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R E SEN HA

RESENHA DO LIVRO NECROPOLÍTICA


MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção e política da morte. São Paulo: n-1
edições. 2018.

TATIAN A D E SOUZA F ERR EI RA


Licenciada e Bacharela em Geografia (UERJ), Mestra em Geografia
(UERJ)
Professora do Colégio Pedro II (Campus Realengo II)
pr o f t a t i a na @ ho tmai l . c om

INTRODUÇÃO pertencem a publicações em língua portuguesa,


sendo que 347 são publicações realizadas nos
Nos últimos anos, dentre os novos debates últimos dois anos. Para anos anteriores não foram
e temáticas no âmbito das ciências humanas, encontradas referências ao termo.
tem chamado particular atenção a crescente Mas a que se deve o crescimento da
notoriedade do filósofo Achille Mbembe. De origem popularidade de Mbembe? Embora “necropolítica”
camaronesa, Mbembe se destaca pelos debates seja apenas um ensaio e, portanto, se caracterize
empreendidos com diferentes autores, neste como uma noção ampla e com diferentes frentes
ensaio especialmente com Michel Foucault em de análise em aberto, é um trabalho que responde a
seus estudos sobre biopoder e biopolítica uma série de anseios teóricos dos “países do Sul”.
Embora em língua portuguesa sejam apenas Em um universo acadêmico ainda dominado
duas obras publicadas, o ensaio “Necropolítica” por teses, epistemologias, métodos e teorias inscritas
(2018a), que analisaremos aqui, e o livro “Crítica da dentro da perspectiva do “Norte”, percebe-se
razão negra” (2018b), ambos publicados pela n-1 uma carência de modelos que dialoguem com as
edições, a popularidade do autor pode ser verificada realidades das múltiplas periferias do mundo. Como
por um breve levantamento do termo “necropolítica” falar em biopoder quando os termos da soberania
na base da CAPES e no google scholar. se articulam não à capacidade de fazer viver, mas
Segundo Rodrigues (2019), de 2009 a sim de fazer morrer?
2019 foram encontrados 1.925 resultados para o Mbembe vem ocupar um espaço de
termo em ambas as plataformas. Deste total, 535 produção acadêmica que reflete sobre os processos

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de violência, cerceamento, desigualdade, Nesse sentido, a formação do mundo


exploração de recursos naturais e criação de moderno não se deu da mesma forma para
mundos de morte que marcam, ainda que com todos os sujeitos em todos os espaços. Segundo
diferentes nuances, os territórios sob o signo da Mbembe a modernidade que se inscreveu nos
colonialidade, seja ela a dos empreendimentos países do “Norte” esteve pautada no predomínio
coloniais do século XV ou da ocupação colonial na de um conceito de soberania que privilegiou
modernidade tardia, como é o caso da Palestina, teorias normativas e tornou a ideia de razão um
segundo o autor. dos elementos mais importantes.
Nesse sentido, Mbembe é altamente No caso dos países do norte e nos termos
geográfico, pois é na forma como o território da biopolítica,
aparece no ensaio em questão que percebemos
o exercício articulado entre os poderes disciplinar, A expressão máxima da soberania é a
biopolítico e necropolítico sobre os corpos. produção de normas gerais por um corpo
Dada as inúmeras possibilidades de (povo) composto por homens e mulheres
análise e os limites desta resenha, neste trabalho livres e iguais. Esses homens e mulheres são
especificamente tentaremos pensar sobre as considerados sujeitos completos, capazes
potencialidades do termo “necropolítica” para de autoconhecimento, autoconsciência e
o debate da formação territorial do Brasil que autorrepresentação. A política, portanto,
culminou em um país marcado pela forte segregação é definida duplamente: um projeto de
socioespacial e racial, onde em diversos territórios autonomia e a realização de acordo em
o estado de exceção tem sido a regra e a morte uma coletividade mediante comunicação e
uma constante. reconhecimento. (MBEMBE, 2018a, p. 9).

