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ARTICULAÇÃO ENTRE SAÚDE E EDUCAÇÃO –

CONTEXTOS PRÁTICOS
É um grande prazer estar com vocês nesse primeiro simpósio de Psicomotricidade
da NUTEP da Universidade Federal do Ceará, pois tudo que se inicia tem um sabor de
novo, de novas buscas, novas descobertas e, para mim, é uma renovação retomar um
tema que fez parte da minha história de psicomotricista.
De fato, no primeiro congresso de Psicomotricidade da Sociedade Brasileira de
Psicomotricidade, em 1982, no Rio de Janeiro, fiz parte de uma mesa redonda,
apresentando um trabalho sobre o Corpo Doente, baseado em minha prática com as
crianças internadas no Hospital de Base do IPSEMG, dos servidores estaduais de Minas
Gerais.
Naquela comunicação, já de mais de 20 anos, reconhecia que a criança
hospitalizada vive uma situação de stress e, mais que isso, de angústia, que se atrela, se
manifesta e se traduz em suas vivências corporais, levando-a à inibição ou à agitação
psicomotora defensiva.
Na doença, os núcleos inconscientes ligados às fantasias de morte e às pulsões
agressivas se intensificam e são revividos de modo manifesto. A projeção destas, sob
forma de ameaças e perseguição, faz com que além da dor, os próprios cuidados médicos
e de enfermagem tenham conotações de machucados e perigos. E, realmente, eles
algumas vezes são uma verdadeira intrusão do corpo próprio.
A angústia de separação da família e, sobretudo, da mãe, salta para o primeiro
plano com choros, gritos e súplicas: “cadê mamãe?” – logo no primeiro momento da
hospitalização.
Algumas crianças passam, defensivamente, para a hiperatividade, correndo nos
corredores, num percurso aparentemente sem sentido, mas talvez, à busca da mãe.
Outras se bloqueiam e caem numa apatia em que a própria mímica facial perde
sua expressividade e não revela nada dos sentimentos, nem mesmo do sofrimento que
seria evidenciado em situações menos penosas.
O atendimento no hospital a essas crianças deve possibilitar, em sessões de
psicoterapia, a tradução de seu sofrimento e medo e, também, o restabelecimento de uma
imagem do corpo mais ligada à saúde, re-narcisando o corpo e o eu que se abateu diante
da dor e do temor de abandono pelas pessoas queridas.
Criar um vínculo transferencial faz parte do atendimento psicoterápico no
hospital, feito através do jogo na sala de terapia, mas as cargas inomináveis de angústia,
presentes na vivência hospitalar, necessitam, também de um reforço, no plano da
realidade menos penosa e, para tal, a escola anexa ao setor de pediatria é um elemento
importante.
É aí que entra a articulação entre saúde e educação na experiência que tive por
alguns anos na Unidade de Pediatria do IPSEMG.
O meu trabalho, além do atendimento pontual psicoterápico, realizado, às vezes
no corredor por mim, ou pelos estagiários, era complementado pelo trabalho das
professoras que, na escolinha, ajudavam as crianças a recuperar as matérias escolares,
mas também atuavam como recreadoras e criavam jogos psicomotores na sala de aula.
Os jogos também ocorriam nos brinquedos como balanços, carrossel, roda-
gigante, do parque municipal, próximo ao hospital, para onde levávamos as crianças que
podiam sair da enfermaria e podiam se locomover. Sempre íamos uma equipe trans-
disciplinar, o psicólogo, a professora e a atendente de enfermagem como acompanhantes
das crianças nesses momentos.
O trabalho mostrou cenas comoventes em que as crianças puderam ser acolhidas e
viver o processo de tratamento e cura, nos casos possíveis, com menos sofrimento e dor.
Quero relatar aqui alguns casos que se salientaram.
Um primeiro, de atendimento no corredor, feito por um estagiário. Tratava-se de
um menino de dois anos, vindo do interior de Minas, internado na enfermaria, apenas
com poucas visitas dos parentes. Numa delas a mãe lhe trouxe um saquinho com algumas
laranjas. Simbolicamente, este saquinho tornou-se o substituto da presença da mãe; por
vários dias, a criança o agarrava com a mão fechada com força, postada na entrada da
enfermaria, como à espera do retorno mágico da mãe. Ninguém conseguia tirar de suas
mãos este símbolo carregado de intensa emoção, mas com uma abordagem afetiva e com
a verbalização do que ocorria – “essas laranjas devem ser ótimas, pois elas te lembram
que a mamãe veio te ver no hospital e mostram que ela continua a gostar de você, mesmo
que não possa estar aqui contigo todo o tempo” – ou seja, com a pontuação do vivido pela
criança, por parte desse estagiário, algo se transformou. A criança apática até então,
acabou chorando, mas pode ser consolada no colo pelo psicólogo, numa verdadeira
contenção psicomotora e, aos poucos, estabeleceu-se um vínculo terapêutico que podia
remeter ao laço afetivo com a mãe /criança. Depois de dois dias desse atendimento, a
criança acabou numa sessão “de corredor”, abrindo seu saquinho e oferecendo uma
laranja ao estagiário, sendo que os dois a descascaram e chuparam juntos.Com esta
vivência o menino abandonou seu “posto de fiscal do corredor”, e pode brincar com as
outras crianças.
