Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A QUESTÃO DA EVIDÊNCIA
Introdução
Como diz Fink, a evidência é daqueles conceitos de Husserl sobre os quais algo já foi
decidido de antemão e que se encontra, por isso, dependente do “spekulativ12 da fenomenologia”
(CASTILHO, 2015, p. 30). Isso quer dizer que houve, de saída, uma decisão prévia sobre o estatuto
da evidência; temo-la, por isso, conceitualmente à mão naquele domínio fenomenológico das coisas
já-decididas13. Mas o que, exatamente, se decidiu? Em primeiro lugar, que a evidência não diz nada
11 A atual influência da língua inglesa sobre o idioma português pode levar a um “estrago fenomenológico” do conceito
de evidência, pois em inglês a palavra “evidence” comporta no geral o sentido de “indício” ou “elemento de prova”. A
soma de um conjunto de “evidences” resultaria ao final numa “proof”. Nas línguas latinas em geral, a palavra
“evidência” contém um significado mais próximo do sentido que Aristóteles dava ao termo, quando, nos Analíticos
Posteriores, ele dizia que os primeiros princípios da demonstração lógica são autoevidentes e não precisam ser
demonstrados, pois são conhecidos por um ato intuitivo imediato; logo, o conhecimento deles é um conhecimento por
presença e o desconhecimento deles é uma ignorância por ausência. Santo Tomás de Aquino, por sua vez, concebe a
evidência como uma propriedade da verdade e há dois tipos básicos de evidência: (I) o evidente primeiro, que é per se
nota ou quod se, algo que é em si e por si, e não meramente quoad nos, para nós, e que se manifesta à nossa inteligência
de modo imediato; e (II) o evidente segundo, obtido por demonstração num raciocínio através do termo médio.
12 Para mais detalhes, cf. FINK, Eugen. A análise intencional e o problema do pensamento especulativo. Comunicação
ao “Colóquio Internacional de Fenomenologia” realizado em Bruxelas de 12 a 14 de abril de 1951. Tradução de Fausto
Castilho. In: Problèmes actuels de la Phénoménologie, ed. H. L. van Breda, Desclée de Browner, 1952, Paris, pp. 53-86.
13 O lugar aqui não é o mais apropriado para discutir com Fink o significado exato do conceito de “especulação”. De
qualquer modo, ele não é usado no sentido tradicional, que entenderia especular como apostar as fichas numa
“hipótese” desprovida de prova empírica que apresenta maior ou menor probabilidade de concordância com a coisa
“real” “hipotetizada no vazio”. A decisão não tem um caráter arbitrário? E como fica a ligação da evidência com o ato
de ver? Em Husserl, tratar-se-ia efetivamente de uma decisão, ou, antes, de uma simples fidelidade àquilo que se mostra
na visão? Uma questão a ser ponderada, por exemplo, a partir desta passagem em Hua III, § 24, p. 69: “Se vemos um
mais do que um começo absoluto, ela é um ponto de partida, um “principium”, em conformidade
com o princípio de todos os princípios da fenomenologia (das Prinzip aller Prinzipien):
(…) toda intuição doadora originária é uma fonte de legitimação do
conhecimento, tudo que nos é oferecido originariamente na “intuição” (por assim
dizer, em sua efetividade de carne e osso) deve ser simplesmente tomado tal como
ele se dá, mas também apenas nos limites dentro dos quais ele se dá. Vemos com
clareza que toda teoria só poderia tirar sua verdade dos dados originários 14.
objeto em plena clareza, se efetuamos a explicação e a apreensão conceitual fundados puramente na visão e no âmbito
do que se apreende vendo efetivamente, então vemos (numa maneira de ‘ver’) como é a índole do objeto, e o enunciado
que o exprime fielmente ganha sua legitimidade. Ao perguntar pelo porquê desta, seria contrassenso não conferir valor
algum ao ‘eu o vejo’ – como mais uma vez vemos com clareza”.
14 Hua III, § 19, p. 62.
15 Hua I, Meditação I, § 5, p. 11.
16 Ibid. Meditação II, § 26, p. 51.
17 Hua VIII, Lição 31, p. 29.
é ao mesmo tempo originário e último, posto que a ciência arqueológica destina-se também a
ensinar “como, a partir dessa fonte originária de todas as intenções e validades, toda espécie de
conhecimento pode ser elevada à forma racional suprema e última, aquela da fundação e da
justificação absolutas”18.
Mas Husserl deve introduzir uma distinção entre as evidências, mostrar que há uma
evidência que encobre em vez de expor à luz (a evidência ingênua da atitude natural), e apontar a
evidência específica que é chamada a cumprir o papel de arkhé. A arqueologia, com efeito,
(…) não poderá se sustentar em virtude da claridade ingênua que se nomeia
comumente “evidência” (evidência natural, evidência da positividade), mas em
virtude da evidência superior da claridade de origem (Urprungsklarheit)
transcendental na qual a origem da obra do conhecimento, dissimulada sob a
evidência da positividade, é desvelada com seu horizonte de motivações que ao
mesmo tempo determinam e limitam seu direito originário; ela é assim
compreendida a partir de suas origens. 19
Assim, Husserl extrai de uma decisão prévia o princípio que resolve o problema do
começo (antes dele não há nada a mostrar) e, ao mesmo tempo, o problema da fundamentação
última (depois dele já não há também mais nada). A fundamentação resulta do começo evidente
transcendental e sua conclusão é regida pelo mesmo critério, de só admitir como legítimo o que tem
retaguarda na intuição originária e de se manter rigorosamente dentro dos limites traçados pela
doação das “coisas mesmas”.
Assim, deixar a verdade a cargo de um “sentimento” não seria muito diferente de
arriscar a sorte numa loteria. Se este princípio de todos os princípios tivesse um caráter emotivo, só
um verdadeiro milagre, diz Husserl20, poderia assegurar a objetividade da verdade. Husserl, como
vimos, coloca-se no ponto de vista diametralmente oposto ao do empirismo psicologista, e recusa
haver qualquer analogia entre evidência e sentimento. Essa determinação, porém, é negativa.
Determinada positivamente, a evidência é um Erlebnis, quer dizer, “a vivência da verdade”21.
Devemos, porém, lembrar a distinção já feita entre ideal e real para não sucumbir à tentação de
interpretar esse Erlebnis no sentido psicológico, mas, antes, positivamente, no sentido em que “se
ouve que um ser ideal em geral pode ser um vivido no ato real. Em outras palavras: a verdade é
uma ideia da qual um caso particular, no juízo evidente, é um vivido atual”22.
23 Mas cabe aqui uma reflexão sobre a relação entre atualidade e imediatidade. Na demonstração, o funcionamento do
mecanismo lógico de prova depende de evidências primeiras atuais e imediatas e evidências segundas mediatas, no
sentido tradicional de evidência. Consideremos, por exemplo, o seguinte raciocínio no modo Bárbara: A é B e B é C,
logo, A é C. As evidências surgem em diferentes níveis de atualidade e imediatidade. A evidência absolutamente
primeira é a evidência dos princípios (contradição e identidade). A evidência relativamente primeira é a evidência das
proposições assumidas como premissas, A é B e B é C. A evidência segunda é aquela obtida pelo resultado da
demonstração: A é C, que segue como consequência necessária das premissas. Contudo, a conclusão comporta outro
tipo de evidência que salta diante dos olhos, que é a evidência do nexo de identidade lógico entre as duas primeiras
proposições e o nexo de identidade entre os três termos A, B e C. Na evidência dos princípios, a atualidade e a
imediatidade coincidem absolutamente sob todos os aspectos. Toda vez que o princípio de contradição é pensado, a sua
verdade é atual e imediata. Na evidência das premissas, a atualidade e a imediatidade coincidem sob o aspecto lógico,
mas não sob o aspecto cronológico, pois quando a primeira premissa é atual, a segunda é inatual, e quando a segunda
premissa é atual, a primeira deixa de sê-lo, resvalando para a inatualidade. Na evidência da conclusão, ocorre o
contrário, a atualidade e a imediatidade coincidem cronologicamente, mas não logicamente, porque, do ponto de vista
cronológico, o conhecimento de A é C é captado diretamente e num instante atual do tempo, mas, do ponto de vista
lógico, não é um conhecimento imediato, porque foi obtido pela mediação de B. Com relação à evidência do nexo,
pode-se dizer que ela é absolutamente atual e imediata. Quando uma proposição afirmativa universal diz que todo
homem é mortal ela já está também dizendo implicitamente que cada um dos indivíduos humanos é mortal, que
Sócrates é mortal, etc. “Todo” equivale a “cada um” e esse nexo só pode ser percebido numa evidência atual e imediata.
O nexo não pode ser demonstrado, porque se exigisse demonstração todo raciocínio que fizesse recurso a ele
dependeria, para ser válido, de um raciocínio anterior que demonstrasse a validade do nexo, e o raciocínio que
demonstrasse a validade do nexo faria recurso também a um segundo nexo, que pediria também demonstração, e assim
ad infinitum. Por conseguinte, são três as condições de funcionamento do mecanismo lógico de prova: (I) a evidência; a
(II) possibilidade da prova através do nexo; (III) a evidência do próprio nexo.
24 Hua XVIII, § 51, pp. 190.
25 Ibid. § 51, pp. 190-191.
(…) juízos, deduções, etc., formados em atos repetidos semelhantes ou análogos,
são juízos, conclusões, etc., que não são simplesmente semelhantes ou análogos,
mas que são idênticos, que são numericamente os mesmos juízos, conclusões, etc.
Eles “fazem sua aparição” de modo reiterado na esfera da consciência (…) na
temporalidade objetiva (…) como processos psíquicos reais de homens reais (…)
mas os pensamentos no pensar (…) não são absolutamente objetos reais, objetos
espaciais, eles são formações irreais cuja essência característica exclui a extensão
espacial, a propriedade original de estar num lugar e de se mover (…)26.
Nas Investigações Lógicas, a reflexão sobre a evidência surge num registro crítico
dominado pela preocupação com a “figura imperfeita do conceito”, como salienta Moura (1989, p.
45). Husserl chama a atenção para a imperfeição conceitual das ideias lógicas. O que isso significa?
Ora, não se deve esquecer que a explicitação da lógica pura é um dos temas que figuram de início
no horizonte da investigação fenomenológica, e este tema conduz Husserl a uma teoria do
conhecimento. Esta, por sua vez, tem um duplo interesse: fornecer uma explicação “filosófica” da
lógica e “evidenciar” a essência da relação entre subjetividade, idealidade e objetividade. A pedra de
tropeço que se põe no caminho do primeiro interesse, de explicitação da lógica, é o fato de que seus
conceitos apresentam uma imperfeição: as ideias lógicas são dadas num modo “puramente
simbólico”.
O emprego que se faz aqui da noção de “símbolo” remonta a um esquema geral que
Husserl reproduz de Brentano, e reconhece dever a ele. Esse esquema permite distinguir entre
representações próprias e impróprias. A representação própria é uma intuição autêntica que
apresenta efetivamente a coisa mesma diante de nós. A representação imprópria é um signo que
funciona como substituto do objeto designado. O conceito, por sua vez, é um tipo especial de signo,
26 Hua XVII § 57b, p. 138.
27 “(…) a evidência dos objetos irreais (…) em sua efetuação, é completamente análoga àquela dos objetos
individuais”. (Ibid. § 58, p. 139).
28 Ibid. § 58, p. 139.
que pode constituir uma representação própria. Os signos propriamente conceituais são aqueles que
trazem uma informação sobre a coisa a que fazem referência pela mediação de certas notas
distintivas dela. O esquema brentaniano, portanto, permite identificar como símbolo e conceito
coincidem entre si, mas permite também diferenciá-los, apontando uma assimetria na relação entre
ambos: todo conceito é uma representação simbólica, mas nem toda representação simbólica é um
conceito. Em suma, o símbolo não é um conceito quando carece de base intuitiva. O símbolo
conceitual, por sua vez, “é um nome geral cuja significação é formada por marcas distintivas, por
propriedades do objeto designado” (MOURA, 1989, p. 50).
O começo da discussão husserliana sobre o símbolo remonta à Filosofia da
Aritmética, onde Husserl ilustra o problema com um exemplo tirado da matemática. Ele menciona
uma dificuldade lógica que surge no cálculo: digo que 2 mais 3 é igual a 5; mas os conceitos 2 e 3
na soma permanecem sendo sempre 2 e 3, sem se transformar em 5. Percebe-se em tal dificuldade
que nas operações da matemática os números não se dão como abstracta. “O aritmético não opera
absolutamente com os conceitos de número enquanto tais, mas com os objetos representados em
geral desses conceitos; os signos que ele liga ao calcular têm o caráter de signos gerais formados
sobre a base dos conceitos de número”29. Assim, Husserl chama a representação por signos de
“simbólica” e “imprópria”, pois nela o conteúdo não é dado diretamente como isto que ele é, mas
apenas indiretamente por signos que o caracterizam de maneira unívoca.
Essa constatação que foi feita no caso da aritmética pode ser transposta, mutatis
mutandis, para a lógica: ela opera com signos representados em geral, logo, com referências
indiretas ao conteúdo. Suas figuras de conceito revelam-se, portanto, imperfeitas. Os signos são
ditos “imperfeitos” na medida em que são entendidos como índices de alguma coisa, como sinais
estabelecidos por convenção, mas que mantêm uma relação puramente exterior e arbitrária com a
coisa por eles designada. Dizer, portanto, que eles são conceitualmente deficitários equivale a dizer
que eles operam no “vácuo”, funcionam como substitutos do objeto designado, ao cumprir a função
de designação exterior, mas sem nada informar dos traços distintivos pertencentes ao designado
enquanto tal, sem poder caracterizá-lo.
Assim, se o interesse pelo jogo demonstrativo lógico leva com necessidade a um
interesse pela verdade, a uma Lógica da verdade, nesta última surgirá um “ponto cego” que a lógica
abandonada a si mesma será incapaz de preencher e que exigirá “uma complementação filosófica”
(MOURA, 1989). Com efeito, diz Husserl, a edificação da Lógica pura não pode ser deixada a
encargo apenas das disciplinas matemáticas, “como um sistema de proposições que vai crescendo
29 Hua XII, pp. 201-202. “Der Arithmetiker operirt überhaupt nicht mit den Zahlbegriffen als solchen, sondern mit den
allgemein vorgestellten Gegenständen dieser Begriffe; die Zeichen, die er rechnend verbindet, haben den Charakter auf
Grund der Zahlbegriffe gebildeter allgemeiner Zeichen”.
no quadro de uma validade ingenuamente objetiva”, porque a lógica assim, estabelecida sob o
simbolismo matemático, ressentir-se-á da falta de uma “clareza filosófica” sobre tais proposições e
de uma “visão intelectiva sobre os modos de conhecimento que entram em jogo com a consumação
e as aplicações idealmente possíveis destas proposições, bem como sobre as doações de sentido e
validades objetivas que (…) por essência se constituem”30.
