Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Off Flavor
Off Flavor
Off-flavour em peixes
cultivados é, ainda, dificuldade
para produção nacional
Alexandre Matthiensen, Juliana Antunes Galvão e Jair Sebastião da Silva Pinto*
Todos nós sentimos um cheiro diferente no ar após uma chuva, considerado prazeroso,
principalmente quando a chuva cai após um período longo de estiagem. Esse cheiro é
causado principalmente pelas bactérias presentes no solo e na água. As actinobactérias
(ou actinomicetos) compõem um grupo de bactérias filamentosas que cresce na água ou
em solos úmidos, responsável pela decomposição da matéria orgânica, como a celulose
e a quitina, que reabastecem a terra e são importantes na formação do húmus. Porém,
quando os solos secam, essas bactérias produzem esporos de resistência. O impacto da
água da chuva na terra faz esses minúsculos esporos serem lançados ao ar. Esses esporos
possuem o cheiro característico de terra molhada, associado à chuva. Uma vez que essas
bactérias crescem em solos úmidos, mas liberam seus esporos quando os solos secam, o
cheiro é mais acentuado, depois de um longo período de seca.
As cianobactérias (bactérias fotossin- aquáticos, ou se tornar indesejáveis no teral aceitável para o português, por isso
téticas), junto com as demais microalgas, produto final. Peixes criados em viveiros é mantida no original em inglês; traduzir
são os principais produtores de oxigênio podem adquirir gosto e odor passíveis de como cheiro ou gosto é muito simplista.
em águas naturais e em cultivos de peixes. objeção, denominados off-flavour, ao Flavour significa, basicamente, um
As bactérias autotróficas e microalgas absorverem os compostos produzidos conceito de análise sensorial que en-
beneficiam a produção, pois o oxigênio é por esses microrganismos e que ocorrem globa, pelo menos, dois fenômenos
o principal fator que limita a densidade de naturalmente no ambiente do viveiro. Em sensitivos: o gosto e o aroma. Por aroma
estocagem dos peixes em um viveiro. Uma uma pesquisa de opinião sobre consumo se entende a percepção via retronasal,
boa eficiência de produção requer uma de peixes em várias cidades brasileiras, diferenciando-se do cheiro, que resulta
taxa de densidade de estocagem elevada, Kubitza e Lopes (2002) observaram que na mesma sensação, porém via fossas
além de taxas elevadas de alimentação, cerca de 9% das pessoas entrevistadas nasais. E o sabor, uma sensação mais
na forma de ração que, adicionadas dia- disseram não comer peixe porque eles têm complexa, requer a estimulação das célu-
riamente aos viveiros de cultivo, contri- gosto de barro ou de terra. Quando foram las receptoras gustativas e olfativas, além
buem para o aumento de nutrientes com excluídas as cidades litorâneas, onde o dos elementos táteis e térmicos da língua
consequente crescimento e adensamento consumo de peixe marinho é maior, o e de toda a cavidade oral. O off-flavour
dessas bactérias e algas. percentual de não consumidores de peixe nem sempre é desagradável ao paladar,
Porém algumas bactérias e microal- por este motivo, subiu para 16%. olfato ou textura, mas sempre passível
gas produzem compostos que podem É importante ressaltar que a palavra de objeção, de contestação.
causar problemas a outros organismos off-flavour não possui uma tradução li-
50
Equivocos sobre off-flavour porque comem o lodo do fundo do vivei- A afirmação de que “peixes de viveiros
Como faz parte de nossa natureza ten- ro”. Essa afirmação vem acompanhada com água de coloração verde sempre
tar encontrar explicações para nossas da crença de que “peixes cultivados têm off-flavour” é, em parte, verdadei-
percepções sensoriais, várias ideias em tanques-rede, que ficam longe do ra. A coloração esverdeada é devida à
equivocadas e mitos surgiram a respeito contato com o fundo do viveiro, não presença de quantidades acima do ideal
do gosto ou cheiro de terra/barro para apresentam off-flavour”. Ambas as de microalgas ou cianobactérias produ-
os peixes continentais, principalmente afirmações são falsas. Mesmo os peixes toras de clorofila, pigmento responsável
os provenientes de cultivo. O primeiro bentônicos (que vivem e se alimentam pela fotossíntese. Se esses microrganis-
equívoco é a afirmação de que “todo pei- no fundo dos viveiros) podem não mos também produzirem compostos
xe de água doce possui gosto de terra/ apresentar gosto ou cheiro de barro se de off-flavour, e se essa coloração
barro”. As pessoas tendem a generalizar o viveiro onde eles são criados não tiver aparecer próximo à época da despesca,
a presença dos microrganismos que pro- a possibilidade de o peixe apresentar
duzem os compostos de off-flavour. Da gosto de terra/barro é grande. Porém
Figura 2 | Molécula de geosmina e 2- me- mesma forma, existem relatos de peixes é importante saber que nem todos os
til- isoborneol cultivados em tanques-rede que apre- microrganismos que produzem clorofila
sentam forte off-flavour, resultante da e que resultam em coloração esverdeada
presença de cianobactérias aderidas à na água são produtores de compostos de
malha da rede do tanque-rede. Portanto, off-flavour.
o isolamento do fundo de um viveiro Por fim, a ideia de que “aplicar sal no
não é garantia de extinção de episódios viveiro elimina o gosto de barro” também
de off-flavour. tem uma parcela de verdade. O sal pode
Outra ideia comum é a de que “o peixe auxiliar na diminuição da concentração
adquire gosto de terra/barro da ração das microalgas e cianobactérias pre-
administrada aos cultivos”. As pessoas sentes no viveiro, diminuindo assim a
que acreditam nisso geralmente com- produção dos compostos de off-flavour.
param os sabores dos peixes de cultivo Porém a concentração tolerável de sali-
com os peixes provenientes da pesca. nidade de algumas espécies de micror-
Existe, realmente, uma diferença no sa- ganismos pode ser superior à concen-
bor e na textura dos peixes provenientes tração da regulação osmótica do próprio
de cultivo e dos peixes de ambiente na- peixe do cultivo.
tural, e isso é reflexo da dieta do peixe.
