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Estes são os homens que fizeram a história


do século xx. Agora você vai saber tudo
sobre eles. Nos livros da série PRÓ E CONTRA,
você tem - além de uma biografia muito
informativa - tudo que se escreveu de importante
contra ou a favor sobre cada um deles.
A série PRÓ E CONTRA põe todos os fatos
na sua mão. Mas o julgamento final é seu.

-\

6
PRÓECONTRA
o Julgamento da História

DEGAULLE
Organização do texto por
GIANNI RIZZONI

Tradução de
NESTOR DEOLA e AYAKO DEOLA

EDIÇÓES MELHORAMENTOS
Título do original italiano: DE GAULLE
© 1972 by Amoldo Mondadori Editore S.p.A., Verona e Milão

PRO ECONTRO
I DOSSIER MONDADORI
Direção: Enzo Orlandi

Colaboradores
Marisa Paltrinieri
Gianni Rizzoni
Emilio Barbaglia
Maristella Bodino
Iconografia
Giovanni Melada

Todos os direitos reservados


Comp. Melhoramentos de São Paulo, Indústrias de Papel
Caixa Postal 8120, São Paulo

EEx
X-1975

Nos pedidos telegráficos basta citar o cód. 7-02-12-0 16

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PRÓ E CONTRA
o J u Igarnento da História
o tema desta série de livros
é o das personalidades que fizeram o século XX e dos
vultos que se destacaram por suas idéias e realizações e. ainda.
em muitos pontos. influenciam decisivamente os destinos de povos
e nações nos dias que correm:
Hitler. Kennedy. Mao Tse-tung.
Churchill. Marx. De Gaulle. Lenin. Gandhi.
Stalin. M ussolini. Roosevelt. João XXIII.
Trotski, Getúlio Vargas. Franco.
Cada volume trata de um deles. Mas de modo original.
não se limitando a apresentar uma biografia linear e convencional.
A história de cada personalidade é apresentada
dia após dia. mediante documentação impressionante.
jamais reunida até hoje. Uma equipe de especialistas compilou
os fatos a favor e contra cada vulto focalizado.
Notícias dejornais da época. trechos de livros.
comentários políticos. depoimentos exclusivos
dão um retrato vivo e dinâmico do vulto histórico e sua época.
Uma biografia muito informativa completa a obra,
permitindo uma visão total sobre o nome focalizado.
Especial rigor foi dado ao levantamento das fontes de
informação. para que o material fosse acessível e imparcial.
Afinal, o objetivo da Série PRÓ E CONTRA
é exatamente este: apresentar fatos. dar informações.
mostrar as duas faces de homens que mudaram o mundo.
A opinião final é do leitor.
Mas. pela leitura dos livros da Série PRÓ E CONTRA.
a História estará em julgamento.
Edições Melhoramentos
consideram que esta iniciativa editorial ajudará, informando.
os estudantes e todas as pessoas que desejam
compreender melhor o mundo em que vivem.
tomando conhecimento de fatos e personalidades
que moldaram nosso século.
PARA A HISTÓRIA, CHARLES DE GAULLE nasceu com 50 anos, naquele
famoso 18 de junho de 1940 quando, general-de-brigada a título tem-
porário, se recusa - sozinho - a aceitar a derrota imposta pelos
exércitos nazistas, se refugia em Londres sob a proteção de Churchill
e lança à França seu apelo radiofônico à Resistência. Sua carreira,
até àquele dia, não se revelara particularmente brilhante, nem desti-
nada a "grandes feitos". O "gesto" de rebelião desse 18 de junho
projeta-o no olimpo dos protagonistas da História. Charles-André-
Marie-Joseph De Gaulle nasceu em Lil1e, no dia 22 de novembro de

Uma opinião para ele, sempre foi como a Igreja para


os que a defendem - ou a atacam. A
primeira frase de Memórias de Guerra é
exata sobre a consagrada a ela e eu creio que a Fran-
ça jamais foi tão simples, em seu cora-
Franca

ção, como a princesa das fábulas, de
quem ele fala. Charles desposou a Fran-
ça antes de desposar sua mulher,
DE GAULLE: HEm toda minha vida, Ivonne" (André Malraux, Les Chênes
sempre alimentei uma opinião sobre a qu 'on Abat, Gallimard, 1971).
França, sustentada ao mesmo tempo
pelo sentimento e pela razão. A parte Charles é um escorpiAo:
constituída por minha sensibilidade afe-
tiva naturalmente imagina a França egocêntrico, teimoso,
fadada a um destino excelso e extraor- autoritário
dinário. E quando acontece que seus
feitos e empreendimentos trazem o sig- "O dia 22 de novembro pertence ao
no da mediocridade, experimento a signo do Escorpião. É o signo do Zodía-
sensação de uma anomalia absurda, im- co mais rico, mais apaixonante. Para os
putável aos erros dos franceses, mas nascidos em Escorpião o amor possui
nunca ao gênio da pátria" (Memórias uma grande importância. São bruscos,
de Guerra, Garzanti, 1959). impulsivos, teimosos e praticamente
ingovernáveis. São dotados de uma von-
Malraux: De Gaulle tade arrogante e submetem à sua von-
tade todos os familiares. Sensíveis, são
ou a religião da Pátria também extremamente egocêntricos.
O Escorpião é um signo prestigioso. Se
"De Gaulle vive obsessionado pela o suprimíssemos do Zodíaco, simples-
França, como Lenin o foi pelo proleta- mente eliminaríamos tudo o que foi
riado, Mao o é pela China e Nehru, tal- criado de essencial nas artes, na litera-
vez, tenha sido pela lndia. A França, tura, na religião e na política" (R. Roc-

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1890, terceiro filho do professor Henri De Gaulle e de Jeanne Mail-
lot-Delannoy. Os De Gaulle são parisienses há quatro gerações, mas
Charles nasceu em Lille porque a Sra. J eanne, por ocasião do parto,
desejou estar próxima de sua mãe. Antes de Charles chegaram Xavier
e Marie-Agnes. Depois dele a família se alegrará com o nascimento
de outros dois descendentes masculinos: Jacques e Pierre. O casal
De Gaulle se vangloria de possuir uma remota ascendência nobiliá-
ria. A mãe, além disso, traz nas veias um pouco de sangue irlandês,
alemão e - ao que parece - também judeu. Ambos são convictos

Im m

ca, I Pensieri dei Generale, - "Os Pen- Marx. Com um pouco de nobreza de
samentos do General" - , Mondadori, toga e um pouco de burguesia de espada
1968). na ascendência, no seio da família havia
literatos, sacerdotes, funcionários pú-
blicos, eruditos, escritores provincia-
nos e secretários da corte. Intelectuais
Uma família Francesa pobres, mas cheios de dignidade, tendo
um tio couraceiro e um primo pároco.
Gente que conhecia muito bem a gra-
DE GAULLE: "Meu pai, um homem de mática, o latim, o grego, que freqüen-
pensamento, de cultura e de tradição, tava a igreja, servia o Estado sem exigir
estava imbuído do senso de dignidade muito em troca."
da França, e foi ele quem me revelou
sua história. Minha mãe votava à pátria HENRI DE GAULLE "é um homem de
um amor tão intransigente como sua olhar severo, com mãos de marfim, que
piedade religiosa. Meus três irmãos, escreve elegias em grego... Politicamen-
minha irmã e eu mesmo tínhamos, te, autodefine-se 'um monarquista nos-
como segunda natureza, uma espécie de tálgico'. Um homem integérrirno, sem
impaciente orgulho pelo nosso país" dúvida alguma, e há quem afirme que
(Memórias de Guerra). tenha comprometido sua carreira por
haver demonstrado claramente demais
que não acreditava na culpabilidade de
Dreyfus" .
Nobreza de toga e
JEANNE DE GAULLE Hé uma matrona
burguesia de espada romana do interior, intratável em as-
suntos que dizem respeito à religião e
à moral, e que traz no coração o exér-
"Os De Gaulle não eram realmente cito, o arcebispado, Veuillot, a Alsácia e
'burgueses', no sentido atribuído ao os lírios da França." (Jean Lacouture,
termo por Flaubert e, aliás, também por De Gaulle, Longanesi, 1971).

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e ativos monarquistas, nacionalistas e católicos: na casa de De Gaulle
é absolutamente proibido cantar a Marselhesa. Por isso os filhos são
educados no espírito de veneração à França C~Para mim a França era
a princesa das fábulas", escreverá De Gaulle em suas Mémoires
d'Espoir - "Memórias de Esperança"), à religião, à cultura histórica
e à literatura. E também no espírito da desforra contra os alemães,
vencedores da guerra de 1870, os quais "arrancaram" da França a
Alsácia e a Lorena. Desde pequeno, Charles revela um caráter obs-
tinado, orgulhoso, ligeiramente egoísta, altivo e distante: "Parece um

uma usurpadora, uma mulher sem ca-


DESCENDE DE beça... No fundo de seu coração jamais
RODRIGO OGRANDE? hão de renunciar seu ideal político.
Henri De Gaulle, aquele professor tão
bondoso, de olhar tão meigo, esquece
"Pelo lado materno, Charles De Gaulle
imediatamente seu liberalismo quando
traz nas veias sangue irlandês, alemão e,
trata da Revolução de 1789. Também
muito provavelmente, também judeu"
não entoa nunca, absolutamente nunca,
afirmam os redatores do número espe-
o hino nacional, esta espécie de canto
cial da revista Le Crapoui/lot, intitulado ímpio, sedicioso e sacrilego. A Marse-
Le petit De Gaulle illustré (1967-68).
lhesa não entra na casa de De Gaul1e!"
"Segundo um jornal francês, o general (J. R. Tournoux, Jamais Dit, - "Jamais
descende diretamente de Rodrigo, o Dito" -, Plon, 1971).
Grande, que reinou na Irlanda no sécu-
lo IH a.C. Na verdade, só é demonstra-
do que seu bisavô materno, Andronicus o maca Charles De
I

McCartan, fazia parte do clã dos Me-


Cartan, fundado por Rodrigo, e veio Gaulle um orgulho
instalar-se em Lille.
Outro antepassado materno foi Ludwig sem limites
Kolb, nascido em Bade a 17-8-1761, que
pertenceu ao Regimento dos Mercená- Quando moço, De Gaulle era sobretu-
rios Suíços de Reinach. Segundo Roger do indisciplinado, rebelde e prepotente.
Peyrefitte, no livro Les Juifs (HOS Ju- P/ERRE GALANTE: 'Dominava irmãos
deus"), os Kolb eram de origem israeli- e primos, mas este 'domínio' em nada
ta e se converteram ao protestantismo". havia melhorado seu caráter... repug-
nante. Facilmente se atracava com os
A marselhesa é sacrílega irmãos" (Le Général, - "O Gene-
ral" -, Presses de la Cité, 1968).
"Aos olhos do pai e da mãe de Charles TOURNOUX: "Charles não é nem cân-
De Gaul1e a República não passa de dido, nem dócil, Turbulento e despeito-

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homem enterrado numa geleira", lamentam-se os pais. Quer mandar
sempre. Nas Batalhas com os soldadinhos de chumbo é ele o rei da
França e os irmãos, inutilmente, insistem para que se faça um "rodí-
zio" da coroa. Revela desde cedo uma memória prodigiosa, recitan-
do sem erros longos trechos de Racine ou Lamartine. E aos quatorze
anos revela também seu precoce talento literário, escrevendo uma
comediazinha em versos, intitulada Um Mau Encontro. Depois, de-
vendo escolher entre um prêmio em dinheiro e a pu blicação da co-
média, decide-se pela segunda alternativa. No fim do século passado

so, molesto e impetuoso, muitas vezes Gaul/e, L 'Homme et son Destin, -


se torna insuportável. De repreensão "Charles De Gaulle, o Homem e seu
em repreensão, Henri De Gaulle, o pai Destino" -, Fayard, 1960).
de sorriso cativante, deve corrigir,
quando necessário, o indisciplinado das Javanais e Siaçnarf
surras memoráveis" (Pétain et De Gaul-
le, Plon, 1964). Desde pequeno Charles revelou-se pos-
suidor de surpreendente memória, es-
creve J. R. Tournoux em Pétain et De
JEAN LACOUTURE: "Rapazinho ma-
Gau/le: "Herdou-a do pai, pois a memó-
gro, de olhar intrépido (outros diriam
ria do Prof. Henri é espantosa. A do fi-
insolente). Muito seguro de si. Adoles-
lho promete tornar-se monstruosa: con-
cente soberbo e extravagante".
segue falar o javanais sem a mínima di-
ficuldade" ..0 javanais era uma espécie
MARIO COSTA: "Charles era turbulen- de gíria que consistia em intercalar nas
to e, quando sua mente de criança con- palavras as sílabas av e va, de modo a
cedia um descanso às meditações, com torná-Ias incompreensíveis aos não ini-
prazer brigava com os irmãos e outros ciados. "Além disso, os filhos De Gaul-
rapazes de sua idade. Facilmente batia le se exercitavam na prática de um lin-
nos outros e seus golpes eram terríveis. guajar secreto, do qual são os invento-
Para sua idade, é duro, impiedoso, pou- res: o siaçnarf, isto é, o francês às aves-
co inclinado à ternura e à confiança. Os sas. Pronunciam-se todas as palavras
pais, por brincadeira, o definem como partindo da última letra".
um "monstro' " (De Gaul/e, Della Volpe,
1970).
Charles comanda o
GEORGES CATTAUI: ""Sob uma apa-
rência brusca e muitas vezes soberba, exército dos coroinhas
malgrado a vivacidade e a aspereza de
seu caráter, aquele enorme rapagão é Roger Wild, um dos condiscípulos de
profundamente sensível" (Char/es De De Gaulle no colégio dos jesuítas, re-

j • i, .I I. I
e início deste, a vida da França é convulsionada por uma série de
acontecimentos que deixaram profundas marcas no espírito do pe-
queno Charles. "Nada me entristecia mais profundamente do que
nossas fraquezas e nossos erros" escreverá em suas Mémoires. Ü H

abandono de Fachoda, o processo Dreyfus, os conflitos sociais, as


discórdias religiosas... Sofria por ver os inúmeros dotes da França
esbanjados pela confusão política e pelas divisões nacionais." Sobre-
tudo a expulsão das congregações religiosas da França (1905-07)
atinge duramente Charles e seus pais. Atinge-os tanto em sua fé,

lembra no artigo HDe Vaugirard au Charles. O uso discreto de ameaças será


Quartier Latin", publicado pela Revue um dos traços característicos de sua
des Deux Mondes, em 1963, uma cerimô- diplomacia".
nia religiosa durante a qual o futuro JEAN LACOUTURE: "Extravagante,
chefe dos franceses era ... o chefe dos
este pequeno sábio, apesar de sua insi-
coroinhas: "Atrás de mim, de túnica
pidez. É estranho que um rapaz naque-
branca, estava De Gaulle, o mestre de la idade escreva versos sobre a astúcia,
cerimônias, que dominava com seu ele- em vez de escrevê-los sobre lindas mo-
vado físico filiforme e com sua autori- cinhas. Mais significativa ainda é a sua
dade precoce a diligente turma de co-
atitude naquela ocasião. A revista à
roinhas" . qual enviou o manuscrito lhe concede
o primeiro prêmio. Pode escolher entre
Um mau encontro 25 francos e a publicação do opúsculo.
Escolhe a publicação...".

