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MACHADO DE ASSIS
leituras críticas
Atualidade de Machado de Assis : leituras críticas / organização Andréa Sirihal Werkema, João
Cezar de Castro Rocha. - 1. ed. - São Paulo : Nankin, 2021.
348 p. ; 23 cm.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-88875-04-9
1. Assis, Machado de, 1839-1908 - Crítica e interpretação. 2. Literatura brasileira - História e críti-
ca. I. Werkema, Andréa Sirihal. II. Rocha, João Cezar de Castro.
Direitos reservados a:
Nankin Editorial
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2021
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
A besta do apocalipse e a produção
de sentidos em Papéis avulsos
1 Por comodidade, as citações ou remissões a Papéis avulsos se farão com a sigla PA e o nú-
mero da página, conforme a edição de 1986 das obras completas de Machado de Assis.
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ou separado à força’, do que foi ‘separado do corpo de que faz parte’, foi ‘de-
sirmanado’ (cf. Houaiss, 2001, s. v., que remete ao étimo latino auellere, ‘ar-
rancar’, ‘tirar à força’, ‘apartar violentamente’), como quando se compra um
cigarro retirado do maço ou algum outro item separado do conjunto. Ora,
isso faz pensar que esses papéis pertenceriam, então, a um todo, sem que se
declare qual seja, do qual, primeiro, foram desirmanados, para, em segui-
da, serem reunidos à volta da mesa paterna. Parece que é a essa operação
complexa que Machado remete, ao dizer que não se trata de “passageiros”
entrados por acaso numa mesma hospedaria, mas da reunião de pessoas de
uma mesma família.
É sobre os movimentos que emprestam sentido a esses papéis que se
dizem avulsos, mesmo que não de um modo comum, que proponho fazer
alguns apontamentos aqui, a questão do sentido sendo assunto do segundo
parágrafo da advertência, em que se arrolam dois argumentos, melhor, duas
defesas: “Direi somente, que se há aqui páginas que parecem meros contos
e outras que não o são, defendo-me das segundas com dizer que os leitores
das outras podem achar nelas algum interesse, e das primeiras defendo-me
com S. João e Diderot”. De Diderot, Machado tira a defesa do fato de que
“ninguém ignora que ele, não só escrevia contos, e alguns deliciosos, mas
até aconselhava a um amigo que os escrevesse também”. De S. João, ele havia
esclarecido antes como “o evangelista, descrevendo a famosa besta apocalíp-
tica, acrescentava (XVII, 9): ‘E aqui há sentido, que tem sabedoria’”. Se, com
relação a Diderot ele deduz: “Eis a razão do enciclopedista: é que quando
se faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vida
acaba, sem a gente dar por isso”, de S. João declara que “menos a sabedoria,
cubro-me com aquela palavra”, ou seja, recusando o “que tem sabedoria”, ele
se cobre com o “e aqui há sentido” (PA, p. 252).
Afirmei propor-me fazer aqui não mais que apontamentos sobre os
modos como se produzem os sentidos em Papéis avulsos porque seria im-
possível, num mero artigo, dar conta de todas as operações em jogo. Assim,
tratarei apenas de três pontos: a) o problema do gênero que se reivindica
para os textos; b) os processos de reescrita que se adotam, com ênfase no
conto “Uma visita de Alcibíades”; c) o desenho arquitetônico do livro e o
sentido de “avulsos” que se atribui aos contos.
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2 A relação entre os dois livros foi ressaltada já em 2 de novembro de 1882 por Gama
Rosa, o qual, em artigo publicado na Gazeta da Tarde, escreveu: “Os Papéis Avulsos
são, na essência e na modalidade, uma continuação da maneira iniciada nas Memórias
de Brás Cubas” (Rosa, 1882), ponto de vista tornado uma espécie de consenso da crí-
tica e referendado mais recentemente por Gledson: “Papéis avulsos representa para o
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Conclusão: no jogo entre parecer e ser, nem as Memórias são romance, ain-
da que para alguns aparente, nem os contos de Papéis avulsos são contos,
ainda que alguns aparentem.