O lógico, no entanto, tende a conviver pacificamente com tais obscuridades, sem se
incomodar com o ponto cego e com a falta de evidência congênita ao simbolismo puro. Isso
acontece porque os signos não deixam nada a desejar quando o interesse em causa é simplesmente
técnico: a operação “2 mais 3 é igual a 5” move-se no plano simbólico, mas nem por isso deixa de
funcionar e produzir seus resultados (de uma evidência, aliás, apodítica). Mas se, por um lado, a
aritmética e a lógica funcionam excelentemente do ponto de vista operatório, por outro, elas nos
armam uma cilada do ponto de vista epistemológico, pois a eficiência de seus procedimentos
técnicos tende a fascinar a visão e cegá-la, ou seja, colocá-la numa espécie de “piloto automático”,
enrijecê-la numa atitude simplesmente mecânica.
Nas áreas exatas de dedução, os métodos de cálculo desempenham um papel
extraordinário e possibilitam realizações que não seriam de forma alguma
alcançáveis operando da maneira comum com os conceitos originais. Sua essência
consiste no fato de que o pensamento e o raciocínio efetivos, que opera com os
próprios conceitos, estão subordinados a um procedimento mecânico que trata dos
meros signos e de suas regras fixas de funcionamento. Depois que os matemáticos,
por exemplo, fixam sua tarefa em fórmulas, eles procedem de forma puramente
mecânica de acordo com as regras de cálculo aprendidas, muitas vezes eles fazem
as transformações mais complicadas no quadro-negro, fazem eliminações, realizam
integrações e diferenciações, etc. E, em tudo isso, eles operam apenas com
símbolos, assim como com fichas e regras para símbolos que, por assim dizer,
representam as regras do jogo. Mas não importa quão maravilhosos sejam os
métodos de cálculo, eles só ganham significado e justificativa a partir da essência
dos conceitos e relações conceituais correspondentes aos símbolos e regras de
cálculo e, assim, mais uma vez, do pensamento fundamentador 31.
Para Husserl, isso leva a uma alienação, que é a mesma alienação técnica que
acomete as ciências positivas em geral. “As obscuridades da lógica pertencem ao quadro de uma
alienação cuja tematização percorre a obra de Husserl como um todo: a alienação técnica da
30 Hua XIX.2. Introdução, § 1, pp. 5-6.
31 Hua XXIV. § 8, p. 26. “In den exakten Deduktionsgebieten spielen sie eine au ßerordentliche Rolle und ermöglichen
Leistung, die auf dem gewöhnlichen, mit den ursprünglichen Begriffen operierenden Wege gar nicht erreichbar wären.
Ihr Wesen besteht darin, daß dem eigentlichen Denken und Begründen, das mit den Begriffen selbst operiert, ein
mechanisches, mit den bloßen Zeichen und ihren festen Operationsregeln beschäftiges Verfahren untergeschoben wird.
Nachdem z. B. Der Mathematiker seine Aufgabe in Formeln gesetzt hat, verfährt er rein mechanisch nach den
angelernten Rechnungsregeln, er macht auf der Tafel oft die kompliziertesten Umformungen, macht Eliminationen,
vollzieht Integrationen und Differentiationen usw. Und bei all dem operiert er nur mit dem Symbolen so wie mit
Spielmarken und mit den Regeln der Symbole, die gewissermaßen die Spielregeln darstellen. Aber wie Wunderbares
die rechnerischen Methoden auch leisten, sie gewinnen Sinn und Rechtfertigung nur aus dem Wesen der den Symbolen
und Rechnungsregeln entsprechenden Begriffe und Begriffsbeziehungen und damit wieder aus dem begründenden
Denken”.
ciência”, o que significa, em suma, que a praxis científica “se desenvolve sem a intelecção da ratio
da efetuação realizada” (MOURA, 1989, pp. 47-48) Ao operar no plano dos “signos”, o mais
afastado da intuição, a lógica torna-se uma pura mecânica, um puro cálculo, que reduz-se a deduzir
signos a partir de signos.
Uma forte ambiguidade também se encontra do lado daquilo que é expresso por uma
expressão. Pois o que é expresso acha-se pendente da manifestação em geral, do ato que empresta o
sentido e do ato que o preenche. A asserção, por exemplo, dá expressão tanto ao juízo quanto a
percepções e outros atos que respondem pelo preenchimento do sentido. A expressão, ademais,
afirma qualquer coisa, mas também diz algo acerca de qualquer coisa.
Husserl observa que é necessário distinguir entre significado (conteúdo) e objeto a
partir do momento “em que nos convencemos, pela comparação de exemplos, de que várias
expressões podem ter a mesma significação, mas diferentes objetos” 42, como, por exemplo: (I)
Bucéfalo é um cavalo; (II) este sendeiro é um cavalo 43. Ambas as expressões significam “cavalo”,
mas de uma para outra produz-se uma ligeira alteração na representação doadora de sentido. Por
outro lado, as expressões podem ter significações diferentes, mas o mesmo objeto, como é o caso,
40 Hua XIX.2. Investigação I, § 11, pp. 48-49.
41 Ibid. Investigação I, § 11, p. 50.
42 Ibid. Investigação I, § p. 52.
43 O exemplo do cavalo é também usado por Frege: “Um pintor, um cavaleiro e um zoólogo irão provavelmente
associar ao nome ‘Bucéfalo’ representações bem diferentes” (FREGE, Gottlob. Über Sinn und Bedeutung. Zeitschrift
für Philosophie und philosophische Kritik, NF 100, 1892, S. 25-50. Sobre o sentido e a referência. Tradução de Sérgio
R. N. Miranda. FUNDAMENTO – Rev. de Pesquisa em Filosofia, v. 1, n. 3, maio – ago. 2011, p. 24).
por exemplo, de Napoleão, se lançarmos mão das expressões (I) “O Vencedor de Iena” e (II) “O
Vencido de Waterloo”. Ambas possuem o mesmo objeto “Napoleão”, mas a primeira delas evoca
no seu teor de sentido a ideia de vitorioso, ao passo que a segunda evoca no seu teor de sentido a
ideia de derrotado44. “A significação expressa é, em cada um desses pares, manifestamente
diferente, se bem que, de um lado e do outro, seja visado o mesmo objeto”45.
Pode-se ainda incluir junto a esses exemplos o caso das expressões que Husserl
menciona como “tautológicas”, que apresentam igual significação e nomeação e que correspondem
umas às outras em diferentes línguas: London, Londres; dois, deux, duo, etc. Assim, pode ocorrer
“que os sons pronunciados sejam os mais diferentes, enquanto a relação cognitiva é a mesma, como
no caso de uma ‘mesma’ palavra proferida em diferentes línguas; o objeto é conhecido
essencialmente como o mesmo, não obstante pronunciemos subsidiariamente diferentes sons”46.
44 A análise de Frege é semelhante à de Husserl, mas a terminologia entre eles sofre mudanças consideráveis. Frege
emprega o termo “pensamento” (Gedanke) onde Husserl emprega “significação” (Bedeutung). E ele emprega o termo
Bedeutung no sentido de “referência”, de “objeto”, onde Husserl escreve “objeto” (Gegenstand). Veja-se o conhecido
exemplo da estrela vésper e da estrela da tarde: “Admitamos uma vez que a frase tenha uma referência (Bedeutung)! Se
nela substituímos uma palavra por outra que tenha a mesma referência, mas um sentido diferente, isso não pode ter
qualquer influência sobre a referência da frase. Mas notamos agora que o pensamento (Gedanke) modifica-se em uma
situação dessas; por exemplo, o pensamento da frase ‘a estrela a manhã é um corpo iluminado pelo sol’ é diferente
daquele da frase ‘a estrela da tarde é um corpo iluminado pelo sol” (Ibid. p. 27).
45 Hua XIX.2. Investigação I, § 12, p. 53.
46 Hua XX.1. Investigação VI, § 7, p. 27.
atualmente, seja na presentificação de algo não mais presente (re-tendere), seja na antecipação de
algo que será presente (pro-tendere). Re-tendere e pro-tendere, oriundos de intentio, darão
nascimento aos conceitos de retenção e protensão que desempenharão um papel fundamental na
análise husserliana do tempo.
(I) Sob certo aspecto, os atos podem ser determinados conforme seu “caráter”. O
conceito introduzido por Husserl de “caráter de ato” permite diferenciar a consciência de algo
universal da consciência de algo singular. O caráter torna um ato de consciência essencialmente
diferente de outro, e, por consequência, torna igualmente diferentes em seu sentido os conteúdos
consciencizados. “Os objetos universais tornam-se conscientes para nós em atos essencialmente
diferentes daqueles em que nos tornamos conscientes dos objetos individuais”47. Com essa
determinação do ato pelo caráter, Husserl põe-se incansavelmente a desencobrir as sutilezas quase
imperceptíveis do conhecimento de objetos universais, decidido a mostrar as evidentes contradições
em que cai o nominalismo de Locke, de Hume, de Cornelius, etc., ao contestar a existência do
conhecimento universal como “ficção”, ou submetê-lo a uma psicologia associativa das
semelhanças baseada numa suposta função generalizante do “nome” concebido como “economia do
pensamento”.
Mas vamos passar por alto as considerações críticas de Husserl, a respeito das
concepções nominalistas, para nos deter diretamente nas suas formulações positivas da noção de
“caráter de ato”. Diz ele que, no intervalo de tempo em que aparece, por exemplo, “o objeto
vermelho e o momento de vermelho nele realçado, visamos, antes, ao mesmo vermelho idêntico e
visamo-lo num modo de consciência de tipo novo, por meio do qual se nos torna objetiva,
precisamente, a espécie, em vez do individual”48.
Numa consideração comparativa, é-nos ensinado que o ato no qual visamos a algo de
específico difere essencialmente do ato em que visamos a algo de individual (um indivíduo concreto
ou uma parte ou traço individual desse indivíduo):
Certamente que há em ambos uma certa comunidade fenomenal. Em ambos
aparece, de fato, o mesmo elemento concreto e, na medida em que aparece, são
dados em ambos os mesmos conteúdos sensíveis nos mesmos modos de apreensão;
quer dizer, o mesmo montante de conteúdos de sensação ou de fantasia atualmente
dados subjaz à mesma “apreensão” ou “interpretação”, nas quais se constitui para
nós o aparecimento do objeto com qualidades apresentadas através daquele
conteúdo. Mas o mesmo aparecimento suporta, em ambos, atos diferentes. Da
primeira vez, o aparecimento é o fundamento representativo de um ato de visar
individual, quer dizer, de um ato tal no qual nós, num simples voltar-se para,
visamos ao próprio aparecente, esta coisa ou esta nota, este pedaço na coisa. Da
segunda vez, ele é o fundamento de representação de um ato de apreender e de
visar especializante; quer dizer, enquanto aparece a coisa, ou melhor, a nota na
47 Hua XIX.2, Investigação II, § 1, p. 113.
48 Hua XIX.2, Investigação II, Introdução, p. 111.
coisa, não visamos a esta nota objetiva, a este aqui e agora, mas visamos sim ao seu
conteúdo, à sua ideia; não visamos a este momento de vermelho na casa, mas sim
ao vermelho49.
(II) Sob um segundo aspecto, os atos podem ser determinados como objetivantes e
como propriamente objetivantes. Husserl entra nos detalhes do caráter objetivante dos atos no
segundo livro das Ideias, dedicado a “Investigações Fenomenológicas sobre a Constituição”. A
partir da pergunta: “como as vivências são executadas em função do conhecimento?”, Husserl põe-
se a considerar a transformação geral de atitude que desencadeia o comportamento teórico. O
sujeito – ele diz – vive em seus atos, de representar, perceber, recordar, pensar, de uma maneira
fenomenologicamente assinalada, mas cada um desses atos comporta, por essência, a possibilidade
de converter-se num ato teórico mediante uma mudança de atitude, ou seja, a partir de uma
modificação intencional da vivência.
Husserl observa que a atitude prática e a atitude axiológica ou valorativa (referente
aos valores éticos e estéticos) correm paralelamente à atitude teorética. E ele recorre a uma imagem
para ilustrar a modificação de uma atitude para outra: uma coisa é um ter na consciência a visão do
céu azul, outra coisa é a execução teórica deste ato. Na atitude prática, vivemos a visão do céu azul
sob o interesse, por exemplo, de prever uma possível tempestade ou de nos orientar pela posição do
sol. Na atitude axiológica, vivemos num agradável arroubo diante de um céu resplandecente.
Se fazemos isto, não estamos na atitude teórica ou cognoscitiva, e sim na atitude
emotiva. Ao contrário, bem pode haver agrado enquanto nos movemos na atitude
teórica, quando, na condição de físicos, estamos dirigidos, a observar o céu azul
resplandecente; mas então não vivemos no agrado. Esta é uma modificação
fenomenológica essencial do agrado, o do ver e o do julgar, segundo a qual
passamos de uma atitude à outra. Esta peculiar mudança de atitude pertence como
possibilidade a todos os atos (...)50.
(III) Sob um terceiro aspecto, os atos podem ser caracterizados conforme sua
qualidade e sua matéria. Husserl distingue qualidade e matéria “como dois momentos, ou como dois
constituintes internos de todos os atos”52. Sob o título de qualidade encontra-se a determinidade
interna de um ato que o diferencia de outro ato, por exemplo, o juízo da esperança, a esperança do
desejo, o desejo da lembrança, etc. Determinado pela qualidade “judicativa”, o ato de julgar
distingue-se de outros atos como desejar, esperar, lembrar, etc. Essa determinidade interna, porém,
na mesma medida em que discrimina o juízo dos outros atos, torna qualitativamente comuns todos
os juízos entre si. O que, então, diferencia um juízo de outro juízo é justamente a matéria, ou seja,
aquilo que é julgado no ato de julgar. Por exemplo, o juízo sobre X é qualitativamente igual ao juízo
sobre Y, só que materialmente diferente dele porque X é diferente de Y. Em suma, os juízos são
homogêneos entre si pela qualidade judicativa e são heterogêneos entre si pelo objeto julgado que
entra no ato como matéria.
