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Abril/2016
Cachoeira- Bahia
Abril/2017
Cachoeira- Bahia
RAÍ GANDRA MOREIRA
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Profª Drª. Amaranta Emília Cesar dos Santos (Orientadora)
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia- UFRB
________________________________________
Profª Drª. Ana Paula Nunes de Abreu
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia- UFRB
________________________________________
Profº Drº. Danilo Silva Barata
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia- UFRB
Certa vez RuPaul Charles disse que nós, enquanto comunidade LGBT, temos de
escolher nossa própria família. Para muitos de nós essa escolha se impõe de forma assombrosa
e atormentadora como sendo a única opção: reinventar-se e fazer dos amigos sua família.
Historicamente a família é um direito que enquanto comunidade muitas vezes nos é negado,
por isso agradeço a todas as minhas famílias.
Acima de tudo, agradeço aos meus pais, Marinete e Nilton, por todos ensinamentos,
pela paciência e dedicação. Agradeço pela aceitação e pela amizade, por representarem uma
base e por me darem de presente meu irmão, Caio, a quem também agradeço.
A minhas avós e a minha madrinha.
Agradeço aos meus amigos-irmãos, Ana Clara, Barbara, Gabriel, Indyra, Juliana,
Louise e Rodolfo, por estarem do meu lado enquanto, juntos, ainda descobríamos toda nossa
potencialidade e por continuarmos juntos enquanto ainda há muito por ser descoberto.
Agradeço também à família que se formou em Cachoeira:
Minhas irmãs Cirlla e Flora, por morarem comigo e saberem como eu sou.
Agradeço a Baga, Camila Camila, Erica, Michelle.
Pela parceria e incentivo na construção da I Mostra Universitária de Curtas LGBT, e
pela amizade e cuidado agradeço a Ohana.
Agradeço a Ruddyally, Wendell e especialmente Maíra, por dividir comigo um
mergulho em águas rosas. “Chova”
Agradeço a Wesley, por ser “Pro” e estar comigo na escrita do meu curriculum.
Agradeço aos LGBTerroristas Antônio, Ana Lua, Carlos, Gilvânia, Hená, Léo, Lucas,
Mariana, Paloma ,Reifra, Renan, Roberta, Romulo, Ru Bi, Rwolf, Silvio, Simone, Tatá,
Thamires e Yuri, pela mais importante e viva experiência de set, e, Samir pelo apoio.
Agradeço a Ricardo.
Aos meus professores Angelita Bogado, Adriano Oliveira, Claudio Manoel, Cyntia
Nogueira, Daniela Matos, Marcelo Matos, Marina Mapurunga, Neila Maciel, Roberto Duarte e
Sílvio Benevides;
Em especial Ana Paula e Danilo Barata
Por toda a paciência eu agradeço a minha orientadora Amaranta, sei que não sou fácil
mas tampouco foi fácil essa etapa, obrigado de coração por me fazer entender que era preciso
colocar a cabeça no lugar e os pés no chão, de fato, obrigado por me orientar para além da
academia.
Agradeço também a Jéssica, Líbano, Roberta, Talitha e Tia Sandra por completaram
minha família baiana e me fazerem sentir em casa em Salvador ou Cachoeira.
To my exchange family Giulio, Huda, Isaac, Jeanne, Nadine, Martina and Valentina,
my friends of the heart, to whom I can never thank enough... always. Because in those days
when we walked openhearted in the world, we managed to make it the best place to live, even
when it was seventeen degrees below zero, had a “back” hostel or an undrinkable beer.
To Iwalewa Haus team, my house in Bayreuth.
Antes de me despedir da Bahia, agradeço ainda à minha família da SUPAI, que entrou
em minha vida logo na reta final e me ajudou a manter a calma e os pés no chão, por isso
agradeço Alice, Ana, John, Júlio, Lene, Vanessa, Vitor e em especial a melhor chefe: Renata.
Agradeço aos amantes com as palavras de Pier Paolo Pasolini “A paixão jamais obtém
perdão e tampouco os perdoo eu que só vivo de paixão.”
Por fim, agradeço aos cineastas que tanto me inspiraram nessa caminhada e são parte
fundamental para a construção deste trabalho: Bruce La Bruce, Derek Jarman, Pedro
Almodóvar, Pier Paolo Pasolini, R W Fassbinder e Todd Haynes. Como também aos cineastas
que confiaram seus filmes para a construção desta mostra, meu muito obrigado.
“Sendo esmagado pela normalidade e pela
mediocridade de qualquer sociedade na qual ele viver, o
artista é uma contestação viva. Ele sempre representa o
contrário da ideia que todo homem em toda sociedade
tem de si mesmo.”
Este memorial consiste na trajetória de pesquisa e produção de uma curadoria que resulta na
segunda edição da Mostra de Curtas LGBT. A pesquisa visa apresentar um panorama da
presença e representação de personagens LGBT’s ao longo da história do cinema, desde os
primeiros experimentos fílmicos até o mais recente ganhador do Oscar de melhor filme:
Moonlight:Sob a Luz do Luar (Barry Jenkins, 2016). Traçando um caminho da produção
nacional em paralelo com a produção global e os movimentos sociais, a pesquisa busca também
definir o que é o cinema LGBT e seu potencial de distribuição e exibição. Por fim, apresenta
uma curadoria de curtas-metragens que traz a temática LGBT como forma de visibilidade e
resistência política.
1. APRESENTAÇÃO 12
2. INTRODUÇÃO: O movimento LGBT como um importante aliado na busca por
uma maior representação. 15
3. A PRESENÇA E REPRESENTAÇÃO LGBT NO CINEMA MUNDIAL: Um Panorama 21
4. UM OLHAR SOBRE A PERSONAGEM LGBT NO CINEMA NACIONAL ATÉ OS ANOS 90.
30
5. NOVAS FORMAS DE REPRESENTAÇÃO: O NOVO CINEMA QUEER E O CINEMA DE
RETOMADA NO BRASIL 37
6. O QUE É UM FILME LGBT? 49
6.1 Gêneros Fílmicos: 49
6.2 Cinema LGBT/Queer é gênero fílmico? 51
6.3 Análise de Caso: Moonlight: Sob a Luz do Luar 54
6.4 Concepção de Cinema LGBT para a curadoria 58
7. DISTRIBUIÇÃO DE FILMES LGBT’S 60
7.1 Pink Money e Novas Tecnologias 61
7.2 Festivais 66
7.3 Análise de Casos 69
8. II MOSTRA DE CURTAS LGBT 74
8.1 I Mostra Universitária de Curtas LGBT 75
8.2 Bandeira política Justificativas, Recortes 77
8.2.1 Bandeira Politica 77
8.2.2 Das escolhas estruturais. 78
8.2.3 Como o Recorte se apresenta. 80
8.3 Inscrições: Processos e Dados 81
8.4 Filmes Selecionados 85
8.5 Texto Curatorial e Programas 93
8.6 Divulgação e Exibição 98
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS 99
10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 103
12
1. APRESENTAÇÃO
Em 2012, ainda sem conhecer Cachoeira, ou mesmo o Recôncavo da Bahia, através do
SISU, me matriculei no curso de Cinema e Audiovisual da UFRB, uma universidade até então
desconhecida para mim e que se tornou símbolo de entrega, luta e aprendizado. Assim como os
amigos que fiz no curso, em sua maioria jovens como eu, recém saídos do ensino médio,
Cachoeira se tornou o cenário de grande amadurecimento.
Ainda que entusiasta do cinema, tendo acompanhado a carreira de vários diretores e astros
dos filmes, minha formação prévia à universidade se deu boa parte relacionada ao teatro, onde
comecei a ter um contato mais efetivo com a produção cultural, indo para além de campo de
espectatorialidade. Apesar da insegurança que representava sair de casa e me jogar em uma
universidade nova, num curso ainda não aprovado pelo MEC e em uma cidade desconhecida a
mais de mil e duzentos quilômetros de casa, não demorou muito tempo para que eu me
conectasse com a rotina do curso e de Cachoeira.
Foi no decorrer dos primeiros semestres e das primeiras produções, propostas como
exercício, que me aproximei com maior intensidade do que Ricciotto Canudo veio a definir em
2012 como a sétima arte em seu Manifesto das sete Artes. Neste cenário, a cidade também tem
um importante papel, seja pela densidade demográfica, por sua rotina e tradições, ou até mesmo
pelos seus cartões postais, esta foi responsável por possibilitar que quase todas as relações de
trocas de afetos, criatividade e trabalho se dessem de maneira bastante intensa.
Em determinado momento do curso ouvi de Roberto Duarte, professor com quem tive
contato nas disciplinas Oficina de Textos e Direção de Atores: “Não trate um exercício proposto
em sala de aula como se fosse a obra da sua vida, porém sempre trate um exercício proposto
em sala de aula como se fosse a obra da sua vida”. Essa dualidade entre exercício e obra me
fez perceber a importância de sermos profissionais e tratar qualquer produção com o máximo
de responsabilidade e respeito aos profissionais envolvidos, ainda que protegidos (ou não) pela
aura do “cinema universitário”.
Foi durante o curso, através diversas disciplinas, como Linguagem e Expressão
Cinematográficas I e II, Direção, Direção de Atores, Roteiro I, Montagem II, que fui
experimentando, pesquisando e descobrindo coisas novas, sobretudo tendo contato com novas
filmografias e modos de produção. Nessas disciplinas produzi meus primeiros exercícios.
Contudo, este trabalho de conclusão de curso se deve principalmente aos seguintes
componentes curriculares: Cinema Mundo II: onde comecei a desenvolver minha pesquisa em
relação ao cinema queer e seus principais expoentes como Derek Jarman, Todd Haynes e Bruce
La Bruce. Documentário I/ II, Gêneros do Documentário e Novas Tendências do Documentário:
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onde estreitei minha relação até então distante com essa potente vertente do cinema. E também
Antropologia, Gênero e Sexualidade: por me apresentar correntes do pensamento analítico e
crítico no que tange, sobretudo a questão da sexualidade humana e sua diversidade.
No avançar dos semestres e das matérias passamos pela constante indecisão de balancear
nossos interesses próprios com as disciplinas obrigatórias, no meu caso não posso deixar de
mencionar a importância que foi entender um pouco melhor sobre como funcionava a matriz
curricular por meio do processo de aprovação do curso pelo MEC. Tendo participado de um
momento que envolveu esforços dos alunos, professores, coordenadores e gestores da
universidade em prol de um projeto no qual, naquele momento, eu já me encontrava
completamente imerso devido a minha aproximação com o movimento estudantil.
Através da Semana Universitária do Audiovisual (SUA), tive a possibilidade de exercer
aquilo que sempre acreditei, cinema é contato, e se cada profissão tem seu material especifico,
o material de um realizador em cinema e audiovisual é o material humano e suas experiências.
Com a SUA tive contato com estudantes de todo país e foi graças ao primeiro encontro nacional
em Niterói, em 2013, que me senti motivado a ajudar a (re)construir o coletivo acadêmico de
cinema e audiovisual da UFRB (CACAU).
Tivemos uma gestão de um ano. Nosso principal objetivo era a realização de um encontro
regional, que não foi concretizado por questões de verba. Ainda assim, todo o projeto foi escrito
e desenvolvido pelos membros do CACAU e da Comissão Organizadora durante três meses de
pré-produção.
Outro projeto com o qual me envolvi durante três semestres da graduação foi o Programa
de Educação Tutorial (PET), grupo de pesquisa, ensino e extensão, que desenvolve atividades
em diversas frentes. Foi no estabelecimento de redes de contato, pensamento em meios de
produção e distribuição que me concentrei, tendo me dedicando especialmente às questões de
articulação estudantil nas universidades do nordeste. Através do PET participei da realização
do encontro da REDE Nordeste de Cinema Universitário, durante o Festival de Cinema
Universitário de Alagoas, em Penedo-AL. Na ocasião, contamos com representantes de todos
os estados da região nordeste, além de realizar e exibir uma curadoria dos produtos fílmicos da
UFRB.
Minhas experiências no PET e no CA, combinadas ao meu encantamento com a SUA,
me conectaram a uma rede de estudantes envolvidos com a ideia do cinema universitário
enquanto força potente e inovadora, tanto no que diz respeito ao conteúdo, quanto aos métodos
de produção. Foi neste período que realizei a primeira edição da Mostra Universitária de Curtas
14
LGBT, exibida em Cachoeira – BA, Recife – PE, João Pessoa – PB, Pelotas – RS e Bayreuth,
na Alemanha.
Através de um intercâmbio acadêmico passei um semestre em Bayreuth, onde, além de
expandir meus horizontes acadêmicos, pude ter contato com diversas culturas e pessoas que
trouxeram conteúdos singulares para agregar à minha edificação enquanto estudante e sujeito.
Dentre as atividades realizadas na universidade alemã, destaco duas como indispensáveis: a
primeira delas foi a disciplina “Sing, Text, Context – Reading Derrida As A Midea Theory”,
oferecida pelo mestrado de Estudos e Práticas de Mídia, durante a qual tive contato com a
produção do teórico argelino radicado na França. A segunda atividade, e provavelmente a mais
relevante, foi minha aproximação com Iwalewa Haus, instituição da Universidade de Bayreuth
que funciona como museu, centro de artes, cultura e pesquisa em África. Essa aproximação foi
facilitada pela professora Nadine Siegert, quem me possibilitou desenvolver trabalhos com
artistas de diversas nacionalidades, bem como acompanhar outras dezenas de trabalhos sendo
desenvolvidos.
Retomando as disciplinas cursadas na UFRB, é importante ressaltar aqui, sobretudo
devido ao conteúdo do desenvolvimento deste trabalho, as cadeiras de documentário assumidas
pela professora Amaranta César. Ainda que a primeira disciplina de documentário tenha sido
ofertada pelo professor Marcelo Matos, responsável por despertar uma curiosidade a cerca
desses filmes, foi nas disciplinas e atividades propostas por Amaranta Cesar em Documentário
II, Gêneros do Documentário e Novas Tendências do Documentário que eu pude de fato me
aproximar e me inserir nesta produção.
Neste momento foi possível abrir novas janelas para o pensar e fazer fílmico, descobrindo
o documentário como um rico e possível campo cinematográfico, através das suas mais plurais
expressões, conteúdos e formas. Sobretudo, as correntes contemporâneas do documentário
despertaram em mim um desejo e curiosidade pungente, saciada por meio da pesquisa e
realização experimental na área.
Essa aproximação com o documentário teve como fruto a possibilidade de integrar o
painel de júri jovem do CachoeiraDoc, festival no qual participei três anos, em diferentes
funções (em 2014, com a exibição do curta Quando Rosa Virou Azul, na mostra Kekó; em 2015,
como júri jovem e em 2016, como monitor).
Entre os filmes realizados no período do curso, destaco os curtas-metragens Quando Rosa
Virou Azul (2014), realizado como parte da disciplina de direção de atores e que circulou por
mais de 10 festivais nacionais, e Curriculum Vitae (2015), avaliado pela disciplina Novas
15
Tecnologias do Audiovisual e que também contou com circulação nacional incluindo o festival
Mix Brasil.
Em ambos os filmes desempenhei as funções de direção, roteiro, produção e montagem.
Contudo, a tarefa mais difícil era definir em qual categoria cinematográfica estes filmes se
encontravam: Documentário, Ficção ou Experimental? Uma dúvida constante quando
preenchia uma ficha de festival, questão cuja resolução faz com que eu retome a importância
das disciplinas de documentário.
Quando Rosa Virou Azul é um documentário poético encenado, e que funciona em forma
de vídeo-carta à um amigo que se perdeu no mar. Trata-se de uma despedida e uma homenagem
à memória de alguém próximo. Curriculum Vitae é um documentário performático, que brinca
com os clichês do “curriculum” e com a necessidade de se encaixar em determinado padrão
para entrar no mercado de trabalho, sendo também uma analogia direta ao próprio gênero
cinematográfico.
