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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

RAÍ GANDRA MOREIRA

Mostra de Curtas LGBT


Curadoria e Análise: A presença e representação da
personagem LGBT no cinema

Abril/2016
Cachoeira- Bahia

RAÍ GANDRA MOREIRA

Mostra de Curtas LGBT

Este memorial é parte integrante do produto técnico Mostra de Curtas


LGBT, pré-requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em
Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia- UFRB..
Orientadora: Profª. Dr.ª Amaranta César

Abril/2017
Cachoeira- Bahia
RAÍ GANDRA MOREIRA

Aprovado em ___/ ___/ ___

BANCA EXAMINADORA

________________________________________
Profª Drª. Amaranta Emília Cesar dos Santos (Orientadora)
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia- UFRB

________________________________________
Profª Drª. Ana Paula Nunes de Abreu
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia- UFRB

________________________________________
Profº Drº. Danilo Silva Barata
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia- UFRB

Conceito final: _____________


Dedico este trabalho a todas LGBTerroristas vivas ou mortas.
Dedico este trabalho a Henrique.
AGRADECIMENTOS

Certa vez RuPaul Charles disse que nós, enquanto comunidade LGBT, temos de
escolher nossa própria família. Para muitos de nós essa escolha se impõe de forma assombrosa
e atormentadora como sendo a única opção: reinventar-se e fazer dos amigos sua família.
Historicamente a família é um direito que enquanto comunidade muitas vezes nos é negado,
por isso agradeço a todas as minhas famílias.

Acima de tudo, agradeço aos meus pais, Marinete e Nilton, por todos ensinamentos,
pela paciência e dedicação. Agradeço pela aceitação e pela amizade, por representarem uma
base e por me darem de presente meu irmão, Caio, a quem também agradeço.
A minhas avós e a minha madrinha.
Agradeço aos meus amigos-irmãos, Ana Clara, Barbara, Gabriel, Indyra, Juliana,
Louise e Rodolfo, por estarem do meu lado enquanto, juntos, ainda descobríamos toda nossa
potencialidade e por continuarmos juntos enquanto ainda há muito por ser descoberto.
Agradeço também à família que se formou em Cachoeira:
Minhas irmãs Cirlla e Flora, por morarem comigo e saberem como eu sou.
Agradeço a Baga, Camila Camila, Erica, Michelle.
Pela parceria e incentivo na construção da I Mostra Universitária de Curtas LGBT, e
pela amizade e cuidado agradeço a Ohana.
Agradeço a Ruddyally, Wendell e especialmente Maíra, por dividir comigo um
mergulho em águas rosas. “Chova”
Agradeço a Wesley, por ser “Pro” e estar comigo na escrita do meu curriculum.
Agradeço aos LGBTerroristas Antônio, Ana Lua, Carlos, Gilvânia, Hená, Léo, Lucas,
Mariana, Paloma ,Reifra, Renan, Roberta, Romulo, Ru Bi, Rwolf, Silvio, Simone, Tatá,
Thamires e Yuri, pela mais importante e viva experiência de set, e, Samir pelo apoio.
Agradeço a Ricardo.
Aos meus professores Angelita Bogado, Adriano Oliveira, Claudio Manoel, Cyntia
Nogueira, Daniela Matos, Marcelo Matos, Marina Mapurunga, Neila Maciel, Roberto Duarte e
Sílvio Benevides;
Em especial Ana Paula e Danilo Barata
Por toda a paciência eu agradeço a minha orientadora Amaranta, sei que não sou fácil
mas tampouco foi fácil essa etapa, obrigado de coração por me fazer entender que era preciso
colocar a cabeça no lugar e os pés no chão, de fato, obrigado por me orientar para além da
academia.
Agradeço também a Jéssica, Líbano, Roberta, Talitha e Tia Sandra por completaram
minha família baiana e me fazerem sentir em casa em Salvador ou Cachoeira.
To my exchange family Giulio, Huda, Isaac, Jeanne, Nadine, Martina and Valentina,
my friends of the heart, to whom I can never thank enough... always. Because in those days
when we walked openhearted in the world, we managed to make it the best place to live, even
when it was seventeen degrees below zero, had a “back” hostel or an undrinkable beer.
To Iwalewa Haus team, my house in Bayreuth.
Antes de me despedir da Bahia, agradeço ainda à minha família da SUPAI, que entrou
em minha vida logo na reta final e me ajudou a manter a calma e os pés no chão, por isso
agradeço Alice, Ana, John, Júlio, Lene, Vanessa, Vitor e em especial a melhor chefe: Renata.
Agradeço aos amantes com as palavras de Pier Paolo Pasolini “A paixão jamais obtém
perdão e tampouco os perdoo eu que só vivo de paixão.”
Por fim, agradeço aos cineastas que tanto me inspiraram nessa caminhada e são parte
fundamental para a construção deste trabalho: Bruce La Bruce, Derek Jarman, Pedro
Almodóvar, Pier Paolo Pasolini, R W Fassbinder e Todd Haynes. Como também aos cineastas
que confiaram seus filmes para a construção desta mostra, meu muito obrigado.
“Sendo esmagado pela normalidade e pela
mediocridade de qualquer sociedade na qual ele viver, o
artista é uma contestação viva. Ele sempre representa o
contrário da ideia que todo homem em toda sociedade
tem de si mesmo.”

Pier Paolo Pasolini


RESUMO

Este memorial consiste na trajetória de pesquisa e produção de uma curadoria que resulta na
segunda edição da Mostra de Curtas LGBT. A pesquisa visa apresentar um panorama da
presença e representação de personagens LGBT’s ao longo da história do cinema, desde os
primeiros experimentos fílmicos até o mais recente ganhador do Oscar de melhor filme:
Moonlight:Sob a Luz do Luar (Barry Jenkins, 2016). Traçando um caminho da produção
nacional em paralelo com a produção global e os movimentos sociais, a pesquisa busca também
definir o que é o cinema LGBT e seu potencial de distribuição e exibição. Por fim, apresenta
uma curadoria de curtas-metragens que traz a temática LGBT como forma de visibilidade e
resistência política.

Palavras- Chave: Curadoria; Representação; Resistência LGBT


ABSTRACT
This memorial consists of the research and production of a curatorship resulting in the second
edition of the LGBT Short Film Festival. The research aims to present an overview of the
presence and representation of LGBT characters throughout the history of cinema, from the
first film experiments to the most recent Oscar winner for best film: Moonlight. Tracing the
path of Brazilian production in parallel with global production and social movements. Research
also aims to define LGBT cinema and its distribution and exhibition potential. Ultimately, it
presents a curatorship of short movies that should work as a tool of political resistance and
visibility incensement for the LGBT community.

Keywords: Curatorship; Representation; LGBT Resistance


LISTA DE SIGLAS

SISU – Sistema de Seleção Unificada


MEC – Ministério da Educação
CAHL- Centro de Artes, Humanidades e Letras
UFRB- Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
SUA – Semana Universitária do Audiovisual
CA-Coletivo Acadêmico
CACAU- Coletivo Acadêmico de Cinema e Audiovisual
PET – Programa de Educação Tutorial
NQC- Novo Cinema Queer
SUMÁRIO

1. APRESENTAÇÃO 12
2. INTRODUÇÃO: O movimento LGBT como um importante aliado na busca por
uma maior representação. 15
3. A PRESENÇA E REPRESENTAÇÃO LGBT NO CINEMA MUNDIAL: Um Panorama 21
4. UM OLHAR SOBRE A PERSONAGEM LGBT NO CINEMA NACIONAL ATÉ OS ANOS 90.
30
5. NOVAS FORMAS DE REPRESENTAÇÃO: O NOVO CINEMA QUEER E O CINEMA DE
RETOMADA NO BRASIL 37
6. O QUE É UM FILME LGBT? 49
6.1 Gêneros Fílmicos: 49
6.2 Cinema LGBT/Queer é gênero fílmico? 51
6.3 Análise de Caso: Moonlight: Sob a Luz do Luar 54
6.4 Concepção de Cinema LGBT para a curadoria 58
7. DISTRIBUIÇÃO DE FILMES LGBT’S 60
7.1 Pink Money e Novas Tecnologias 61
7.2 Festivais 66
7.3 Análise de Casos 69
8. II MOSTRA DE CURTAS LGBT 74
8.1 I Mostra Universitária de Curtas LGBT 75
8.2 Bandeira política Justificativas, Recortes 77
8.2.1 Bandeira Politica 77
8.2.2 Das escolhas estruturais. 78
8.2.3 Como o Recorte se apresenta. 80
8.3 Inscrições: Processos e Dados 81
8.4 Filmes Selecionados 85
8.5 Texto Curatorial e Programas 93
8.6 Divulgação e Exibição 98
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS 99
10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 103
12

1. APRESENTAÇÃO
Em 2012, ainda sem conhecer Cachoeira, ou mesmo o Recôncavo da Bahia, através do
SISU, me matriculei no curso de Cinema e Audiovisual da UFRB, uma universidade até então
desconhecida para mim e que se tornou símbolo de entrega, luta e aprendizado. Assim como os
amigos que fiz no curso, em sua maioria jovens como eu, recém saídos do ensino médio,
Cachoeira se tornou o cenário de grande amadurecimento.
Ainda que entusiasta do cinema, tendo acompanhado a carreira de vários diretores e astros
dos filmes, minha formação prévia à universidade se deu boa parte relacionada ao teatro, onde
comecei a ter um contato mais efetivo com a produção cultural, indo para além de campo de
espectatorialidade. Apesar da insegurança que representava sair de casa e me jogar em uma
universidade nova, num curso ainda não aprovado pelo MEC e em uma cidade desconhecida a
mais de mil e duzentos quilômetros de casa, não demorou muito tempo para que eu me
conectasse com a rotina do curso e de Cachoeira.
Foi no decorrer dos primeiros semestres e das primeiras produções, propostas como
exercício, que me aproximei com maior intensidade do que Ricciotto Canudo veio a definir em
2012 como a sétima arte em seu Manifesto das sete Artes. Neste cenário, a cidade também tem
um importante papel, seja pela densidade demográfica, por sua rotina e tradições, ou até mesmo
pelos seus cartões postais, esta foi responsável por possibilitar que quase todas as relações de
trocas de afetos, criatividade e trabalho se dessem de maneira bastante intensa.
Em determinado momento do curso ouvi de Roberto Duarte, professor com quem tive
contato nas disciplinas Oficina de Textos e Direção de Atores: “Não trate um exercício proposto
em sala de aula como se fosse a obra da sua vida, porém sempre trate um exercício proposto
em sala de aula como se fosse a obra da sua vida”. Essa dualidade entre exercício e obra me
fez perceber a importância de sermos profissionais e tratar qualquer produção com o máximo
de responsabilidade e respeito aos profissionais envolvidos, ainda que protegidos (ou não) pela
aura do “cinema universitário”.
Foi durante o curso, através diversas disciplinas, como Linguagem e Expressão
Cinematográficas I e II, Direção, Direção de Atores, Roteiro I, Montagem II, que fui
experimentando, pesquisando e descobrindo coisas novas, sobretudo tendo contato com novas
filmografias e modos de produção. Nessas disciplinas produzi meus primeiros exercícios.
Contudo, este trabalho de conclusão de curso se deve principalmente aos seguintes
componentes curriculares: Cinema Mundo II: onde comecei a desenvolver minha pesquisa em
relação ao cinema queer e seus principais expoentes como Derek Jarman, Todd Haynes e Bruce
La Bruce. Documentário I/ II, Gêneros do Documentário e Novas Tendências do Documentário:
13

onde estreitei minha relação até então distante com essa potente vertente do cinema. E também
Antropologia, Gênero e Sexualidade: por me apresentar correntes do pensamento analítico e
crítico no que tange, sobretudo a questão da sexualidade humana e sua diversidade.
No avançar dos semestres e das matérias passamos pela constante indecisão de balancear
nossos interesses próprios com as disciplinas obrigatórias, no meu caso não posso deixar de
mencionar a importância que foi entender um pouco melhor sobre como funcionava a matriz
curricular por meio do processo de aprovação do curso pelo MEC. Tendo participado de um
momento que envolveu esforços dos alunos, professores, coordenadores e gestores da
universidade em prol de um projeto no qual, naquele momento, eu já me encontrava
completamente imerso devido a minha aproximação com o movimento estudantil.
Através da Semana Universitária do Audiovisual (SUA), tive a possibilidade de exercer
aquilo que sempre acreditei, cinema é contato, e se cada profissão tem seu material especifico,
o material de um realizador em cinema e audiovisual é o material humano e suas experiências.
Com a SUA tive contato com estudantes de todo país e foi graças ao primeiro encontro nacional
em Niterói, em 2013, que me senti motivado a ajudar a (re)construir o coletivo acadêmico de
cinema e audiovisual da UFRB (CACAU).
Tivemos uma gestão de um ano. Nosso principal objetivo era a realização de um encontro
regional, que não foi concretizado por questões de verba. Ainda assim, todo o projeto foi escrito
e desenvolvido pelos membros do CACAU e da Comissão Organizadora durante três meses de
pré-produção.
Outro projeto com o qual me envolvi durante três semestres da graduação foi o Programa
de Educação Tutorial (PET), grupo de pesquisa, ensino e extensão, que desenvolve atividades
em diversas frentes. Foi no estabelecimento de redes de contato, pensamento em meios de
produção e distribuição que me concentrei, tendo me dedicando especialmente às questões de
articulação estudantil nas universidades do nordeste. Através do PET participei da realização
do encontro da REDE Nordeste de Cinema Universitário, durante o Festival de Cinema
Universitário de Alagoas, em Penedo-AL. Na ocasião, contamos com representantes de todos
os estados da região nordeste, além de realizar e exibir uma curadoria dos produtos fílmicos da
UFRB.
Minhas experiências no PET e no CA, combinadas ao meu encantamento com a SUA,
me conectaram a uma rede de estudantes envolvidos com a ideia do cinema universitário
enquanto força potente e inovadora, tanto no que diz respeito ao conteúdo, quanto aos métodos
de produção. Foi neste período que realizei a primeira edição da Mostra Universitária de Curtas
14

LGBT, exibida em Cachoeira – BA, Recife – PE, João Pessoa – PB, Pelotas – RS e Bayreuth,
na Alemanha.
Através de um intercâmbio acadêmico passei um semestre em Bayreuth, onde, além de
expandir meus horizontes acadêmicos, pude ter contato com diversas culturas e pessoas que
trouxeram conteúdos singulares para agregar à minha edificação enquanto estudante e sujeito.
Dentre as atividades realizadas na universidade alemã, destaco duas como indispensáveis: a
primeira delas foi a disciplina “Sing, Text, Context – Reading Derrida As A Midea Theory”,
oferecida pelo mestrado de Estudos e Práticas de Mídia, durante a qual tive contato com a
produção do teórico argelino radicado na França. A segunda atividade, e provavelmente a mais
relevante, foi minha aproximação com Iwalewa Haus, instituição da Universidade de Bayreuth
que funciona como museu, centro de artes, cultura e pesquisa em África. Essa aproximação foi
facilitada pela professora Nadine Siegert, quem me possibilitou desenvolver trabalhos com
artistas de diversas nacionalidades, bem como acompanhar outras dezenas de trabalhos sendo
desenvolvidos.
Retomando as disciplinas cursadas na UFRB, é importante ressaltar aqui, sobretudo
devido ao conteúdo do desenvolvimento deste trabalho, as cadeiras de documentário assumidas
pela professora Amaranta César. Ainda que a primeira disciplina de documentário tenha sido
ofertada pelo professor Marcelo Matos, responsável por despertar uma curiosidade a cerca
desses filmes, foi nas disciplinas e atividades propostas por Amaranta Cesar em Documentário
II, Gêneros do Documentário e Novas Tendências do Documentário que eu pude de fato me
aproximar e me inserir nesta produção.
Neste momento foi possível abrir novas janelas para o pensar e fazer fílmico, descobrindo
o documentário como um rico e possível campo cinematográfico, através das suas mais plurais
expressões, conteúdos e formas. Sobretudo, as correntes contemporâneas do documentário
despertaram em mim um desejo e curiosidade pungente, saciada por meio da pesquisa e
realização experimental na área.
Essa aproximação com o documentário teve como fruto a possibilidade de integrar o
painel de júri jovem do CachoeiraDoc, festival no qual participei três anos, em diferentes
funções (em 2014, com a exibição do curta Quando Rosa Virou Azul, na mostra Kekó; em 2015,
como júri jovem e em 2016, como monitor).
Entre os filmes realizados no período do curso, destaco os curtas-metragens Quando Rosa
Virou Azul (2014), realizado como parte da disciplina de direção de atores e que circulou por
mais de 10 festivais nacionais, e Curriculum Vitae (2015), avaliado pela disciplina Novas
15

Tecnologias do Audiovisual e que também contou com circulação nacional incluindo o festival
Mix Brasil.
Em ambos os filmes desempenhei as funções de direção, roteiro, produção e montagem.
Contudo, a tarefa mais difícil era definir em qual categoria cinematográfica estes filmes se
encontravam: Documentário, Ficção ou Experimental? Uma dúvida constante quando
preenchia uma ficha de festival, questão cuja resolução faz com que eu retome a importância
das disciplinas de documentário.
Quando Rosa Virou Azul é um documentário poético encenado, e que funciona em forma
de vídeo-carta à um amigo que se perdeu no mar. Trata-se de uma despedida e uma homenagem
à memória de alguém próximo. Curriculum Vitae é um documentário performático, que brinca
com os clichês do “curriculum” e com a necessidade de se encaixar em determinado padrão
para entrar no mercado de trabalho, sendo também uma analogia direta ao próprio gênero
cinematográfico.
No campo da curadoria, exerci a função de assistente de curadoria da Mostra Corpo-
Imagem, parte do projeto Narrativas em Fluxo, no qual objetivava analisar os modos
discursivos — procedimentos influenciados por condições de produção, condições de
interpretação e condições do discurso — na relação entre corpo, performance e expressão
videográfica. Sendo finalizado na publicação de um livro, Narrativas em Fluxo (Danilo Barata
2016), acompanhado por um DVD contendo os filmes da mostra.

2. INTRODUÇÃO: O movimento LGBT como um importante aliado na busca


por uma maior representação.
Os primeiros registros relacionados à defesa pública de LGBT’s enquanto política de
naturalização datam do século XVII, quando o escrito inglês Thomas Cannon, em 1749,
publicou Ancient and Modern Pederasty Investigated and Exemplify'd, um texto bem humorado
que argumenta que o desejo em si era uma força da natureza, pertencente ao homem, e por esse
motivo sua sexualidade não poderia ser considerada anormal. Na época, a homossexualidade
era crime não apenas na Inglaterra, onde a punição se configurava em pena de morte por
enforcamento, mas em todo o mundo.
Publicado quase 200 anos após escrito, em 1785 o reformista social Jeremy Benthan
escreveu o que se tem hoje como o primeiro argumento propondo uma mudança nas leis que
condenavam a homossexualidade. Benthan irá defender que a homossexualidade era um crime
sem vítimas, nesse caso, portanto, não merecedor de acusações criminais, pois todas as atitudes
populares contra a homossexualidade pautavam-se em um preconceito irracional, perpetuados
16

sobretudo pelas instituições religiosas em uma época onde o termo homofobia ainda nem se
quer era pensado.
A revolução francesa, que se tornou símbolo de toda uma mudança de paradigma social,
pautada nos princípios iluministas e tendo como um dos resultados a declaração dos direitos do
homem e do cidadão, foi também território para que a homossexualidade fosse descriminalizada
pela primeira vez em um código de leis nacionais em 1791. Pouco se avançou, porém na
aquisição de direitos pelos LGBT’s no século seguinte, apenas em 1870 que vemos surgir na
Inglaterra e posteriormente em 1901 na Alemanha, os primeiros grupos organizados em prol do
movimento LGBT. Esses grupos, que ganharam maior destaque e presença a partir da Segunda
Guerra Mundial, onde o nazismo foi responsável pela morte não apenas de judeus como
também perseguiu e assassinou cerca de 300 mil homossexuais. Países como Inglaterra, França,
Alemanha, Holanda e países escandinavos demonstravam que o perfil dos homossexuais era
composto por brancos, classe média e intelectuais, acusados pelos movimentos contemporâneos
por deter um discurso assimilacionista1 em relação a sociedade heteronormativa.
Nesse sentido, tomaremos a madrugada de 28 de Junho de 1969, como o início do
movimento LGBT que conhecemos até hoje, com valores muito mais próximos dos ideais
liberacionistas2 que assimilação, contudo, essa dualidade, como veremos no decorrer do texto,
permeia todo o processo de luta nas aquisições de direitos e de representatividade, sobretudo
no cinema, que é o foco deste trabalho.
Antes de adentrar propriamente no movimento de liberação gay, iniciado em Stonewall,
é preciso conceituar movimentos sociais:

São ações coletivas de caráter sociopolítico, construídas por atores


sociais pertencentes a diferentes classes e camadas sociais. Eles
politizam suas demandas e criam um campo político de força social na
sociedade civil. Suas ações estruturam-se a partir de repertórios criados
sobre temas e problemas em situações de: conflitos, litígios e disputas.
As ações desenvolvem um processo social e político-cultural que cria
uma identidade coletiva ao movimento, a partir de interesses em
comum. Esta identidade decorre da força do princípio da solidariedade
e é construída a partir da base referencial de valores culturais e políticos
compartilhados pelo grupo. (GOHN, M. G, 1995, p. 44)

1
Tratamos Assimilacionismo neste trabalho como as correntes que preconizam a absorção de valores
hegemônicos, reproduzindo normativas objetivando a aceitação social através de apagamento das diferenças e
reforço das similaridades.
2
Liberacionismo se refere as correntes que preconizam o rompimento com os valores hegemônicos, negando
as normativas e promovendo a liberdade individuo por meio da valorização da diversidade em dentrimento da
homogenia.
17

Stonewall Inn era um dos bares redutos de homossexuais na Christopher Street, em Nova
York. Ainda que seus frequentadores já estivessem habituados às usuais batidas policias que
ocorriam no local, nas primeiras horas do dia 28 de junho de 1969, deu-se início a um violento
confronto entre LGBT’s e a polícia, se tornando o mais importante evento do movimento
moderno de liberação homossexual na busca por direitos.

Quando a libertação gay chegou, veio de mãos dadas com os filmes. A


legendária batalha de Stonewall começou na noite de 27 de junho de
1969. Foi o dia em que o funeral de Judy Garland acontecia no Casa
Funeral Frank e Campbell Uptown, que havia ficado aberta na noite
anterior para acomodar a multidão em luto que se esmagava em filas ao
redor do quarteirão esperando para ver o caixão e oferecerem adeus a
sua diva. Garland era um ícone gay, e é fácil imaginar que na noite de
Judy, lésbicas duronas, rainhas afeminadas e fabulosas travestis não
aceitariam receber qualquer bullying pela polícia que rotineiramente
realizava batidas aos bares gays. Por Judy, eles lutariam em reação. E
naquele momento, e nos dias de confronto na rua que se seguiram, uma
nova era nasceu. E com ele, um novo cinema. (RICH, 2013, p. 5)3

A relação com Judy Garland é controversa. Sylvia Rivera, ativista trans e drag queen
creditada como a primeira pessoa a atacar diretamente os policias, dando assim início à revolta,
assumiu que na noite do dia 27 não sairia de casa devido a sua tristeza causada pelo funeral da
atriz, tendo mudado de ideia depois. Bob Kohler, em entrevista ao livro de David Deitcher the
Question of Equality: Lesbian and Gay Politics in America Since Stonewall (1995) afirma:
Quando as pessoas falam sobre a morte de Judy Garland tendo muito a
ver com o motim, isso me deixa louco. As crianças da rua enfrentavam
a morte todos os dias. Eles não tinham nada a perder. E não podiam se
importar menos com Judy. Estamos falando de crianças com quatorze,
quinze, dezesseis anos. Judy Garland era a querida de meia-idade dos
gays da classe média. Fico chateado com isso porque banaliza tudo.
4
(DEITCHER, p. 72.)

3
No original: When gay liberation arrived, it came hand in hand with the movies. The legendary Stonewall Riots
started on the night of June 27, 1969. It was the day of Judy garlands funeral at the Frank E Campbell Funeral
Home Uptown, which had stayed open previous night to accommodate the crush of weeping mourners in lines
around the block waiting to view the casket and bid their idol goodbye. Garland was a gay icon too, and it is easy
to imagine that on Judy’s night, butch dykes, nelly queens, and fierce trannies were not to take any bullying by
the police who routinely raided gay bars. For Judy, they fought back. And in that moment, and the day of street
fighting that followed, a new era was born. And with it, a new cinema.
4
No original: When people talk about Judy Garland's death having anything much to do with the riot, that makes
me crazy. The street kids faced death every day. They had nothing to lose. And they couldn't have cared less
about Judy. We're talking about kids who were fourteen, fifteen, sixteen. Judy Garland was the middle-aged
darling of the middle-class gays. I get upset about this because it trivializes the whole thing .
18

Stonewall, portanto, assume para o movimento LGBT um papel de protagonismo e


destaque, assim como vários movimentos sociais que emergiram nos anos 60, como os Panteras
Negras, Feminismo e o Movimento Anti-Armamentista, disseminaram suas ideias provocando
mudanças sociais em todo o globo. Como resultado de Stonewall, diversos gays saem das
sombras e começam a se expressar publicamente em oposição às prisões e atuação policial
contra a comunidade LGBT. São criadas as paradas do orgulho gay, com o intuito de dar
visibilidade à comunidade em prol de agenciamento de políticas públicas e combate à violência.
Se antes dos movimentos catalisados pela batalha de Stonewall, a militância e ativismo
LGBT eram criticadas pelo seu caráter assimilacionista, vemos surgir no início dos anos 70
uma nova fase dessa militância e ativismo, tanto no perfil quanto na estrutura. Desta vez, o
movimento passa a integrar as necessidades e discursos lésbicos e transexuais, indo além dos
tópicos prioritários à parcela “G”. Deste modo, vemos o movimento migrar da assimilação para
a liberação.

Para os grupos da época, a ideologia heterossexual seria a principal


responsável por limitar práticas sexuais, expressões de gênero e formas de
relacionamento a um único padrão: entre homem e mulher, dentro de uma
relação monogâmica estável e com papéis e comportamentos específicos
reservados a cada um dos envolvidos. Dessa forma, ela sufocaria outras
vivências a partir de noções de doença, anti-naturalidade, anormalidade e
imoralidade. (LACERDA, 2015, p.13)

Obviamente, essa mudança de paradigma e percepção vai à frente dos avanços obtidos
pela produção cinematográfica LGBT da época, nesse sentido, começam a ser debatidas
questões para além da presença ou não dos personagens em tela, mas principalmente suas
funções.