No entanto, a matéria constitui ao mesmo tempo um fator unificante que subjaz a
uma multiplicidade de atos e os reúne numa idêntica referência. Se ela, por um lado, torna
materialmente heterogêneos os atos que são qualitativamente homogêneos entre si, por outro lado,
ela pode constituir um momento comum de vários atos qualitativamente diferentes. Por exemplo, o
mesmo momento material “vermelho” pode ser julgado, desejado, esperado, lembrado, etc. A
matéria surge então como o uno no múltiplo, a unidade na multiplicidade. A matéria, como base
idêntica para uma variedade de atos, é chamada então por Husserl de representação subjacente:
(…) a identidade da matéria ao longo da variação da qualidade assenta na
identidade “essencial” da representação subjacente. Dito de outra maneira: aí onde
os atos têm o mesmo “conteúdo” e não se diferenciam, segundo a sua essência
intencional, senão porque é um juízo, o outro, um desejo, o terceiro, uma dúvida,
etc., com precisamente esse conteúdo, aí possuem eles essencialmente a mesma
representação como base. Se a representação subjaz a um juízo, então ela é (no
sentido atual de matéria) conteúdo de um juízo. Se ela subjaz a um desejo, então é
conteúdo de um desejo, etc53.
Nós vemos assim que de um lado acha-se a multiplicidade dos atos, qualitativamente
desdobrados, e de outro lado acha-se a unidade da matéria subjacente a esses atos. A consciência se
consuma na multiplicidade dos atos (de julgar, desejar, lembrar, esperar, etc.) em um “representar”
que torna o objeto presente, e faz dele um uno e um idêntico no meio da variedade. Esta variedade,
51 Ibid. § 7, pp.15-16.
52 Hua XIX.2, Investigação V, § 22, p. 441.
53 Ibid. Investigação V, § 23, p. 445.
porém, não significa uma fragmentação dos atos como se eles corressem em série, justapostos uns
aos outros. O “representar” do objeto nos atos, pelo contrário, é também uma espécie de unidade,
uma fusão. Para esclarecer isso, Husserl recorre aqui à bem conhecida proposição de Brentano:
(…) em cada ato, o objeto intencional é um objeto representado num ato de
representar e que, quando não se trata desde o início de um mero representar
simples, um representar está sempre tão peculiar e intimamente entretecido com
um ou vários outros atos – ou melhor, caracteres de ato – que, assim, o objeto
representado se apresenta ao mesmo tempo como ajuizado, desejado, esperado e
coisas semelhantes. Esta variedade da relação intencional não se realiza, por
conseguinte, numa justaposição ou sucessão enlaçada de atos, pela qual o objeto
estaria de novo intencionalmente presente com cada ato, mas antes num ato
estritamente unitário, no qual um objeto aparece uma única vez, mas, neste estar
presente único, é o ponto de chegada de uma intenção complexa 54.
(IV) Por último, é preciso ressaltar que, no quadro descritivo da experiência atuante,
o conceito de “intuição” (Anschauung) é promovido à função de diferenciar essencialmente os atos
entre si. Ao entrar em cena, ele introduz a diferença fundamental que existe entre as intenções: o ato
intuitivo é aquele que atinge efetivamente o objeto; o ato significativo é aquele que apenas o visa.
Lévinas, que aprofundou a teoria da intuição no Husserl das Investigações, assinala que entre os
dois não reside uma simples diferença de graus de claridade. Trata-se, antes, de uma diferença
essencial. Nas palavras de Husserl:
A cada intenção intuitiva pertence – falando no sentido da possibilidade ideal –
uma intenção signitiva que se ajusta a ela de maneira exata, segundo a matéria. (…)
Na transição de uma intenção signitiva para a intuição correspondente, não temos
somente a vivência de um mero acréscimo gradativo, como no caso da transição de
uma imagem empalidecida ou de um mero esboço para uma pintura cheia de vida.
Em vez disso, falta à representação signitiva, tomada por si só, todo e qualquer
recheio, que só lhe é proporcionado pela representação intuitiva, que nela o
incorpora, por meio da identificação55.
Por conseguinte, a intenção significativa opera no vazio, num puro visar objetivante,
ao passo que a intuição atualiza a pura e simples visada pondo a consciência numa relação direta
com o objeto. Numa relação face a face, por assim dizer. A presença do objeto está ao alcance da
consciência. O objeto está, por assim dizer, ao pé do ato intuitivo, que o atinge.
O ato significativo, ao contrário, mira o objeto sem tê-lo presente diante de si. Mas a
conversação corrente, no fim das contas, é composta na esmagadora maioria dos casos de atos
meramente signitivos, ela é em geral um processo de transmissão de significados vazios, pois nós
não precisamos ter perante os olhos a presença de todos os objetos dos quais falamos e cujo sentido
comunicamos, mediante palavras e expressões, a nosso interlocutor. Quando “não temos imagem ou
percepção alguma, nós nos limitamos ao simples ato de visar o objeto, na medida em que
O primeiro “como” (als) da expressão acima genau als das, als welches refere-se à
coincidência perfeita entre o visado e o dado, enquanto o segundo “como” refere-se à estrutura do
modo intencional, o modo pelo qual (como-o-que) o visado deixa-se acomodar na perfeição da
coincidência com o dado. Do conceito de adequação, fenomenologicamente determinado, Husserl
passa à consideração da evidência: é o ideal da adequação que nos dá a evidência. Esta, porém,
pode ser compreendida no sentido lato ou no sentido estrito.
Falamos em evidência, no sentido lato, sempre que uma intenção posicionante
(sobretudo, uma afirmação) é confirmada por uma percepção correspondente e
perfeitamente adequada, mesmo que se trate de uma síntese adequada de
percepções singulares conexas. É legítimo falar então em graus de evidência (…) O
sentido estrito da evidência, na crítica do conhecimento, refere-se exclusivamente a
essa meta última e insuperável, ao ato dessa síntese de preenchimento, a mais
perfeita de todas, que dá à intenção, por exemplo, à intenção do juízo, a absoluta
plenitude de conteúdo, a plenitude do próprio objeto.79
86 Hua I, § 5, p. 10.
87 Hua XVII § 59, p. 142. “(...) consciência original: é ‘tal coisa ela mesma’ que eu apreendo, originaliter, em contraste
com a apreensão por imagem ou com toda pré-opinião, intuitiva ou vazia”.
88 HUSSERL, Erfahrung und Urteil. Untersuchungen zur Genealogie der Logik. Introdução, § 12, p. 51. Cabe observar
que é em Experiência e Juízo que Husserl introduz o conceito de Lebenswelt (mundo da vida).
89 Ibid. § 12, p. 52.
externa. A propósito disso, Husserl distingue entre experiência simples, ou sensível, e experiência
fundada. Mas não vamos entrar nos detalhes dessa divisão.
O capítulo primeiro de “Experiência e Juízo” é consagrado à tematização da
experiência ante-predicativa e à descrição das estruturas gerais da receptividade. Husserl entende
que o conceito de receptividade é indispensável. Fenomenologicamente falando, ele corresponde à
orientação do Eu em direção às coisas e ao movimento pelo qual o Eu “acolhe em si isto que lhe é
pré-dado através dos estímulos que o afetam”90. Assim se mostra como as sínteses predicativas se
edificam sobre as experiências ante-predicativas da recepção, e em que consiste a essência de tais
operações. Mas como o tema da “evidência” é o que mais particularmente nos interessa, devemos
nos limitar aqui à tarefa de esclarecer a oposição entre evidência passiva e evidência ativa, tal como
esta última é pressuposta na definição “efetuação intencional da doação das coisas mesmas”.
Em que medida os dois casos de evidência se opõem? Husserl, na verdade, afasta a
ideia de oposição. Entre passividade e atividade reside, antes, uma diferença de grau, e não de
natureza:
Esse conceito fenomenologicamente indispensável de receptividade não está, de
nenhum modo, em posição de exclusão com o conceito de atividade do Eu, sob o
qual será preciso compreender todos os atos saídos de modo específico do Eu como
polo; será preciso, ao contrário, considerar a receptividade como o grau inferior da
atividade. O Eu consente com isto que lhe advém, e o acolhe no seu seio 91.
Feitas as devidas considerações, no que diz respeito à relação entre ativo e passivo, e
pelas quais constatamos que a evidência é uma atividade exercida sob um solo de passividade
originária, que tem sua clareza própria, podemos nos deter então no segundo conceito que aparece
na caraterização geral da evidência como “efetuação intencional”, a saber, no conceito de
“intencionalidade”. Que significados “intencional” comporta neste caso, e que um olhar
corretamente treinado na amostragem fenomenológica deve fazer sobressair?
Conforme está implícito nas considerações já feitas, a evidência é uma forma de
intencionalidade que desempenha papel preeminente na vida da consciência, e sua determinação,
decerto, deve incluir o conceito de intencionalidade reservando a ele uma posição privilegiada. Isso
se vê pelo que Husserl afirma, num determinado momento: “(…) a evidência é a forma geral por
excelência da ‘intencionalidade”, para, logo em seguida, reiterar: “(…) A intencionalidade em geral
(...) e a evidência, a intencionalidade da doação das coisas mesmas, são conceitos que, por
essência, são aparentados (…) a evidência é um modo de intencionalidade universal, relacionado à
vida inteira da consciência”92.
90 Ibid. § 17, p. 83.
91 Ibid. § 17, p. 83.
92 Hua XVII, § 59 e § 60, pp. 142-143.
Os traços gerais da intencionalidade, segundo Castilho (op. cit., p. 46 a 48), são a
“modificação (Abwandlung)”, a “remissão (Verweisung)” e sua “propriedade recíproca”, a
“prescrição reflexiva”, a “passagem sintética”, a estrutura do “possibilitamento” e do “horizonte”, o
“fluxo temporal”. Por ora, ser-nos-á de mais estrito interesse explicitar a modificação e a remissão.
Será o caso de adiantar que elas são estruturas pertinentes à vida intencional que organizam a
consciência enquanto “consciência de”.
Na primeira estrutura, temos em vista modos de consciência modificados que
derivam de um modo original. Insiste Husserl em dizer que o modo original do “estar em presença
do objeto” dá nascimento a uma série de modificações intencionais, que são derivadas do ato
doador original. É o caso da percepção que entra na origem de uma série de modificações modais da
intentio como a “lembrança” da coisa percebida, a sua “afiguração”, a sua “intelecção”, etc. “Um
único e mesmo objeto será, assim, consciencizado segundo modos-de-consciência diferentes e esses
modos-de-consciência não são contingentes; possuem, ao contrário, em cada caso (je), um ‘Eidos
bem determinado” (CASTILHO, 2015, p. 44).
Este Eidos, ou seja – a essência de determinado modo intencional –, é que estabelece
o tipo de experiência que coloca consciência e consciencizado em relação. O exemplo mais à mão
que surge para ilustrar essa determinação eidética é o da vivência espacial:
(…) a intencionalidade sempre proporciona ou uma “experiência-do-próximo”
(Erfahrungsnähe) ou uma “experiência-do-afastado” (Erfahrungsferne). Pode-se
dizer (…) que as intencionalidades “se ordenam” segundo uma “escala de
distância” com respeito às coisas de que são de. (…) em face de cada
intencionalidade, é lícito afirmar que ela está disposta “idealmente” numa escala,
segundo sua “originariedade” (Ursprunglichkeit) ou sua “derivatividade”
(Abkünftigkeit). (CASTILHO, 2015, p. 44).
Em que pese, todavia, o grau de modificação pelo qual passa o objeto, no juízo, no
desejo, na imagem, no sentimento, e afins, em que o objeto fica mais ou menos perto ou longe, isso
não altera em nada o fato de haver sempre na intencionalidade uma estrutura de remissão que se
reporta ao original. Esse segundo traço geral da intencionalidade põe sempre a consciência derivada
no encalço da consciência original, o que equivale a dizer que a modalidade de ato modificada
segue os rastros da modalidade que lhe deu origem, a qual pode por sua vez ser a modificação de
outra modalidade, e assim por diante. No entanto, a remissão não anda em círculos e sempre
termina numa modalidade última, que não reenvia a outra e que fecha a estrutura de remissão.
Castilho, (op. cit., p. 45) chama a esta modalidade última o “imodificado”, o
“irremetente”. Trata-se justamente do original, presente na percepção, que impõe à consciência esse
limite remissivo, pois no ser consciente perceptivo a intencionalidade se vê imodificada, não há
mais para onde remeter, ela não se reporta “a um outro qualquer, e sim à coisa ‘ela própria”. Com
efeito, diante do modo-de-doação intencional modificado, sempre se pode perguntar a que outro
modo-de-doação ele remete, ao passo que “o imodificado se determina então como o irremetente”,
que interrompe a migração remissiva diante do ponto final inscrito pela coisa ela própria “dada” na
doação.
Mas a propriedade da remissão ao original não se estrutura sem que haja recíproca. A
consciência tanto pode sintetizar os derivados e remetê-los ao original, obedecendo a uma “típica
determinada”, quanto pode pôr-se na passagem da recordação de uma ideia para a percepção da
idealidade (visão eidética), sob a prescrição de uma típica diferente (cf. CASTILHO, 2015, p. 46).
Não é um simples episódio acidental o fato de Husserl recorrer com frequência à
analogia da oposição entre polos – o polo do Eu e o polo do objeto – para descrever a correlação
intencional e se valer da imagem da esfera para ilustrar essa polarização. Se a analogia não segue
sem inconvenientes, como a excessiva formalização geométrica da coisa, por outro lado, ela cumpre
à risca a função de fornecer os símiles apropriados para descrever a estrutura remissiva das
modalidades originais e derivadas de consciência. No centro da esfera está instalado o Eu, e, deste
centro, as intenções saem como raios na direção do objeto, as intenções irradiam, por assim dizer,
do centro da esfera na direção da circunferência. Consideremos as quatro figuras abaixo:
Na figura de número 4 acha-se traçado o raio A-E, enquanto nas figuras 1, 2 e 3 estão
traçados apenas alguns segmentos de reta recortados do raio A-E, respectivamente, A-B, A-C e A-
D.
Na figura 1, consideremos que o segmento de reta A-B, que começa no centro A do
círculo e termina no ponto B, seja a relação intencional da fantasia, logo, o ponto A representa o
polo Eu que fantasia, enquanto o ponto B representa o polo objeto fantasiado.
Na figura 2, consideremos que o segmento de reta A-C, que começa no centro A do
círculo e termina no ponto C, seja a relação intencional da recordação, logo, o ponto A representa o
polo Eu que recorda, enquanto o ponto C representa o polo objeto recordado.
Na figura 3, consideremos que o segmento de reta A-D, que começa no centro A do
círculo e termina no ponto D, seja a relação intencional da ideação por conceito, logo, o ponto A
representa o polo Eu que idealiza, enquanto o ponto D representa o polo objeto ideado
conceitualmente.
Na figura 4, consideremos que o raio A-E, que parte do centro A do círculo e termina
no ponto B da circunferência, seja a relação intencional da percepção, logo, o ponto A representa o
polo Eu que percebe, enquanto o ponto B representa o polo objeto percebido.
Agora pensemos no seguinte. Nas figuras 1, 2 e 3, onde são traçados apenas alguns
fragmentos de reta recortados do raio traçado na figura 4, as modalidades de ato não passam de
derivações modificadas recortadas do modo originário da percepção, representado pelo raio A-E.