No campo da curadoria, exerci a função de assistente de curadoria da Mostra Corpo-
Imagem, parte do projeto Narrativas em Fluxo, no qual objetivava analisar os modos
discursivos — procedimentos influenciados por condições de produção, condições de
interpretação e condições do discurso — na relação entre corpo, performance e expressão
videográfica. Sendo finalizado na publicação de um livro, Narrativas em Fluxo (Danilo Barata
2016), acompanhado por um DVD contendo os filmes da mostra.
sobretudo pelas instituições religiosas em uma época onde o termo homofobia ainda nem se
quer era pensado.
A revolução francesa, que se tornou símbolo de toda uma mudança de paradigma social,
pautada nos princípios iluministas e tendo como um dos resultados a declaração dos direitos do
homem e do cidadão, foi também território para que a homossexualidade fosse descriminalizada
pela primeira vez em um código de leis nacionais em 1791. Pouco se avançou, porém na
aquisição de direitos pelos LGBT’s no século seguinte, apenas em 1870 que vemos surgir na
Inglaterra e posteriormente em 1901 na Alemanha, os primeiros grupos organizados em prol do
movimento LGBT. Esses grupos, que ganharam maior destaque e presença a partir da Segunda
Guerra Mundial, onde o nazismo foi responsável pela morte não apenas de judeus como
também perseguiu e assassinou cerca de 300 mil homossexuais. Países como Inglaterra, França,
Alemanha, Holanda e países escandinavos demonstravam que o perfil dos homossexuais era
composto por brancos, classe média e intelectuais, acusados pelos movimentos contemporâneos
por deter um discurso assimilacionista1 em relação a sociedade heteronormativa.
Nesse sentido, tomaremos a madrugada de 28 de Junho de 1969, como o início do
movimento LGBT que conhecemos até hoje, com valores muito mais próximos dos ideais
liberacionistas2 que assimilação, contudo, essa dualidade, como veremos no decorrer do texto,
permeia todo o processo de luta nas aquisições de direitos e de representatividade, sobretudo
no cinema, que é o foco deste trabalho.
Antes de adentrar propriamente no movimento de liberação gay, iniciado em Stonewall,
é preciso conceituar movimentos sociais:
1
Tratamos Assimilacionismo neste trabalho como as correntes que preconizam a absorção de valores
hegemônicos, reproduzindo normativas objetivando a aceitação social através de apagamento das diferenças e
reforço das similaridades.
2
Liberacionismo se refere as correntes que preconizam o rompimento com os valores hegemônicos, negando
as normativas e promovendo a liberdade individuo por meio da valorização da diversidade em dentrimento da
homogenia.
17
Stonewall Inn era um dos bares redutos de homossexuais na Christopher Street, em Nova
York. Ainda que seus frequentadores já estivessem habituados às usuais batidas policias que
ocorriam no local, nas primeiras horas do dia 28 de junho de 1969, deu-se início a um violento
confronto entre LGBT’s e a polícia, se tornando o mais importante evento do movimento
moderno de liberação homossexual na busca por direitos.
A relação com Judy Garland é controversa. Sylvia Rivera, ativista trans e drag queen
creditada como a primeira pessoa a atacar diretamente os policias, dando assim início à revolta,
assumiu que na noite do dia 27 não sairia de casa devido a sua tristeza causada pelo funeral da
atriz, tendo mudado de ideia depois. Bob Kohler, em entrevista ao livro de David Deitcher the
Question of Equality: Lesbian and Gay Politics in America Since Stonewall (1995) afirma:
Quando as pessoas falam sobre a morte de Judy Garland tendo muito a
ver com o motim, isso me deixa louco. As crianças da rua enfrentavam
a morte todos os dias. Eles não tinham nada a perder. E não podiam se
importar menos com Judy. Estamos falando de crianças com quatorze,
quinze, dezesseis anos. Judy Garland era a querida de meia-idade dos
gays da classe média. Fico chateado com isso porque banaliza tudo.
4
(DEITCHER, p. 72.)
3
No original: When gay liberation arrived, it came hand in hand with the movies. The legendary Stonewall Riots
started on the night of June 27, 1969. It was the day of Judy garlands funeral at the Frank E Campbell Funeral
Home Uptown, which had stayed open previous night to accommodate the crush of weeping mourners in lines
around the block waiting to view the casket and bid their idol goodbye. Garland was a gay icon too, and it is easy
to imagine that on Judy’s night, butch dykes, nelly queens, and fierce trannies were not to take any bullying by
the police who routinely raided gay bars. For Judy, they fought back. And in that moment, and the day of street
fighting that followed, a new era was born. And with it, a new cinema.
4
No original: When people talk about Judy Garland's death having anything much to do with the riot, that makes
me crazy. The street kids faced death every day. They had nothing to lose. And they couldn't have cared less
about Judy. We're talking about kids who were fourteen, fifteen, sixteen. Judy Garland was the middle-aged
darling of the middle-class gays. I get upset about this because it trivializes the whole thing .
18
Obviamente, essa mudança de paradigma e percepção vai à frente dos avanços obtidos
pela produção cinematográfica LGBT da época, nesse sentido, começam a ser debatidas
questões para além da presença ou não dos personagens em tela, mas principalmente suas
funções.
5
No original: The history of the portrayal of lesbians and gay men in mainstream cinema is politically
indefensible and aesthetically revolting. There may be an abundance of gay characters floating around on
various screens these days. (...)Gay visibility has never really been an issue in the movies. Gays have always
been visible. It’s how they have been visible that has remained offensive for almost a century.
19
É impossível dissociar a homo arte dos anos 80 e seus grandes nomes, da doença.
Expoentes da cultura gay e da cultura de massa como Amanda Blake, Cazuza, Derek Jarman,
Gia Carangi, Freddie Mercury, Keith Haring, Klaus Nomi, Renato Russo entre vários outros.
Passada a segunda fase do movimento LGBT contemporâneo, que englobou os anos de
1984 a 1992, estando indissociável ao momento da Aids, vemos em 92 uma maior diversidade
de grupos e organizações LGBTs surgindo em todo o mundo, desde grupos comunitários,
6
No original: In Martin Scorsese’s Public Speaking (2010), Fran Lebowitz says something I’ve never heard
anyone say before: AIDS didn’t just kill the best artists of a generation, but also the best audiences.
20
passando por setoriais de partidos, grupos acadêmicos e até mesmo igrejas inclusivas. Esse
momento é, então, tomado como o surgimento da terceira onda do movimento LGBT, que
perdura até os dias atuais. Nesse período, o foco da comunidade se dirige às políticas públicas
de acesso a direitos e saúde, além do reconhecimento enquanto sociedade.
Nesse momento também são diferenciados os sujeitos da sigla LGBT, reconhecendo que
lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais possuem demandas específicas, relativas à
representatividade, segurança, saúde, acesso à cultura e educação e outras questões de direito.
E são essas demandas especificas que possibilitaram também a maior variedade de produções
audiovisuais, tendo como marco o NCQ, iniciado em concomitância com a terceira onda. Em
termos representacionais, não é mais possível falar em um cinema gay, mas sim em um cinema
muito mais plural, que engloba e representa a todos os indivíduos não heterossexuais.
Em amplo aspecto, tendo como parâmetro os quase 120 anos de história do cinema,
veremos nos capítulos seguintes que uma maior representação e presença de personagens
LGBT’s nos filmes datam exatamente da edificação do movimento LGBT iniciado em
Stonewall. A partir dos anos 60 e principalmente nos anos que se seguiram à liberação LGBT
iniciada em 69, vemos surgir os primeiros filmes marcos da cinematografia não heterossexual.
Nos anos 80, durante a crise da AIDS e da segunda onda, temos uma queda na produção causada
também pela mudança de foco dos realizadores para as urgências da comunidade, ao mesmo
tempo em que os filmes do período também remetem por associação ou dissociação à doença.
. Outro aspecto do período é também fortalecido pelo ideal de que todas as letras da sigla LGBT
compõem uma grande família, a terceira onda dos anos 90, como já dito, foi acompanhada pelo
surgimento do Novo Cinema Queer, que promoveu uma pluralidade maior de representações a
cada uma das identidades LGBT’s.
Avançando, o Novo Cinema Queer, e também os novos direitos adquiridos pela
comunidade LGBT desde os anos 90, fez com que lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transexuais obtivessem cada vez mais espaço nas artes e mídias, seja na televisão, teatro,
internet e principalmente no cinema.
Por esses motivos apresentados, não podemos desconsiderar os movimentos sociais
promovidos pela parcela LGBT da sociedade, pois além de possuírem reflexo nas artes, são
eles próprios modificadores de paradigmas e realidades, as artes e o cinema se valem, ao mesmo
tempo que divulgam, esses novos olhares, se retroalimentando constantemente.
Após o panorama da representação e presença da personagem LGBT no cinema mundial
e nacional, nos momentos que precederam e procederam ao advento do NCQ, proponho um
debate acerca da adjetivação do cinema LGBT. Como definir essa produção? O que torna um
21
filme LGBT? Essas questões são tratadas no capítulo seis. Em seguida, apresento uma análise
sobre distribuição e acesso à esses filmes, dando enfoque aos diferentes modelos de produção
que tencionam a questão “filmes comerciais” e “filmes de festivais”.
Sigo no desenvolvimento da pesquisa tecendo alguns comentários acerca da função do
curador, concluindo o trabalho com a proposta de curadoria da II Mostra de Curtas LGBT.
Outros, de Richard Oswald lançado em 1919, como um dos primeiros a abordar o tema com
uma maior profundidade. Na produção, Conrad Veidt interpreta um violinista que se apaixona
por um de seus alunos, tendo como fim trágico o suicídio. Enquanto na hegemônica Hollywood,
cabe ao filme Ló em Sodoma (James Sibley Watson; Melville Webber, 1933), 14 anos depois
de produção alemã, o título de primeiro filme “gay” dos Estados Unidos da América, baseado
na famosa passagem bíblica que posteriormente receberá uma releitura por Pier Paolo Passolini:
Sodoma e Gomorra.
Outro caso marcante e pioneiro neste período é o primeiro vencedor do Oscar de Melhor
Filme, em 1927, Asas, de William A. Wellman. Cabe ao longa o primeiro beijo entre dois
homens registrado pela indústria do cinema. Nele, os atores Buddy Rogers e Richard Arlen
representam dois pilotos de guerra que, apesar de amigos, são rivais na disputa pelo amor da
mesma mulher, interpretada por Clara Bow. O beijo ocorre quando o personagem de Richard
está em seu leito de morte e o amigo chega para tentar salvá-lo, ao mesmo tempo em que
também se despede. Nem a totalidade da sequência, muito menos o beijo propriamente dito,
chega a apresentar um grau sexual ou erótico. Porém, se tomarmos como exemplo uma análise
do autor norte americano Kevin Sessums, na qual ele afirma que nenhum dos dois personagens
“demostravam tanto amor por ela (Mary Preston, personagem de Clara Bow), como eles
demostravam um para com o outro”, poderemos perceber uma possível inclinação à
bissexualidade dos personagens.
Nesse período que abrange os primeiros experimentos, como o citado The Gay Brothers,
até o início dos anos trinta, muitos dos filmes que apresentaram personagens homossexuais o
fizeram de duas formas: a primeira, e menos comum, era uma representação bastante
“maquiada” ou, se podemos assim dizer, “encubadas” em oposição ao segundo caso, que
dominou expressivamente a forma como a homossexualidade era mostrada no cinema até o
início dos anos 90 – uma representação pautada no escracho e alívio cômico, ou seja,
completamente estereotipada
É importante nesse ponto fazer uma diferenciação entre os estereótipos apresentados para
homossexuais homens (gays) e homossexuais mulheres (lésbicas). Em termos quantitativos, os
gays apareciam muito mais nos filmes, justamente pelo fato de que sua forma estereotipada
flertava diretamente com o humor, principalmente se um homem apresentasse traços de
feminilidade ou se vestisse de mulher, por exemplo. Enquanto o perfil lésbico menos comum,
usualmente ocupava o lugar nebuloso do mistério e da dúvida, sendo inclusive socialmente mais
23
aceito por estar inserido em um contexto machista e fetichista, a exemplo do filme Marrocos
(Josef Von Sternberg, 1930), no qual Marlene Dietrich, que interpreta uma cantora, aparece em
cena vestindo um smoking sem que a vestimenta a impeça de manter sua postura de Femme
Fatale, quando inesperadamente beija nos lábios uma das mulheres da plateia, provocando
homens e demais mulheres ali presentes.
Se a representação já era frágil nessa primeira fase do cinema, a questão irá se complicar
ainda mais com a instauração do chamado Código de Hays, adotado pelos estúdios no início
dos anos 1930, um documento que subordinava as produções teatrais e cinematográficas a uma
série de valores relacionados à “moral e aos bons costumes” da família tradicional norte-
americana. Com forte influência religiosa e apoiada por diversas instituições que ameaçavam
boicotes às produções que ousassem a burlar as regras, o código previa sanções e censuras
temáticas às situações que envolvessem beijos de língua, cenas de sexo, sedução, estupro,
aborto, prostituição, escravidão (de brancos), nudez, obscenidade e profanação.
Mesmo que a homossexualidade não tenha sido citada diretamente, ela certamente se
encaixaria para os censores no tópico de “obscenidade e profanação”. O código, que vigorou
até os anos 50 e perdeu gradualmente sua força nos anos 60, fez com que a presença
homossexual e transexual nos filmes fosse praticamente inexistente. Nesse período é evidente
o esforço de produtores e roteiristas para criar passagens e sequências sutis que passassem
discretamente pelos censores, porém é neste mesmo período que temos a primeira mudança na
forma como os personagens homossexuais serão apresentados. Do estereótipo cômico
passamos para a figura do ressentimento e do segredo, sendo criado o novo estereótipo dos
vilões amargurados, não românticos, não sexuais, solitários e geralmente fadados a um final
trágico.
Em Festim Diabólico (1948), Alfred Hitchcock conta a história de dois jovens intelectuais
que cometem um assassinato na tentativa de provarem pra si mesmos que eram superiores à
vítima e à justiça, porém não é necessário ir muito longe para entender que os amigos eram na
verdade amantes, tanto que os personagens foram baseados no caso real envolvendo o casal
Nathan Leopold e Richard Loeb, que sequestraram e assassinaram um garoto para provarem a
24
si mesmos que eram capazes de cometer um crime perfeito. Hitchcock já havia abordado o tema
em Rebecca (1940), que em português ganhou o subtítulo a mulher inesquecível, deixando em
aberto a questão: “para quem a personagem título era inesquecível?”, dando vários indícios do
desejo que a governanta da casa sentia por sua ex- patroa.
Claro que este cenário está levando em conta o cinema mainstream /Hollywoodiano, pois
neste mesmo período é possível notar em outros países e até mesmo nos cinemas independentes
dos Estados Unidos um tímido, porém gradual avanço na busca por uma maior
representatividade nas telas. Esse avanço vai ser evidenciado de forma mais concreta se
tomarmos como exemplo a produção europeia no cenário pós Segunda Guerra Mundial.
Exemplificando a produção europeia, que abrange o período das vanguardas até o advento
do chamado Novo Cinema Queer, há um conjunto de filmes que trata da temática homossexual
de forma aberta, resinificando o lugar desses sujeitos. Em Meu Passado Me Condena (Basil
Dearden, 1961), Dirk Bogarde dá vida ao advogado Melville Farr, que após o suicídio de seu
amante arrisca sua carreira e casamento, confrontando uma rede de chantagem que ameaça
expor a vida secreta de homossexuais para o mundo em uma época em que homossexualidade
ainda era crime não só na Inglaterra, mas em vários países do mundo. Sendo uma das primeiras
vezes que o termo “homossexual” é usado diretamente em um filme.
