dependente, em relação a Deus que
é independente e completo. Isso se apresenta de maneira clara e distinta, tendo como consequência
ainda que é impossível que Deus esteja a me enganar, uma vez que sua perfeição exclui qualquer
necessidade de recurso à falácia e ao engano. Querer enganar é um sinal de fraqueza e imperfeição,
não podendo ocorrer em Deus.
Dentre as coisas que existem em mim, Deus me há concedido uma faculdade de
julgar que, se usada adequadamente, não pode incidir em erro. No entanto, parece que em muitos
casos ela pode, não obstante, ser induzida a muitos tipos de engano. Percebo que a ideia do nada,
que inclui a imperfeição em grau máximo, reside em mim do mesmo modo que a ideia de perfeição.
De onde cumpre examinar como a imperfeição do juízo pode conciliar-se com a ideia de Deus, já
que, supostamente, um ente perfeitíssimo só deveria criar coisas concordantes com a sua natureza.
As coisas se esclarecem um pouco quando, ao adotar outro ponto de vista, penso que
eu sou, justamente, algo que existe a meio caminho entre Deus e o nada, cujas respectivas ideias
encontram-se em minha mente. Não é de admirar, assim, que eu esteja sujeito ao erro, uma vez que
para acertar sempre teria de satisfazer a condição de que eu próprio fosse Deus. Só erro, portanto,
na medida em que não sou o ente supremo. E que a faculdade de julgar que me foi transmitida por
Ele não é infinita, mas defeituosa. Descartes, porém, não se dá ainda por satisfeito com essa
solução, pois, a seu ver, existe uma distinção entre negação e privação, sendo o erro não uma falta
em relação à perfeição – que não me compete ambicionar –, e sim uma privação em relação ao
conhecimento que deveria existir em mim, e que não foi ainda alcançado. O erro possui, portanto,
um caráter positivo, e não negativo. A natureza de Deus é tal que não parece, em absoluto, que Ele
me tenha dotado de uma tendência à perfeição que lhe não fosse devida.
Mas Descartes julga como boas razões para abandonar essa suposição as que
mostram ser natural que Deus faça coisas que não compete à mente entender, assim como não é
dado a ela penetrar sem temeridade nas finalidades divinas. A perfeição que consta nas obras de
Deus é apreendida não percorrendo as coisas uma por uma, separadamente, mas por uma visão do
conjunto. Que, considerada como parte de um todo, qualquer coisa individual merece o título de
perfeitíssima, tendo sua razão de ser.
Os motivos que me levam a errar decorrem, na verdade, da relação que há entre a
faculdade de conhecer e a faculdade de escolher ou liberdade; ou, em outras palavras, da relação
entre o intelecto e a vontade. A sujeição ao erro deve-se à interpenetração das duas faculdades, pois,
tomado em si mesmo, o intelecto não erra, na medida em que não emite juízo sobre coisa alguma,
limitando-se a perceber as ideias. Contudo, a respeito da vontade, emerge o fato de que ela é
experimentada de modo tão indeterminado e extenso que não há limites a contê-la. Por essa razão,
parece que tudo que há em mim não é o bastante para satisfazer tal vontade, a qual me leva a
considerar que nada há de tão perfeito e tão amplo que não possa ser conduzido a um grau ainda
maior de perfeição e amplitude.
Desse modo, percebe-se logo que a faculdade de entender não consegue acompanhar
a vontade, que é ilimitada. É justamente em virtude da experiência que tenho dessa vontade que
posso entender que há em mim alguma imagem e semelhança com Deus. A liberdade da vontade,
para Descartes, consiste no poder de fazer ou de não fazer algo, buscar ou fugir de algo sem que a
isso a mente se veja determinada por outra coisa senão por ela própria. Não consiste, porém, em
uma indiferença que pode pender tanto para um lado quanto para outro. É justamente o contrário,
pois na decisão com relação aos possíveis entra a capacidade de entender o verdadeiro e o bom.
Assim, quanto maior a capacidade de discernir o bem, mais livremente o escolho.
Resulta então que a indiferença, que não se inclina nem para um lado nem para outro,
é o mesmo que uma deficiência na capacidade de conhecimento, que não pode distinguir entre o
bem e o mal. Mas se essa distinção fosse sempre evidente, a própria deliberação poderia ser
dispensada. Uma grande luz no intelecto, afinal, tem como consequência uma imensa propensão na
vontade, inclinando-a a não ser indiferente, a assentir e a escolher a verdade que ali se manifesta.
Os argumentos levantados levam, assim, à conclusão de que nem a força de querer
nem a de entender constituem a causa dos erros. A força de querer não é causa, pois é amplíssima e,
como tal, perfeita. A força de entender não o é também, pois o que é entendido só pode sê-lo
corretamente. Se não o fosse, não seria entendimento, e sim outra coisa.
Resta, então, para ser apresentado como causa dos erros o fato de que a vontade, ao
revelar-se mais abrangente do que o intelecto, não é circunscrita dentro dos mesmos limites do
intelecto, estendendo-o também a outras coisas que não competem à sua natureza entender. A
vontade produz então o erro, na medida em que são-lhe indiferentes as coisas que pertencem ou não
ao domínio do conhecimento possível, mas mesmo assim ela exige do intelecto buscá-las a todas.
Por outro lado, o intelecto, se quiser agir retamente e evitar o erro, deve abster-se de
julgar com relação às coisas que não são por ele compreendidas suficientemente, com clareza e
distinção. Para Descartes, deve haver sempre uma precedência da percepção do intelecto em relação
à determinação da vontade, mas se nenhuma razão surgir que persuada aquele a escolher entre uma
coisa e outra, o melhor é suspender o juízo. O mesmo vale para as conjeturas prováveis, pois só por
saber que são apenas prováveis já é o suficiente para conter o intelecto, não levando-o a emitir
juízos precipitados, sendo melhor esperar pela obtenção de razões mais certas e indubitáveis.
Nisto precisamente é que reside a privação – no uso não-reto do livre-arbítrio –, que
constitui a causa do erro. Ela não é proveniente de Deus, e sim da própria operação de julgar,
quando o intelecto, movido pela influência da vontade, estende-se a mais coisas do que as que são
pertencentes à sua capacidade de conhecer. Essa privação, portanto, não se dá com o concurso de
Deus. Logo, não devo ter nenhum motivo de queixa em relação a isso. Porque o intelecto conhece o
que é de sua natureza conhecer, e se a vontade quer empurrá-lo a mais coisas, não sucede que isso
deva ser recriminado nela, porque nada do que a constitui pode ser-lhe retirado sem que ela deixe de
ser o que é, e é melhor que ela seja assim do que não ser nada. O poder de produzir esses atos
significa em mim maior perfeição do que achar-me incapaz de produzi-los.
A perfeição ou a imperfeição deve me ser atribuída menos pelo fato de errar do que
pelo fato de fazer um mau uso da liberdade. Porque, de todo modo, sou livre para suspender o juízo
até que tenha clareza suficiente na questão. Julgar precipitadamente sendo uma pura temeridade. E,
assim, se não posso impedir-me do erro através da perfeição, posso-o por outro lado através da
liberdade de abstenção, bastando para isso que fixe essa regra a fim de não esquecê-la toda vez que
a verdade não for imediatamente manifesta.
Assim, servirá para mim de critério e de regra que, toda vez que julgar, devo
lembrar-me de conter a vontade dentro dos mesmos limites do conhecimento, de modo que ela só se
estenda às coisas que o intelecto mostre clara e distintamente, sem tentar ultrapassá-las. Assim, será
de todo impossível que eu erre, posto que toda percepção, se for clara e distinta, constitui sem
sombra de dúvida algo de real e positivo. E, pelas mesmas razões, tudo que é claro e distinto, no
sentido real e positivo, não pode ter surgido do nada, antes, pelo contrário, deve ter necessariamente
como seu autor um ente sumamente perfeito, a quem repugna em absoluto ser enganador, e que só
pode ser Deus.