É muito simples a trama de Um Mau En-


contro: Um bandido, fazendo apelos à
própria consciência moral, assalta um
Ou frade
viajante, tomando-lhe tudo, inclusive as
roupas r~Salvai uma alma antes que su- OU soldado
cumba/Ao cego desejo de matar o pró-
ximo"). Há também o recurso à amea-
ça (HAtenção! trago comigo duas pis- "Que pode fazer, no início do século,
tolas"). um rapaz que não é atraído nem pelo
comércio, nem pela indústria, que não
FABRE LUCE (Il Piú Illustre dei France- se sente, absolutamente, seduzido pela
si, - HO mais Ilustre dos Franceses" -, carreira administrativa e que repele a
Ed. do Burguês, 1961), afirma que o política, vista como profissão? Torna-
opúsculo não é "absolutamente nada se frade, ou ingressa no exército, duas
interessante, embora se deva notar que maneiras muito semelhantes, se não pa-
a astúcia já atrai o interesse do pequeno ra romper completamente com o mun-

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como no plano econômico e também na sua vida privada: Henri De
Gaulle, professor e depois inspetor de estudos do colégio dos jesuí-
tas, à Rua Vaugirard, vê-se obrigado a abrir uma escola particular.
Charles, aluno do mesmo colégio, é constrangido a emigrar com os
jesuítas para a Bélgica, mais exatamente para a cidade de Antoing,
a fim de poder concluir o curso secundário. Quando regressa à Fran-
ça, inscreve-se no Colégio Preparatório Stanislas e, em 1909, se apre-
senta para os exames de admissão à Academia Militar de Saint-Cyr.
Consegue aprovação, classificando-se em 1199 lugar. li

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do, ao menos para não entrar em sua UMA ESPADA PARA A


jogada. O soldado é chamado a praticar
FR-ANÇA
dois dos três votos que os religiosos de-
vem cumprir: a pobreza e a obediência.
Bem entendido, ninguém o obrigará a HEra no passado, e não no presente,
pronunciar o terceiro!" (André Fros- que Charles De Gaulle aprendera a ler
sard, "La Vie et les Actes de Charles o futuro. Mil anos de história lhe anun-
De Gaulle", En ce temps-/à, 1972). ciavam que bem cedo, haveríamos de
ter opressores na contraditória questão
das fronteiras. E visto que mais uma vez
Escolhea a espada decidiria a sorte da França,
De Gaulle queria ter uma espada. Seria
carreira oficial" (Gaston Bonheur, Char/es
De Gaulle, Gallimard, 1958).
das arRIas DE GAULLE: "Os sinais precursores de
uma guerra próxima tornavam-se muito
"Um dia, à mesa, Charles anuncia mais evidentes do que no princípio do
que escolhera a carreira das armas. século. Devo confessar que minha ju-
Ninguém duvida de sua resolução. Po- ventude pensava sem horror nesta aven-
de-se dizer que o espírito universitário tura desconhecida e antecipadamente
de sua família o fez escolher a profissão a glorificava. Em suma, eu tinha certeza
de soldado, impelido por uma espécie de que a França deveria passar por du-
de lógica. Já era tempo que um De ras provas, que o interesse da vida con-
Gaulle, amadurecido por 150 anos de sistiria em prestar-lhe relevantes servi-
meditações 'familiares', partisse para a ços, e que um dia eu teria a oportuni-
ação. Afinal, ter-se-ia tornado professor dade de fazê-lo" (Memórias de Guerra.
em armas, porque, atavicamente, conti- oh. cit.).
nuou sendo professor. Em sua escolha,
vislumbrava 'a Servidão e a Grandeza'
de servir" (Pierre Galante, oh. cit.). o menino Charles De Gaulle.

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DE GAULLE ESCOLHE A INFANTARIA "porque aqui o campo de ação é
muito mais vasto", segundo ele mesmo explica. Antes de iniciar os
cursos em Saint-Cyr, deve, no entanto, "suportar" um ano de treina-
mento como soldado raso. É exigência do regulamento militar que
entrou em vigor em 1905: antes de comandar, os futuros oficiais
devem aprender a obedecer. E eis Charles fazendo limpeza e mon-
tando guarda no 339 Regimento de Infantaria, aquartelado em Arras.
Uma experiência muito dura para um orgulhoso como ele. Seu capi-
tão, chamado Tugny, dificu lta a concessão dos galões de sargento

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o MAIOR DO MUNDO transmite seus sentimentos íntimos de


adolescente e o que seus pais realmen-
te lhe diziam? (Alexander Werth, Repu-
blica di un Uomo, - "República de um
DE GAVLLE: "Quando comecei a fa- Homem" - , 11 Saggiatore, 1967).
zer parte do exército francês ele era
uma das maiores coisas que existia no
mundo. Depois de freqüentar a Escola
de Saint-Cyr, desempenhei minha pri-
o Cal·vârio
meira missão de oficial ju nto ao 3Y"
Regimento de Infantaria, em Arras.
de Arras
Meu primeiro superior, o Cel. Pétain,
mostrou-me quanto valem o dom e a "No 339 Regimento de Infantaria, De
arte de comandar" (Memórias de Guer- Gaulle imediatamente se revela como
ra, ob. cit.). um elemento indócil e um tanto cômi-
co. Nos quartéis franceses, a disciplina
se assemelha muito à que vigora nas ca-
HISTÓRIA OU sernas prussianas. O cabo e o sargento
são donos absolutos da vida dos solda-
APOLOGIA? dos. Charles De Gaulle é um jovem ins-
truído demais para ser um bom recruta,
e suas infrações ao regulamento ultra-
"Os livros de De Gaulle despertam, ine- passam, e muito, o número tolerado pe-
vitavelmente, uma pergunta fundamen- lo mais bonachão dos sargentos. Para
tal. Até que ponto tratam de história e sua desgraça, o sargento que comanda
em que medida apresentam apenas uma o destacamento de De GauIle é o tipo
apologia de sua própria vida? Em suas clássico do suboficial de idéias limita-
Memórias de Guerra, ou no livro La .das, com uma boa dose de sadismo pro-
France e son Armée C~A França e seu fissional, que usa e, às vezes, abusa da
Exército"), com pinceladas curiosa- autoridade que lhe é conferida" (Mário
mente autobiográficas, será que ele nos Costa, ob. cit.).

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a Charles: "Por que devo promover um rapaz que só se dará por sa-
tisfeito com uma farda de generalíssimo?" Em outubro de 1910, ter-
minado o calvário" de Arras, De Gaulle entra em Saint-Cyr, onde
H

recebe imediatamente uma bela coleção de apelidos! "Cirano",


~~ Aspargo", "Dois Metros" e "Galinho", por causa do comprimento
do nariz, da estatura "exagerada" e de seu orgulho. E também o
de "Condestável", por causa de sua vaidade. Em 1912, o Condestável
deixa Saint-Cyr com as divisas de subtenente e uma ótima colocação:
é o 139 na escala das promoções (sendo Juin, futuro marechal da

De Gaulle em Saint-Cyr: ra. Sente muito gosto pelo comando,


uma sede de revanche e de grandeur pa-
"Eles me rasparam!" ra a França. Modelado pela família e
pelo ambiente, é dotado de um huma-
nismo abstrato, um tanto cético, encer-
A estada de Charles De Gaulle na Esco- rado dentro dos limites do patriotismo
la de Saint-Cyr não apresenta nenhum e da religião católica" (Emmanuel
interesse particular, afirma Tournoux d' Astier, Les Grands, - "Os Grandes"
(Jamais dit, Plon, 1971), exceto "as tra- -, Gallimard, 1961).
dicionais brincadeiras por ocasião da
matrícula, a corte de cabelo a zero e a
farda amorfa". André Frossard (ob. o encontro COI11
cit.) transcreve uma carta do soldadi-
nho endereçada aos pais: eeAi de mim! Pétain
quando eu tirar minha primeira licença,
vocês vão me ver sem cabelos!". Saindo de Saint-Cyr, De Gaulle pede
para retornar ao quartel onde "havia
começado o fio da meada", o 339 Regi-
Radiografia de mento de Infantaria de Arras. "Sabia
que um homem novo, o Cel. Pétain,
um futuro chefe havia assumido o comando do regimen-
to? Os cadetes daquele tempo estavam
"Charles De Gaulle não é atormentado bastante a par da vida do exército para
pelas paixões da adolescência: a namo- conhecer o nome de um oficial daquele
radinha, o amigo íntimo, a revolta, o ro- grau, embora já fosse muito conhecida
mance. Sua capacidade sensual está a fama de sua firmeza, de sua clarivi-
muito condicionada, reprimida pela dis- dência e de sua competência? Talvez
ciplina católica e pelos preconceitos De Gaulle tivesse previsto que aquele
sociais da época. Durante toda a sua oficial gélido, decorativo, olímpico,
vida, não se conhecerá ninguém que seria a prefiguração do herege que ele
seja seu amigo. Ele terá apenas com- próprio se tornaria mais tarde?" (La-
pagnons, partidários e uma companhei- couture).

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França, o primeiro). Cabendo-lhe o privilégio de escolher o lugar
onde prestaria serviço, De Gaulle se decide a retornar ao 339 Regi-
mento de Arras, onde comanda um novo coronel: Henri Philippe
Pétain. Entre os dois existe uma diferença de 34 anos: "Um grande
homem" é o que imediatamente afirma o entusiasmado subtenente.
"De Gaulle é um oficial muito inteligente e ama apaixonadamente
sua profissão. Merece todos os elogios", anota Pétain em sua ficha
de matrícula. É o início de uma extraordinária relação de amor-ódio,
que há de durar por mais de quarenta anos. Nessa época, Pétain está

se traçou, definitivamente, o destino de


A escolha de De Gaulle. Pétain será para ele o mo-
delo, o exemplo, o mestre. Deixará
De Gaulle fascinado. As impressões
um mestre recebidas na juventude são indeléveis.
Pétain o obsessionará durante toda sua
vida, na amizade, na discórdia e até
mesmo no ódio." (J acques Isorni, o
"Foi De Gaulle quem escolheu encon- advogado de defesa de Pétain em 1945,
trar Pétain, pois conhecia a reputação em Philippe Pétain, La Table Ronde,
deste. Sabe que é um personagem ex- 1972).
cepcional... Pétain, ao contrário, não
conhece nada a respeito daquele jovem
subtenente que a natureza fez despro-
porcionado e desengonçado. Mas aca- De Gaulle é o
bará por simpatizar com ele. No mundo
monótono do quartel, achará De Gaul-
le diferente dos outros, mais inteligen-
Pétain do futuro
te ... Terá pressentido desde o início que
teria em Charles um sucessor, o futuro Voltando a Aarras, De Gaulle encontra
intérprete de seu pensamento? É possí- Pétain: ~~O ponto inicial desta união
vel. Só há uma certeza: nas vésperas do fora do comum repousa nas concep-
cataclismo, o coronel e seu tenente es- ções de ambos a respeito da utilização
tão estreitamente ligados por profunda maciça de material na guerra moderna.
amizade. De Gaulle, de sua parte, ad- Pétain representa antes da guerra o que
mira Pétain, e esta admiração será sem- De Gaulle será depois dela. ,Dois ho-
pre crescente. Por interesse próprio ou mens extremamente frios, sendo até
por verdadeira amizade, De Gaulle de- desumanos em certas circunstâncias,
cide que, nos limites do possível, não mas também dotados de uma extraor-
mais o deixará. Encontrou o protetor dinária sensibilidade, muito superior
que lhe convém. Mais tarde, o protetor à da maioria dos homens" (Tournoux,
se tornará benfeitor. Foi em Arras que Jamais dito ob. cit.).

14

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em desavença com as altas esferas militares: é o único a sustentar a
tática defensiva contra a ofensiva, a todo custo, defendida pelo Esta-
do-maior. Assim, quando irrompe a I Guerra Mundial, os pobres
soldados da infantaria francesa são atirados temerariamente ao ata- '
que e abatidos, sem piedade, pelas metralhadoras alemãs. De Gaulle
combate corajosamente, colecionando ferimentos e promoções.
Tenente e primeiro ferimento em Dinant, a 15 de agosto de 1914.
No ano seguinte, capitão e segundo ferimento em Mesnil-Ies-Hurlus.
Depois, em 1916, é atirado com seus homens na "fornalha" de Ver-

111 11tH I ti iII I! I1 iH Uill 'j li III I m UI I I

modo todo especial de encarar o servi-


M me Pétain: "Meu ço militar. Não dá a mínima importân-
marido logo o pôs cia às incumbências fúteis e não liga
muito para a ordem externa. Pouco lhe
no cárcere" importa se os soldados não marcham
em perfeito alinhamento e não conse-
guem executar as evoluções de maneira
"Desde o primeiro dia de serviço em impecável. O que realmente conta é o
Arras o jovem oficial mostrou possuir moral, e para manter elevado o moral
um caráter altivo, arrogante, detestável. da tropa, De Gaulle se esforça ao extre-
Meu marido não tarda a tomar as medi- mo. Como orador, não encontra ne-
das necessárias. Desempenhando suas nhum rival entre os colegas" (Mário
funções de chefe, decide 'domá-lo'. Costa, ob. cit.),
E, na primeira ocasião que se apresen-
ta, manda-o para a prisão dos oficiais.
Mais tarde, quando, em Paris, De Gaul-
le e sua esposa vinham jantar conosco, AIGUERRA
meu marido sempre caçoava: 'Lembra-
se, De Gaulle, daquela vez que o man-
dei para as grades?" (citado por Robert
MUNDIAL
Aron, Char/es De Gaulle, Ed. Pérrin,
1964). DE GAULLE: "Enquanto o furacão me
arrastava como uma palha nos dramas
da guerra: batismo de fogo, calvário das
trincheiras, assaltos, bombardeios, feri-
Um oficial mentos, prisão, eu podia, apesar de tudo
isso, ver a França descobrindo em si
"especial" mesma as energias suficientes para rea-
lizar um supremo esforço e, com enor-
mes sacrifícios, suprir as próprias defi-
"Como no tempo de soldado, também ciências, coroando esta prova com a
como subtenente, De Gaulle tem um vitória" (Memórias de Guerra, oh. cit.),

15
dun, onde se trava a mais colossal e a mais longa batalha da História,
que custou à França mais de meio milhão de homens. Mas os ale-
mães não avançaram. On les aura!, havemos de vencê-los, é o grito
de combate dos franceses, que rechaçam um após outro todos os
terríveis assaltos e a torrente de fogo do inimigo. Durante um deses-
perado contra-ataque em Douaumont, De Gaulle é ferido e cai pri-
sioneiro dos alemães. Aliás, a princípio é dado como morto, e Pétain,
na ordem do dia, lhe tributa uma menção honrosa. De qualquer
maneira, para De Gaulle a guerra terminara. Passará de um campo

E FI I I I I I I 111

o gigante abatido em relatórios de soldados e oficiais...