A história da representação de lésbicas e gays no cinema mainstream é


politicamente indefensável e esteticamente revoltante. Pode haver muitos
personagens gays flutuando pelas telas atualmente, (...) A visibilidade gay
nunca foi realmente uma questão nos filmes. Os gays sempre foram visíveis.
É a forma como eles são mostrados que permanece ofensiva por quase um
século. 5(RUSSO, 1981, p. 325)

No Brasil, o movimento ativista começa a ganhar um corpus de maior visibilidade a partir


da fundação do Somos – Grupo de Afirmação Homossexual, e do lançamento da revista

5
No original: The history of the portrayal of lesbians and gay men in mainstream cinema is politically
indefensible and aesthetically revolting. There may be an abundance of gay characters floating around on
various screens these days. (...)Gay visibility has never really been an issue in the movies. Gays have always
been visible. It’s how they have been visible that has remained offensive for almost a century.
19

Lampião da Esquina, ambos relacionados às figuras de João Antônio Mascarenhas e João


Silvério Trevisan, autor do livro Devassos no Paraíso, de 2000, que apresenta um vasto e
importante estudo centrado na homossexualidade masculina brasileira, da colônia até os dias
atuais.
Assim como o Somos, outros grupos foram formados ao redor do mundo com o objetivo
de discutir a perseguição e discriminação contra LGBT’s, fortalecer politicamente a
comunidade e funcionar com um grupo de apoio para os membros. Contudo, a importância e
influência destes grupos em determinado momento acabou por frear o movimento liberal, dando
uma guinada para a luta em prol do reconhecimento da comunidade LGBT como uma minoria
legítima. Essa busca então por reconhecimento acarretou na marginalização de algumas práticas
e identidades menos assimiláveis, provocando assim uma nova onda de ativismo
assimilacionista. Esse momento vai de encontro ao início da epidemia do HIV/AIDS, cuja
eclosão foi amplamente divulgada como atrelada à comunidade LGBT, chegando a ser
noticiada como “o câncer Gay”.
A AIDS, e suas milhares de mortes provocadas em todos os continentes nos anos 80, de
algum modo, ainda que assustador, foi responsável também por aumentar a visibilidade da
população LGBT. Diante das urgências geradas pela crise, a doença também mobilizou essa
população em prol não apenas de pressionar entidades governamentais em busca de respostas
e assistência, mas, sobretudo, mobilizou os LGBT’s em torno de uma comunidade de
solidariedade, luto e esperança.
Em um Public Speaking (2010), de Martin Scorsese, Fran
Lebowitz diz algo que eu nunca ouvi ninguém dizer antes: A Aids
não apenas matou os melhores artistas de uma geração, mas
também o melhor público. É uma verdade óbvia que me persegue
enquanto penso sobre a geração e suas vozes perdidas6 (RICH,
2013, p.13)

É impossível dissociar a homo arte dos anos 80 e seus grandes nomes, da doença.
Expoentes da cultura gay e da cultura de massa como Amanda Blake, Cazuza, Derek Jarman,
Gia Carangi, Freddie Mercury, Keith Haring, Klaus Nomi, Renato Russo entre vários outros.
Passada a segunda fase do movimento LGBT contemporâneo, que englobou os anos de
1984 a 1992, estando indissociável ao momento da Aids, vemos em 92 uma maior diversidade
de grupos e organizações LGBTs surgindo em todo o mundo, desde grupos comunitários,

6
No original: In Martin Scorsese’s Public Speaking (2010), Fran Lebowitz says something I’ve never heard
anyone say before: AIDS didn’t just kill the best artists of a generation, but also the best audiences.
20

passando por setoriais de partidos, grupos acadêmicos e até mesmo igrejas inclusivas. Esse
momento é, então, tomado como o surgimento da terceira onda do movimento LGBT, que
perdura até os dias atuais. Nesse período, o foco da comunidade se dirige às políticas públicas
de acesso a direitos e saúde, além do reconhecimento enquanto sociedade.
Nesse momento também são diferenciados os sujeitos da sigla LGBT, reconhecendo que
lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais possuem demandas específicas, relativas à
representatividade, segurança, saúde, acesso à cultura e educação e outras questões de direito.
E são essas demandas especificas que possibilitaram também a maior variedade de produções
audiovisuais, tendo como marco o NCQ, iniciado em concomitância com a terceira onda. Em
termos representacionais, não é mais possível falar em um cinema gay, mas sim em um cinema
muito mais plural, que engloba e representa a todos os indivíduos não heterossexuais.
Em amplo aspecto, tendo como parâmetro os quase 120 anos de história do cinema,
veremos nos capítulos seguintes que uma maior representação e presença de personagens
LGBT’s nos filmes datam exatamente da edificação do movimento LGBT iniciado em
Stonewall. A partir dos anos 60 e principalmente nos anos que se seguiram à liberação LGBT
iniciada em 69, vemos surgir os primeiros filmes marcos da cinematografia não heterossexual.
Nos anos 80, durante a crise da AIDS e da segunda onda, temos uma queda na produção causada
também pela mudança de foco dos realizadores para as urgências da comunidade, ao mesmo
tempo em que os filmes do período também remetem por associação ou dissociação à doença.
. Outro aspecto do período é também fortalecido pelo ideal de que todas as letras da sigla LGBT
compõem uma grande família, a terceira onda dos anos 90, como já dito, foi acompanhada pelo
surgimento do Novo Cinema Queer, que promoveu uma pluralidade maior de representações a
cada uma das identidades LGBT’s.
Avançando, o Novo Cinema Queer, e também os novos direitos adquiridos pela
comunidade LGBT desde os anos 90, fez com que lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transexuais obtivessem cada vez mais espaço nas artes e mídias, seja na televisão, teatro,
internet e principalmente no cinema.
Por esses motivos apresentados, não podemos desconsiderar os movimentos sociais
promovidos pela parcela LGBT da sociedade, pois além de possuírem reflexo nas artes, são
eles próprios modificadores de paradigmas e realidades, as artes e o cinema se valem, ao mesmo
tempo que divulgam, esses novos olhares, se retroalimentando constantemente.
Após o panorama da representação e presença da personagem LGBT no cinema mundial
e nacional, nos momentos que precederam e procederam ao advento do NCQ, proponho um
debate acerca da adjetivação do cinema LGBT. Como definir essa produção? O que torna um
21

filme LGBT? Essas questões são tratadas no capítulo seis. Em seguida, apresento uma análise
sobre distribuição e acesso à esses filmes, dando enfoque aos diferentes modelos de produção
que tencionam a questão “filmes comerciais” e “filmes de festivais”.
Sigo no desenvolvimento da pesquisa tecendo alguns comentários acerca da função do
curador, concluindo o trabalho com a proposta de curadoria da II Mostra de Curtas LGBT.

3. A PRESENÇA E REPRESENTAÇÃO LGBT NO CINEMA MUNDIAL: UM


PANORAMA

A presença de personagens homossexuais e transgêneros no cinema pode ser apontada já


nos primeiros experimentos fílmicos, como é o caso do curta The Dickson Experimental Sound
Film, de William Kennedy-Laurie Dickson, um dos funcionários da produtora de Thomas
Edson, rodado em 1895. O curta, que apresenta dois homens dançando ao som de um violinista,
ficou amplamente conhecido como The Gay Brothers, devido à uma análise realizada pelo
historiador do cinema, Vito Russo, em seu livro The Celluloid Closet (1981). Mesmo que a
tomada não apresente nenhum elemento que vá além do simples ato da dança, o título da
produção, proposto por Russo, dá indícios de dois possíveis caminhos: o primeiro deles é
assumir que os homens envolvidos na dança sejam realmente irmãos heterossexuais, logo, o ato
de dançarem juntos é utilizado com objetivo cômico, já que estariam assim “perdendo” sua
masculinidade ao “insinuarem” ser um casal, enquanto a outra possível leitura é entender a
sequência como uma versão mais tênue do que podemos considerar como homo erotismo. É
importante ressaltar que na época da gravação do filme o termo "gay" não era comumente
utilizado como sinônimo para homossexual, mas como sinônimo de “alegre”, e que dado o teor
da música tocada pelo violinista, que trata da vida no mar sem as mulheres, há uma grande
chance de que ambos os homens sejam marinheiros que dançavam juntos justamente pela
ausência das mulheres. De todo modo, não deixa de ser a primeira gravação em vídeo onde dois
personagens do mesmo sexo dividem uma atividade vista como "afetiva/sexual".

Em termos de pioneirismo, muito das relações apresentadas na tela do cinema tangendo


as sexualidades dissidentes se estabeleciam de forma sutil, dificultando apontar com absoluta
convicção qual foi o primeiro filme a apresentar, de fato, uma personagem homossexual.
Todavia, há estudos, incluindo o de Vito Russo (1987) eu cito lá em cima, precisa citar outra
vez?,, - que se configura como um dos primeiros e mais importantes estudos sobre a presença
e representação do homossexual no cinema -, que colocam o filme alemão Diferente Dos
22

Outros, de Richard Oswald lançado em 1919, como um dos primeiros a abordar o tema com
uma maior profundidade. Na produção, Conrad Veidt interpreta um violinista que se apaixona
por um de seus alunos, tendo como fim trágico o suicídio. Enquanto na hegemônica Hollywood,
cabe ao filme Ló em Sodoma (James Sibley Watson; Melville Webber, 1933), 14 anos depois
de produção alemã, o título de primeiro filme “gay” dos Estados Unidos da América, baseado
na famosa passagem bíblica que posteriormente receberá uma releitura por Pier Paolo Passolini:
Sodoma e Gomorra.

Outro caso marcante e pioneiro neste período é o primeiro vencedor do Oscar de Melhor
Filme, em 1927, Asas, de William A. Wellman. Cabe ao longa o primeiro beijo entre dois
homens registrado pela indústria do cinema. Nele, os atores Buddy Rogers e Richard Arlen
representam dois pilotos de guerra que, apesar de amigos, são rivais na disputa pelo amor da
mesma mulher, interpretada por Clara Bow. O beijo ocorre quando o personagem de Richard
está em seu leito de morte e o amigo chega para tentar salvá-lo, ao mesmo tempo em que
também se despede. Nem a totalidade da sequência, muito menos o beijo propriamente dito,
chega a apresentar um grau sexual ou erótico. Porém, se tomarmos como exemplo uma análise
do autor norte americano Kevin Sessums, na qual ele afirma que nenhum dos dois personagens
“demostravam tanto amor por ela (Mary Preston, personagem de Clara Bow), como eles
demostravam um para com o outro”, poderemos perceber uma possível inclinação à
bissexualidade dos personagens.

Nesse período que abrange os primeiros experimentos, como o citado The Gay Brothers,
até o início dos anos trinta, muitos dos filmes que apresentaram personagens homossexuais o
fizeram de duas formas: a primeira, e menos comum, era uma representação bastante
“maquiada” ou, se podemos assim dizer, “encubadas” em oposição ao segundo caso, que
dominou expressivamente a forma como a homossexualidade era mostrada no cinema até o
início dos anos 90 – uma representação pautada no escracho e alívio cômico, ou seja,
completamente estereotipada

É importante nesse ponto fazer uma diferenciação entre os estereótipos apresentados para
homossexuais homens (gays) e homossexuais mulheres (lésbicas). Em termos quantitativos, os
gays apareciam muito mais nos filmes, justamente pelo fato de que sua forma estereotipada
flertava diretamente com o humor, principalmente se um homem apresentasse traços de
feminilidade ou se vestisse de mulher, por exemplo. Enquanto o perfil lésbico menos comum,
usualmente ocupava o lugar nebuloso do mistério e da dúvida, sendo inclusive socialmente mais
23

aceito por estar inserido em um contexto machista e fetichista, a exemplo do filme Marrocos
(Josef Von Sternberg, 1930), no qual Marlene Dietrich, que interpreta uma cantora, aparece em
cena vestindo um smoking sem que a vestimenta a impeça de manter sua postura de Femme
Fatale, quando inesperadamente beija nos lábios uma das mulheres da plateia, provocando
homens e demais mulheres ali presentes.

Muitas vezes, a relação entre duas mulheres é considerada uma fantasia


sexual masculina e talvez isso faça com que a aceitação, pelo menos por
homens, de um casal lésbico, seja menos complicada do que um casal
homossexual masculino. (ANTUNES, 2011, p.14)

Se a representação já era frágil nessa primeira fase do cinema, a questão irá se complicar
ainda mais com a instauração do chamado Código de Hays, adotado pelos estúdios no início
dos anos 1930, um documento que subordinava as produções teatrais e cinematográficas a uma
série de valores relacionados à “moral e aos bons costumes” da família tradicional norte-
americana. Com forte influência religiosa e apoiada por diversas instituições que ameaçavam
boicotes às produções que ousassem a burlar as regras, o código previa sanções e censuras
temáticas às situações que envolvessem beijos de língua, cenas de sexo, sedução, estupro,
aborto, prostituição, escravidão (de brancos), nudez, obscenidade e profanação.

Mesmo que a homossexualidade não tenha sido citada diretamente, ela certamente se
encaixaria para os censores no tópico de “obscenidade e profanação”. O código, que vigorou
até os anos 50 e perdeu gradualmente sua força nos anos 60, fez com que a presença
homossexual e transexual nos filmes fosse praticamente inexistente. Nesse período é evidente
o esforço de produtores e roteiristas para criar passagens e sequências sutis que passassem
discretamente pelos censores, porém é neste mesmo período que temos a primeira mudança na
forma como os personagens homossexuais serão apresentados. Do estereótipo cômico
passamos para a figura do ressentimento e do segredo, sendo criado o novo estereótipo dos
vilões amargurados, não românticos, não sexuais, solitários e geralmente fadados a um final
trágico.

Em Festim Diabólico (1948), Alfred Hitchcock conta a história de dois jovens intelectuais
que cometem um assassinato na tentativa de provarem pra si mesmos que eram superiores à
vítima e à justiça, porém não é necessário ir muito longe para entender que os amigos eram na
verdade amantes, tanto que os personagens foram baseados no caso real envolvendo o casal
Nathan Leopold e Richard Loeb, que sequestraram e assassinaram um garoto para provarem a
24

si mesmos que eram capazes de cometer um crime perfeito. Hitchcock já havia abordado o tema
em Rebecca (1940), que em português ganhou o subtítulo a mulher inesquecível, deixando em
aberto a questão: “para quem a personagem título era inesquecível?”, dando vários indícios do
desejo que a governanta da casa sentia por sua ex- patroa.

Claro que este cenário está levando em conta o cinema mainstream /Hollywoodiano, pois
neste mesmo período é possível notar em outros países e até mesmo nos cinemas independentes
dos Estados Unidos um tímido, porém gradual avanço na busca por uma maior
representatividade nas telas. Esse avanço vai ser evidenciado de forma mais concreta se
tomarmos como exemplo a produção europeia no cenário pós Segunda Guerra Mundial.

Em termos cronológicos e de desenvolvimento técnico, o cinema europeu sempre


caminhou próximo à realidade norte americana, ocupando também um papel de importância na
história mundial do cinema. É justamente quando o código de Hays começa a perder a força em
Hollywood que o continente europeu retoma sua produção, freada durante os anos de guerras,
dando início em todo o continente, principalmente em países como Alemanha, França, Itália, e
Reino Unido às chamas vanguardas cinematográficas, que se popularizaram a partir dos anos
60. Como vimos a produção de uma nova representação das homossexualidades e
transsexualidades também irá caminhar também em comunhão com os movimentos sociais
ativistas que começam a ganhar força, sobretudo nos anos 70.

Exemplificando a produção europeia, que abrange o período das vanguardas até o advento
do chamado Novo Cinema Queer, há um conjunto de filmes que trata da temática homossexual
de forma aberta, resinificando o lugar desses sujeitos. Em Meu Passado Me Condena (Basil
Dearden, 1961), Dirk Bogarde dá vida ao advogado Melville Farr, que após o suicídio de seu
amante arrisca sua carreira e casamento, confrontando uma rede de chantagem que ameaça
expor a vida secreta de homossexuais para o mundo em uma época em que homossexualidade
ainda era crime não só na Inglaterra, mas em vários países do mundo. Sendo uma das primeiras
vezes que o termo “homossexual” é usado diretamente em um filme.

Na França um novo cinema também estava em construção. O filme


homossexual mais perdurável deste período foi Un Chant d'Amour
(1950), de Jean Genet. Baseado em memórias da prisão e de seus
regimes eróticos, configurando-se em uma grande influência sobre
Todd Haynes e outros. O público de massa poderia virar-se para o
cinema de arte europeu, com sua longa tradição de cineastas e filmes
abertamente gay. O Leopardo (1963) e Morte em Veneza (1971) de
25

Luchino Visconti e Teorema (1968) de Pier Paolo Pasolini


influenciaram uma geração. A lesbianidade ainda era um estímulo para
os gostos voyeuristas - As Corças (1969), de Claude Chabrol, ou
O Conformista (1970), de Bernardo Bertolucci - filmes que
rapidamente foram adotados por uma faminta audiência lésbica. Se
insinuações e vislumbres era a realidade da época, bem, as audiências
gays e lésbicas estavam acostumadas a ler por entre os quadros (RICH,
2013, p. 4-5) 7

Pier Paolo Pasolini, diretor abertamente homossexual e que irá imprimir em seus filmes
temas ligados à sexualidade de maneira revolucionária, torna-se uma das principais e primeiras
referências na produção de um “cinema gay”. Em Teorema (1968), Pasolini apresenta a
homossexualidade como arma de liberação contra a opressão da família burguesa. Decameron
(1971), Os Contos de Canterbury (1972), As Mil e Uma Noites (1974) e Saló Ou Os 120 Dias
de Sodoma (1975) são outros exemplos da filmografia do diretor, que trará a homossexualidade
ou questões diretamente ligadas à sexualidade em um lugar de destaque tanto narrativa quanto
esteticamente.

Na Alemanha, outro diretor abertamente homossexual e com uma extensa filmografia que
irá de encontro com as questões sexuais, se torna igualmente relevante enquanto referência para
esse estudo: Werner Fassbinder, que assina As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant (1972),
Num Ano de Treze Luas (1978), Querelle (1982), entre outros.

Na França, A Gaiola Das Loucas (1978, Edouard Molinaro), comédia baseada na peça
teatral de mesmo nome, escrita por Jean Poiret, traz a história de um casal gay composto por
Albin e Renato, dono e principal atração drag queen de uma boate, e toda a confusão gerada
em torno do casamento do filho de Renato com a filha de um importante e ultraconservador
político do país. O filme, que até 2014 se mantinha na décima posição de maiores bilheterias
estrangeiras nos Estados Unidos, ganhou, devido ao seu sucesso, duas continuações francesas,
uma em 1980, dirigida também por Molinaro, e outra em 1985, sob a direção de Georges

7
No original: In France too a new cinema was under construction. The most enduring gay film of this period
was Jean Genet’s Un Chant d’Amour (1950). Based on memories of prison and is erotic regimes, it would be a
major influence on Todd Haynes and others. More mainstream audiences could turn to the European art
cinema, with its long tradition of openly gay filmmakers and films. Luchino Visconti’s The Leopard (1963) and
Death in Venice (1971) and Pier Paolo Pasolini’s Teorema (1968) influenced a generation. Lesbianism was still a
fillip for voyeuristic tastes – Claude Chabrol’s Les Biches (1969) or Bernardo Bertolucci’s The Conformist (1970)
– yet films were the currency of the time, well, gay and lesbian audiences were used to reading between the
frames.
26

Lautner. O filme ganhou ainda um remake Hollywoodiano em 1996, dirigido Mike Nichols,
contando com estelas como Robin Williams e Nathan L nos papéis principais.

Contudo, outros filmes europeus também se sobressaíram na forma como abordavam a


temática e desenvolviam o enredo. O clássico Persona (1966) talvez seja um dos mais
importantes filmes da carreira de Ingmar Bergman, trazendo a história de uma atriz que sofre
uma crise emocional no palco, ficando muda e assim recebendo em sua casa de praia os
cuidados de uma enfermeira que busca entender a razão do seu silêncio. Há na trama um forte,
mas tácito, apelo lésbico, em parte evidenciado pelo próprio nome que o filme recebeu ao ser
lançado no Brasil em um contexto de ditadura: Quando Duas Mulheres Pecam. Styricom
(Frederico Fellini, 1969) e Calígula (Tinto Brás, 1979) também foram filmes dirigidos por
grandes diretores heterossexuais que se configuraram como marcos da segunda metade do
século XX. O crítico e autor americano Tyler Parker irá definir Styricom como um dos mais
profundos filmes gays de toda a história.

Em contra mão às grandes produções europeias e seus importantes nomes na


cinematografia mundial, temos também um avanço significativo na produção "underground” e
“independente’, filmes que irão abordar a homossexualidade de uma maneira mais crua, livre
dos filtros ou das “dicas e sutilezas” presentes nos filmes de vanguarda. A exemplo dessa
produção temos o documentário/ensaio ficcionalizado de Praunheim, Não é o homossexual que
é perverso, mas a sociedade em que ele vive (1971), feito e endereçado à comunidade Gay da
época como um manifesto contra a cultura da assepsia, alienação e assimilação dos ideias
burgueses pela comunidade gay. O filme tem como personagem central Daniel, um jovem do
interior recém chegado em Berlim e que acaba sendo engolido pelos “vícios gays da capital”.
Nas andanças de Daniel temos apresentado um panorama de várias tribos de homossexuais e
como se dá a relação entre elas, sobretudo no que diferencia jovens e velhos, afeminados e
másculos.
O filme de Praunheim apresenta alguns problemas discursivos, provavelmente por
apresentar uma nivelação generalizada da cultura gay em alguns momentos, contudo, é preciso
levar em consideração dois aspectos: o primeiro e mais importante é seu contexto histórico, a
produção está localizada em 1971, momento no qual os movimentos sociais ligados à questão
da sexualidade ainda estavam dando os primeiros passos. O segundo é o alinhamento do
discurso com os ideais punks e anárquicos, mais claramente visto na sequência final, que
27

permanece atual mesmo passados 45 anos, ao propor o alinhamento político da comunidade


homossexual como via de empoderamento.
Voltando aos Estados Unidos, os avanços do cinema europeu, em termos formais,
representativos e narrativos pouco surtiram efeito no cinema industrial de Hollywood, cabendo
ao personagem homossexual continuar sofrendo com a solidão e desfecho trágico. Porém, se
até o início dos anos 60, pouco se falava desses personagens, a partir de então temos
intensificada a presença desses indivíduos nas telas. Em conformidade com o cinema europeu,
é no cinema independente que os Estados Unidos irá apresentar sua maior evolução em termos
representativos, a exemplo da parceria entre o cineasta John Waters e a drag Divine.

Waters precede o Novo Cinema Queer por décadas. Ele é uma criatura do
passado hippie, da revolução contra cultural, de uma era pré Stonewall de
confronto e temor. Ele é parte indelével da pré-história do Novo Cinema
Queer, um santo padroeiro que preside sobre seus feitos, rindo de suas
loucuras, aplaudindo seus sucessos. John Waters estava lá primeiro. Ele e seus
filmes foram formados pelos nobres dias exuberantes antes do colapso dos
anos 1970, depois da liberação gay, antes de aids. A marca registrada do estilo
“Waters”, com a sua sensibilidade “Camp” e impaciência tanto com a
heteronormatividade quanto com a homonomartividade, está bem refletida no
novo cinema Queer, como se seus traços estivessem em espera todo esse
tempo como gene recessivo chamando/gritando. (RICH, 2013, p.6)8

Exponenciado por John Waters, esse cinema independente norte-americano, de fato


começa a ser desenvolvido no final dos anos 40, com Kenneth Anger e seu curta metragem
Fireworks (1947). O filme, que aborda o homo erotismo flertando com práticas
sadomasoquistas, fez com que Anger fosse preso sob as acusações de obscenidade logo após o
seu lançamento. Jack Smith, Gregory Markopoulos, Taylor Mead, George Kuchar, James
Broughton, Nathaniel Dorskym, José Rodriguez-Soltero, e como aponta Ruby Rich em New
Queer Cinema – The Director’s Cut (2013), Andy Warhol, o mais famoso de todos estes nomes,
se destacaram na produção de um cinema alternativo à hegemonia hollywoodiana dentro dos
Estados Unidos.
Se encontramos no cinema independente norte americano a possibilidade de quebrar as
regras da indústria, podemos ir além neste sentido e explorar um pouco mais as cinematografias

8
No Original: Waters predates the new queer cinema by decades; he’s a creature of the hippie past, the
countercultural revolution, a pre-stonewall era of shock and awe. He’s an indelible part of NQC prehistory, a
patron saint presiding over it doings, chuckling at its follies, applauding its successes. John Waters was there
first. He and his films were formed by the nutty exuberant prelapsarian days of the 1970s, after gay liberation,
before aids. The trademark Waters style, with its camp sensibility and impatience with both heteronormativity
and homonormativity, is well reflected in the new queer cinema, as if its traits were lying in wait all that time
like recessive gene a shout-out
28

nacionais e continentais marginalizadas pelo domínio industrial de Hollywood. Abaixo da


fronteira estadunidense, o México apresenta três grandes filmes entre 1977 e 1985, O Lugar
Sem Limites (Arturo Ripstein, 1977), Frida: Natureza Viva (Paul Leduc, 1983) e Dona
Hermelinda e Seu Filho (Jaime Humberto Hermosillo, 1985), considerados pela crítica
americana B. Ruby Rich como filmes embrionários de um “Novo Cinema Queer Mexicano”.
Não apenas o México, mas toda a América Latina, ressaltando seus maiores expoentes
na produção cinematográfica como Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e Cuba, possuem uma
trajetória quase sempre similar, convergindo em diversos momentos históricos no que tange a
modelo de produção, distribuição e políticas públicas, sobretudo na sua expansão a partir dos
anos 60.
A cultura da hipersexualização do homem e da mulher latina, comumente apresentada em
um lugar pejorativo nos filmes de Hollywood, é apresentada nessas cinematografias através de
um olhar interno, e por esse motivo se faz muito mais próximo da realidade e muito mais plural,
porém não necessariamente em termos de diversidade sexual, tema “delicado” se
considerarmos toda a influência religiosa cristã exercida no continente desde sua colonização,
agravada pela interferência de governos ditatoriais que ganharam espaço também a partir dos
anos 60.
De um modo geral, o cinema latino americano sempre esteve subjugado pela produção
vinda de Hollywood. Nesse contexto, a representação homossexual invariavelmente se
assemelhara mais ao caso americano do que ao europeu ou às produções independentes. A
presença de personagens LGBT geralmente pautam conflitos indenitários ou filmes com
desfechos trágicos, como aponta B. Ruby Rich ao escrever sobre “Traços Gays e Lésbicos”
capitulo do livro New Queer Cinema – The Director’s Cut (2013). Contudo, a crítica aponta
que nos anos 80 essa representação começa a mudar, tomando como exemplo a produção da
diretora argentina Maria Luísa Bamberg, que em Señora de Nadie (1982) apresenta ao público
um personagem gay sob o espectro de liberdade e libertação dos construtos sociais.
Em Critical Approaches to African Cinema Discourse (2014), Martin P. Botha propõe
um capítulo intitulado “Queering African Film Aesthtics: A Survey from the 1950s to 2003:
portrayal of Homosexuality in International Films”9, que elucida o fato de haver muito material
escrito sobre a representação da homossexualidade no cinema, contudo essa escrita se detém,
na maioria absoluta dos casos, à produção norte americana, europeia e por consequência à
australiana. Ao falar sobre a produção específica da África do Sul, Botha vai de encontro com

9
Em Tradução Livre: “Enqueercendo” a estética cinematográfica africana: uma pesquisa dos anos 50 a 2003:
retratos da homossexualidade em filmes internacionais.
29

o período do Apartheid e seu consequente histórico de resistência, que esbarra na existência de


subculturas homossexuais nas grandes cidades do país, reforçada pela repressão racista,
conservadora e pautada nos preceitos cristãos que obviamente atingia também às condutas
sexuais desviantes da normatividade heterossexual, sobretudo, é claro, para a população negra.
O autor também se depara com a problemática de uma indústria cinematográfica complemente
fragmentada, nos filmes Africâneres - produções realizadas pelos nativos africanos
descendentes direto dos europeus, maior fragmento da produção no país -, essas populações
eram sempre retratadas como heterossexuais, a presença de homossexuais só ocorria com sua
imediata associação à população negra, como reflexo do Apartheid. Apenas no final dos anos
80 que veremos, nas imagens de Quest for Love (Helena Nogueira, 1988), os primeiros
personagens homossexuais bem desenvolvidos do país.
Para além da África do Sul, o autor chama atenção para os 44 países africanos, entre os
quais em 18 vigoram leis antigas, o que obrigatória e diretamente reflete na ausência de
personagens LGBT em seus filmes. Em algumas nacionalidades a homossexualidade ainda se
configura como crime passível de prisão perpétua ou mesmo pena de morte. Todavia, nos países
mais progressistas em relação à questão cerne deste debate, como o Senegal e Egito, vemos
surgir personagens LGBT’s em suas produções.