Outra cena que foi traumática no início, mas que permitiu a preservação da
imagem do corpo ocorreu com a intervenção de outro estagiário. Havia um menino de 12
anos com uma queimadura enorme na perna e que o cirurgião plástico tentou recompor
com um enxerto de pele. Não houve sucesso e a equipe médica decidiu por uma cirurgia
de implante vivo, que ocorreria em várias etapas: cortar um tecido do abdome da criança,
criando uma espécie de “salsicha de tecido vivo e vascularizado”, que seria, a seguir,
costurado no braço e, numa terceira etapa, na perna, para a reconstituição da grande
extensão de tecido lesado. Tudo bem! Era uma técnica perfeita do ponto de vista
cirúrgico, mas os médicos esqueceram-se de falar com o sujeito que se submeteria a ela,
o que iria acontecer com ele. Não avisaram nem mesmo à enfermagem e muito menos à
equipe de psicólogos. Resultado: a criança acordou da anestesia e voltou da cirurgia, para
espanto de todos, com uma “salsicha na barriga” inexplicável. Gritos, choros, crise de
agressividade por parte do paciente e falatório em tom surdo por parte da enfermagem.
Foi a intervenção do psicólogo que pode resolver o impasse criado. O estagiário
conversou com a criança e disse que pediria ao médico para que lhe explicasse o que
estava ocorrendo. Voltando do contato com o cirurgião plástico, clareou para o menino o
que estava havendo e lhe propôs, num jogo, seguir com um boneco de plásticos os passos
das intervenções a que se submeteria. Juntos, cortaram uma faixa na barriga do boneco, e
reproduziram a situação em que ele se encontrava, no momento. Nos outros dias, criaram
os passos seguintes, colando a faixa da barriga ao braço do lado oposto à perna que
necessitaria do enxerto. Depois de solidificada a “cirurgia”, com a cola seca, passaram à
última etapa de colar a faixa do braço, cortando o extremo ligado à barriga, e o colando,
então, à perna. Foi feito um trabalho que permitiu à criança vivenciar o sofrimento e as
alterações cirúrgicas de seu esquema corporal, podendo resguardar sua imagem do corpo
perturbada na primeira cirurgia, permitindo-lhe suportar, inclusive a paralisação forçada
por algumas semanas, enquanto os processos de cicatrização, certificando que não
haveria rejeição do enxerto, prosseguiam.
O último caso que relatarei foi atendido por mim. Tratava-se de um menino com
câncer de pele que já se internara em vários hospitais para remoção de vários tumores,
inclusive nos olhos, o que o deixou sem visão; tumores na língua e nos ouvidos,
trazendo-lhe dificuldade de comunicação com os outros. Seu rosto ficara deformado e ele
parecia um verdadeiro “monstro”! A solução da equipe hospitalar para não interferir com
as outras crianças fora o quarto de isolamento, usado para casos de doenças infecto-
contagiosas. Ali, ele ficava, isolado do convívio humano, com apenas um radinho de
pilha para distrai-lo. Meu primeiro contato com ele foi de “cortar o coração”. Apesar de
sua situação angustiante ele estava na maior alegria de poder falar comigo e poder brincar
com um carrinho que ele fazia rodar sobre o leito às gargalhadas. Pensei movida pela
contra-transferência: como era possível, não existia nem um sinal aparente de angústia?
Concluí: ela já estava na cara! Estava na monstruosidade vivida. Estava num real do
corpo que não era mais traduzível em sentimentos, pois o melhor era aproveitar dos
momentos de contato e afeto, depois de várias experiências de sofrimento intenso.
Conversei com a equipe de supervisores médicos e de enfermagem propondo
alguma mudança naquele isolamento. Consegui decidir por enfaixar o rosto da criança,
apesar de não necessário, para que houvesse um semblant de que seu rosto estava bem,
sob as faixas, e para que as outras crianças não se impressionassem com sua deformidade.
Quando fiz esta proposta ao menino, ele literalmente pulou de alegria. Na
sequência, enfaixado, pode sair do isolamento e ir para a escolinha.
O trabalho com as professoras foi absolutamente gratificante e algo da
humanização pode ser veiculado numa situação extremamente difícil para todos que dela
participavam.
Esses recortes de atendimento tiveram o intuito de poder falar que há uma
articulação possível entre saúde e educação quando abordamos esse tema a partir do lado
da doença e das intervenções hospitalares.
Por outro lado, a partir do lado saudável, não podemos esquecer da articulação
entre saúde e educação que ocorre nas séries iniciais do maternal ou mesmo nas creches.
Aí, o atendimento psicomotor tem um aspecto preventivo, é uma espécie de vacina, em
analogia com os procedimentos médicos, que utiliza o jogo psicomotor como o veículo
de promoção da saúde e de resolução precoce de conflitos que podem surgir nas
primeiras etapas de desenvolvimento da criança. Conflitos e situações de stress que não
são tão radicais como os exemplos que apresentei aqui, mas que devem ser valorizados se
queremos escutar e agir com as crianças como sujeitos em sua evolução.
Mais tarde, nesse nosso simpósio, irei falar do sujeito, da cognição e da relação
psicomotora e poderei clarear melhor alguns aspectos que se referem à educação
psicomotora como promoção de saúde.

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