Na madrugada de 2 de março de 1916,
um assalto isolou completamente o res-
"Os homens do 339 Regimento lutaram
to da 1a. Companhia, comandada por
como leões, enquanto os inimigos sub-
meu pai. Existia uma única possibilida-
mergiam as defesas de Douaumont. O
de de escapar ao aniquilamento: resta-
Capo De Gaulle atirava à queima-roupa. belecer o contato com as tropas france-
Os alemães avançavam de todas as di- sas mais próximas, avançando à direita.
reções e dizimavam a companhia. Era
Meu pai tentou arrastar para aquela di-
o fim. Um soldado alemão lhe traspas-
reção seus últimos homens ainda em
sou a coxa, abatendo-o ao solo como condições de lutar... Mas bem depres-
uma árvore gigantesca derrubada pelo sa os franceses foram dominados, pois
vendaval. Naquele mesmo instante, a
de todas as partes surgiam ondas avas-
poucos metros de distância, explode
saladoras de soldados inimigos, impeli-
um obus: um estilhaço incandescente
dos pelos incessantes gritos de seus sub-
penetrou no crânio do gigante abatido, oficiais."
espezinhado, inconsciente, em meio à
lama e ao sangue" (David Schoenbrun, MARGUERITE POTEL (ama de Arme,
Les Trois Vies de Char/es De Gaulle, - a terceira filha de De Gaulle) "conserva
HAs Três Vidas de Charles De Gaulle" um relógio de bolso, que em 1916 sal-
_., Julliard, 1965). vou a vida do Capo De Gaulle; desvian-
dou ma bala alemã" (Galante, ob. cit.).
A versão do filho
"Durante a guerra de 1914 a 1918, meu
pai foi ferido três vezes", escreve o Pêtain: "O capo De Gau,lIe se
Alm. Philippe De Gaulle, em En ce comporto~ como um herói"
Temps-là: De Gaul/e, Paris, 1972. "Mas
em casa nunca sentia prazer em relem-
brar aqueles dias horríveis. Apesar dis- "O Capo De Gaulle, comandante de
so eu pude reconstituir todos os acon- companhia, conhecido por seu elevado
tecimentos, baseado em documentos e valor intelectual e moral, enquanto seu

16
de prisioneiros a outro, tentando, inutilmente, a fuga por cinco vezes,
até sua "estada" no forte de Ingolstadt, onde são recolhidos os pri-
sioneiros de guerra mais "impacientes", como o tenente russo Tu-
kaschewski, que, poucos anos mais tarde chegará a marechal do exér-
cito vermelho. De Gaulle tira proveito da inatividade forçada, estu-
dando a situação interna dos alemães. Como fruto de tal estudo te-
mos o livreto La Discorde chez l'ennemi CtDiscórdia entre o Inimi-
go"), publicado em 1924. Enquanto De Gaulle se dedica a fugas e a
atividades literárias, Philippe Pétain escala rapidamente os vértices

FI Ir &

batalhão, que sofria um espantoso bom- uma espécie de bandeira branca, prova-
bardeamento, era dizimado e enquanto velmente uma camisa amarrada na pon-
os inimigos cercavam a companhia ta de uma baioneta. Ordenei o cessar-
por todos os lados, arrastou seus ho- fogo. Logo saíram alguns franceses, e
mens para um assalto furioso e uma vio- foi então que percebi o oficial que os
lenta luta corpo a corpo, única solução comandava, por causa de sua elevada
que julgou compatível com seu senso de estatura. Fui ao seu encontro. Parecia
honra militar. Caiu durante o combate. um pouco transtornado e seu andar era
É um oficial extraordinário sob todos vacilante ... Ele mesmo entregou-me o
os pontos de vista. Assinado: Pétain" cinturão e a pistola. Ordenei a um sar-
(Costa, ob. cit.). gento e três soldados que o levassem
dali ..." (citado por Le Nouveau Candide,
21-4-1966). A declaração do soldado
Não, como um covarde Samson Delpech, publicada pelo Sud-
Ouest-Dimanche no dia 16-4-61, confir-
ma tais hipóteses: "Estávamos cerca-
dos, e seguindo as ordens de nosso ca-
Em Verdun, De Gaulle se comportou pitão, De Gaulle, fomos obrigados a nos
verdadeiramente como um herói? Mui- render".
tos o duvidam, a começar por Jacques
Isorni (ob. cit.): "De Gaulle se rendeu.
Contrariamente à apreciação de Pétain,
a idéia que ele tinha de honra o fizera Os Alemães não lhe
preferir a rendição, isto é, uma vida de
prisioneiro, à morte... Não é por nada
que, uma vez de volta ao poder, De
restituem a espada
Gaulle sumiu com o seu dossiê de ofi-
cial!". A afirmação se baseia no relató- Testemunho do Gen. Perré (compa-
rio do tenente alemão Casimir Albrecht, nheiro de De Gaulle em Saint-Cyr, pu-
do 199 Regimento da Reichswehr. blicado por Mtnute no dia 11-6-66): HUm
de meus amigos, que foi prisioneiro jun-
ALBRECHT: HVi surgir de um buraco to com De Gaulle, me referiu quanto

17
da hierarquia militar e salva a França, bloqueando o avanço do ini-
migo e reconstruindo moralmente o exército. Enfim, com Joffre e
Foch, o conduz à vitória. Em novembro de 1918, os alemães assinam
o armistício, perto de Compiegne, dentro de um vagão, que se torna-
rá o símbolo da derrota alemã. O prisioneiro Charles De Gaulle pode
retornar à pátria. Está feliz com a vitória, mas amargurado por não
ter podido conquistar sua parte de glória. E também porque, nesse
ínterim, muitos de seus companheiros de Saint-Cyr fizeram carreira e
se instalaram nos melhores postos. li

? 211 ~I II E 111111 111 li

segue. Os guardas alemães prestavam ... E trabalha para o futuro


honras aos oficiais franceses que luta-
ram corajosamente, devolvendo-lhes a
espada em ocasiões particulares, como
para a Missa, mas nunca a deram a de Com relação à estada nu campo de pri-
De Gaulle. Ele então, acreditando que sioneiros, surgem as opiniões mais con-
se tratasse de um engano, exigiu-a aspe- trastantes a respeito de De Gaulle, opi-
ramente. Os alemães se admiraram mui- niões que hão de "persegui-lo" durante
to de seu pedido, mas, para mostrar toda a vida. Alguns o tacham de "orgu-
sua boa vontade, instauraram um novo lhoso, desumano e loucamente ambi-
inquérito sobre as condições da rendi- cioso". Outros, no entanto, como Rémy
ção do Capo De GaulIe. E depois de fei- Roure, vêem nele "um futuro grande
to o inquérito, não lhe restituíram a chefe militar, um futuro mestre na arte
espada" . da guerra, um professor de estratégia e
de I .itica. Estava sempre ocupado em
folhear os jornais alemães, anotando
Na prisão opila-se suas impressões e procurando, com
o fígado ... imperturbável sangue-frio, nos boletins
de vitória do inimigo, os imperceptí-
veis indícios da discórdia latente. Estu-
Enquanto Pétain passa de comando a da com minucioso cuidado e com exati-
comando, até tornar-se um dos chefes dão impressionante os caracteres dos
mais prcstigios,», ,i, exercito íranccs. chefes militares e civis, bem como os
seu pupilo De Gaulle é um oficial infe- defeitos existentes na 'couraça' gerrnâ-
liz e desafortunado. "Capitão aos 25 nica" (citado por Monique Mounier,
anos de idade, cavaleiro da Legião ue De Gaulle vu par... CDe Gaulle Visto
Honra, Cruz de Guerra, três ferimentos. por..."), Ed. Publication Prerniêres,
Na prisão opila-se o fígado. Controla- 1969).
se. Quer lutar, lutar pela pátria e para
receber a morte, ou sua legítima parte
de glória" (Tournoux, Pétain et De Gaul- o jovem De Gaulle, a/uno da
te. ob. cit.). Academia Militar de Saint-Cyr.

18

I
A GLÓRIA E AS PROMOÇÕES que não pôde conquistar em sua pátria,
De Gaulle vai procurá-las na Polônia. O exército vermelho dos sovié-
ticos rechaçara uma tentativa de invasão na Ucrânia por parte dos
poloneses e agora, por seu turno, está invadindo a Polônia, que pede
socorro aos aliados ocidentais. De Gaulle consegue sua indicação
para a 4lil Divisão de Caçadores, que o general polonês Haller foi
autorizado a constituir na França. Sua missão inicial é a de conselhei-
ro militar e professor de tática na Escola de Guerra de Rembertow.
Mas quando os russos chegam às portas de Varsóvia, ele também se

exército condenado à paz. Que futuro


TEMORES PELO pode estar reservado a um capitão de
29 anos? De Gaulle sente a premente
FUTURO DA FRANCA

necessidade de voltar o mais depressa
possível para um serviço ativo... Conse-
gue alistar-se nas tropas que irão com-
DE GAULLE: "Nos anos seguintes, mi- bater na Polônia!" (Paul-Marie de La
nha carreira abrangeu diversas etapas: Gorce, De Gaulle entre Deux Mondes. -
missão e campanha na Polônia, cáte- "De Gaulle entre Dois Mundos"
dra de História em Saint-Cyr ~ Escola Fayard, 1964).
Superior de Guerra, gabinete do mare-
chal, comando do 199 Batalhão de Ca- NÃO, É UMA ESCOLHA DE PÉTAIN
çadores em Treves, serviço de Estado-
maior no Reno e no Oriente. Em toda a Segundo Jacques Isorni, é provável que
parte eu notava o renovado prestígio o conselho de ir para a Polônia, "onde
conseguido pela França através de seus há luta", tenha partido do Mal. Pétain,
recentes feitos e sucessos. Mas ao mes- com a finalidade de "reabilitar", de cer-
mo tempo me assaltavam as dúvidas ta forma, seu protegido. "O marechal
quanto a seu futuro, ocasionadas pela sabia que o futuro de De Gaulle não
incoerência de seus dirigentes" (Memó- era nada promissor, pois conhecia quais
rias de Guerra, ob. cit.). as dificuldades de carreira que um ex-
prisioneiro deve enfrentar. De fato, um
descrédito imerecido perseguia os pri-
sioneiros e o progresso deles se afigura-
.Condenado à paz, De va difícil, até quase impossível."
Gaulle escolhe a guerra "Os bolchevistas se batem pela
plitria, não por Marx"
"De Gaulle volta para casa: agora vê
diante de si apenas a triste e frustrante Nos meses passados na Polônia, De
existência de um oficial que serve num Gaulle teve oportunidades para refletir:

20

"C
vê obrigado a entrar no campo de batalha. Comporta-se corajosa-
mente. O Gen. Weygand, ex-lugar-tenente de Foch e atual chefe da
missão militar francesa na Polônia, lhe confere uma citação elogio-
sa na ordem do dia. Terminado o conflito, os poloneses lhe ofere-
cem a cátedra de tática na Escola de Guerra da Polônia, mas os altos
comandos franceses preferem que De Gaulle volte a lecionar em sua
pátria. Será professor de História em Saint-Cyr. Em fins de 1920,
De Gaulle desembarca em Paris. Poucos dias após sua chegada, du-
rante uma visita à exposição de pintura do Salão de Outono, trava

"Não conseguia entender o marxismo; galantes lhe proporcionaram, finalmen-


repugnava a seus princípios de homem, te, uma oportunidade de lutar: travou
de católico e de soldado. Em 1920, ser um duelo com um oficial polonês, por
marxista significava exilar-se do conví- causa dos belos olhos de uma condessa"
vio humano e civilizado. Como se expli- (Le petit De Gaulle illustré], A notícia
cava, então, a energia combativa dos do duelo foi confirmada pela imprensa
bolchevistas? Para De Gaulle só existia polonesa, por ocasião da viagem de De
uma explicação: os bolchevistas eram Gaulle a Varsóvia, em setembro de
russos e como tais defendiam o solo 1967.
russo. Explicação que fazia silenciar
qualquer dúvida e que lhe causava a Ín-
tima satisfação de haver descoberto que
a pátria está sempre, e em toda parte,
o ENCONTRO
no vértice dos pensamentos dos ho- COMVVONNE
mens" (Mário Costa, ob. cit.).