MODERNIDADE E COLONIALIDADE Embora Mbembe considere esta definição


fortemente normativa, é esta versão de soberania
Possivelmente um dos maiores avanços - que o autor inclusive classifica como romântica
que obtivemos no debate científico que ocorre - que pautou a formação social no imaginário
nos “países do sul” foi a ampliação da perspectiva da modernidade nos “países do norte”. Ora, no
decolonial. Embora autores como Franz Fanon há caso dos países da América Latina e África que
quase 60 anos atrás já afirmassem a necessidade passaram pelo processo de colonização e por
de um diálogo de dentro e a partir dos colonizados, uma normatização diferente da Europa ocidental,
somente na última década temos presenciado o Mbembe fala de uma luta não por autonomia,
aumento da produção e difusão de epistemologias, mas sim da “instrumentalização generalizada da
métodos e teorias pensadas por autores periféricos. existência humana e a destruição material de
Quando isto ocorre, temos uma nova corpos humanos e populações” (p. 10-11).
perspectiva nas narrativas que explicam a nossa Modernidade e colonialidade tornam-se
formação enquanto país, sociedade e território. então, opostos complementares, pois o projeto
Teorias importadas dos autores do “Norte” não de autonomia do “Norte” foi pautado no projeto de
conseguem abarcar e explicar os fenômenos que colonização dos corpos e dos territórios do “Sul”.
forjaram e ainda forjam a periferia do mundo. Pensando em termos foucaultianos, a possibilidade
Não que tais autores já clássicos em de uns em construir uma sociedade pautada no
nossa formação devam ser descartados, mas fazer viver entre indivíduos entendidos como iguais,
definitivamente há que se reconhecer que seu só foi possível com a política do fazer morrer
conhecimento não é universal, mas absolutamente colonial e neocolonial.
situado em termos de raça, classe, gênero e Do lado de cá das colônias, os ameríndios
posição geográfica. e os africanos escravizados nunca foram vistos

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como sujeitos de igual estatuto, portanto, não cabia fornece muitos apontamentos para a compreensão
a eles o mesmo reconhecimento em termos de de elementos presentes no Brasil atual.
humanidade. O ideal da razão foi utilizado para Nossa formação territorial ocorreu de forma
julgá-los como selvagens e foi o determinismo profundamente desigual e vamos considerar aqui
geográfico e o evolucionismo que trouxeram o um aspecto em específico: a regulamentação de
verniz científico à dominação. quem tem direito à propriedade e aos recursos
É, portanto, o racismo que resolve o presentes no território, como esses recursos podem
problema da morte praticada pelos Estados ser explorados e para atender que tipo de interesse.
soberanos tanto em seus territórios quanto em Sobre o direito à propriedade e aos recursos,
além-mar, com a diferença que nas colônias a morte a soberania, tema central no debate de Mbembe,
vinha acompanhada de todo tipo de violação, abuso costuma aparecer para justificar que é o Estado
e tortura. Para Mbembe, o direito de matar nas que possui a prerrogativa de definir e regulamentar
colônias não estava sujeito a nenhuma norma legal quem são aqueles que terão direito à propriedade e
e institucional, visto que o corpo objeto da morte como deverão explorar os recursos de um território.
não foi durante muito tempo sequer considerado Nesse sentido, cabe ressaltar a dificuldade
um ser humano dentro dos parâmetros ocidentais. de reconhecimento e demarcação de terras
Ora, se pensarmos no caso do Brasil, foram indígenas e quilombolas, o sempre presente
séculos sob o jugo colonial e imperial escravagista. questionamento sobre o direito destas populações
Nos formamos enquanto território e sociedade sobre as riquezas em seus territórios e os
marcados por uma profunda desigualdade e pela constantes conflitos, ameaças e mortes aos quais
constante presença da morte e da exploração de estes grupos estão submetidos nas disputas com
corpos e recursos. Cabe agora pensar em que grandes fazendeiros ou projetos de mineração, por
sentido essa necropolítica, cujos pilares foram exemplo. Tais problemas só conseguem ser melhor
fundados no processo de colonização, pode nos entendidos quando percebemos que eles são parte
ajudar a entender certas questões territoriais e de um fenômeno econômico transescalar.
sociais em nosso país. Quando tratamos deste tema, muitas vezes
permanecemos na escala do Brasil, como se esses
MUNDOS DE MORTE E SUA DIMENSÃO TERRITORIAL conflitos estivessem inscritos em uma dinâmica
exclusivamente interna, mas Mbembe reforça o
A formação territorial do Brasil, tal como raciocínio das múltiplas escalas quando nos lembra
a concebemos e ensinamos no ensino médio, é que os projetos de exploração de recursos naturais
um debate que pode ser deveras enriquecido se que se multiplicam em diversos países periféricos e
considerarmos a perspectiva decolonial. Fortalecer semi-periféricos, se tratam, ao menos em parte, de
as narrativas daqueles que foram e ainda são uma tentativa de resolver o problema da escassez
expropriados de seus direitos civis, sociais e de liquidez financeira dos países, formando o que
territoriais – entendido aqui como o direito ao ele chama de “enclaves econômicos” (p. 57) em
reconhecimento de propriedade e autonomia territórios onde há a extração de valiosos recursos.
de decidir sobre o que fazer com a terra e seus Ora, quando pensamos no Brasil, nossos
recursos – e olhar o “Norte” e o próprio “Sul” a recursos, cujo principal destino é o mercado externo
partir da nossa realidade, pode fornecer melhores e que em parte são explorados por empresas
subsídios ao ensino de geografia do Brasil. cujo capital é em sua maioria estrangeiro, estão
No caso específico do ensaio de Mbembe, inseridos em redes transnacionais. São essas redes
embora ele não trate em momento algum da que articulam o modo como nos apropriamos da
realidade brasileira, apesar de sermos o segundo natureza, que ditam o ritmo e a quantidade dos
país em população negra do mundo e de termos sido recursos extraídos, que se beneficiam com a perda
uma das mais importantes colônias, sua reflexão de direitos territoriais por parte de comunidades