Neste último caso, não é difícil proceder à partilha entre os que “pare-
cem” e os que “não são”, considerando não só os traços comuns do gênero,
mas a própria prática anterior de Machado em Contos fluminenses e Histórias
da meia-noite. Assim, tentativamente, eu diria que, à primeira vista, usando
como critério apenas a presença ou não de um narrador autoral, parecem
meros contos “O alienista”, “A chinela turca”, “D. Benedita”, “O empréstimo”,
“O espelho” e “Verba testamentária”, enquanto não são contos “Teoria do
medalhão” e “O anel de Polícrates”, porque diálogos, “Na arca” e “O segre-
do do bonzo”, enquanto capítulos do Gênesis e de Fernão Mendes Pinto, “A
Sereníssima República”, que é uma conferência, e “Uma visita de Alcibíades”,
uma carta – curiosamente seis que aparentam para seis que não são. O que
põe em xeque o gênero, no último grupo, é a problematização do lugar do
narrador, sendo de realçar como, nos dois livros de contos anteriores, ape-
nas em “Confissões de uma viúva moça”, de Contos fluminenses, e “Ponto
de vista”, que fecha Histórias da meia-noite, o narrador onisciente cede seu
lugar a outros narradores: a viúva moça, no primeiro caso, e D. Raquel e D.
Luísa, no segundo, que, além do mais, tem a forma de um conto-epistolar.
Sem dúvida, essa partilha constitui um dos elementos basilares de cons-
trução do sentido que se reivindica para a recolha, pois de outro modo não
seria assunto da “Advertência”. O que se afirma, todavia, é como, entre apa-
rência e certeza, nenhum dos contos deve ser tido como “mero conto”, o que
só ressalta o quanto seu sentido está numa sorte de experimentação de ideias
que atravessam o livro como verdadeiras linhas de força, tratadas não como
demonstração, mas enquanto questões, as quais eu arrolaria como a questão
da ciência, das opiniões, das aparências, das veleidades, dos duplos, do poder,
do charlatanismo. De fato, salta aos olhos do leitor a insistência com que se
apresentam e se defendem teorias por toda a obra, o que leva, por exemplo,
Bosi a classificar alguns dos textos como “contos-teoria” e “contos-exemplo”
Escrita e reescrita
4 Assim, Kierkegaard, em Temor e tremor, relata como “era uma vez um homem que
em sua infância tinha ouvido contar a bela história de como deus quis pôr Abraão à
prova”, a partir de então entregando-se costumeiramente ao exercício de “imaginar
esta história” e completar o que o narrador do Gênesis deixara na sombra: o despertar
logo cedo do patriarca, a despedida de Sara, o beijo que esta dá no filho, o preparo das
cavalgaduras, o percurso até o monte Moriá, a angústia do pai, as palavras que dirige a
Isaac no caminho etc. (Kierkegaard, 1987, p. 7-10).
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teorias sobre o que é a loucura, apresentadas por Simão Bacamarte, são es-
pécies de paratextos à ciência relativa à “patologia cerebral”, um espaço pa-
ralelo na ciência da medicina, conforme as palavras do narrador: “foi então
que um dos recantos desta [da medicina] lhe chamou especialmente a aten-
ção, – o recanto psíquico, o exame da patologia cerebral” (PA, p. 254). Para
dar só mais um exemplo, “Teoria do medalhão”, como já apontara Rego,
é uma reescritura do “Mestre de retórica” de Luciano de Samósata (Rego,
1989, p. 86-89) – e, neste caso, considerando que a primeira escritura, di-
ferentemente das que ficam acima ditas, já é irônica, teríamos um precioso
exemplo de ironia em segundo grau, em que, inclusive, a remissão a Luciano
é explícita, quando o pai alerta o filho: “Somente não deves empregar a iro-
nia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por
algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e
Voltaire, feição própria dos céticos e desabusados” (PA, p. 294).