"Física e moralmente, De Gaulle supe-


Um duelo por causa ra a média dos homens. Com seus dois
dos belos olhos da metros e oito centímetros de altura, os
demais parecem anões, tão logo ele se
condessa polonesa apresente no meio deles. Aproveita-se
desta vantagem e a transforma em me-
Na Polônia De Gaulle não luta apenas nosprezo. Em todos os estágios de sua
no campo de batalha ou na cátedra. Se- carreira, os interlocutores ouviram dele
gundo alguns de seus biógrafos, ele fre- afirmações depreciativas a respeito de
qüentava assiduamente o Café Blikle, seus chefes, colegas e subordinados.
onde se encontrava amiúde com uma Parece que está sempre a dizer: 'Eu
"encantadora e minúscula senhorita tenho razão de ser alto'. No primeiro
que, afirmam alguns, teria sido a Prin- encontro com a Srta. Vendroux, o Capo
cesa Gretwertiska" (Jean Lacouture, De Gaulle lhe derrama sobre o vestido
ob. cit.). "Pelo menos essas ocupações uma xícara de café. Pouco depois, noi-

21
conhecimento com Yvonne Vendroux, filha de um pequeno indus-
trial de Calais. Yvonne não é muito atraente, mas, em compensação,
é muito religiosa, dócil e virtuosa. Exatamente a mulher para ele.
O pedido de casamento é feito, e casam-se no dia 7 de abril de 1921.
No dia 28 de dezembro do mesmo ano, nasce Philippe. Deu esse
nome ao filho como evidente homenagem ao Mal. Pétain, que havia
aberto as portas de sua casa ao jovem e brilhante capitão. Após
um ano de cátedra em Saint-Cyr, De Gaulle torna a vestir o unifor-
me de aluno: foi admitido na Escola Superior de Guerra. Aí perma-

1I I ] lU fi (li!! mill; ! 1 11 rn KAtlm . t 111 111111 ]1 1

varam. Sem dúvida, a Srta. Vendroux mais tarde, para todos os franceses, a
fora bastante inteligente para com- Tante Yvonne, "a imagem da fada da ca-
preender que a culpa cabia à xícara de sa, boa, discreta, eficiente", escreve
café, por ser pequena demais para aque- Galante. "De 1921 até o fim da vida, a
les enormes braços" (Alfred Fabre-Lu- Sra. De Gaulle estará destinada a ocu-
ce, ob. cit.). par, sem a menor crise, o 'ministério do
bom senso comum'. Mas como Sancho
Pança acompanhava o bondoso patrão
Galeotto D. Quixote nos assaltos aos moinhos
de vento, assim também Tante Yvonne
foi O retrato enfrentará com o marido os mais teme-
rários empreendimentos."
"A moça que o 'venceu', fazendo-o
esquecer a Polônia, tem vinte anos de
idade, olhos alegres, um rostinho muito De Philippe Pétain
gracioso, de formato oval, bem dese-
nhado sob uma cabeleira negra, forma- a Philippe De Gaulle
da de caracóis cuidadosamente enfeita-
dos", escreve André Frossard. "Os dois
jovens se encontram no Salão de Outo- JACQUES /SORN/: "Quando nasceu o
no, sob um retrato de Maurice Rostand, primeiro filho de De Gaulle , ou porque
graças aos 'bons ofícios' de uma amiga respeitasse as tradições familiares, ou
das duas famílias, que os achou perfei- porque acatasse as imposições religio-
tamente certos um para o outro e que sas, o capitão não convidou Pétain -
julgou ser um dever seu tornar possível que não era casado na igreja - para ser
esta aproximação." padrinho de seu filho. No entanto, colo-
cou-o sob a proteção moral do mare-
chal, pondo-lhe o nome de Philippe".
Yvonne como Sancho Panca

TOURNOUX (Pétain et De Gau/le, op.
A esposa de De Gaulle estava destinada cit.) afirma que "De Gaulle repetia fre-
a se tornar para todos os familiares e, qüentemente e com orgulho: 'O mare-

22

I I 1;,,,,.'1, 11 I i,; l. ill j,li ,j


necerá de 1922 a 1924. Foi um "aluno' nem sempre dócil e nem sem-
pre de acordo com os ensinamentos dos professores. O Ce1. Moyr-
and o define com notas características: "Oficial inteligente, culto...
brilhante... mas estragado por uma excessiva presunção e por dema-
siada rigidez face às idéias dos outros. Seu comportamento é idêntico
ao de um monarca no exílio..." O resultado de semelhante opinião
não se faz esperar: o "monarca" sai da escola com a classificação
"bom", quando apenas o "muito bom" lhe daria direito à longamen-
te almejada cátedra da Escola de Guerra. De Gaulle está furioso. E

chal é o padrinho de meu filho'. E ain- companheiros. O futuro Gen. André


da: 'Pertenço ao clã Pétain. O marechal Laffargue recorda-se que "Caminhava
é o meu Patrão'. Nos círculos militares, rígido, empertigado, muito grave, muito
todos acreditam que Philippe de Gaulle sério, como se transportasse a própria
tenha sido levado à pia batismal pelo estátua. Tal comportamento me chocou
vencedor de Verdun, E todos sabem que muito e não consegui evitar um comen-
De Gaulle é o protegido de Pétain". tário feito a mim mesmo: 'Caramba! eis
aí alguém que decididamente se leva a
sério L..' Em seguida. sem jamais abdi-
De Gaulle era car em nada de sua personalidade, De
Gaulle se integrou ao ambiente simpa-
filho de Pétain '1 ticamente camarada e alegre que reina-
va na Escola de Guerra..." E mais adi-
ante: HO e Gaulle tem na cabeça uma
Em 1945, durante o processo de Pétain, balança desregulada. Não possui o sen-
De Gaulle confessou a Claude Mauriac, so do equilíbrio. Falta-lhe o contato
filho do célebre escritor: ~É mentira
H com a realidade. Em compensação, dá
que Pétain foi padrinho de meu filho. provas de uma tenacidade inacreditá-
Como é mentira também que eu seja vel" iFantassins de Gascogne, - "Infan-
filho natural do marechal' ". (C. Mau- tes da Gasconha" -. Flammarion,
riac, Un Autre De Gaulle, - "Um Outro 1962).
De Gaulle" -, 1970).
EMILE WANTY: "Era um homem de
monólogos, que sabia apresentar suas
Charles De Gaulle na idéias com admirável espírito de síntese,
mas, talvez, com um pouco de dogma-
escola de guerra tismo. Do ponto de vista humano, era
arrogante e choques freqüentes o leva-
vam a desentendimentos com os nossos
Na Escola Superior de Guerra, desde o professores" (citado por Monique Mou-
início, De Gaulle não se entrosa com os nier, De Gaulle vu par..., ob. cit.).

23
Pétain também. É inútil qualquer tentativa para salvá-lo. Seu prote-
gido é finalmente enviado a um comando "periférico"; o Estado-
maior da armada do Reno, com sede em Mainz. Mas já no ano se-
guinte, o marechal - que é vice-presidente do Conselho de Guerra
- consegue que De Gaulle seja transferido para seu gabinete. E em
abril de 1927, dá-lhe a oportunidade para uma estrondosa desfor-
ra: obriga toda a Escola de Guerra, desde o diretor até o último alu-
no, a assistir a três conferências de De Gaulle sobre A Doutrina Mi-
litar e a Missão do Chefe. E Pétain também comparece.

[I .1& lI. I II 11

o gosto De Gaulle responde ao


coronel:
pelo lTIistério
"DE MINIMIS NDN
"O retrato que Laffargue nos apresenta
de De Gaulle, um retrato sem compla-
CURAT PRAETOR"
cências mas também isento de aversão, Chauvin, companheiro de curso de De
nos revela melhor que qualquer outra Gaulle, escreveu para a revista Miroir
testemunha o jovem oficial De Gaulle. de l'Histoire (junho de 1960) suas remi-
Podemos vê-lo dotado de maneiras sim- niscências da Escola de Guerra: "Para
ples, porém incapaz de efusões e quase concluir os estudos, exigia-se um exer-
totalmente avaro de confidências. Cer- cício em campo aberto. Naquele dia,
tamente, nada o distingue dos outros De Gaulle 'foi posto no fogo', assumin-
alunos daquele curso, mas ele, por sua do o comando de um exército imaginá-
vez, nada revela acerca de suas refle- rio, enquanto nós desempenhávamos as
xões e análises que, passados poucos funções de seus subordinados... De
anos, haverá de publicar em seus livros. Gaulle foi submetido a um verdadeiro
Será apenas o fruto do ceticismo na bombardeio de situações hipotéticas e
avaliação da capacidade de seus com- de perguntas, cujo tom - cheio de sar-
panheiros em captar as verdadeiras exi- casmo e de agressividade - mostrou
gências de seu pensamento, ou uma ten- claramente que já não se tratava mais
dência natural ao segredo? É bem ver- de um exame, mas de um processo... De
dade que desde esse tempo se evidencia Gaulle, no entanto, 'sereno e senhor de
nele o comportamento que há de fas- si', pouco a pouco desmonta o coronel.
cinar - ou então exasperar - os que o Este, por fim, lhe atira uma última fle-
rodeiam, quando vier a exercer o poder chada: 'A propósito, onde estão os trens
político: uma certa repugnância em dis- logísticos do regimento da esquerda,
cutir com os outros tudo que pode de- na divisão da direita?' Voltando apenas
bater consigo mesmo". (Paul-Marie de a cabeça na direção do oficial que ocu-
La Gorce, ob. cit.). pa o posto de chefe de seu estado-maior.

24
Em dezembro desse mesmo ano, após doze anos de serviço
como capitão, De Gaulle é promovido a major e assume o coman-
do do 199 Batalhão de Caçadores, acantonado em Treves, na Ale-
manha.
Aqui também De Gaulle encontra meios de se fazer notar, por bem
ou por mal. Por bem, quando guarda, pessoalmente, luto por um
soldado órfão, morto durante uma epidemia. Por mal, quando man-
da prender, incomunicável, um outro soldado que obteve do Minis-
tério da Guerra sua transferência para a pátria. Isto é insubordina-

I IJT

De Gaulle ordena: 'Châteauvieux, res- JACQUES /SORN/: "Ferido em seu or-


panda!' E o coronel, furioso: 'Mas é a gulho, De Gaulle chega até a pensar em
você que fiz a pergunta!' E De Gaulle, abandonar o exército. Pétain o conven-
com voz muito tranqüila: 'Coronel, o ce a ficar. Agora, mais do que nunca,
senhor me entregou a responsabilidade deve muito a Pétain. Sem ele o futuro
de um exército. Se, além disso, eu as- de De Gaulle seria apenas simples me-
sumir também a de meus subordinados, diocridade, ambições insatisfeitas. E
jamais terei a mente livre o bastante pa- Pétain prepara a desforra de De Gaulle.
ra cumprir adequadamente meu dever: O Gen. Héring, seu fiel admirador, se
de minimis non curatpraetor". torna o comandante da Escola de Guer-
ra. Pétain não hesita em dizer-lhe que,
quanto mais pensa, mais se convence
que o caso da classificação de De Gaul-
A c/assificacão ~
le monstruoso, como um erro judiciá-

rio'. E assim, uma vez que De Gaulle


enfurece-o não pode ganhar sua cátedra na escola,
falará sem ela!. .. Mas o orgulho de De
Gaulle fica apenas meio satisfeito. Essa
Somente por intervenção de Pétain e do desforra não a deve a si mesmo, deve-a
Gen, Dufieux, assistente do diretor da a Pétain!"
Escola de Guerra, De Gaulle recebeu a
menção Bien, porquanto a banca julga- "Daqui a poucos
dora já havia decidido classificá-lo um
grau mais abaixo, Assez bien. É o que anos eles vão se
afirma Tournoux, em Pétain et de Gau/Je
(op. cit.): HDe Gaulle está furioso. Co- agarrar em mim."
menta em voz alta: 'Aqueles c.... da Es-
cola de Guerra! Jamais entrarei naquele 20 de junho de 1929, carta de De Gaulle
barracão sujo, a não ser como coman- a seu amigo, Cel. Lucien Nachin: "Oh l
dante! E vocês verão como tudo há de como é amargo suportar a farda, em
mudar!'" . nossos dias! No entanto, é nosso dever.

25
ção pura e simples, que o põe em risco ~e receber até a. aposen~ado­
ria compulsória antecipada. Corre imediatamente a Paris, paraJ~nto
do protetor Pétain, que o livra da pior. "Tirei-lhe um belo espinho
do pé", afirmara depois, confidencialmente, o velho marechal a seus
íntimos. Os anos de De Gaulle em Treves são amargurados com o
nascimento de uma filha mongolóide, a quem chamaram Anne. An-
tes dela, havia chegado Elisabeth. Anne será sempre uma pesada cr.uz
para De Gaulle. "Charles e eu daríamos tudo, saúde, futuro, carreira
para que Anne fosse uma criança normal", escrevia Mme. Yvonne. li

II II I 111 I 1111

Dentro de alguns anos, todos hão de se A tragédia de Anne


agarrar à minha bandeira para salvar a
pátria... e a canaille (o populacho) tam- TOURNOUX: "A carta a Nachim data
bém!" É uma das cartas a respeito das de 20 de junho de 1929. Há dezoito me-
quais os biógrafos de De Gaulle manti- ses Charles De Gaulle sofre atrozmente.
veram discussões intermináveis: será A couraça de gelo esconde um sofri-
uma previsão histórica ou não passará mento infinito, quase no limite do de-
de um monstruoso orgulho? E, além de sespero. No dia 19 de janeiro de 1928, a
tudo, De Gaulle escreveu a minha ban- Providência submeteu esta família pro-
deira, segundo afirma Tournoux, ou à fundamente cristã a uma prova talvez
nossa, como sustenta Lacouture? Diz mais dura que a própria morte: uma
este: "Se tivesse escrito minha, isto po- menina, Anne, infeliz, desafortunada,
deria levar o leitor a formar um prog- mongolóide... "
nóstico pessimista a respeito do estado
mental de De Gaulle". André Frossard LE CRAPOU/LLOT: "Não há dúvida
também defende a mesma opinião e que este calvário íntimo há de fechar
condena todos aqueles que "preferem De Gaulle ainda mais em seu orgulho-
ler minha e usar essa leitura errada com so isolamento e multiplicará por dez
o fim de tirar toda sorte de conclusões seu rancor contra a vida",
igualmente erradas: orgulho, certeza,
P/ERRE GALANTE: '·De Gaulle sofreu
quase ultrajosa para o comum dos mor- muito com Anne. Sempre lhe dedicou
tais, de ser chamado a um grande des- uma hora por dia, não importando o
tino". Para Fabre-Luce, no entanto, é compromisso que tivesse pela frente.
minha: "Naquela época, seu correspon- Cantava-lhe canções, com o polegar na
dente deve ter julgado que De Gaulle boca imitava o som de um trombone.
fora acometido de megalomania. Onze Tomava-a sobre os joelhos e Anne lhe
anos mais tarde, a carta permanecerá acariciava as faces..."
profética. Então, não será necessário ir
procurá-lo; ele se apresentará esponta- De Gaulle em Londres (1940),
neamente !" com um grupo de marínheiros franceses

26
EM 1929, o MAJOR DE GAULLE é transferido de Treves para o Estado-
maior do exército do Levante, cujo quartel-general ficava no Líbano.
Aí permanece até o fim de 1930. O trabalho a realizar é pouco e ele
aproveita o tempo viajando por todo o Oriente Médio, e transfor-
mando em livro as conferências proferidas em 1927. Intitula-se Le
Fi! de I'Épée C~O Fio da Espada"), e foi publicado em Paris, em
1932, quando De Gaulle se torna secretário do Conselho Superior
da Defesa, sendo promovido a tenente-coronel. O livro, dedicado ao
Mal. Pétain, denuncia a "mística que pretende amaldiçoar a guerra",