Pier Paolo Pasolini, diretor abertamente homossexual e que irá imprimir em seus filmes
temas ligados à sexualidade de maneira revolucionária, torna-se uma das principais e primeiras
referências na produção de um “cinema gay”. Em Teorema (1968), Pasolini apresenta a
homossexualidade como arma de liberação contra a opressão da família burguesa. Decameron
(1971), Os Contos de Canterbury (1972), As Mil e Uma Noites (1974) e Saló Ou Os 120 Dias
de Sodoma (1975) são outros exemplos da filmografia do diretor, que trará a homossexualidade
ou questões diretamente ligadas à sexualidade em um lugar de destaque tanto narrativa quanto
esteticamente.
Na Alemanha, outro diretor abertamente homossexual e com uma extensa filmografia que
irá de encontro com as questões sexuais, se torna igualmente relevante enquanto referência para
esse estudo: Werner Fassbinder, que assina As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant (1972),
Num Ano de Treze Luas (1978), Querelle (1982), entre outros.
Na França, A Gaiola Das Loucas (1978, Edouard Molinaro), comédia baseada na peça
teatral de mesmo nome, escrita por Jean Poiret, traz a história de um casal gay composto por
Albin e Renato, dono e principal atração drag queen de uma boate, e toda a confusão gerada
em torno do casamento do filho de Renato com a filha de um importante e ultraconservador
político do país. O filme, que até 2014 se mantinha na décima posição de maiores bilheterias
estrangeiras nos Estados Unidos, ganhou, devido ao seu sucesso, duas continuações francesas,
uma em 1980, dirigida também por Molinaro, e outra em 1985, sob a direção de Georges
7
No original: In France too a new cinema was under construction. The most enduring gay film of this period
was Jean Genet’s Un Chant d’Amour (1950). Based on memories of prison and is erotic regimes, it would be a
major influence on Todd Haynes and others. More mainstream audiences could turn to the European art
cinema, with its long tradition of openly gay filmmakers and films. Luchino Visconti’s The Leopard (1963) and
Death in Venice (1971) and Pier Paolo Pasolini’s Teorema (1968) influenced a generation. Lesbianism was still a
fillip for voyeuristic tastes – Claude Chabrol’s Les Biches (1969) or Bernardo Bertolucci’s The Conformist (1970)
– yet films were the currency of the time, well, gay and lesbian audiences were used to reading between the
frames.
26
Lautner. O filme ganhou ainda um remake Hollywoodiano em 1996, dirigido Mike Nichols,
contando com estelas como Robin Williams e Nathan L nos papéis principais.
Waters precede o Novo Cinema Queer por décadas. Ele é uma criatura do
passado hippie, da revolução contra cultural, de uma era pré Stonewall de
confronto e temor. Ele é parte indelével da pré-história do Novo Cinema
Queer, um santo padroeiro que preside sobre seus feitos, rindo de suas
loucuras, aplaudindo seus sucessos. John Waters estava lá primeiro. Ele e seus
filmes foram formados pelos nobres dias exuberantes antes do colapso dos
anos 1970, depois da liberação gay, antes de aids. A marca registrada do estilo
“Waters”, com a sua sensibilidade “Camp” e impaciência tanto com a
heteronormatividade quanto com a homonomartividade, está bem refletida no
novo cinema Queer, como se seus traços estivessem em espera todo esse
tempo como gene recessivo chamando/gritando. (RICH, 2013, p.6)8
8
No Original: Waters predates the new queer cinema by decades; he’s a creature of the hippie past, the
countercultural revolution, a pre-stonewall era of shock and awe. He’s an indelible part of NQC prehistory, a
patron saint presiding over it doings, chuckling at its follies, applauding its successes. John Waters was there
first. He and his films were formed by the nutty exuberant prelapsarian days of the 1970s, after gay liberation,
before aids. The trademark Waters style, with its camp sensibility and impatience with both heteronormativity
and homonormativity, is well reflected in the new queer cinema, as if its traits were lying in wait all that time
like recessive gene a shout-out
28
9
Em Tradução Livre: “Enqueercendo” a estética cinematográfica africana: uma pesquisa dos anos 50 a 2003:
retratos da homossexualidade em filmes internacionais.
29
Em Queer Asian Cinema: Shadows in the Shade (2000), Andrew Grossman realiza uma
pesquisa voltada a representação e presença da personagem homossexual no continente
Asiático, sobretudo na produção Japonesa e Chinesa.
Na Oceania temos a Austrália como principal produtora de filmes e conteúdo audiovisual
de maneira geral, condição facilitada tanto pelo seu tamanho quanto pela população equivalente
a 60% de todo o continente. O cinema LGBT australiano de fato irá se aproximar mais dos
10
No original: "African cinema has started to explore themes concerning homosexuality. Although Djibril Diop
Mambety and Chahine, respectively, portrayed homosexual characters (in supporting roles) in Touki Bouki and
Alexandria... Why? As early as the 1970s, it was in Bouzid's Man of Ashes that gay man appeared as the lead
character in the film's narrative. Sub-Saharan African cinema had to wait until 1997 for gay male characters to
appear in the leading roles in Mohame Camera’s Dakan
30
debates representacionais europeus, motivados pela relação estreita com a Inglaterra e a grande
parte de descendentes europeus vivendo não apenas no país, mas também nas demais ilhas do
continente.
Em A História do Cinema LGBT Australiano, publicado em seu site, o crítico australiano
Simon Foster aponta que a presença de temas e personagens ligados ao homo/transsexualidades
acompanharam o processo de expansão do próprio cinema australiano, assim como identifica a
presença de personagens “cross-dressers”, já nos anos 20. Na primeira metade do século XX,
o autor destaca Rangle River (Clarence Badger, 1936) e Dad and Dave Come to Town (Ken G
Hall, 1938) como produções que sutilmente dão espaço para a expressão de homossexualidade
de seus personagens. Porém, apenas em 1970, motivados por todo o contexto revolucionário
pós anos 60, que ocorre a chamada renascença do cinema australiano, trazendo consigo o
primeiro filme que apresentava autenticamente uma relação entre pessoas do mesmo sexo, The
Set (Frank Brittain, 1970).
Olhando por uma perspectiva global, de 1895 até o final dos anos 1980, é perceptível o
avanço que o cinema alcançou no que tange as questões de representatividade e de como a
sociedade avançou com relação aos direitos da comunidade LGBT. Contudo, todo esse processo
é intensificado a partir dos anos 90 e da virada do milênio e cujas consequências sobre as novas
formas de representação no Brasil estão desenvolvidas no capitulo cinco, que irá abordar o
Novo Cinema Queer e a retomada no Brasil.
O cinema enquanto invenção chega ao Brasil logo em 1896, pouco tempo depois de ser
mostrado ao mundo pelos irmãos Lumière. A cidade do Rio de Janeiro é a primeira a ter salas
de cinema, seguida então por São Paulo. Se por um lado a vista Chegada de um Comboio à
Estação da Ciotat (1895) dos franceses Louis e Auguste Lumière, marca o início da história do
cinema, no Brasil a chegada do navio francês Brésil à baía de Guanabara, vista filmada pelos
irmãos Segreto, se configura como o início da nossa produção.
De um modo geral, os primeiros anos do cinema nacional apresentaram uma tímida
produção. É possível inferir, neste aspecto, que o lugar já reduzido da personagem homossexual
no cinema, de um modo global, era praticamente inexistente no cinema nacional. Estima-se que
apenas cerca de 60 filmes tenham sido produzidos em território nacional até o ano de 1922,
31
Cabe então a Luiz de Barros inaugurar a presença do LGBT nas telas do cinema
nacional. Luiz de Barros, que havia estreado como diretor em 1914 e foi um dos mais profícuos
de sua época, tendo rodado cerca de 60 longas-metragens entre documentários, ficções,
adaptações literárias e teatrais. O longa-metragem Augusto Aníbal Quer Casar (1923) é
exemplo de uma das adaptações do diretor, baseado em um conto de Carlos Verga, foi o
primeiro filme brasileiro a trazer uma personagem transexual. Nele, o protagonista busca por
uma noiva, mas acaba casando-se por engano com uma transformista e só percebe o equívoco
depois do casamento, quando tira o vestido da esposa e esta volta a se vestir, falar e se comportar
com traços “masculinos”.
Em 1930, outro longa do diretor, Messalina, dará continuidade à presença da
homossexualidade no cinema, que desde o lançamento e repercussão do filme de 1923 fica
novamente estagnada. Messalina é baseado no romance Orgia Latina, de Felicién Champsaur,
e retrata a história da terceira esposa do imperador romano Cláudio. O filme é intensamente
sexual, pois Messalina era conhecida por sua bissexualidade aflorada e por suas festas
particulares frequentadas por uma vasta quantidade de mulheres nuas e homens seminus.
As sexualidades possíveis permearam algumas outras produções de Lulu de Barros,
como ficou conhecido. Porém, se tratando exclusivamente da homossexualidade, um exemplo
32
mais objetivo e que vai de encontro ao modo vigente de representação homossexual no cinema
mundial da época, é a adaptação do romance de Aluísio de Azevedo, O Cortiço(1946), no qual
temos a presença de Albinio, personagem afeminado, fraco, pobre e que vive entre as lavadeiras
do cortiço. Se no naturalismo brasileiro o homem era visto como produto do meio, a
homossexualidade de Albino reflete então, nessa acepção naturalista, os desvios de uma vida
marginalizada.
O perfil do homossexual afeminado e da chamada transgeneridade farsesca, como Luiz
Francisco Buarque de Lacerda Júnior define em Cinema Gay Brasileiro: Políticas de
Representação e Além (2013, p.31), é o que irá imperar nos poucos casos da produção nacional
até os anos 60, casos estes que, salvo exceções, se encontram englobados no conjunto de filmes
produzidos entre os anos 30 e 50, aos quais convencionou-se chamar como Chanchadas11.
Em Alô, Alô Carnaval (Adhemar Gonzaga, 1936), filme da primeira fase das chanchadas,
já temos delimitadas as aparições pontuais das personagens homossexuais com o único
propósito de proporcionar à narrativa o alivio cômico por meio do estereótipo caricato e
exagerado.
Os comediantes Oscarito e Grande Otelo, que personificavam uma síntese das
chanchadas, em alguns de seus filmes utilizavam vestes femininas para alguma necessidade
narrativa, porém deixando de forma evidente a heterossexualidade dos personagens. Contudo,
ao se apresentarem em “roupas de mulheres”, os atores incorporavam um conjunto de trejeitos
definidos socialmente como “femininos”, como é o caso dos filmes Carnaval de Fogo (Watson
Macedo, 1942), Carnaval Atlântida (José Carlos Burle, 1952), A Dupla do Barulho (Carlos
Manga, 1953) e Dois Ladrões (Carlos Manga, 1960).
O estereótipo afeminado se dava justamente pelo fato desses indivíduos apresentarem
uma conduta mais desviante da normativa heterossexual vigente na época, que impedia e
condenava qualquer indivíduo masculino incorporasse traços de feminilidade.
11
“O termo chanchada – aportuguesamento do italiano cianciata, que indica “um discurso sem sentido, uma
espécie de arremedo vulgar, argumento falso” (VIEIRA, 2003, p. 46) e que foi popularizado por críticos
brasileiros como epíteto depreciativo – se refere a um conjunto de filmes nacionais das décadas de 1930, 40 e
50, produzidos majoritariamente no Rio de Janeiro, que uniam números musicais a enredos cômicos (...). Isso
explica a aliança das chanchadas a formas culturais já estabelecidas – no caso o teatro de revista, o rádio e o
carnaval – como forma de atrair público e assim furar o bloqueio do cinema hollywoodiano. O formato das
chanchadas, em especial de sua primeira fase, descendia diretamente dos espetáculos de revista,
estruturando-se em torno de números musicais e esquetes de humor, ligados por uma narrativa mínima que
buscava dar unidade ao conjunto.” (LACERDA, 2015, p. 34)
33
Contudo, essa representação no cinema é tida como farsesca, pois ela se dá por uma
necessidade temporária do enredo. Sendo mais comum sua ocorrência em plots que envolvem
fugas, golpes, trapaças e mais comumente o carnaval. Esses filmes, portanto, acabam não
causando estranhamento no público, pois como Guacira Louro Lopes analisa em seu artigo
“Cinema e Sexualidade” (2008): A plateia ‘sabe’ que o personagem não transgrediu ou não
‘atravessou’ para valer as fronteiras de gênero e, ao final irá retomar a normalidade.
Cruz e Atlântida. Vemos surgir, então, no Brasil, o chamado Cinema Novo12 e o Cinema
Marginal13, dois marcos do cinema brasileiro.
[...] quando a nossa atenção se volta para o processo que envolveu o Cinema
Novo e o Cinema Marginal, entre final da década de 1950 e meados dos anos
1970, tal processo se apresenta como dotado de uma peculiar unidade. Foi,
sem dúvida, o período estética e intelectualmente mais denso do cinema
brasileiro. As polêmicas da época formaram o que se percebe hoje como um
movimento plural de estilos e ideias que, a exemplo de outras cinematografias,
produziu aqui a convergência entre a ‘política dos autores’, os filmes de baixo
orçamento e a renovação da linguagem, traços que marcam o cinema
moderno, por oposição ao clássico e mais plenamente industrial. (XAVIER,
2006, p. 14)
Nos filmes desse período temos um comprometimento do cinema enquanto arma política
e de transformação do país, dialogando com as mais diferentes artes e aspectos culturais
próprios do Brasil. No livro A Personagem Homossexual no Cinema Brasileiro, de Antônio
Moreno (2001), o autor irá apontar treze filmes dos anos 60 que abordam a homossexualidade,
seja de maneira mais explicitas, como em Noite Vazia (Walter Hugo Khoury,1964), O Beijo
(Flávio Tamberllini, 1964) e O Menino e o Vento (Carlos Hugo Christensen, 1966), ou de forma
metafórica e subjetiva, em produções como Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) e
o clássico de Glauber Rocha Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964).
Entretanto, ainda que o tratamento dado aos personagens LGBT tenham ganhado um
novo rumo, é possível perceber em “Noite Vazia”, a fetichização lésbica para satisfação do
interesse masculino, quando duas prostitutas são convidadas a fazer sexo entre elas. Já nos
filmes “O Beijo” e “O Menino e o Vento”, além do perfil do homossexual amargurado e
desestabilizado no primeiro caso e do homossexual afeminado no segundo, temos a questão da
homofobia como mote principal. A discussão acerca da homofobia, no entanto, é um ponto a
ser observado em ambos os filmes, já que o próprio termo começa a ser desenvolvido em
meados dos anos 60. Ainda que não naturalizado com este nome, era inegável o caráter
opressor, preconceituoso e violento contra homossexuais imposto pela sociedade, tanto que os
personagens alvos da homofobia nesses filmes eram condenados não por serem homossexuais
12
“[…] o Cinema Novo, em particular, problematizou a sua inserção na esfera da cultura de massas,
apresentando-se no mercado, mas procurando ser a sua negação, procurando articular sua política
com uma deliberada inscrição na tradição cultural erudita.” (XAVIER, 2006, p. 23)
13
“Para a compreensão da significação do Cinema Marginal dentro do panorama do cinema brasileiro,
teremos de ter sempre presente esta conotação pejorativa inerente ao fato de estar à margem. Uma
das principais características deste “cinema” está exatamente no deslocamento ideológico desta carga
pejorativa, que passa a ser valorada de outras formas.” (RAMOS, 1987, p. 16)
35
propriamente ditos, mas por serem apontados como tais por interpretação de terceiros, por meio
da leitura dos velhos estereótipos.