3.1.5 Quinta Meditação

Na quinta das meditações, Descartes passa a tratar da essência pertencente às coisas


materiais, e propõe, além disso, uma nova consideração sobre Deus capaz de reforçar a prova de sua
existência. Quanto às coisas materiais, cumpre ainda investigar se há algo de certo no conhecimento
delas. No que diz respeito à extensão em comprimento, largura e profundidade, às partes,
grandezas, figuras, situação e movimento, Descartes reconhece logo que são completamente
conhecidas e patentes, e parece, assim, que, no momento de considerá-las, a mente não está
aprendendo algo novo, e sim se lembrando do que já sabia, a partir da percepção de coisas que já se
encontravam contidas nela, sem que ela se apercebesse disso com mais clareza.
As propriedades do triângulo, por exemplo, são conhecidas claramente, portanto, não
foram de nenhum modo obtidas dos sentidos. Para Descartes, é possível tirar daí também uma nova
prova da existência de Deus, observando-se que a mente, só pelo fato de possuir a capacidade de
extrair do pensamento a ideia de alguma coisa, já mostra que as propriedades percebidas clara e
distintamente nessa ideia pertencem necessariamente à coisa em questão, e o mesmo aplica-se à
ideia de Deus, cujas propriedades (unidade, simplicidade, imutabilidade) são percebidas clara e
distintamente, constituindo uma prova indubitável a favor de sua existência.
A ideia de Deus, portanto, possui o mesmo grau de certeza que se encontra nas
verdades matemáticas relativas a números e figuras. Assim como a essência do triângulo, de possuir
a soma dos ângulos internos igual a dois retos, não pode ser separada de sua existência, a essência
de Deus não pode ser separada de sua existência. Não é possível, com efeito, pensá-lo como
inexistente, uma vez que sua perfeição inclui a existência, necessariamente. Pensá-lo inexistente
revela-se assim contraditório, já que a ideia mesmo de suma perfeição inclui a ideia de existência, e
não pode dela ser separada sem deixar de ser perfeição, assim como a ideia de um monte não pode
ser dissociada da ideia de um vale.
Para Descartes, então, na medida em que todas as coisas dependem do concurso de
Deus, e que ele não é enganador, resulta que a prova de sua existência implica também na certeza e
na verdade de toda ciência.