[fIH 111

ULe FII del"~p• •"" revela E seu


o destaque pró-fascismo?
do super-homem
HLe Fi! de L 'Epée pode ser considerado
como característica testemunha das
Comentando Le Fi/ de I'Hpée, François idéias de uma espécie de pró-fascismo
Mauriac escreverá em 1964: "Urna das francês. Por outro lado, neste mesmo
características mais notáveis do jovem período, De Gaulle não dissimula a con-
chefe de 1927 é que a partir deste ano sideração que nutre pelo regime de
ele pressentia que haveria de dominar Mussolini" - escreve o número espe-
as pessoas, mesmo sem ser amado, ou cial de Le Crapouil/ot, que cita como
apesar de não ser amado, sem procurar prova um trecho do artigo HA Mobiliza-
ou desejar tal fato. Na verdade, o preço ção Econômica no Exterior", publicado
de seu domínio sobre os acontecimen- por De Gaulle na Revue Militaire Fran-
tos é sua típica distância nas relações çaise, em lI? de janeiro de 1934: ~~O re-
com os homens, a separação que, por si gime fascista - escreve ele -. permite
só, bastaria para tornar De Gaulle odio- aos poderes públicos extrair das fontes
so a uma certa geração formada na existentes tudo quanto elas podem dar.
França por um século e meio de parla- A imperiosa subordinação dos interes-
mentarismo. Sim, exatamente a essa ge- ses privados aos do Estado, a disciplina
ração, mas não ao povo, não às multi- imposta a todos e realmente obtida, a
dões que participam da grandeza unica- coordenação pessoal do Duce, e, por
mente através de um homem de sua es- fim, aquela espécie de exaltação latente
tatura. E ele, por seu turno, tem neces- mantida no povo pelo fascismo, com re-
sidade dessa multidão, precisa de um lação a tudo que diz respeito à grandeza
contato direto com ela, a fim de recar- da pátria, favorecem de modo excepcio-
regar, por assim dizer, suas baterias" nal as providências para a defesa nacio-
(Mauriac, De Gau/le, Mondadori, 1965). nal".

28
proclama o valor permanente da força na história dos povos e exalta
a figura do Chefe, que não pode ser concebido "sem uma forte
dose de egoísmo, orgulho e astúcia". De Gaulle publica outro livro
de importância bem diferente em 1934. Intitula-se Vers l'Armée de
Métier C~Rumo ao Exército Profissional"), no qual todos os futuros
apologistas do "salvador da Pátria" encontrarão uma ousada ante-
cipação da guerra moderna, com carros blindados. Contra as teorias
oficiais da guerra defensiva a qualquer preço, as quais se concretiza-
ram nas despesas faraônicas da Linha Maginot, De Gaulle sustenta

não quer nem saber. Então, De Gaulle


Asceta mal pago escreve um cartão postal a Pétain, no
qual "com palavras discretas lhe comu-
HEm 1934, o Ten.-cel. De Gaulle era nica que ficaria muito feliz, se fosse cha-
um modesto oficial como tantos outros, mado por ele" (citado por Alfred Con-
naquele complexo de chefes único no quet, Auprês du Maréchal Pétain, -
mundo, que o povo francês gera inin- "Com o Mar. Pétain" -, Ed. France-
terruptamente para os quadros de seu Empire).
exército. Um daqueles ascetas mal pa-
gos, destinados apagar, em silêncio, pe-
las imprudências de nossa política gene-
o Exército profissional
rosa e irracional ao mesmo tempo" DE GAULLE: HOS problemas da filoso-
(Philippe Barres, Charles De Gaulle, fia da ação, da orientação e do emprego
Mondadori, 1944). das forças armadas por parte do Estado,
e das relações entre o governo e o co-
mando há muito tempo me ocupavam o
NÃO: INTRIGANTE espírito. Em algumas publicações, eu
já havia manifestado meu modo de pen-
SEM VERGONHA sar a respeito: La Discorde Chez
l'Ennemi, Le Fi! de L 'Epée. Mas, em ja-
neiro de 1933, Hitler se tornava o dono
Em 1934, Pétain se torna ministro da do Reich. A partir desse momento, os
guerra, no governo Doumergue, e no- acontecimentos deviam, infalivelmente,
meia o amigo Laure diretor de seu gabi- precipitar-se. Já que ninguém apresen-
nete. De Gaulle se apressa em insistir tava nada adequado à situação, eu me
junto ao velho protetor para ser nomea- senti no dever de apelar à opinião públi-
do adido do gabinete militar junto à Câ- ca e expor meu projeto. Não foi sem di-
mara dos Deputados, Dirige-se imedia- ficuldades que me adaptei a tal destino,
tamente a LaureIque, segundo Isorni, depois de 25 anos vividos segundo as
detestava De Gaulle) e "chega até a se normas da vida militar. Lancei ao pú-
humilhar nessa tentativa". Mas Laure blico meu projeto e minhas idéias, sob

29
que somente a guerra ofensiva pode salvar a França na luta que já
se anuncia contra a Alemanha nazista. Uma guerra ofensiva, realiza-
da por um exército de 100 mil soldados profissionais, montados em
velozes carros blindados. Imediatamente, todos vão contra ele: os
partidos da esquerda, que vêem no exército profissional uma tropa
de choque de Estado fascista; os da situação alegam que o governo
gastou uma soma fabulosa na construção da Linha Maginot. Tam-
bém os grandes chefes militares, com Pétain à frente, que se escle-
rosou na posição de 1918, adotam a teoria da guerra defensiva a

b 11l~ n J!mb. JZi I

o título Vers l'Armée de Métier . Propu-


nha a imediata constituição de um exér- A esquerda contra
cito de ataque e de manobra, mecaniza-
do, blindado, formado por soldados de De Gaulle. O espectro
elite, para flanquear as grandes unida-
des fornecidas pela mobilização" (Me-
mórias de Guerra, ob. cit.).
do golpe de estado
"O termo 'exército profissional' evoca-
Ribbentrop va em certos intelectuais de esquerda,
como Léon Blum, uma angústia latente.
elogia De Gaulle Falei com o Cel. De Gaulle: rNão deve
ter medo das palavras' - respondeu-me
Em abril de 1934, o jornalista Philippe ele. Se assim havia intitulado seu livro,
Barres (ob. cit.) se encontra na Alema- era porque se tratava de um organismo,
nha e recebe um convite para uma festa cuja extensão, profundidade e meios de
na casa de Ribbentrop. "O dono da sustento lhe permitiam operar sozinho"
casa me disse, falando lentamente: 'Pa- (Jean Auburtin, Le colonel De Gaulle, -
ra nós, caro senhor, Versalhes está mor- ~ro Cel. De Gaulle" - , Plon 1965). Mas
ta. Versailles ist tot', Fiquei chocado os conceitos de De Gaulle não expõem
com sua expressão dura, decidida... rA nem mesmo a doutrina tática das altas
Linha Maginot, nós a atravessaremos esferas militares, que no dia 12 de agos-
com os carros blindados. O Gen. Gu- to de 1936 publicam a seguinte Instrução
derian, nosso especialista na matéria, o sobre o Emprego Tático das Grandes Uni-
tem demonstrado cabalmente. Julgo até dades: "Sem desconhecer a importância
saber que o vosso melhor técnico no dos progressos realizados nos últimos
assunto é da mesma opinião ... ' 'E quem tempos na área referente aos meios de
é nosso melhor técnico?' - perguntei- combate e de transporte, a comissão
lhe admirado. 'Mas é De Gaulle", - deduz que tais progressos de ordem téc-
exclamou como alguém que enuncia nica não modificam sensivelmente, no
uma verdade evidente". campo tático, as regras já fixadas".

30
qualquer preço. Paradoxalmente, os papéis se inverteram: poder-se-
ia quase dizer que De Gaulle é o Pétain da 11 Guerra Mundial. As-
sim começa o rompimento entre os dois homens. Vers l'Armée de
Métier não é mais dedicado ao marechal C~é um tonto" começa a
dizer De Gaul1e), mas ao exército francês. De sua parte, o marechal
não leva para seu gabinete o antigo protegido C~aquele peru do or-
gulho cósmico", como o define agora), quando se torna ministro
da Guerra, no governo Doumergue (1934). Mas De Gaulle não tem
dificuldades em encontrar outro protetor: Paul Reynaud, ex-minis-

Ousado antecipador... mente e em profundidade, a aviação se


torna a arma por excelência".

A ~. mitologia" gaullista afirma que é


muito mais antiga a "invenção" de De
Gaulle concernente às teorias sobre o
o verdadeiro inventor
uso dos carros blindados. Gaston Bo- da artilharia de assalto
nheur (oh. cit.) escreve que já em 1920,
na Escola de Guerra de Rembertow, na De Gaulle não é o inventor da estraté-
Polônia, o Capo De Gaulle "desenvolvia gia dos carros blindados. Antes dele,
durante suas preleções a teoria revolu- defendeu-a o Gen. Estienne, reformado
cionária sobre o emprego da infantaria desde 1922. "Na verdade, esquecemo-
e dos carros blindados, em perfeito en- nos depressa de suas lições de 1917!
trosamento com a aviação". Comandante de meios blindados, de-
pois de ter sido seu apóstolo, Estienne
..• Ou profeta do dia não usou os carros blindados somente
seguinte? para acompanhar a infantaria, mas tam-
bém na frente da infantaria, em opera-
"Profeta do dia seguinte", assim o jor- ções maciças e autônomas. Muito mais
nal Le Crapouillot rotula De Gaulle, tarde, muitos se recordarão que o exér-
a propósito de suas "antecipações" a cito blindado pode se tornar, como
respeito da futura guerra mundial e do ele o previu, uma 'artilharia de assalto ;
uso de carros blindados e aviação. De . Mas será tarde demais!" (En ce temps-
fato, previa De Gaulle que a II Guerra là).
Mundial "não seria, como a primeira,
de caráter total, mas antes um retorno
aos velhos conflitos limitados". Além Os erros de De Gau lIe
disso, ele reservava aos aviões uma ta-
refa de camuflagem muito limitada. "Nos anos sucessivos à guerra, deveria
Vers l'Armée de Métier contém a seguin- figurar entre os axiomas da mitologia
te frase "profética": "Atacando direta- gaullista que à França teria sido sufi-

31
tro das Finanças e da Justiça. É o próprio Reynaud quem se faz -
embora inutilmente - o porta-voz das teorias do tenente-coronel no
Parlamento e perante a opinião pública.
No dia 7 de março de 1936, os nazistas ocupam a Renânia, num des-
prezo total aos tratados de Versalhes. Se a França estivesse munida
de tropas blindadas, poderia ter feito malograr a tentativa de Hitler
ainda não suficientemente forte para desencadear a guerra mundial.
E talvez não a desencadeasse nem quatro anos mais tarde - afirmam
os defensores de De Gaulle - , se naquela ocasião os franceses e os

ciente seguir as teses do livro de De particularmente Léon Blurn, o líder


Gaulle para evitar o desastre de 1940. socialista, se indignou com razão, ob-
Obviamente, esta é uma afirmação de- servando que um exército de profissio-
masiado simplista" - escreve Alexan- nais poderia muito facilmente tornar-se
der Werth (ob. cit.]. E mais: "Na Verda- a 'guarda pretoriana' de um regime fas-
de, mesmo nos argumentos de De Gaul- cista na França. E, de qualquer manei-
le se encontram, naturalmente, pontos ra, seria contrário ao grande princípio
fracos. Ele não conseguiu prever as ili- democrático de Jaurés, que propunha a
mitadas ambições de Hitler, conside- 'nação armada'. Além disso, a oposição
rando 'encerrada a era das grandes con- se desencadeou, partindo não só da
quistas', etc...." esquerda, obcecada como estava então
pelo 'perigo fascista', mas também dos
O livro de De Gaulle despertou muito generais franceses. Realmente, Paul
pouco interesse na França de 1934. Reynaud foi o único político a levar a
"Esta - escreve ele - estava suportan- sério as propostas de De Gaulle no Par-
do uma psicose antibélica, a qual che- lamento, embora tenha alcançado pou-
gou a extremos perigosos, especialmen- co ou nenhum efeito."
te no momento em que, na Alemanha,
desenvolvia um 'nacionalismo do tipo
militar'. Mas existiam ainda outras ra-
o comentário de Léon Blum
zões para o fracasso das propostas de
Charles De Gaulle... O ano de 1934 pre- Após a Guerra: "Se houvesse prevaleci-
sencia o nascimento de vários grupos do o sistema de De Gaulle, a França
fascistas na França, como vem demons- ter-se-ia antecipado pelo menos dois
trado pelas desordens da Concórdia, em anos, em vez de perder quatro, na orga-
6 de fevereiro. Quando, algum tempo nização das grandes unidades mecani-
após a publicação do livro, saíram pu- zadas e na execução da nova tática, da
blicados no Echo de Paris, órgão perten- qual os blindados foram o elemento
cente à corrente da direita, diversos primordial. E além disso, o desastre te-
artigos que chamavam a atenção para ria sido esconjurado e, talvez, a própria
as idéias de De Gaulle, a esquerda, e guerra pudesse ter sido evitada" (Léon

32
ingleses tivessem reagido com energia. Mas a França não possui
tropas blindadas para enviar com rapidez para a Renânia. E conti-
nuava a não querê-las. A voz de De Gaulle e a de Reynaud conti-
nuam a ser a clássica voz que clama no deserto. Também Léon Blum,
chefe do governo da Frente Popular, eleito nas eleições de 1936,
quando encontra De Gaulle em setembro de 1937, recusa-se a dei-
xar-se convencer. Em 1937, De Gaulle é promovido a coronel e in-
gressa no Centro de Altos Estudos Militares. Publica um novo livro
em 1938, La France et son Armée CtA França e seu Exército"). "A