Isso traduz em imagem o que dissemos acima sobre a “modificação” (Abwandlung).
Ponderemos, por outro lado, o fato de que só na figura 4 o segmento de reta alcança a
circunferência e converte-se num dos raios possíveis do círculo. Isso traduz em imagem os
diferentes níveis de polarização entre Eu e objeto. Nos polos derivados, a consciência não alcança o
original, quer dizer, não chega à situação-limite da doação, que é a da coisa mesma. No polo
imodificado ou irremetente, pelo contrário, a consciência atinge o original. No ponto E o objeto é
finalmente dado como percebido, e a percepção tem de especial o fato de que coincide com o limite,
com a extremidade do círculo, ou seja, com a circunferência. Para além dessa extremidade não há
mais doação possível do objeto. Portanto, a remissão de qualquer dos pontos a outro ponto, de B
para C e de C para B, ou de C para D e de D para C, ou de D para B e de B para D, vai sempre
culminar no ponto E, que se oferece como fronteira ou limite remissivo. Isso ilustra, por sua vez, a
estrutura da remissão (Verweisung).
Podemos pontuar agora, em relação à evidência, que, quanto mais a reta se afasta do
centro da esfera e se aproxima da periferia, mais aumenta a originalidade do dado e, por
conseguinte, mais a consciência do objeto ganha em evidência originária. É exatamente no ponto E
que a vivência da doação do objeto alcança a plenitude intuitiva, e a consciência se vê iluminada
pela luz da evidência. Na reta A-E, que representa a relação intencional por excelência, o objeto é
dado no “original”, por isso dizemos que se trata de uma relação “di-reta”, quer dizer, a reta
atravessa a área que vai diretamente do centro à borda e toca o ponto-limite do círculo. Na
evidência, o objeto mesmo cruza no caminho do raio intencional e fica a descoberto diante dele, o
objeto encontra-se “exposto” ao olhar que o a-borda, por assim dizer.
Essa ilustração que tiramos da geometria, porém, não faz completa justiça ao estado
de coisas descrito por Husserl, pois leva a pensar que a evidência da percepção é o ponto derradeiro
do segmento de reta, e que ele é o último a ser atingido pelo raio intencional. Mas o que acontece é
justamente o contrário. Para o filósofo, a percepção é “o modo primitivo da doação das coisas
mesmas”93. Por ser primitivo, o objeto percebido deve ser visto como o ponto de partida da reta, e
não como o ponto de chegada. Na doação evidente originária, a reta parte da extremidade para o
núcleo, e não o inverso. Com relação à “experiência-do-próximo” (Erfahrungsnähe) e à
“experiência-do-afastado”, (Erfahrungsferne), assinaladas por Castilho, resulta que mais próximo
encontra-se justamente o ponto que coincide com a circunferência, embora apresente na figura
maior distância em relação ao centro, e resulta que mais afastados do centro se acham os pontos
intermédios, localizados no interior do círculo, embora na figura a porção de área entre eles e o
centro seja menor.
No entanto, dever-se-á introduzir aqui duas ressalvas:
(I) Primeiro, que a modalização do original nos derivados não implica numa
precarização do conhecer, e não é correto supor que Husserl estivesse a orientar o conceito de
conhecimento pela percepção e, em geral, pela percepção sensível, cometendo com isso uma
violência contra o saber lógico. Fink (1966, p. 105) nos esclarece, quanto a isso, que nas
Investigações Lógicas “não está em questão um primado da intuição enquanto faculdade de
conhecer, mas um primado da intuitividade de todo conhecimento face à realização do
conhecimento puramente simbólico”. Desse modo, Husserl não toma o caráter de intuitividade da
percepção, a simples apreensão ou posse das coisas mesmas na autodoação, como referência para o
conceito de conhecimento, de sorte que ela fosse “proclamada o caráter fundamental de todo
conhecimento em geral, o que faria violência ao conhecimento lógico” (Ibid., p. 105).
É justamente o contrário. Deve-se dizer, em atenção ao fato de que a prioridade na
fenomenologia é dada à intuitividade do conhecer em geral, que Husserl, ao invés de partir de uma
predileção por uma faculdade cognoscitiva em detrimento das demais, restabelece a dignidade
epistêmica de todo modo cognoscitivo. “A pura e simples autodoação que se apresenta num só
golpe não é senão um caso particular característico da percepção sensível”, e que outros casos
particulares, como “o conhecimento categorial e o eidético, pelos quais a autodoação não é possível
senão ao termo de uma construção por múltiplas fundações de ordem superior”, apresentam também
“por toda parte e de todo modo sua evidência, autodoação da coisa nela mesma evidente (estados de
coisas, valores e estados de valores, etc)” (Ibid., p. 105), e que o conjunto constitui o conhecimento
no sentido pregnante do termo como evidência. Assim,
(II) Segundo, não é como se a consciência se visse hipnotizada pela visão clara desta
ou daquela singularidade objetiva e, induzida a um sonambulismo epistêmico pela evidência,
permanecesse cega para o horizonte de mundo que circunscreve toda atividade cognoscitiva. A
Erlebnis ou vivência é sempre em cada caso uma consciência de alguma coisa, conforme o termo
intencionalidade exprime, mas se aquela palavra for tomada em toda a extensão que seu significado
comporta, dever-se-á assinalar que a vivência não pode ser reduzida a uma consciência de isto ou
de aquilo. “Ao contrário, a Fenomenologia, como Filosofia, trata de alcançar por mostração, não
obstante a experiência de isto ou de aquilo, o todo da experiência ou, como diz Husserl, a
experiência como experiência-de-mundo (Welterfahrung)” (CASTILHO, 2015, p. 31).
O espaço nesta tese não é suficiente para detalhar a controvérsia entre Brentano e
Husserl no que diz respeito aos graus de evidência. Logo, vamos passá-la por alto para nos referir
mais particularmente à diferença de grau mais importante que Husserl estabelece entre as
evidências. A saber, a diferença entre evidência adequada e inadequada, que é extraída do conceito
de adequação.
Lemos a seguinte descrição nas Meditações Cartesianas: quando o cogito vive em
suas intenções, comporta igualmente a possibilidade de voltar o olhar reflexivo para sua cogitatio
ela mesma de maneira a convertê-la em objeto. Trata-se da mudança da percepção transcendente
para a imanente. O cogito, assim, assume a forma de uma nova cogitatio que se dirige sobre a
primeira de modo a tê-la como alvo direto da apreensão. Aí se trata de uma percepção do cogito
sobre si mesmo que possui uma evidência adequada, porque a percepção e o percebido formam por
essência uma unidade sem mediação, a unidade de uma única cogitatio concreta.
A percepção transcendente, porém, só pode ser inadequada, porque o objeto dito
“externo” está excluído por essência do vivido, ele pertence à natureza real (reale) e não se encontra
no encadeamento do vivido. O vivido, assim, só pode alcançá-lo instalando-se em pontos de vista
parciais que deixam sempre uma multiplicidade de lados do objeto a repousar nas sombras enquanto
dirigem o olhar para o lado atual. A mesa, por exemplo, ocupa uma posição no espaço, junto à
mobília da casa. Para reparar em todos os detalhes dela, somos obrigados a percorrê-la com o olhar,
sempre mudando os pontos de vista possíveis. Assim, damos a volta em torno da mesa, vemos os
diferentes lados dela que interpelam a atenção atual, o lado de baixo, de cima, o direito, o esquerdo,
etc. Sob determinada perspectiva, a superfície da mesa aparece no formato de uma elipse; quando a
olhamos do alto, porém, constatamos que seu formato, na verdade, é circular. Só podemos enxergar
a mesa nos colocando em determinado ponto de vista. Husserl observa que a mesa aparece sempre
por esboços, por perfis sucessivos de aparecimento. Está claro, porém, que nenhum esboço em
particular mostra a mesa por inteiro. Ela é simplesmente pressuposta em cada uma das aparições.
Como vimos, Husserl usa o termo “Abschattung” para se referir ao modo de
aparecimento por esboços. O que chamamos de “mesa”, afinal, não passa da síntese de uma
infinidade de aspectos que o olhar apreende, embora esteja excluída a possibilidade de todas as
95 BRENTANO, Franz. Die Lehre vom richtigen Urteil (1874–1895). Bern: ed. Franziska MayerHillebrand, 1956, pp.
111-112. “Grade der Evidenz, wie dies zuweilen angenommen wird, kann es nicht geben, denn wenn ein Urteil in sich
als richtig charakterisiert ist, kann es dies nicht mehr oder weniger sein. Bloß das ist richtig, daß es Gefahren der
Täuschung gibt, und daß diese im einen Fall größer sind als im anderen. So erklären sich die Redeweisen:
einleuchtender, im höchsten Grade einleuchtend u. dgl”.
silhuetas possíveis aparecerem de uma só vez. Nas Abschattungen, a visão do objeto é lacunar, ela
se atualiza no tempo sem nunca chegar a se completar por inteiro. Assim, o objeto não cessa de
reaparecer “diferente” dependendo do ponto de vista que tomamos sobre ele. É a consciência, por
sua vez, que efetua a ligação sintética entre as aparições concordantes, e o conhecimento do objeto
como uma totalidade unificada depende da atividade da consciência exercida sobre ele. Assim, o
mundo só pode ter uma evidência presuntiva, por causa da forma unilateral pela qual e como ele
aparece.
Essa imperfeição da evidência tende a diminuir em e pela realização de cadeias
originárias de atos que conduzem, por passagens sintéticas, de evidência a
evidência. Mas nenhuma síntese concebível pode atingir a adequação completa e
acabada, e sempre ela se acompanha de pré-intenções e de co-intenções não-
preenchidas. No entanto, a experiência externa (…) é por essência a única instância
de verificação confirmadora, na medida, evidentemente, em que a experiência –
que decorre passiva ou ativamente – possui a forma de uma síntese de
concordância96.
Quais são então todas as diferenças de gradação da evidência? Diz Heffernan que das
estruturas heurísticas dos pares “vazio” e “cheio”, “presente” e “ausente”, a descrição
fenomenológica extrai as seguintes distinções fundamentais da evidência:
1. Absolute evidence versus relative evidence. 2. Adequate evidence versus
inadequate evidence. 3. Apodictic evidence versus dubitable evidence. 4. Authentic
evidence versus inauthentic evidence. 5. Determinate evidence versus
indeterminate evidence. 6. Final evidence versus provisional evidence. 7. Genuine
evidence versus deceptive evidence. 8. Immediate evidence versus mediated
evidence. 9. Perfect evidence versus imperfect evidence. 10. Presuppositionless
evidence versus contingent evidence. (HEFFERNAN, 1997, p. 132).
Introdução
Uma primeira parte será dedicada a apresentar as meditações de Descartes e sua ideia
de uma Prima Philosophia.
Uma segunda parte será dedicada a considerar a crítica de Husserl ao caráter circular
da evidência cartesiana, baseada no estudo de Heffernan: “An Essay in Epistemic Kuklophobia:
Husserl’s Critique of Descartes’ Conception of Evidence”. Aqui a relação entre Husserl e Descartes
será considerada do ponto de vista estrito da crítica de Husserl da noção cartesiana de evidência.
Para Heffernan, o que Husserl diz sobre Descartes decorre principalmente do que ele diz sobre a
noção de Descartes sobre a evidência.
Uma terceira parte será dedicada a considerar as diferenças entre Husserl e Descartes
baseada na proposta de que em Husserl há um primado do Princípio de Identidade na caracterização
da evidência, ao passo que em Descartes há um primado do Princípio de Distinção, conforme uma
leitura de Brentano dos conceitos cartesianos de clareza e distinção.
Uma quarta parte será dedicada a considerar a relação geral entre Husserl e
Descartes, baseada em estudos recentes de Jean-Luc Marion “En quel sens la phénoménologie peut-
elle ou non se réclamer de Descartes?” e Renaud Barbaras “Qu’est-ce qu’une chose qui pense?”, de
modo a determinar o alcance, o sentido e a consistência do “cartesianismo” e do
“anticartesianismo” na fenomenologia husserliana.
Na segunda das meditações, Descartes relata como a mente, no uso de sua própria
liberdade, decide levar a cabo a operação proposta de estender o alcance da dúvida até onde for
possível, na esperança de deparar com algum limite, isto é, algo que seja, por si mesmo, indubitável,
capar de barrar o caminho da dúvida. A mente se encarrega, portanto, de remover todas as coisas
que admitem, o mínimo que seja, algum motivo de suspeição. Para isso, sua investigação deve
prosseguir até onde suceda a ela conhecer algo certo, ou então, caso isso não seja possível, tornar
evidente pelo menos que a única certeza é a de que nada há que seja perfeitamente certo.
Assim, os modos da coisa sensível: a extensão, a figura, o movimento, o corpo, o
lugar, caem sob o crivo da dúvida, podendo ser simples fantasia. Descartes não permite que seja
feita nem mesmo a suposição de que há um Deus, já que o que supomos ser o criador, na verdade,
pode revelar-se, no final, ser apenas criatura, ou seja, Deus pode ser um simples produto criado pela
imaginação, a qual é capaz de misturar formas, membros e cores tirados da sensação, tal como
ocorre na pintura.
Descartes assume o discurso em primeira pessoa: se existe a possibilidade de que eu
mesmo seja o autor de tudo que creio existir, como simples ficção, não se torna então manifesto que
eu, pelo menos, que assim o imagino, não devo existir deveras? Por que, depois de compilar todas
as coisas que podem ser postas em dúvida, não é verdade que resta, ao menos, eu, que duvido? Não
estou, por isso mesmo, isento de toda possibilidade de não existir? Porque a existência é a primeira
condição, única e indispensável, para se estar em erro. E mesmo que exista um gênio maligno, e que
ele me engane, isso não exclui o fato de que devo existir, primeiro, para que ele depois me induza
em erro. Posso, na verdade, não estar unido a corpo algum, todos os meus sentidos podem ser um
mero sonho. Nada disso basta para fazer com que eu, que penso, seja capaz de duvidar que exista,
porque, para pensar-me como não existindo, a primeira condição é justamente que eu exista. Para
Descartes, portanto, o eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeiro toda vez que proferido ou
concebido pela mente.
Mas se essa série de meditações, por um lado, resolve o problema do ponto
arquimediano – sobre o primeiro dado firme, evidente e indubitável – por outro lado, ela não ajuda
em nada a decidir que tipo de coisa é esta, que pensa, e que não pode duvidar de si quando pensa. O
primeiro impulso que temos, em relação a essa pergunta, é responder com base na tradição: eu sou
um animal racional. Descartes, no entanto, rejeita logo esta solução, já que ela, na sua opinião, em
lugar de resolver, acaba duplicando o problema. Porque, com efeito, surge logo em seguida a
dificuldade de definir o que seja homem e o que seja animal, e a questão, por esse caminho, ver-se-
ia embaraçada em duas complicações ao invés de uma.