3.1.6 Sexta Meditação

Na sexta das seis meditações, Descartes se ocupa do que resta para tratar: (a) da
distinção que existe entre intelecção e imaginação, a partir dos sinais distintivos de cada uma; (b) da
prova alusiva ao modo como a mente se distingue completamente do corpo, enquanto coisa
pensante; (c) sobre como, não obstante a distinção, a mente encontra-se tão estreitamente unida ao
corpo que parece compor com ele uma única coisa; (d) sobre as razões que podem ser levantadas
para concluir a favor da existência das coisas materiais; razões que precisam ser esclarecidas, uma
vez que o fato de haver um mundo, homens, corpos, não é tão claro e distinto quanto o
conhecimento relativo à mente e à Deus.
O primeiro a ser considerado, então, por Descartes, é a distinção que existe entre
intelecção e imaginação. A imaginação parece ser, numa consideração mais atenta, uma forma de
aplicação da capacidade cognoscitiva sobre as coisas que estão intimamente presentes à mente. A
diferença que há entre imaginação e intelecção fica mais clara se examinamos a diferença que há
entre uma figura geométrica imaginada e uma inteligida. Um triângulo imaginado está
imediatamente presente ao olhar que a mente lança sobre ele. A mente imagina clara e distintamente
que o triângulo é compreendido por três linhas retas, formando três lados. No entanto, por mais que
a imaginação se esforce, ela não é capaz de tornar presente ao seu olhar uma figura de mil lados
(quiliógono). A intelecção pura, por seu turno, é capaz de entender tal figura sem recurso à
imaginação, podendo, inclusive, diferenciá-la de outros polígonos.
Descartes conclui que a imaginação consiste numa certa contenção de ânimo,
diferente da intelecção. Mas ela não é uma faculdade essencial da mente, pois mesmo que fosse
privada dela, a mente certamente continuaria a ser a mesma. De onde fica manifesto que a
imaginação é proveniente de algo diverso da mente, isto é, do corpo, ao qual a mente está
conjugada. A mente imagina, portanto, quando se aplica à inspeção das coisas corporais. O
entender, por sua vez, é independente do corpo, pois que, para entender, a mente limita-se a
inspecionar a si mesma, voltando-se para as ideias nela contidas.
Neste ínterim, chega Descartes à segunda questão que havia se colocado, sobre a
prova alusiva ao modo como a mente se distingue completamente do corpo, enquanto coisa
pensante. A imaginação confere certa probabilidade à suposição de que o corpo existe, já que ela
tira desse corpo sua força de produzir imagens. Ela percebe qualidades como cores, sabores, dor,
porque, provavelmente, extraiu-lhes dos sentidos do corpo, graças à memória. Ela parece estar
intimamente ligada ao sentir corporal. Descartes então almeja saber se isso pode constituir alguma
prova a favor da existência das coisas corporais. Ele organiza seu exame em dois procedimentos: a)
evocar as coisas que até agora reputou como verdadeiras, por as haver extraído dos sentidos; b)
expor então as causas que o fizeram duvidar da existência delas.
A sensação de prazer e dor, além de outras como fome, sede e demais apetites e
inclinações para a alegria, tristeza, provocam um sentimento muito forte de que o corpo constitui
uma parte do eu, estando com ele deveras unido. Parece que as qualidades sensíveis das coisas, por
sua vez, apresentam-se a mim de modo independente de meu consentimento. Sou inteiramente
passivo em relação a elas, não podendo deixar de recebê-las mesmo se quisesse.
Essas qualidades, além disso, por serem tão vívidas e fortes, no seu modo de estarem
presentes aos órgãos dos sentidos, dão a impressão de que são mais distintas até do que as ideias
que formo por mim mesmo, sendo assim impossível que resida em mim a sua fonte de origem. O
que deve significar que existem, deveras, corpos a partir dos quais as ideias de qualidades sensíveis
são provenientes. Essa prova é ainda reforçada pela lembrança de que usei, na minha infância, os
sentidos primeiro do que a razão, de onde fico ainda mais persuadido de que nada há no intelecto
que não houvesse existido antes nos sentidos.
E mais do que tudo, julgo pertencer-me, de fato, este corpo, com seus apetites e
afetos, corpo ao qual estou tão estreitamente unido que não posso ser dele separado, diferentemente
do que acontece com os outros corpos. E pelo fato de não haver nenhuma afinidade entre o beliscão
que sinto no estômago e a vontade de comer, à qual denomino fome, segue-se que essa relação só
pode ter sido-me ensinada pela natureza. O mesmo, aliás, deve ter acontecido com todos os outros
juízos que emito sobre as coisas sensíveis, uma vez que são juízos espontâneos que precedem
qualquer exame da razão.
Mas, na verdade, ao longo da vida cotidiana, muitas experiências de engano e ilusão
dos sentidos foram abalando, aos poucos, a confiança incondicional que depositava neles. Até
mesmo o próprio corpo pode ser colocado em dúvida, tendo-se em conta o fato que pessoas que
tiveram algum membro amputado relatam ter a impressão de ainda sentir alguma coisa ali no lugar
onde aquele membro falta. Além disso, não posso sentir nada, estando em vigília, que não o possa
sentir também no sono. Se fingir que ignoro que Deus existe, nada obsta a que me persuada de que
a natureza tenha me feito de tal modo que estou a errar sempre nos meus juízos, mesmo em relação
às coisas que parecem ser as mais certas. Os ensinamentos da natureza, no fim das contas, não
parecem ser tão dignos de confiança.
Quanto às percepções dos sentidos, por mais que elas pareçam à mente ser
independentes, nada obsta a que eu faça a suposição de que elas, na verdade, não provenham de
algo externo a mim, e sim de uma faculdade produtora que há em mim, a qual não foi até agora
conhecida. Só começo, portanto, a aceitar a existência das coisas externas depois que logrei
conhecer melhor o autor de minha existência, que não pode, decerto, visto sua bondade ser infinita,