II !IH I II

Blurn, Mémoires ~-, Ed. Albin Michel, que lembra haver estabelecido as linhas
Paris, 1955). mestras do trabalho, corrigindo de
próprio punho grande parte da obra.
Por fim, chega-se a um acordo: o livro
De Gaulle contra Pétain será dedicado a Pétain em termos tais
que precisem com exatidão a participa-
Le Crapouillot: "Durante os anos de ção que ele teve na obra, segundo o
1926 e 27, Pétain fez trabalhar um bom que for determinado pelo próprio mare-
número de oficiais de seu estado-maior, chal. De Gaulle aceita, mas depois subs-
entre os quais o Capo De Gaulle, na re- titui o texto de Pétain por outro que ele
dação de um livro sobre o exército, que próprio redigiu".
deveria ser publicado sob sua direção".
Jacques lsorni: "Antes de ir aTreves, Werth: "Quando o livro foi publicado
com a dedicatória original, o marechal
De- GaulIe entrega a Pétain o trabalho
acusou De Gaulle de um vulgar 'abuso
que este lhe havia pedido sobre o sol-
de confiança'. Este liquidou o assunto,
dado francês. Estando em Treves, vem a
declarando que o marechal tinha 82
saber, em 15 de janeiro de 1928, que
anos e estava 'caduco', Pétain guardar-
Pétain, insatisfeito com o texto apresen-
lhe-ia rancor durante anos, e freqüentes
tado, resolve pedir ao Cel. Audet a revi-
vezes relembrou o episódio, mesmo de-
são dele. A resposta imediata é uma
pois de tornar-se chefe do governo de
recusa cabal de permitir que tocassem Vichy".
no 'seu' texto, exprimindo a convicção
de que 'todo aquele negócio iria acabar
Jean Lacouture: HO O ponto de vista do
mal'. E de fato acabou mal". De Gaulle
direito, da lógica, do bom senso, De
decide publicar o livro em seu nome.
GaulIe está com a razão: ele é o autor,
Fabre-Luce: HQ estado-maior, que con- enquanto seu ex-chefe desempenhou,
sidera aquelas páginas fruto de um tra- na elaboração do livro, apenas a função
balho coletivo, recusa a De Gaulle a de um diretor de coleção. Mas, na prá-
permissão de publicá-las. Particular- tica, o assunto é muito mais complexo,
mente violenta é a reação de Pétain, pois a obra foi iniciada durante o exer-

33
França foi feita a golpes de espada", afirma De Gaulle na primeira
frase do livro. É a réplica da última frase de Vers l'Armée de Métier:
"Porque a espada é o eixo do mu ndo". Esta obra assinala seu rompi-
mento definitivo com Pétain. De fato, o livro foi começado por De
Gaulle em 1923 ou 25, sob a égide do marechal, que pretendia pu bli-
cá-lo com seu nome. Mas depois Pétain renunciou ao projeto e a
"ovelha negra", De Gaulle, continuou-o às escondidas do marechal.
E agora lança ao público com seu nome, e uma estranha dedicatória
com agradecimentos que o marechal pouco aprecia. -

mm

cício de certas funções, onde um oficial fes e mais sério que os políticos. Tem
é apenas um instrumento. Em suma, or- certeza de ser um gênio. Mas, em caso
gulho contra orgulho, criação versus de necessidade, saberá também ser re-
tradição". servado, formalista, e conter os sarcas-
mos de sua superioridade. Disfarçará
sua solidão e seu desprezo sob a capa
Vive para se tornar "O Chefe" dos bons costumes sociais. Porá em prá-
tica a educação insolente, o louvor
desdenhoso..." (Emmanuel d'Astier,
HDe Gaulle se prepara durante vinte
oh. cit.).
anos. Não ambiciona uma posição so-
cial. Quer ser o Chefe. Toda a sua vida
será apenas tática e estratégia. Passan- Era tímido e complexado
do da guarnição do estado-maior e do
estado-maior ao ministério, aprimora
seu personagem. Duas preocupações o "De Gaulle não era feio. Devia, no en-
atormentam: a guerra e a política. Duas tanto, dar a impressão de ser um pouco
artes que se interligam estreitamente. tímido... Por isso ele se retraía logo que
A guerra é inevitável. É o coroamento um colega, um amigo fizesse menção de
da política. Conduz e provoca as con- faltar-lhe ao respeito. Era, como se diz
vulsões que fazem surgir os grandes hoje, um tanto 'complexado'. O que o
homens e preparam os novos destinos. salvava era a riqueza do seu mundo in-
Para De Gaulle, a vida privada não exis- terior, o brilhantismo de sua inteligên-
te. Não nutre outros desejos além da cia reconhecida pelos mais ilustres che-
glória: esporte, jogos, paixões, ou ami- fes militares da França. A única reação
zade. Para vencer, é preciso andar de possível aos escárnios dos companhei-
acordo com a sociedade, conformado. ros era o desprezo do homem superior,
É só depois, quando tiver se tornado um decidido a atingir as mais elevadas me-
grande homem, que poderá conduzir tas" (Mário Costa, oh. cit.).
esta sociedade e esta ordem para novos
progressos. De Gaulle tem plena certe- 30-5-/943: De Gaulle se dirige
za de ser mais inteligente que seus che- a um encontro com o Gen. Giraud.

34

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EM 1938, DE G AULLE é afastado dos altos comandos de Paris. Queria
carros blindados? Pois os terá. Dão-lhe o comando do 5079 Regimen-
to de Carros Blindados, acantonado em Metz. Porém, a distância e as
novas responsabilidades não o impedem de manter estreitos contatos
com os círculos políticos da capital, que compartilham suas apreen-
sões sobre o futuro. Durante suas viagens a Paris, De Gaulle freqüen-
temente se detém num pequeno e tranqüilo vilarejo escondido entre
os bosques, Colornbey-les-Deux-Eglises, onde adquiriu de uma viúva
idosa, em troca de pensão vitalícia, uma velha casa em ruínas, cir-

L I I Jl II I

trar um "porto' para Anne. Encontrou a


A vaidade casa de Colombey, graças a um anúncio
do Écho de Paris. "Fiquei imediatamente
seduzido por sua posição e por sua no-
do coronel breza' - dirá mais tarde. A casa se cha-
mava La Brasserie, pelo fato de se cul-
tivar ali o lúpulo para a fabricação de
"Quando era coronel e comandava um cerveja, e pertencia a certa viúva de no-
regimento de carros blindados em Metz, me Bombal. De Gaulle a adquiriu por
não era amado por ninguém. Inacessível 28 mil francos de entrada e se compro-
a seus homens, distante com os oficiais, meteu a pagar mais 2 mil por ano à
sua vaidade, a falta de humanidade, o proprietária, enquanto esta vivesse.
tom áspero de sua voz afastavam a to- Mme. Bombal, a proprietária, faleceu
dos" (Robert Aron, De Gaulle, oh. cit.v. dois anos depois. De Gaulle imediata-
mente rebatizou a casa, dando-Ihe o
nome de La Boisserie, o que se justifi-
cava por causa dos enormes bosques
ColoR1bey- Les- que a rodeavam e também porque era
mais poético. Após a Libertação, man-
Deux-Eglises dou construir uma torre hexagonal que
lhe servia de escritório e de refúgio. Um
escritório hexagonal: a forma da Fran-
"Charles De Gaulle sentia saudades da ça!" (Pierre Galante, oh. cU.).
Ligerie, a casa de férias de sua adoles-
cência. O soldo de oficial não lhe permi- Maio de 1940:
tia sonhar com um castelo. Procurava, A Batalha da França
entretanto, alguma coisa aparatosa, ou
talvez em ruínas, com muito espaço pa- De Gaulle: "Diante do espetáculo ofe-
ra longos passeios e muito sossego. recido por este povo desanimado e pela
Estava cansado da vida errante dos mi- derrota militar invadiu-me um furor
litares. E, além disso, desejava encon- sem limites. Ah! e pensar que tal desas-

36
cundada por belo parque. É o lugar ideal para sua pobre filha Anne,
a quem os médicos prescreveram um ambiente particularmente são
e tranqüilo. De Gaulle batizou a casa de Boisserie (em homenagem
aos bosques da região). Será a célebre residência-fortaleza-retiro
dos dias tristes do general. Mesmo na sede de Metz, o coronel "Mo-
tor" - como o apelidaram os colegas por causa de sua "mania"
pelos carros blindados - encontra um modo de provocar atritos com
os superiores, devido a suas concepções táticas. De fato, no decorrer
de algumas manobras, ordena a seus carros que executem uma ação

tre podia ter sido evitado! A guerra co- Para os alemães, em Montcornet não
meça da pior maneira imaginável. No aconteceu nada de especial, pois ha-
entanto, não acabará assim, há de con- viam interrompido a ofensiva dois dias
tinuar. Para tanto ainda existe muito antes, por ordem superior, segundo es-
espaço no mundo. Naquele mesmo dia, creve Gert Buchert em Hitler der Feld-
tracei o plano do que eu poderia fazer herr C'Hitler, Chefe de Guerra"). "A-
em seguida" (Memórias de Guerra, oh. queles contra-ataques não nos causa-
cit.). ram reais dificuldades" - declarou a
seguir o Mal. von Klist a Liddell Hart
(História de uma Derrota). "Guderian
As vitórias os enfrentou sem dificuldades."
Nas Mémoires, De Gaulle, ao contrário,
de De Gaulle cita a opinião do Maj. Gehring, regis-
trada em Abbeville, diário histórico da
divisão Blümrn, que guarnecia o posto
Heróico e valoroso, ou nada especial é avançado de Abbeville. "No dia 28 de
o comportamento de De Gaulle, em maio, o inimigo atacara-nos com pode-
Montcornet e depois em Abbeville? rosas forças blindadas. Dominada a de-
fesa antitanques, nossa infantaria foi
Lacouture: "Dono de admirável cora- cedendo terreno... Há enormes baixas...
gem física, Charles De Gaulle não de- Quase todos nós vimos morrer colegas
monstrou possuir, no campo de bata- que nos eram muito caros..."
lha, aquele dom de clarividência e de in-
venção que, ao comandar 1.000 ou 300
mil homens, fazem de um general um A mordida do inseto
Masséna ou um Romrnel".
Le Crapouillot: "Ele conquista várias USe a ofensiva de De Gaulle contra o
plantações de nabos e faz 130 prisionei- flanco meridional tivesse sido tão forte
ros. No entanto, sua unidade deu provas a ponto de se fazer sentir também no
de valor digno de elogios". quartel-general de Rundstedt, a reação

37
autônoma, e o Gen. Giraud lhe dirige uma violentíssima "arenga",
na presença de todos os oficiais. Nos primeiros meses de 1939, o co-
ronel "Motor" passa a comandar as forças mecanizadas do 59 Exér-
cito do Gen. de Lattre de Tassigny, na Baixa Alsácia. No dia 31 de
agosto, as "profecias" de De Gaulle se tornam realidade: as tropas
nazistas atacam a leste. Objetivo: Polônia. Os aliados não estão
preparados para intervir em socorro dos corajosos poloneses que,
espremidos entre a Alemanha e a U.R.S.S. (pacto Hitler-Stalin),
se rendem em apenas duas semanas. Só resta declarar guerra à Ale-

dos chefes militares alemães teria sido mal: os carros blindados conseguiram
a de ordenar uma contra-ofensiva. Mas, alcançar novamente nossas linhas, mas
a respeito do impacto causado pelo a infantaria, abandonada à sua sorte, so-
ataque de De Gaulle contra o posto freu perdas sensíveis. Alguns consegui-
avançado dos alemães, somos levados a ram reunir-se a nós, e narraram sua
recordar a frase de Johnson: 'Uma odisséia. Outros foram feitos prisionei-
mosca, senhor, pode morder um majes- ros. O resto do regimento sustentou um
toso cavalo e fazê-lo estremecer. Mes- vigoroso combate sob o comando do
mo assim, a mosca continua sendo um Cel. Le Tacon, salvando assim a própria
inseto, e o cavalo continua sendo um honra. Este doloroso episódio tornou
cavalo'. "Pelas circunstâncias e com as De Gaulle muito pouco simpático"
forças de que dispunha, é pouco prová- (Raoul Salan, Mémoires - Fin d'un
vel que De Gaulle tivesse conseguido empire, - "Memórias - Fim de um
infligir aos alemães alguma derrota Império" -, Presses de la Cité, 1970).
mais perigosa que a mordida de um in-
seto ..." (Alistair Horne, Como se Perde
uma Batalha, Mondadori, 1970).
Os números
Raoul Salan:
"DEIXOU MASSACRAR A da tragédia
INFANTARIA"
As perdas da Batalha da França:
"Na divisão, ninguém nutria particular Alemães: 27.074 mortos, 111.034 feri-
estima por De Gaulle. No dia 25 de dos, 18.384 desaparecidos. Franceses:
maio, algumas de nossas unidades ha- 90.000 mortos, 200.000 feridos, 1.900.000
viam sido postas à disposição da 4' Di- prisioneiros e desaparecidos, números
visão Blindada, comandada precisa- aproximados. Ingleses: 68.111. Belgas:
mente por De Gaulle, que delas preci- 23.350. Holandeses: 9.779. Baixas· de
sou nos dias 28 e 29 de maio para a ope- material aéreo: Luftwaffe: 1.284. RAF:
ração de Abbeville. A coisa acabou 931; franceses: 560 (aproximadamente).