Ao fazer assim a genealogia da ironia – e, por extensão, do ceticismo
–, Machado aponta a qual tradição se filiam Papéis avulsos: uma espécie de
escrita da decadência, já que produzida na periferia e a desoras (cf. Rocha,
2006), mais exatamente, uma autêntica invenção da decadência, como tan-
tas invenções que se expõem no livro, das teorias patológicas de “O alienis-
ta”, à língua das aranhas de “A Sereníssima República” ou à duplicidade da
alma de “O espelho”, por exemplo. É como se essa escrita, que supõe sempre
a leitura, ao contrário do que fizeram durante milênios muitos leitores que
se dedicaram a corrigir e emendar textos que lhes pareciam inadequados
à grandeza de seus autores, se interessasse justamente pelos cochilos dos
grandes, na linha do que afirmava Horácio sobre Homero – quandoque bo-
nus dormitat Homerus (Arte poética, v. 359) –, mas, ao invés de, como o
poeta latino, indignar-se com isso, com isso se alegrasse, pois é nos cochilos
de Homero que encontra lugar a reescrita do ironista. O verso de Horácio,
aliás, é referido em “O anel de Polícrates” a propósito da verborreia da per-
sonagem Xavier: “Nem tudo era límpido, mas a porção límpida superava a
porção turva, como a vigília de Homero paga seus cochilos” (PA, p. 330),
ficando por conta do leitor decidir o sentido do que se diz, de modo que ao
ingênuo parecerá um elogio da vigília, ao irônico, o gozo dos cochilos.
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Texto e (con)textos
5 Sousa (1955, p. 493) sugere que essa ideia teria uma pré-história num “artiguete intitu-
lado Vestuário, assinado por Dr. Semana, em que se comenta a maneira atual de vestir,
em face da antiga (dos gregos)”, texto publicado no n. 284 da Semana ilustrada, em
20/5/1866; na sua opinião, “o assunto de Uma visita de Alcibíades é o mesmo” e, “tendo
Machado de Assis usado, com outros colaboradores do periódico, aquele pseudônimo,
é bem provável que o escrito seja seu; poderíamos então deduzir que essa ideia já o
vinha perseguindo desde aquela data”. Não acredito, contudo, que a “ideia” se encontre
no citado “artiguete”, mesmo que se trate nele de moda e haja referência à moda grega,
nem me parece que o texto seja de Machado de Assis, o que não exclui que ele o tivesse
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lido e daí recolhido algo da “ideia”. Reproduzo-o aqui, para que o próprio leitor tire
suas conclusões: “Publicou-se em França um livro, onde são lembrados os meios de fa-
zer com que as mulheres compreendam e estudem as obras do gênio grego. Um crítico
do Jornal dos Debates, o Sr. Eug. Ioung, apreciando essa obra, lembra às belas que em
vez de deixarem o cetro da moda aos diretores de loja de fazendas, inventem elas pró-
prias o vestuário, mostrando nisso que são as rainhas do gosto! Pobre Sr. Eug. Ioung!
Pois não vê esse escritor que pede ao nosso tempo uma cousa impossível? O vestuário
já não é uma parte da graça; aquele sexto sentido da sociedade grega, perde-se no
tempo; depois que inventaram os enfeitos modernos para as senhoras e o traje lúgubre
do homem, é impossível fazer voltar os olhos das sociedades atuais para os modelos
antigos. Não há dúvida nenhuma que, se Fine aparecesse hoje, corria o risco de ficar
abandonada, graças à beleza inimitável daquele inimitável vestuário. Mas um balão,
um sout-en-barque, uma cousa destas hoje, forjada em França, importada e copiada
pelos outros povos, é ouro fino. Quem se importa hoje saber até que ponto aquelas ele-
gantes antigas tinham o gosto apurado para estas cousas! Que diferença! que abismo!
Mas as brasileiras devem protestar contra esse prosaísmo do tempo, fazendo alguma
cousa de gosto, alguma cousa nova... Sobretudo os balões! Oh! os balões!” (p. 3.170)
6 Antonio Candido explorou brevemente como Machado aproveitou a descoberta dessa
“lei filosófica”, a qual repercute no capítulo 66 das Memórias, intitulado “As pernas” (cf.