ter-me feito para errar quanto a coisas tão importantes. Assim, para que as coisas diversas possam
ser divididas e separadas por mim de acordo com suas diferenças fundamentais, basta que me
aplique a entendê-las conforme o critério da clareza e da distinção.
Seguindo este critério, posso perceber que nada pertence mais essencialmente à
minha natureza do que o pensamento, nada há mais certo do que o fato de que sou coisa ou
substância pensante, e que minha essência consiste em pensar. Portanto, mesmo que não haja
nenhum corpo, a minha existência permanece intacta, indubitável, como coisa pensante não-
extensa. Tudo o que o corpo é, por sua vez, se esgota em ser extensão, em coisa extensa e não-
pensante, ele exclui tudo o que é pensamento, ao ser extenso, do mesmo modo que o pensamento,
ao pensar, exclui tudo o que é extenso. Daí haver uma distinção radical entre corpo e mente, como
duas substâncias absolutamente independentes e separadas.
Apesar de que há um corpo ligado a mim de modo tão estreito, a ideia de que sou
coisa pensante inextensa me persuade de que posso existir sem o corpo, uma vez que o pensar é
radicalmente outro em relação à extensão. Novo reforço a essa ideia é encontrado no fato de que
faculdades como imaginar, sentir, podem ser separadas de mim sem comprometer em nada minha
existência, ao passo que o inverso não pode ser pensado, isto é, a imaginação e o sentir não podem
existir sem a substância pensante na qual residem. Eles são modos da substância pensante assim
como os acidentes, movimento, figura, são modos da substância extensa.
Mas, neste ínterim, emerge a terceira questão proposta por Descartes: sobre como,
não obstante a distinção entre ambos, a mente encontra-se tão estreitamente unida ao corpo que
parece compor com ele uma única coisa. A faculdade passiva de sentir ou receber ideias seria inútil
se não fosse auxiliada por uma faculdade ativa, que logra produzi-las ou causá-las. Mas tal
faculdade não está em mim, enquanto sou coisa pensante, posto que tais ideias são produzidas sem
minha cooperação, ela deve estar sim numa substância diversa de mim que contém formal e
eminentemente “toda a realidade que está contida objetivamente nas ideias produzidas por essa
faculdade” (omnis realitas uel formaliter uel eminenter inesse debet, quæ est objective in ideis ab
ista facultate productis). Descartes retoma aqui o que já havia feito notar anteriormente.
Deus, como não é enganador, não coloca essas ideias imediatamente, por ele mesmo,
e nem por meio de outra criatura que as contivesse não formal, mas eminentemente. Ele deve
colocá-las, certamente, nas coisas corporais, a partir das quais elas são emitidas até minha mente.
Descartes não vê razão alguma para que não seja assim, visto ser absolutamente necessário admitir
que Deus não é enganador. As coisas corporais, portanto, existem deveras.
E a opinião de que as coisas que advêm pelos sentidos não são compreendidas senão
obscura e confusamente, com muito menos clareza que as coisas da matemática, mesmo assim não
pode me dissuadir da esperança de alcançar a verdade, já que é certo que Deus, embora tenha me
feito de tal modo que eu erre às vezes, parece ter-me provido da capacidade de emendar esses
possíveis erros, encontrando algo certo até mesmo nas coisas sensíveis.
É manifesto assim que tudo o que a natureza me ensina deve conter algo de verdade.
E nada é mais expressamente ensinado por ela de que estou unido a um corpo. E tal união entre
alma e corpo não é semelhante à do marinheiro que comanda seu navio, é uma união muito mais
estreita, de modo que a alma está como que misturada ao corpo, ao ponto de compor com ele uma
única coisa. Pois se não fosse assim, a dor, a sede, a fome, seriam percebidas por meio de uma
inspeção intelectual (como o marinheiro vendo que o barco se quebrou), e não por meio de
percepções fortes, porém confusas, como as que, de fato, temos. A confusão nessas sensações, por
seu lado, se deve à união e à mistura entre alma e corpo. Dessa união podem ser depreendidas
algumas razões que testemunham que os corpos existem.
Donde chegamos à última questão proposta por Descartes para ser resolvida nesta
meditação: sobre as razões que podem ser levantadas para concluir a favor da existência das coisas
materiais; razões que precisam ser esclarecidas, uma vez que o fato de haver um mundo, homens,
corpos, não é tão claro e distinto quanto o conhecimento relativo à mente e à Deus.
Uma forte prova de que a natureza me dotou de propensões nas quais devo confiar é
fornecida pelo fato de que existem, ao redor do meu corpo, muitos outros corpos, entre os quais uns,
sendo nocivos, eu aprendi por ela a evitar, e outros, sendo benéficos, eu aprendi a buscar. A
natureza, com efeito, ensinou-me deveras que alguns desses corpos proporcionam sensações
agradáveis, outros, porém, sensações incômodas.
E, decerto, tais lições foram úteis para conservar minha existência, pois que, se Deus
me tivesse feito para errar sobre as coisas oriundas dos sentidos, certamente que eu teria errado a
respeito de coisas nocivas e não teria promovido a adequada conservação de minha existência até
agora. Descartes toma aqui “natureza” numa acepção mais restrita do que aquela que se refere ao
conjunto de todas as coisas. Porque, para ele, essa acepção incluiria a luz natural pela qual a mente
percebe muitas coisas claras e evidentes sem ser auxiliada pelo corpo. Como, por exemplo, que o
corpo sofre a ação de uma força que o atrai para baixo, que uma estrela, embora pareça menor, é
muitas vezes maior que a Terra, etc. A ideia de natureza fica, assim, reservada para designar
somente o que Deus me deu como composto.
Descartes admite que a natureza, na verdade, ensina a fugir das coisas que produzem
sensações dolorosas e a perseguir as que produzem o prazer dos sentidos. Mas, para haver qualquer
conclusão a respeito da verdade sobre essas coisas, parece que é requerido somente o exame do