Lacerda, que irá dedicar um capítulo da sua tese ao estudo das relações pautadas na
homofobia, aponta que:
Ao utilizar esses exemplos como ilustração da afirmação de que a postura
homofóbica endereçada a homossexuais estava naturalizada no cinema
nacional das décadas de 1960, 70 e 80 – assim como no senso comum – não
quero dizer que os filmes necessariamente corroboravam com a homofobia.
Observando a produção dessas três décadas, é possível identificar, pelo
contrário, uma diversidade de posturas frente à questão. (LARCEDA, 2015,
p. 90)
Se em Dois Perdidos Numa Noite Suja (Braz Chediak, 1970), a delicadeza e refinamento
no personagem Tonho é suficiente para despertar dúvidas acerca de sua sexualidade, — assim
como a relação que o mesmo mantém com seu amigo Paco —, em A Casa Assassinada (Paulo
Cesar Saraceni, 1971), o homossexual retratado será o solitário e que se transveste trancado em
seu quarto. Em Rainha Diaba (Antônio Carlos Fontoura, 1974), a personagem principal
(inspirada na personagem real Madame Satã, que ganhará filme 30 anos depois) é chefona do
tráfico de drogas, ardilosa e espalhafatosa. Em Nos Embalos de Ipanema (Antônio Calmon -
1978) é apresentado um jovem heterossexual que mantém um relacionamento homossexual em
troca de dinheiro. Vamos encontrar uma maior transgressão em filmes como República dos
Assassinos (Miguel Faria Jr. -1978), que mesmo apresentando os perfis estereotipados da bicha
afeminada de classes inferiores e ligada à prostituição, também apresenta uma relação
homossexual estável e não hierarquizada pelas lógicas heteronormativas.
Para compreender melhor o avanço das representações homossexuais da época é preciso
também mencionar as adaptações realizadas a partir da obra de Nelson Rodrigues 14 e Plínio
Marcos15. Alguns dos filmes baseados na obra de Nelson Rodrigues nesse período são: Toda
Nudez Será Castigada (1973) e O Casamento (1976), ambos dirigidos por Arnaldo Jabor.
Enquanto os já citados Navalha na Carne, Dois Perdidos Numa Noite Suja e Rainha Diaba,
são adaptações realizadas tendo como base a obra de Plínio Marcos.
Ainda que o foco na representação homossexual não tenha sofrido relevantes
transformações nos anos 80, é importante notar que já nos primeiros momentos da década era
possível perceber um declínio na produção não apenas das pornochanchadas, mas de toda a
produção cinematográfica no país, indissociavelmente afetando a produção de um cinema
LGBT. O declínio que se arrastou até os anos 90, com a produção nacional chegando a menos
14
Nelson Falcão Rodrigues: Pernambucano nascido em 1912, foi jornalista e escritor, tendo começado sua carreira
escrevendo para o jornal A Manhã, de propriedade do seu pai. Começou sua carreira como dramaturgo com a peça
“A Mulher Sem Pecado” (1941), se consolidado como um dos principais dramaturgos brasileiros de os tempos.
Mesmo que suas peças apresentassem um olhar sobre a sociedade brasileira de forma a ser apontados como imorais
e vulgares, o teor erótico e realista o consagrou como criador da chamada “tragédia carioca” (transgressão da
tragédia grega adaptada para a sociedade carioca do século XX). Politicamente era conservador e apoiador da
ditadura, faleceu no Rio de Janeiro em 1980
15
Plínio Marcos de Barros: nasceu na cidade de Santos em 1935, foi jornalista , ator e diretor, atuando
principalmente no teatro. Temas como homossexualidade, marginalidade, prostituição e violência eram
recorrentes em sua obra que tinha como principal pano de fundo os nichos “underground” da cidade de São
Paulo. Foi perseguido e censurado durante a ditadura, um dos períodos mais produtivos de sua carreira enquanto
dramaturgo. Faleceu aos 64 anos em 1999, na cidade de São Paulo.
37
Em 1991 são dados os primeiros passos do chamado Novo Cinema Queer, um cinema
permeado pelas ideias do pós-estruturalismo e de caráter libertário, que leva para debate o
discurso dos gêneros, corpos e sexualidades, pretendendo ir além de uma expressão cultural e
artística de um modelo LGBT estereotipado e propondo uma representação inclusiva a diversas
identidades sexuais.
Ao ser definido assim pela crítica e pesquisadora norte-americana B. Ruby Rich, o Novo
Cinema Queer se propõe a estudar as relações humanas a partir do seu lugar de ambiguidade,
trazendo a intimidade da diversidade humana à tona, abrindo os olhos do grande público para
a possibilidade de viver o masculino e o feminino de diversas formas, principalmente quanto
ao que tangencia a diversidade sexual e de gênero. Ruby Rich tomará como base para
desenvolver sua pesquisa um escopo de filmes produzidos nos primeiros anos da década de
noventa, entre os quais se destacam: Poison (Todd Haynes, 1991), Eduward II (Derek Jarman,
1991), Swoon – Colapso do Desejo (Tom Kalin, 1992), The Living End (Gregg Araki, 1992) e
R.S.V.P. (Lauren Lynd, 1991).
Antes de necessariamente buscar uma compreensão acerca do Novo Cinema Queer, é
preciso localizar o termo “queer” e seu encaixe diante do fazer artístico e das teorias relativas à
sexualidade. A palavra de origem inglesa originalmente possui o sentido pejorativo equivalente
aos termos “vagabundo/pervertidos/devassos”, contudo, sua tradução mais comum é o termo
“estranho”, associado à imagem de uma conduta desviante da norma.
A partir da prisão de Oscar Wilde, aponta a transativista Helena Viera, o termo ganhou o
sentido de “viadinho, sapatão, maricona, marimacho”, cabendo a Wilde ser o primeiro ilustre
intitulado publicamente como “queer”. Com o avanço das discussões a respeito da sexualidade
e dos direitos LGBT, o “Queer” é tomado de seu lugar pejorativo, no qual o homossexual era
38
Em termos de teoria, os estudos queer surgem nos Estados Unidos nos anos 80 como uma
resposta natural a ascensão dos movimentos populares, que chegam às universidades
catalisando a criação dos chamados “estudos culturais”. Estes estudos, pautados nos ideais pós-
estruturalistas, objetivavam a compreensão desses movimentos por meio de uma nova ótica de
pensar a realidade social, encontrando em filósofos como Michel Foucault e Jacques Derrida,
por exemplo, um solo base para se desenvolverem.
A teoria queer se aprofunda nas críticas que as teorias feministas levantam acerca do
gênero como parte essencial do indivíduo, assim como também busca expandir os estudos
gays/lésbicos no que tange à ideia de que a homossexualidade se configura como um construto
social edificado através das práticas sexuais e identidades de gênero. Essa expansão se dá
empiricamente no âmbito da análise de práticas sexuais e identidades de gêneros não
englobados pelos estudos gays/lésbicos, por conta do seu teor até então considerado desviantes
das normas padrão.
Entendendo o Queer para além das teorias acadêmicas, e retomando de forma mais íntima
a discussão trazida pela arte queer como forma de expressão, — que com o passar dos anos não
necessariamente se pautara única e exclusivamente a vivências LGBTs —, e também tendo em
mente o Queer como o espectro mais abrangente, tanto no que se refere à pluralidade de
40
identidades sexuais, quanto no que tenciona em relação aos “papéis de gênero”. A escolha pela
utilização do termo LGBT neste trabalho em nenhum momento desmerece a experiência Queer,
por acreditar que ambos os movimentos não são antagônicos, tampouco se configura um como
uma evolução do outro. O Movimento Queer e o Movimento LGBT caminham juntos, porém,
na perspectiva de políticas públicas e políticas representacionais, este trabalho vai de encontro
ao segundo movimento, não deixando de lado, todavia, o ressaltar da importância do Queer,
seja nas identidades e filmes presentes na curadoria proposta ou principalmente na importância
referencial, politica, estética e de singular magnitude do “Novo Cinema Queer”.
Como já vimos na descrição dos capítulos anteriores, o passar das décadas representou
também um avanço na forma como as personagens homossexuais e transexuais eram
representadas no cinema, porém nunca antes ocorreu uma inserção tão intensa desses filmes no
circuito “mainstream”, tal qual nunca antes houve uma produção tão massiva dessas narrativas.
A diferença primordial entre os filmes do NCQ e a maioria das produções anteriores, se
apresenta em decorrência do fato de que as subjetividades aqui foram renegociadas, novos
gêneros além do gay e lésbico foram anexados, a própria história dos movimentos e da cultura
LGBT– incluindo a então recente crise da AIDS dos anos 80 – foi trazida às telas de uma
maneira revistada, sendo contada por uma ótica não normativa e não heterocentrada.
Além dos filmes já citados, obras como Instinto Selvagem (Paul Verhoeven, 1991), Young
Soul Rebels (Isaac Julien 1991), Garotos de Programa (Gus Van Sant 1992), Go Fish- O Par
Perfeito ( Rose Troche 1994), All Over Me (Alex Sichel 1997), Lilies ( John Greyson 1996),
The Delta (Ira Sachs 1996) e The Watermelon Woman (Cheryl Dunye 1996) entre outros,
ajudaram a repercutir a “nova escola cinematográfica”, ou a “nova onda do cinema LGBT” para
além das fronteiras dos circuitos e festivais exclusivamente voltados ao público gay. Em 1992
e nos anos seguintes, muitos desses filmes obtiveram relativo sucesso e premiações em festivais
importantes como Sundance, que no ano anterior premiara Poison, de Tood Haynes e Paris Is
Burning, de Jennie Livingston.
Poison, tido por muitos estudiosos do cinema queer, ao exemplo de B. Ruby Rich, como
marco inaugural do movimento, apresenta três histórias paralelas que não possuem conexão
estilísticas, temáticas ou temporal. A primeira delas, em formato de cine jornal, conta a história
de Richie, um garoto que após matar seu pai sai voando pela janela. Na segunda história,
inspirada nos filmes de terror dos anos 60, vemos um cientista, que após descobrir o elixir da
sexualidade humana comete o engano de beber a fórmula, se transformando em um grotesco
assassino leproso. Por último, e mais obviamente gay, temos a relação de amor entre
prisioneiros homossexuais.
41
16
No Original: Examining drags, where femininity and/or masculinity are performed by opposite sexes, gains
42
Mine Egbatan, ao discorrer acerca dos questionamentos de gênero por meio da figura das
Drags, tendo como base o estilo de vida e as atitudes tomadas pelos personagens gays e
transexuais do filme, ressalta que a perspectiva revolucionária é a rejeição das normas da cultura
heterossexista e patriarcal em relação ao gênero.
Os dois filmes citados exemplificam perfeitamente o motivo pelo qual o NCQ não
necessariamente se enquadraria em uma “escola” ou “movimento” cinematográfico
propriamente dito, os filmes do Novo Cinema Queer não compartilhavam de um vocabulário
estético único, tampouco dividiam as mesmas preocupações e estratégias narrativas, porém o
que permitiu que essas variantes fossem agrupadas em torno do rótulo proposto por Ruby Rich
foram os traços de apropriação da cultura LGBT, as doses de ironia presentes em quase todas
as produções, o pastiche, e, sobretudo, um trabalho de construção social de novas
representações da sexualidade. Esse conjunto de semelhanças correspondiam ao que Rich irá
nomear de “Homo Pomo”.
Tendo em mente esse cenário e os filmes e diretores que ajudaram a popularizar o NCQ,
ainda fica aberta a seguinte questão: O que possibilitou o surgimento dessa nova onda?
É uma questão recorrente ao longo dos anos, uma que eu posso responder
apenas com retrospectiva. Quatro elementos convergiram para resultar no
NQC: a chegada da AIDS, Reagan, câmeras de vídeo e aluguel barato. Além
disso, o surgimento do queer como uma indignação e uma oportunidade
comunitária se fundiram em uma resposta artística histórica à repressão
política insuportável: simples, porém, complexo. (RICH, 2013, p.XV-XVI)17
importance for providing a new insight into gender issue. The films focusing on the life in drags are
considered significant tools to understand issues related to gender. Paris is Burning, (...), is an invaluable source
for attracting attention towards drags, transsexuals, gender and relatively race in this regard.
17 No Original: It’s a question that has recurred over the years, one that I can answer only with hindsight. Four
elements converged to result in the NQC: the arrival of aids, Reagan, camcorders and cheap rent. Plus the
emergence of “queer” as a community. Outrage and opportunity merged into a historic artistic response to
insufferable political repression: that simple, yes, and that complex.
43
silêncio do governo deram lugar à busca por respostas e ao espírito de solidariedade entre
aqueles presentes nos principais grupos de riscos. Nesse contexto, alguns coletivos
independentes documentavam os custos humanos da epidemia, no objetivo de obter direito de
resposta contra o pensamento comum propagado pelos grandes veículos de mídia.
O vírus da Aids realizou em alguns anos uma proeza que nem o mais
bem-intencionado movimento pelos direitos homossexuais teria
conseguido, em muitas décadas: deixar evidente à sociedade que
homossexual existe e não é o outro, no sentido de um continente à parte,
mas está muito próximo de qualquer cidadão comum, talvez ao meu
lado e – isto é importante! – dentro de cada um de nós, pelo menos
enquanto virtualidade (TREVISAN, 2000, p. 462)
18
No Original: Against all odds, film and video work began to emerge. The need as intense for work that could
make sense of what was going on, take stock, and reformulate our imaginings, to grieve the dead, yes, but also
to reinvigorate life and love and the possibility. For gay men, it was a matter of life or death, a question of
morality or immortality. For lesbians, it was a matter of empathy, a horror what was happening to our/their
gay brothers and outrage at society’s response. There also was a need to preserve a visible presence, some
scrap of identity, and create a new lesbian role, sensibility, and vision.
44
vezes Gus Van Saint afirmou em entrevistas, sua predileção pelas obras de John Waters e Pier
Paolo Pasolini.
No decorrer dos anos 90 e nos anos 2000, os filmes que surgem como resultados desse
movimento buscaram romper com a narrativa clássica, em alguns casos radicalizando na forma
e rejeitando a heteronormatividade por meio da representação dos mais plurais estilos de vida,
tidos até então como marginais, como no filme português O Fantasma (João Pedro Rodrigues,
2000). Claro que a negação da heteronormatividade não é nesse ponto nenhuma novidade no
cinema, sendo inclusive bastante debatida no documentário ficcionalizado alemão Não é o
homossexual que é perverso, mas o mundo em que ele vive (Rosa Von Praunheim, 1971).
Contudo, só a partir do NQC que uma produção mais abrangente, tanto relacionada à
pluralidade de histórias e perfis quanto na variedade de países de origem, se fez perceber.
Em todos os continentes, realizadores e filmes começaram a emergir, incluindo
produções de diretores que já possuíam uma trajetória no mainstream, como é o caso de Alfonso
Cuarón, que explora a bissexualidade de Tenoch e Júlio em E Sua Mãe Também (2001),
quebrando o gelo, como define Ruby Rich, da representação do desejo sexual entre homens no
cinema mexicano contemporâneo. A autora ainda pontua que a cena de sexo entre os dois
protagonistas, que em outras épocas poderia ser fatal para os objetivos comerciais do longa,
foram não apenas revertidos em 33 milhões de dólares em bilheteria, mas também em algumas
nominações ao Oscar.