O cinema africano começou a explorar temas tangenciais a


homossexualidade, mesmo que Djibril Diop Mambety e Chahine, retratassem
personagens homossexuais (em papéis secundários), respectivamente, em A
viagem da Hiena e Alexandria ... Why? ainda nos anos 70, foi somente em
Man of Ashes de Bouzid que o homem gay apareceu como protagonista na
narrativa de um filme. O cinema da África subsaariana teve que esperar até
1997 para um personagem gay para como protagonista, em “Dakan” de
Mohamed Camaras (BOTHA, 2014, p.79)10

Em Queer Asian Cinema: Shadows in the Shade (2000), Andrew Grossman realiza uma
pesquisa voltada a representação e presença da personagem homossexual no continente
Asiático, sobretudo na produção Japonesa e Chinesa.
Na Oceania temos a Austrália como principal produtora de filmes e conteúdo audiovisual
de maneira geral, condição facilitada tanto pelo seu tamanho quanto pela população equivalente
a 60% de todo o continente. O cinema LGBT australiano de fato irá se aproximar mais dos

10
No original: "African cinema has started to explore themes concerning homosexuality. Although Djibril Diop
Mambety and Chahine, respectively, portrayed homosexual characters (in supporting roles) in Touki Bouki and
Alexandria... Why? As early as the 1970s, it was in Bouzid's Man of Ashes that gay man appeared as the lead
character in the film's narrative. Sub-Saharan African cinema had to wait until 1997 for gay male characters to
appear in the leading roles in Mohame Camera’s Dakan
30

debates representacionais europeus, motivados pela relação estreita com a Inglaterra e a grande
parte de descendentes europeus vivendo não apenas no país, mas também nas demais ilhas do
continente.
Em A História do Cinema LGBT Australiano, publicado em seu site, o crítico australiano
Simon Foster aponta que a presença de temas e personagens ligados ao homo/transsexualidades
acompanharam o processo de expansão do próprio cinema australiano, assim como identifica a
presença de personagens “cross-dressers”, já nos anos 20. Na primeira metade do século XX,
o autor destaca Rangle River (Clarence Badger, 1936) e Dad and Dave Come to Town (Ken G
Hall, 1938) como produções que sutilmente dão espaço para a expressão de homossexualidade
de seus personagens. Porém, apenas em 1970, motivados por todo o contexto revolucionário
pós anos 60, que ocorre a chamada renascença do cinema australiano, trazendo consigo o
primeiro filme que apresentava autenticamente uma relação entre pessoas do mesmo sexo, The
Set (Frank Brittain, 1970).
Olhando por uma perspectiva global, de 1895 até o final dos anos 1980, é perceptível o
avanço que o cinema alcançou no que tange as questões de representatividade e de como a
sociedade avançou com relação aos direitos da comunidade LGBT. Contudo, todo esse processo
é intensificado a partir dos anos 90 e da virada do milênio e cujas consequências sobre as novas
formas de representação no Brasil estão desenvolvidas no capitulo cinco, que irá abordar o
Novo Cinema Queer e a retomada no Brasil.

4. UM OLHAR SOBRE A PERSONAGEM LGBT NO CINEMA NACIONAL


ATÉ OS ANOS 90.

O cinema enquanto invenção chega ao Brasil logo em 1896, pouco tempo depois de ser
mostrado ao mundo pelos irmãos Lumière. A cidade do Rio de Janeiro é a primeira a ter salas
de cinema, seguida então por São Paulo. Se por um lado a vista Chegada de um Comboio à
Estação da Ciotat (1895) dos franceses Louis e Auguste Lumière, marca o início da história do
cinema, no Brasil a chegada do navio francês Brésil à baía de Guanabara, vista filmada pelos
irmãos Segreto, se configura como o início da nossa produção.
De um modo geral, os primeiros anos do cinema nacional apresentaram uma tímida
produção. É possível inferir, neste aspecto, que o lugar já reduzido da personagem homossexual
no cinema, de um modo global, era praticamente inexistente no cinema nacional. Estima-se que
apenas cerca de 60 filmes tenham sido produzidos em território nacional até o ano de 1922,
31

sendo esses em sua maioria cinejornais, documentários e, sobretudo, documentários de cavação.


Desse período não há registros em filme, ou mesmo escritos, da presença de personagens
homossexuais ou transexuais nas produções

Essa ausência pode ser explicada pelo controle moral ao qual


esteve submetida a produção cultural brasileira durante o período.
Em 1895, por exemplo, o escritor Adolfo Caminha publicou seu
segundo romance, Bom-Crioulo, obra que pela primeira vez na
literatura brasileira centrou-se em um relacionamento afetivo e
sexual entre dois homens. O livro retrata a relação conturbada
entre o marinheiro negro Amaro e seu aprendiz, o adolescente
branco Aleixo, acompanhando em detalhes a transformação de
sua amizade em paixão, amor e logo obsessão. A ousadia tanto do
tema quanto da forma transparente com que foi representado não
só o relacionamento conjugal, mas a própria interação sexual
entre os protagonistas, causou escândalo na sociedade da época,
tornando o livro alvo de repúdio por parte do público, da crítica
literária – contando inclusive com insinuações a respeito da vida
pessoal do autor – e até da própria Marinha do Brasil, que acusou-
o de denegrir a instituição. O livro ficou proibido por várias
décadas em bibliotecas e escolas públicas de todo o país
(TREVISAN, 2000, pp. 253-256). (LACERDA, 2015, p.33)

Cabe então a Luiz de Barros inaugurar a presença do LGBT nas telas do cinema
nacional. Luiz de Barros, que havia estreado como diretor em 1914 e foi um dos mais profícuos
de sua época, tendo rodado cerca de 60 longas-metragens entre documentários, ficções,
adaptações literárias e teatrais. O longa-metragem Augusto Aníbal Quer Casar (1923) é
exemplo de uma das adaptações do diretor, baseado em um conto de Carlos Verga, foi o
primeiro filme brasileiro a trazer uma personagem transexual. Nele, o protagonista busca por
uma noiva, mas acaba casando-se por engano com uma transformista e só percebe o equívoco
depois do casamento, quando tira o vestido da esposa e esta volta a se vestir, falar e se comportar
com traços “masculinos”.
Em 1930, outro longa do diretor, Messalina, dará continuidade à presença da
homossexualidade no cinema, que desde o lançamento e repercussão do filme de 1923 fica
novamente estagnada. Messalina é baseado no romance Orgia Latina, de Felicién Champsaur,
e retrata a história da terceira esposa do imperador romano Cláudio. O filme é intensamente
sexual, pois Messalina era conhecida por sua bissexualidade aflorada e por suas festas
particulares frequentadas por uma vasta quantidade de mulheres nuas e homens seminus.
As sexualidades possíveis permearam algumas outras produções de Lulu de Barros,
como ficou conhecido. Porém, se tratando exclusivamente da homossexualidade, um exemplo
32

mais objetivo e que vai de encontro ao modo vigente de representação homossexual no cinema
mundial da época, é a adaptação do romance de Aluísio de Azevedo, O Cortiço(1946), no qual
temos a presença de Albinio, personagem afeminado, fraco, pobre e que vive entre as lavadeiras
do cortiço. Se no naturalismo brasileiro o homem era visto como produto do meio, a
homossexualidade de Albino reflete então, nessa acepção naturalista, os desvios de uma vida
marginalizada.
O perfil do homossexual afeminado e da chamada transgeneridade farsesca, como Luiz
Francisco Buarque de Lacerda Júnior define em Cinema Gay Brasileiro: Políticas de
Representação e Além (2013, p.31), é o que irá imperar nos poucos casos da produção nacional
até os anos 60, casos estes que, salvo exceções, se encontram englobados no conjunto de filmes
produzidos entre os anos 30 e 50, aos quais convencionou-se chamar como Chanchadas11.
Em Alô, Alô Carnaval (Adhemar Gonzaga, 1936), filme da primeira fase das chanchadas,
já temos delimitadas as aparições pontuais das personagens homossexuais com o único
propósito de proporcionar à narrativa o alivio cômico por meio do estereótipo caricato e
exagerado.
Os comediantes Oscarito e Grande Otelo, que personificavam uma síntese das
chanchadas, em alguns de seus filmes utilizavam vestes femininas para alguma necessidade
narrativa, porém deixando de forma evidente a heterossexualidade dos personagens. Contudo,
ao se apresentarem em “roupas de mulheres”, os atores incorporavam um conjunto de trejeitos
definidos socialmente como “femininos”, como é o caso dos filmes Carnaval de Fogo (Watson
Macedo, 1942), Carnaval Atlântida (José Carlos Burle, 1952), A Dupla do Barulho (Carlos
Manga, 1953) e Dois Ladrões (Carlos Manga, 1960).
O estereótipo afeminado se dava justamente pelo fato desses indivíduos apresentarem
uma conduta mais desviante da normativa heterossexual vigente na época, que impedia e
condenava qualquer indivíduo masculino incorporasse traços de feminilidade.

11
“O termo chanchada – aportuguesamento do italiano cianciata, que indica “um discurso sem sentido, uma
espécie de arremedo vulgar, argumento falso” (VIEIRA, 2003, p. 46) e que foi popularizado por críticos
brasileiros como epíteto depreciativo – se refere a um conjunto de filmes nacionais das décadas de 1930, 40 e
50, produzidos majoritariamente no Rio de Janeiro, que uniam números musicais a enredos cômicos (...). Isso
explica a aliança das chanchadas a formas culturais já estabelecidas – no caso o teatro de revista, o rádio e o
carnaval – como forma de atrair público e assim furar o bloqueio do cinema hollywoodiano. O formato das
chanchadas, em especial de sua primeira fase, descendia diretamente dos espetáculos de revista,
estruturando-se em torno de números musicais e esquetes de humor, ligados por uma narrativa mínima que
buscava dar unidade ao conjunto.” (LACERDA, 2015, p. 34)
33

Ainda que não representassem todos os indivíduos que se dedicavam a


práticas homoeróticas na época, os frescos eram sua parte mais visível, tendo
produzido toda uma subcultura específica que incluía formas compartilhadas
de se vestir e se portar, códigos de comunicação e territórios comuns.
(LACERDA, 2015, p. 42)

Contudo, essa representação no cinema é tida como farsesca, pois ela se dá por uma
necessidade temporária do enredo. Sendo mais comum sua ocorrência em plots que envolvem
fugas, golpes, trapaças e mais comumente o carnaval. Esses filmes, portanto, acabam não
causando estranhamento no público, pois como Guacira Louro Lopes analisa em seu artigo
“Cinema e Sexualidade” (2008): A plateia ‘sabe’ que o personagem não transgrediu ou não
‘atravessou’ para valer as fronteiras de gênero e, ao final irá retomar a normalidade.

Outro aspecto importante para manter esse formato de representação dominante do


período e, ainda que de forma deturpada funcionar como comédia, é justamente entendimento
social de que há uma diferença restritiva dos gêneros e que feminilidade e masculinidade são,
portanto, intrínsecos ao sexo, designado no nascimento. Portanto, quando um homem
transpassa a fronteira do gênero, suas características masculinas continuam presentes, mesmo
com o disfarce feminino, provocando deste modo o riso.
O controle moral da família e dos bons costumes impedia, deste modo, que essas questões
relativas a gênero e sexualidade fossem esmiuçadas de forma mais profunda, porém esse não é
um “privilégio” exclusivo do cinema, pouco se avançou em relação aos estudos sociais e
científicos dessas questões neste mesmo período, tanto em níveis nacionais quanto em níveis
internacionais. A representação superficial das sexualidades não normativas na chanchada,
tampouco era única a esses personagens, já que fazia parte do próprio estilo fílmico a tipificação
dos personagens.
Esse cenário começa a mudar nos anos 60, em Bahia de Todos os Santos (Triguerinho
Neto, 1960). Como aponta Lacerda, a produção baiana será o primeiro filme brasileiro a ter um
personagem homossexual plenamente desenvolvido na trama, apresentando uma história com
passado, presente e futuro. No mesmo período em que Europa vivenciava uma fase
experimental e altamente produtiva do seu cinema, jovens produtores e diretores no Brasil se
uniram em torno do evento catalizador que lançou um novo olhar para mudar representação
LGBT no cinema, bem como propôs uma resposta ao modelo dos grandes estúdios, como Vera
34

Cruz e Atlântida. Vemos surgir, então, no Brasil, o chamado Cinema Novo12 e o Cinema
Marginal13, dois marcos do cinema brasileiro.

[...] quando a nossa atenção se volta para o processo que envolveu o Cinema
Novo e o Cinema Marginal, entre final da década de 1950 e meados dos anos
1970, tal processo se apresenta como dotado de uma peculiar unidade. Foi,
sem dúvida, o período estética e intelectualmente mais denso do cinema
brasileiro. As polêmicas da época formaram o que se percebe hoje como um
movimento plural de estilos e ideias que, a exemplo de outras cinematografias,
produziu aqui a convergência entre a ‘política dos autores’, os filmes de baixo
orçamento e a renovação da linguagem, traços que marcam o cinema
moderno, por oposição ao clássico e mais plenamente industrial. (XAVIER,
2006, p. 14)

Nos filmes desse período temos um comprometimento do cinema enquanto arma política
e de transformação do país, dialogando com as mais diferentes artes e aspectos culturais
próprios do Brasil. No livro A Personagem Homossexual no Cinema Brasileiro, de Antônio
Moreno (2001), o autor irá apontar treze filmes dos anos 60 que abordam a homossexualidade,
seja de maneira mais explicitas, como em Noite Vazia (Walter Hugo Khoury,1964), O Beijo
(Flávio Tamberllini, 1964) e O Menino e o Vento (Carlos Hugo Christensen, 1966), ou de forma
metafórica e subjetiva, em produções como Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) e
o clássico de Glauber Rocha Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964).
Entretanto, ainda que o tratamento dado aos personagens LGBT tenham ganhado um
novo rumo, é possível perceber em “Noite Vazia”, a fetichização lésbica para satisfação do
interesse masculino, quando duas prostitutas são convidadas a fazer sexo entre elas. Já nos
filmes “O Beijo” e “O Menino e o Vento”, além do perfil do homossexual amargurado e
desestabilizado no primeiro caso e do homossexual afeminado no segundo, temos a questão da
homofobia como mote principal. A discussão acerca da homofobia, no entanto, é um ponto a
ser observado em ambos os filmes, já que o próprio termo começa a ser desenvolvido em
meados dos anos 60. Ainda que não naturalizado com este nome, era inegável o caráter
opressor, preconceituoso e violento contra homossexuais imposto pela sociedade, tanto que os
personagens alvos da homofobia nesses filmes eram condenados não por serem homossexuais

12
“[…] o Cinema Novo, em particular, problematizou a sua inserção na esfera da cultura de massas,
apresentando-se no mercado, mas procurando ser a sua negação, procurando articular sua política
com uma deliberada inscrição na tradição cultural erudita.” (XAVIER, 2006, p. 23)
13
“Para a compreensão da significação do Cinema Marginal dentro do panorama do cinema brasileiro,
teremos de ter sempre presente esta conotação pejorativa inerente ao fato de estar à margem. Uma
das principais características deste “cinema” está exatamente no deslocamento ideológico desta carga
pejorativa, que passa a ser valorada de outras formas.” (RAMOS, 1987, p. 16)
35

propriamente ditos, mas por serem apontados como tais por interpretação de terceiros, por meio
da leitura dos velhos estereótipos.
Lacerda, que irá dedicar um capítulo da sua tese ao estudo das relações pautadas na
homofobia, aponta que:
Ao utilizar esses exemplos como ilustração da afirmação de que a postura
homofóbica endereçada a homossexuais estava naturalizada no cinema
nacional das décadas de 1960, 70 e 80 – assim como no senso comum – não
quero dizer que os filmes necessariamente corroboravam com a homofobia.
Observando a produção dessas três décadas, é possível identificar, pelo
contrário, uma diversidade de posturas frente à questão. (LARCEDA, 2015,
p. 90)

Em 1969, não apenas a criação da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme) é


fundamental para uma nova guinada na produção cinematográfica, — mesmo em contexto de
ditadura —, mas, sobretudo, às pornochanchadas se deve outra maneira no tratar das
personagens homossexuais e transexuais, desta vez possibilitando em alguns casos, inclusive,
que estes indivíduos fossem dotados de características eróticas, ainda que não sexualmente
explícitas.
Se nas chanchadas tínhamos a presença dos homossexuais afeminados e travestidos para
efeito cômico, nas pornochanchadas estes personagens ganham um pouco mais de
profundidade, como em Navalha na Carne (Braz Chediak,1969), que apresenta o personagem
Veludo, faxineiro de uma pensão miserável que possui papel fundamental para o
desenvolvimento da trama. Ao todo foram catalogados por Antônio Moreno (2001) 60 filmes
com temáticas e personagens homossexuais, 47 a mais do que na década anterior. Nesse estudo,
Moreno apontou quatro gêneros fílmicos onde comumente se encontravam essas personagens:
comédias (pornochanchadas), eróticos, marginais e dramáticos. A grande maioria dessa
produção trazia relações lésbicas com o mesmo intuito do já citado Noite Vazia (1964):
provocar a libido masculina.
Ao analisar alguns clássicos da década podemos perceber uma maior pluralidade nos
perfis apresentados, contudo nenhum desses perfis chega a ser necessariamente novo diante do
já realizado anteriormente pelo cinema nacional. Nos deparamos, portanto, com os locais
comuns da dúvida, ardilosidade, perversidade, solidão e obviamente com os perfis caricatos,
porém desta vez em uma quantidade muito superior ao que havia sendo feito até o início da
década.
É interessante notar como as pornochanchadas, de modo mais realista ou
caricato, com maior simpatia ou aversão, espelhou de forma relativamente fiel
às identidades que organizavam as relações homoeróticas de fins dos anos
1960 a meados da década de 80, caso da bicha, do bofe e do entendido. Ainda
36

assim, é possível encontrar uma minoria de personagens que, em um aspecto


ou outro, conseguiu transgredir positivamente esse modelo, trazendo
surpresas interessantes. (LARCEDA, 2015, p. 109)

Se em Dois Perdidos Numa Noite Suja (Braz Chediak, 1970), a delicadeza e refinamento
no personagem Tonho é suficiente para despertar dúvidas acerca de sua sexualidade, — assim
como a relação que o mesmo mantém com seu amigo Paco —, em A Casa Assassinada (Paulo
Cesar Saraceni, 1971), o homossexual retratado será o solitário e que se transveste trancado em
seu quarto. Em Rainha Diaba (Antônio Carlos Fontoura, 1974), a personagem principal
(inspirada na personagem real Madame Satã, que ganhará filme 30 anos depois) é chefona do
tráfico de drogas, ardilosa e espalhafatosa. Em Nos Embalos de Ipanema (Antônio Calmon -
1978) é apresentado um jovem heterossexual que mantém um relacionamento homossexual em
troca de dinheiro. Vamos encontrar uma maior transgressão em filmes como República dos
Assassinos (Miguel Faria Jr. -1978), que mesmo apresentando os perfis estereotipados da bicha
afeminada de classes inferiores e ligada à prostituição, também apresenta uma relação
homossexual estável e não hierarquizada pelas lógicas heteronormativas.
Para compreender melhor o avanço das representações homossexuais da época é preciso
também mencionar as adaptações realizadas a partir da obra de Nelson Rodrigues 14 e Plínio
Marcos15. Alguns dos filmes baseados na obra de Nelson Rodrigues nesse período são: Toda
Nudez Será Castigada (1973) e O Casamento (1976), ambos dirigidos por Arnaldo Jabor.
Enquanto os já citados Navalha na Carne, Dois Perdidos Numa Noite Suja e Rainha Diaba,
são adaptações realizadas tendo como base a obra de Plínio Marcos.
Ainda que o foco na representação homossexual não tenha sofrido relevantes
transformações nos anos 80, é importante notar que já nos primeiros momentos da década era
possível perceber um declínio na produção não apenas das pornochanchadas, mas de toda a
produção cinematográfica no país, indissociavelmente afetando a produção de um cinema
LGBT. O declínio que se arrastou até os anos 90, com a produção nacional chegando a menos

14
Nelson Falcão Rodrigues: Pernambucano nascido em 1912, foi jornalista e escritor, tendo começado sua carreira
escrevendo para o jornal A Manhã, de propriedade do seu pai. Começou sua carreira como dramaturgo com a peça
“A Mulher Sem Pecado” (1941), se consolidado como um dos principais dramaturgos brasileiros de os tempos.
Mesmo que suas peças apresentassem um olhar sobre a sociedade brasileira de forma a ser apontados como imorais
e vulgares, o teor erótico e realista o consagrou como criador da chamada “tragédia carioca” (transgressão da
tragédia grega adaptada para a sociedade carioca do século XX). Politicamente era conservador e apoiador da
ditadura, faleceu no Rio de Janeiro em 1980
15
Plínio Marcos de Barros: nasceu na cidade de Santos em 1935, foi jornalista , ator e diretor, atuando
principalmente no teatro. Temas como homossexualidade, marginalidade, prostituição e violência eram
recorrentes em sua obra que tinha como principal pano de fundo os nichos “underground” da cidade de São
Paulo. Foi perseguido e censurado durante a ditadura, um dos períodos mais produtivos de sua carreira enquanto
dramaturgo. Faleceu aos 64 anos em 1999, na cidade de São Paulo.
37

de 10 longas metragens em 92, juntamente com o fechamento de diversas salas de exibição em


todo o território nacional, sobretudo nos interiores, tornará visível a mudança em relação ao
modo como as personagens homossexuais e transexuais chegaram às telas no momento
seguinte; “Retomada”, contudo esse assunto será, juntamente com o Novo Cinema Queer, o
tema para o próximo capítulo.

5. NOVAS FORMAS DE REPRESENTAÇÃO: O NOVO CINEMA QUEER E O


CINEMA DE RETOMADA NO BRASIL

Em 1991 são dados os primeiros passos do chamado Novo Cinema Queer, um cinema
permeado pelas ideias do pós-estruturalismo e de caráter libertário, que leva para debate o
discurso dos gêneros, corpos e sexualidades, pretendendo ir além de uma expressão cultural e
artística de um modelo LGBT estereotipado e propondo uma representação inclusiva a diversas
identidades sexuais.
Ao ser definido assim pela crítica e pesquisadora norte-americana B. Ruby Rich, o Novo
Cinema Queer se propõe a estudar as relações humanas a partir do seu lugar de ambiguidade,
trazendo a intimidade da diversidade humana à tona, abrindo os olhos do grande público para
a possibilidade de viver o masculino e o feminino de diversas formas, principalmente quanto
ao que tangencia a diversidade sexual e de gênero. Ruby Rich tomará como base para
desenvolver sua pesquisa um escopo de filmes produzidos nos primeiros anos da década de
noventa, entre os quais se destacam: Poison (Todd Haynes, 1991), Eduward II (Derek Jarman,
1991), Swoon – Colapso do Desejo (Tom Kalin, 1992), The Living End (Gregg Araki, 1992) e
R.S.V.P. (Lauren Lynd, 1991).
Antes de necessariamente buscar uma compreensão acerca do Novo Cinema Queer, é
preciso localizar o termo “queer” e seu encaixe diante do fazer artístico e das teorias relativas à
sexualidade. A palavra de origem inglesa originalmente possui o sentido pejorativo equivalente
aos termos “vagabundo/pervertidos/devassos”, contudo, sua tradução mais comum é o termo
“estranho”, associado à imagem de uma conduta desviante da norma.
A partir da prisão de Oscar Wilde, aponta a transativista Helena Viera, o termo ganhou o
sentido de “viadinho, sapatão, maricona, marimacho”, cabendo a Wilde ser o primeiro ilustre
intitulado publicamente como “queer”. Com o avanço das discussões a respeito da sexualidade
e dos direitos LGBT, o “Queer” é tomado de seu lugar pejorativo, no qual o homossexual era
38

colocado em local de estranhamento, e é adaptado como sinônimo a diversidade sexual e luta


contra o preconceito e por direitos iguais.
Nas artes, o Queer vai se fazer presente inicialmente a partir dos anos 80, expressivamente
nos Estados Unidos e Europa, por meio do movimento não oficializado intitulado de “Queer
Arte” ou “Homo Arte”, que tem ligações estreitas com a arte erótica, conceitual e contextual.
Em nenhum outro momento da história, até então, a homossexualidade e transsexualidades não
haviam sido tão pensadas, discutidas, criadas, apresentadas e representadas como quando o
movimento começou a ascender. Antes de chegarem ao cinema, nomes como o de Andy
Warhol, Francis Bacon, Keith Haring, Jean Genet, Tom Of Finland e Alair Gomes, — seja nas
artes plásticas, literatura ou fotografia — ajudaram direta ou indiretamente a edificar uma
cultura artística subdivida basicamente entre arte política e arte homoerótica. Considerando
ainda que no contexto social da época, tal qual ocorre nos dias de hoje, o simples fato de se
assumir enquanto queer, seja na vertente mais politizada enfaticamente ou na vertente mais
sensorial e erótica, por si só já se configura como ato político.
O movimento, com o passar das décadas, ganhou mais adeptos, se expandido inclusive
para outras artes como a música, o próprio cinema e principalmente as artes performáticas. Em
sua leitura contemporânea, o termo pressupõe a convergência de várias possíveis identidades
sexuais nas artes, o queer propõe a mesma convergência no campo das linguagens artísticas,
diluindo progressivamente a fronteira entre elas. Lily Binns, codiretor do
Queer/Art/Mentorship, — programa de acompanhamento e tutela de jovens artistas queer por
artistas que já possuem uma trajetória e portfolio maior —, em sua coluna no site Huffington
Post, define o queer como “uma identidade inclusiva e com uma perspectiva crítica dos mundos
em que vivemos, onde uma noção mainstream de normalidade de um tipo ou de outro deixa
muitas pessoas de fora”. Binns continua a fala trazendo a intercessão do conceito social com as
artes: “Em meus vizinhos e em seus trabalhos de primeira classe, vejo uma feroz celebração e
provocação a cada uma de nossas sexualidades, gêneros, raças, classes, habilidades e origens
regionais, e uma dissolução da segregação categórica que anteriormente mantinha gays,
lésbicas e sua arte em guetos”.

A homossexualidade e o sujeito homossexual são invenções do século XIX.


Se antes as relações amorosas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo eram
consideradas como sodomia (uma atividade indesejável ou pecaminosa à qual
qualquer um poderia sucumbir), tudo mudaria a partir da segunda metade
daquele século: a prática passava a definir um tipo especial de sujeito que viria
a ser assim marcado e reconhecido. Categorizado e nomeado como desvio da
norma, seu destino só poderia ser o segredo ou a segregação – um lugar
39

incômodo para permanecer. Ousando se expor a todas as formas de violência


e rejeição social, alguns homens e mulheres contestam a sexualidade
legitimada e se arriscam a viver fora de seus limites. A ciência, a Justiça, as
igrejas, os grupos conservadores e os grupos emergentes irão atribuir a esses
sujeitos e a suas práticas distintos sentidos. A homossexualidade,
discursivamente produzida, transforma-se em questão social relevante. A
disputa centra-se fundamentalmente em seu significado moral. Enquanto
alguns assinalam o caráter desviante, a anormalidade ou a inferioridade do
homossexual, outros proclamam sua normalidade e naturalidade – mas todos
parecem estar de acordo de que se trata de um ‘tipo’ humano distintivo.
(LOURO, 2001, p.542)

Em termos de teoria, os estudos queer surgem nos Estados Unidos nos anos 80 como uma
resposta natural a ascensão dos movimentos populares, que chegam às universidades
catalisando a criação dos chamados “estudos culturais”. Estes estudos, pautados nos ideais pós-
estruturalistas, objetivavam a compreensão desses movimentos por meio de uma nova ótica de
pensar a realidade social, encontrando em filósofos como Michel Foucault e Jacques Derrida,
por exemplo, um solo base para se desenvolverem.

Os/as teóricos/as queer constituem um agrupamento diverso que mostra


importantes desacordos e divergências. Não obstante, eles/elas compartilham
alguns compromissos amplos – em particular, apoiam-se fortemente na teoria
pós-estruturalista francesa e na desconstrução como um método de crítica
literária e social; põem em ação, de forma decisiva, categorias e perspectivas
psicanalíticas; são favoráveis a uma estratégia descentrada ou desconstrutiva
que escapa das proposições sociais e políticas programáticas positivas;
imaginam o social como um texto a ser interpretado e criticado com o
propósito de contestar os conhecimentos e as hierarquias sociais dominantes
(SEIDMAN, 1995, p. 125)

A teoria queer se aprofunda nas críticas que as teorias feministas levantam acerca do
gênero como parte essencial do indivíduo, assim como também busca expandir os estudos
gays/lésbicos no que tange à ideia de que a homossexualidade se configura como um construto
social edificado através das práticas sexuais e identidades de gênero. Essa expansão se dá
empiricamente no âmbito da análise de práticas sexuais e identidades de gêneros não
englobados pelos estudos gays/lésbicos, por conta do seu teor até então considerado desviantes
das normas padrão.

