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20/06/2021 Continuamos brincando de democracia enquanto Bolsonaro a desmancha - 19/06/2021 - Bernardo Carvalho - Folha

Bernardo Carvalho (/colunas/bernardo-carvalho/)


Romancista, autor de "Nove Noites" e "O Último Gozo do Mundo".

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Continuamos brincando de democracia enquanto


Bolsonaro a desmancha
Como em romance de Dostoiévski, quem diz que as instituições estão funcionando
se recusa a entender o fedor do cadáver

19.jun.2021 às 12h00


EDIÇÃO IMPRESSA
(https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2021/06/20/)

Não é a primeira vez que menciono neste espaço a observação de Brecht


sobre Kafka e Dostoiévski (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bernardo-carvalho/2019/09/brasil-de-
hoje-seria-um-conto-ruim.shtml), citada por Ricardo Piglia

(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/05/ricardo-piglia-escreve-sobre-insensatez-do-calendario-em-

no segundo volume dos seus “Diários de Emilio Renzi” (o terceiro e


inedito.shtml)

último acaba de sair pela Todavia). Não é a primeira e provavelmente não


será a última, mas desta vez a repetição é o próprio argumento do texto.

Brecht defende que Kafka não teria encontrado sua forma literária sem antes
ler a passagem que narra o velório do monge Zossima, em “Os Irmãos
Karamázov (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2311200817.htm)”.

Multidões convergem para o mosteiro para velar o corpo do santo. Esperam


um milagre. O corpo dos santos em princípio não se corrompe. E de repente

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um monge abre uma janela do recinto. Brecht atribui à banalidade desse ato
o fundamento do absurdo kafkiano.

Ninguém entende nada, porque ninguém está preparado para entender. O


cadáver de Zossima começa a empestear o ambiente, mas não faz sentido
abrir a janela, porque o corpo dos santos não se corrompe. O que se espera
ali é o milagre, a transcendência, e a espera do milagre impede que se veja o
óbvio e que se estabeleça um nexo entre o cadáver e o fedor. O gesto do
monge abrindo a janela é precisamente a marca do absurdo kafkiano
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/05/diarios-de-kafka-ineditos-no-brasil-iluminam-a-sua-mente-brilhante-e-

atormentada.shtml), segundo Brecht, o que não se compreende na sua mais obtusa e


perturbadora evidência.

Também esperamos no Brasil.

Esperamos quando o céu de São Paulo é tomado pela nuvem negra das
queimadas na Amazônia (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/08/queimadas-no-paraguai-e-
frente-fria-explicam-tarde-escura-em-sao-paulo.shtml).

Esperamos quando são presos os executores (mas não os mandantes do


assassinato) de Marielle Franco e Anderson Gomes
(https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/acusados-pela-morte-de-marielle-vao-a-juri-popular-decide-juiz.shtml).

Esperamos quando é preso o amigo íntimo


(https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/06/fabricio-queiroz-e-preso-em-operacao-da-policia-civil-e-do-mp-de-sao-

paulo.shtml)que
atuava como o elo perdido entre a família do presidente e
assassinos de aluguel, além de ser articulador de um esquema notório de
desvio de verbas públicas.

Esperamos quando centenas de milhares de cidadãos morrem em


decorrência da aposta assassina do presidente (e de seu governo cúmplice)
que, numa tática criminosa de sobrevivência política, insiste em debochar da
ciência (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/03/relembre-o-que-bolsonaro-ja-disse-sobre-a-pandemia-de-
gripezinha-e-pais-de-maricas-a-frescura-e-mimimi.shtml), da razão e da única solução disponível

para impedir o avanço da morte (https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/03/governo-


negou-3-vezes-ofertas-da-pfizer-e-perdeu-ao-menos-3-milhoes-de-doses-de-vacina.shtml).

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Esperamos quando um general da ativa, instrumento irresponsável da


estratégia negacionista do governo (equivocada até no seu canhestro cálculo
econômico), comparece a um ato político ao lado do presidente
(https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/bolsonaro-passeia-de-moto-e-gera-aglomeracao-no-rio-apos-dizer-que-teve-

sintomas-de-covid-19.shtml), o que é vedado por lei e pelo regimento interno das Forças
Armadas (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/entenda-possiveis-transgressoes-de-pazuello-ao-
regulamento-do-exercito-por-ato-com-bolsonaro.shtml).

Mas o que se espera nunca chega, como o milagre para os crentes ao redor
do corpo putrefato do monge Zossima. A única diferença é que aqui os
termos estão invertidos.

O governo não cai nem se responsabiliza por nada, nunca, reiteradamente,


como se não houvesse por que se responsabilizar. Quando a justiça parece
enfim acercar-se, uma nova surpresa nos leva, repetidamente, a descartar as
consequências lógicas da justiça, de volta ao lugar de onde nunca saímos,
como se nada tivesse acontecido.

O general, envolvido na morte de milhares de brasileiros, recebe licença para


mentir e não só não é punido (como exigem as normas internas do Exército)
(https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/06/exercito-decide-nao-punir-pazuello-por-participacao-em-ato-com-

bolsonaro-no-rio.shtml) como é galardoado pelo chefe com o cargo de conselheiro


presidencial para assuntos estratégicos (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/06/bolsonaro-
nomeia-general-pazuello-para-atuar-em-secretaria-vinculada-a-presidencia.shtml). O Exército, suposto

defensor da nação, lacra sob sigilo, por cem anos, os documentos


relacionados ao caso (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/06/exercito-alega-informacao-pessoal-e-
impoe-sigilo-de-ate-100-anos-a-processo-que-absolveu-pazuello.shtml).

O elo perdido entre a família do presidente e assassinos de aluguel volta para


casa sob alegações humanitárias (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/07/apos-decisao-do-
presidente-do-stj-queiroz-deixa-presidio-no-rio-para-cumprir-pena-em-casa.shtml) e se perde de vez.

A responsabilidade (e, na falta dela, a responsabilização) das autoridades é


condição para o funcionamento das democracias
(https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/06/poupar-bolsonaro-do-impeachment-cria-riscos-para-instituicoes-diz-

pesquisador.shtml). Entretanto, apesar das repetidas afrontas, continuamos


esperando. Continuamos brincando de democracia funcional, enquanto os

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que ocupam o poder implementam incólumes o plano que traçaram para


desmanchá-la.

Qual o nexo entre defender uma sociedade supostamente livre e servir-se


arbitrária e impropriamente do poder do Estado e de penduricalhos da
ditadura militar para perseguir quem denuncia seus crimes?

Qual o nexo entre repetir que as instituições democráticas estão


funcionando e não ser submetido às consequências da lei?

Qual o nexo entre o fedor e o cadáver?

Segundo Brecht, o kafkiano é resultado da incompreensão de uma evidência


incontornável diante da transcendência que falta. Aqui, ao contrário, no
lugar do milagre, o que falta é o desdobramento lógico, o que pode, como diz
a canção de Caetano Veloso (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/09/nao-vejo-nenhum-
neostalinismo-em-curso-e-polemica-e-maluca-diz-caetano.shtml), “ter sempre estado oculto, quando

terá sido o óbvio”.

Suspeito que os que agora dizem que as instituições estão funcionando


sejam os mesmos que diziam que Bolsonaro jamais seria eleito. O cadáver
está fedendo, mas o incompreensível, o kafkiano, é que ninguém abra as
janelas.

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