intelecto, sem o concurso do corpo. Descartes alega que a percepção que a natureza concedeu à
mente para que ela reconhecesse o que é cômodo ou incômodo ao composto não pode ser usado
para decidir nada a respeito da essência dos corpos. Que o contato com o fogo produza a sensação
de dor no corpo, isso não significa que há no fogo alguma coisa que se assemelhe à dor, tampouco,
que isso constitua a essência do fogo. Se julgasse assim, e tomasse a sensação como regra para
conduzir ao conhecimento da essência dos corpos, estaria eu a subverter a ordem da natureza.
Mas uma dificuldade aqui se apresenta a Descartes, referente aos casos em que a
mente é enganada por sua própria natureza a respeito de sensações internas, quando alguém, por
exemplo, iludido por um sabor agradável, toma um veneno julgando ser uma iguaria, ou então
quando um doente, sendo hidrópico, bebe a água que irá lhe fazer mal. Descartes decide então que
será preciso examinar por que motivo a bondade de Deus não impede que a natureza engane nessas
ocasiões. Mas é certo que a natureza pode ser desculpada com relação a esse engano específico,
pois, não sendo perfeita e onisciente, é levada a buscar o agradável, e não o veneno, que ela ignora
ser nocivo.
Mas o doente foi também criado por Deus, assim como o homem sadio. Daí, resta
ainda a dificuldade de entender por que Deus dera ao doente uma natureza enganosa, a ponto de
desejar comer ou beber algo que não será de bom proveito para o seu restabelecimento. Um relógio
observa todas as leis da natureza tanto estando em perfeitas condições quanto estando danificado,
quando não atende ao uso que o artífice lhe previra. Se o corpo do homem fosse, igualmente,
comparado ao de uma máquina, ele teria todos os seus movimentos determinados pela disposição
dos órgãos. Assim, seria natural que ele sentisse sede, mesmo sendo hidrópico, porque a disposição
de seus nervos é determinada a funcionar desse modo, tal como num mecanismo. E embora se possa
dizer que o relógio, estando danificado, aberrou de sua natureza, assim como o corpo do hidrópico
aberrou da sua, o uso que se faz aqui da palavra “natureza” é extrínseco às coisas a que se dirige,
sendo uma mera denominação dependente do pensamento. Uso, na verdade, muito diferente
daquele outro uso, que indica algo que pertence deveras às coisas. Mas isso ainda não resolve a
dificuldade, e fica ainda por entender-se por que Deus permite que a natureza do doente seja
enganada.
A investigação, logo, leva a notar uma diferença entre corpo e mente que diz respeito
à divisibilidade. Pois é manifesto que a natureza, por ser extensa, é sempre divisível, ao passo que a
mente não possui partes e é totalmente una e inteira, sendo indivisível. Se o corpo perde um de seus
membros, nem por isso algo é subtraído à mente, que continua sendo uma só. O que mostra como a
mente é completamente diversa do corpo.
É possível também notar, em relação a isso, que as partes do corpo transmitem o
movimento mecanicamente, de modo que nenhuma parte é posta em movimento por outra, afastada
dela, sem que uma parte intermediária entre as duas tenha transmitido tal movimento de uma até
outra. Assim, uma dor sentida em algum membro do corpo é transmitida pelos nervos que se
estendem dali até o cérebro, à semelhança do que acontece na corda, quando uma das suas pontas é
esticada, e o movimento se estende até a sua outra ponta, puxando-a. Como uma dor no pé, por
exemplo, deve passar pelos nervos que encontram-se nas pernas, coxas, rins e pescoço, antes de
chegar ao cérebro, pode acontecer que o pé não tenha sido atingido, de fato, e a dor tenha sido
produzida, na verdade, em alguma parte intermediária dos nervos, fazendo que o cérebro se engane
e sinta a dor como se ela tivesse surgido do pé.
Não importa, porém, que a mente seja enganada a respeito da origem dessa sensação,
julgando que a dor tenha vindo do pé quando vinha de um nervo intermediário, contanto que ela
possa estar certa de que esse movimento far-lhe-á experimentar a sensação mais apropriada e mais
ordinariamente útil à conservação de um homem sadio. Como quando, por exemplo, uma dor excita
a mente a cuidar da parte que dói, removendo a causa nociva. E isso é o bastante para atestar a
bondade e a potência de Deus, visto que todas as sensações que são dessa ordem no corpo
contribuem para a sua conservação.
Deus poderia, na verdade, ter constituído o corpo de outra forma, fazendo-o
experimentar sensações de modo diferente, mas nenhuma outra conformação é mais apropriada para
a conservação do corpo do que a que Deus concedeu-lhe, de fato. Assim, pode haver alguma
ocasião particular em que a natureza do homem, enquanto composta de corpo e alma, esteja sujeita
ao engano, já que são sempre os mesmos movimentos que percorrem o corpo, produzindo as
sensações. Mas a dor que surge no pé é muito mais frequentemente produzida por algo nocivo que o
afeta do que por outra coisa num nervo intermediário, donde ser muito mais prudente, para a
conservação, levar em conta o caso geral do que o caso de exceção. É melhor que a natureza se
engane em alguns casos do que ela nunca se colocar prevenida a respeito de tais sensações.
Essa consideração, por outro lado, é útil para que eu me lembre sempre de emendar
ou evitar os erros. Sabendo, assim, que as sensações de prazer e dor são índices muito mais
frequentes do verdadeiro do que do falso. Além disso, tudo me leva a concluir que as dúvidas a
respeito da distinção entre sono e vigília devem ser rejeitadas, pois os eventos que são por nós
percebidos, estando em vigília, possuem um encadeamento coerente com muitos outros eventos da
vida, possuindo, enfim, um nexo causal que não sucede no sono. Por conseguinte, não pode mais
haver dúvida a respeito dessas coisas, pois nelas foi aplicada a faculdade dos sentidos, da memória e
do intelecto sem que sucedesse nenhuma incoerência entre eles. Indício da verdade que se torna
ainda mais patente por Deus não ser enganador.