19
No Original: In Argentina, Lucrecia Martel, a filmmaker close to the generation of Cuaróns’s son, took out her
own camera to explore the underbelly of Family dynamics, including a lovelorn daughter besotted with another
woman, all observed with a whipsaw vertiginous style that alerted viewers to just how nonnormative her debut
feature, La Ciénaga (The Swamp, 2001), would prove to be. Another young Argentine, Diego Lerman, released
a quirky lesbian themed comedy, Tan de repente (Sunddenly, 2003). Back inMexico, Julián Hernandéz, made na
experimental narrative, Mil nubes de paz cercan el cielo, amor, jamás acabarás de ser amor ( A Thousand
Clouds of Peace Fence the Sky, Love; Your Being Love Will Never End, 2003),about a gay hustler with a broken
heart. All Three films renegotiated de facto campacts with their own national cinemas.
45
alegrias, disseminando novas relações de poder/viver nos/os corpos como manifestos, livres,
pungentes e discursivos.
Em termos de Brasil, o surgimento do NCQ coincide com o momento drástico do cinema
nacional, no qual a produção se viu estagnada na primeira metade da década de 90, partindo de
uma média de 80 longas-metragens lançados por ano na década de 70, para apenas 9 longas-
metragens lançados no país em 1992. Sancionada pelo presidente Itamar Franco em 1993, a Lei
do Audiovisual, que instituía tanto prêmios públicos quanto um sistema de incentivos fiscais
na produção de filmes, foi um importante marco que permitiu uma gradual recuperação da nossa
produção. O primeiro filme do chamado “Cinema de Retomada”, sob a direção de Carla
Camurati, Carlota Joaquina, Princesa do Brasil, foi lançado em 1995 e a questão da
sexualidade nem sequer tangenciava a produção.
André Ricardo Araújo Virgens, que analisa a questão da homossexualidade no cinema
brasileiro sob o ponto de vista do mercado, pontua que o primeiro filme da retomada a trazer
uma personagem homossexual é Jenipapo (Monique Gardenbeg, 1995). Contudo, é apenas em
2001 que o tema terá destaque , no filme Amores Possíveis, de Sandra Werneck. Em sua
pesquisa, André Ricardo analisa o período que compreende 1995 até 2011, totalizando 16
longas metragens lançados cujo tema central e/ou protagonista da história flertava diretamente
com a homossexualidade ou transsexualidade. Considerando personagens secundários, a
presença LGBT lançada em circuito comercial no cinema brasileiro deste período, subia para
31 produções.
Filme Ano de lançamento Diretor/a
O jardim das Folhas Sagradas 2011 Pola Ribeiro
Elvis e Madonna 2011 Marcelo Laffitte
Estamos juntos 2011 Toni Venturi
Rosa Morena 2010 Carlos Oliveira
Como Esquecer 2010 Malu de Martino
Do começo ao fim 2009 Aluisio Abranches
Meu Amigo Cláudia 2009 Dácio Pinheiro
Dzi Croquettes 2009 Tatiana Issa e Raphael Alvarez
Rainhas 2008 Fernanda Tornaghi e Ricardo Bruno
Onde andará Dulce Veiga? 2007 Guilherme de Almeida Prado
As filhas da chiquita 2006 Priscilla Brasil
Bombadeiras 2006 Luis Carlos de Alencar
Cazuza 2004 Sandra Werneck e Walter Carvalho
Vereda Tropical 2004 Javier Torre
Madame Satã 2001 Karim Aïnouz
Amores Possíveis 2001 Sandra Werneck
48
O Período posterior a esse mapeamento de André Ricardo Araújo Virgens, que engloba
os filmes realizados a partir de 2012, provavelmente é um dos produtivos, senão mesmo aquele
com maior exposição do cinema LGBT em termos nacionais. Filmes Crô- O Filme (Bruno
Barreto 2013), Somos Tão Jovens (Antônio Carlos da Fontoura 2013), Tatuagem – O filme
(Hilton Lacerda 2013), Hoje eu Quero Voltar Sozinho ( Daniel Ribeiro 2014) e Praia do Futuro
(Karim Aïnouz 2014) chegaram ao circuito comercial e, em alguns casos, (Crô – O filme e
Somos Tão Jovens) atingindo um público superior a 1 milhão de espectadores. Ainda pensando
em circuito comercial, os demais filmes atingiram a marca de 100 mil espectadores, com a
ressalva de Tatuagem não possuir dados oficializados à cerca da bilheteria.
De todo modo, para além do circuito comercial, o próprio Tatuagem – O Filme figurou
em 2014 nas principais listas de melhores filmes nacionais lançados naquele ano/ano anterior,
sem contar a participação e premiação em dezenas de festivais nacionais e internacionais. O
circuito de festivais abraçou não apenas os longas citados, como também uma outra infinidade
de filmes de todos os formatos e linguagens que falavam abertamente sobre as expressões da
sexualidade humana. A exemplo de A Cidade do Futuro (Cláudio Marques, Marília Hughes,
2016), A Paixão de JL (Carlos Nader, 2014) , Gazelle – The Love Issue (Cesar Terranova,
2014), Ralé (Helena Ignez, 2015) e TupiniQueens (João Monteiro, 2015)
É interessante também notar a presença de filmes realizados em contexto universitário ou
realizados por diretores recém-formados nas escolas de artes, cinema e audiovisual. Fato
remissivo à expansão do ensino superior promovido pelos governos Lula e Dilma: com a
abertura de novas universidades e cursos nas áreas de produção audiovisual, novos realizadores
puderam contar suas histórias sendo amplamente acolhidos pelos festivais, como é o caso de
Gustavo Vinagre, Leonardo Moura Matheus, Daniel Nolasco, entre outros.
Neste momento, a questão da representação, tanto em termos nacionais quanto em termos
globais, ainda se esbarra na questão do “homossexual padrão, branco, masculino e classe
média” presente, sobretudo, na TV. Contudo, o cinema, seja ficcional, documental ou
49
experimental, tem cada vez mais aberto os olhos às diferentes formas de se viver a sexualidade,
inserindo nos filmes contrapesos raciais, religiosos, etários e econômicos. Não se trata mais
apenas da simples presença de LGBTs na história, nem mesmo sobre apenas escrever suas
próprias histórias, para além disso, o cinema LGBT/queer contemporâneo busca, acima de tudo,
ser político e representativo em todas as esferas que não cabem apenas à sexualidade, mas tudo
o que dialoga com esses indivíduos. O contexto importa e a luta continua.
20
No original: Here’s a game to play: try to imagine what movies with gay and lesbians characters and plots
would look like if someone pulled out all the stops and then financed the visions. What if, just for a one glorious
minute, we tried to imagine the absolutely fabulous film we could see if “they” let us. What it would be? Isaac
Julien, the British filmmaker honored in 1998 by the Center for Lesbian and Gays Studies at the City University
of New York’s graduate center, says it would be “something cheesy about family. Cheesy because that’s what it
takes to get the queer audience to come out to see it. And about the family because that is the great unspoken
subject in queer culture, the site of trauma that no one has talked about. John Waters, devilish as usual
elaborates a fantasy: “All nude heterosexual Hollywood movie stars trying to win the Oscar by playing parts and
failing miserably” and Donna Deitch, still worshipped for her classic, Desert Hearts 1985, admits her own
preference up front: whatever the subject “better be hot”.
50
Luiz Nogueira, que em seu “Manuais do Cinema II: Gêneros Cinematográficos” (2010)
classifica a Ficção, Animação, Documentário e o Experimental como sendo essencialmente
gêneros fundamentais ao cinema, irá também elencar uma série de critérios que podem ser
utilizados para enquadrar um produto fílmico em determinada designação de gênero, sendo
estes: os pressupostos técnicos; o programa estético; as condições de produção; eleição de
certos temas; as premissas criativas; as prescrições discursivas; a configuração do formato; a
função comunicacional e, por fim, a matriz comercial.
Os pressupostos técnicos mais comumente podem diferenciar filmes amadores de grandes
produções que contam com recursos de computação gráfica e realidades virtuais, ou
indiscutivelmente apresentar as diferenças técnicas entre cinema de animação e cinema “live-
action”. O documentário, em especial, possui características que o permitem se distinguir da
ficção, sendo essas características parte de um programa que vai além da estética e cada vez
51
mais tem assumido novas vertentes e incorporando novos recursos incluindo a fabulação. As
condições de produção podem ser exemplificadas se tomarmos como exemplo o principal mote
de Glauber Rocha “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, que reflete a oposição das
vanguardas contra os grandes estúdios. O mesmo acontece se avaliarmos os aspectos da
produção universitária em contraponto à produção industrial.
A matriz comercial é um elemento determinante para a rotulação de um filme, não apenas
no que se refere ao filme publicitário propriamente dito, já que toda produção audiovisual
possui em maior ou menor grau um apelo à capitalização. Nesse sentido, o enquadramento de
um filme em x ou y categoria o coloca em contato direto com o público com o qual ele tem
maiores chances de rentabilidade.
medo, e até mesmo o final trágico do filme apontam para o tratamento clássico dado às relações
homossexuais no cinema, mesmo que o filme quebre alguns estereótipos representativos.
No segundo caso, podemos analisar os filmes que se desdobraram do caso Leopold e
Loeb 21
, dentre os quais se encontram Festim Diabólico (Alfred Hitchcock, 1948) e Swoon –
Colapso do Desejo (Tom Kalin, 1992). Mesmo que no segundo filme, o envolvimento sexual
de personagens principais seja escancarado e óbvio em detrimento de leves insinuações no filme
de Hitchcock, em ambas as releituras o foco é o crime cometido pelos jovens amantes, sendo
que a questão da homossexualidade se faz determinante apenas no que tange ao assassinato de
Richard Loeb na prisão. Contudo, considerando que as adaptações ficcionalizadas não possuem
real compromisso em retratar a história com total fidelidade, seria possível, e sem perdas
narrativas, que os protagonistas fossem vividos por um casal lésbico ou mesmo heterossexual.
Ao analisarmos dessa forma, portanto, estamos levando em consideração que mais
comumente os filmes são categorizados a partir do enredo, porém não iremos encontrar um
consenso na definição do que seria este cinema LGBT. Tendo como base a introdução de Queer
Images (Benshoff e Griffin 2006), Lacerda aponta:
No primeiro caso, vamos de encontro à maioria dos filmes citados no capítulo um e dois
deste memorial, onde até meados do século passado apresentavam, sobretudo por meio de uma
abordagem indireta, personagens homossexuais e transexuais que foram gradualmente, a partir
dos anos 70, ganhando espaço e uma pluralidade de abordagens.
No segundo caso, vamos de encontro principalmente aos conjuntos de filmes de autores
como Pier Paolo Pasolini, R W Fassbinder, Pedro Almodóvar e Karin Ainous. Ressaltando que
21
Leopold e Loeb mataram, Bobby Franks, um jovem de 14 anos, em 1924. O crime ficou conhecido por ter sido
motivado por uma necessidade de provar que eles eram intelctualmente capazes de cometer um crime
perfeito, tendo inspiração "a partir das idéias de Friedrich Nietzsche sobre o homem superior". O julgamento
se tornou um espetáculo da mídia, se transformando em inspiração para diversos filmes, livros e peças teatrais
53
os filmes englobados por este caso começam a ser produzidos a partir das vanguardas
cinematográficas, tendo como auge o advento do Novo Cinema Queer.
Num dos estudos mais célebres sobre a questão, Judy Garland and gay men,
Richard Dyer (1986) observa que a devoção dos gays à diva do cinema e da
música passava pelo compartilhamento de dois elementos específicos: da
condição de marginalidade em relação a certa norma – dos gays em relação à
heterossexualidade; de Garland em relação aos ditames do star system – e do
22
No Original: We don’t want to make the mistake of falling into that comfortable old victim box, complaining
of absence in the midst of presence. We are not invisible anymore. We can now write a queer cinematic history
that stretches way back. I can even celebrate a shining lineage of films that combines the creative spark that I
crave with the groundbreaking stories that audiences have love.
54
Centrar a definição de um filme enquanto LGBT ou não, tendo como base o público,
provavelmente seja a mais delicada e complicada forma de enquadrá-lo, tendo em vista que
definir a sexualidade de um diretor, roteirista ou atores em específico é uma tarefa muito mais
simples do que qualificar todo o público que terá acesso e interesse pela obra dirigida, escrita
ou encenada pelos elementos citados como exemplo.
Contudo, a audiência LGBT espera receber dos filmes basicamente o que a audiência
heterossexual espera, sentir-se entretida e representada por meio de filmes que imprimam
valores positivos e não apenas o velho estereótipo seguido de papéis secundários.
23
No original: Consider the state of “gay and lesbian” theatrical movies in United States before 1969. Arguably
there was no such thing, just a scattering of gay and lesbian directors, often closeted, making films that were
masquerading as mass-market heterosexual fare, albeit with the occasional gay or lesbian actor or subtle wink.
If characters were openly identified as gay or lesbian on screen, it was more often for a punch line or tragic
demise. George Cukor, Dorothy Arzner, James Whale: they were all about fitting in, not standing “out”. There
were instead gay and lesbian audiences that adopted certain films as their own, celebrated subtexts and coded
language, knew enough gossip to be able to identify gay and lesbian actors and actresses, and prided
themselves at being adept enough to read their own desires into the plots. The category was a relational one,
constituted by the interaction of viewers with films.
55
seguro para se expressar, ao contrário de todas as outras áreas de sua vida. A possível
homossexualidade da criança é pontuada por dicas sutis e não definidoras, como o fato de
Chiron se desenvolver melhor na dança do que nos esportes, um signo de representação bastante
comum, porém tratado de maneira delicada. O mesmo ocorre na sua relação com os outros
garotos da escola quando se nega a participar do processo de descoberta de seus corpos no
banheiro, por medo de dar indícios de uma sexualidade desviante da norma.
Em outros momentos, o “ser gay” na infância é pontuado de forma mais direta, seja pela
sequência onde a própria mãe de Chiron enfrenta Juan, questionando-o se já havia observado a
maneira como o garoto se portava, ou pela sequência em que Chiron pergunta a Juan o que é
“viado” (em inglês o termo utilizado é faggot), e Juan o responde que é um termo pejorativo
utilizado pra diminuir aqueles que são gays, afirmando que mesmo que Chiron fosse gay, ele
jamais deveria aceitar que alguém o classificasse pejorativamente. A criança rebate
perguntando “Eu sou Gay?”, e em um momento maduro, tratando-se tanto da idade do garoto
quanto da natureza da pergunta, então Thereza diz que na hora certa ele simplesmente saberá.
Na adolescência, Chiron se apresenta um pouco mais fechado. Neste momento do filme
Juan está morto, a sua mãe está cada vez mais afundada no vício, as agressões sofridas na escola
parecem ser constantes e as dúvidas em relação a si próprio aumentam exponencialmente. Não
há outra leitura às agressões sofridas por Chiron nesta fase senão por homofobia. Outro
momento emblemático dessa fase do filme é a cena em que o protagonista e seu amigo Kevin
se encontram na praia e após uma conversa franca e sincera sobre seus sentimentos, Chiron
deixa-se ser masturbado por Kevin. Esse momento é retomado na terceira parte do filme,
quando “Black”, ao reencontrar o amigo anos depois, afirma que: “Você [Kevin] foi o único
homem que me tocou na vida. O único. Eu nunca fiquei com alguém desde então”, essa é a
deixa para o momento mais sensual do filme, onde há toda uma tensão sexual e romântica entre
os dois personagens, não concretizada em cena.
Mesmo que esses momentos citados possuam um caráter importantíssimo na progressão
narrativa do filme, parte dos críticos e espectadores do longa adentraram na questão principal
deste capítulo, Moonlight: Sob a Luz do Luar seria então o primeiro filme gay a ganhar o Oscar?
Ou melhor, Moonlight: Sob a Luz do Luar é um filme gay?