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tradicionais e que praticam toda sorte de violações externos que se sobrepujaram, com o auxílio do
de direitos em áreas onde se formaram grandes poder instituído, sobre os interesses de índios,
projetos econômicos, como a construção de quilombolas, pequenos agricultores, seringueiros,
usinas hidrelétricas, a implantação de projetos de pescadores, ribeirinhos, favelados, etc. Não foi
mineração e a expansão da fronteira agrícola, com a conformação de uma sociedade de iguais na
subsídios ou não do Estado. busca por autonomia e direitos que marcou a
É essa dinâmica global de ampliação nossa formação, mas sim a instrumentalização da
da pressão pela exploração de recursos que vida e dos territórios na produção de verdadeiros
reverbera nos territórios da periferia do mundo mundos de morte.
através da necessidade de intensificar a inovação
tecnológica, a confecção de produtos cada vez CONCLUSÃO
mais descartáveis e o aumento do consumo
mundial, modo de vida característico do ocidente O debate sobre a produção de mundos de
que se espraiou pelo mundo. morte a partir da noção de necropolítica ainda é
Nesse sentido, modos de vida que se pautam incipiente e com muitas possibilidades de análises.
em outra temporalidade ou em outras maneiras de Embora Mbembe em seu ensaio se concentre
lidar com a natureza são ainda entendidos como mais na colonização da África e principalmente na
sinônimo de atraso, empecilhos ao progresso e questão Palestina para exemplificar sociedades
à modernização. Os mundos de morte dos quais onde há um fazer morrer ativo, é possível, dentro
trata Mbembe não precisam ser em nosso caso do debate decolonial, encontrar apontamentos que
brasileiro o da morte violenta do corpo, embora nos auxiliem nas reflexões sobre o Brasil.
também o sejam, mas da morte dos lugares que Mesmo não sendo geógrafo, seu trabalho é
exterminam culturas inteiras. O lugar como fonte profundamente geográfico ao abordar temas que
de um importante poder simbólico morre em seus nos são caros, como soberania e território, redes e
significados ao ser transpassado pelos interesses escala, recursos naturais e globalização. Por isso,
e lógicas exóticas que alteram as dinâmicas locais. nosso intuito aqui era não só apresentar, de forma
A Vale em Brumadinho e Mariana, a EBX no Porto muito incipiente e reduzida, um caminho possível
do Açu, a parceria público-privada em Belo Monte para uso do termo necropolítica em uma abordagem
e em outras inúmeras hidrelétricas, a expansão decolonial da formação do território nacional, mas
da soja por terras indígenas para atender à também de refletir, a partir do “sul” e sobre o “sul”,
demanda estrangeira dessa commodity, enfim, são a cerca de conceitos geográficos já tradicionais
inúmeros os casos nos quais nossos territórios são em nossos currículos escolares. Revisitados, tais
profundamente alterados e marcados à despeito conceitos podem se tornar, nas mãos de nossos
do modo de vida de comunidades inteiras. professores e estudantes, importantes ferramentas
Ao longo do processo de formação de compreensão do mundo.
territorial do Brasil, são vários os interesses

REFERÊNCIAS

FANON, Franz. Os condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora UFJF; 2006

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção e política da morte. São Paulo: n-1 edições; 2018a.

______. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições; 2018b.

RODRIGUES, Eduardo de Oliveira. Necropolítica: uma pequena ressalva crítica à luz das lógicas do arrego. Rio de Janeiro.
2019. (mimeo.)

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