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G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 5 , N . 9 , P. 1 1 7 - 1 2 0 , J A N . / J U N . 2 0 1 8 . 117
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TAT I A N A D E S O U Z A F E R R E I R A
como sujeitos de igual estatuto, portanto, não cabia fornece muitos apontamentos para a compreensão
a eles o mesmo reconhecimento em termos de de elementos presentes no Brasil atual.
humanidade. O ideal da razão foi utilizado para Nossa formação territorial ocorreu de forma
julgá-los como selvagens e foi o determinismo profundamente desigual e vamos considerar aqui
geográfico e o evolucionismo que trouxeram o um aspecto em específico: a regulamentação de
verniz científico à dominação. quem tem direito à propriedade e aos recursos
É, portanto, o racismo que resolve o presentes no território, como esses recursos podem
problema da morte praticada pelos Estados ser explorados e para atender que tipo de interesse.
soberanos tanto em seus territórios quanto em Sobre o direito à propriedade e aos recursos,
além-mar, com a diferença que nas colônias a morte a soberania, tema central no debate de Mbembe,
vinha acompanhada de todo tipo de violação, abuso costuma aparecer para justificar que é o Estado
e tortura. Para Mbembe, o direito de matar nas que possui a prerrogativa de definir e regulamentar
colônias não estava sujeito a nenhuma norma legal quem são aqueles que terão direito à propriedade e
e institucional, visto que o corpo objeto da morte como deverão explorar os recursos de um território.
não foi durante muito tempo sequer considerado Nesse sentido, cabe ressaltar a dificuldade
um ser humano dentro dos parâmetros ocidentais. de reconhecimento e demarcação de terras
Ora, se pensarmos no caso do Brasil, foram indígenas e quilombolas, o sempre presente
séculos sob o jugo colonial e imperial escravagista. questionamento sobre o direito destas populações
Nos formamos enquanto território e sociedade sobre as riquezas em seus territórios e os
marcados por uma profunda desigualdade e pela constantes conflitos, ameaças e mortes aos quais
constante presença da morte e da exploração de estes grupos estão submetidos nas disputas com
corpos e recursos. Cabe agora pensar em que grandes fazendeiros ou projetos de mineração, por
sentido essa necropolítica, cujos pilares foram exemplo. Tais problemas só conseguem ser melhor
fundados no processo de colonização, pode nos entendidos quando percebemos que eles são parte
ajudar a entender certas questões territoriais e de um fenômeno econômico transescalar.
sociais em nosso país. Quando tratamos deste tema, muitas vezes
permanecemos na escala do Brasil, como se esses
MUNDOS DE MORTE E SUA DIMENSÃO TERRITORIAL conflitos estivessem inscritos em uma dinâmica
exclusivamente interna, mas Mbembe reforça o
A formação territorial do Brasil, tal como raciocínio das múltiplas escalas quando nos lembra
a concebemos e ensinamos no ensino médio, é que os projetos de exploração de recursos naturais
um debate que pode ser deveras enriquecido se que se multiplicam em diversos países periféricos e
considerarmos a perspectiva decolonial. Fortalecer semi-periféricos, se tratam, ao menos em parte, de
as narrativas daqueles que foram e ainda são uma tentativa de resolver o problema da escassez
expropriados de seus direitos civis, sociais e de liquidez financeira dos países, formando o que
territoriais – entendido aqui como o direito ao ele chama de “enclaves econômicos” (p. 57) em
reconhecimento de propriedade e autonomia territórios onde há a extração de valiosos recursos.