[Moonlight: Sob a Luz do Luar] Deveria ser anunciado como algum tipo de
porta-bandeira para o Novo Cinema Queer, encorajador como seu sucesso
“mainstream” é para o movimento. Porque embora a descrição do filme de
uma sexualidade alternativa emergente seja lindamente articulada e modulada,
há um nível de cautela que permitiu sua aceitação mais ampla até o momento:
é um romance gay com nenhuma atividade sexual na tela além de uma
57
masturbação não vista. Esse pode ser um nível adequado de extremidade para
uma história ligada à repressão, mas é difícil imaginar um estudo igualmente
realizado, mais explícito das sexualidades não normativas entre os homens
afro-americanos que atenha alcançado tanta aclamação popular24 (LODGE,
2017)
É certo que o filme irá tratar da negritude e a sexualização do homem negro, mas desde
o início, em todas as três partes do filme, vamos encontrar a homossexualidade do personagem
como peça chave para narrativa. Se Chiron fosse heterossexual, me parece improvável que todo
o processo de autopunição da personagem iria se suceder da forma como se sucedeu, mesmo
que a marginalização do negro e do gay não se configurem em processos necessariamente
excludentes.
A principal crítica daqueles que não querem reconhecer “Moonlight” enquanto um filme
LGBT, é que o mesmo se diferencia em diversas questões da abordagem propostas pelos filmes
do Novo Cinema Queer, já que em nenhum momento propriamente dito, o protagonista se
assume enquanto gay explicitamente, confessando que anulou a própria sexualidade desde a
adolescência, quando foi tocado pelo amigo Kevin. Outras questões apontadas pela crítica é
que o filme apresenta uma versão não real do que é viver no “armário”, ou que o filme promove
uma busca pela normativa heterossexual exemplificada pela configuração física de Chiron na
vida adulta.
Contudo, se retomarmos se consideramos que o protagonista cresceu no subúrbio,
vítima de uma sociedade extremamente racista e homofóbica, — que força não apenas a
sexualização precoce, mas as hipersexualização dos homens negros—, que o protagonista
cresceu sem praticamente nenhum modelo “masculino” a quem seguir, (com exceção de Juan
– heterossexual que corresponde ao perfil do homem negro, forte, másculo) e que vivenciou um
período em um presídio – ambiente marginalizado e repleto por homens “valentes”, “duros”,
“destemidos”, “violentos”, “criminosos” —, podemos supor que Chiron carregará as marcas
dessas vivências, o meio em que ele cresceu não apresentava brecha para explorar a
sensibilidade, os afetos, o olhar “queer” do mundo.
24
No original: Nor should it be heralded as some kind of flag-bearer for new queer cinema, heartening as its
mainstream success is for the movement. Because although the film’s depiction of emerging alternative sexuality
may be beautifully articulated and modulated, there’s a level of cautiousness that has enabled its broader
acceptance thus far: it’s a gay romance with no on-screen sexual activity beyond an unseen handjob. That may
be an apt level of extremity for a story hinged on repression, but it’s hard to imagine an equally accomplished,
more explicit study of down-low sexuality among African-American men garnering quite as much popular
acclaim.
58
Moonlight: Sob a Luz do Luar não promove então, de forma alguma, a normatividade
heterossexual, ele apresenta como a existência de uma normativa que interfere nos sujeitos
dissidentes dentro de um recorte específico. A visão deturpada do que é viver no armário, é em
si, uma das críticas mais problemáticas, ao passo que não é possível definir de fato o que seria
viver “no armário”, já que hoje em dia discutimos homossexualidades e não mais
homossexualidade, o contexto de inserção do indivíduo é fundamental para entender o processo
de cada membro da comunidade LGBT.
Há no cinema LGBT lugar para filmes que universalmente tratam da experiência
homossexual, assim como também há lugar para experiências localizadas. Quanto mais
representações diversas de homo/transsexualidades chegarem ao cinema, o que felizmente tem
ocorrido, maior é o leque de possibilidades em termos de contatos com essas narrativas que
diferem o retrato LGBT de quase um século na história do cinema. Aqueles que utilizam o
Novo Cinema Queer na tentativa de invalidar a produção como um legítimo filme LGBT se
esquecem que o NCQ, antes de mais nada, propõe justamente uma diversidade maior de
histórias sendo contadas, de representações que rompam o estereótipo e de sujeitos particulares
com vivências singulares. É justamente isso que é oferecido por Moonlight: Sob a Luz do Luar.
Apenas a título de referência histórica, esse tensionamento entre negritude e
homossexualidade já havia sido expresso anteriormente em Línguas Desatadas (Marlon Riggs,
1989), sendo apresentado no documentário experimental o amor entre homens negros e
másculos, além de performances e críticas diretas a homofobia em filmes negros. O
documentário, controverso em seu lançamento, foi recentemente, em 2016, aclamado pela
crítica e pelo público no 30º Prémios Teddy, um dos mais importantes festivais voltados ao
cinema LGBT.
“Para mim, algo que não existe. A existência desse termo, me faz pensar que
também existe um "cinema hétero". Mas, dentro de todo o contexto social que
vivemos, acredito que seria uma tentativa de representar, dar visibilidade e
pensar. “
.
“É um cinema de embate, de confronto, que revela uma sociedade mais
diversa, ampla, anti-heteronormativa e não binária, inclusiva e injustiçada
culturalmente, politicamente, socialmente e que precisa sair da margem dos
preconceitos e fobias vivenciados diariamente.”
“É o cinema que inclui o universo LGBT com naturalidade, mesmo que não
seja o foco da produção em questão.”
“Em outras épocas, cinema LGBT (ou cinema temático, como costumava ser
chamado), era um rótulo muito prejudicial, para filmes em que havia alguma
relação lgbt como mote, mas hoje em dia é um conceito bastante diluído. Vejo
de forma positiva o fato de filmes sobre lgbts, ou dirigidos por, não terem
tanto destaque por estarem se tornando peças audiovisuais comuns e no
mesmo patamar de interesse que todas as outras. O caminho é longo, porém
possível.”
“Não saberia mencionar com precisão o que é cinema LGBT. Acredito que a
busca por filmes desse filão pode se dar de diversas maneiras. A um primeiro
olhar, penso obviamente em filmes que lidam ou tematizam diretamente
personagens e histórias de LGBTs. Mas talvez a ideia de LGBT possa ir além
da representatividade e incidir diretamente na forma do filme também,
provocando a criação de um olhar afetado, exagerado, frívolo, enfim,
construído a partir de eixos culturais caros para a afirmação das identidades
LGBTs. Por fim, talvez fosse importante pensar em filmes LGBTs do ponto
de vista da recepção também. Nessa acepção, filmes que se tornaram ícones
para nossa comunidade mesmo sem lidar diretamente com questões LGBT
poderiam ser levados em conta, a exemplo de O Mágico de Oz, Juventude
Transviada e Thelma & Louise, que estimularam leituras sobre libertação
queer por meio de personagens no limiar entre normativo e dissidente.”
“O cinema LGBT é mais uma outra porta de expressão e libertação que nossa
comunidade encontrou para lutar pelos seus direitos. O cinema é uma arte que
tem potencial de alcançar milhares de pessoas e espalhar a mensagem que
queremos.”
Que tipo de filmes e vídeos você quer? Isso Importa? Sim, importa. No mundo
do desejo e da evolução, nós podemos atravessar daqui para lá sobre a ponte
de nossas imaginações. Se nos limitarmos ao que vemos no espelho, estamos
perdidos, se tivermos medo de algo novo ou diferente, ou ficarmos
indiferentes a vídeos que desafiam nossas noções do universo homo natural,
ficaremos presos ao status quo. Se o público queer ficar longe do trabalho
polêmico e inovador, então os estúdios e distribuidores, aqueles que observam
a bilheteria como um sismólogo assiste a escala Richter, ficaremos
completamente de lado. E a comunidade queer será abandonada, condenada
ao universo estático, confortada apenas pelo conhecimento seguro que a terra,
infelizmente, não se moverá debaixo de nossos pés.25 (RICH, 2013, p.45)
25
No original: What kind a of movies and videos do you want? Does it matter? Yes, it does. In the world of desire
and evolution, we can only get from here to there over the bridge of our imaginations. If we limit ourselves to
what we see in the mirror, were lost, if we are scared of anything new or different , or made uneasy by films and
videos that challenged our notions of the homonatural universe, we’ll be stuck with the status quo. If queer
audiences stay away from controversial groundbreaking work, then the distributors and studios, those who
watch the box office like a seismologist watches the Richter needle, will pull out completely. And the queer
community will be abandoned, condemned to static universe, comforted only by the sure knowledge that earth,
alas, won’t move under our feet
62
26
Uma das definições de Indústrias Criativas surge com o documento intitulado Creative Industries Task Force
Mapping Document (2001) produzido na Grã-Bretanha. Considerando por Indústrias Criativas aquelas que
exercem “as atividades que têm suas origens na criatividade individual, habilidade e talento e que têm o
potencial para a criação de riquezas e empregos por meio da geração e da exploração da propriedade
intelectual.”
64
O primeiro dado, de forma mais ampla, reflete o consumo não apenas do cinema, mas
de indústrias como a musical, teatral e literária por exemplo. O segundo, de forma mais
especifica, é de extrema relevância se considerarmos que muitas vezes o rótulo de “Cinema
Gay” pode dificultar a inserção desse produto nos grandes circuitos de exibição, a TV por
assinatura possui a vantagem de ser fragmentada em diversos seguimentos, criando a
possibilidade de existências de canais específicos voltados para o público LGBT, como é o caso
da Logo, GayTV, OutTv, Pink Tv.
27No original: The 1980s was also the decade in which cable television arrived, providing an instant outlet in
the form of municipal public-access cable channels, where the works could be seen and come of age. The
invention of VCR machines and vhs tapes, now obsolete, was a revolution in distribution, putting film and video
for the first time on a par with books for ease of use. Then as now, technological changes could lead to social
and political transformations too.
65
aprofundado da população brasileira e seu perfil socioeconômico para entender que nesse
regime, boa parte da população LGBT periférica está excluída de ser entendida como potenciais
consumidores e integrantes do grande segmento do “pink money”.
Indo contra esse sistema e facilitados pelos avanços da tecnologia, como os celulares
com câmeras e filmadoras portáteis, vemos a possibilidade de criação de histórias surgirem em
todos os cantos, fazendo com que a periferia, o gueto, as comunidades periféricas também
possam gravar e exibir suas histórias, fazendo uso principalmente das plataformas digitais e de
alguns festivais como janelas de exibição. A grosso modo, esses filmes ainda possuem pouco
espaço para capitalização, mas com a visibilidade da internet os realizadores e elenco encontram
a chance não apenas de atingir o público, mas também, em alguns casos, de obter dividendos
por meio de plataformas como o Youtube e o Vimeo.
Ainda que não seja o caso específico desses filmes, a Netflix se tornou um caso
emblemático no quesito distribuidor de filmes online nos últimos anos. A plataforma em si, por
meio de uma categoria LGBTQ, demonstra interesse em dialogar com essa audiência, mas
acaba mais frequentemente por atender em seu catálogo ao padrão assimilacionista, com alguns
casos que fogem à regra principalmente se tratando da produção própria como Orange Is The
New Black, Unbreakable Kimmy Schmidt e Sense8. No Brasil, a empresa possui apenas dois
filmes nacionais nesta categoria: Hoje Eu quero Voltar Sozinho (Daniel Ribeiro - 2014) e Beira
–Mar (Filipe Matzembacher e Marcio Reolon -2015), ambos dramas juvenis sobre o processo
de se descobrir gay indo de encontro à primeira relação afetiva-romântica.
O caso específico de Hoje eu quero voltar sozinho é interessante no sentido de que o
filme, ainda que não seja necessariamente uma continuidade do curta Eu não quero voltar
sozinho (2010) (com o qual divide não apenas o mesmo diretor, mas o mesmo elenco e mesma
história, diferindo-se apenas na forma narrativa apresentada e na duração fílmica), possui nele
as raízes para sua existência. Lançado quatro anos antes, o curta-metragem teve participação
em mais de 70 festivais nacionais e internacionais, sendo premiado na maioria deles. Somado
ao destaque adquirido por meio das exibições em festivais, o filme contou com um vasto
marketing on-line, despertando interesse de investidores e patrocinadores, tornando assim
viável a produção do longa lançado em 2014.
Ainda que Hoje eu quero voltar sozinho seja um exemplo contemporâneo mais próximo
da nossa realidade, é preciso voltar ao Novo Cinema Queer dos anos 90 para entender não
apenas o crescimento na produção dos filmes LGBT, mas também como o rótulo gay nesse
aspecto se faz positivo, e como a aceitação e validação do público é fundamental para que haja
interesse das produtoras em investir na realização desses filmes.
66
7.2 Festivais
A internet é sem dúvida um dos mais importantes termômetros nos dias de hoje – porém
no início dos anos 90 eram os festivais que ocupavam esse lugar de destaque. Com o advento e
a rotulação do “New Queer Cinema”, os filmes voltados para o público LGBT adquiriam uma
espécie de “selo de qualidade”, a audiência neste momento criava interesse acerca do que estava
sendo produzido por essa nova “vanguarda cinematográfica”.
28
No Original: With the handy NQC tagline, films released over the next few years were able to get production
financing, festival play, distribution, and above all, a connection to their proper and even improper audiences.
They were unprecedented films and videos, crossing new borders in search of an updated queer vernacular.
29
No Original: The past two decades gave witnessed a phenomenal growth in the size and numver of film
festivals focused on gay, lesbian, bisexual, and transgender work and representation. The model of festivals as
political interventions playing to small self-selected audiences that predominated in the 1970s and the 1980s
has morphed into the large events of the 1990s, complete with corporate sponsors and huge audiences that
return annually and grow exponentially.
67
É preciso entender que um dos objetivos principais dos “festivais” deve se configurar na
criação de um espaço de produção e exibição de filmes que dialogam com a pluralidade de
sujeitos históricos e de suas subjetividades, elaborando um olhar crítico a respeito do contexto
social onde esses sujeitos estão inseridos. O intuito é de também entender os festivais para além
de seu lugar funcional, colocando-o como uma extensão política do circuito exibidor,
considerando, inclusive, que muitos deles são realizados com recursos financeiros
governamentais.
A política advém “quando aqueles que não tem tempo tomam esse tempo
necessário para se colocar como habitantes de um espaço comum e para
demonstrar que sim, suas bocas emitem uma palavra que enuncia algo do
comum e não apenas uma voz que sinaliza a dor” (Rancière, 2010, p. 21). A
cena sensível da política concerne, portanto, à distribuição e à redistribuição
das maneiras de fazer e de ser, e das formas de visibilidade. Se a arte pode
repartir de outro modo o comum de uma comunidade, isso ocorre na medida
em que ela desestabiliza a distribuição dos lugares e das identidades, dos
espaços e dos tempos, do visível e do invisível, da palavra e do barulho. Ela
reparte de outro modo a partilha do sensível até então estabelecida.
(GUIMARÃES. 2015, p.47)
metragens nacionais, dispostos em uma programação tão ampla e diversa quanto as identidades
que o festival busca representar. Não apenas o Mix Brasil especificamente, mas outros festivais,
como o Possíveis Sexualidades também incorporaram em suas programações ao decorrer dos
anos um link com outras vertentes artísticas, como o teatro, música e performance, justamente
por entender essa demanda vinda do público, interessado em dialogar com a maior variedade
de obras em um ambiente criado justamente para ser acolhedor, libertário, artístico, comunitário
e, acima de tudo, político.