Entendendo o Queer para além das teorias acadêmicas, e retomando de forma mais íntima
a discussão trazida pela arte queer como forma de expressão, — que com o passar dos anos não
necessariamente se pautara única e exclusivamente a vivências LGBTs —, e também tendo em
mente o Queer como o espectro mais abrangente, tanto no que se refere à pluralidade de
40

identidades sexuais, quanto no que tenciona em relação aos “papéis de gênero”. A escolha pela
utilização do termo LGBT neste trabalho em nenhum momento desmerece a experiência Queer,
por acreditar que ambos os movimentos não são antagônicos, tampouco se configura um como
uma evolução do outro. O Movimento Queer e o Movimento LGBT caminham juntos, porém,
na perspectiva de políticas públicas e políticas representacionais, este trabalho vai de encontro
ao segundo movimento, não deixando de lado, todavia, o ressaltar da importância do Queer,
seja nas identidades e filmes presentes na curadoria proposta ou principalmente na importância
referencial, politica, estética e de singular magnitude do “Novo Cinema Queer”.
Como já vimos na descrição dos capítulos anteriores, o passar das décadas representou
também um avanço na forma como as personagens homossexuais e transexuais eram
representadas no cinema, porém nunca antes ocorreu uma inserção tão intensa desses filmes no
circuito “mainstream”, tal qual nunca antes houve uma produção tão massiva dessas narrativas.
A diferença primordial entre os filmes do NCQ e a maioria das produções anteriores, se
apresenta em decorrência do fato de que as subjetividades aqui foram renegociadas, novos
gêneros além do gay e lésbico foram anexados, a própria história dos movimentos e da cultura
LGBT– incluindo a então recente crise da AIDS dos anos 80 – foi trazida às telas de uma
maneira revistada, sendo contada por uma ótica não normativa e não heterocentrada.
Além dos filmes já citados, obras como Instinto Selvagem (Paul Verhoeven, 1991), Young
Soul Rebels (Isaac Julien 1991), Garotos de Programa (Gus Van Sant 1992), Go Fish- O Par
Perfeito ( Rose Troche 1994), All Over Me (Alex Sichel 1997), Lilies ( John Greyson 1996),
The Delta (Ira Sachs 1996) e The Watermelon Woman (Cheryl Dunye 1996) entre outros,
ajudaram a repercutir a “nova escola cinematográfica”, ou a “nova onda do cinema LGBT” para
além das fronteiras dos circuitos e festivais exclusivamente voltados ao público gay. Em 1992
e nos anos seguintes, muitos desses filmes obtiveram relativo sucesso e premiações em festivais
importantes como Sundance, que no ano anterior premiara Poison, de Tood Haynes e Paris Is
Burning, de Jennie Livingston.
Poison, tido por muitos estudiosos do cinema queer, ao exemplo de B. Ruby Rich, como
marco inaugural do movimento, apresenta três histórias paralelas que não possuem conexão
estilísticas, temáticas ou temporal. A primeira delas, em formato de cine jornal, conta a história
de Richie, um garoto que após matar seu pai sai voando pela janela. Na segunda história,
inspirada nos filmes de terror dos anos 60, vemos um cientista, que após descobrir o elixir da
sexualidade humana comete o engano de beber a fórmula, se transformando em um grotesco
assassino leproso. Por último, e mais obviamente gay, temos a relação de amor entre
prisioneiros homossexuais.
41

Mesmo que a homossexualidade seja abertamente aprofundada apenas na terceira história


do filme, intitulada “Homo”, a vivência gay está sublinhada em cada uma das outras partes.
Richie, ao matar o pai abusivo e fugir de casa voando sem deixar rastros, faz menção à ideia de
que as casas também são como prisões, e que a imposição do “armário gay” é de tal modo uma
violência. É como se a máxima “não podemos julgar a violência do oprimido diante da tirania
do opressor” se fizesse presente no capitulo “Herói” - a fuga do garoto é sua libertação do
sistema patriarcal machista e opressor. A segunda história apresentada, inicialmente como uma
possível história de amor entre um cientista e sua assistente, se transforma em uma assustadora
metáfora à crise da AIDS. O “Horror” do título é uma menção direta e objetiva ao processo de
identificação dos homossexuais como “monstros” portadores do vírus.
Já em Paris Is Burning, filme que retornou aos olhares do público a partir das referências
utilizadas no Reality Show norte-americano “Ru Paul’s Drag Race”, é resultado de um processo
de pesquisa nos guetos de Nova York, onde não apenas a homossexualidade era posta em pauta,
mas também conjugada às questões de classe e raça, cultura de consumo e alteridade.
O filme apresenta um panorama da vida e das relações de gays negros, latinos e
transexuais, em sua maioria pertencente à uma baixa classe social. Estes personagens sociais
que vivem em Nova York constituem uma cultura de bailes, locais estes, que no final dos anos
oitenta, se configuravam como um refúgio de livre expressão de suas feminilidades e integração
diante da marginalização imposta pela sociedade heterossexista, branca, machista e patriarcal.
Nos bailes eram realizadas competições, que de modo geral, valorizavam e engradeciam traços
e trejeitos femininos.
No que se refere à representação e afirmação da cultura gay diante do questionamento
sobre qual espaço o cinema documental possui na formação de uma imagem específica em
torno de um grupo social especifico, o filme se configura, como apontado no resumo do artigo
de Mine Egbatan “Paris is Burning: A critic of gender”, enquanto um dos marcos da cultura
gay, bem como um dos mais importantes para a comunidade LGBT sobretudo nos quesitos que
tangem a cultura Drag e Transgênera.

Examinando Drags, onde a feminilidade e /ou masculinidade são apresentadas


pelo sexo oposto, se ganha importância para proporcionar uma nova visão
sobre questão de gênero. Os filmes com enfoque na vida de drags são
consideradas ferramentas importantes para compreender questões
relacionadas a gênero. Paris is Burning, [...], é uma fonte inestimável por
chamar atenção para questões relativas à drags, transexuais, gênero e raça.16
(EGBATAN, 2011, p.16)

16
No Original: Examining drags, where femininity and/or masculinity are performed by opposite sexes, gains
42

Mine Egbatan, ao discorrer acerca dos questionamentos de gênero por meio da figura das
Drags, tendo como base o estilo de vida e as atitudes tomadas pelos personagens gays e
transexuais do filme, ressalta que a perspectiva revolucionária é a rejeição das normas da cultura
heterossexista e patriarcal em relação ao gênero.
Os dois filmes citados exemplificam perfeitamente o motivo pelo qual o NCQ não
necessariamente se enquadraria em uma “escola” ou “movimento” cinematográfico
propriamente dito, os filmes do Novo Cinema Queer não compartilhavam de um vocabulário
estético único, tampouco dividiam as mesmas preocupações e estratégias narrativas, porém o
que permitiu que essas variantes fossem agrupadas em torno do rótulo proposto por Ruby Rich
foram os traços de apropriação da cultura LGBT, as doses de ironia presentes em quase todas
as produções, o pastiche, e, sobretudo, um trabalho de construção social de novas
representações da sexualidade. Esse conjunto de semelhanças correspondiam ao que Rich irá
nomear de “Homo Pomo”.
Tendo em mente esse cenário e os filmes e diretores que ajudaram a popularizar o NCQ,
ainda fica aberta a seguinte questão: O que possibilitou o surgimento dessa nova onda?
É uma questão recorrente ao longo dos anos, uma que eu posso responder
apenas com retrospectiva. Quatro elementos convergiram para resultar no
NQC: a chegada da AIDS, Reagan, câmeras de vídeo e aluguel barato. Além
disso, o surgimento do queer como uma indignação e uma oportunidade
comunitária se fundiram em uma resposta artística histórica à repressão
política insuportável: simples, porém, complexo. (RICH, 2013, p.XV-XVI)17

Obviamente o contexto político, social e histórico não é dissociável da produção cultural


da sua época. O governo de Ronald Reagan, citado por Ruby Rich como um dos fatores que
colaboraram para o surgimento do NQC, era reflexo de uma sociedade conservadora e cristã,
na qual assuntos como a homossexualidade, transsexualidades e AIDS ainda permaneciam no
local inacessível dos tabus.
Contudo, acima do conservadorismo e silêncio do governo, a crise da AIDS despertou
um senso de comunidade entre a população LGBT. Enquanto milhares de vítimas eram levadas
pela doença, uma mobilização jamais vista antes em termos de comunidade ocorreu, a apatia e

importance for providing a new insight into gender issue. The films focusing on the life in drags are
considered significant tools to understand issues related to gender. Paris is Burning, (...), is an invaluable source
for attracting attention towards drags, transsexuals, gender and relatively race in this regard.
17 No Original: It’s a question that has recurred over the years, one that I can answer only with hindsight. Four
elements converged to result in the NQC: the arrival of aids, Reagan, camcorders and cheap rent. Plus the
emergence of “queer” as a community. Outrage and opportunity merged into a historic artistic response to
insufferable political repression: that simple, yes, and that complex.
43

silêncio do governo deram lugar à busca por respostas e ao espírito de solidariedade entre
aqueles presentes nos principais grupos de riscos. Nesse contexto, alguns coletivos
independentes documentavam os custos humanos da epidemia, no objetivo de obter direito de
resposta contra o pensamento comum propagado pelos grandes veículos de mídia.

O vírus da Aids realizou em alguns anos uma proeza que nem o mais
bem-intencionado movimento pelos direitos homossexuais teria
conseguido, em muitas décadas: deixar evidente à sociedade que
homossexual existe e não é o outro, no sentido de um continente à parte,
mas está muito próximo de qualquer cidadão comum, talvez ao meu
lado e – isto é importante! – dentro de cada um de nós, pelo menos
enquanto virtualidade (TREVISAN, 2000, p. 462)

A produção de pequenos documentários, e mesmo ficções, se tornou possível pelo avanço


tecnológico e relativo baixo custo dos gravadores com características de uso simples e pessoal,
em combinação também com uma geração recém-saída das escolas de cinema e arte, o que
facilitou em amplo aspecto não apenas o acesso à possibilidade de criação fora dos eixos dos
grandes estúdios e produtoras, mas também a possibilidade de comunidades marginalizadas se
fazerem ouvir, já que agora elas podiam contar suas próprias histórias.

Contra todas as probabilidades, filmes e vídeos começaram a emergir. A


necessidade intensa por trabalhos que poderiam fazer sentido estava
acontecendo, tomando lugar, reformulando nossas imagens, velando os
mortos, sim, mas também celebrando a vida, o amor e a possibilidade. Para
homens gays, era uma questão de vida ou morte, uma questão de moralidade
ou imortalidade. Para as lésbicas, era uma questão de empatia, um horror o
que estava acontecendo com nossos irmãos gays e indignação com a resposta
da sociedade. Havia também a necessidade de preservar uma presença visível,
algum esboço de identidade, e criar um novo papel, sensível e visionário
(RICH, 2013, p. xix )18

Esses novos realizadores e representantes da nova onda cresceram assistindo filmes e


televisão onde suas histórias e dramas não eram exibidos, portanto, com o somatório do
contexto político-social, havia também as referências de seus predecessores, como diversas

18
No Original: Against all odds, film and video work began to emerge. The need as intense for work that could
make sense of what was going on, take stock, and reformulate our imaginings, to grieve the dead, yes, but also
to reinvigorate life and love and the possibility. For gay men, it was a matter of life or death, a question of
morality or immortality. For lesbians, it was a matter of empathy, a horror what was happening to our/their
gay brothers and outrage at society’s response. There also was a need to preserve a visible presence, some
scrap of identity, and create a new lesbian role, sensibility, and vision.
44

vezes Gus Van Saint afirmou em entrevistas, sua predileção pelas obras de John Waters e Pier
Paolo Pasolini.
No decorrer dos anos 90 e nos anos 2000, os filmes que surgem como resultados desse
movimento buscaram romper com a narrativa clássica, em alguns casos radicalizando na forma
e rejeitando a heteronormatividade por meio da representação dos mais plurais estilos de vida,
tidos até então como marginais, como no filme português O Fantasma (João Pedro Rodrigues,
2000). Claro que a negação da heteronormatividade não é nesse ponto nenhuma novidade no
cinema, sendo inclusive bastante debatida no documentário ficcionalizado alemão Não é o
homossexual que é perverso, mas o mundo em que ele vive (Rosa Von Praunheim, 1971).
Contudo, só a partir do NQC que uma produção mais abrangente, tanto relacionada à
pluralidade de histórias e perfis quanto na variedade de países de origem, se fez perceber.
Em todos os continentes, realizadores e filmes começaram a emergir, incluindo
produções de diretores que já possuíam uma trajetória no mainstream, como é o caso de Alfonso
Cuarón, que explora a bissexualidade de Tenoch e Júlio em E Sua Mãe Também (2001),
quebrando o gelo, como define Ruby Rich, da representação do desejo sexual entre homens no
cinema mexicano contemporâneo. A autora ainda pontua que a cena de sexo entre os dois
protagonistas, que em outras épocas poderia ser fatal para os objetivos comerciais do longa,
foram não apenas revertidos em 33 milhões de dólares em bilheteria, mas também em algumas
nominações ao Oscar.

Na Argentina, Lucrécia Martel, cineasta próxima à geração do filho de


Cuarón, pegou sua própria câmera para explorar o submundo da dinâmica
familiar, incluindo uma filha desiludida enfeitiçada por outra mulher, tudo
observado com um estilo vertiginoso característico que chamou atenção dos
espectadores para quanto não normativo seu filme de estreia, La ciénaga
(2001), provou ser. Outro jovem argentino, Diego Lerman, lançou uma
comédia lésbica, Tan de repente (2002). De volta ao México, Julian
Hernández criou uma narrativa experimental, Mil nubes de paz cercan el cielo,
amor, jamás acabarás de ser amor (2003), sobre um garoto de programa gay
com um coração partido. Todos os três filmes renegociaram pactos de fato
com o seu próprio cinema nacional.” (RICH, 2012, p.177)19

19
No Original: In Argentina, Lucrecia Martel, a filmmaker close to the generation of Cuaróns’s son, took out her
own camera to explore the underbelly of Family dynamics, including a lovelorn daughter besotted with another
woman, all observed with a whipsaw vertiginous style that alerted viewers to just how nonnormative her debut
feature, La Ciénaga (The Swamp, 2001), would prove to be. Another young Argentine, Diego Lerman, released
a quirky lesbian themed comedy, Tan de repente (Sunddenly, 2003). Back inMexico, Julián Hernandéz, made na
experimental narrative, Mil nubes de paz cercan el cielo, amor, jamás acabarás de ser amor ( A Thousand
Clouds of Peace Fence the Sky, Love; Your Being Love Will Never End, 2003),about a gay hustler with a broken
heart. All Three films renegotiated de facto campacts with their own national cinemas.
45

No continente Africano, o documentário Out In África (Maleine Chaiti 1991) é o


primeiro filme sul africano a tratar das questões referentes à liberação gay e lésbica no país,
sendo seguido pela produção do cineasta Luiz de Barros, que inclui Pretty Boys (1992),
Clubbing (1993) e Hot Legs (1996). Porém, somente a partir do final dos anos 90 e início dos
anos 2000, emergirá a uma produção mais efetiva de filmes que dialogavam diretamente com
as ideias do NCQ, como o emblemático documentário The Man Who Drove With Mandela
(Greta Schiller 2000), filme que retrata a formação de identidades homossexuais em meio ao
dilema racial em tempos de Apartheid.
Martin P. Botha, em “Queering African Film Aesthtics: A Survey from the 1950s to 2003:
portrayal of Homosexuality in International Films” (2014), chama atenção para outros filmes
como Dark & Lovely, Soft & Free (Paulo Alberton, Graeme Reid, 2000) — um documentário
sobre o cabelereiro homossexual Zakhi, “baseado na pesquisa de arquivo de Gays e Lésbicas
sul africanos e o efeito da nova constituição na vida de gays e lésbicas de cidades pequenas.”
—, Sando to Samantha: Aka the Art of Dikvel (1997), A Normal Daughter, The life and times
of Kewpie of District Six (1998) e Beat It! Your Guide to Better Living with HIV/AIDS
(2000), ambos dirigidos por Jack Lewis, considerado um marco histórico no cinema LGBT
africano pelos documentários produzidos e dirigidos e, principalmente, pela fundação do
primeiro festival de cinema LGBT do continente, em 1994.
Recentemente, o filme A Criada (Park Chan-wook 2016) chamou a atenção global para
o cinema sul coreano. O longa apresenta o desenvolvimento da relação entre Hikedo e Sookedo,
duas jovens que vivem em realidades diferentes numa Coreia do Sul ocupada por japoneses na
década de 30. O apreço estético, o cuidado redobrado em cada detalhe do filme, somado a um
enredo fascinante e com representações lésbicas não estereotipadas, pode ser associado a outro
filme asiático de 1997, Felizes Juntos de Wong Kar-Wai, no qual temos a história do casal Lai
e Ho, que deixam Hong Kong rumo à Argentina. A relação controversa e abusiva resulta em
diversos momentos de tensão entre os personagens, agravados pela amizade entre Lai e Chang,
um terceiro personagem que está em sua própria jornada pessoal. Em seu livro New Queer
Cinema – The Director’s Cut, Ruby Rich, vai apontar o drama chinês como seu filme preferido
em anos, considerando o longa como “um poema aos desejos frustrados, sofrimento, anseio,
exílio, deslocamento cultural e comércio sexual, tudo marcado por uma brilhante batida de
tango”.
Um dos maiores clássicos do cinema LGBT, sem sombra alguma de dúvidas, é o
australiano Priscilla, A Rainha do Deserto (Stephan Ellito ,1994), o roadmovie conta a história
de duas drag queens (Anthony "Tick" Belrose ou Mitzi Del Bra e Adam Whitely ou Felicia
46

Jollygoodfellow) e uma transexual (Bernadette Bassenger ou Bernice, ou ainda Ralph), que


atravessam a Austrália a bordo do ônibus Priscilla, cruzando o deserto rumo à Alice Springs,
onde irão realizar uma série de shows. Como todo road movie, a trajetória que as personagens
percorrem reflete-se também em seu crescimento pessoal, tendo elas que enfrentar desde
problemas mecânicos do ônibus a preconceito e crises de convivência. Além de abordar várias
dificuldades inerentes à vida LGBT, como o binarismo dos papéis de gênero, a violência, a
rejeição, entre outras, Priscilla também oferece uma homenagem à cultura no qual está inserido,
e talvez essa seja a chave para o sucesso da produção.
Outro importante aspecto do filme é sua estética Camp, que surge como ferramenta de
afirmação homossexual, pautada no clichê, revertendo-o em uma característica de ação
libertária. No “Camp”, o exagero, o gay afetado e espalhafatoso, a ironia, a teatralidade, a
superficialidade e a autoparódia estavam sempre presentes na mise-en-scène, seja no cenário,
figurino, maquiagem ou mesmo nos personagens. Tomando como referências o “Kitsch”,
“Trash” e a Cultura Pop, o “Camp”, pauta-se na estética da “alegria”, onde o excesso de luzes,
paetês, purpurina e cores extravagantes nunca são dispensadas na busca de fazer com que o
público se desnudasse de sua ignorância, passando a aproveitar a diversidade humana. Um
contraponto às pesadas imagens da AIDS.

Entre os estudos queer, outro conceito importante é o de Camp. Em seu


clássico ensaio, Sontag oferece várias definições para esta expressão que ela
considera “esotérica”. Para ela, falar de Camp é falar de sensibilidade, o que
é “uma das coisas mais difíceis” de serem realizadas. “Na realidade, a essência
do Camp é a sua predileção pelo inatual: pelo artifício e pelo exagero”
(SONTAG, 1987, p. 318). A androgenia é considerada por Sontag como uma
das grandes imagens da sensibilidade. “Camp é também uma qualidade que
pode ser encontrada nos objetos e no comportamento das pessoas. Há filmes,
roupas, móveis, canções populares, romances, pessoas, edifícios “campy” [...]
Essa distinção é importante. É verdade que o gosto Camp tem o poder de
transformar a experiência. Mas nem tudo pode ser visto como Camp. Nem
tudo está nos olhos de quem vê” (COLLING 1987, p. 2)

Assim o NQC, que surgiu como possibilidade representativa ao emaranhado de


alternativas de exploração das subjetividades sexuais, vai se edificando como o lugar onde todos
os tipos de desejo do indivíduo e do corpo como forma de linguagem podem se encontrar.
Deixando, deste modo, que o gay afeminado e alegre do “Camp” dividisse o mesmo espaço
com o gay marcado pela crise da AIDS, oprimido pela religião ou negado pela família na busca
da desconstrução dessas barreiras sociais. Em constante busca por movimentos de subversão e
resistência, o queer gera a identificação com o outro por meios de dramas, conflitos, dores e
47

alegrias, disseminando novas relações de poder/viver nos/os corpos como manifestos, livres,
pungentes e discursivos.
Em termos de Brasil, o surgimento do NCQ coincide com o momento drástico do cinema
nacional, no qual a produção se viu estagnada na primeira metade da década de 90, partindo de
uma média de 80 longas-metragens lançados por ano na década de 70, para apenas 9 longas-
metragens lançados no país em 1992. Sancionada pelo presidente Itamar Franco em 1993, a Lei
do Audiovisual, que instituía tanto prêmios públicos quanto um sistema de incentivos fiscais
na produção de filmes, foi um importante marco que permitiu uma gradual recuperação da nossa
produção. O primeiro filme do chamado “Cinema de Retomada”, sob a direção de Carla
Camurati, Carlota Joaquina, Princesa do Brasil, foi lançado em 1995 e a questão da
sexualidade nem sequer tangenciava a produção.
André Ricardo Araújo Virgens, que analisa a questão da homossexualidade no cinema
brasileiro sob o ponto de vista do mercado, pontua que o primeiro filme da retomada a trazer
uma personagem homossexual é Jenipapo (Monique Gardenbeg, 1995). Contudo, é apenas em
2001 que o tema terá destaque , no filme Amores Possíveis, de Sandra Werneck. Em sua
pesquisa, André Ricardo analisa o período que compreende 1995 até 2011, totalizando 16
longas metragens lançados cujo tema central e/ou protagonista da história flertava diretamente
com a homossexualidade ou transsexualidade. Considerando personagens secundários, a
presença LGBT lançada em circuito comercial no cinema brasileiro deste período, subia para
31 produções.
Filme Ano de lançamento Diretor/a
O jardim das Folhas Sagradas 2011 Pola Ribeiro
Elvis e Madonna 2011 Marcelo Laffitte
Estamos juntos 2011 Toni Venturi
Rosa Morena 2010 Carlos Oliveira
Como Esquecer 2010 Malu de Martino
Do começo ao fim 2009 Aluisio Abranches
Meu Amigo Cláudia 2009 Dácio Pinheiro
Dzi Croquettes 2009 Tatiana Issa e Raphael Alvarez
Rainhas 2008 Fernanda Tornaghi e Ricardo Bruno
Onde andará Dulce Veiga? 2007 Guilherme de Almeida Prado
As filhas da chiquita 2006 Priscilla Brasil
Bombadeiras 2006 Luis Carlos de Alencar
Cazuza 2004 Sandra Werneck e Walter Carvalho
Vereda Tropical 2004 Javier Torre
Madame Satã 2001 Karim Aïnouz
Amores Possíveis 2001 Sandra Werneck
48

Entretanto, o fato de o número de produções ter aumentado nos últimos anos


não implica, necessariamente, em um retorno de público e renda para as
mesmas. Por exemplo, dos 16 filmes citados acima, apenas três ultrapassaram
a barreira dos 100 mil espectadores no circuito comercial – “Amores
Possíveis”; “Cazuza – O Filme”; e “Madame Satã”. Isso denota, talvez, um
preconceito arraigado do mercado distribuidor e exibidor (ou mesmo do
público) em torno desses filmes. Mas não só. Como veremos a seguir, a partir
de estudos de caso, a falta de profissionalização/experiência de
realizadores/produtores que trabalham com esse campo temático também
aparece como elemento que potencializa a não inserção desses filmes num
circuito mais amplo.” (VIRGENS, 2013)

O Período posterior a esse mapeamento de André Ricardo Araújo Virgens, que engloba
os filmes realizados a partir de 2012, provavelmente é um dos produtivos, senão mesmo aquele
com maior exposição do cinema LGBT em termos nacionais. Filmes Crô- O Filme (Bruno
Barreto 2013), Somos Tão Jovens (Antônio Carlos da Fontoura 2013), Tatuagem – O filme
(Hilton Lacerda 2013), Hoje eu Quero Voltar Sozinho ( Daniel Ribeiro 2014) e Praia do Futuro
(Karim Aïnouz 2014) chegaram ao circuito comercial e, em alguns casos, (Crô – O filme e
Somos Tão Jovens) atingindo um público superior a 1 milhão de espectadores. Ainda pensando
em circuito comercial, os demais filmes atingiram a marca de 100 mil espectadores, com a
ressalva de Tatuagem não possuir dados oficializados à cerca da bilheteria.
De todo modo, para além do circuito comercial, o próprio Tatuagem – O Filme figurou
em 2014 nas principais listas de melhores filmes nacionais lançados naquele ano/ano anterior,
sem contar a participação e premiação em dezenas de festivais nacionais e internacionais. O
circuito de festivais abraçou não apenas os longas citados, como também uma outra infinidade
de filmes de todos os formatos e linguagens que falavam abertamente sobre as expressões da
sexualidade humana. A exemplo de A Cidade do Futuro (Cláudio Marques, Marília Hughes,
2016), A Paixão de JL (Carlos Nader, 2014) , Gazelle – The Love Issue (Cesar Terranova,
2014), Ralé (Helena Ignez, 2015) e TupiniQueens (João Monteiro, 2015)
É interessante também notar a presença de filmes realizados em contexto universitário ou
realizados por diretores recém-formados nas escolas de artes, cinema e audiovisual. Fato
remissivo à expansão do ensino superior promovido pelos governos Lula e Dilma: com a
abertura de novas universidades e cursos nas áreas de produção audiovisual, novos realizadores
puderam contar suas histórias sendo amplamente acolhidos pelos festivais, como é o caso de
Gustavo Vinagre, Leonardo Moura Matheus, Daniel Nolasco, entre outros.
Neste momento, a questão da representação, tanto em termos nacionais quanto em termos
globais, ainda se esbarra na questão do “homossexual padrão, branco, masculino e classe
média” presente, sobretudo, na TV. Contudo, o cinema, seja ficcional, documental ou
49

experimental, tem cada vez mais aberto os olhos às diferentes formas de se viver a sexualidade,
inserindo nos filmes contrapesos raciais, religiosos, etários e econômicos. Não se trata mais
apenas da simples presença de LGBTs na história, nem mesmo sobre apenas escrever suas
próprias histórias, para além disso, o cinema LGBT/queer contemporâneo busca, acima de tudo,
ser político e representativo em todas as esferas que não cabem apenas à sexualidade, mas tudo
o que dialoga com esses indivíduos. O contexto importa e a luta continua.