Parece, no entanto, que a solução esteve clara desde o início, pois, se é mister admitir
que eu penso, para duvidar, e que existo necessariamente, ao pensar, fica manifesto que a única
propriedade que não pode ser separada de mim, sem que eu deixe de existir, é o próprio
pensamento. O resto: braços, pernas, mãos, cabeça, podem ser mera ilusão sem que isso
comprometa em nada o fato de que existo, deveras. Além disso, parece que as coisas que dissemos,
antes, pertencerem à natureza do corpo (terminar em alguma figura, ser extenso e ocupar um lugar
que lhe é próprio, com exclusão de outros corpos), não podem ser atribuídas à natureza da mente,
porque todo corpo é percebido pelos sentidos, e pode haver de fato um gênio maligno empenhado
em enganar estes últimos. Por conseguinte, será prudente não afirmar por enquanto a existência de
coisas corporais.
Com o pensamento, as coisas se passam de outra maneira. Com efeito, somente o
pensamento não pode ser separado daquilo que sou. Descartes reserva então o título de coisa
pensante (res cogitans) para designar esse ente singular, que existe enquanto pensa. Parece, pois,
que tudo o que foi suposto até agora como não existindo, por obra de um gênio enganador, admite
ser pensado assim por diferença da coisa pensante, cuja possibilidade de não existir está, em
absoluto, fora de cogitação. Acontece, com efeito, que a mente possui modos que não podem ser
separados dela (como, por exemplo, entender, afirmar, negar, duvidar, querer, desejar, sentir), ao
passo que os modos da coisa corporal (cor, som, frieza, impenetrabilidade, etc.) podem ser
separados dela por um ato de imaginação.
Descartes declara, portanto, que para que a mente consiga apreender
apropriadamente sua natureza, sem ser desviada, é preciso preveni-la para que se mantenha afastada
da imaginação, que só se aplica aos sentidos, os quais podem não ser senão um sonho. Mas importa
reter ainda, com relação à imaginação, que mesmo que se trate de uma faculdade enganadora, na
medida em que se aplica aos sentidos, nem por isso é menos certo que o eu, que dela faz uso, exista
necessariamente, embora toda coisa a mais por ele imaginada seja falsa. A própria força de
imaginar, que reside no eu, não está sujeita a ser simples ilusão, mesmo que as demais coisas, por
ela imaginadas, sejam-no inteiramente.
De onde extrai-se a conclusão de que todas as aparências podem ser falsas, já que
existe a possibilidade de que eu esteja dormindo. No entanto, parece-me de tal modo que vejo, que
ouço, que sinto, que isso não pode ser posto em dúvida. Ainda que imagine e sinta ficções, o ato de
imaginar e sentir é indubitavelmente real. Para Descartes, sentir, ouvir, ver, considerados
apropriadamente, nada mais são do que pensar.
Causa admiração, no entanto, que as coisas que são tocadas, vistas, ouvidas, possuam
menos clareza e distinção do que eu mesmo, quando penso nelas. Tomemos, então, como exemplo,
um pedaço de cera: parece não haver nada nela que não seja manifesto, de imediato, à mente. Sua
dureza, sua cor, sua temperatura, o ruído que ela faz ao ser golpeada com a mão, etc. Contudo, ao
aproximar a cera do fogo, tudo que de evidente havia nela, do ponto de vista dos sentidos, se desfaz,
não sobrando senão uma massa desfigurada em nada semelhante à cera. Não obstante, ninguém
nega que se trata do mesmo pedaço de cera de antes.
Fica claro, assim, que aquilo que constitui a cera, fazendo-a ser concebida como tal
pelo entendimento, não se reduz à doçura, nem à fragrância, nem à dureza, nem nada que seja
referente aos sentidos. O que resta da cera, depois que removemos as qualidades sensíveis, é
unicamente a extensão. Contudo, a percepção da cera, enquanto extensão, não é um ato deixado a
cargo da visão, nem do tato, nem da imaginação, nem de nenhum dos órgãos sensoriais. Trata-se –
como diz Descartes – de uma inspeção só da mente.
O que foi descrito, no caso da cera, vale igualmente para os transeuntes que passam
em frente à minha janela: julgo, num primeiro momento, distinguir homens. Depois de uma breve
consideração, porém, percebo que nada vejo na rua senão chapéus e trajes, e que nada na visão me
certifica de que, por trás deles, haja homens efetivamente, e não autômatos. O que os olhos puderam
captar não basta para certificar-me da existência de homens, ser-me-á então preciso, para assim o
concluir, de uma faculdade de julgar que só reside na mente.
Além disso, isso que acaba de ser observado pode ser aplicado a todas as coisas que
se apresentam fora de mim. Pode-se perfeitamente admitir que nada disso que atribuo ao mundo
exterior exista realmente. Pode ser que eu não tenha sequer os olhos com que julgo ver alguma
coisa. Mas que eu pense ver, que eu veja-me vendo: sobre isso, não há discussão. É impossível que
o eu não seja alguma coisa, na medida em que o pensamento se vê habitado por ele.
Por conseguinte, Descartes pode passar para a próxima meditação, depois de
adquirir, como dado inquestionável, a noção de que os corpos deixam-se perceber não propriamente
pelos sentidos ou pela faculdade de imaginar, por sua vez, mas tão somente pelo intelecto. E
justamente porque os corpos não são percebidos por serem tocados ou vistos, mas unicamente
porque entendidos, conheço de modo manifesto que nada pode ser por mim percebido mais
facilmente e mais evidentemente do que minha própria mente.
Na terceira das meditações, Descartes estabelece a regra geral de que tudo aquilo que
é percebido muito clara e distintamente é verdadeiro (illud omne esse verum, quod ualde clare et
distincte percipio) e introduz o argumento que lhe parece o principal dentre os argumentos que
depõem a favor da existência de Deus; a saber, “que a ideia que reside em nós de um ente
sumamente perfeito possui tanta realidade objetiva que não pode ser senão a partir de uma causa
sumamente perfeita” (idea entis summe perfecti, quæ in nobis est, tantum habeat realitatis
objectivæ, ut non possit non esse a causa summe perfecta).
Sensações e imaginações, como vimos, constituem certos modos de pensar, e só são
dados como certos, enquanto tais, na medida em que estão na mente. O requisito para se estar certo
de alguma coisa é uma percepção clara e distinta. Nada do que for por mim percebido clara e
distintamente pode ser falso, antes, é preciso admitir que a clareza e a distinção são critérios seguros
para se obter a verdade a respeito de algo. Se antes dei por verdadeiras as percepções dos sentidos,
julgando-as claras e distintas – isso se deve a um hábito de crer que adquiri. No entanto, ocorre
agora de me vir à mente que um Deus poderia, muito bem, ter me dotado de uma natureza tal que
não pudesse deixar de me enganar, mesmo em relação às coisas mais óbvias e manifestas.
Do que chega a ocasião de examinar dois pontos fundamentais: (a) se existe, de fato,
um Deus; (b) se, havendo Deus, ele pode ou não ser enganador. A ordem que Descartes se propôs
seguir nas Meditações é a de começar pelas noções mais básicas, encontradas na mente, para depois
passar a outras, decorrentes por necessidade das primeiras. Seguindo essa ordem, o filósofo distribui
seus pensamentos por gêneros, distinguindo-os pelo critério da verdade e da falsidade. Os
pensamentos que parecem constituir imagens das coisas são denominados ideias: o pensamento de
um homem, de uma quimera, do céu, de um anjo, etc. Os pensamentos, por sua vez, que assumem o
modo do querer, do negar, do desejar, etc., sempre por referência a algum sujeito (subjectum), são
chamados de vontade, afeto, juízo, etc., e constituem certos modos de pensar.
Descartes salienta, a respeito das ideias, que quando são consideradas em si mesmas,
sem referência às coisas, não podem ser chamadas propriamente de falsas. A falsidade, além disso,
sequer pode ser atribuída à vontade, pois o querer é sempre verdadeiro, mesmo que seja o querer de
algo que não existe. Só o juízo, portanto, é suscetível de comportar falsidade, quando reporta a ideia
a algo de externo a ela, postulando haver entre ambos uma semelhança ou conformidade. Se me
limito a considerar as ideias apenas como certos modos do pensamento, sem reportá-las a outra
coisa, elas só poderão, no máximo, dar ensejo a alguma matéria de erro.
As ideias podem ser divididas em: (a) inatas; (b) adventícias; (c) criadas pela
imaginação. Algumas ideias, com efeito, não parecem ter sido produzidas por mim, e sim obtidas de
certas coisas situadas fora de mim. Outras, no entanto, não parecem ter sido obtidas de outro lugar a
não ser do próprio pensamento, conforme sua natureza. Parece, de algum modo, que minha razão
foi instruída pela natureza a estimar as ideias obtidas de fora como semelhantes às coisas que elas
representam. Um dos motivos para essa crença é que tudo indica que tais ideias não dependem, em
absoluto, de nossa vontade para serem como são. Descartes, quando menciona acima que foi
instruído pela natureza, está a dizer que foi levado a acreditar naquelas coisas por um impulso
espontâneo, e não por uma luz natural – que é aquela que me mostra que, ao duvidar, é necessário
que eu seja. Os impulsos naturais, por sua vez, não são tão dignos de confiança, a julgar pela
experiência tida com eles no passado.
Apesar de estabelecer que algumas ideias são adventícias, provenientes de fora,
Descartes observa que não se trata de uma origem necessária, pois nada impede que haja, assim
como acontece com os impulsos espontâneos, alguma faculdade totalmente desconhecida que,
atuando em sigilo dentro de nós, produza as ideias que costumamos referir às coisas externas.
Descartes faz notar, porém, que mesmo que as ideias adventícias procedam de algo externo à mente,
isso não significa, necessariamente, que elas sejam semelhantes às coisas. Parece, pelo contrário,
que o mais das vezes há discrepância entre o objeto e sua ideia, como, por exemplo, na que há entre
a ideia do sol, recebida pelos sentidos, e a ideia do sol adquirida por noções astronômicas. Enquanto
que, na primeira, o sol se apresenta muito pequeno, na outra a mente entende que ele é diversas
vezes maior do que a Terra. A ideia, pois, que parece emanar mais diretamente do sol é a que, na
verdade, menos se lhe assemelha.
Enquanto que as ideias são apenas modos de pensar, não há entre elas nenhuma
diferença. Mas assim que elas passam a referir-se a algo, então há diferença, visto que uma ideia
está a representar uma coisa, outra, outra coisa. Mas, na medida em que as ideias representam
substâncias, elas contêm mais realidade objetiva do que aquelas que só representam modos ou
acidentes, “ou seja, elas participam por representação de mais graus de ser ou de perfeição” (c’est-
à-dire participe par représentation à tant de degrés d’être et de perfection). Daí, sem dúvida que a
ideia referente a Deus, que é infinito, possui mais realidade objetiva do que qualquer ideia reportada
a alguma substância finita.
Logo, a ideia que reside em nós, de um ente sumamente perfeito, não pode ter sido
extraída dos sentidos, nem mesmo ter sido produzida pela mente, pois contém mais realidade
objetiva (plus realitatis objectivæ in se continent) do que a mente é capaz de produzir, ela “participa
por representação de tantos graus de ser e de perfeição” que sua causa deve possuir, na mesma
medida, tanta perfeição quanto há na coisa produzida. Quando fazemos a comparação entre a ideia
de Deus e a ideia de uma máquina perfeita que fora, de começo, concebida pela mente de algum
artífice, obtemos com isso ilustrar que a ideia de Deus, ao residir em nós, tem tanta perfeição que
não pode ter senão Deus ele mesmo como sua causa.
Descartes observa que, do ponto de vista da luz natural, é manifesto que deve haver
na causa eficiente e total tantos graus e ordem de perfeição, pelo menos, quanto existe em seu
efeito, visto que o efeito só recebe sua realidade da causa. O mesmo grau de ser, portanto, que há no
efeito, deve ter existido na causa. Resulta evidente também que nenhum efeito pode ter recebido sua
realidade do nada, muito menos a ideia de perfeição pode ter recebido sua realidade de algo menos
perfeito que ela própria. Isso é válido tanto para a realidade atual e formal (a ideia como modo do
pensamento ou como evento mental), quanto para a realidade objetiva (a ideia que representa
alguma coisa).
Descartes recorre, para ilustrá-lo, ao exemplo da pedra, que não existia num ponto
qualquer do tempo e que depois começou a existir devido a alguma causa, que para produzi-la
possuía formal e eminentemente tudo o que agora está presente nela. Do mesmo modo, o sujeito
que antes era frio e passou a ser quente só pode ter recebido o calor de uma causa que comportava
em si a mesma ordem, grau ou gênero de perfeição do efeito. Assim, a ideia de pedra ou a de calor,
estando na mente, deve ter sido posta lá por uma causa cuja realidade em nada difira da realidade
que a mente concebe haver agora na ideia. Seja, neste último caso, uma ideia inata, adventícia ou
inventada. A causa, porém, não transmite à ideia nada de sua realidade atual ou formal. Isso porque
as ideias, quando tomadas em si mesmas, são apenas modos de pensar, sem representação. Mas na
medida em que as ideias representam alguma coisa, deve ter havido, para isso, uma causa formal ou
atual.
Acrescenta Descartes que toda ideia é uma obra da mente. Portanto, que a ideia tenha
realidade formal, segue-se que só pode tê-la recebido da própria mente, na qual as ideias são modos
ou feitios do pensamento. Mas que a ideia tenha esta ou aquela realidade objetiva, diferente de
outras, deve-o ela certamente a outra causa, e esta última comporta, no mínimo, tanta realidade
formal quanto a ideia contém de realidade objetiva. É absurdo então supor que a ideia contenha algo
que a causa não contenha, na mesma proporção, porque assim a ideia teria obtido sua realidade
objetiva do nada. E embora a ideia, presente no intelecto, seja imperfeita, seguramente que ela não é
um nada nem pode ter recebido sua realidade do nada.
Resulta, então, que, pelo menos com relação às causas primeiras e principais, deve
ser dito que lhes pertence por natureza o modo de ser formal. É possível admitir que uma ideia atue
na geração de outra, no entanto, isso não progride infinitamente, devendo parar, afinal, em uma
primeira ideia. A causa desta ideia, por sua vez, surge como uma espécie de arquétipo que contém
“formal e efetivamente toda realidade e perfeição que na ideia está contida apenas objetivamente ou
por representação” (archetypi, in quo omnis realitas formaliter et en effet contineatur, quæ est in
idea tantum objective). As ideias, na medida em que aparecem sob o modo de imagens, podem ser
um tanto indigentes ou deficitárias em relação à perfeição das coisas de que foram tiradas. Por outro
lado, elas nunca contêm algo maior ou mais perfeito do que essas coisas.