de decidir sobre o que fazer com a terra e seus Ora, quando pensamos no Brasil, nossos
recursos – e olhar o “Norte” e o próprio “Sul” a recursos, cujo principal destino é o mercado externo
partir da nossa realidade, pode fornecer melhores e que em parte são explorados por empresas
subsídios ao ensino de geografia do Brasil. cujo capital é em sua maioria estrangeiro, estão
No caso específico do ensaio de Mbembe, inseridos em redes transnacionais. São essas redes
embora ele não trate em momento algum da que articulam o modo como nos apropriamos da
realidade brasileira, apesar de sermos o segundo natureza, que ditam o ritmo e a quantidade dos
país em população negra do mundo e de termos sido recursos extraídos, que se beneficiam com a perda
uma das mais importantes colônias, sua reflexão de direitos territoriais por parte de comunidades
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tradicionais e que praticam toda sorte de violações externos que se sobrepujaram, com o auxílio do
de direitos em áreas onde se formaram grandes poder instituído, sobre os interesses de índios,
projetos econômicos, como a construção de quilombolas, pequenos agricultores, seringueiros,
usinas hidrelétricas, a implantação de projetos de pescadores, ribeirinhos, favelados, etc. Não foi
mineração e a expansão da fronteira agrícola, com a conformação de uma sociedade de iguais na
subsídios ou não do Estado. busca por autonomia e direitos que marcou a
É essa dinâmica global de ampliação nossa formação, mas sim a instrumentalização da
da pressão pela exploração de recursos que vida e dos territórios na produção de verdadeiros
reverbera nos territórios da periferia do mundo mundos de morte.
através da necessidade de intensificar a inovação
tecnológica, a confecção de produtos cada vez CONCLUSÃO
mais descartáveis e o aumento do consumo
mundial, modo de vida característico do ocidente O debate sobre a produção de mundos de
que se espraiou pelo mundo. morte a partir da noção de necropolítica ainda é
Nesse sentido, modos de vida que se pautam incipiente e com muitas possibilidades de análises.
em outra temporalidade ou em outras maneiras de Embora Mbembe em seu ensaio se concentre
lidar com a natureza são ainda entendidos como mais na colonização da África e principalmente na
sinônimo de atraso, empecilhos ao progresso e questão Palestina para exemplificar sociedades
à modernização. Os mundos de morte dos quais onde há um fazer morrer ativo, é possível, dentro
trata Mbembe não precisam ser em nosso caso do debate decolonial, encontrar apontamentos que
brasileiro o da morte violenta do corpo, embora nos auxiliem nas reflexões sobre o Brasil.
também o sejam, mas da morte dos lugares que Mesmo não sendo geógrafo, seu trabalho é
exterminam culturas inteiras. O lugar como fonte profundamente geográfico ao abordar temas que
de um importante poder simbólico morre em seus nos são caros, como soberania e território, redes e
significados ao ser transpassado pelos interesses escala, recursos naturais e globalização. Por isso,
e lógicas exóticas que alteram as dinâmicas locais. nosso intuito aqui era não só apresentar, de forma
A Vale em Brumadinho e Mariana, a EBX no Porto muito incipiente e reduzida, um caminho possível
do Açu, a parceria público-privada em Belo Monte para uso do termo necropolítica em uma abordagem
e em outras inúmeras hidrelétricas, a expansão decolonial da formação do território nacional, mas
da soja por terras indígenas para atender à também de refletir, a partir do “sul” e sobre o “sul”,
demanda estrangeira dessa commodity, enfim, são a cerca de conceitos geográficos já tradicionais
inúmeros os casos nos quais nossos territórios são em nossos currículos escolares. Revisitados, tais
profundamente alterados e marcados à despeito conceitos podem se tornar, nas mãos de nossos
do modo de vida de comunidades inteiras. professores e estudantes, importantes ferramentas
Ao longo do processo de formação de compreensão do mundo.
territorial do Brasil, são vários os interesses
REFERÊNCIAS
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção e política da morte. São Paulo: n-1 edições; 2018a.
RODRIGUES, Eduardo de Oliveira. Necropolítica: uma pequena ressalva crítica à luz das lógicas do arrego. Rio de Janeiro.
2019. (mimeo.)
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