6. O QUE É UM FILME LGBT?


6.1 Gêneros Fílmicos:
Aqui vai um jogo para pensar: tente imaginar como seriam os filmes
com histórias e personagens homossexuais e lésbicos se alguém
retirasse todas as barreiras e, em seguida, financiasse as visões. E se,
por apenas um glorioso minuto, tentássemos imaginar o filme
absolutamente fabuloso que poderíamos ver se "eles" nos deixassem. O
que ele seria? Isaac Julien, o cineasta inglês homenageado em 1998 pelo
Centro de Estudos de Lésbicas e Gays na Universidade de Nova York,
diz que seria "algo brega sobre a família. Brega porque é o que é preciso
para motivar o público queer sair para vê-lo. E sobre a família, porque
esse é o grande tópico não-dito pela cultura queer, o local de trauma de
que ninguém falou”. John Waters, diabólico como de costume, elabora
uma fantasia: "todas as estrelas de cinema heterossexuais nuas tentando
ganhar o Oscar interpretando papéis e falhando miseravelmente" e
Donna Ditch, ainda adorada por seu clássico, Corações do Deserto
(1985), admite sua própria preferência: independente do assunto
"melhor que seja quente.” (RICH, 2013, p. 44)20

Tendo em mente o processo de representação de identidades LGBT no cinema desde


suas mais remotas produções, que caminham mais proximamente com as questões ativistas e
sociais, impulsionadas por movimentos libertários do final dos anos 60, desembocando na
criação de festivais temáticos como o Mix Brasil de Cultura da Diversidade e o Rio Gênero e

20
No original: Here’s a game to play: try to imagine what movies with gay and lesbians characters and plots
would look like if someone pulled out all the stops and then financed the visions. What if, just for a one glorious
minute, we tried to imagine the absolutely fabulous film we could see if “they” let us. What it would be? Isaac
Julien, the British filmmaker honored in 1998 by the Center for Lesbian and Gays Studies at the City University
of New York’s graduate center, says it would be “something cheesy about family. Cheesy because that’s what it
takes to get the queer audience to come out to see it. And about the family because that is the great unspoken
subject in queer culture, the site of trauma that no one has talked about. John Waters, devilish as usual
elaborates a fantasy: “All nude heterosexual Hollywood movie stars trying to win the Oscar by playing parts and
failing miserably” and Donna Deitch, still worshipped for her classic, Desert Hearts 1985, admits her own
preference up front: whatever the subject “better be hot”.
50

Sexualidade No Cinema, e no advento de uma “escola” cinematográfica denominada “Novo


Cinema Queer” e até mesmo na criação de categorias em sites e locadoras de filmes como
Amazon e Netflix, como definir o que é o filme LGBT?
Antes de mais nada, é importante buscar pela definição do que seria então o “Gênero
Cinematográfico”. Compreendendo que a questão do gênero em si não é exclusiva ao cinema,
sendo apontado já na Poética de Aristóteles pela distinção entre comédia e tragédia, ao
tratarmos exclusivamente do cinema — ainda que acompanhando alguns movimentos artísticos
culturais compartilhados com outras artes no decorrer de sua existência —, é possível afirmar
que se fez necessária a criação de uma categorização própria, atendendo assim suas
especificidades. A grosso modo, o gênero cinematográfico é estabelecido diante de um conjunto
de filmes que congregam um certo número de semelhanças de ordens temáticas, estéticas,
estilísticas, narrativas entre outras. O que complexifica a questão é o fato de que todo filme, por
mais que se enquadre em determinado gênero, sobretudo por questões comerciais, pode conter
em si elementos de outros gêneros.

Um género será uma categoria classificativa que permite estabelecer relações


de semelhança ou identidade entre as diversas obras. Desse modo, será
possível, seguindo o raciocínio genérico, encontrar a gênese comum de um
conjunto de obras, procurando nelas os sinais de uma partilha morfológica e
ontológica – assim, através da ínfima comunhão de determinadas
características por parte de um conjunto de obras, poderemos sempre proceder
à genealogia mais remota das mesmas, o que haverá de permitir compreender
melhor o seu processo criativo e efetuar a arqueologia das ideias fundamentais
que veiculam ou das situações que retratam. (NOGUEIRA, 2010, p.9)

Luiz Nogueira, que em seu “Manuais do Cinema II: Gêneros Cinematográficos” (2010)
classifica a Ficção, Animação, Documentário e o Experimental como sendo essencialmente
gêneros fundamentais ao cinema, irá também elencar uma série de critérios que podem ser
utilizados para enquadrar um produto fílmico em determinada designação de gênero, sendo
estes: os pressupostos técnicos; o programa estético; as condições de produção; eleição de
certos temas; as premissas criativas; as prescrições discursivas; a configuração do formato; a
função comunicacional e, por fim, a matriz comercial.
Os pressupostos técnicos mais comumente podem diferenciar filmes amadores de grandes
produções que contam com recursos de computação gráfica e realidades virtuais, ou
indiscutivelmente apresentar as diferenças técnicas entre cinema de animação e cinema “live-
action”. O documentário, em especial, possui características que o permitem se distinguir da
ficção, sendo essas características parte de um programa que vai além da estética e cada vez
51

mais tem assumido novas vertentes e incorporando novos recursos incluindo a fabulação. As
condições de produção podem ser exemplificadas se tomarmos como exemplo o principal mote
de Glauber Rocha “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, que reflete a oposição das
vanguardas contra os grandes estúdios. O mesmo acontece se avaliarmos os aspectos da
produção universitária em contraponto à produção industrial.
A matriz comercial é um elemento determinante para a rotulação de um filme, não apenas
no que se refere ao filme publicitário propriamente dito, já que toda produção audiovisual
possui em maior ou menor grau um apelo à capitalização. Nesse sentido, o enquadramento de
um filme em x ou y categoria o coloca em contato direto com o público com o qual ele tem
maiores chances de rentabilidade.

Quando um filme é rotulado como faroeste, musical ou comédia


romântica, isso cria no público expectativas em relação ao gênero ou tipo de
filme que verá. Ainda que alguns aspectos variem dentro de cada categoria,
eles têm padrões reconhecíveis em termos de tema, época, ambientação e
trama, além da iconografia e os tipos de personagens retratados (BERGAN,
2012, p.115)

6.2 Cinema LGBT/Queer é gênero fílmico?


Estando de acordo com os critérios e opiniões apresentados aqui, é possível inferir, a
exemplo dos citados festivais LGBT, que há um pensamento de agrupar os filmes que tangem
a temática LGBT. Deixando, deste modo, claro o intuito de categorizar essa produção,
principalmente por meio de um recorte temático. Nesse quesito fica mais evidente a
diferenciação de história (o que se conta) e enredo (como se conta).
A história de um casal, por exemplo, pode ser contada de diversas formas, mas a partir
do momento em que a sexualidade deste casal é fundamental para o avanço da narrativa, temos
um foco maior no que tange a qualificação do filme enquanto pertencente ao gênero LGBT.
Caso os desdobramentos da relação apresentada no filme ocorressem independentemente da
sexualidade dos personagens, o foco neste momento é transferido para o enredo, portanto, ainda
que não anule a possibilidade de enquadrar o filme no gênero LGBT, o filme em questão será
mais comumente enquadrado em outras categorias como comédia ou drama.
Do primeiro caso, temos como exemplo O Segredo de Brokeback Mountain (Ang Lee,
2004), no qual a relação amorosa entre os protagonistas Jack Twist e Enis Del Mar não poderia
ser vivenciada por um casal heterossexual, mesmo considerando as relações extraconjugais
como uma possibilidade inerente ao humano, os cowboys dividem entre eles características
reforçadas pela própria condição marginal da homossexualidade/bissexualidade; a negação, o
52

medo, e até mesmo o final trágico do filme apontam para o tratamento clássico dado às relações
homossexuais no cinema, mesmo que o filme quebre alguns estereótipos representativos.
No segundo caso, podemos analisar os filmes que se desdobraram do caso Leopold e
Loeb 21
, dentre os quais se encontram Festim Diabólico (Alfred Hitchcock, 1948) e Swoon –
Colapso do Desejo (Tom Kalin, 1992). Mesmo que no segundo filme, o envolvimento sexual
de personagens principais seja escancarado e óbvio em detrimento de leves insinuações no filme
de Hitchcock, em ambas as releituras o foco é o crime cometido pelos jovens amantes, sendo
que a questão da homossexualidade se faz determinante apenas no que tange ao assassinato de
Richard Loeb na prisão. Contudo, considerando que as adaptações ficcionalizadas não possuem
real compromisso em retratar a história com total fidelidade, seria possível, e sem perdas
narrativas, que os protagonistas fossem vividos por um casal lésbico ou mesmo heterossexual.
Ao analisarmos dessa forma, portanto, estamos levando em consideração que mais
comumente os filmes são categorizados a partir do enredo, porém não iremos encontrar um
consenso na definição do que seria este cinema LGBT. Tendo como base a introdução de Queer
Images (Benshoff e Griffin 2006), Lacerda aponta:

Três elementos que, separadamente ou em conjunto, dariam conta de


circunscrever o conjunto de filmes que despertam interesse dos estudos da
área. O primeiro e mais evidente diz respeito ao filme em si, ou seja, à sua
abordagem, direta ou indireta, de temas ligados ao homoerotismo e à
transgeneridade. [...] O segundo elemento diz respeito à autoria, ou seja, a
filmes que contam com indivíduos identificados como lésbicas, gays,
bissexuais ou transgêneros em funções chave – do roteiro, direção e produção
ao elenco principal – ainda que os filmes em si não abordem necessariamente
temáticas relativas a estas identidades. [...] Por fim, um terceiro elemento seria
a espectatorialidade, ou seja, a relação do público – em especial daquele
identificado como LGBT – com os filmes.” (LACERDA, 2013, p.122- 123)

No primeiro caso, vamos de encontro à maioria dos filmes citados no capítulo um e dois
deste memorial, onde até meados do século passado apresentavam, sobretudo por meio de uma
abordagem indireta, personagens homossexuais e transexuais que foram gradualmente, a partir
dos anos 70, ganhando espaço e uma pluralidade de abordagens.
No segundo caso, vamos de encontro principalmente aos conjuntos de filmes de autores
como Pier Paolo Pasolini, R W Fassbinder, Pedro Almodóvar e Karin Ainous. Ressaltando que

21
Leopold e Loeb mataram, Bobby Franks, um jovem de 14 anos, em 1924. O crime ficou conhecido por ter sido
motivado por uma necessidade de provar que eles eram intelctualmente capazes de cometer um crime
perfeito, tendo inspiração "a partir das idéias de Friedrich Nietzsche sobre o homem superior". O julgamento
se tornou um espetáculo da mídia, se transformando em inspiração para diversos filmes, livros e peças teatrais
53

os filmes englobados por este caso começam a ser produzidos a partir das vanguardas
cinematográficas, tendo como auge o advento do Novo Cinema Queer.

Não queremos cometer o erro de cair naquela velha e confortável caixa de


vítima, reclamando de ausência no meio da presença. Nós não somos mais
invisíveis. Agora podemos escrever uma história cinematográfica queer que
se alonga continuamente. Eu mesma posso comemorar uma linhagem
esplêndida de filmes que combinam uma chama criativa que eu preso com as
histórias inovadoras que o público ama (RICH, 2013, p. 42) 22

O último e mais complexo caso se dá através da percepção da audiência e teorias da


espectatorialidade, já que engloba filmes que não necessariamente trazem temas relacionados à
sexualidade ou vivência de LGBT, mas são adotados por estes indivíduos, provavelmente pela
ausência de representatividade nas telas, como acontecia na primeira metade do século XX,
fazendo com que os filmes clássicos de Vitor Fleming lançados em 1939: O Mágico de OZ e E
O Vento Levou ganhassem grande destaque entre as audiências LGBT, assim como musicais
clássicos e os filmes que traziam a presença das “divas” como Marlene Dietrich, Elizabeth
Taylor, Greta Garbo, Marylin Monroe e Judy Garland, ou em caso mais recentes, onde a figura
da “diva” continua atraindo uma parcela LGBT a filmes não necessariamente endereçados para
este público, como é o caso de Manchete Mata ( Robert Rodriguez, 2015), com presença da
cantora Lady Gaga no elenco e Battleship - A Batalha dos Mares (Peter Berg, 2012), com
participação da cantora Rihanna.
A figura da ‘Diva’ é um referencial a mulheres com personalidades marcantes,
desafiadoras, a frente do seu tempo. São mulheres que em um contexto social de extremo
machismo se destacaram por se fazerem vistas e ouvidas por meio de uma habilidosa
determinação e coragem, sendo absorvidas pela comunidade LGBT como uma pulsão libertária,
ao mesmo tempo em que simbolizavam também o êxito, vislumbradas e glamourizadas por essa
comunidade marginalizada.

Num dos estudos mais célebres sobre a questão, Judy Garland and gay men,
Richard Dyer (1986) observa que a devoção dos gays à diva do cinema e da
música passava pelo compartilhamento de dois elementos específicos: da
condição de marginalidade em relação a certa norma – dos gays em relação à
heterossexualidade; de Garland em relação aos ditames do star system – e do

22
No Original: We don’t want to make the mistake of falling into that comfortable old victim box, complaining
of absence in the midst of presence. We are not invisible anymore. We can now write a queer cinematic history
that stretches way back. I can even celebrate a shining lineage of films that combines the creative spark that I
crave with the groundbreaking stories that audiences have love.
54

drama e dignidade envolvidos na obrigação da interpretação de um papel que


se enquadrasse nesta norma (LACERDA, 2013, p.65)

Considere o estado de "gays e lésbicas" nos filmes teatrais norte-americanos


antes de 1969. Provavelmente não havia tal coisa, apenas uma dispersão de
diretores gays e lésbicos, então não assumidos, fazendo filmes que se
disfarçavam de heterossexuais para obtenção do mercado de massa, embora
com ocasionais atores homossexuais ou lésbicas ou insinuações sutis. Se
personagens fossem abertamente identificados como gays ou lésbicas na tela,
geralmente era como efeito cômico ou morte trágica. George Cukor, Dorothy
Arzner, James Whale: eles eram todos sobre se encaixar, não se destacar. Em
vez disso, havia plateias gays e lésbicas que adotavam certos filmes como
seus, celebrando subtextos e linguagem codificada, conheciam fofocas para
serem capazes de identificar atores e atrizes gays e lésbicas e se orgulhavam
de serem suficientemente aptos para ler seus próprios desejos nas histórias. A
categoria era de natureza relacional, constituída pela interação dos
espectadores com os filmes.23 (RICH, 2013, p. 4)

Centrar a definição de um filme enquanto LGBT ou não, tendo como base o público,
provavelmente seja a mais delicada e complicada forma de enquadrá-lo, tendo em vista que
definir a sexualidade de um diretor, roteirista ou atores em específico é uma tarefa muito mais
simples do que qualificar todo o público que terá acesso e interesse pela obra dirigida, escrita
ou encenada pelos elementos citados como exemplo.
Contudo, a audiência LGBT espera receber dos filmes basicamente o que a audiência
heterossexual espera, sentir-se entretida e representada por meio de filmes que imprimam
valores positivos e não apenas o velho estereótipo seguido de papéis secundários.

6.3 Análise de Caso: Moonlight: Sob a Luz do Luar


Buscando exemplificar a questão, trago o debate acerca do emblemático Moonlight: Sob
a Luz do Luar (Barry Jenkins, 2016), vencedor de vários prêmios ao redor do mundo, em
especial, o de melhor filme, tanto no Oscar quanto no Globo de Ouro, principais premiações da
indústria cinematográfica norte americana.
Em Moonlight: Sob a Luz do Luar são apresentados três momentos da vida de Chiron da
infância até a vida adulta, enquanto negro, morador de uma comunidade pobre em Miami e

23
No original: Consider the state of “gay and lesbian” theatrical movies in United States before 1969. Arguably
there was no such thing, just a scattering of gay and lesbian directors, often closeted, making films that were
masquerading as mass-market heterosexual fare, albeit with the occasional gay or lesbian actor or subtle wink.
If characters were openly identified as gay or lesbian on screen, it was more often for a punch line or tragic
demise. George Cukor, Dorothy Arzner, James Whale: they were all about fitting in, not standing “out”. There
were instead gay and lesbian audiences that adopted certain films as their own, celebrated subtexts and coded
language, knew enough gossip to be able to identify gay and lesbian actors and actresses, and prided
themselves at being adept enough to read their own desires into the plots. The category was a relational one,
constituted by the interaction of viewers with films.
55

homossexual. Inserido desde a infância em um contexto de uso e vendas de drogas, e num


universo periférico, o filme passa todo o tempo buscando desconstruir lugares comuns de
representação, ao exemplo do personagem Juan, um traficante de drogas que assume papel de
mentor de Chiron logo após ver o garoto correndo pelas ruas do bairro, perseguido por outras
crianças.
A questão da homossexualidade de Chiron não pode ser tratada como incidental, ela está
ali presente e norteia todo o filme, pois todos os processos que o jovem vive não se dão apenas
pela negritude e precarização do meio no qual está inserido. Ser gay coloca Chiron no lugar do
outro, do estranho, daquele que não se encaixa em seu contexto. Ser negro não é a chave que
irá diferenciá-lo da sua comunidade, sua sexualidade, sim. Ainda que ele passe por todo o
processo de negação e autopunição para enquadrar-se naquilo que a sociedade espera dele
enquanto um homem afro-americano, o fato de ser homossexual é catalizador para todo o seu
processo pessoal de mudanças.
A estrutura narrativa do filme, dividida em três momentos intitulados “Little”, “Chiron”
e “Black”, é um elemento primordial na defesa de que nós, enquanto seres humanos, nunca
somos a mesma pessoa, isso em decorrência da vivência de nossas experiências. Tanto que a
visível fragilidade do primeiro seguimento é substituída por uma imagem de Chiron que de
imediato se associa a figura de Juan, um homem adulto “forte” e “seguro”. Essa ideia de
movimento, de troca e adaptação de identidades, assim como mais efetivamente a performance
da masculinidade exercida por “Black”, dialoga diretamente com a ideia do queer, por tratar a
identidade como uma performance em trânsito.
Essa leitura do “forte e seguro” pauta-se, antes de mais nada, em uma leitura superficial
que tem como base todo um histórico de representação das masculinidades negras no cinema.
Mesmo com a associação ao tráfico de drogas, tanto Juan quanto Chiron, na fase adulta, são
homens sensíveis, cuidadosos em relação àqueles que amam e não violentos – se opondo à
figura do macho dotado de ódio e raiva, disposto a cometer qualquer barbaridade para alcançar
seu objetivo, associados a papéis negativos, como o desvio de caráter e vilania, além da óbvia
hipersexualização, que está presenta na maioria dos filmes hollywoodianos.
A primeira parte do filme intitulada “Little” é repleta de momentos e simbologias que
remetem à fragilidade, dúvida e ao medo na infância diante da sexualidade. Logo no início do
filme vemos Chiron correndo de um grupo de “bullies” e se refugiando em uma casa vazia,
saindo de lá apenas após a chegada de Juan. Juan e sua namorada Thereza acolhem o garoto,
oferecendo a ele um suporte emocional que a criança não encontrava em casa. A relação entre
protagonista e casal nesse primeiro momento do filme permite que o garoto encontre um porto
56

seguro para se expressar, ao contrário de todas as outras áreas de sua vida. A possível
homossexualidade da criança é pontuada por dicas sutis e não definidoras, como o fato de
Chiron se desenvolver melhor na dança do que nos esportes, um signo de representação bastante
comum, porém tratado de maneira delicada. O mesmo ocorre na sua relação com os outros
garotos da escola quando se nega a participar do processo de descoberta de seus corpos no
banheiro, por medo de dar indícios de uma sexualidade desviante da norma.
Em outros momentos, o “ser gay” na infância é pontuado de forma mais direta, seja pela
sequência onde a própria mãe de Chiron enfrenta Juan, questionando-o se já havia observado a
maneira como o garoto se portava, ou pela sequência em que Chiron pergunta a Juan o que é
“viado” (em inglês o termo utilizado é faggot), e Juan o responde que é um termo pejorativo
utilizado pra diminuir aqueles que são gays, afirmando que mesmo que Chiron fosse gay, ele
jamais deveria aceitar que alguém o classificasse pejorativamente. A criança rebate
perguntando “Eu sou Gay?”, e em um momento maduro, tratando-se tanto da idade do garoto
quanto da natureza da pergunta, então Thereza diz que na hora certa ele simplesmente saberá.
Na adolescência, Chiron se apresenta um pouco mais fechado. Neste momento do filme
Juan está morto, a sua mãe está cada vez mais afundada no vício, as agressões sofridas na escola
parecem ser constantes e as dúvidas em relação a si próprio aumentam exponencialmente. Não
há outra leitura às agressões sofridas por Chiron nesta fase senão por homofobia. Outro
momento emblemático dessa fase do filme é a cena em que o protagonista e seu amigo Kevin
se encontram na praia e após uma conversa franca e sincera sobre seus sentimentos, Chiron
deixa-se ser masturbado por Kevin. Esse momento é retomado na terceira parte do filme,
quando “Black”, ao reencontrar o amigo anos depois, afirma que: “Você [Kevin] foi o único
homem que me tocou na vida. O único. Eu nunca fiquei com alguém desde então”, essa é a
deixa para o momento mais sensual do filme, onde há toda uma tensão sexual e romântica entre
os dois personagens, não concretizada em cena.
Mesmo que esses momentos citados possuam um caráter importantíssimo na progressão
narrativa do filme, parte dos críticos e espectadores do longa adentraram na questão principal
deste capítulo, Moonlight: Sob a Luz do Luar seria então o primeiro filme gay a ganhar o Oscar?
Ou melhor, Moonlight: Sob a Luz do Luar é um filme gay?

[Moonlight: Sob a Luz do Luar] Deveria ser anunciado como algum tipo de
porta-bandeira para o Novo Cinema Queer, encorajador como seu sucesso
“mainstream” é para o movimento. Porque embora a descrição do filme de
uma sexualidade alternativa emergente seja lindamente articulada e modulada,
há um nível de cautela que permitiu sua aceitação mais ampla até o momento:
é um romance gay com nenhuma atividade sexual na tela além de uma
57

masturbação não vista. Esse pode ser um nível adequado de extremidade para
uma história ligada à repressão, mas é difícil imaginar um estudo igualmente
realizado, mais explícito das sexualidades não normativas entre os homens
afro-americanos que atenha alcançado tanta aclamação popular24 (LODGE,
2017)

É certo que o filme irá tratar da negritude e a sexualização do homem negro, mas desde
o início, em todas as três partes do filme, vamos encontrar a homossexualidade do personagem
como peça chave para narrativa. Se Chiron fosse heterossexual, me parece improvável que todo
o processo de autopunição da personagem iria se suceder da forma como se sucedeu, mesmo
que a marginalização do negro e do gay não se configurem em processos necessariamente
excludentes.
A principal crítica daqueles que não querem reconhecer “Moonlight” enquanto um filme
LGBT, é que o mesmo se diferencia em diversas questões da abordagem propostas pelos filmes
do Novo Cinema Queer, já que em nenhum momento propriamente dito, o protagonista se
assume enquanto gay explicitamente, confessando que anulou a própria sexualidade desde a
adolescência, quando foi tocado pelo amigo Kevin. Outras questões apontadas pela crítica é
que o filme apresenta uma versão não real do que é viver no “armário”, ou que o filme promove
uma busca pela normativa heterossexual exemplificada pela configuração física de Chiron na
vida adulta.
Contudo, se retomarmos se consideramos que o protagonista cresceu no subúrbio,
vítima de uma sociedade extremamente racista e homofóbica, — que força não apenas a
sexualização precoce, mas as hipersexualização dos homens negros—, que o protagonista
cresceu sem praticamente nenhum modelo “masculino” a quem seguir, (com exceção de Juan
– heterossexual que corresponde ao perfil do homem negro, forte, másculo) e que vivenciou um
período em um presídio – ambiente marginalizado e repleto por homens “valentes”, “duros”,
“destemidos”, “violentos”, “criminosos” —, podemos supor que Chiron carregará as marcas
dessas vivências, o meio em que ele cresceu não apresentava brecha para explorar a
sensibilidade, os afetos, o olhar “queer” do mundo.

24
No original: Nor should it be heralded as some kind of flag-bearer for new queer cinema, heartening as its
mainstream success is for the movement. Because although the film’s depiction of emerging alternative sexuality
may be beautifully articulated and modulated, there’s a level of cautiousness that has enabled its broader
acceptance thus far: it’s a gay romance with no on-screen sexual activity beyond an unseen handjob. That may
be an apt level of extremity for a story hinged on repression, but it’s hard to imagine an equally accomplished,
more explicit study of down-low sexuality among African-American men garnering quite as much popular
acclaim.
58

Moonlight: Sob a Luz do Luar não promove então, de forma alguma, a normatividade
heterossexual, ele apresenta como a existência de uma normativa que interfere nos sujeitos
dissidentes dentro de um recorte específico. A visão deturpada do que é viver no armário, é em
si, uma das críticas mais problemáticas, ao passo que não é possível definir de fato o que seria
viver “no armário”, já que hoje em dia discutimos homossexualidades e não mais
homossexualidade, o contexto de inserção do indivíduo é fundamental para entender o processo
de cada membro da comunidade LGBT.
Há no cinema LGBT lugar para filmes que universalmente tratam da experiência
homossexual, assim como também há lugar para experiências localizadas. Quanto mais
representações diversas de homo/transsexualidades chegarem ao cinema, o que felizmente tem
ocorrido, maior é o leque de possibilidades em termos de contatos com essas narrativas que
diferem o retrato LGBT de quase um século na história do cinema. Aqueles que utilizam o
Novo Cinema Queer na tentativa de invalidar a produção como um legítimo filme LGBT se
esquecem que o NCQ, antes de mais nada, propõe justamente uma diversidade maior de
histórias sendo contadas, de representações que rompam o estereótipo e de sujeitos particulares
com vivências singulares. É justamente isso que é oferecido por Moonlight: Sob a Luz do Luar.
Apenas a título de referência histórica, esse tensionamento entre negritude e
homossexualidade já havia sido expresso anteriormente em Línguas Desatadas (Marlon Riggs,
1989), sendo apresentado no documentário experimental o amor entre homens negros e
másculos, além de performances e críticas diretas a homofobia em filmes negros. O
documentário, controverso em seu lançamento, foi recentemente, em 2016, aclamado pela
crítica e pelo público no 30º Prémios Teddy, um dos mais importantes festivais voltados ao
cinema LGBT.

6.4 Concepção de Cinema LGBT para a curadoria


Levando em consideração que o produto final deste trabalho se configura em uma
curadoria de curtas LGBT, a conceituação do que é esse o cinema se faz de extrema
importância. Quais os posicionamentos adotados pela curadoria?
Para a realização da mostra proposta no final deste trabalho, foi aplicado um
questionário livre aos realizadores que inscreveram seus filmes via formulário on-line, entre as
questões presentes no formulário destaco a pergunta título deste capitulo: O Que é cinema
LGBT? Chamo atenção aqui para algumas das respostas enviadas – por questão de preservar a
identidade dos realizadores, não citaremos a autoria das respostas enviadas no ato de inscrição
-.
59

“Para mim, algo que não existe. A existência desse termo, me faz pensar que
também existe um "cinema hétero". Mas, dentro de todo o contexto social que
vivemos, acredito que seria uma tentativa de representar, dar visibilidade e
pensar. “
.
“É um cinema de embate, de confronto, que revela uma sociedade mais
diversa, ampla, anti-heteronormativa e não binária, inclusiva e injustiçada
culturalmente, politicamente, socialmente e que precisa sair da margem dos
preconceitos e fobias vivenciados diariamente.”

“É o cinema que inclui o universo LGBT com naturalidade, mesmo que não
seja o foco da produção em questão.”

“Ativismo político e social.”

“Em um contexto sociopolítico aonde a cultura e as pessoas LGBT continuam


sendo marginalizados, a ideia de um cinema LBGT se mostra, mais do que
nunca, como uma força a romper barreiras. Sejam essas estéticas ou
temáticas.”

“Em outras épocas, cinema LGBT (ou cinema temático, como costumava ser
chamado), era um rótulo muito prejudicial, para filmes em que havia alguma
relação lgbt como mote, mas hoje em dia é um conceito bastante diluído. Vejo
de forma positiva o fato de filmes sobre lgbts, ou dirigidos por, não terem
tanto destaque por estarem se tornando peças audiovisuais comuns e no
mesmo patamar de interesse que todas as outras. O caminho é longo, porém
possível.”

“Não saberia mencionar com precisão o que é cinema LGBT. Acredito que a
busca por filmes desse filão pode se dar de diversas maneiras. A um primeiro
olhar, penso obviamente em filmes que lidam ou tematizam diretamente
personagens e histórias de LGBTs. Mas talvez a ideia de LGBT possa ir além
da representatividade e incidir diretamente na forma do filme também,
provocando a criação de um olhar afetado, exagerado, frívolo, enfim,
construído a partir de eixos culturais caros para a afirmação das identidades
LGBTs. Por fim, talvez fosse importante pensar em filmes LGBTs do ponto
de vista da recepção também. Nessa acepção, filmes que se tornaram ícones
para nossa comunidade mesmo sem lidar diretamente com questões LGBT
poderiam ser levados em conta, a exemplo de O Mágico de Oz, Juventude
Transviada e Thelma & Louise, que estimularam leituras sobre libertação
queer por meio de personagens no limiar entre normativo e dissidente.”

“Cinema feito pelas gays* pras gays*. (*Lésbicas, bis, trans.)”

“Cinema LGBT é um cinema que dá visibilidade e destaque a comunidade


LGBT. Se um filme tem a pretensão ou não de ser político, não importa para
enquadra-lo nesse gênero. O importante é que aborde a temática ampliando o
campo de abrangência dos LGBTs”

“Cinema LGBT é aquele em que há pessoas LGBT em todo o processo de


realização do filme, ou pelo menos, a maioria, mesmo que o filme não aborde
o tema LGBT, mas o ponto de vista é de uma pessoa LGBT, isso é importante,
60

sendo o cinema uma forma de empoderamento e de luta dar condições para as


minorias sociais, terem acesso a essa linguagem e aos equipamentos para que
elxs contem as suas histórias.”