Nova Dubai, intitulado como um drama pornô-terrorista, oferece uma leitura erótica e
gay do crescimento econômico brasileiro, criticando a especulação imobiliária por meio de uma
sátira pautada no sexo e na cultura do “hiperlink”, definida pelo diretor, em entrevista ao livro
O Cinema Que Ousa Dizer O Seu Nome (Lufe Steffen, 2016), pela lógica de “ir indo, de assunto
em assunto, com uma fluidez às vezes incompleta. [...] Nova Dubai é sobre ver tudo, o tempo
todo, e sobre o esvaziamento de poder ver tudo”. O média, que teve sua captação de recursos
realizada através de um site de financiamento coletivo, encontrou como barreira financeira não
apenas o fato de abordar diretamente a homossexualidade, mas principalmente por abordá-la
de forma sexualmente explícita.
70
Por meio de uma entrevista realizada com Ana Clara Ribeiro, representante da Luz
Mágica Produções, produtora e distribuidora responsável pelo filme Favela Gay, longa que
retrata o dia a dia dos membros da comunidade LGBT que vivem nas favelas cariocas,
obtivemos acesso aos seguintes dados: o filme foi exibido em onze festivais, dentre os quais
quatro ocorreram fora do Brasil, tendo sido premiado como melhor documentário pelo júri
popular do Festival do Rio de Janeiro (2014) e menção honrosa do Festival For Rainbow
(Fortaleza –CE 2014). Como muitos festivais não contabilizam formalmente o público, ou
quando sim, não repassam necessariamente a informação aos produtores e distribuidores, Ana
Clara Ribeiro também informou que não havia uma estimativa de espectadores disponível para
o filme, todavia, como foi realizado por meio de coprodução com o Canal Brasil, o filme é
exibido na tv ocasionalmente, o que reflete diretamente na expansão dessa audiência. Realizado
em um contexto independe, contando com o suporte de leis de incentivo fiscal, prêmios públicos
e alguns investidores, — formato mais comum nas produções brasileiras atuais — o filme vai
além do dia a dia dos LGBT’s que vivem na favela, e suas interseções diretas com o outros
signos do espaço tais quais tráfico, expansão das igrejas evangélicas e culturas periféricas. O
filme também apresenta questões comuns à comunidade LGBT, como a homofobia,
preconceito, aceitação da família e convívio social. Essa abordagem é fundamental para
assegurar a principal tese do filme, a de que a homossexualidade em si é não é diferente na
favela ou no asfalto. O diretor Rodrigo Felha, que reside na Cidade de Deus, revelou em coletiva
de imprensa realizada no Festival de Cinema do Rio De Janeiro em 2014 que, como morador
daquele espaço, sentia necessidade de registrar o cotidiano dessas regiões menos favorecidas
da cidade, levando inclusive a questão de representatividade para a produção do filme, já que
boa parte da equipe técnica residia nessas localidades. Enquanto o produtor do filme, o cineasta
Cacá Diegues, em entrevista ao portal G1 em 2014, apontou que devido aos temas favela e
homossexualidade como eixos centrais da narrativa, o longa “teve a dificuldade básica, que foi
a falta de recursos para fazer. Porque poucos investidores acreditavam e tinham a coragem de
71
entrar num filme com esse tema”, reforçando a ideia de que a comunidade LGBT ainda
permanece em um terreno rodeado por tabu e preconceito, refletindo diretamente na
distribuição desses filmes.
Neste mesmo esquema de financiamento por meio de editais e leis de incentivo à cultura,
Tatuagem- O Filme e Praia do Futuro se destacaram em seus respectivos anos de lançamento.
O Primeiro filme se passa em 1978, momento no qual a ditadura militar vigente no país começa
a dar sinais de esgotamento. Na periferia de Recife-Pernambuco, um grupo de artistas promove
espetáculos e ações de crítica ao poder. O “Chão de estrela”, como é chamado, é liderado por
Clécio, que conhece e se apaixona pelo soldado Arlindo, de 18 anos. Esse encontro entre dois
universos promove mudanças para ambos, sendo um filme sobre a liberdade e como o amor
pode ser revolucionário. Já Praia do Futuro conta a história do salva-vidas Donato e sua relação
com Konrad, um turista alemão que ele salva de um afogamento e por quem consequentemente
se apaixona, fazendo-o mudar para Berlim, interferindo na sua relação com seu irmão caçula.
Outro ponto que favoreceu Praia do Futuro em termos de audiência e bilheteria foi a
coprodução com a Alemanha, significando assim maior verba para divulgação do filme, que
obteve retorno de R$ 1,67 milhões em bilheteria, atingindo um público de 128.693 mil
espectadores, em contraste aos menos de 25 mil30 ingressos de Tatuagem – O Filme. Neste
ponto é preciso reforçar que ainda não há mecanismos eficazes e formais de contabilização do
público para filmes exibidos no país. Os dados da Agência Nacional de Cinema (ANCINE)
não contabilizam a audiência dos circuitos alternativos e dos festivais. O que neste caso, afeta
diretamente a mensuração do alcance de Tatuagem- O filme, que, como dito previamente,
obteve sua maior parcela de exibição em festivais.
No circuito comercial, por exemplo, devido a seu forte apelo referencial à cultura e à
cidade de Recife, estima-se que metade do público pagante do filme está localizada na capital
Pernambucana. Onde também tem sido produzido grandes filmes que se destacaram no cenário
nacional dos últimos anos, como Som Ao Redor (2012) e Aquarius (2016), ambos de Kleber
Mendonça Filho De todo modo, o relativo sucesso dos filmes, acarretou não apenas em
visibilidade para personagens e histórias LGBT, como também impulsionou carreiras de seus
participantes, o que é evidenciado pelo caso de Jesuíta Barbosa, que interpretou o soldado
“Fininha” em Tatuagem- O Filme e “Ayrton”, irmão da personagem de Wagner Moura em
Praia do Futuro. E pela popularização do cantor pernambucano Jhonny Hooker, personagem e
intérprete de uma das músicas mais emblemáticas de Tatuagem – O Filme. Ambos os filmes
foram lançados e distribuídos nacional e internacionalmente nos formatos de DVD, Blu-ray e
digitalmente, em plataformas de video on demand (VOD) como Amazon e iTunes.
Na outra ponta, em relação à Nova Dubai, temos o longa Somos Tão Jovens, uma obra
biográfica que conta história da juventude do cantor Renato Russo, vocalista e fundador da
banda Legião Urbana. Produzido pela Canto Claro Produções, produtora do próprio diretor do
filme, Antonio Fontoura. O fato de se tratar de uma biografia de um famoso expoente da música
brasileira é determinante para o alcance do filme. Assim como no longa Cazuza – O Tempo
Não Para (Sandra Werneck, Walter Carvalho, 2004), a homossexualidade dos artistas em
questão é apenas um detalhe das produções, que se detém mais em abordar a genialidade e obra
dos cantores, do que também o fato de serem gays. Somos Tão Jovens, com um orçamento de
6,4 milhões de reais, contou com a maior campanha de divulgação para um filme nacional
30
Dado informal e aproximado disponibilizado pelo site AdoroCinema , não há uma contagem oficial divulgada
pela produção do filme.
73
distribuído pela Imagem Filmes, segundo dados da própria distribuidora, conseguindo atingir a
sexta colocação entre as maiores aberturas do cinema nacional desde a retomada, totalizando
471 mil espectadores só no final de semana da estreia. Segundo dados da ANCINE, o filme
atingiu a 4ª colocação dos filmes brasileiros mais vistos em 2013 com um total de 1.03.776
espectadores.
da cadeia (produtiva, distributiva e exibidores) deve ser repensado no intuito de dissolver esse
pensamento polarizador das possibilidades de acesso aos filmes, nada disso é utópico se
considerarmos as exibições on demand de filmes “alternativos” em multiplex, mediante a venda
prévia de uma quantidade estipulada de ingressos pelo exibidor, evidenciando desse modo, que
a formação do público também é uma importante ferramenta para projeção comercial do nosso
cinema.
Se os critérios forem severos, podemos afirmar que o mundo tem apenas uma
década e meia de produção de filmes a respeito dos mais diversos aspectos
que envolvem a homossexualidade. O espaço de tempo é curto e certamente
ainda há muito o que desenvolver no que diz respeito aos filmes de gênero e
às complexidades de personagens gays. Se a nossa relação com o cinema
pressupõe um diálogo que contribui na nossa formação, essa produção
frequente torna-se ainda mais necessária. (SILVEIRA, 2011)
preferência, a não ser que tenham a chancela da Globo Filmes, por exemplo.
(VIRGENS, 2013)
A mostra insere-se no projeto mais amplo de se criar uma rotatividade e maior difusão
desses filmes, promovendo a integração de realizadores LGBT’s de modo a fortalecer um ideal
de comunidade plenamente representada, o que não implica em se fechar ao outro lado, mas
sim fortalecer artisticamente, ideologicamente, politicamente e até mesmo financeiramente (se
consideramos alguns festivais que oferecem prêmios em dinheiro somados a visibilidade). Os
festivais são manifestações políticas, funcionando como uma janela escancarada em seus
territórios de inserção por onde as histórias e inquietações da sociedade voltará para a mesma
depois de ser pensada pelos realizadores e repensada pelos curadores. O olhar do curador, nesse
sentido, deve ser um olhar crítico, antenado e em comunhão com as urgências representativas
e sociais.
diversidade sexual é tratada através de um viés político – terrorista em nossa mostra. Político
porque a mostra surge em decorrência das urgências políticas, em um cenário de crescente
conservadorismo, que assola o país e suas instituições, sobretudo no que tange às questões de
garantias de direitos e representatividade de minorias. Estamos falando de um país onde cerca
de um homossexual é assassinado a cada vinte oito horas e onde a expectativa de vida de uma
pessoa trans é inferior à metade da expectativa de vida de uma pessoa cis, segundo dados do
GGB – Grupo Gay da Bahia. E “terrorista” porque acreditamos que diante dos avanços sociais
já garantidos e diante da universalização da informação, não é mais possível que no mundo
atual seja necessário um diálogo didático para explicar e defender os direitos das minorias
representativas. É hora de ação direta, é hora de destruir as construções sociais que impedem
os avanços já adquiridos de serem acessados por todos.
Enquanto sujeitos, nosso corpo e nossas vozes se configuram como principal arma de
luta contra o sistema, e enquanto artistas que pensam e fazem cinema, acredito que unir estes
corpos e vozes em uma mostra é, por si só, um ato de luta e resistência. O cinema se configura
como uma potente ferramenta cultural e um importante agente de modificação social, ao retirar
da própria sociedade seu material base, cabe a ele deglutir e ruminar as questões inerentes ao
presente ou ao passado e devolver de forma crítica, a essa mesma sociedade, um novo olhar
sobre as questões ali tratadas.
Os 19 curtas selecionados foram exibidos em 3 programas diferentes, agrupados por suas
temáticas similares: Andarilhas, O Nome É Uma Coisa D_ Outr_, Entre Lugares: A
Invisibilidade Do Homem Trans, MARILAC, Luísa, Eu, Travesti? e Sem Títulos constituíam um
programa mais documental, apresentando questionamentos mais diretos, alguns com
intervenções sociais, outros com um questionamento próprio na busca por respostas diante
inquietações causadas pelas expressões de sexualidade e gênero. O que une Tu, Diana, Ontem
à Noite, Ovo de Colombo, Teu, Os Sobreviventes e O Amor Que Não Ousa Dizer Seu Nome é
o fato de que todos esses filmes perpassam o íntimo das personagens no que diz respeito ao
amor e suas relações sexuais e afetivas. Os tópicos família e aceitação social foram os
responsáveis pelo agrupamento dos curtas Coisa De Menino, Estrada Da Saudade, Familiar,
Um Estranho No Ninho, Hue e (Trans)parência no terceiro programa da mostra. Um quarto
programa foi adicionado com o título de “Sessão Especial: Desbunde” onde convidamos dois
curtas Ocaso e Urano para abrirem a sessão onde exibimos o média-metragem Nova Dubai
da personagem homossexual e transexual no cinema tendo como base os filmes propostos pela
curadoria. Após a concretização da mostra, durante os meses de junho e julho negociamos uma
parceria com o DACINE (Diretório Acadêmico de Cinema da UFPE) e a ANGÁ produções
traduzidas na figura de Igor Travassos para realização da mostra em Recife-Pe. E
posteriormente uma parceria com o Tintin Cineclube juntamente com a Cosmopopéia para a
realização da mostra em João Pessoa – PB. Para ambas as exibições, ocorridas em agosto de
2015, refizemos a curadoria, propondo uma versão menor dos filmes exibidos em Cachoeira,
na qual intitulamos de “Intinerância da Mostra”. Essa Intinerância, foi exibida em Pelotas-RS,
em dezembro de 2015, e em Bayreuth- Alemanha no mês de abril de 2016.
A situação que já era crítica, ganhou um agravante em 2016 com o processo golpista de
impeachment. O plano de governo responsável por tirar o país do mapa da fome, responsável
pela criação de novas universidades, responsável pela garantia de direitos e acesso a saúde,
educação e moradia à uma parcela populacional negligenciada por outros governos foi deixado
de lado por um novo projeto pautado no desmonte de direitos e de representatividade, com
ideias tradicionalistas e vulgares ao que se refere “moral” e aos “bons costumes”
O novo governo proposto e validado por uma banca ruralista, militar e evangélica possui
um perfil simples de descrever: masculino, branco, heterossexual, rico. Não há espaço para
78
diversidade, não há espaço para o diferente, o “Brasil: um país de todos e todas” deu espaço a
um país “deles” e nós ficamos na posição de “outros”, cujo o único poder e maior poder é ter
voz. Por isso, ao pensar em uma Mostra de Curtas LGBT estamos utilizando uma ferramenta
de combate ao sistema machista, patriarcal, racista e homofóbico. Estamos dando voz a uma
comunidade que necessita de amplificadores para ser ouvida. Estamos reconhecendo e
valorizando seus lugares de fala. Estamos dialogando com nossas urgências. Estamos
“humanizando” o “outro” desconhecido. Estamos conhecendo esses sujeitos históricos que
agora contam suas histórias seu o intermédio do “estrangeiro”.
O CINEMA
O cinema é uma arte que integra muita gente, seja pela forma de acesso, visual e auditiva,
ou mesmo pelo encantamento gerado ao estar em uma sessão de cinema. Por um lado, A
exibição de um filme por um momento retira o cidadão de sua rotina e o transporta para um
lugar onde se é possível esquecer dos problemas do dia a dia. Por outro lado, o esquecimento
não é o foco dessa mostra, mesmo contando com filmes lúdicos, nos valemos dessa arte para
suscitar questionamentos sociais e críticas acerca da maneira de como vemos e representamos
o outro, e acerca do nosso lugar enquanto comunidade no mundo.
aqueles sujeitos que valeram-se dos avanços tecnológicos, como a utilização de telefones
celulares, para registrar situações de mobilização e manifestações sociais neste conturbado
cenário político.
CONTEMPORANEO
NACIONAL
CURTAS
No cenário brasileiro atual, há uma forte tendência de reviver memória de ícones gays
assim como uma valorização dos personagens reais, ou seja, há um forte teor documental,
80
mesmo quando ficção, de passar informação por meio de uma tentativa de aproximação com o
público, humanizando e desmitificando a homossexualidade através da exposição dos tabus de
formas que possibilitam descontruir à ideia de anormalidade. Nos documentários, percebe-se
uma forte vertente no que se diz relacionado ao Transexual, sobretudo feminino. Também
iremos encontrar filmes em primeira pessoa, revelando o íntimo de seus realizadores, assim
como é comum documentários clássicos com entrevistas elucidando e apresentando questões
cotidianas da vida LGBT: família, escola, trabalho, se assumir e homofobia.