Candido, 1989, p. 103-104). Baste a menção dessas poucas palavras – descoberta, lei fi-
losófica, alma e sua outra, a besta – para que se perceba, de modo geral, a importância
de Xavier de Maistre também para Papéis avulsos, não sendo necessário que eu volte a
debulhar em quais textos. A dívida de Machado com Xavier de Maistre foi explorada em
detalhes, da perspectiva da “forma shandiana” dos romances, também por Rouanet, 2007.
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7 É de notar como o início de “O empréstimo” tem semelhanças com este: “Vou divulgar
uma anedota, mas uma anedota no genuíno sentido do vocábulo, que o vulgo ampliou às
historietas de pura invenção. Esta é verdadeira; podia citar algumas pessoas que a sabem
tão bem como eu. Nem andou recôndita, senão por falta de um espírito repousado que
lhe achasse a filosofia. Como deveis saber, há em todas as cousas um sentido filosófico.
Carlyle descobriu o dos coletes, ou, mais propriamente, o do vestuário...” (PA, p. 333-4)
8 Café era algo “que o desembargador não dispensava nunca, alegando que o chá ia le-
vando a humanidade para a total extinção. – Carlos Magno não bebia chá e podia com
a sua célebre espada, dizia ele; se bebesse café não sei o que teria deixado de fazer. Mas
uma xícara de café era fraco preço para tão amável conviva. Por isso a dona da casa
mandara vir da fazenda de um tio um excelente saco de café de que bebia, a qualquer
hora, o desembargador, quando ali ia, e ia sempre. Nas noites de festas fartava-se o
desembargador daquela bebida favorita” (Assis, 1956, p. 203).
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tos merecimentos” (Assis, 1956, p. 204). Note-se como essa explicação, que
se dirige às personagens do conto, é habilmente destinada também às leitoras
do Jornal das Famílias (cf. Pereira, 2012, p. 7), funcionando ainda como mais
um elemento mitigador do impacto da história, inclusive por ressaltar que
põe em cena personagens profanos e pagãos. Esse cuidado com a recepção
justifica mesmo o pretenso “lapso” apontado por Magalhães Júnior, o de fazer
Alcibíades referir-se a Vênus e não a Afrodita, já que o nome latino da deu-
sa era, sem dúvida, mais corrente que o grego, sendo usado comumente em
traduções, como, por exemplo, na da Ilíada de Homero por Odorico Mendes,
publicada em 1874, bem como na clássica tradução de Plutarco para o francês,
por Jacques Amyot (cf. Plutarque, 1951, p. 439), que é a que o Desembargador
Álvares declara que lia (Assis, 1956, p. 204).
De tudo isso ressalta a diferença de enquadramento na reescrita da
“ideia” para a Gazeta de Notícias e Papéis avulsos, já que toda a introdução
da primeira forma do conto foi não só abandonada, como se eliminou o
seu narrador, tudo sendo entregue à personagem-narradora, que, sem ou-
tros enquadramentos, se dirige em carta ao chefe de polícia da corte: “Carta
do desembargador X... ao chefe de polícia da corte” (PA, p. 352). Trata-se
de uma modificação de grande monta, que nos garante que, independente-
mente do aproveitamento de algumas frases, Machado de fato conservou da
primeira versão não mais que a “ideia” narrativa, com os três elementos que
apontei: digestão; evocação de mortos; e moda.
Não tenho como me deter aqui nos elementos que tornam a segun-
da versão mais incisiva que a primeira, o que tem sido abordado, com
maior ou menor perspicácia, nos estudos já referidos.9 Quero apenas cha-
9 Há aspectos, contudo, que têm passado despercebidos, um deles, a razão pela qual o
maior choque de Alcibíades se dá quando o desembargador, nas duas versões, despen-
dura do cabide o chapéu e o põe na cabeça, o que leva o ateniense à segunda morte.
O motivo parece-me provir também de Xavier de Maistre. Neste, com efeito, quando
o Dr. Cigna “fez sem querer sua peruca virar, de forma que uma parte de seu rosto
ficou escondida”, Aspásia emitiu um grito, dizendo: “Deuses imortais (...), que estra-
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nha figura! É então uma descoberta de seus grandes homens que lhes deu a ideia de
se arrumar assim com o crânio de uma outra pessoa?” A peruca parece-lhe, portanto,
um crânio emprestado, como provavelmente o chapéu deve ter parecido a Alcibíades,
este sendo o choque definitivo.