“É o cinema engajado em preencher a lacuna que o cinema hegemônico deixa,


quando omite as histórias de gays, lesbicas, bissexuais, transexuais e
intersexuais”

“O cinema LGBT é mais uma outra porta de expressão e libertação que nossa
comunidade encontrou para lutar pelos seus direitos. O cinema é uma arte que
tem potencial de alcançar milhares de pessoas e espalhar a mensagem que
queremos.”

Como é possível perceber em algumas respostas, os critérios adotados por Benshoff e


Griffin, em Queer Images (2006), já apresentados anteriormente, que dizem a respeito ao eixo
temático e a presença de personagens LGBT na narrativa; da autoria e da audiência, se fazem
presentes. Junto a esses critérios, temos uma forte propensão de relacionar essa produção com
o teor político e ativista.
Em tempos de crescente e assustador conservadorismo político e social, consideramos
enquanto curadoria, que é o elemento político o mais expressivo na busca de definição do
cinema LGBT. Parafraseando RuPaul, “qualquer filme que se coloca enquanto produção LGBT
já está fazendo política”. Juntamente com este fator, temos o primeiro quesito de Queer Images,
o que se faz mais importante na tentativa de qualificar essa cinematografia.
As narrativas que abordam temas referentes à cultura e vivências homossexuais e
transexuais são certamente fundamentais na adjetivação do cinema LGBT/Queer. Contudo, ao
tratar da presença de personagens LGBT é preciso assegurar não apenas a mesma, mas também
assegurar sua visibilidade enquanto personagens centrais, donos de suas próprias narrativas,
contextos e histórias.
Portanto, a resposta para pergunta título é: O Cinema LGBT, além de mostrar em destaque
personagens e histórias LGBT, preferencialmente traz em sua construção criativa e técnica
indivíduos LGBT. Cinema LGBT não necessariamente é realizado por indivíduos LGBT (como
é o caso de Moonlight: Sob a Luz do Luar), mas deve tratar com sensibilidade as questões caras
e inerentes a essa comunidade. O Cinema LGBT é, antes de mais nada, e acima de tudo, uma
afirmação política, estética e artística de uma comunidade que durante séculos foi oprimida e
silenciada, é um grito de liberdade em meio ao vazio provocado pelo excesso de informação da
contemporaneidade: nós estamos aqui, nós somos queer!

7. DISTRIBUIÇÃO DE FILMES LGBT’S


61

7.1 Pink Money e Novas Tecnologias


Com a ascensão do movimento dos direitos LGBT, o chamado “Pink Money” ou
“Economia Rosa”, acabou por se transformar em um poderoso seguimento de mercado, que
eclodiu a partir dos anos noventa em vários países do mundo, movimentando cerca de U$ 350
bilhões anualmente, especialmente em turismo, bens de consumo e entretenimento. Tratando-
se especialmente de Cinema LGBT, distribuição e consumo, parece importante abordar a
questão econômica. Entender o cinema enquanto indústria cinematográfica é fundamental para
entender quais os filmes são lançados em circuito comercial, suas escolhas narrativas e
estratégias de marketing.

Que tipo de filmes e vídeos você quer? Isso Importa? Sim, importa. No mundo
do desejo e da evolução, nós podemos atravessar daqui para lá sobre a ponte
de nossas imaginações. Se nos limitarmos ao que vemos no espelho, estamos
perdidos, se tivermos medo de algo novo ou diferente, ou ficarmos
indiferentes a vídeos que desafiam nossas noções do universo homo natural,
ficaremos presos ao status quo. Se o público queer ficar longe do trabalho
polêmico e inovador, então os estúdios e distribuidores, aqueles que observam
a bilheteria como um sismólogo assiste a escala Richter, ficaremos
completamente de lado. E a comunidade queer será abandonada, condenada
ao universo estático, confortada apenas pelo conhecimento seguro que a terra,
infelizmente, não se moverá debaixo de nossos pés.25 (RICH, 2013, p.45)

O pressuposto básico de toda indústria inserida no sistema capitalista é a obtenção de


lucros, no caso da indústria do cinema o filme é realizado enquanto um investimento, seja de
uma empresa privada ou agências governamentais, por meio de leis de incentivo fiscal (como
ocorre muitas vezes no Brasil e demais países periféricos). Portanto, há um recorte de público
alvo pelo qual o marketing e as estratégias de lançamento do filme são definidas, no objetivo
de que as produtoras, distribuidoras e circuito exibidor possam trazer de volta para seus caixas
o investimento realizado previamente somados a novos rendimentos.
Mesmo assumindo o fato de que toda produção de um filme é tida como um
investimento, já que o retorno do público é incerto até que a produção de fato estreie nas salas
de cinema, é preciso pontuar as diferenças estruturais na forma como filmes realizados com

25
No original: What kind a of movies and videos do you want? Does it matter? Yes, it does. In the world of desire
and evolution, we can only get from here to there over the bridge of our imaginations. If we limit ourselves to
what we see in the mirror, were lost, if we are scared of anything new or different , or made uneasy by films and
videos that challenged our notions of the homonatural universe, we’ll be stuck with the status quo. If queer
audiences stay away from controversial groundbreaking work, then the distributors and studios, those who
watch the box office like a seismologist watches the Richter needle, will pull out completely. And the queer
community will be abandoned, condemned to static universe, comforted only by the sure knowledge that earth,
alas, won’t move under our feet
62

recursos privados e incentivos governamentais são produzidos e alcançam retorno financeiro.


No primeiro caso, mas comumente ligado a grandes produtoras que possuem não apenas
experiência com o mercado, mas ferramentas para simular a aceitação ou não do produto a ser
lançado – como ocorre nas grandes produtoras de Hollywood e filmes encomendados pela TV
– o filme representa um risco, podendo ser um fracasso de bilheteria e não atingir o valor
investido pela produtora configurando-se como prejuízo. Já no segundo caso, os filmes
realizados por meio de leis de incentivo já chegam ao mercado pagos, e ainda que não consigam
janelas de exibição, o produto jamais poderá ser tratado como prejuízo, já que os editais
governamentais esperam muito mais retorno social do que econômico. O objetivo principal não
é ser exibido para fazer valer o investimento do governo gerando dividendos que voltem para
o caixa público e sim apresentar ao público o investimento em arte e cultura, e no fomento da
diversidade artística, realizado através do governo e apoiado por determinadas empresas.
Tendo em vista este panorama, podemos encontrar nessa dualidade o embrião de uma
outra questão que permeia, sobretudo, o cinema nacional: “Filmes de Cinema (circuito
comercial)” e “Filmes de Festivais”, ainda que essa divisão seja errônea e completamente
prejudicial para o desenvolvimento econômico do cinema nacional, é comum na nossa cultura
de produção cinematográfica que alguns filmes cheguem antes aos festivais e apenas após
validação dos juris oficiais e públicos de festivais eles adentrem ao circuito comercial.
Tratando-se de uma cinematografia LGBT, essa questão é muito mais evidente, já que os filmes
dialogam em sua maioria com uma demanda de público específica, o que vamos discutir mais
a frente ao abordar os festivais de gênero e sexualidade. E nesse sentido é possível inferir de
antemão que o rótulo “cinema gay” é inserido muitas vezes já no processo de pré-produção do
filme, seja na escrita do roteiro ou na escolha do elenco.
Em um artigo publicado pela revista IstoÉ Dinheiro, foi apontado por algumas pesquisas
que o público homossexual gasta cerca de 30% a mais do que os heterossexuais, no mesmo
artigo também temos apresentada a companhia “LGBT Capital”, que é especializada em
administrar ativos e prestar serviços de consultoria financeira e empresarial à comunidade
LGBT. Segundo o seu fundador, Paul Thompson, muitos dos membros da comunidade não
possuem planejamento financeiro algum a longo prazo, o que reflete no seu alto grau de
consumo de bens culturais, turismo e entretenimento.
No Brasil, se tomarmos uma pesquisa do IBGE de 2010 como exemplo, iremos nos
deparar com um número de 67,4 mil casais formados por pessoas no mesmo sexo, o que
equivale a menos de 1% da população, contudo, pelo Censo do mesmo ano foi possível afirmar
que a população homossexual brasileira é estimada em 20 milhões.
63

De acordo com o IBGE, 10% da população brasileira é composta por


homossexuais – cerca de 19 milhões de pessoas. Desse total, 9,4 milhões são
economicamente ativos, potenciais consumidores. Ignorá-los seria o mesmo
que não dar atenção a um grupo com poder de compra e renda média
individual de R$2.500.

Pesquisa realizada pela Associação da Parada do Orgulho GLBT


(APOGLBT), em parceria com a Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da República (SEDH), na Parada Gay de São Paulo, em 2006,
mostrou que a renda de homens e mulheres homossexuais são próximas, e o
mercado lésbico é tão promissor quanto o mercado gay masculino. Ambos os
grupos costumam gastar 30% a mais que os heterossexuais. (Disponível em <
http://brasileiros.com.br/2011/06/o-poder-do-pink-money>. Acesso em 03
mar. 2017.)

Diante desses números e segundo um estudo da OutLeadership, associação internacional


de empresas que desenvolvem iniciativas para o público gay, estima-se o potencial financeiro
da comunidade LGBT em cerca de R$ 418,9 bilhões, ou 10% do PIB nacional. Esses números
são estimados por dois fatores, o primeiro deles é o fato de que nenhum país, até então, incluía
estatísticas específicas para a comunidade LGBT em seu Censo, e o segundo fator se dá pelo
fato de que muitos homossexuais não se assumem enquanto tal durante a realização de
pesquisas relacionadas.
Estes números são importantes para retornamos a discussão dos filmes – e demais
produções audiovisuais- realizados por grandes produtoras e voltados para o público LGBT. Se
empresas de vários seguimentos (automobilística, imobiliária, saúde e até mesmo redes de “Fast
Food”) se alertaram ao potencial consumidor deste público, as chamadas indústrias de
economia criativa26 não ficaram para trás na tentativa de satisfazer as necessidades e desejos
deste mercado.
Os estudos já apresentados trazem também o levantamento da InSearch, realizado em
17 estados brasileiros revelando o perfil econômico do gay masculino, no qual se encontram
duas informações cruciais para entender a relação entre “arte LGBT” e “economia rosa”. A
primeira informação é a de que homens gays gastam 28% a mais do que homens heterossexuais
com itens culturais e educativos. E a segunda delas é que do total de entrevistados, 48%
disseram ter TV por assinatura.

26
Uma das definições de Indústrias Criativas surge com o documento intitulado Creative Industries Task Force
Mapping Document (2001) produzido na Grã-Bretanha. Considerando por Indústrias Criativas aquelas que
exercem “as atividades que têm suas origens na criatividade individual, habilidade e talento e que têm o
potencial para a criação de riquezas e empregos por meio da geração e da exploração da propriedade
intelectual.”
64

O primeiro dado, de forma mais ampla, reflete o consumo não apenas do cinema, mas
de indústrias como a musical, teatral e literária por exemplo. O segundo, de forma mais
especifica, é de extrema relevância se considerarmos que muitas vezes o rótulo de “Cinema
Gay” pode dificultar a inserção desse produto nos grandes circuitos de exibição, a TV por
assinatura possui a vantagem de ser fragmentada em diversos seguimentos, criando a
possibilidade de existências de canais específicos voltados para o público LGBT, como é o caso
da Logo, GayTV, OutTv, Pink Tv.

A década de 1980 foi também a década em que a televisão a cabo chegou,


fornecendo uma saída instantânea na forma de acesso a canais a cabo, onde as
obras podiam ser vistas e amadurecidas. A invenção de máquinas de vídeo e
fitas vhs, agora obsoletas, foi uma revolução na distribuição, colocando filme
e vídeo pela primeira vez em pé de igualdade com os livros pela facilidade de
uso. Então, as mudanças tecnológicas poderiam levar a transformações sociais
e políticas também. 27(RICH, 2013, p.xvii)

A criação de canais específicos, ao mesmo tempo em que é um reflexo positivo quanto


à possibilidade de janela de exibição, acaba por segmentar ainda mais o público, o que reforça
a ideia de que as produções, em escala de investimento privados, já são feitas para dialogar
diretamente com este segmento. Contudo, é preciso também realizar algumas críticas a esse
modelo, sobretudo na relação da “Economia Rosa” e seu potencial de decidir onde ou se estes
filmes serão exibidos. Em primeiro lugar, é preciso considerar que historicamente o movimento
LGBT é underground e a sua inclusão pelo sistema capitalista se aproxima muito mais dos
discursos assimilacionistas do que dos liberacionistas, e como consequência dessa inclusão por
meio de assimilação, temos comumente representado um perfil “padrão” de homens gays, cis,
brancos e classe média, o que acaba por representar um “avanço datado e precário” nas lutas
por direitos e representação, ainda que haja mais janelas exibidoras, não há um número maior
de “homossexualidades” sendo igualmente expostas na televisão e nas grandes redes de cinema.
Parte da presença hegemônica desse perfil “gay” ocupando as janelas de exibição
voltadas para todo o espectro LGBT se dá também pelo próprio perfil dos consumidores destes
serviços. A mesma pesquisa da InSearch que revelou que 48% dos entrevistados possuíam TV
a cabo, também revelou que, dos entrevistados, a maioria, 39%, pertencia às classes A-B,
enquanto 30% pertenciam à classe C. Nesse sentido, não se faz necessário nenhum estudo mais

27No original: The 1980s was also the decade in which cable television arrived, providing an instant outlet in
the form of municipal public-access cable channels, where the works could be seen and come of age. The
invention of VCR machines and vhs tapes, now obsolete, was a revolution in distribution, putting film and video
for the first time on a par with books for ease of use. Then as now, technological changes could lead to social
and political transformations too.
65

aprofundado da população brasileira e seu perfil socioeconômico para entender que nesse
regime, boa parte da população LGBT periférica está excluída de ser entendida como potenciais
consumidores e integrantes do grande segmento do “pink money”.
Indo contra esse sistema e facilitados pelos avanços da tecnologia, como os celulares
com câmeras e filmadoras portáteis, vemos a possibilidade de criação de histórias surgirem em
todos os cantos, fazendo com que a periferia, o gueto, as comunidades periféricas também
possam gravar e exibir suas histórias, fazendo uso principalmente das plataformas digitais e de
alguns festivais como janelas de exibição. A grosso modo, esses filmes ainda possuem pouco
espaço para capitalização, mas com a visibilidade da internet os realizadores e elenco encontram
a chance não apenas de atingir o público, mas também, em alguns casos, de obter dividendos
por meio de plataformas como o Youtube e o Vimeo.
Ainda que não seja o caso específico desses filmes, a Netflix se tornou um caso
emblemático no quesito distribuidor de filmes online nos últimos anos. A plataforma em si, por
meio de uma categoria LGBTQ, demonstra interesse em dialogar com essa audiência, mas
acaba mais frequentemente por atender em seu catálogo ao padrão assimilacionista, com alguns
casos que fogem à regra principalmente se tratando da produção própria como Orange Is The
New Black, Unbreakable Kimmy Schmidt e Sense8. No Brasil, a empresa possui apenas dois
filmes nacionais nesta categoria: Hoje Eu quero Voltar Sozinho (Daniel Ribeiro - 2014) e Beira
–Mar (Filipe Matzembacher e Marcio Reolon -2015), ambos dramas juvenis sobre o processo
de se descobrir gay indo de encontro à primeira relação afetiva-romântica.
O caso específico de Hoje eu quero voltar sozinho é interessante no sentido de que o
filme, ainda que não seja necessariamente uma continuidade do curta Eu não quero voltar
sozinho (2010) (com o qual divide não apenas o mesmo diretor, mas o mesmo elenco e mesma
história, diferindo-se apenas na forma narrativa apresentada e na duração fílmica), possui nele
as raízes para sua existência. Lançado quatro anos antes, o curta-metragem teve participação
em mais de 70 festivais nacionais e internacionais, sendo premiado na maioria deles. Somado
ao destaque adquirido por meio das exibições em festivais, o filme contou com um vasto
marketing on-line, despertando interesse de investidores e patrocinadores, tornando assim
viável a produção do longa lançado em 2014.
Ainda que Hoje eu quero voltar sozinho seja um exemplo contemporâneo mais próximo
da nossa realidade, é preciso voltar ao Novo Cinema Queer dos anos 90 para entender não
apenas o crescimento na produção dos filmes LGBT, mas também como o rótulo gay nesse
aspecto se faz positivo, e como a aceitação e validação do público é fundamental para que haja
interesse das produtoras em investir na realização desses filmes.
66

7.2 Festivais
A internet é sem dúvida um dos mais importantes termômetros nos dias de hoje – porém
no início dos anos 90 eram os festivais que ocupavam esse lugar de destaque. Com o advento e
a rotulação do “New Queer Cinema”, os filmes voltados para o público LGBT adquiriam uma
espécie de “selo de qualidade”, a audiência neste momento criava interesse acerca do que estava
sendo produzido por essa nova “vanguarda cinematográfica”.

Tendo o rótulo do NQC acessível, filmes lançados ao longo dos próximos


anos foram capazes de obter financiamento de produção, exibição em
festival, distribuição e, acima de tudo, uma conexão com a sua própria e até
mesmo imprópria audiência. Eram filmes e vídeos sem precedentes,
cruzando novas fronteiras em busca de uma versão atualizada do vernáculo
queer.28 (RICH, 2013, p.xx)

Com a utilização de novos recursos tecnológicos e a criação de festivais voltados


unicamente para exibições de filmes LGBT’s, sobretudo acobertados bela bandeira do NQC,
diretores, produtores e artistas de modo geral começaram a desenvolver novos projetos. A ideia
de pertencimento a um grupo fílmico tornava cada vez mais provável e viável a exibição desses
produtos. A existência dos festivais segmentados gerava, por consequência, a necessidade de
que a cada ano novidades fossem lançadas, o mesmo interesse partia em relação ao público
formado por este circuito.

As duas últimas décadas testemunharam um crescimento fenomenal no


tamanho e no número de festivais de cinema focados no trabalho e na
representação de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros. O modelo de
festivais como interventores políticos exibindo para pequenas audiências
selecionadas que predominaram na década de 1970 e 1980 se transformou em
grandes eventos da década de 1990, com patrocinadores corporativos e
grandes audiências que se fidelizavam anualmente e crescendo
exponencialmente (RICH, 2013, p.33) 29

28
No Original: With the handy NQC tagline, films released over the next few years were able to get production
financing, festival play, distribution, and above all, a connection to their proper and even improper audiences.
They were unprecedented films and videos, crossing new borders in search of an updated queer vernacular.
29
No Original: The past two decades gave witnessed a phenomenal growth in the size and numver of film
festivals focused on gay, lesbian, bisexual, and transgender work and representation. The model of festivals as
political interventions playing to small self-selected audiences that predominated in the 1970s and the 1980s
has morphed into the large events of the 1990s, complete with corporate sponsors and huge audiences that
return annually and grow exponentially.
67

Sobre a fidelização da audiência podemos buscar no artigo “O que é uma comunidade de


cinema?” (2015) de César Guimaraes, a ideia de comum e comunidade, ressaltando acima de
tudo a pluralidade de perfis que se inserem em comum quando se refere à audiência de um
filme.
As comunidades de cinema dão a ver – como coisa experimentada
sensivelmente na forma do filme – as muitas fraturas do comum. Se
perguntamos pelos recursos expressivos e pelas operações nos quais o cinema
contemporâneo tem investido para criar novas figuras do comum de uma
comunidade, a primeira coisa a ressaltar é que não basta que as relações de
poder e de sujeição surjam como tema dos filmes; é necessário que eles
produzam signos e relações capazes de desestabilizar o ordenamento social
vigente, alcançando outras formas sensíveis de experimentar o espaço e o
tempo (Guimarães, 2011, p.11)

É preciso entender que um dos objetivos principais dos “festivais” deve se configurar na
criação de um espaço de produção e exibição de filmes que dialogam com a pluralidade de
sujeitos históricos e de suas subjetividades, elaborando um olhar crítico a respeito do contexto
social onde esses sujeitos estão inseridos. O intuito é de também entender os festivais para além
de seu lugar funcional, colocando-o como uma extensão política do circuito exibidor,
considerando, inclusive, que muitos deles são realizados com recursos financeiros
governamentais.
A política advém “quando aqueles que não tem tempo tomam esse tempo
necessário para se colocar como habitantes de um espaço comum e para
demonstrar que sim, suas bocas emitem uma palavra que enuncia algo do
comum e não apenas uma voz que sinaliza a dor” (Rancière, 2010, p. 21). A
cena sensível da política concerne, portanto, à distribuição e à redistribuição
das maneiras de fazer e de ser, e das formas de visibilidade. Se a arte pode
repartir de outro modo o comum de uma comunidade, isso ocorre na medida
em que ela desestabiliza a distribuição dos lugares e das identidades, dos
espaços e dos tempos, do visível e do invisível, da palavra e do barulho. Ela
reparte de outro modo a partilha do sensível até então estabelecida.
(GUIMARÃES. 2015, p.47)

O primeiro festival voltado para o público LGBT e consequentemente o maior do país, o


MIX BRASIL de Cultura e Diversidade, surgiu em 1993, período de crise da produção nacional,
assim como período de impulsão mundial na produção de filmes voltados às histórias e
personagens LGBTs. Como o festival precedeu à produção dos primeiros longas nacionais que
poderiam vir a se encaixar sob a chancela do NCQ, é indissociável a criação do festival com
essa nova produção. O Mix Brasil abriu um espaço de circulação inédito para uma produção
alternativa, não normativa e não absorvida pelo circuito mainstream, exibindo filmes que
correspondiam ao momento em que estavam sendo realizados em todos os cantos do mundo,
gerando debates, provocando inquietações, promovendo encontros e, consequentemente,
68

resultando em parcerias de produção. Atualmente, em sua 24ª edição, a programação do festival


se encontra dividida em vários programas que se diversificam a cada ano, sobretudo referente
à produção de curtas-metragens, com sessões exclusivas para filmes de terror, animação,
eróticos e até mesmo uma sessão voltada para filmes LGBT sobre “ruivos”, como ocorreu em
2012. Mesmo tendo sede em São Paulo, em sua versão itinerante, o programa competitivo
circula pelas cidades de Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Fortaleza, Recife e Rio de Janeiro.
Ainda no campo dos festivais brasileiros voltados exclusivamente para a exibição de
filmes LGBT, temos como exemplo For Rainbow (Fortaleza - CE) fundado em 2007, Possíveis
Sexualidades (Salvador-BA) fundado em 2008, Close Certo (Porto Alegre- RS) em atividade
desde 2010, Interiores (São José Do Rio Preto - SP), Sansex (Santos - SP), Rio Gênero E
Sexualidade No Cinema (Rio Gay, Rio De Janeiro - RJ), ambos iniciando suas atividades em
2011, Recifest (Recife- PE) inaugurado em 2013, entre outros. O Gráfico abaixo propõe uma
análise no crescimento e expansão do Festival Rio Gênero e Sexualidade no Cinema,
principalmente na presença de produções nacionais. Para se adequar também à uma maior
diversidade de público, o festival incorporou novos programas, qualificados como curtas
especiais, distribuídos em sessões de animação, transcinemas, sessões exclusivas para curtas de
terror e até mesmo sessões com teor mais erótico.

Essa expansão na programação do Festival Rio Gênero e Sexualidade no Cinema, é um


sintoma comum, já vivenciado pelo próprio Mix Brasil, que de 76 curtas metragens globais
exibidos em 1993, contemplou em 2014 a exibição de nove longas, um média e 58 curtas-
69

metragens nacionais, dispostos em uma programação tão ampla e diversa quanto as identidades
que o festival busca representar. Não apenas o Mix Brasil especificamente, mas outros festivais,
como o Possíveis Sexualidades também incorporaram em suas programações ao decorrer dos
anos um link com outras vertentes artísticas, como o teatro, música e performance, justamente
por entender essa demanda vinda do público, interessado em dialogar com a maior variedade
de obras em um ambiente criado justamente para ser acolhedor, libertário, artístico, comunitário
e, acima de tudo, político.

7.3 Análise de Casos


Com o intuito de ilustrar diferentes contextos de produção e distribuição envolvendo
filmes nacionais que tratam de histórias e personagens inseridos no contexto LGBT, proponho
uma breve análise a partir de um média-metragem e quatro longas-metragens: Nova Dubai
(Gustavo Vinagre, 2014), Favela Gay (Rodrigo Felha, 2014), Tatuagem – O Filme (Hilton
Lacerda, 2013), Praia do Futuro (Karim Aïnouz, 2014) e Somos Tão Jovens (Antonio Carlos
da Fontoura, 2013). O primeiro é uma produção independente que, contando com suporte de
plataformas de financiamento coletivo para sua produção, circulou apenas no circuito de
festivais. O segundo, coproduzido em parceria com o Canal Brasil, também não chegou a
adentrar o circuito comercial, porém teve sua exibição na televisão paga garantida por meio dos
acordos da coprodução. Tatuagem – O Filme e Praia do Futuro são filmes que chegaram a
circular em circuito comercial e em festivais, porém possuem algumas diferenças
mercadológicas entre si. Por último, temos um filme que possui a maior bilheteria nacional
entre os filmes LGBTs produzidos a partir de 2010. Tomando como base esses filmes, podemos
chamar atenção para diversas estratégias e resultados na distribuição e no acesso ao público.

Nova Dubai, intitulado como um drama pornô-terrorista, oferece uma leitura erótica e
gay do crescimento econômico brasileiro, criticando a especulação imobiliária por meio de uma
sátira pautada no sexo e na cultura do “hiperlink”, definida pelo diretor, em entrevista ao livro
O Cinema Que Ousa Dizer O Seu Nome (Lufe Steffen, 2016), pela lógica de “ir indo, de assunto
em assunto, com uma fluidez às vezes incompleta. [...] Nova Dubai é sobre ver tudo, o tempo
todo, e sobre o esvaziamento de poder ver tudo”. O média, que teve sua captação de recursos
realizada através de um site de financiamento coletivo, encontrou como barreira financeira não
apenas o fato de abordar diretamente a homossexualidade, mas principalmente por abordá-la
de forma sexualmente explícita.
70

A distribuição do filme consistiu, basicamente, em participações em festivais nacionais


e internacionais, e ainda que a maioria desses festivais fossem voltados ao público LGBT, o
filme atingiu festivais mais gerais, como é o caso do CachoeiraDoc, realizado em Cachoeira-
BA e Olhar de Cinema, Festival Internacional de Curitiba. Além da dificuldade de espaços de
exibição, tanto pelo recorte homossexual, quanto pelo recorte pornográfico, outro impedimento
para o filme foi o seu formato em média, muitas vezes não aceito pelos festivais, que
comumente exibem curta ou longas-metragens.

Por meio de uma entrevista realizada com Ana Clara Ribeiro, representante da Luz
Mágica Produções, produtora e distribuidora responsável pelo filme Favela Gay, longa que
retrata o dia a dia dos membros da comunidade LGBT que vivem nas favelas cariocas,
obtivemos acesso aos seguintes dados: o filme foi exibido em onze festivais, dentre os quais
quatro ocorreram fora do Brasil, tendo sido premiado como melhor documentário pelo júri
popular do Festival do Rio de Janeiro (2014) e menção honrosa do Festival For Rainbow
(Fortaleza –CE 2014). Como muitos festivais não contabilizam formalmente o público, ou
quando sim, não repassam necessariamente a informação aos produtores e distribuidores, Ana
Clara Ribeiro também informou que não havia uma estimativa de espectadores disponível para
o filme, todavia, como foi realizado por meio de coprodução com o Canal Brasil, o filme é
exibido na tv ocasionalmente, o que reflete diretamente na expansão dessa audiência. Realizado
em um contexto independe, contando com o suporte de leis de incentivo fiscal, prêmios públicos
e alguns investidores, — formato mais comum nas produções brasileiras atuais — o filme vai
além do dia a dia dos LGBT’s que vivem na favela, e suas interseções diretas com o outros
signos do espaço tais quais tráfico, expansão das igrejas evangélicas e culturas periféricas. O
filme também apresenta questões comuns à comunidade LGBT, como a homofobia,
preconceito, aceitação da família e convívio social. Essa abordagem é fundamental para
assegurar a principal tese do filme, a de que a homossexualidade em si é não é diferente na
favela ou no asfalto. O diretor Rodrigo Felha, que reside na Cidade de Deus, revelou em coletiva
de imprensa realizada no Festival de Cinema do Rio De Janeiro em 2014 que, como morador
daquele espaço, sentia necessidade de registrar o cotidiano dessas regiões menos favorecidas
da cidade, levando inclusive a questão de representatividade para a produção do filme, já que
boa parte da equipe técnica residia nessas localidades. Enquanto o produtor do filme, o cineasta
Cacá Diegues, em entrevista ao portal G1 em 2014, apontou que devido aos temas favela e
homossexualidade como eixos centrais da narrativa, o longa “teve a dificuldade básica, que foi
a falta de recursos para fazer. Porque poucos investidores acreditavam e tinham a coragem de
71

entrar num filme com esse tema”, reforçando a ideia de que a comunidade LGBT ainda
permanece em um terreno rodeado por tabu e preconceito, refletindo diretamente na
distribuição desses filmes.