38

, ., II j, I li .11 1111 1 U
manha (3 de setembro). E assim começa a drôle de guerre, a estranha
guerra na frente ocidental. Durante todo o inverno de 1939-40,os
contendores se enfrentam, entrincheirados atrás da Linha Maginot
e da Linha Siegfried, praticamente sem se moverem. Na França,
De Gaulle é um dos poucos a compreender os verdadeiros ensina-
mentos da tragédia da Polônia e se bate, mais que nunca, em favor da
imediata formação de corpos mecanizados autônomos - a França
dispõe de cerca de 3 mil carros blindados, quase tantos quantos pos-
sui a Alemanha, mas mal distribuídos entre os outros vários corpos e

Os despojos de guerra apreendidos pe- muito bem. Mesmo após alguns anos, o
los alemães foram muito elevados: governo de Vichy procurava atribuir a
(7.000 canhões franceses de 75mm, responsabilidade da derrocada francesa
modelo da I Guerra Mundial. (Alistair ao governo da 111 República, por não
Horne, ob. cit.). haver este fornecido ao exército, além
de outros meios, também carros blinda-
dos pesados. Esses generais derrotados,
Shirer: As razões alguns dos quais diretamente responsá-
veis pela guerra com os meios blinda-
dos, ajudaram e favoreceram a difusão
de uma derrota da tese sustentada por Vichy, sempre
apoiada por testemunhas pouco con-
vincentes". (William L. Shirer, The Co/-
"De todos os mitos que, em nossos dias,
/apse 01 lhe Third Republic, - "O Colap-
ainda circulam a respeito do exército
so da IH República" -, Simon & Schu-
francês de 1940, um dos mais fantásticos
ster, New York, 1969).
e, ao mesmo tempo, dos mais aceitos
universalmente como verdadeiro é o
que apresenta as forças francesas como
muitíssimo inferiores às alemãs, no to-
o ÚLTIMO ENCONTRO
cante aos carros blindados pesados. COM PÉTAIN
Segundo a documentação colhida até
o fim da guerra, este mito se dissolve
como uma bolha de sabão. A verdade De Gaulle: "Saudei em silêncio o Mal.
é que o exército francês possuía mais Pétain que estava jantando na sala. Ele
carros blindados pesados que a Alema- me apertou a mão, sem dizer uma pala-
nha e que a maior parte dos carros fran- vra. Nunca mais iria revê-lo. Uma tor-
ceses eram melhores que os alemães. rente o arrastava a um destino fatal!
O fato é que os franceses não estavam Toda sua carreira se resumia num lon-
capacitados a servirem-se deles, apesar go esforço de mortificação. Demasiado
dos ensinamentos do Gen, De Gaulle. altivo para envolver-se em intrigas,
Os alemães, ao contrário, o sabiam nutria dentro de si a paixão pelo domí-

39
com funções de apoio. Toda sua insistência junto ao presidente da
República, Lebrun, quando este visita a frente alsaciana, torna-se
inútil. Inútil também o memorando L 'avênement de la Force Mécani-
que, - "O Advento da Força Mecânica" - que, no dia 24 de janeiro
de 1940, o obstinado coronel envia a oitenta personalidades civis e
militares. Nele De Gaulle retoma as principais teses de Vers l'Armée
de Métier, atualizadas pelos ensinamentos dos fatos ocorridos na
Polônia. A advertência de De Gaulle é muito simples: "Não nos
iludamos". E no entanto a França se ilude de estar em segurança

11 I m i m ; Im f

nio, alimentada pela consciência do ·CHURCHILL A DE GAULLE: /

próprio valor. Por algum tempo, a glória


militar lhe prodigalizara suas amargas "Sois O homem do destino"
carícias, não conseguindo, porém, sa-
tisfazê-lo. E eis que, de repente, no oca- Churchill encontra De Gaulle pela pri-
so de sua vida, os acontecimentos ofere- meira vez em Londres, no dia 9 de ju-
ciam a seu orgulho a suspirada ocasião nho. Dois dias depois o revê durante a
de se manifestarem sem limitação algu- conferência dos Aliados, em Briare, e
ma. Mas havia uma condição: aceitar a faz o seguinte comentário: "Jovem e
derrota como pedestal de sua própria enérgico, causou-me uma impressão
ascensão e honrá-la com sua própria muitíssimo favorável". No dia 13 de ju-
glória" (Memórias de Guerra, oh. cit.). nho, encontram-se novamente, no final
da conferência de Tours: "Estava firme,
"De Gaulle impassível, imóvel, na entrada. Ao sau-
dá-lo, eu lhe disse: '0 homem do desti-
no!' Ele nem pestanejou". (Extraído de
é ingrato A 11 Guerra Mundial).

e vaidoso" A união Anglo-Francesa


Nos primeiros meses de 1940, Pétain Em Londres, no dia 16 de junho, quei-
disse ao Gen. Spears, braço direito de ma-se o último cartucho para tentar
Churchill: HDe Gaulle julga saber tudo salvar a França: a União Anglo-France-
o que concerne à arte da guerra. A vai- sa. Os dois Estados tornar-se-iam uma
dade o leva a pensar que a estratégia única entidade. Assim, a França conti-
não tem nenhum segredo para ele. No nuaria a viver como nação.
entanto, eu lhe afirmo: ele não é somen- Churchill: "Minha primeira reação foi
te um vaidoso mas também um ingrato" favorável... pelo menos, não me opus à
(Claude Paillat, L 'Échiquier d'Alger, - idéia. Pelo contrário, abandonei-me aos
HO Estrategista de Argel" -, Laffont, impulsos generosos que, no momento,
1967). galvanizavam nossa vontade..."

40

NI
atrás de sua Linha Maginot, ao longo da fronteira com a Alemanha.
Mas, em março de 1940, dia 21, em conseqüência do fracasso da
expedição aliada na Noruega, cai o governo Daladier e Paul Reynaud
se torna o presidente do Conselho. De Gaulle corre a Paris, certo de
poder, finalmente, obter um cargo de primeira linha entre os esca-
lões que dirigiam a guerra. Mais uma desilusão: emaranhado nas
alquimias parlamentares, Reynaud é constrangido a dar a Daladier
a pasta da Guerra e Daladier não quer, absolutamente, ouvir falar
em De Gaulle: "Se ele entrar, eu saio", diz categoricamente. No iní-

t I 2 I

De Gaulle: "Percebi logo que a grandio- SPEARS: UYinha medo que


sidade do projeto não admitia rápida Weygand o prendesse"
execução. No entanto, ele poderia pro-
porcionar ao Sr. Reynaud um argumen- O Gen. Spears afirma que, na noite an-
to para resistir frontalmente aos minis- terior à fuga, encontrou HDe Gaulle
tros." Na realidade, a proposta apressou encostado numa coluna. Evidentemen-
a queda de Reynaud, porque o gabinete te, a longa espera enervara-o. Estava
e os parlamentares franceses viram nes- muito pálido. Murmurou-me que pos-
se projeto uma tentativa da Inglaterra suía boas razões para crer que Weygand
para se apossar do império colonial quisesse prendê-lo. Disse que havia um
francês. navio fundeado no porto e que era in-
dispensável para ele, De Gaulle, poder
passar a noite a bordo daquele navio,
A fuga para Londres pois somente assim sentir-se-ia seguro"
(Edward Loúis Spears, The Fall ofFran-
ce, - HA Queda da França" -, Ed.
De Gaulle: "Altas horas da noite, eu me Heinemann).
dirigi ao hotel onde se hospedava sir
Ronald Campbell, embaixador da In- WEYGAND: "Minhas preocupa-
glaterra, e lhe comuniquei minha inten- ções eram bem outras"
ção de partir para Londres. O Gen.
Spears, intrometendo-se na conversa, "Mandar prender De Gaulle, eu? Mas
declarou que me acompanharia. Man- no dia 16 de junho de 1940 eu ainda es-
dei avisar o Sr. Paul Reynaud, que me tava lutando! Dada a situação particu-
entregou 100 mil francos, sacados dos larmente difícil de nossas tropas, tinha
fundos secretos. Às nove horas do dia em mente coisas bem diferentes e não
17de junho, eu partia, junto com o Gen. sobrava tempo para pensar naquele jo-
Spears e o Ten. Courcel, no aparelho vem general-de-brigada !" (citado por
britânico que me havia levado à França Guy Raissac, Un Soldat dans la tourmen-
no dia anterior" (Memórias de Guerra, te, - HUm Soldado na tormenta" -,
oh. cit.). Ed. Albin Michel).

41
cio de maio, o exército nazista contorna a Linha Maginot, invadindo
a Bélgica, Holanda e Luxemburgo, e desbarata o exército francês. A
15 de maio, De Gaulle recebe o comando da 4~ Divisão Blindada e
no dia 23 é promovido a general-de-brigada, a título temporário. É
terrível o espetáculo que se oferece a seus olhos: os soldados france-
ses fogem desordenadamente da frente, aturdidos, sem armas. Mais
tarde escreverá que tais cenas teriam uma importância extraordiná-
ria para a decisão que tomaria um mês depois. A 27 de maio, a divi-
são de De Gaulle recebe a ordem de passar à contra-ofensiva para

III i [ II II

Rebelde, mas com soldo A versão de De Gaulle


Entrevistado por Henri Amouroux a
"Sem pretender ofuscar a nobreza de respeito do comportamento de sua mãe
espírito de Charles De Gaulle, quere- nos dias da queda da França, o general
mos ressaltar aqui, de passagem, que declarou: "Sim, minha mãe ficou saben-
partira para Londres com explícitas ga- do do meu apelo na própria noite do dia
rantias de ordem pessoal, fruto exclu- 18, pelo vigário da cidade. E ela disse:
sivo de seu espírito prático. Os ingleses 'Assim está bem! Reconheço meu Char-
deviam pagar-lhe o soldo condizente leso Está absolutamente seguro daquilo
com seu grau" (Mário Costa, ob. cit.). que deve fazer'. Morreu poucas sema-
nas depois, dizendo que oferecia os so-
frimentos pelo bom êxito de meu em-
A morte da mãe preendimento" .

Enquanto De Gaulle voava para Lon- Por que os ingleses escolheram


dres, sua mãe agonizava na Bretanha. De Gaulle
Segundo Galante (oh. cit.}, à notícia de
que um general francês havia declarado Por que Churchill e o governo inglês
pela Rádio de Londres que era preciso concederam crédito imediato àquele
continuar a guerra, ela teria orgulhosa- obscuro general de duas estrelas, que
mente exclamado: "Conheço muito ninguém conhecia? Lacouture: "Porque
bem esse general. É meu filho!" durante as conversações de Tours se
Mme De Gaulle faleceu no dia 16 de estabeleceu uma devoradora cumplici-
julho de 1940, e seu túmulo, citando dade entre De Gaulle e Churchill...
ainda Galante, se torna o centro de con- Além disso, porque o Gen. Spears con-
tínuas peregrinações. "Esta estória não venceu o primeiro-ministro inglês que
é verdadeira - replica Lacouture (oh. De Gaulle é o precursor, em Londres,
cit.} - e há muito tempo, em Epinal, se de um 'verdadeiro' governo Reynaud-
tem o cuidado de não colorir de modo MandeI e por isso é necessário aplainar-
tão grosseiro a iconografia histórica!" lhe o caminho".

42
retardar o avanço inimigo. Os carros franceses rompem as linhas
avançadas dos alemães e penetram profundamente, primeiro em
Montcornet e depois em Abbeville, fazendo cerca de quinhentos
prisioneiros, É uma das poucas vitórias de certa importância, conse-
guida pelas tropas francesas. A 15 de junho, Reynaud modifica o
gabinete e nomeia De Gaulle Subsecretário de Estado para Assuntos
de Guerra. Mas é muito tarde para mudar qualquer coisa. No gover-
no, o neo general se encontra no dever de combater uma guerra per-
dida desde o início, contra uma maioria que já a considera definiti-

Pretendiam fazer dele o Lawrence naud e MandeI se recusavam a abando-


nar o país. Churchill decide então que
da Arábia francês Spears deveria expatriar De Gaulle"
(Shirer, ob. cit.).
"Churchill afirma que é obra sua a pri-
meira Resistência Francesa, encabeça- E De Gaulle tirou proveito
da pelo Gen. De Gaulle. Sob esta forma, da situaçAo
a Inglaterra pode ainda esperar conser-
var um soldado continental. Em 1917,
"O desejo de continuar em casa, dos
os árabes revoltados a haviam ajudado
chefes políticos e militares, ajudou De
a triunfar sobre o Império Otomano,
Gaulle a constituir o movimento dos
sabotando, sob as ordens do Cel. Law-
franceses livres, apresentando aspec-
rence, os trens turcos. Não poderia De
tos especificamente gaullistas. Na reali-
Gaulle tornar-se o Lawrence da 11
dade, o movimento poderia ter-se de-
Guerra Mundial? (Fabre-Luce, ob. cit.).
senvolvido em direções totalmente dife-
rentes, se homens políticos influentes,
NENHUM OUTRO como o Preso Lebrun, Reynaud, Herriot,
ou MandeI, tivessem ido a Londres para
participar do comando da Resistência.
QUERIA PARTIR... Mas esses não tinham a possibilidade de
se mover ou, simplesmente, não quise-
Depois de entrar em contato com Man- ram partir. O único político de alguma
deI, Reynaud e De Gaulle, "Spears importância que teria desejado 'unir-se'
telefonou a Churchill para informá-lo a De Gaulle foi o ex-ministro da Aero-
sobre a situação. Ambos concordaram náutica durante os governos da frente
em reconhecer que De Gaulle não po- popular, Pierre Cot, mas o general se
deria realizar muita coisa se permane- recusou a aceitar sua colaboração. Cot
cesse na França. Quase não era conhe- era muito 'conhecido' na França como
cido pela população e, politicamente, o homem que, aparentemente, havia
não tinha força nenhuma. Mas não exis- e arruinado a aeronáutica militar fran-

tia outro à disposição, visto que Rey- cesa' "(Alexander Werth, ob. cit.).

43
vamente comprometida e deseja o armistício. Em particular Pétain,
vice-presidente do Conselho desde 19 de maio, e Weygand, genera-
líssimo, isto é, comandante-chefe das tropas francesas. De Gaulle
tenta, inutilmente, fazer prevalecer a tese da luta até o fim. Voltando
de uma missão em Londres, no dia 16 de junho, De Gaulle é infor-
mado de que Reynaud pediu demissão e de que o presidente da Re-
pública encarregou Pétain de formar o novo governo. É a porta aber-
ta para a capitulação. De Gaulle consulta Reynaud e os ingleses e
decide continuar a luta, de Londres. !I

Ui r li. : ~ IOOK, !I 11 [~r II 1.1 ,iR

mente que seja. No entanto, em nome


Assumi a deste mesmo bom senso, dois homens
responsabilidade (Pétain e De Gaulle) hão de tirar do
acontecimento duas conclusões exata-
da Franca

mente opostas, lançando-se em duas
aventuras igualmente irreais: Vichy e a
França Livre. Imediatamente após o
De Gaulle: "Todos aqueles que tinham desastre, num país aturdido pelo golpe
autoridade já haviam aceito a idéia de que o abateu de improviso, não passa
que a França deveria permanecer es- de grande estupidez a pretensão de
crava, desonrada... Considerando o pa- manter a ficção de um Estado francês
voroso vácuo causado pela renúncia independente. Estupidez igual é a de
geral, minha missão se me apresentou continuar a guerra ao lado dos ingleses,
clara e terrível a um só tempo: naquele que também estão, por sua vez, amea-
momento, o pior de toda a história da çados por uma queda idêntica à dos
França, cabia a mim assumir a respon- franceses. E se De Gaulle vence o desa-
sabilidade por ela. Mas sem a espada fio, é unicamente porque a Inglaterra
não existe a França. A tarefa mais ur- agüenta firme e porque os E. V.A. e a
gente, à qual me dediquei sem demora, U.R.S.S. são também envolvidos na
foi a de constituir uma força de com- guerra, enquanto Pétain, por longos
bate" (Memórias de Guerra. oh. cit.). anos, segue o velho sonho da direita
integralista, a saber, condenar os fran-
ceses a bater no peito, jejuar e fazer pe-
DUAS APOSTAS nitência para expiar as próprias culpas"
(François Fonvieille-Alquier, Les Fran-
cais dans la Drôle de Guerre, - "Os
MALUCAS Franceses na Divertida Guerra"
Laffont, 1971).
••A França está derrotada, invadida,
ocupada. O bom senso aconselha a ad- o Gen. De Gaulle durante
mitir tal estado de coisas, por mais opri- a viagem a Moscou em 1944.