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fina dirigiam-se à médium para lhe permitirem tirar os moldes”. Conclui o missivista:
“Obtivemos, por esse meio, de 15 a 20 formas que mostravam distintamente o desenho
das unhas e todas as linhas que sulcavam a pele”, os dedos podendo “ser classificados
em cinco categorias de dimensões”; “todos esses moldes” acham-se “neste momento
em poder do Sr. Denton, que se propõe publicar aquela experiência, minuciosamente,
no próximo número do Banner, com a sua assinatura” (The Medium and Daybreak, p.
647, apud Aksakof, p. 163-164). A publicação referida é a revista espírita norte-ameri-
cana Banner of Light, de Boston, a qual circulou de 1857 a 1907.
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Os sentidos de“avulsos”
12 Três contos foram publicados na imprensa com títulos diferentes: “O segredo do bon-
zo” apareceu como “Um capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto: De uma curiosa
doutrina que achei em Fuchéu, e do que ali sucedeu a tal respeito”; “O empréstimo”
tem o complemento “anedota filosófica”; e “Verba testamentária”, “Caso patológico,
dedicado à Escola de Medicina”. “A chinela turca” foi assinada com o pseudônimo
Manassés (cf. Sousa, 1955).
Atualidade de Machado de Assis 121
rece ainda a sucessão entre o que parece mero conto e o que não o é, aliando,
portanto, o critério de gênero ao temático, o que só faz saltar aos olhos a perí-
cia que presidiu o arranjo desses papéis, no procedimento de arrebatamento e
reunião de textos que em princípio seriam avulsos, mas que, na inteligência de
sua disposição, produzem o sentido programático pretendido para sua leitura,
fazendo ver a “ideia” que os reúne em torno da mesa do pai.
Isso permitiria mesmo elucubrar, ainda que só tentativamente, sobre
a gênese do livro: como só “A chinela turca” e “Na arca” não foram escritos
para Papéis avulsos, datando de antes de Memórias póstumas, todos os ou-
tros textos, incluindo a reescritura de “Uma visita de Alcibíades”, tendo sido
publicados entre outubro de 1881 e outubro de 1882, e como em Memórias
póstumas há o famoso capítulo CLIII, intitulado “O alienista”, a que se segue
“Os navios do Pireu” (contendo uma anedota que, passando por Xavier de
Maistre e outros, remonta a Luciano), não se pode deixar de pensar que o
conto “O alienista”, que, como já se disse, começa a ser publicado em outu-
bro de 1881, mais “Teoria do medalhão” e “Uma visita de Alcibíades” (que
são textos luciânicos), publicados em concomitância, constituam os primei-
ros ensaios da série de histórias projetadas, desde o início, como integrantes
de um conjunto, a que depois se teriam ajuntado as duas escritas e publica-
das anteriormente (“A chinela turca” e “Na arca”). Se, com exceção destas,
as outras fizeram um percurso em princípio invertido quando se trata de
recolhas, indo do livro à estampa periódica, devemos entender que esse pró-
prio percurso constitua uma das operações que dão sentido ao livro, que,
sem ser inteiramente recolha de “avulsos”, encena isso. Daí a razão por que
“a verdade é essa, sem ser bem essa”.
Enfim, da besta do Apocalipse, o animal de sete cabeças e dez cornos,
diz o evangelista que “era e não é”, o sentido que nela há dependendo de
explicação, a qual é fornecida pelo anjo: as sete cabeças são sete montes e
são sete reis – cinco que caíram, um que é, outro que ainda não veio – e
os dez cornos, dez reis que ainda não receberam o reino, mas receberão
etc. (Apocalipse, 17, 9-13). Como na escritura, também o sentido de Papéis
avulsos exige explicações, que abundam na “Advertência” e nas notas, por
ser e não ser um livro de meros contos, que meramente não o são por ser
espécimes de experimentos de “ideias” – ou mais exatamente, experimento
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da própria “ideia” do que vem a ser um conto, nas mãos de um autor ele
próprio “ideólogo”.
Referências bibliográficas