O que acontece na piscicultura é que se Compostos de off-flavour
tem a padronização do sabor e da tex- Os compostos de off-flavour mais co-
tura do peixe, pois a oferta do alimento muns na aquicultura são os que con-
provém sempre da mesma fonte. Um pei- ferem gosto de terra/barro ou mofo,
xe em seu ambiente natural encontrará causados principalmente pela geosmina
Fonte: Alexandre Matthiensen, 2011.
fontes diversas de alimento, as quais e pelo metil-isoborneol (MIB). Os limites
variarão sazonalmente. Ainda, no am- sensoriais de odor em humanos para o
biente natural o peixe está sempre em MIB e geosmina variam de 2 - 20 ng/L e
equivocadamente uma experiência,, busca do alimento, diferentemente da 6 - 10 ng/L, respectivamente. Porém não
principalmente quando ela se repete, piscicultura, em que eles normalmente há valores precisos em função da falta
mesmo ao intercalá-la com outras ex- são condicionados a se alimentar nos de padronização experimental em ques-
periências não marcantes. , O gosto ou mesmos locais e horários; os peixes de tões como coleta, avaliação sensorial,
cheiro de terra/barro não faz parte do cultivo se movimentem menos, resul- escalas utilizadas e cálculo dos limites
gosto ou cheiro do peixe, nem marinho tando em uma textura diferente. Uma de detecção. Ainda, parâmetros como
nem de água doce. Porém, a , maioria das ração com composição balanceada, de tamanho do peixe, estágio de maturação,
ocorrências dos episódios de off-flavour qualidade e feita para suprir todas as temperatura da água e concentração de
ocorre em ambientes de água doce. necessidades do crescimento do peixe lipídeos na carne influenciam os níveis
Outra afirmação comum é a de que não conferirá gosto de terra/barro à sua limites; porém nem sempre são levados
“os peixes adquirem o gosto de barro carne (Figura 1). em consideração (Figura 2).
Alexandre Mattiensen
Durante muito tempo se perguntou seus esporos, com a contrapartida dos Octanol/Água (Kow). O Kow é calculado
qual seria a função biológica da geos- camelos, que os carregam consigo para de acordo com a solubilidade de uma
mina e/ou do MIB. Recentemente uma onde quer que sigam após saciarem sua molécula num meio hidrofóbico (tendo
resposta consistente foi encontrada: o sede. Portanto, a existência de moléculas como padrão o octanol) em relação a
aroma característico da geosmina nor- de off-flavour pode ser uma estratégia um meio hidrofílico (a própria água). Em
malmente ocorre quando existe umidade evolutiva de alguns microrganismos. termos práticos, este coeficiente busca
envolvida, e verificou-se que os camelos fazer uma analogia direta com a afinida-
do Deserto de Gobi podem detectar o Origem do off-flavour de da molécula em relação à membrana
cheiro desse metabólito a quilômetros A captação pelos peixes, da geosmina lipofílica (meio hidrofóbico) e ao citosol
de distância e são capazes de encontrar e do MIB presentes na água, é um pro- (meio hidrofílico) de uma célula, e com
um oásis a mais de 80 km. No deserto, a cesso passivo, ocorrendo através das isso estimar o transporte e a difusão des-
bactéria Streptomyces, um gênero das brânquias, do trato digestivo e da pele. sa molécula no corpo de um organismo.
actinobactérias, libera geosmina no ar A absorção pela pele, principalmente Através de estudos de transporte de
em terreno úmido, e esta pode ser de- em peixes de escamas, é extremamente membrana com moléculas de diferentes
tectada pelos receptores olfativos dos baixa quando comparada às outras vias. Kow, sabe-se que, para os peixes, a cap-
camelos, direcionando-os para a água. A Então, para fins de simplificação, pode tação pelas brânquias é dominante quan-
sobrevivência desses camelos pode ter ser considerada nula. A importância rela- do o composto apresenta Kow menor
implicação na existência da molécula de tiva da absorção da geosmina/MIB pelas que 6,0. Acima desse valor, a captação
geosmina, e essa parece ser a estratégia brânquias ou pelo trato digestivo está passiva se torna mais importante pelo
adotada pela bactéria para dispersar relacionada ao Coeficiente de Partição trato digestivo.
52
A geosmina e o MIB apresentam Kow passiva dos compostos) aplicada neste
* Alexandre Matthiensen é pesquisador
abaixo de 6,0 (ambas em torno de 3,0); caso é lenta e custosa. O conhecimento da Embrapa Suínos e Aves (matthiensen@
portanto, sua via de entrada no organis- dos microrganismos que produzem esses lycos.com); Juliana Antunes Galvão é
mo do peixe ocorre quase exclusivamen- compostos pode ser usado como uma pesquisadora especialista do Departamento
de Agroindústria, Alimentos e Nutrição USP/
te pelas brânquias. Assim, um modelo ferramenta para seu controle prévio. Por
ESALQ (jugalvao@usp.br); Jair Sebastião da
simplificado da cinética de captação isso, o monitoramento quali-quantitativo Silva Pinto é pesquisador do Departamento
(entrada da molécula no organismo) e microbiológico dos locais de produção de Agroindústria, Alimentos e Nutrição da
depuração (saída da molécula) considera e o isolamento em cultura desses mi- USP/ESALQ.