Uma de minhas ideias, por conseguinte, possui tanta realidade objetiva que sou
obrigado a concluir que a causa dela não pode estar em mim, nem formal nem eminentemente. De
onde se segue, com absoluta necessidade, o fato de que não estou só no mundo, pois a causa dessa
última ideia também existe. Convenço-me então, a partir desses argumentos, que nada há nas ideias
que representam coisas corporais, anjos, animais, homens, que não possa ter sido produzido por
mim mesmo, uma vez que as coisas que percebo nelas clara e distintamente reduzem-se à extensão
em comprimento, largura e profundidade, figura, movimento, substância, duração e número, ao
passo que as qualidades sensíveis são percebidas muito confusamente. E o fato de a falsidade só
encontrar-se nos juízos não exclui, absolutamente, que haja também nas ideias uma espécie de
falsidade material, quando elas representam um não-ser como se fosse ser, tal o caso do frio, que
não sabemos ao certo se se trata de um ser independente ou se é mera privação de calor.
Desse ponto de vista, nada exclui a possibilidade de que o autor dessas últimas ideias
seja eu mesmo. Sua percepção confusa, assim, seria proveniente de alguma deficiência em minha
própria natureza. Quanto ao que é claro e distinto nas coisas corporais, isso seria tomado de
empréstimo da ideia que tenho de mim mesmo, enquanto substância, duração, número, etc. Pois
parece que as coisas extensas e as coisas corporais, embora diferentes, são concordantes no que diz
respeito à substância. Mas Descartes faz aqui uma ressalva, dizendo que extensão, figura, situação e
movimento, não estão na mente formalmente, uma vez que ela é coisa pensante. Mas, na medida em
que os modos acima pertencem à substância, como trajes que lhe revestem, podem assim estar
contidos na mente eminentemente, já que ela é também uma substância.
Resta, então, a ideia de Deus, como a única suscetível de conter algo que deve ser
considerado como não proveniente de mim. Descartes usa para aludir a esse “algo” atributos tais
como os da infinitude, da independência, eternidade, imutabilidade, sumo poder e inteligência. Tais
atributos, com efeito, não parecem provir da mente, que é uma substância finita. De onde cabe
observar que a ideia de infinito não deve ter sido adquirida por simples negação do finito, uma vez
ser manifesto ao entendimento que há mais realidade na substância infinita do que em qualquer uma
das finitas. A ideia de Deus, inclusive, é anterior à ideia que possuo de mim mesmo, o que fica claro
quando me dou conta de que duvido, de que desejo, sendo assim indigente de algo, e só posso saber,
na verdade, que sou indigente de algo por comparação com a ideia de algo perfeito, completo, em
relação à qual apareço com todos os meus defeitos.
A ideia de Deus, sendo clara e distinta ao máximo: a) contém mais realidade objetiva
do que todas as outras; b) é real e verdadeira, na medida em que tudo que é claro e distinto o é; c)
pelo fato de não poder ser compreendida, nem por isso é menos perfeita, pois decorre precisamente
de minha natureza, que é finita, não ser capaz de compreender o infinito. Todavia, cabe levar
também em consideração a possibilidade de que todas as perfeições que atribuo a Deus, na verdade,
não residem nele, mas estejam como que em potência dentro de mim mesmo, ou seja, ainda não
apareceram nem se manifestaram em ato.
Essa suposição tem como base o fato de que o conhecimento aumenta
gradativamente, sem nada que possa impedi-lo de continuar a crescer infinitamente. O mesmo se dá
com as restantes perfeições. Isso tudo, porém, é desmentido por três razões: a) na ideia de Deus
tudo é atual e efetivo, nada nela está em potência; b) o fato de aumentar paulatinamente, por sua
vez, já constitui um sinal de imperfeição incompatível com a ideia de Deus; c) e embora o
conhecimento em mim tenda a crescer ao infinito, ele é incapaz de chegar a um ponto que não
permita um incremento ainda maior.
Fica mais claro agora que somente um ser atual e formal pode produzir a realidade
objetiva contida na ideia. Ao dedicar a essa questão a devida atenção, tornam-se manifestas à luz
natural muitas coisas, como o fato de que eu não poderia ter recebido o ser de mim mesmo, pois, se
assim fosse, eu, que tenho a ideia de perfeição, ter-me-ia produzido em conformidade com essa
ideia, em suma, teria me concedido as mesmas perfeições que entendo estarem em Deus.
Ora, o que falta em mim não parece ser mais difícil de obter do que aquilo que já
possuo. Mas, supondo agora que eu fosse um nada, ser-me-ia muito mais difícil obter por mim
mesmo o ser, emergindo desse nada, do que adquirir o conhecimento do infinito número de coisas
que até o momento ignoro. Assim, se eu fosse capaz de efetuar a primeira tarefa, que é mais difícil,
naturalmente que me seria fácil então realizar a segunda, adquirindo todos os conhecimentos de que
careço. Mas, como não sou capaz de obtê-los, fica manifesto que eu, muito menos ainda, devo ser o
autor de minha existência, nem emergi por mim mesmo do nada; pelo contrário, devo ter,
certamente, recebido o ser de algo mais perfeito do que sou capaz de sê-lo.
Além disso, fica esclarecido também, por essas mesmas razões, que eu não poderia
existir, de instante a instante, sem que estivesse atuando uma causa capaz de conservar o meu ser,
impedindo que ele desapareça em algum ponto do tempo. E cada nova criação continuada desse
tempo, dividido em instantes sucessivos, decerto que exige a mesma força que fora empregada na
criação do primeiro instante. Para a luz natural, é manifesto que “a conservação só difere da criação
por razão” (conservatione sola ratione a creatione differe). Se eu, com efeito, fosse o autor dessa
força de conservação, que permite que um instante suceda ao outro sem que seja aniquilado, decerto
que estaria consciente dela. De onde se segue que a força não está em mim, mas no ser de que sou
dependente.
Meus pais, por outro lado, não podem ser meus autores, na medida em que sou coisa
pensante, mas somente com relação ao corpo. Pois é preciso que exista na causa tanta realidade
quanto há no efeito, e assim a ideia de Deus, que contém infinitas perfeições, só pode tê-las
recebido de uma causa portadora também de infinitas perfeições. Com a adição de que ela possui
em ato todas as perfeições concebíveis, tais como unidade, simplicidade, inseparabilidade.
Assim fica demonstrado que o fato de que só há na mente a ideia de um ente
perfeitíssimo porque Deus existe, de modo a tê-la depositado ali, tal qual a marca do artífice
impressa em sua obra. Com a inclusão de que a marca não difere da própria obra. Trata-se de uma
ideia, portanto, inata, que toda vez que surge na mente informa-a do fato de que ela é imperfeita,
incompleta, mas que aspira a adquirir maiores perfeições indefinidamente. Perfeições que existem
em Deus real e infinitamente, ao passo que na mente só podem sê-lo em potência. Porque a mente
não pode compreender tais perfeições, isso não a desmerece, uma vez que ela pode atingi-las, de
algum modo, pelo pensamento, dando-se conta de que é impossível que a ideia de Deus esteja nela
sem que Deus exista, de fato, como sua causa. Fica claro também que Deus, que é perfeito, não
pode ser enganador, já que isso levaria a constatar no ente perfeitíssimo uma imperfeição
incompatível com sua natureza.
Na quarta das meditações, diz Descartes que a ação de querer, ou de duvidar, anuncia
aos meus próprios olhos o fato de que sou um ente incompleto, dependente, em relação a Deus que
é independente e completo. Isso se apresenta de maneira clara e distinta, tendo como consequência
ainda que é impossível que Deus esteja a me enganar, uma vez que sua perfeição exclui qualquer
necessidade de recurso à falácia e ao engano. Querer enganar é um sinal de fraqueza e imperfeição,
não podendo ocorrer em Deus.
Dentre as coisas que existem em mim, Deus me há concedido uma faculdade de
julgar que, se usada adequadamente, não pode incidir em erro. No entanto, parece que em muitos
casos ela pode, não obstante, ser induzida a muitos tipos de engano. Percebo que a ideia do nada,
que inclui a imperfeição em grau máximo, reside em mim do mesmo modo que a ideia de perfeição.
De onde cumpre examinar como a imperfeição do juízo pode conciliar-se com a ideia de Deus, já
que, supostamente, um ente perfeitíssimo só deveria criar coisas concordantes com a sua natureza.
As coisas se esclarecem um pouco quando, ao adotar outro ponto de vista, penso que
eu sou, justamente, algo que existe a meio caminho entre Deus e o nada, cujas respectivas ideias
encontram-se em minha mente. Não é de admirar, assim, que eu esteja sujeito ao erro, uma vez que
para acertar sempre teria de satisfazer a condição de que eu próprio fosse Deus. Só erro, portanto,
na medida em que não sou o ente supremo. E que a faculdade de julgar que me foi transmitida por
Ele não é infinita, mas defeituosa. Descartes, porém, não se dá ainda por satisfeito com essa
solução, pois, a seu ver, existe uma distinção entre negação e privação, sendo o erro não uma falta
em relação à perfeição – que não me compete ambicionar –, e sim uma privação em relação ao
conhecimento que deveria existir em mim, e que não foi ainda alcançado. O erro possui, portanto,
um caráter positivo, e não negativo. A natureza de Deus é tal que não parece, em absoluto, que Ele
me tenha dotado de uma tendência à perfeição que lhe não fosse devida.
Mas Descartes julga como boas razões para abandonar essa suposição as que
mostram ser natural que Deus faça coisas que não compete à mente entender, assim como não é
dado a ela penetrar sem temeridade nas finalidades divinas. A perfeição que consta nas obras de
Deus é apreendida não percorrendo as coisas uma por uma, separadamente, mas por uma visão do
conjunto. Que, considerada como parte de um todo, qualquer coisa individual merece o título de
perfeitíssima, tendo sua razão de ser.
Os motivos que me levam a errar decorrem, na verdade, da relação que há entre a
faculdade de conhecer e a faculdade de escolher ou liberdade; ou, em outras palavras, da relação
entre o intelecto e a vontade. A sujeição ao erro deve-se à interpenetração das duas faculdades, pois,
tomado em si mesmo, o intelecto não erra, na medida em que não emite juízo sobre coisa alguma,
limitando-se a perceber as ideias. Contudo, a respeito da vontade, emerge o fato de que ela é
experimentada de modo tão indeterminado e extenso que não há limites a contê-la. Por essa razão,
parece que tudo que há em mim não é o bastante para satisfazer tal vontade, a qual me leva a
considerar que nada há de tão perfeito e tão amplo que não possa ser conduzido a um grau ainda
maior de perfeição e amplitude.
Desse modo, percebe-se logo que a faculdade de entender não consegue acompanhar
a vontade, que é ilimitada. É justamente em virtude da experiência que tenho dessa vontade que
posso entender que há em mim alguma imagem e semelhança com Deus. A liberdade da vontade,
para Descartes, consiste no poder de fazer ou de não fazer algo, buscar ou fugir de algo sem que a
isso a mente se veja determinada por outra coisa senão por ela própria. Não consiste, porém, em
uma indiferença que pode pender tanto para um lado quanto para outro. É justamente o contrário,
pois na decisão com relação aos possíveis entra a capacidade de entender o verdadeiro e o bom.
Assim, quanto maior a capacidade de discernir o bem, mais livremente o escolho.
Resulta então que a indiferença, que não se inclina nem para um lado nem para outro,
é o mesmo que uma deficiência na capacidade de conhecimento, que não pode distinguir entre o
bem e o mal. Mas se essa distinção fosse sempre evidente, a própria deliberação poderia ser
dispensada. Uma grande luz no intelecto, afinal, tem como consequência uma imensa propensão na
vontade, inclinando-a a não ser indiferente, a assentir e a escolher a verdade que ali se manifesta.
Os argumentos levantados levam, assim, à conclusão de que nem a força de querer
nem a de entender constituem a causa dos erros. A força de querer não é causa, pois é amplíssima e,
como tal, perfeita. A força de entender não o é também, pois o que é entendido só pode sê-lo
corretamente. Se não o fosse, não seria entendimento, e sim outra coisa.
Resta, então, para ser apresentado como causa dos erros o fato de que a vontade, ao
revelar-se mais abrangente do que o intelecto, não é circunscrita dentro dos mesmos limites do
intelecto, estendendo-o também a outras coisas que não competem à sua natureza entender. A
vontade produz então o erro, na medida em que são-lhe indiferentes as coisas que pertencem ou não
ao domínio do conhecimento possível, mas mesmo assim ela exige do intelecto buscá-las a todas.
Por outro lado, o intelecto, se quiser agir retamente e evitar o erro, deve abster-se de
julgar com relação às coisas que não são por ele compreendidas suficientemente, com clareza e
distinção. Para Descartes, deve haver sempre uma precedência da percepção do intelecto em relação
à determinação da vontade, mas se nenhuma razão surgir que persuada aquele a escolher entre uma
coisa e outra, o melhor é suspender o juízo. O mesmo vale para as conjeturas prováveis, pois só por
saber que são apenas prováveis já é o suficiente para conter o intelecto, não levando-o a emitir
juízos precipitados, sendo melhor esperar pela obtenção de razões mais certas e indubitáveis.
Nisto precisamente é que reside a privação – no uso não-reto do livre-arbítrio –, que
constitui a causa do erro. Ela não é proveniente de Deus, e sim da própria operação de julgar,
quando o intelecto, movido pela influência da vontade, estende-se a mais coisas do que as que são
pertencentes à sua capacidade de conhecer. Essa privação, portanto, não se dá com o concurso de
Deus. Logo, não devo ter nenhum motivo de queixa em relação a isso. Porque o intelecto conhece o
que é de sua natureza conhecer, e se a vontade quer empurrá-lo a mais coisas, não sucede que isso
deva ser recriminado nela, porque nada do que a constitui pode ser-lhe retirado sem que ela deixe de
ser o que é, e é melhor que ela seja assim do que não ser nada. O poder de produzir esses atos
significa em mim maior perfeição do que achar-me incapaz de produzi-los.
A perfeição ou a imperfeição deve me ser atribuída menos pelo fato de errar do que
pelo fato de fazer um mau uso da liberdade. Porque, de todo modo, sou livre para suspender o juízo
até que tenha clareza suficiente na questão. Julgar precipitadamente sendo uma pura temeridade. E,
assim, se não posso impedir-me do erro através da perfeição, posso-o por outro lado através da
liberdade de abstenção, bastando para isso que fixe essa regra a fim de não esquecê-la toda vez que
a verdade não for imediatamente manifesta.