3.2 A relação Husserl-Descartes geral e particular

A relação entre Husserl e Descartes pode ser considerada de dois pontos de vista. Em
primeiro lugar, de um ponto de vista geral, no qual cabe perguntar sobre a adesão maior ou menor
da fenomenologia ao cartesianismo como um todo, assim como a rejeição maior ou menor do
cartesianismo a partir de uma crítica sistemática do seu conteúdo. Em segundo lugar, do ponto de
vista particular da evidência, no qual cabe investigar o que Husserl tem a dizer sobre a noção de
evidência de Descartes e em que medida (de adesão e rejeição) a posição de Husserl sobre a
essência da evidência recebe influência da posição de Descartes.
Estamos na plena esfera da Teoria do Conhecimento. Assim como Descartes, Husserl
está preocupado em fornecer uma resposta para a questão: “O que eu posso conhecer?”. Heffernan
(1997, p. 90) observa que muito do que Husserl tem a dizer em atenção a essa pergunta vem de sua
rejeição das posições de Descartes, e uma coisa que está ainda para ser estimada é como a crítica
que Husserl dirige à “noção de evidência de Descartes é a parte essencial em torno da qual o
conjunto da crítica da filosofia de Descartes é organizado”. Ou seja, o ponto de vista geral da
relação Husserl-Descartes deve depender de certa forma do ponto de vista particular sobre a
evidência.
O desafio que se põe no caminho da investigação da relação entre fenomenologia e
cartesianismo é – se possível – superar as ambivalências e ambiguidades que nela residem. Nas
Meditações Cartesianas, Husserl torna-se “em parte responsável pela comum percepção da
fenomenologia transcendental como um tipo de Neocartesianismo” (Ibidem, p. 89), não só pelo
título do trabalho, inspirado nas Meditationes de prima philosophia, mas pelos elogios endereçados
a Descartes como o maior pensador da França e pelo reconhecimento explícito de que a
fenomenologia nascente deve ao filósofo francês o “ter-se transformado em um novo tipo de
filosofia transcendental”97.
O projeto da fenomenologia de tornar-se uma ciência rigorosa coincide exatamente
com o projeto de Descartes de uma reforma total da filosofia, para torná-la uma ciência universal
alicerçada sob bases absolutas. Contudo, Husserl só admite seu cartesianismo para logo em seguida
recusá-lo, ao acrescentar que a fenomenologia se viu obrigada a repelir quase todo o conteúdo
doutrinal da filosofia cartesiana.
Dentro dos limites desta tese, procuraremos abordar os pontos fundamentais da
questão do cartesianismo e do anti-cartesianismo na fenomenologia. Sem pretender esgotar o
assunto, é claro. Assim, tendo em conta que o ponto de vista particular sobre a evidência pode, com
alta probabilidade, constituir a “parte essencial” da rejeição de Husserl do cartesianismo, vamos
começar por ela para logo em seguida considerar a relação geral que se estabelece entre os dois
filósofos e precisar bem quais são as tomadas de posição concordantes e antagônicas entre suas
respectivas “doutrinas”.

3.3 A evidência: o Círculo Cartesiano e a Ciclofobia de Husserl

Hefferman (op. cit., p. 90) classifica em três grupos os textos em que Husserl critica
a posição de Descartes sobre a evidência:
I. Os textos de menor importância, em que se fala de evidência, mas sem referência a
Descartes: A Filosofia da Aritmética (1891); Estudos sobre Aritmética e Geometria (1886-1901);
Fantasia, Consciência Pictórica (1898-1925); Sobre a Fenomenologia da Intersubjetividade (1905-
1935); Coisa e Espaço (1907); Análise das Sínteses Passivas (1918-1926).
II. Os textos de maior importância, que são os três trabalhos principais de Husserl em
que prevalece a teoria do conhecimento: o precoce “Investigações Lógicas”, o médio “Ideias para
uma fenomenologia pura e para uma Filosofia Fenomenológica” e o tardio “Lógica Formal e Lógica
Transcendental”.
III. Um terceiro grupo de textos, que não tem o mesmo peso dos textos do grupo II,
mas que estabelece uma ligação entre estes últimos.