LGBT
Por toda a trajetória apresentada neste trabalho. Por todas as obras clássicas do cinema
queer. Por todo os predecessores. Por todos amigos perdidos para a violência e para a doença.
Por todos os jovens LGBTs. Pelo ideal de comunidade. Por visibilidade. Por ser uma ação
direta. E acima de tudo por direitos. Com o cenário de conservadorismo político e social,
homofobia,, dar visibilidade a diversidade sexual tem se tornando motivo de intensas lutas. É
preciso caminhar lado a lado com esse movimento social, dando força para que discussões
acerca da representação, bem como da repressão, ganhem destaque e assim contribua para a
diminuição do preconceito.
Antes de prosseguirmos, é preciso mencionar que após este primeiro período de inscrição,
divulgamos também uma segunda chamada entre os dias 9 e 20 de Maio de 2017. A soma desses
dois períodos de inscrições totalizou 55 submissões de curta metragens. Para além dessas
inscrições propusemos uma parceria com o projeto Cine Trans Territorial, obtendo assim acesso
a outras 25 obras inscritas no projeto.
A outra questão, de resposta livre, buscava delimitar em qual gênero especifico do cinema
(Drama, Ação, Comédia etc.) os filmes se localizavam? Contabilizando 19 gêneros fílmicos,
com expressiva maioria de filmes de Drama, com 23 inscrições.
83
Buscando entender também o perfil de produção desses filmes, tendo como referencial a
primeira versão da mostra, inserimos como questão a origem do filme, universitária ou não.
Mesmo abandonando o “universitária” do título da mostra esse ano, percebemos que ainda são
maiorias os filmes produzidos neste contexto. Esse fato foi também detalhado previamente
neste trabalho quando discutimos a expansão do cinema LGBT nacional promovido, também
em partes, por essa parcela da produção, alertando para presença e expansão de cursos de
cinema nas universidades do país como um importante centro produtor de filmes,
principalmente em curta-metragem. Isso é exemplificado no gráfico abaixo, onde se
questionou: “O filme foi produzido em contexto universitário?”
84
Por fim, uma análise em relação a comunidade LGBT: quais historias estão sendo mais
contadas? Que identidades são mais representadas? No primeiro ano da mostra muito se debateu
a respeito da invisibilidade lésbica, porém felizmente esse ano tivemos uma significativa
quantidade de filmes onde as mulheres e suas vivências enquanto homossexuais tiveram
destaque. O gráfico abaixo refere-se apenas aos filmes selecionados pela curadoria, nota-se uma
tentativa de igualar a representação da diversidade, porém indo de encontro a identidade
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Antes da Encanteria: Icó – Ceara | 2016 | 21'| Direção: Gabriela Pessoa, Lívia de Paiva,
Elena Meirelles, Jorge Polo, Paulo Victor Soares
Sinopse: Um magote de viada truando no meio do mundo. Desde 2013, o coletivo Chá das
Cinco realiza atividades culturais diversas em Icó, interior do Ceará. Engolidas pelo que
fizeram, devoram caminhos rumo à Lua.
Bixa Preta: Rio de Janeiro - RJ | 2016 | 4:51' | Direção: Coletivo Kbça D' Nêga
Sinopse: Segunda parte da Triologia das Bixas do Coletivo Kbça D' Nêga, Com a
performance de Felipe Pinto, um curta feito totalmente independente, de forma coletiva e sem
recursos. Com base na canção de Cazuza, exteriorizando uma parcela esquecida da população.
provar que a vingança é tão doce como jujubas e tão divertida e explosiva quanto o cinema de
ação
Ingrid: Belo Horizonte - MG | 2016 | 7 '| Direção: Maick Hannder Lima Porto
Sinopse: Uma mulher e seu corpo.
IRMA – Era uma vez no sertão: Recife - PE | 2016 | 20'| Direção: Camila Lapa e Lorena
Arouche
Sinopse: Numa cidade do sertão, Os Ferreira foram assassinados por um jagunço capataz, a
mando do dono da fazenda em que trabalhavam. 15 anos depois, uma estranha forasteira
chega na cidade.
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Jessy: Salvador - BA | 2013 | 15'| Direção: Paula Lice, Rodrigo Luna e Ronei Jorge
Sinopse: Jéssica Cristopherry! Assim se chamavam as personagens da infância da atriz,
dramaturga e mulher Paula Lice. Ela contará com as madrinhas para resgatar Jéssica e realizar
o desejo de ser transformista.
Maria Helena – A Mulher de todos: Goiânia-GO | 2015| 17'| Direção: Cristiano Sousa
Sinopse: Maria Helena é uma mulher desejada por todos... Explorada por seu cafetão
Marcelão, que deseja que a mesma realize filmes adultos, decide abandonar tudo em busca do
amor verdadeiro.
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Pele Suja Minha Carne: Rio de Janeiro - RJ | 2016 | 15'| Direção: Bruno Ribero
Sinopse: João toma banho após mais uma partida de futebol com seus amigos brancos
Queer: São Paulo - SP| 2016 | 12'| Direção: Ayume Oliveira e Felipe Lemos
Sinopse: Corpos falantes e um tela. Um mundo que acolhe performances e vivências outras.
Talvez o mundo como possa ser. O imperativo de um outro olhar, a possibilidade. Queer. Há
dentro uma tentativa de linguagem, um sussurro de existir, resistir. A voz de várias e infinitos
olhares dentro de uma viagem que sublima como cor tornando-se verdade por alguns minutos
em um reflexo que não passa de ilusão, de uma dança entre imagem e som.
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Santa Porque Avalanche: Fortaleza /Icó - CE | 2016 | 18'| Direção: Paulo Victor Soares
Pinheiros
Sinopse: Quatro amigos inscrevem-se no concurso da garota molhada, fogem e apaixonam-se
pela morte.
SUPER: Florianópolis - SC | 2017 | 18'| Direção: Maria Fernanda Bin, Lara Koer, Carol
Mariga e Viviane Mayumi
Sinopse: Em uma bela manhã Super acorda e se depara com uma doença misteriosa e
incontrolável. Sua vida se transforma em uma aventura repleta de desafios cômicos e
constrangedores. Com a força e amizade de outras garotas, Super descobre o poder que tem e
juntas enfrentam os perigos do cotidiano de uma forma completamente diferente.
O Corpo Nu, Diva e Jessy apontam caminhos para a descoberta de si através do olhar
dos outros, não de uma forma negativa, mas apontam caminhos para se repensar a própria
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O que pode ser compreendido pelo não dito, qual a necessidade real das palavras? Antes
da Encanteria abre a sessão contando uma história de era uma vez, a medida que o filme avança
as palavras vão se fazendo cada vez menos necessárias dando lugar a uma performance
imagética encontrada de forma mais feroz em Santa Porque Avalanche, filme que dá sequência
ao programa. A Outra Caixa brinca de forma crítica com os padrões de feminilidade, enquanto
Ingrid vai além nesse questionamento, expondo de maneira mais enfática que o gênero é um
construto social. Com Cru, que aborda a questão da solidão homossexual através de uma ótica
sensorial e erótica, o programa se conclui com o Queer que celebra a diversidade sexual por
meio de uma imersão na performance e no estudo do corpo como gerador potencial de discurso.
nome social como um direito incontestável, esse é o mote de Palloma. Em 1º de Julho, temos
a questão da inserção no mercado de trabalho como uma barreira a ser transposta, fazendo com
que muitas vezes a própria identidade tenha de ser negada para se encaixar no perfil do
empregado, felizmente a história apresentada nesse curta se apoia na força da auto afirmação e
na coragem da protagonista para sobrepor o medo e se afirmar enquanto transsexual.
PREPARA! aborda o dia ao dia de uma ONG que visa preparar travestis e transsexuais para o
vestibular, entendendo a educação como ferramenta de mudança de paradigmas. Por fim, Em
Defesa da Família temos um interessante olhar proposto por funcionárias do congresso
nacional, instituição que a priori deveria garantir os direitos dos cidadãos.
Shala apresenta a história de uma criança que é rejeitada em um processo de adoção por
não corresponder às expectativas de masculinidade do pai adotivo. O filme que abre a sessão
dá lugar ao curta O Chá do General que se baseia sobre os mesmos elementos de estereótipos
de gênero para apresentar a possível homossexualidade de um menino de 10 anos. A rejeição
que Pedro, protagonista de Shala, sofre também está presente em O Chá do General, mas neste
caso a rejeição da filha pelo pai faz com que este acabe abraçando e aceitando o neto. Pele Suja
Minha Carne possui o medo da rejeição como principal tormento do protagonista, que além de
homossexual vê sua negritude colocada em questão, pelo seu melhor amigo por quem se
apaixona e de quem acaba recebendo ofensas racistas e homofóbicas. O final aberto do curta
não deixa entendermos se o personagem se reclui mais ou a escrita do xingamento recebido no
espelho faz parte de uma autoafirmação, assim para a construção do programa somos inclinados
a pensar na segunda opção. Jessy, retoma a infância para a construção de uma persona Drag,
vivida por uma mulher cisgênera que conta com a ajuda de famosas drag queens da cena
soteropolitana. Essa relação entre mulheres cis e heterossexuais também é abordada em Diva,
com a mudança de Camila para uma pensão onde vivem outras três drag queens.
Sábado de Carnaval
Resumo: A vivência e o corpo homo/transexual em relação ao seu contexto social.
Este programa visa tecer entre os filmes incluídos uma perspectiva dos olhares.
Sábado de Carnaval introduz o programa mencionando o Carnaval,como um interessante
momento de mudança de visão, colocando o apoio família e determinação como motivadores
para superar a cegueira do preconceito. Maria Helena – A Mulher de Todos vai de encontro
aos olhares comuns e estereotipados em relação a prostituição, contudo o filme se desenvolve
de uma maneira cômica referenciando um dos grandes artistas da cena transformistas
brasileira João Carlos Castanha. Esse olhar trash é deixado de lado, pela câmera manifestante
e inquieta de Homorragia e Bixa Preta, questionando de maneira mais política a ocupação
dos espaços públicos e atraindo os olhares as urgências da comunidade gay. Ainda pensando
em espaço público o programa traz Plutão, que é uma imersão sobre a ocupação gay no centro
do Rio de Janeiro, e em seguida O Corpo Nu, que questiona o lugar de quem vê por quem é
visto.
Super conta uma história adolescente sobre super poderes e sobre como a união feminina
é ferramenta indispensável para a destruição do sistema machista e patriarcal. Essa destruição
é levada um pouco mais adiante na super produção faroeste-sertaneja Irma – Era Uma Vez No
Sertão, e em BRASXPLOITATION – A Rainha Negra, ambos os filmes apresentam mulheres
munidas de arma e coragem, em busca por vingança e preparadas para o combate. Janaína
Overdrive se vale da mesma proposta, representando uma transcyborgue em busca de burlar o
sistema para obter sua liberdade
A sessão especial trás o longa metragem Favela Gay, de Rodrigo Felha, para discutir a
marginalização dos corpos periféricos, apresentando um novo olhar sob o contexto de
vulnerabilidade social.
Referente a exibição, a ideia é que assim como a primeira versão, a mostra circule por
várias cidades por meio de parcerias estabelecidas com cineclubes e universidades. Havendo
diálogo aberto para levar a mostra aos municípios de São Paulo - SP, Viçosa- MG bem como
Cachoeira-BA.
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9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para entender a produção do cinema LGBT nos dias de hoje, se faz necessário buscar
ao longo da história desta arte um aporte referencial, a representação e presença intensamente
discutida neste trabalho só obteve avanços, considerando que seu percurso dialogou
diretamente com os movimentos sociais e suas lutas por lugares de fala e espaços ocupados.
Neste sentido realizar uma curadoria é também propor a existência desses lugares. A curadoria
surge então como importante ferramenta política.
Vindo do latim tutor (aquele que observa, guarda, cuida), o termo “curador” se refere
ao profissional responsável pela concepção, montagem e supervisão de uma exposição ou
evento artístico como no caso de uma mostra cinematográfica. É incumbência desses
profissionais tecer uma linha narrativa entre as obras expostas, valendo-se das singularidades
de cada obra que podem ser compartilhadas com outros objetos.
O diálogo entre obras é estabelecido primariamente a partir de suas congruências sejam
elas de caráter territorial/geográfico, autoral, estilístico, temático e temporal por exemplo. Essas
congruências no cinema permitem por exemplo a realização de Festivais como o “African Film
Festival Of New York” focado em filmes realizados no continente Africano, “Mostra de Filmes
Selecionados de Pedro Almodóvar” onde se estabelece um recorte dentro da cinematografia do
diretor, “Dança em Foco” festival internacional voltado exclusivamente para a vídeo-dança
entre outros.
Mesmo se apresentando como um tímido e pouco teorizado campo de estudo, e quando
sim, geralmente se refere aos campos de artes plásticas e museologia, a curadoria em relação
ao cinema é um conceito inquestionável no fazer e pensar filme. Desde os campos da produção
e criação que já visa a veiculação do filme em festivais por exemplo, até campos mais
específicos como o da montagem, preservação e crítica.
É inerente às competências de um curador, pensar a relação entre as obras, mas também
a disposição que elas chegarão ao público – e isso consiste em montar um display, montar um
programa. Essa atividade se relaciona analogicamente com a função do montador, se tomarmos
como exemplo o experimento do cineasta russo Lev Kuleshov fundamental para entender a
importância da montagem como essencial ao cinema. O Efeito Kuleshov propunha a criação
significado entre dois planos em sequência, a alteração de um desses planos implicava também
na alteração da relação subjetiva que o espectador estabelecia com essas imagens. Porém, se no
efeito russo a ideia partia de planos que isoladamente não possuíam qualquer sentido, ao se
relacionar com a curadoria, vemos esse experimento expandido, como encadear planos (filmes)
em sequências (programas) dando sentido a eles? E qual é esse sentido?
100
Retomando a ideia do termo “curador” como aquele que guarda, aquele que cuida,
podemos associar a curadoria também às questões relativas à preservação do material artístico,
curar nesse aspecto também significa assegurar a criação de uma memória tendo como base
determinado conjunto fílmico.
Pensando nessas questões, inferimos que mesmo não usual o debate da curadoria em
território teórico-academio está em expansão assim como o próprio termo. O que se faz falta é
uma estruturação da questão, ela existe, está colocada, e não é de hoje, festivais de cinema
existem desde 1932 quando o primeiro deles tomou lugar em Veneza- Itália, se tornando anual-
regular a partir de 1943, isso significa que a função existe desde a primeira metade do século
passado considerando apenas o cinema. No Brasil, impulsionados a partir dos anos 60, e
multiplicados a partir dos 90, temos um vasto catalogo de festivais que vão desde os mais
prestigiados como os de Gramado, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Tiradentes até pequenos
festivais que ocorrem em presídios no interior do país.
Tendo em mente essas questões, a Mostra de Curtas LGBT surge com uma proposta
curatorial política de estabelecer leituras a temas discutidos socialmente provocado assim novos
olhares à comunidade LGBT, humanizando, desmitificando, rompendo com o tabu.
Especialmente associando LGBT ao sentido de arte, cultura, vida, força e coragem. A Mostra
de Curtas LGBT também se propõe a atender as novas reivindicações no que tangencia a
cultura, estética e política, estando consciente do que Amaranta César (2017) irá propor como
ascenção de sujeitos históricos
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Por fim, a II Mostra de Curtas LGBT promove a catalogação da produção LGBT nos últimos
anos no Brasil com o intuito que perpassa a exibição. O registro dessas obras é importante
material histórico de luta e militância, afirmando a presença homossexual na produção
cinematográfica fazendo com que posteriormente alguém tenha acesso às discussões tecidas
sobre a homo/transsexualidade durante os primeiros anos do século XXI.
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Cesar Guimarães
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