Neste mesmo esquema de financiamento por meio de editais e leis de incentivo à cultura,
Tatuagem- O Filme e Praia do Futuro se destacaram em seus respectivos anos de lançamento.
O Primeiro filme se passa em 1978, momento no qual a ditadura militar vigente no país começa
a dar sinais de esgotamento. Na periferia de Recife-Pernambuco, um grupo de artistas promove
espetáculos e ações de crítica ao poder. O “Chão de estrela”, como é chamado, é liderado por
Clécio, que conhece e se apaixona pelo soldado Arlindo, de 18 anos. Esse encontro entre dois
universos promove mudanças para ambos, sendo um filme sobre a liberdade e como o amor
pode ser revolucionário. Já Praia do Futuro conta a história do salva-vidas Donato e sua relação
com Konrad, um turista alemão que ele salva de um afogamento e por quem consequentemente
se apaixona, fazendo-o mudar para Berlim, interferindo na sua relação com seu irmão caçula.

Ambos os filmes possuíram carreira em festivais antes de chegarem às salas de cinema


do circuito comercial, porém, algumas diferenças em termos de produção colocam os longas
metragem em terrenos diferentes. A carreira de Tatuagem – O Filme nos festivais foi muito
mais duradoura do que a de Praia Do Futuro, principalmente com relação aos festivais
nacionais, já que o segundo filme praticamente estreou no Brasil já no circuito comercial. Essa
característica de Praia do Futuro se dá principalmente pelo “star system” operante, que coloca
a participação de Wagner Moura como chave de uma polêmica que aumentou a visibilidade do
filme, já que o famoso ator heterossexual, além de ser destaque em várias telenovelas, havia
interpretado antes a personagem “Capitão Nascimento” em Tropa de Elite (José Padilha, 2007)
e Tropa de Elite 2: o Inimigo Agora é Outro (José Padilha, 2010). Se antes Wagner estava no
papel um policial considerado "incorruptível" pelos seus pares, ainda que comande uma equipe
que se utiliza de artifícios pouco ortodoxos como tática investigativa, símbolo do “macho” viril,
corajoso, e autoritário, o fato de que seu personagem “Donato” em Praia do Futuro ser gay, se
transformou em um fato noticioso extremamente utilizado por uma parte da mídia e por
populares para diminuir o filme e o trabalho do ator, chegando ao ponto de alguns cinemas
informarem os espectadores antes da compra dos ingressos que o filme continha cenas de sexo
entre homens.
72

Outro ponto que favoreceu Praia do Futuro em termos de audiência e bilheteria foi a
coprodução com a Alemanha, significando assim maior verba para divulgação do filme, que
obteve retorno de R$ 1,67 milhões em bilheteria, atingindo um público de 128.693 mil
espectadores, em contraste aos menos de 25 mil30 ingressos de Tatuagem – O Filme. Neste
ponto é preciso reforçar que ainda não há mecanismos eficazes e formais de contabilização do
público para filmes exibidos no país. Os dados da Agência Nacional de Cinema (ANCINE)
não contabilizam a audiência dos circuitos alternativos e dos festivais. O que neste caso, afeta
diretamente a mensuração do alcance de Tatuagem- O filme, que, como dito previamente,
obteve sua maior parcela de exibição em festivais.

No circuito comercial, por exemplo, devido a seu forte apelo referencial à cultura e à
cidade de Recife, estima-se que metade do público pagante do filme está localizada na capital
Pernambucana. Onde também tem sido produzido grandes filmes que se destacaram no cenário
nacional dos últimos anos, como Som Ao Redor (2012) e Aquarius (2016), ambos de Kleber
Mendonça Filho De todo modo, o relativo sucesso dos filmes, acarretou não apenas em
visibilidade para personagens e histórias LGBT, como também impulsionou carreiras de seus
participantes, o que é evidenciado pelo caso de Jesuíta Barbosa, que interpretou o soldado
“Fininha” em Tatuagem- O Filme e “Ayrton”, irmão da personagem de Wagner Moura em
Praia do Futuro. E pela popularização do cantor pernambucano Jhonny Hooker, personagem e
intérprete de uma das músicas mais emblemáticas de Tatuagem – O Filme. Ambos os filmes
foram lançados e distribuídos nacional e internacionalmente nos formatos de DVD, Blu-ray e
digitalmente, em plataformas de video on demand (VOD) como Amazon e iTunes.

Na outra ponta, em relação à Nova Dubai, temos o longa Somos Tão Jovens, uma obra
biográfica que conta história da juventude do cantor Renato Russo, vocalista e fundador da
banda Legião Urbana. Produzido pela Canto Claro Produções, produtora do próprio diretor do
filme, Antonio Fontoura. O fato de se tratar de uma biografia de um famoso expoente da música
brasileira é determinante para o alcance do filme. Assim como no longa Cazuza – O Tempo
Não Para (Sandra Werneck, Walter Carvalho, 2004), a homossexualidade dos artistas em
questão é apenas um detalhe das produções, que se detém mais em abordar a genialidade e obra
dos cantores, do que também o fato de serem gays. Somos Tão Jovens, com um orçamento de
6,4 milhões de reais, contou com a maior campanha de divulgação para um filme nacional

30
Dado informal e aproximado disponibilizado pelo site AdoroCinema , não há uma contagem oficial divulgada
pela produção do filme.
73

distribuído pela Imagem Filmes, segundo dados da própria distribuidora, conseguindo atingir a
sexta colocação entre as maiores aberturas do cinema nacional desde a retomada, totalizando
471 mil espectadores só no final de semana da estreia. Segundo dados da ANCINE, o filme
atingiu a 4ª colocação dos filmes brasileiros mais vistos em 2013 com um total de 1.03.776
espectadores.

Tratando-se de um cinema LGBT, o filme fica atrás em termos de arrecadação e público


apenas do já citado longa Cazuza – O Tempo Não Para (Sandra Werneck, Walter Carvalho,
2004) , que atingiu a marca de mais de 3 milhões de espectadores. Se em ambos os casos, a
homossexualidade em si não é de fato o eixo central do filme, ficando até mesmo de lado, é
importante que se valorize a obra e o legado de artistas gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e
queer no intuito de fortalecer a própria comunidade. Ainda se considerarmos que em ambos os
casos as mortes dos artistas foram desdobramentos do HIV, eles utilizaram-se de sua
visibilidade nacional para desmitificar a doença, bem como a homossexualidade em si.

Potencialmente toda e qualquer produção cinematográfica finalizada possui um apelo


comercial, visto que o perfil de consumo público se apresenta em várias facetas. A validação
dos festivais, sobretudo, funciona como uma chancela para o mercado exibidor – deste modo,
as premiações e aparições no maior número de festivais possível, exerce o papel de termômetro
para esse circuito, exemplificado entre os filmes citados por Tatuagem – O Filme. Mas quem
define qual o circuito em que melhor se encaixa a produção? É o mercado? A distribuidora? Os
realizadores? Essa divisão histórica tem como principal eixo de diferenciação a própria
elaboração narrativa e estética do filme, delegando aos filmes autorais, cults e alternativos o
lugar do festival, enquanto o circuito comercial de salas de cinema parece privilegiar os filmes
de gênero, principalmente as comédias, se tomarmos como exemplo o cinema nacional, que
desde o tempo das chanchadas se sobressai comercialmente no gênero, exemplificado pela
franquia Minha Mãe é Uma Peça, que no segundo filme lançado em 2016, sob a direção de
César Rodrigues, obteve a maior bilheteria da história para um filme nacional.

É preciso ainda complexificar o fato de que, tradicionalmente, não existe um pensamento


industrial generalizado no cinema brasileiro, o mesmo lugar que pensa a produção delega aos
circuitos de distribuição e exibição às empresas que favorecem a produção Hollywoodiana por
uma lógica de mercado. Colocando, assim, os festivais como a alternativa para boa parte da
produção nacional que não se encaixa nessa lógica. A questão em si é complicada, e cada elo
74

da cadeia (produtiva, distributiva e exibidores) deve ser repensado no intuito de dissolver esse
pensamento polarizador das possibilidades de acesso aos filmes, nada disso é utópico se
considerarmos as exibições on demand de filmes “alternativos” em multiplex, mediante a venda
prévia de uma quantidade estipulada de ingressos pelo exibidor, evidenciando desse modo, que
a formação do público também é uma importante ferramenta para projeção comercial do nosso
cinema.

8. II MOSTRA DE CURTAS LGBT

Se os critérios forem severos, podemos afirmar que o mundo tem apenas uma
década e meia de produção de filmes a respeito dos mais diversos aspectos
que envolvem a homossexualidade. O espaço de tempo é curto e certamente
ainda há muito o que desenvolver no que diz respeito aos filmes de gênero e
às complexidades de personagens gays. Se a nossa relação com o cinema
pressupõe um diálogo que contribui na nossa formação, essa produção
frequente torna-se ainda mais necessária. (SILVEIRA, 2011)

Como vimos no decorrer deste trabalho, o NCQ e o processo de retomada no cinema


brasileiro, assim como a implantação de novos cursos universitários de audiovisual no país
acarretaram numa maior produção de filmes sobre a e sob a ótica da comunidade LGBT. Com
uma maior produção, se faz necessário também um aumento nas janelas de exibição. A II
Mostra de Curtas LGBT aqui proposta é a continuação da I mostra universitária de curtas
LGBT, realizada em 2015/2016, tendo exibições nas cidades de Cachoeira- BA, Recife –PE,
João Pessoa – PB, Pelotas – RS e Bayreuth, na Alemanha. Ainda que o universitário tenha saído
do título do festival, veremos que esta produção não está excluída da curadoria, que apenas deu
espaço para uma maior diversidade de filmes também serem exibidos. Se, por um lado, longas
como Praia do Futuro, Somos Tão Jovens e Crô – O filme trouxeram à tona a temática LGBT
e geraram visibilidade para a comunidade, eles se configuram como produtos que fogem à
lógica de produção da maioria das histórias LGBT.

Entretanto, mesmo com a existência de preconceitos e restrições temáticas nos


elos da produção e da distribuição, poderíamos dizer que esse não é o único
problema enfrentado pelos filmes brasileiros que abordam a
homossexualidade. Enquanto produções independentes, elas acabam sofrendo
os males da concentração do circuito distribuidor e exibidor em torno de
poucas empresas e que surgem como gargalo para uma maior entrada do
cinema nacional no circuito tradicional de salas de cinema. Essas empresas
acabam dando preferência aos títulos que entrarão no circuito a partir de
critérios unicamente comerciais. E, logicamente, que temas “tabu” têm menos
75

preferência, a não ser que tenham a chancela da Globo Filmes, por exemplo.
(VIRGENS, 2013)

A Mostra é uma oportunidade de apresentar, ao público em geral, uma provocação e um


olhar crítico sobre o papel do cinema na representação do outro, sobretudo no que diz respeito
à homossexualidade e transsexualidade, produzindo, deste modo, mesmo que não
imediatamente, uma aproximação com as diversas linguagens e personagens apresentadas.

Ao buscar retratar o Brasil é necessário levar em consideração a dimensão territorial do


país, e por esse motivo a proposta curatorial envolveu a seleção de filmes das cinco regiões do
país por acreditar na diversidade de linguagens e discurso que podem ser gerados pelo encontro
de culturas e realidades diferentes, ainda que se tratando de um mesmo objeto. A seleção centra-
se em trabalhos que cobrem a produção do período de 2013 a 2017. De maneira amplamente
diversificada, poderá ser vista, neste recorte, a amplitude de gêneros fílmicos, perspectivas,
experimentações e hibridismos, o que significa poder apresentar não apenas a diversidade de
linguagens e suportes, mas também as principais inquietações presentes nas questões que
marcam o cinema contemporâneo.

A mostra insere-se no projeto mais amplo de se criar uma rotatividade e maior difusão
desses filmes, promovendo a integração de realizadores LGBT’s de modo a fortalecer um ideal
de comunidade plenamente representada, o que não implica em se fechar ao outro lado, mas
sim fortalecer artisticamente, ideologicamente, politicamente e até mesmo financeiramente (se
consideramos alguns festivais que oferecem prêmios em dinheiro somados a visibilidade). Os
festivais são manifestações políticas, funcionando como uma janela escancarada em seus
territórios de inserção por onde as histórias e inquietações da sociedade voltará para a mesma
depois de ser pensada pelos realizadores e repensada pelos curadores. O olhar do curador, nesse
sentido, deve ser um olhar crítico, antenado e em comunhão com as urgências representativas
e sociais.

8.1 I Mostra Universitária de Curtas LGBT


A ideia de produzir a mostra de curtas LGBT se deu a partir de um projeto idealizado
para a disciplina Linguagem e Expressão Artística, ministrada pelo professor Danilo Barata.
Neste projeto, a ideia consistia na produção de uma mostra com curtas LGBT dentro do
contexto universitário. Se considerarmos a questão da representatividade das minorias de
gênero, raça e sexualidade, estaremos diante de um importante ponto de discussão no campo
das ciências sociais, das artes e do cinema contemporâneo. Neste sentido, a questão da
76

diversidade sexual é tratada através de um viés político – terrorista em nossa mostra. Político
porque a mostra surge em decorrência das urgências políticas, em um cenário de crescente
conservadorismo, que assola o país e suas instituições, sobretudo no que tange às questões de
garantias de direitos e representatividade de minorias. Estamos falando de um país onde cerca
de um homossexual é assassinado a cada vinte oito horas e onde a expectativa de vida de uma
pessoa trans é inferior à metade da expectativa de vida de uma pessoa cis, segundo dados do
GGB – Grupo Gay da Bahia. E “terrorista” porque acreditamos que diante dos avanços sociais
já garantidos e diante da universalização da informação, não é mais possível que no mundo
atual seja necessário um diálogo didático para explicar e defender os direitos das minorias
representativas. É hora de ação direta, é hora de destruir as construções sociais que impedem
os avanços já adquiridos de serem acessados por todos.
Enquanto sujeitos, nosso corpo e nossas vozes se configuram como principal arma de
luta contra o sistema, e enquanto artistas que pensam e fazem cinema, acredito que unir estes
corpos e vozes em uma mostra é, por si só, um ato de luta e resistência. O cinema se configura
como uma potente ferramenta cultural e um importante agente de modificação social, ao retirar
da própria sociedade seu material base, cabe a ele deglutir e ruminar as questões inerentes ao
presente ou ao passado e devolver de forma crítica, a essa mesma sociedade, um novo olhar
sobre as questões ali tratadas.
Os 19 curtas selecionados foram exibidos em 3 programas diferentes, agrupados por suas
temáticas similares: Andarilhas, O Nome É Uma Coisa D_ Outr_, Entre Lugares: A
Invisibilidade Do Homem Trans, MARILAC, Luísa, Eu, Travesti? e Sem Títulos constituíam um
programa mais documental, apresentando questionamentos mais diretos, alguns com
intervenções sociais, outros com um questionamento próprio na busca por respostas diante
inquietações causadas pelas expressões de sexualidade e gênero. O que une Tu, Diana, Ontem
à Noite, Ovo de Colombo, Teu, Os Sobreviventes e O Amor Que Não Ousa Dizer Seu Nome é
o fato de que todos esses filmes perpassam o íntimo das personagens no que diz respeito ao
amor e suas relações sexuais e afetivas. Os tópicos família e aceitação social foram os
responsáveis pelo agrupamento dos curtas Coisa De Menino, Estrada Da Saudade, Familiar,
Um Estranho No Ninho, Hue e (Trans)parência no terceiro programa da mostra. Um quarto
programa foi adicionado com o título de “Sessão Especial: Desbunde” onde convidamos dois
curtas Ocaso e Urano para abrirem a sessão onde exibimos o média-metragem Nova Dubai

Tomando lugar nos dias 31 de março e 01 de abril de 2015, no auditório do CAHL em


Cachoeira, a mostra ainda contou com uma mesa de debate voltada para discutir a representação
77

da personagem homossexual e transexual no cinema tendo como base os filmes propostos pela
curadoria. Após a concretização da mostra, durante os meses de junho e julho negociamos uma
parceria com o DACINE (Diretório Acadêmico de Cinema da UFPE) e a ANGÁ produções
traduzidas na figura de Igor Travassos para realização da mostra em Recife-Pe. E
posteriormente uma parceria com o Tintin Cineclube juntamente com a Cosmopopéia para a
realização da mostra em João Pessoa – PB. Para ambas as exibições, ocorridas em agosto de
2015, refizemos a curadoria, propondo uma versão menor dos filmes exibidos em Cachoeira,
na qual intitulamos de “Intinerância da Mostra”. Essa Intinerância, foi exibida em Pelotas-RS,
em dezembro de 2015, e em Bayreuth- Alemanha no mês de abril de 2016.

8.2 Bandeira política Justificativas, Recortes

8.2.1 Bandeira Politica

Dando continuidade então, ao processo iniciado em 2014, executado ao longo de 2015 e


início de 2016. A II Mostra de Curtas LGBT surge em um contexto similar, porém algumas
mudanças, sejam de origem externa ou interna, merecem um pouco de atenção.
Progressivamente um aterrorizante conservadorismo político e social ganhou espaço nas
instituições, mídia e consequentemente no cotidiano social. Os índices de violência contra
LGBT’s bateram recordes, colocando o Brasil como o país que mais se mata homossexuais no
mundo. Esse fruto da cultura patriarcal, machista, validada por discursos ideológicos cristãos
também atinge outras minorias representativas como mulheres, negros e indígenas. Somadas,
essas comunidades representam de fato a maior população do Brasil, mas não em termos
representativos, por isso esse trabalho insiste em debater a questão da representatividade,
reconhecendo que “Representatividade é Poder”.

A situação que já era crítica, ganhou um agravante em 2016 com o processo golpista de
impeachment. O plano de governo responsável por tirar o país do mapa da fome, responsável
pela criação de novas universidades, responsável pela garantia de direitos e acesso a saúde,
educação e moradia à uma parcela populacional negligenciada por outros governos foi deixado
de lado por um novo projeto pautado no desmonte de direitos e de representatividade, com
ideias tradicionalistas e vulgares ao que se refere “moral” e aos “bons costumes”

O novo governo proposto e validado por uma banca ruralista, militar e evangélica possui
um perfil simples de descrever: masculino, branco, heterossexual, rico. Não há espaço para
78

diversidade, não há espaço para o diferente, o “Brasil: um país de todos e todas” deu espaço a
um país “deles” e nós ficamos na posição de “outros”, cujo o único poder e maior poder é ter
voz. Por isso, ao pensar em uma Mostra de Curtas LGBT estamos utilizando uma ferramenta
de combate ao sistema machista, patriarcal, racista e homofóbico. Estamos dando voz a uma
comunidade que necessita de amplificadores para ser ouvida. Estamos reconhecendo e
valorizando seus lugares de fala. Estamos dialogando com nossas urgências. Estamos
“humanizando” o “outro” desconhecido. Estamos conhecendo esses sujeitos históricos que
agora contam suas histórias seu o intermédio do “estrangeiro”.

8.2.2 Das escolhas estruturais.

O CINEMA

O cinema é uma arte que integra muita gente, seja pela forma de acesso, visual e auditiva,
ou mesmo pelo encantamento gerado ao estar em uma sessão de cinema. Por um lado, A
exibição de um filme por um momento retira o cidadão de sua rotina e o transporta para um
lugar onde se é possível esquecer dos problemas do dia a dia. Por outro lado, o esquecimento
não é o foco dessa mostra, mesmo contando com filmes lúdicos, nos valemos dessa arte para
suscitar questionamentos sociais e críticas acerca da maneira de como vemos e representamos
o outro, e acerca do nosso lugar enquanto comunidade no mundo.

CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO: FILMES UNIVERSITÁRIOS, FILMES DE


CARREIRA, FILMES AMADORES E FILMES DE GUERRILHA.

A ideia de uma mostra exclusiva a filmes universitárias foi abandonada, mesmo


entendendo que grande parte da produção universitária atual pouco circula em festivais de
destaque nacional, reconhecemos também que felizmente esse número vem se modificando a
cada dia, e que o interesse por esta produção realizada por jovens cineastas é concomitante à
descoberta de novos talentos e de filmes com potencial de exibição. Contudo, o processo de
pesquisa revelou a dificuldade que outros filmes não universitários encontravam em conseguir
janelas de exibição, assim pensando o LGBT/queer enquanto comunidade criativa e acima de
tudo política, inserimos não apenas aqueles realizadores de carreira, mas também novos
realizadores marginalizados do contexto das universidades e do mercado, que desenvolvem
seus projetos em condições tecnológicas e financeiras precárias. Por fim, outro perfil de
realizadores foi considerado para essa mostra, os realizadores de Guerrilha são entendidos por
79

aqueles sujeitos que valeram-se dos avanços tecnológicos, como a utilização de telefones
celulares, para registrar situações de mobilização e manifestações sociais neste conturbado
cenário político.

CONTEMPORANEO

Como o objetivo da mostra é criticar e questionar questões sociais, partimos do princípio


que se deve ser feito em concomitância com a contemporaneidade, já que deste modo através
da reflexão gerada pelos filmes, podemos interferir na maneira como vivenciamos a vida em
comunidade de forma concreta e imediata. Transformando nosso tempo. Por contemporâneo
entendemos temáticas que afetam diretamente nossa vida enquanto seres sociais.

NACIONAL

A escolha por filmes nacionais se dá justamente por compreender melhor nossas


urgências enquanto país. Podemos discutir um filme como um reflexo do local no qual ele está
inserido. É uma questão de contexto, e se faz necessário se falar sobre questões inerentes ao
LGBT no Brasil, para o próprio Brasil.

CURTAS

Necessariamente falando da produção universitária e contemporânea relacionada ao tema


da homossexualidade, o número maior de produções se dá devido às facilidades possibilitadas
pelo formato e meios de produção assegurados ou pelas instituições de ensino ou novas
tecnologias. A difusão, em especial, desses produtos muitas vezes ficam restritas aos poucos
festivais e à internet. E são poucos que conseguem obter o mesmo alcance de Eu não Quero
Voltar Sozinho, de Daniel Ribeiro, lançado em 2012 como curta e que, devido ao sucesso, teve
uma versão em longa metragem lançada em 2014, tornando-se o indicado brasileiro a concorrer
uma vaga de melhor filme estrangeiro no Oscar. De todo modo, é preciso entender o curta-
metragem como um produto potente e finalizado, não significando um passo para o longa. No
exemplo citado, o curta conclui-se em si mesmo.

DOCUMENTÁRIO, FICÇÃO, EXPERIMENTAL e QUEER

No cenário brasileiro atual, há uma forte tendência de reviver memória de ícones gays
assim como uma valorização dos personagens reais, ou seja, há um forte teor documental,
80

mesmo quando ficção, de passar informação por meio de uma tentativa de aproximação com o
público, humanizando e desmitificando a homossexualidade através da exposição dos tabus de
formas que possibilitam descontruir à ideia de anormalidade. Nos documentários, percebe-se
uma forte vertente no que se diz relacionado ao Transexual, sobretudo feminino. Também
iremos encontrar filmes em primeira pessoa, revelando o íntimo de seus realizadores, assim
como é comum documentários clássicos com entrevistas elucidando e apresentando questões
cotidianas da vida LGBT: família, escola, trabalho, se assumir e homofobia.

O território ficcional é um campo mais diversos, visto que as experiências apresentadas


mesmo podendo dialogar universalmente com indivíduos LGBT’s não necessariamente
correspondem a uma vivência especifica. São histórias imaginadas, e por esse motivo muitas
vezes permitem o escape da realidade trazendo narrativas leves e esperançosas. Consistem
muitas vezes em sonhos e ideias tanto de direitos garantidos, quando de aceitação social. É
experimental o filme que brinca com a linguagem, que brinca com a técnica, que explora as
terminações sensoriais por meios abstratos. Neste caso englobamos a vídeo-arte e a vídeo-dança
por exemplo. O Queer nesse contexto, então, apresenta aqueles filmes que borram as fronteiras
entre documentário, ficção e experimental. Eles se recusam a ser um ou outro, são filmes em
transito, são manifestos performáticos, são poderosos discursos do corpo e por esse motivo
essenciais para a construção da mostra.

LGBT

Por toda a trajetória apresentada neste trabalho. Por todas as obras clássicas do cinema
queer. Por todo os predecessores. Por todos amigos perdidos para a violência e para a doença.
Por todos os jovens LGBTs. Pelo ideal de comunidade. Por visibilidade. Por ser uma ação
direta. E acima de tudo por direitos. Com o cenário de conservadorismo político e social,
homofobia,, dar visibilidade a diversidade sexual tem se tornando motivo de intensas lutas. É
preciso caminhar lado a lado com esse movimento social, dando força para que discussões
acerca da representação, bem como da repressão, ganhem destaque e assim contribua para a
diminuição do preconceito.

8.2.3 Como o Recorte se apresenta.


81

Como já discutido no tópico 6.4, tomaremos como base de avaliação os critérios


apresentados em 6.2 referentes a definição de Benshoff e Griffin (2006), do que corresponde a
um filme LGBT.

 Eixo temático e a presença de personagens LGBT na narrativa;

 Autoria, elenco e equipe formada majoritariamente por indivíduos LGBT

 Potencialidade de diálogo com a audiência LGBT

Entre esses pontos, como critério de seleção principal avaliamos a presença de


personagens LGBT em papeis principais nas narrativas, nas quais a sexualidade é também
personagem fundamental para o avanço da história. Somam-se a esses critérios:

 Força política e criativa na elaboração do discurso

 Variações estilísticas e formais

Observamos como questão os novos métodos de se filmar, inserindo sujeitos históricos


antes ocultos no cinema como donos de suas narrativas. Bem como também, acreditamos que
no cenário crescente de conservadorismo geral a mostra por si só já é política, pois através dos
filmes selecionados visamos intervir no olhar lançado distorcidamente para a comunidade
LGBT. Consideramos como política, a afirmação de ser não normativo e utilização do corpo,
linguagem, estética e arte como modos de se libertar da opressão institucionalizada se fazendo
presente, por isso buscamos também selecionar filmes que dialoguem com a presença do corpo
nos espaços e instituições. Também valorizamos filmes que fogem aos padrões negativos de
estereótipo homo/transexual. No sentido de celebrar a diversidade, mostrando o que temos de
melhor e de mais potente.

8.3 Inscrições: Processos e Dados


82

Entre os meses de Setembro e Outubro de 2016, abrimos uma convocatória on-line


divulgada na página da Mostra de Curtas LGBT no Facebook, pela qual obtivemos 26 respostas
até o dia 27 de Outubro. Os realizadores foram requisitados a preencher um formulário do
Google Docs, onde, além das informações padrões a respeito do filme inscrito, também
encontram questões acerca da produção LGBT e universitária no Brasil, algumas dessas
questões e analise do perfil de filmes inscritos serão abordados neste tópico.

Antes de prosseguirmos, é preciso mencionar que após este primeiro período de inscrição,
divulgamos também uma segunda chamada entre os dias 9 e 20 de Maio de 2017. A soma desses
dois períodos de inscrições totalizou 55 submissões de curta metragens. Para além dessas
inscrições propusemos uma parceria com o projeto Cine Trans Territorial, obtendo assim acesso
a outras 25 obras inscritas no projeto.