Assim, servirá para mim de critério e de regra que, toda vez que julgar, devo
lembrar-me de conter a vontade dentro dos mesmos limites do conhecimento, de modo que ela só se
estenda às coisas que o intelecto mostre clara e distintamente, sem tentar ultrapassá-las. Assim, será
de todo impossível que eu erre, posto que toda percepção, se for clara e distinta, constitui sem
sombra de dúvida algo de real e positivo. E, pelas mesmas razões, tudo que é claro e distinto, no
sentido real e positivo, não pode ter surgido do nada, antes, pelo contrário, deve ter necessariamente
como seu autor um ente sumamente perfeito, a quem repugna em absoluto ser enganador, e que só
pode ser Deus.
Na sexta das seis meditações, Descartes se ocupa do que resta para tratar: (a) da
distinção que existe entre intelecção e imaginação, a partir dos sinais distintivos de cada uma; (b) da
prova alusiva ao modo como a mente se distingue completamente do corpo, enquanto coisa
pensante; (c) sobre como, não obstante a distinção, a mente encontra-se tão estreitamente unida ao
corpo que parece compor com ele uma única coisa; (d) sobre as razões que podem ser levantadas
para concluir a favor da existência das coisas materiais; razões que precisam ser esclarecidas, uma
vez que o fato de haver um mundo, homens, corpos, não é tão claro e distinto quanto o
conhecimento relativo à mente e à Deus.
O primeiro a ser considerado, então, por Descartes, é a distinção que existe entre
intelecção e imaginação. A imaginação parece ser, numa consideração mais atenta, uma forma de
aplicação da capacidade cognoscitiva sobre as coisas que estão intimamente presentes à mente. A
diferença que há entre imaginação e intelecção fica mais clara se examinamos a diferença que há
entre uma figura geométrica imaginada e uma inteligida. Um triângulo imaginado está
imediatamente presente ao olhar que a mente lança sobre ele. A mente imagina clara e distintamente
que o triângulo é compreendido por três linhas retas, formando três lados. No entanto, por mais que
a imaginação se esforce, ela não é capaz de tornar presente ao seu olhar uma figura de mil lados
(quiliógono). A intelecção pura, por seu turno, é capaz de entender tal figura sem recurso à
imaginação, podendo, inclusive, diferenciá-la de outros polígonos.
Descartes conclui que a imaginação consiste numa certa contenção de ânimo,
diferente da intelecção. Mas ela não é uma faculdade essencial da mente, pois mesmo que fosse
privada dela, a mente certamente continuaria a ser a mesma. De onde fica manifesto que a
imaginação é proveniente de algo diverso da mente, isto é, do corpo, ao qual a mente está
conjugada. A mente imagina, portanto, quando se aplica à inspeção das coisas corporais. O
entender, por sua vez, é independente do corpo, pois que, para entender, a mente limita-se a
inspecionar a si mesma, voltando-se para as ideias nela contidas.
Neste ínterim, chega Descartes à segunda questão que havia se colocado, sobre a
prova alusiva ao modo como a mente se distingue completamente do corpo, enquanto coisa
pensante. A imaginação confere certa probabilidade à suposição de que o corpo existe, já que ela
tira desse corpo sua força de produzir imagens. Ela percebe qualidades como cores, sabores, dor,
porque, provavelmente, extraiu-lhes dos sentidos do corpo, graças à memória. Ela parece estar
intimamente ligada ao sentir corporal. Descartes então almeja saber se isso pode constituir alguma
prova a favor da existência das coisas corporais. Ele organiza seu exame em dois procedimentos: a)
evocar as coisas que até agora reputou como verdadeiras, por as haver extraído dos sentidos; b)
expor então as causas que o fizeram duvidar da existência delas.
A sensação de prazer e dor, além de outras como fome, sede e demais apetites e
inclinações para a alegria, tristeza, provocam um sentimento muito forte de que o corpo constitui
uma parte do eu, estando com ele deveras unido. Parece que as qualidades sensíveis das coisas, por
sua vez, apresentam-se a mim de modo independente de meu consentimento. Sou inteiramente
passivo em relação a elas, não podendo deixar de recebê-las mesmo se quisesse.
Essas qualidades, além disso, por serem tão vívidas e fortes, no seu modo de estarem
presentes aos órgãos dos sentidos, dão a impressão de que são mais distintas até do que as ideias
que formo por mim mesmo, sendo assim impossível que resida em mim a sua fonte de origem. O
que deve significar que existem, deveras, corpos a partir dos quais as ideias de qualidades sensíveis
são provenientes. Essa prova é ainda reforçada pela lembrança de que usei, na minha infância, os
sentidos primeiro do que a razão, de onde fico ainda mais persuadido de que nada há no intelecto
que não houvesse existido antes nos sentidos.
E mais do que tudo, julgo pertencer-me, de fato, este corpo, com seus apetites e
afetos, corpo ao qual estou tão estreitamente unido que não posso ser dele separado, diferentemente
do que acontece com os outros corpos. E pelo fato de não haver nenhuma afinidade entre o beliscão
que sinto no estômago e a vontade de comer, à qual denomino fome, segue-se que essa relação só
pode ter sido-me ensinada pela natureza. O mesmo, aliás, deve ter acontecido com todos os outros
juízos que emito sobre as coisas sensíveis, uma vez que são juízos espontâneos que precedem
qualquer exame da razão.
Mas, na verdade, ao longo da vida cotidiana, muitas experiências de engano e ilusão
dos sentidos foram abalando, aos poucos, a confiança incondicional que depositava neles. Até
mesmo o próprio corpo pode ser colocado em dúvida, tendo-se em conta o fato que pessoas que
tiveram algum membro amputado relatam ter a impressão de ainda sentir alguma coisa ali no lugar
onde aquele membro falta. Além disso, não posso sentir nada, estando em vigília, que não o possa
sentir também no sono. Se fingir que ignoro que Deus existe, nada obsta a que me persuada de que
a natureza tenha me feito de tal modo que estou a errar sempre nos meus juízos, mesmo em relação
às coisas que parecem ser as mais certas. Os ensinamentos da natureza, no fim das contas, não
parecem ser tão dignos de confiança.
Quanto às percepções dos sentidos, por mais que elas pareçam à mente ser
independentes, nada obsta a que eu faça a suposição de que elas, na verdade, não provenham de
algo externo a mim, e sim de uma faculdade produtora que há em mim, a qual não foi até agora
conhecida. Só começo, portanto, a aceitar a existência das coisas externas depois que logrei
conhecer melhor o autor de minha existência, que não pode, decerto, visto sua bondade ser infinita,
ter-me feito para errar quanto a coisas tão importantes. Assim, para que as coisas diversas possam
ser divididas e separadas por mim de acordo com suas diferenças fundamentais, basta que me
aplique a entendê-las conforme o critério da clareza e da distinção.
Seguindo este critério, posso perceber que nada pertence mais essencialmente à
minha natureza do que o pensamento, nada há mais certo do que o fato de que sou coisa ou
substância pensante, e que minha essência consiste em pensar. Portanto, mesmo que não haja
nenhum corpo, a minha existência permanece intacta, indubitável, como coisa pensante não-
extensa. Tudo o que o corpo é, por sua vez, se esgota em ser extensão, em coisa extensa e não-
pensante, ele exclui tudo o que é pensamento, ao ser extenso, do mesmo modo que o pensamento,
ao pensar, exclui tudo o que é extenso. Daí haver uma distinção radical entre corpo e mente, como
duas substâncias absolutamente independentes e separadas.
Apesar de que há um corpo ligado a mim de modo tão estreito, a ideia de que sou
coisa pensante inextensa me persuade de que posso existir sem o corpo, uma vez que o pensar é
radicalmente outro em relação à extensão. Novo reforço a essa ideia é encontrado no fato de que
faculdades como imaginar, sentir, podem ser separadas de mim sem comprometer em nada minha
existência, ao passo que o inverso não pode ser pensado, isto é, a imaginação e o sentir não podem
existir sem a substância pensante na qual residem. Eles são modos da substância pensante assim
como os acidentes, movimento, figura, são modos da substância extensa.
Mas, neste ínterim, emerge a terceira questão proposta por Descartes: sobre como,
não obstante a distinção entre ambos, a mente encontra-se tão estreitamente unida ao corpo que
parece compor com ele uma única coisa. A faculdade passiva de sentir ou receber ideias seria inútil
se não fosse auxiliada por uma faculdade ativa, que logra produzi-las ou causá-las. Mas tal
faculdade não está em mim, enquanto sou coisa pensante, posto que tais ideias são produzidas sem
minha cooperação, ela deve estar sim numa substância diversa de mim que contém formal e
eminentemente “toda a realidade que está contida objetivamente nas ideias produzidas por essa
faculdade” (omnis realitas uel formaliter uel eminenter inesse debet, quæ est objective in ideis ab
ista facultate productis). Descartes retoma aqui o que já havia feito notar anteriormente.
Deus, como não é enganador, não coloca essas ideias imediatamente, por ele mesmo,
e nem por meio de outra criatura que as contivesse não formal, mas eminentemente. Ele deve
colocá-las, certamente, nas coisas corporais, a partir das quais elas são emitidas até minha mente.
Descartes não vê razão alguma para que não seja assim, visto ser absolutamente necessário admitir
que Deus não é enganador. As coisas corporais, portanto, existem deveras.
E a opinião de que as coisas que advêm pelos sentidos não são compreendidas senão
obscura e confusamente, com muito menos clareza que as coisas da matemática, mesmo assim não
pode me dissuadir da esperança de alcançar a verdade, já que é certo que Deus, embora tenha me
feito de tal modo que eu erre às vezes, parece ter-me provido da capacidade de emendar esses
possíveis erros, encontrando algo certo até mesmo nas coisas sensíveis.
É manifesto assim que tudo o que a natureza me ensina deve conter algo de verdade.
E nada é mais expressamente ensinado por ela de que estou unido a um corpo. E tal união entre
alma e corpo não é semelhante à do marinheiro que comanda seu navio, é uma união muito mais
estreita, de modo que a alma está como que misturada ao corpo, ao ponto de compor com ele uma
única coisa. Pois se não fosse assim, a dor, a sede, a fome, seriam percebidas por meio de uma
inspeção intelectual (como o marinheiro vendo que o barco se quebrou), e não por meio de
percepções fortes, porém confusas, como as que, de fato, temos. A confusão nessas sensações, por
seu lado, se deve à união e à mistura entre alma e corpo. Dessa união podem ser depreendidas
algumas razões que testemunham que os corpos existem.
Donde chegamos à última questão proposta por Descartes para ser resolvida nesta
meditação: sobre as razões que podem ser levantadas para concluir a favor da existência das coisas
materiais; razões que precisam ser esclarecidas, uma vez que o fato de haver um mundo, homens,
corpos, não é tão claro e distinto quanto o conhecimento relativo à mente e à Deus.
Uma forte prova de que a natureza me dotou de propensões nas quais devo confiar é
fornecida pelo fato de que existem, ao redor do meu corpo, muitos outros corpos, entre os quais uns,
sendo nocivos, eu aprendi por ela a evitar, e outros, sendo benéficos, eu aprendi a buscar. A
natureza, com efeito, ensinou-me deveras que alguns desses corpos proporcionam sensações
agradáveis, outros, porém, sensações incômodas.
E, decerto, tais lições foram úteis para conservar minha existência, pois que, se Deus
me tivesse feito para errar sobre as coisas oriundas dos sentidos, certamente que eu teria errado a
respeito de coisas nocivas e não teria promovido a adequada conservação de minha existência até
agora. Descartes toma aqui “natureza” numa acepção mais restrita do que aquela que se refere ao
conjunto de todas as coisas. Porque, para ele, essa acepção incluiria a luz natural pela qual a mente
percebe muitas coisas claras e evidentes sem ser auxiliada pelo corpo. Como, por exemplo, que o
corpo sofre a ação de uma força que o atrai para baixo, que uma estrela, embora pareça menor, é
muitas vezes maior que a Terra, etc. A ideia de natureza fica, assim, reservada para designar
somente o que Deus me deu como composto.
Descartes admite que a natureza, na verdade, ensina a fugir das coisas que produzem
sensações dolorosas e a perseguir as que produzem o prazer dos sentidos. Mas, para haver qualquer
conclusão a respeito da verdade sobre essas coisas, parece que é requerido somente o exame do
intelecto, sem o concurso do corpo. Descartes alega que a percepção que a natureza concedeu à
mente para que ela reconhecesse o que é cômodo ou incômodo ao composto não pode ser usado
para decidir nada a respeito da essência dos corpos. Que o contato com o fogo produza a sensação
de dor no corpo, isso não significa que há no fogo alguma coisa que se assemelhe à dor, tampouco,
que isso constitua a essência do fogo. Se julgasse assim, e tomasse a sensação como regra para
conduzir ao conhecimento da essência dos corpos, estaria eu a subverter a ordem da natureza.
Mas uma dificuldade aqui se apresenta a Descartes, referente aos casos em que a
mente é enganada por sua própria natureza a respeito de sensações internas, quando alguém, por
exemplo, iludido por um sabor agradável, toma um veneno julgando ser uma iguaria, ou então
quando um doente, sendo hidrópico, bebe a água que irá lhe fazer mal. Descartes decide então que
será preciso examinar por que motivo a bondade de Deus não impede que a natureza engane nessas
ocasiões. Mas é certo que a natureza pode ser desculpada com relação a esse engano específico,
pois, não sendo perfeita e onisciente, é levada a buscar o agradável, e não o veneno, que ela ignora
ser nocivo.
Mas o doente foi também criado por Deus, assim como o homem sadio. Daí, resta
ainda a dificuldade de entender por que Deus dera ao doente uma natureza enganosa, a ponto de
desejar comer ou beber algo que não será de bom proveito para o seu restabelecimento. Um relógio
observa todas as leis da natureza tanto estando em perfeitas condições quanto estando danificado,
quando não atende ao uso que o artífice lhe previra. Se o corpo do homem fosse, igualmente,
comparado ao de uma máquina, ele teria todos os seus movimentos determinados pela disposição
dos órgãos. Assim, seria natural que ele sentisse sede, mesmo sendo hidrópico, porque a disposição
de seus nervos é determinada a funcionar desse modo, tal como num mecanismo. E embora se possa
dizer que o relógio, estando danificado, aberrou de sua natureza, assim como o corpo do hidrópico
aberrou da sua, o uso que se faz aqui da palavra “natureza” é extrínseco às coisas a que se dirige,
sendo uma mera denominação dependente do pensamento. Uso, na verdade, muito diferente
daquele outro uso, que indica algo que pertence deveras às coisas. Mas isso ainda não resolve a
dificuldade, e fica ainda por entender-se por que Deus permite que a natureza do doente seja
enganada.