97 Hua I, Introdução, § I, p. 1.
Quais são os elementos da filosofia de Descartes que Husserl vê como os mais
dignos de consideração fenomenológica? Na introdução das Meditações Cartesianas, Husserl
resume a seu modo o percurso das Meditationes de prima philosophia, e talvez ele esteja a dar
indicações dos pontos que lhe parecem de maior interesse para o projeto da fenomenologia:
Ele (Descartes) submete então a uma crítica metódica, quanto às possibilidades de
dúvida (…) tudo o que na vida da experiência e do pensamento se apresenta como
certo, e ele busca ganhar, – se possível – pela exclusão de tudo o que poderia
apresentar uma possibilidade de dúvida, um conjunto de dados absolutamente
evidentes. (...) De fato, na condição de realidade absoluta e indubitável o sujeito
que medita não retém senão a si mesmo enquanto ego puro de suas cogitationes,
existindo indubitavelmente e não podendo ser suprimido mesmo se o mundo
inteiro não existisse. Desde então o eu assim reduzido realizará um modo de
filosofar solipsista. Ele se colocará no encalço das vias que possuem um caráter
apodítico, e pelas quais ele poderá reencontrar, em sua interioridade pura, uma
exterioridade objetiva. Sabe-se como Descartes procede deduzindo de início a
existência e a veracidade de Deus, depois, graças a elas, a natureza objetiva, o
dualismo das substâncias finitas, em uma palavra, o terreno objetivo da metafísica
e das ciências positivas, assim como as próprias ciências. Todas essas inferências
se cumprem seguindo, justamente, os princípios imanentes ao ego, que lhe são
“inatos”.98

Essa dedução, porém, que vai da existência e veracidade de Deus até a existência e
veracidade da natureza, das substâncias, etc.; cai num “círculo epistemológico” que, na visão de
Husserl, coloca todas as meditações que se seguem a girar em torno de si mesmas sem sair do lugar
de onde tinham partido. A saber: que Deus me assegura que as coisas percebidas clara e
distintamente são verazes, mas eu só conheço Deus pela ideia clara e distinta que tenho Dele.
Husserl vê entre as duas afirmações um vaivém vicioso que impede Descartes de resolver o
problema da transcendência: como uma interioridade pura pode atingir uma objetividade
transcendente à consciência? Por fim, esse vaivém redunda no fracasso da tentativa de validar a
evidência a partir do recurso à veracitas dei. Na parte histórica das lições sobre Filosofia Primeira,
Husserl diz a respeito:
Ora, se o “eu puro” em sua consciência tem a experiência sensível de um mundo
objetivo e edifica suas ciências por seus atos de conhecimento, em que medida ele
não é puramente uma posse imanente de aparições subjetivas e de juízos
produzidos subjetivamente em evidências subjetivas? Se é a evidência, se é a
intuição da razão que confere aos juízos científicos a preeminência sobre os juízos
vagos e cegos da vida cotidiana, nem por isso ela deixa de ser um evento subjetivo
da consciência. Que é isto que nos autoriza a atribuir a este caráter subjetivo o
valor de critério de uma verdade válida em si, de uma verdade que, para além do
vivido subjetivo, pode pretender uma validade? (…) Vemos Descartes aqui
tentando demonstrar a legitimidade da evidência e de seu alcance transsubjetivo e
ele tomba em círculos viciosos que não tardaram a ser percebidos e que
frequentemente foram deplorados. Ele deduz, pouco importa como, da finitude do
ego humano puro a existência necessária de Deus – que Deus não poderia nos

98 Hua I, Introdução, § I, p. 3.
enganar com o critério de evidência. Desde então é legítimo recorrer a esse critério.
E, por ele guiado, Descartes conclui a validade objetiva da matemática e da ciência
matemática da natureza, e, portanto, do ser verdadeiro da natureza tal como é
conhecido pela ciência.99