Para efeitos de análise do perfil de filmes inscritos, entretanto, tomaremos como


parâmetros apenas os filmes inscritos diretamente por meio do nosso formulário disponibilizado
na plataforma Google Forms.

Buscando debater o gênero cinematográfico dentro da produção LGBT, propusemos duas


questões, a primeira com opções fechadas apresentadas do gráfico um delimitava a produção
em quatro categorias gerais: Ficção, Documentário, Experimental e Outras. Entendendo
“outras” por filmes que se utilizam de várias linguagens sem necessariamente corresponder a
uma produção experimental, abarcando todas as três definições anteriores e configurando-se na
curadoria como o gênero “queer”.

A outra questão, de resposta livre, buscava delimitar em qual gênero especifico do cinema
(Drama, Ação, Comédia etc.) os filmes se localizavam? Contabilizando 19 gêneros fílmicos,
com expressiva maioria de filmes de Drama, com 23 inscrições.
83

Buscando entender também o perfil de produção desses filmes, tendo como referencial a
primeira versão da mostra, inserimos como questão a origem do filme, universitária ou não.
Mesmo abandonando o “universitária” do título da mostra esse ano, percebemos que ainda são
maiorias os filmes produzidos neste contexto. Esse fato foi também detalhado previamente
neste trabalho quando discutimos a expansão do cinema LGBT nacional promovido, também
em partes, por essa parcela da produção, alertando para presença e expansão de cursos de
cinema nas universidades do país como um importante centro produtor de filmes,
principalmente em curta-metragem. Isso é exemplificado no gráfico abaixo, onde se
questionou: “O filme foi produzido em contexto universitário?”
84

Notou-se também uma distribuição mais igualitária entre as universidades produtoras,


porém se tomarmos como parâmetro a regionalização perceberemos que entre essas produções
o Sudeste, seguido do Nordeste e o Sul em terceiro lugar possuem uma produção próxima, dez,
oito e sete respectivamente, um contraponto as três produções do centro-oeste e nenhuma da
região norte do país, o que pode ser justificado pela presença de um único curso superior de
cinema e audiovisual na região na Universidade Federal do Pará.

Por fim, uma análise em relação a comunidade LGBT: quais historias estão sendo mais
contadas? Que identidades são mais representadas? No primeiro ano da mostra muito se debateu
a respeito da invisibilidade lésbica, porém felizmente esse ano tivemos uma significativa
quantidade de filmes onde as mulheres e suas vivências enquanto homossexuais tiveram
destaque. O gráfico abaixo refere-se apenas aos filmes selecionados pela curadoria, nota-se uma
tentativa de igualar a representação da diversidade, porém indo de encontro a identidade
85

bissexual, esbarramos no problema de que apenas um curta metragem onde a bissexualidade


era tratada e este não correspondia aos critérios de avaliação da curadoria.

8.4 Filmes Selecionados

1º de Julho: Rio de Janeiro - RJ | 2016 | 12'| Direção: Renata Prado


Sinopse: Vitoria é uma transexual que se veste de homem para trabalhar. Um dia, ela decide
ser apenas Vitoria.

A Outra Caixa: Brasília - DF | 2016 | 10'| Direção: Amanda Devulsky


Sinopse: O homem, o concreto e a imprecisão ao redor do que a natureza é. Uma investigação
acerca de imagem, feminilidade e colonialismo.
86

Antes da Encanteria: Icó – Ceara | 2016 | 21'| Direção: Gabriela Pessoa, Lívia de Paiva,
Elena Meirelles, Jorge Polo, Paulo Victor Soares
Sinopse: Um magote de viada truando no meio do mundo. Desde 2013, o coletivo Chá das
Cinco realiza atividades culturais diversas em Icó, interior do Ceará. Engolidas pelo que
fizeram, devoram caminhos rumo à Lua.

Bixa Preta: Rio de Janeiro - RJ | 2016 | 4:51' | Direção: Coletivo Kbça D' Nêga
Sinopse: Segunda parte da Triologia das Bixas do Coletivo Kbça D' Nêga, Com a
performance de Felipe Pinto, um curta feito totalmente independente, de forma coletiva e sem
recursos. Com base na canção de Cazuza, exteriorizando uma parcela esquecida da população.

BRASXPLOITATION– A Rainha Negra: Goiânia - GO | 2014 | 21'| Direção: Edem


Ortegal
Sinopse: A policial Eva Brown e sua namorada Juliana, nerd e cinéfila, descobrem que um
poderoso “coronel” do estado está envolvido em um crime que pode destruir sua carreira.
Após caírem no primeiro round da luta, as meninas mais malvadas da cidade voltam para
87

provar que a vingança é tão doce como jujubas e tão divertida e explosiva quanto o cinema de
ação

Cru: Rio de Janeiro - RJ | 2016 | 13'| Direção: Leandro das Neves


Sinopse: Um buraco negro devora sua estrela.

Divas: São Paulo - SP | 2016 | 16'| Direção: Clara Bastos


Sinopse: Camila se aproxima das drag queens que habitam a pensão de Bella.

Em Defesa da Família: Brasília-DF | 2016 | 24'| Direção: Daniela Cronemberger


Sinopse: Vanessa e Marília formam uma família há 13 anos e são mães de três meninos. A
família é obrigada a enfrentar ameaças externas. Seus direitos civis correm perigo.
88

Homorragia: Recife -PE | 2015 | 7'| Direção: Lorena Arouche


Sinopse: O filme aborda temática de gênero e seu entrelaçamento com estética e arte,
utilizando imagens documentais da Marcha das Vadias Recife, ocorrida em Maio de 2015 e
imagens produzidas, experimentalmente, com luz colorida, fogo, líquidos, superfícies e
poesia.

Ingrid: Belo Horizonte - MG | 2016 | 7 '| Direção: Maick Hannder Lima Porto
Sinopse: Uma mulher e seu corpo.

IRMA – Era uma vez no sertão: Recife - PE | 2016 | 20'| Direção: Camila Lapa e Lorena
Arouche
Sinopse: Numa cidade do sertão, Os Ferreira foram assassinados por um jagunço capataz, a
mando do dono da fazenda em que trabalhavam. 15 anos depois, uma estranha forasteira
chega na cidade.
89

Janaína Overdrive: Fortaleza - CE | 2016 | 19'| Direção: Mozart Freire


Sinopse: Uma transciborgue busca sua sobrevivência longe do controle biotecnopolítico da
corporação.

Jessy: Salvador - BA | 2013 | 15'| Direção: Paula Lice, Rodrigo Luna e Ronei Jorge
Sinopse: Jéssica Cristopherry! Assim se chamavam as personagens da infância da atriz,
dramaturga e mulher Paula Lice. Ela contará com as madrinhas para resgatar Jéssica e realizar
o desejo de ser transformista.

Maria Helena – A Mulher de todos: Goiânia-GO | 2015| 17'| Direção: Cristiano Sousa
Sinopse: Maria Helena é uma mulher desejada por todos... Explorada por seu cafetão
Marcelão, que deseja que a mesma realize filmes adultos, decide abandonar tudo em busca do
amor verdadeiro.
90

O Chá do General: São Paulo - SP | 2016 | 22'| Direção: Bob Yang


Sinopse: Um general chinês aposentado recebe a inesperada visita de seu neto.

O Corpo Nu: São Paulo - SP | 2016 | 20'| Direção: Diego Carvalho Sá


Sinopse: A jornada de um diretor pela cura do relacionamento com o seu próprio corpo se dá
em um híbrido de documentário e ficção. Enquanto entrevista voluntários nus perante a
câmera sobre o corpo e nudez, a entrelaça os depoimentos.

Palloma: Recife - PE | 2015 | 9'| Direção: William Tenório


Sinopse: Palloma vive uma luta diária na construção da sua identidade
91

Pele Suja Minha Carne: Rio de Janeiro - RJ | 2016 | 15'| Direção: Bruno Ribero
Sinopse: João toma banho após mais uma partida de futebol com seus amigos brancos

Plutão: Rio de Janeiro - RJ | 2015 | 12'| Direção: Daniel Nolasco


Sinopse: Guia turístico do centro do Rio de Janeiro.

PREPARA!: Rio de Janeiro – RJ | 2016 | 15'| Direção: Muriel Alves


Sinopse: A história da primeira turma de um curso pré-vestibular voltado para travestis e
transexuais narrada através de saltos altos, apliques, canetas, cadernos, preconceitos e sonhos.
92

Sábado de Carnaval: Guarujá-SP | 2016 |4’ | Direção: Luiz Fabiano Teixeira


Sinopse: O Carnaval se torna uma fuga para o drama de Albertinho, mas sair de casa
fantasiado de mulher não vai ser nada fácil.

Shala: Belém – PA | 2016 | 11'| Direção: João Inácio


Sinopse: Pedro vive em um orfanato na Amazônia, e precisa criar situações para chamar
atenção de possíveis pais adotivos. Paralelo a essa busca, Pedro passa a cultivar uma amizade
profunda com seu único brinquedo; a boneca Shala.

Queer: São Paulo - SP| 2016 | 12'| Direção: Ayume Oliveira e Felipe Lemos
Sinopse: Corpos falantes e um tela. Um mundo que acolhe performances e vivências outras.
Talvez o mundo como possa ser. O imperativo de um outro olhar, a possibilidade. Queer. Há
dentro uma tentativa de linguagem, um sussurro de existir, resistir. A voz de várias e infinitos
olhares dentro de uma viagem que sublima como cor tornando-se verdade por alguns minutos
em um reflexo que não passa de ilusão, de uma dança entre imagem e som.
93

Santa Porque Avalanche: Fortaleza /Icó - CE | 2016 | 18'| Direção: Paulo Victor Soares
Pinheiros
Sinopse: Quatro amigos inscrevem-se no concurso da garota molhada, fogem e apaixonam-se
pela morte.

SUPER: Florianópolis - SC | 2017 | 18'| Direção: Maria Fernanda Bin, Lara Koer, Carol
Mariga e Viviane Mayumi
Sinopse: Em uma bela manhã Super acorda e se depara com uma doença misteriosa e
incontrolável. Sua vida se transforma em uma aventura repleta de desafios cômicos e
constrangedores. Com a força e amizade de outras garotas, Super descobre o poder que tem e
juntas enfrentam os perigos do cotidiano de uma forma completamente diferente.

8.5 Texto Curatorial e Programas

A proposta da Mostra de Curtas LGBT, se pauta na apresentação e representação


positiva e corajosa de homossexuais e transexuais, de diversas idades e origens. Esses
indivíduos se encontram na tela do cinema com a mesma sensação de encontro que uma
comunidade permite criar. No longa-metragem Favela Gay (2013) de Rodrigo Felha,
selecionado para integrar a mostra em uma sessão especial, o deputado Jean Wyllys afirma: que
“nada mais diferente de um homossexual que outro homossexual”, porém trazendo a ideia de
pertencimento como fator principal na constituição LGBT enquanto comunidade.
94

A linha curatorial da Mostra, se baseia na diversidade de sujeitos e contextos, trazidos


por diferentes linguagens e técnicas à tela do cinema, dando espaço e voz a uma população que
ainda se encontra marginalizada em questões de direitos e liberdades. Partindo do pressuposto
de que tudo é signo, trazemos às telas esses corpos dotados de discurso, registrados por uma
câmera consciente de que representatividade é ação política direta.
Os 26 curtas metragens que integram a mostra possuem origem em todas as cinco
macrorregiões do país. Abraçando diferentes realidades de produção, estéticas, linguagens,
temas, focos e identidades mas ainda assim ligados pelo ideal de pertencimento a uma causa.

Em Queer e Santa Porque Avalanche, mais ousados esteticamente, temos a performance


e o corpo como principal meio de construção de discurso, lançando um olhar sob a performance
como agente modificador. O verbo não se faz necessário também para a construção narrativa
de Cru e A Outra Caixa, filmes que também se apoiam do silêncio e na performance para
construir uma crítica em relação a solidão gay bem como questionar estereótipos de gênero.

O questionamento desses estereótipos de gênero se faz presente ao abordar possíveis


homossexualidades na infância, como apontar a sexualidade de uma criança? Essas são
questões presentes em Shala e O Chá do General, abordando de forma delicada e simbólica o
que poderiam ser indícios de uma sexualidade não normativa. A descoberta sexual mais efetiva
se dá da adolescência, quando os primeiros desejos começam a encontrar pulsões de se
concretizar, Pele Suja Minha Carne apresenta esse momento da juventude possibilitando ainda
um tensionamento com raça, já que não é possível consideramos um indivíduo única e
exclusivamente pela sua condição sexual. Bixa Preta e Maria Helena – A mulher de todos seja
pela potência das falas, performance ou escracho também colocam o contexto em evidência
para construção narrativa individual de cada um de seus personagens.

Em 1º de Julho, PREPARA!, Em Defesa da Família e Palloma nos deparamos com um


discurso político de ocupação das instituições que nós é de direto: o trabalho, a universidade e
a família. Enquanto Ingrid, Homorragia, Sábado de Carnaval e Plutão de maneira mais ampla
trazem as mesmas questões relacionadas a ocupação dos espaços transposta para os espaços
públicos de convivência social.

O Corpo Nu, Diva e Jessy apontam caminhos para a descoberta de si através do olhar
dos outros, não de uma forma negativa, mas apontam caminhos para se repensar a própria
95

maneira de se enxergar no mundo. Em tais produções também encontramos um apelo inventivo


de brincar com a fabulação dentro do documentário e da estética documental dentro da ficção.

Ciborgues futuristas, androides terroristas, lésbicas super heroínas, são propostas


abordadas em Antes da Encanteria, Janaína Overdrive e Super valendo da inventividade da
ficção e eficiência da montagem para criar realidades paralelas.

Fazendo referência a gêneros cinematográficos consagrados, além de constituir uma


citação direta, em Irma - Era Uma Vaz No Sertão e BRASXPLOITATION– A Rainha Negra
rompem com estereótipos representacionais dos estilos trazendo lésbicas no papel de
protagonistas.

Programa 1: Corpo Performance


Duração: 80 minutos
Filmes: A Outra Caixa, Antes da Encanteria, Cru, Ingrid, Santa Porque Avalanche e Queer
Resumo: O corpo em seus lugares de performatividade diante dos padrões normativos da
sociedade

O que pode ser compreendido pelo não dito, qual a necessidade real das palavras? Antes
da Encanteria abre a sessão contando uma história de era uma vez, a medida que o filme avança
as palavras vão se fazendo cada vez menos necessárias dando lugar a uma performance
imagética encontrada de forma mais feroz em Santa Porque Avalanche, filme que dá sequência
ao programa. A Outra Caixa brinca de forma crítica com os padrões de feminilidade, enquanto
Ingrid vai além nesse questionamento, expondo de maneira mais enfática que o gênero é um
construto social. Com Cru, que aborda a questão da solidão homossexual através de uma ótica
sensorial e erótica, o programa se conclui com o Queer que celebra a diversidade sexual por
meio de uma imersão na performance e no estudo do corpo como gerador potencial de discurso.

Programa 2: Corpo de Direitos


Duração: 63 minutos
Filmes: 1º de Julho, Em Defesa da Família, Palloma, PREPARA!,
Resumo: Corpo na busca de reconhecimento e aquisição de direitos.

Como assegurar direito de acesso à população LGBT às instituições de educação,


trabalho e até mesmo : família. Este programa começa com uma questão fundamental à
população Trans, antes de qualquer política pública é preciso reconhecer a identidade trans e o
96

nome social como um direito incontestável, esse é o mote de Palloma. Em 1º de Julho, temos
a questão da inserção no mercado de trabalho como uma barreira a ser transposta, fazendo com
que muitas vezes a própria identidade tenha de ser negada para se encaixar no perfil do
empregado, felizmente a história apresentada nesse curta se apoia na força da auto afirmação e
na coragem da protagonista para sobrepor o medo e se afirmar enquanto transsexual.
PREPARA! aborda o dia ao dia de uma ONG que visa preparar travestis e transsexuais para o
vestibular, entendendo a educação como ferramenta de mudança de paradigmas. Por fim, Em
Defesa da Família temos um interessante olhar proposto por funcionárias do congresso
nacional, instituição que a priori deveria garantir os direitos dos cidadãos.

Programa 3: Corpo em Descoberta


Duração: 81 minutos
Filmes: Diva, Jessy, O Chá do General, Pele Suja Minha Carne e Shala
Resumo: A infância, a juventude, e a descoberta de si e do outro. O programa aborda o
processo de explorar o desconhecido buscando entender mais de si.

Shala apresenta a história de uma criança que é rejeitada em um processo de adoção por
não corresponder às expectativas de masculinidade do pai adotivo. O filme que abre a sessão
dá lugar ao curta O Chá do General que se baseia sobre os mesmos elementos de estereótipos
de gênero para apresentar a possível homossexualidade de um menino de 10 anos. A rejeição
que Pedro, protagonista de Shala, sofre também está presente em O Chá do General, mas neste
caso a rejeição da filha pelo pai faz com que este acabe abraçando e aceitando o neto. Pele Suja
Minha Carne possui o medo da rejeição como principal tormento do protagonista, que além de
homossexual vê sua negritude colocada em questão, pelo seu melhor amigo por quem se
apaixona e de quem acaba recebendo ofensas racistas e homofóbicas. O final aberto do curta
não deixa entendermos se o personagem se reclui mais ou a escrita do xingamento recebido no
espelho faz parte de uma autoafirmação, assim para a construção do programa somos inclinados
a pensar na segunda opção. Jessy, retoma a infância para a construção de uma persona Drag,
vivida por uma mulher cisgênera que conta com a ajuda de famosas drag queens da cena
soteropolitana. Essa relação entre mulheres cis e heterossexuais também é abordada em Diva,
com a mudança de Camila para uma pensão onde vivem outras três drag queens.

Programa 4: Corpo que olha, Corpo que vê.


Duração: 68 minutos
Filmes: Bixa Preta, Homorragia, Maria Helena – A Mulher de Todos, O Corpo Nu, Plutão,
97

Sábado de Carnaval
Resumo: A vivência e o corpo homo/transexual em relação ao seu contexto social.

Este programa visa tecer entre os filmes incluídos uma perspectiva dos olhares.
Sábado de Carnaval introduz o programa mencionando o Carnaval,como um interessante
momento de mudança de visão, colocando o apoio família e determinação como motivadores
para superar a cegueira do preconceito. Maria Helena – A Mulher de Todos vai de encontro
aos olhares comuns e estereotipados em relação a prostituição, contudo o filme se desenvolve
de uma maneira cômica referenciando um dos grandes artistas da cena transformistas
brasileira João Carlos Castanha. Esse olhar trash é deixado de lado, pela câmera manifestante
e inquieta de Homorragia e Bixa Preta, questionando de maneira mais política a ocupação
dos espaços públicos e atraindo os olhares as urgências da comunidade gay. Ainda pensando
em espaço público o programa traz Plutão, que é uma imersão sobre a ocupação gay no centro
do Rio de Janeiro, e em seguida O Corpo Nu, que questiona o lugar de quem vê por quem é
visto.

Programa 5: Super Corpo


Duração: 81 minutos
Filmes: BRASXPLOITATION – A Rainha Negra, Irma – Era Uma Vez No Sertão, Janaína
Overdrive, Super.
Resumo: Mulheres super poderosas assumem o controle da revolução.

Super conta uma história adolescente sobre super poderes e sobre como a união feminina
é ferramenta indispensável para a destruição do sistema machista e patriarcal. Essa destruição
é levada um pouco mais adiante na super produção faroeste-sertaneja Irma – Era Uma Vez No
Sertão, e em BRASXPLOITATION – A Rainha Negra, ambos os filmes apresentam mulheres
munidas de arma e coragem, em busca por vingança e preparadas para o combate. Janaína
Overdrive se vale da mesma proposta, representando uma transcyborgue em busca de burlar o
sistema para obter sua liberdade

.Programa 6: Sessão Especial: Favela Gay


Duração: 73 minutos
Filmes: Favela Gay
Resumo: A homossexualidade e a Transsexualidade na Favela.
98

A sessão especial trás o longa metragem Favela Gay, de Rodrigo Felha, para discutir a
marginalização dos corpos periféricos, apresentando um novo olhar sob o contexto de
vulnerabilidade social.

8.6 Divulgação e Exibição

O fazer curatorial conclui-se com a divulgação oficial dos filmes selecionados,


organizados em uma programação contendo o pensamento proposto pelo curador, muitas vezes
sendo exemplificado pelo texto curatorial liberado para impressa ou presente no catálogo
(quando existente). A proposição dessa mostra desde sua concepção em 2014 me trouxe ao
lugar de idealizador, curador e produtor. Finalizada a curadoria, tendo selecionado os filmes e
montado o programa, cabe a minhas atribuições pensar na logística de exibição e divulgação da
mostra. Para essa edição, convidei Rodolfo Pacheco para elaborar junto a mim, as artes de
divulgação veiculadas mais precisamente em redes sociais. Para sua primeira edição foi criada
uma página no facebook, contabilizando um total de 535 curtidas até o dia 22 de março de 2017,
e possuindo um alcance médio de 1000 pessoas por postagem, chegando a 1.890 na postagem
especifica onde foi veiculada a chamada de inscrição para os curtas da mostra. Nenhuma
ferramenta de impulsão de postagem paga pelo facebook foi utilizada.

Referente a exibição, a ideia é que assim como a primeira versão, a mostra circule por
várias cidades por meio de parcerias estabelecidas com cineclubes e universidades. Havendo
diálogo aberto para levar a mostra aos municípios de São Paulo - SP, Viçosa- MG bem como
Cachoeira-BA.
99

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para entender a produção do cinema LGBT nos dias de hoje, se faz necessário buscar
ao longo da história desta arte um aporte referencial, a representação e presença intensamente
discutida neste trabalho só obteve avanços, considerando que seu percurso dialogou
diretamente com os movimentos sociais e suas lutas por lugares de fala e espaços ocupados.
Neste sentido realizar uma curadoria é também propor a existência desses lugares. A curadoria
surge então como importante ferramenta política.
Vindo do latim tutor (aquele que observa, guarda, cuida), o termo “curador” se refere
ao profissional responsável pela concepção, montagem e supervisão de uma exposição ou
evento artístico como no caso de uma mostra cinematográfica. É incumbência desses
profissionais tecer uma linha narrativa entre as obras expostas, valendo-se das singularidades
de cada obra que podem ser compartilhadas com outros objetos.
O diálogo entre obras é estabelecido primariamente a partir de suas congruências sejam
elas de caráter territorial/geográfico, autoral, estilístico, temático e temporal por exemplo. Essas
congruências no cinema permitem por exemplo a realização de Festivais como o “African Film
Festival Of New York” focado em filmes realizados no continente Africano, “Mostra de Filmes
Selecionados de Pedro Almodóvar” onde se estabelece um recorte dentro da cinematografia do
diretor, “Dança em Foco” festival internacional voltado exclusivamente para a vídeo-dança
entre outros.
Mesmo se apresentando como um tímido e pouco teorizado campo de estudo, e quando
sim, geralmente se refere aos campos de artes plásticas e museologia, a curadoria em relação
ao cinema é um conceito inquestionável no fazer e pensar filme. Desde os campos da produção
e criação que já visa a veiculação do filme em festivais por exemplo, até campos mais
específicos como o da montagem, preservação e crítica.
É inerente às competências de um curador, pensar a relação entre as obras, mas também
a disposição que elas chegarão ao público – e isso consiste em montar um display, montar um
programa. Essa atividade se relaciona analogicamente com a função do montador, se tomarmos
como exemplo o experimento do cineasta russo Lev Kuleshov fundamental para entender a
importância da montagem como essencial ao cinema. O Efeito Kuleshov propunha a criação
significado entre dois planos em sequência, a alteração de um desses planos implicava também
na alteração da relação subjetiva que o espectador estabelecia com essas imagens. Porém, se no
efeito russo a ideia partia de planos que isoladamente não possuíam qualquer sentido, ao se
relacionar com a curadoria, vemos esse experimento expandido, como encadear planos (filmes)
em sequências (programas) dando sentido a eles? E qual é esse sentido?
100

Essa resposta só pode ser obtida se acionarmos outra disciplina cinematográfica. A


Crítica cinematográfica que é o exame de um filme, realizado com o intuito de estabelecer
valores a obra, dialogando com que foi mostrado em sintonia com o aporte pessoal e externo
que cada observador possui. Nesse aporte é que o curador irá encontrar ferramentas para
exercício de sua função. Como olhar para uma obra? Como realizar uma leitura intertextual?
Como relacionar um filme com a realidade política e social? Essas perguntas estão centradas
justamente no local onde se reconhece de onde se vê e de onde também pode se propor
indicativos de olhares. Colocando o curador como aquele que observa não apenas um único
elemento, mas todo o contexto que se estabelece em torno deste.
Porque o pensamento de cinema e o campo de cinema não é uma coisa
dada. Ele precisa ser tensionado. A própria ideia de crítica inclui uma
autocrítica. A crítica não assegura um parâmetro para valorizar e
legitimar historicamente os filmes. A crítica também precisa reconstruir
parâmetros em função dos filmes que surgem e dos sujeitos históricos
que começam a filmar. (CÉSAR, 2017)

Retomando a ideia do termo “curador” como aquele que guarda, aquele que cuida,
podemos associar a curadoria também às questões relativas à preservação do material artístico,
curar nesse aspecto também significa assegurar a criação de uma memória tendo como base
determinado conjunto fílmico.
Pensando nessas questões, inferimos que mesmo não usual o debate da curadoria em
território teórico-academio está em expansão assim como o próprio termo. O que se faz falta é
uma estruturação da questão, ela existe, está colocada, e não é de hoje, festivais de cinema
existem desde 1932 quando o primeiro deles tomou lugar em Veneza- Itália, se tornando anual-
regular a partir de 1943, isso significa que a função existe desde a primeira metade do século
passado considerando apenas o cinema. No Brasil, impulsionados a partir dos anos 60, e
multiplicados a partir dos 90, temos um vasto catalogo de festivais que vão desde os mais
prestigiados como os de Gramado, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Tiradentes até pequenos
festivais que ocorrem em presídios no interior do país.
Tendo em mente essas questões, a Mostra de Curtas LGBT surge com uma proposta
curatorial política de estabelecer leituras a temas discutidos socialmente provocado assim novos
olhares à comunidade LGBT, humanizando, desmitificando, rompendo com o tabu.
Especialmente associando LGBT ao sentido de arte, cultura, vida, força e coragem. A Mostra
de Curtas LGBT também se propõe a atender as novas reivindicações no que tangencia a
cultura, estética e política, estando consciente do que Amaranta César (2017) irá propor como
ascenção de sujeitos históricos
101

A gente precisa se confrontar com sujeitos históricos que estão filmando


e que não filmavam antes. Seja os militantes na rua filmando
manifestação, sejam as mulheres, sejam os negros, sejam os índios que
pegam a câmera para se defender de ataque de fazendeiro. Então há
sujeitos históricos filmando, e filmando em modos de produção que não
são os modos de produção tradicionais, delimitados pelo campo
cinematográfico institucional. Fora de uma institucionalidade, fora de um
quadro conceitual pronto. Como lidar com isso? (CÉSAR, 2017)

Por fim, a II Mostra de Curtas LGBT promove a catalogação da produção LGBT nos últimos
anos no Brasil com o intuito que perpassa a exibição. O registro dessas obras é importante
material histórico de luta e militância, afirmando a presença homossexual na produção
cinematográfica fazendo com que posteriormente alguém tenha acesso às discussões tecidas
sobre a homo/transsexualidade durante os primeiros anos do século XXI.
102

“Sem perder a distância que os separa, a imagem produz um efeito sobre o


real, colocando-se na sua orla, e torna-se, ela mesma, espaço coabitado pelos
vivos e mortos, conhecidos e estranhos (ou estrangeiros), crianças e adultos,
desaparecidos e sobreviventes. Mas, nesse movimento, ela menos funda o
comum do que o entrega a uma destinação incerta, em devir, que enlaça, sem
fechar, o que se vê e o que não se vê. Somente assim as imagens podem fazer
apelo à comunidade dos espectadores, reunidos sem fusão, preservados os
lugares distintos de onde cada um vê, essa “nuca” do mundo que escapa a
todos, e que ninguém vê. É desse modo que elas entretecem o liame invisível da
comunidade dos que veem juntos, ligados em sua separação, distantes de toda
identificação com um corpo único.”

Cesar Guimarães
103

10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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