A investigação, logo, leva a notar uma diferença entre corpo e mente que diz respeito
à divisibilidade. Pois é manifesto que a natureza, por ser extensa, é sempre divisível, ao passo que a
mente não possui partes e é totalmente una e inteira, sendo indivisível. Se o corpo perde um de seus
membros, nem por isso algo é subtraído à mente, que continua sendo uma só. O que mostra como a
mente é completamente diversa do corpo.
É possível também notar, em relação a isso, que as partes do corpo transmitem o
movimento mecanicamente, de modo que nenhuma parte é posta em movimento por outra, afastada
dela, sem que uma parte intermediária entre as duas tenha transmitido tal movimento de uma até
outra. Assim, uma dor sentida em algum membro do corpo é transmitida pelos nervos que se
estendem dali até o cérebro, à semelhança do que acontece na corda, quando uma das suas pontas é
esticada, e o movimento se estende até a sua outra ponta, puxando-a. Como uma dor no pé, por
exemplo, deve passar pelos nervos que encontram-se nas pernas, coxas, rins e pescoço, antes de
chegar ao cérebro, pode acontecer que o pé não tenha sido atingido, de fato, e a dor tenha sido
produzida, na verdade, em alguma parte intermediária dos nervos, fazendo que o cérebro se engane
e sinta a dor como se ela tivesse surgido do pé.
Não importa, porém, que a mente seja enganada a respeito da origem dessa sensação,
julgando que a dor tenha vindo do pé quando vinha de um nervo intermediário, contanto que ela
possa estar certa de que esse movimento far-lhe-á experimentar a sensação mais apropriada e mais
ordinariamente útil à conservação de um homem sadio. Como quando, por exemplo, uma dor excita
a mente a cuidar da parte que dói, removendo a causa nociva. E isso é o bastante para atestar a
bondade e a potência de Deus, visto que todas as sensações que são dessa ordem no corpo
contribuem para a sua conservação.
Deus poderia, na verdade, ter constituído o corpo de outra forma, fazendo-o
experimentar sensações de modo diferente, mas nenhuma outra conformação é mais apropriada para
a conservação do corpo do que a que Deus concedeu-lhe, de fato. Assim, pode haver alguma
ocasião particular em que a natureza do homem, enquanto composta de corpo e alma, esteja sujeita
ao engano, já que são sempre os mesmos movimentos que percorrem o corpo, produzindo as
sensações. Mas a dor que surge no pé é muito mais frequentemente produzida por algo nocivo que o
afeta do que por outra coisa num nervo intermediário, donde ser muito mais prudente, para a
conservação, levar em conta o caso geral do que o caso de exceção. É melhor que a natureza se
engane em alguns casos do que ela nunca se colocar prevenida a respeito de tais sensações.
Essa consideração, por outro lado, é útil para que eu me lembre sempre de emendar
ou evitar os erros. Sabendo, assim, que as sensações de prazer e dor são índices muito mais
frequentes do verdadeiro do que do falso. Além disso, tudo me leva a concluir que as dúvidas a
respeito da distinção entre sono e vigília devem ser rejeitadas, pois os eventos que são por nós
percebidos, estando em vigília, possuem um encadeamento coerente com muitos outros eventos da
vida, possuindo, enfim, um nexo causal que não sucede no sono. Por conseguinte, não pode mais
haver dúvida a respeito dessas coisas, pois nelas foi aplicada a faculdade dos sentidos, da memória e
do intelecto sem que sucedesse nenhuma incoerência entre eles. Indício da verdade que se torna
ainda mais patente por Deus não ser enganador.
A relação entre Husserl e Descartes pode ser considerada de dois pontos de vista. Em
primeiro lugar, de um ponto de vista geral, no qual cabe perguntar sobre a adesão maior ou menor
da fenomenologia ao cartesianismo como um todo, assim como a rejeição maior ou menor do
cartesianismo a partir de uma crítica sistemática do seu conteúdo. Em segundo lugar, do ponto de
vista particular da evidência, no qual cabe investigar o que Husserl tem a dizer sobre a noção de
evidência de Descartes e em que medida (de adesão e rejeição) a posição de Husserl sobre a
essência da evidência recebe influência da posição de Descartes.
Estamos na plena esfera da Teoria do Conhecimento. Assim como Descartes, Husserl
está preocupado em fornecer uma resposta para a questão: “O que eu posso conhecer?”. Heffernan
(1997, p. 90) observa que muito do que Husserl tem a dizer em atenção a essa pergunta vem de sua
rejeição das posições de Descartes, e uma coisa que está ainda para ser estimada é como a crítica
que Husserl dirige à “noção de evidência de Descartes é a parte essencial em torno da qual o
conjunto da crítica da filosofia de Descartes é organizado”. Ou seja, o ponto de vista geral da
relação Husserl-Descartes deve depender de certa forma do ponto de vista particular sobre a
evidência.
O desafio que se põe no caminho da investigação da relação entre fenomenologia e
cartesianismo é – se possível – superar as ambivalências e ambiguidades que nela residem. Nas
Meditações Cartesianas, Husserl torna-se “em parte responsável pela comum percepção da
fenomenologia transcendental como um tipo de Neocartesianismo” (Ibidem, p. 89), não só pelo
título do trabalho, inspirado nas Meditationes de prima philosophia, mas pelos elogios endereçados
a Descartes como o maior pensador da França e pelo reconhecimento explícito de que a
fenomenologia nascente deve ao filósofo francês o “ter-se transformado em um novo tipo de
filosofia transcendental”97.
O projeto da fenomenologia de tornar-se uma ciência rigorosa coincide exatamente
com o projeto de Descartes de uma reforma total da filosofia, para torná-la uma ciência universal
alicerçada sob bases absolutas. Contudo, Husserl só admite seu cartesianismo para logo em seguida
recusá-lo, ao acrescentar que a fenomenologia se viu obrigada a repelir quase todo o conteúdo
doutrinal da filosofia cartesiana.
Dentro dos limites desta tese, procuraremos abordar os pontos fundamentais da
questão do cartesianismo e do anti-cartesianismo na fenomenologia. Sem pretender esgotar o
assunto, é claro. Assim, tendo em conta que o ponto de vista particular sobre a evidência pode, com
alta probabilidade, constituir a “parte essencial” da rejeição de Husserl do cartesianismo, vamos
começar por ela para logo em seguida considerar a relação geral que se estabelece entre os dois
filósofos e precisar bem quais são as tomadas de posição concordantes e antagônicas entre suas
respectivas “doutrinas”.
Hefferman (op. cit., p. 90) classifica em três grupos os textos em que Husserl critica
a posição de Descartes sobre a evidência:
I. Os textos de menor importância, em que se fala de evidência, mas sem referência a
Descartes: A Filosofia da Aritmética (1891); Estudos sobre Aritmética e Geometria (1886-1901);
Fantasia, Consciência Pictórica (1898-1925); Sobre a Fenomenologia da Intersubjetividade (1905-
1935); Coisa e Espaço (1907); Análise das Sínteses Passivas (1918-1926).
II. Os textos de maior importância, que são os três trabalhos principais de Husserl em
que prevalece a teoria do conhecimento: o precoce “Investigações Lógicas”, o médio “Ideias para
uma fenomenologia pura e para uma Filosofia Fenomenológica” e o tardio “Lógica Formal e Lógica
Transcendental”.
III. Um terceiro grupo de textos, que não tem o mesmo peso dos textos do grupo II,
mas que estabelece uma ligação entre estes últimos.
97 Hua I, Introdução, § I, p. 1.
Quais são os elementos da filosofia de Descartes que Husserl vê como os mais
dignos de consideração fenomenológica? Na introdução das Meditações Cartesianas, Husserl
resume a seu modo o percurso das Meditationes de prima philosophia, e talvez ele esteja a dar
indicações dos pontos que lhe parecem de maior interesse para o projeto da fenomenologia:
Ele (Descartes) submete então a uma crítica metódica, quanto às possibilidades de
dúvida (…) tudo o que na vida da experiência e do pensamento se apresenta como
certo, e ele busca ganhar, – se possível – pela exclusão de tudo o que poderia
apresentar uma possibilidade de dúvida, um conjunto de dados absolutamente
evidentes. (...) De fato, na condição de realidade absoluta e indubitável o sujeito
que medita não retém senão a si mesmo enquanto ego puro de suas cogitationes,
existindo indubitavelmente e não podendo ser suprimido mesmo se o mundo
inteiro não existisse. Desde então o eu assim reduzido realizará um modo de
filosofar solipsista. Ele se colocará no encalço das vias que possuem um caráter
apodítico, e pelas quais ele poderá reencontrar, em sua interioridade pura, uma
exterioridade objetiva. Sabe-se como Descartes procede deduzindo de início a
existência e a veracidade de Deus, depois, graças a elas, a natureza objetiva, o
dualismo das substâncias finitas, em uma palavra, o terreno objetivo da metafísica
e das ciências positivas, assim como as próprias ciências. Todas essas inferências
se cumprem seguindo, justamente, os princípios imanentes ao ego, que lhe são
“inatos”.98
Essa dedução, porém, que vai da existência e veracidade de Deus até a existência e
veracidade da natureza, das substâncias, etc.; cai num “círculo epistemológico” que, na visão de
Husserl, coloca todas as meditações que se seguem a girar em torno de si mesmas sem sair do lugar
de onde tinham partido. A saber: que Deus me assegura que as coisas percebidas clara e
distintamente são verazes, mas eu só conheço Deus pela ideia clara e distinta que tenho Dele.
Husserl vê entre as duas afirmações um vaivém vicioso que impede Descartes de resolver o
problema da transcendência: como uma interioridade pura pode atingir uma objetividade
transcendente à consciência? Por fim, esse vaivém redunda no fracasso da tentativa de validar a
evidência a partir do recurso à veracitas dei. Na parte histórica das lições sobre Filosofia Primeira,
Husserl diz a respeito:
Ora, se o “eu puro” em sua consciência tem a experiência sensível de um mundo
objetivo e edifica suas ciências por seus atos de conhecimento, em que medida ele
não é puramente uma posse imanente de aparições subjetivas e de juízos
produzidos subjetivamente em evidências subjetivas? Se é a evidência, se é a
intuição da razão que confere aos juízos científicos a preeminência sobre os juízos
vagos e cegos da vida cotidiana, nem por isso ela deixa de ser um evento subjetivo
da consciência. Que é isto que nos autoriza a atribuir a este caráter subjetivo o
valor de critério de uma verdade válida em si, de uma verdade que, para além do
vivido subjetivo, pode pretender uma validade? (…) Vemos Descartes aqui
tentando demonstrar a legitimidade da evidência e de seu alcance transsubjetivo e
ele tomba em círculos viciosos que não tardaram a ser percebidos e que
frequentemente foram deplorados. Ele deduz, pouco importa como, da finitude do
ego humano puro a existência necessária de Deus – que Deus não poderia nos
98 Hua I, Introdução, § I, p. 3.
enganar com o critério de evidência. Desde então é legítimo recorrer a esse critério.
E, por ele guiado, Descartes conclui a validade objetiva da matemática e da ciência
matemática da natureza, e, portanto, do ser verdadeiro da natureza tal como é
conhecido pela ciência.99
Sabe-se porém, que essa objeção a Descartes de circularidade nas suas provas é
conhecida desde os tempos do filósofo. Parece que a crítica “ciclofóbica” de Husserl só repete o que
outros críticos contemporâneos de Descartes, como Mersenne, Arnauld e Gassendi, já haviam
objetado às Meditationes: de andar em círculos na hora de fornecer a justificação última da
veracidade do conhecimento extra mentis.
Mas a impressão de que Husserl se limita a repetir uma velha fórmula é só aparente.
A reprovação que ele dirige ao círculo cartesiano é só um item dentro de um quadro crítico mais
abrangente, no qual predomina a acusação de que faltou a Descartes a “orientação transcendental”,
justamente aquela que ele havia descoberto no cogito, e pela qual pode ser chamado o “Cristóvão
Colombo” da filosofia. Para Husserl, Descartes deve ser elogiado por ver a “necessidade de um
recomeço radical em filosofia” e por inaugurar “um novo modo de filosofar”, e as Meditationes
devem ser admiradas como “tendo um valor eterno”, porque, com elas, a “filosofia muda totalmente
de aspecto e passa radicalmente do objetivismo ingênuo ao subjetivismo transcendental” 100.
Infelizmente, porém, o radicalismo filosófico de Descartes é assumido para logo em seguida ser
abandonado, ele descobre o ego transcendental para ao cabo de instantes perdê-lo definitivamente
de vista.
Em que consiste esse abandono? Na visão de Husserl, Descartes não apreendeu o
sentido próprio da subjetividade transcendental que ele havia descoberto com o “eu penso”. Sua
filosofia, por isso, ressente-se de duas nefastas tendências: (I) de considerar o “ego cogito um
‘axioma’ apodítico” que “deve servir de fundamento a uma ciência ‘dedutiva’ e explicativa do
mundo” que procede “ordine geometrico”, de modo análogo às ciências matemáticas, ao buscar
deduzir dos princípios inatos ao ego a existência do restante do mundo; (II) de considerar o ego
cogito uma “substantia cogitans’ separada”, que serve como “ponto de partida para raciocínios de
causalidade” e que faz de Descartes “o pai do contrassenso filosófico do realismo
transcendental”101.
Heffernan apresenta um sumário que contempla toda a crítica de Husserl:
1. O procedimento de Descartes é circular e incorre numa Petitio principii na
medida em que exige fazer inferências “válidas” quando é precisamente a própria
possibilidade de fazer inferências válidas que está em questão. 2. Descartes não
distingue suficientemente entre o ego gnosiológico e o ser humano como um
Com esse sumário, fica a impressão de que Husserl reprova a Descartes não ser
Husserl, e nem fundar a fenomenologia.
Continua ...
102 BRENTANO, Franz. Psychologie du Point de Vue Empirique. Traduction et préface de Maurice de Gandillac.
Paris: Aubier, Éditions Montaigne, 1944, p. 375.
sentida por um homem seria clara, mas nem sempre distinta, na medida em que frequentemente o
homem “que sente a dor a confundiria com o juízo obscuro que ele emite sobre a natureza da
dor.”103.
Assim, para Descartes, uma “percepção clara, mas não distinta, seria aquela que não
seria clara senão parcialmente”; ao passo que a percepção distinta “não contém em si nada que não
seja claro”104. Os homens são induzidos ao erro pelo costume que têm de incluir na percepção
imediata de uma dor o juízo obscuro (judicium obscurum) que emitem sobre a natureza da dor. A
distinção é a única percepção que pode evitar esse erro do juízo, pois, se uma coisa clara para
Descartes é o que é perfeitamente consciente, uma coisa distinta “é suficientemente consciente para
excluir toda confusão com outra coisa.”105.