Sabe-se porém, que essa objeção a Descartes de circularidade nas suas provas é
conhecida desde os tempos do filósofo. Parece que a crítica “ciclofóbica” de Husserl só repete o que
outros críticos contemporâneos de Descartes, como Mersenne, Arnauld e Gassendi, já haviam
objetado às Meditationes: de andar em círculos na hora de fornecer a justificação última da
veracidade do conhecimento extra mentis.
Mas a impressão de que Husserl se limita a repetir uma velha fórmula é só aparente.
A reprovação que ele dirige ao círculo cartesiano é só um item dentro de um quadro crítico mais
abrangente, no qual predomina a acusação de que faltou a Descartes a “orientação transcendental”,
justamente aquela que ele havia descoberto no cogito, e pela qual pode ser chamado o “Cristóvão
Colombo” da filosofia. Para Husserl, Descartes deve ser elogiado por ver a “necessidade de um
recomeço radical em filosofia” e por inaugurar “um novo modo de filosofar”, e as Meditationes
devem ser admiradas como “tendo um valor eterno”, porque, com elas, a “filosofia muda totalmente
de aspecto e passa radicalmente do objetivismo ingênuo ao subjetivismo transcendental” 100.
Infelizmente, porém, o radicalismo filosófico de Descartes é assumido para logo em seguida ser
abandonado, ele descobre o ego transcendental para ao cabo de instantes perdê-lo definitivamente
de vista.
Em que consiste esse abandono? Na visão de Husserl, Descartes não apreendeu o
sentido próprio da subjetividade transcendental que ele havia descoberto com o “eu penso”. Sua
filosofia, por isso, ressente-se de duas nefastas tendências: (I) de considerar o “ego cogito um
‘axioma’ apodítico” que “deve servir de fundamento a uma ciência ‘dedutiva’ e explicativa do
mundo” que procede “ordine geometrico”, de modo análogo às ciências matemáticas, ao buscar
deduzir dos princípios inatos ao ego a existência do restante do mundo; (II) de considerar o ego
cogito uma “substantia cogitans’ separada”, que serve como “ponto de partida para raciocínios de
causalidade” e que faz de Descartes “o pai do contrassenso filosófico do realismo
transcendental”101.
Heffernan apresenta um sumário que contempla toda a crítica de Husserl:
1. O procedimento de Descartes é circular e incorre numa Petitio principii na
medida em que exige fazer inferências “válidas” quando é precisamente a própria
possibilidade de fazer inferências válidas que está em questão. 2. Descartes não
distingue suficientemente entre o ego gnosiológico e o ser humano como um

99 Hua VII, Lição 10, p. 65.


100 Hua I, Introdução, § 2, p. 3.
101 Hua I, Meditação I, § 10, pp. 20-21.
“mens sive animus sive intellectus sire ratio”, ou seja, como uma “res cogitans”. 3.
Descartes não distingue adequadamente, nas funções e tarefas da teoria do
conhecimento, entre uma disciplina psicológica e uma disciplina transcendental. 4.
Descartes não vai além da evidência geral da proposição “ego cogito, ergo sum”
para as evidências específicas e individuais das cogitationes e das cogitata. 5.
Descartes não sabe nada da epoché fenomenológica do mundo e nada da redução
transcendental à subjetividade. 6. Descartes não avalia o caráter essencialmente
intencional da consciência como ser universalmente e necessariamente consciência
de (alguma coisa). 7. Descartes não entende que a vida da consciência consiste em
efetuações constituintes. 8. Descartes não formula apropriadamente a questão
gnosiológica fundamental, que é: como algo subjetivo e imanente à consciência
pode tornar-se objetivo e transcendente no ser. 9. Descartes não sabe o que a
evidência é – “a efetuação intencional da doação das coisas mesmas” – e ele deve
até mesmo concebê-la como um tipo de “sentimento”. 10. Descartes encontra-se
fatalmente atraído pelo ideal da evidência “tipo A triplo”, quer dizer, evidência
absoluta, adequada e apodítica, mas ele fracassa em fazer justiça à relatividade
radical da evidência atestada pela experiência (HEFFERNAN, 1997, pp. 127-128).

Com esse sumário, fica a impressão de que Husserl reprova a Descartes não ser
Husserl, e nem fundar a fenomenologia.

Continua ...

3.3 A evidência: princípio de identificação versus princípio de distinção

Para tentar traçar uma diferença entre a concepção de Husserl e a concepção de


Descartes sobre a evidência, vamos recorrer a uma interpretação de Brentano da clara et distincta
perceptio cartesiana.
As duas regras da verdade de Descartes são formuladas nos Princípios:
Regra 1: Quod valde clare et distincte percipio, verum est.
Regra 2: o que está contido de forma clara e distinta na noção de uma coisa pode ser
afirmado com certeza dessa coisa.
Brentano diz ver na primeira regra da verdade de Descartes, salvo engano, uma
aplicação do princípio de não-contradição. Se a visão de Brentano foi certeira, a regra poderia ser
assim reformulada por nós: o que eu percebo muito clara e distintamente contém a verdade, logo,
não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. “Para dizer o mesmo da
segunda regra, basta formulá-la do seguinte modo: um juízo evidente é verdadeiro.”102.
Brentano está convencido de que a conclusão acima pode ser extraída do exemplo
que Descartes oferece em seguida para esclarecer a expressão clare et distincte: uma dor violenta

102 BRENTANO, Franz. Psychologie du Point de Vue Empirique. Traduction et préface de Maurice de Gandillac.
Paris: Aubier, Éditions Montaigne, 1944, p. 375.
sentida por um homem seria clara, mas nem sempre distinta, na medida em que frequentemente o
homem “que sente a dor a confundiria com o juízo obscuro que ele emite sobre a natureza da
dor.”103.
Assim, para Descartes, uma “percepção clara, mas não distinta, seria aquela que não
seria clara senão parcialmente”; ao passo que a percepção distinta “não contém em si nada que não
seja claro”104. Os homens são induzidos ao erro pelo costume que têm de incluir na percepção
imediata de uma dor o juízo obscuro (judicium obscurum) que emitem sobre a natureza da dor. A
distinção é a única percepção que pode evitar esse erro do juízo, pois, se uma coisa clara para
Descartes é o que é perfeitamente consciente, uma coisa distinta “é suficientemente consciente para
excluir toda confusão com outra coisa.”105.

103 Ibid. p. 373.


104 Ibid. p. 374.
105 Ibid. p. 374.

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