44

~I
18 DE JUNHO DE 1940. Dos estúdios da BBC de Londres, um desco-
nhecido general francês fala a seus compatriotas: "Nossa derrota é
definitiva? Não! Eu, Gen. De Gaulle, convido oficiais e soldados
franceses a entrarem em contato comigo. Aconteça o que acontecer,
a chama da Resistência Francesa não se deve apagar. E não se apa-
gará!" Com dificuldade, a mensagem alcança o litoral francês. É
ouvida menos pelo povo do que pelos serviços secretos do governo
de Pétain - o "governo de Vichy", nome da localidade onde se
instalou. No momento, ninguém tem tempo de se ocupar com o

12 li

de junho de 1940 (nos dias 18, 19,22, 24,


18dejunho 26 e 28) e mais seis no mês de julho (nos
dias 2, 8, 13, 23, 24 e 30). De início, bem
de 1940 poucos a escutaram. Depois, dia após
dia, ela soube se impor, oferecendo a
milhões e milhões de franceses a cora-
De Gaulle: "Enquanto as palavras ir- gem de resistir e a esperança de vencer,
revogáveis eram transmitidas pelo rá- rompeu o anonimato, revelando seu
dio, eu sentia terminar uma vida dentro nome: Charles De Gaulle" (HL' Adieu
de mim. Aos 49 anos de idade, eu en- à De Gaulle"; número especial de Paris
trava na aventura, como um homem Match', novembro de 1970).
que o destino lançou para um terreno
desprovido de qualquer norma" ( Memó-
rias de Guerra, oh. cit.). o NOVO RASTIGNAC:
"NÓS DOIS, VICHY!"
Aarma do náufrago
"Disseram-nos que num certo 1Q de
De Gaulle abril, que naquele ano caía no dia 18 de
junho, um general havia chegado à
Inglaterra. E este general lançou, de
e o rádio Londres, um apelo aos franceses. Mas
quantos o ouviram? Apenas um fran-
Em 1940, De Gaulle possuía uma só cês entre um milhão. 'Nós dois, Pa-
arma, o rádio. "Imediatamente com- ris!' ~ exclamou Rastignac, persona-
preendi que devia servir-me dele. Como gem imortal, porque nascido .da imagi-
havia predito a supremacia de um exér- nação de um escritor de gênio como o
cito de carros blindados, assim também foi Balzac. 'Nós dois, Vichy' - grita
tive a imediata intuição das vantagens com mais modéstia, sob o olhar protetor
que poderia obter através de um simples de Churchill, um general inventado por
microfone. Então, minha voz se fez ou- Pétain... Um general turista!" (Henri
vir durante a noite. Seis vezes no mês Jeanson, Le Crapouillot, n9 1, 1967-68).

46
"rebelde": Pétain se prepara para assinar a rendição aos alemães.
O armistício é firmado no dia 22 de junho, em Rethondes, perto de
Cornpiêgne, no mesmo histórico vagão-leito em que os alemães ha-
viam assinado a rendição de 1918. A França ficou dividida em zona
de ocupação, sob o domínio dos alemães, e zona livre, sob o governo
de Vichy. De Gaulle, em Londres, continua a movimentar-se acusan-
do Pétain e seus colaboradores de traidores. Não tarda a chegar a
resposta da França oficial ao "provocador": De Gaulle é rebaixado
a coronel, em seguida condenado a quatro anos de prisão por deso-


E.V.A. se referem a George Washing-
A mística de ton e à declaração da independência, ou
a U.R.S.S. se refere a Lenine e à revo-
trinta anos depois lução de outubro" (Herbert Lüthy,
A França Contra si Mesma -,11 Mulino,
1956).
Em quase todos os textos escolares fran-
ceses é ensinado que De Gaulle foi o
libertador da França. "Lendo esses Traidor
textos, tem-se a impressão de que toda
a França tenha se levantado como um
só homem, ao apelo de Charles De
e vendido
Gaulle" - escreve Mário Costa. "Tan- Para os jornais que "colaboram" com o
to é verdade, que uma pesquisa realiza- governo de Vichy, De GaulIe não é mais
da entre os garotos das escolas demons- francês, mas simplesmente um "traidor
trou a inocente persuasão de que o ge- sujo" .
neral expulsara os alemães do solo fran- Le Reveil du Peuple, 27-12-40: "Que sen-
cês, arrastando atrás de si também os timento o levou a desertar e trair? Só
ingleses e americanos." pode ter sido o espírito de lucro. prova-
velmente foi atraído pela oferta de di-
nheiro, a única possível para um país
De Gaulle igual a como a Inglaterra. Por isso, merece a
reprovação de todos os franceses autên-
Washington e Lenin ticos".
L'Oeuvre, 11-4-41: "Bem entendido, o
"Graças ao Gen. De Gaulle, a França ex-Gen. De Gaulle não é apenas um ho-
conseguira encontrar seu lugar no cam- mem que perdeu completamente o
po aliado. Todo ato e toda providência juízo, mas também um traidor, e da
da França deviam, necessariamente, pior espécie, porque sua traição é o re-
referir-se a De Gaulle e ao dia 18 de sultado de uma longa meditação e pre-
junho de 1940, mais ou me~os como os paração" (Marcel, Déat).

47
bediência (4 de julho), privado da cidadania francesa (24 de julho)
e, finalmente, condenado à morte por um tribunal militar (3 de agos-
to). Também na esfera política, a aventura de De Gaulle começou
mal. A maioria dos franceses está com Pétain, convencidos de que
o armistício seja o único meio de salvação para a França. E os que
desembarcam em Londres, apresentando-se nos escritórios da
França Livre de De Gaulle, não são, por certo, franceses importan-
tes: um punhado de desconhecidos, muitos judeus, alguns aventurei-
ros. Passado mais de um mês, a França Livre ainda não reunira mais

II

OS PRIMEIROS FRANCESES
Desertor LIVRES

ou Salvador? ANTES MORRER!


A partir do dia do Apelo, os primeiros
voluntários chegam à Inglaterra, usan-
do todos os meios possíveis: navios,
..A situação se torna paradoxal: os que aviões e até pequenos barcos de pesca.
haviam aprovado a derrota e talvez até De uma pequeníssima ilha do Atlântico,
colaborado um pouco para que ela Sein (2 mil metros de comprimento e
acontecesse, retinham nas mãos o poder 800 de largura), partem, nos dias 24 e
que ainda restava sob a bota nazista. E 26 de junho, exatamente 127 voluntá-
teriam condenado à morte à revelia - rios, quase toda a população masculina.
por deserção e traição - o próprio De A Ilha de Sein foi condecorada com a
Gaulle que, justamente em nome da Cruz da Ordem da Libertação, isto é, a
pátria, queria recomeçar a luta. Foi De Cruz dos compagnons. Dos 127 voluntá-
Gaulle um desertor ou o salvador da rios da ilha 32 não voltaram. Seu lema
honra nacional? Foi Pétain um traidor era: Kelcock mervel (Antes Morrer)!
ou o inábil ajustador dos destroços da
derrota? Diatribes de oficiais superio- A Ordem da Libertação, ordem de cará-
res, pertencentes à mesma classe social, ter estritamente militar, criada em
saídos da mesma casta e, de repente, Brazzaville no dia 16 de novembro de
postos em situação de rivalidade... Em 1940 pelo Gen. De Gaul1e, chefe da
todo caso o desertor De Gaulle, his- França Livre. Os "compagnons de De
toricamente, teve razão. Mas, como sua Gaulle" condecorados com a Cruz da
deserção se situa no interior da História, Libertação durante os cinco anos de
é difícil imaginar alguém mais engajado vida da ordem foram 1.030 homens, dos
e menos desertor do que ele ..." (A. quais 312 a receberam postumamente.
Van Parys, Les Déserteurs, - "Os De- A medalha trazia no verso a cruz de
sertores" - , Baland, 1971). Lorena e no anverso os dizeres:

48
de três mil homens! E, por sinal, os próprios ingleses põem obstácu-
los ao recrutamento, chegando freqüentemente a convidar os fran-
ceses recém-chegados a se alistarem nas fileiras do exército regular
britânico, em vez de se deixarem arre banhar por aquele "bando de
aventureiros". De Gaulle protesta violentamente contra semelhantes
intromissões e pressiona continuamente Churchill, pedindo-lhe car-
t,a branca para agir, apoio mais concreto e reconhecimento oficial.
E bem verdade que, até o momento, o primeiro-ministro inglês se
limitou a reconhecer De Gaulle como o "chefe dos franceses livres,

Patria servando, vidoriaD tulit e era sus- o manifesto da rebelião (que muitos
tentada. por um pequeno mastro ver- confundem, erroneamente, com o "pri-
de e preto, "as cores do luto e da es- meiro apelo"). rr A todos os franceses.
perança". De Gaulle era o Grão- Mes- A França perdeu uma batalha! Mas não
tre da Ordem. perdeu a guerra! Governantes mendi-
gos puderam capitular, cedendo ao pâ-
nico, esquecendo a honra, entregando o
Soustelle: "O Gaullismo não é
país à escravidão. Apesar disso, nada es-
De Gaulle, é o nlo do desespero" tá perdido. Nada está perdido porque
esta é uma guerra mundial. Existem, no
"O gaullismo nascente, em 1940, não ti- universo livre, forças imensas que
nha nem tempo, nem vontade de elabo- ainda não entraram em luta. Um dia,
rar uma doutrina. Não era nem sistema, tais forças hão de esmagar o inimigo.
nem partido. Era um estado de ânimo. É preciso que nesse dia a França parti-
Os franceses, esmagados no primeiro cipe da vitória. Então, ela reencontrará
instante pelo desespero causado pela sua liberdade e suagrandeur. Este é meu
queda e ruína do exército, reagiram ins- objetivo, meu único objetivo! Eis por-
tintivamente, dizendo: Não! Uma recu- que convido todos os franceses, onde
sa, eis o gaullismo de então... Quem era quer que se encontrem, a se unirem a
De Gaulle? Ninguém sabia e, para dizer mim na ação, no sacrifício e na esperan-
a verdade, nem se preocupava em sa- ça. Nossa pátria corre perigo de morte.
bê-lo" (Jacques Soustelle, Gaullismo, Lutemos todos juntos para salvá-la!
Ed. do Burguês, 1969). Viva a França! Gen. De Gaulle."

o manifesto . COM UM TRíPLICE MALOGRO


COMECA
Imediatamente após o apelo, De Gaulle
de Londres procura algum chefe de prestígio para
colocar à testa da Resistência France-
Dois dias após o célebre Apelo de 18 de sa, pois está disposto a retornar à som-
junho. foi afixado nos muros de Londres bra. Escreve a Weygand, telegrafa ao

49
onde quer que estes se encontrem, e que se unem a ele para lutar
pela defesa da causa aliada", mas não tem a mínima intenção de con-
ceder ao líder francês nenhum reconhecimento político. Por esse
motivo, durante os cinco anos de guerra, os dois homens freqüente-
mente chegam a uma situação crítica. "de todas as cruzes que fui
obrigado a carregar durante minha vida, a mais pesada foi a de Lore-
na", dirá mais tarde o primeiro-ministro inglês. Com efeito, De Gaul-
le escolhera como emblema a cruz de Lorena (com a haste transver-
sal dupla), recordando o estandarte de seu antigo regimento blin-

li

Gen. Noguês, comandante-chefe da De Gaulle: "Não é conhecido no plano
África do Norte, declarando-se disposto internacional. É preciso fazer com que
a servir sob suas ordens, ou sob as or-
H o conheçam!" Certa vez, o Gen. Spears,
dens de qualquer outra personalidade a "babá" inglesa de De Gaulle, desaba-
que desejasse encabeçar a resistência". fa: "Dê-me uma boa quantia de dinhei-
"De início, ninguém respondeu, e pas- ro, mil libras esterlinas, e lhe garanto
saram-se várias semanas antes que Ca- que em menos de seis meses De Gaulle
troux se unisse aos Franceses Livres. será manchete em todos os jornais do
Os outros 'procônsules' decidiram obe- mundo". Churchilllhe concede um cré-
decer ao governo de Bordéus, que logo dito de 500 libras para a publicidade.
se transformou no governo de Vichy. "Spears confiou a campanha a um agen-
Assim, De Gaulle começava com o que, te publicitário, chamado Richmond
na realidade, representava um tríplice Temple, mas De Gaulle apresentou sé-
malogro: não havia conseguido impedir rias objeções. Ele não queria publicida-
o armistício; não fora capaz de persua- de e, sobretudo, não queria saber de fo-
dir os chefes militares e civis do impé- tografias: Querem lançar-me no merca-
f

rio francês, particularmente os da Áfri- do como um sabonete' - dizia a seus


ca do Norte, a se unirem aos Franceses íntimos. Por fim, deixou-se convencer
Livres; e tinha à sua disposição na In- e, de muito mau humor, aceitou fazer
glaterra um número de homens ridicu- algumas poses para o fotógrafo de Tem-
lamente pequeno" (Alexander Werth, pIe" (P. Galante, ob. cit.).
Republica di un Uomo, ob. cit.).
A tragédia de Mers-EI-Kébir
o"sabonete" De Gaulle: "Deve-se reconhecer que,
devido à capitulação dos governantes
De Gaulle de Bordéus e devido à possibilidade de
futuras concessões de sua parte, a In-
Continua sempre a mesma, nos primei- glaterra podia temer que um dia o ini-
ros anos da guerra, a preocupação de migo conseguisse dispor de nossa frota,
Churchill por tudo quanto concerne a o que viria a se constituir em ameaça

50
dado de Metz. A cotação, já muito baixa, do chefe da França Livre
corre o risco de sofrer um colapso completo, por causa de dois in-
cidentes graves. O primeiro ocorre a 3 de julho: a frota inglesa do
Alm. Holland afunda a frota francesa de Gensoul, na baía de Mers-
el-Kébir, Argélia, para impedir que os navios franceses caíssem nas
mãos de Hitler. O armistício franco-alemão estabelecera que a frota
francesa permaneceria estritamente neutra e jamais participaria de
operações militares contra seus ex-aliados. Mas os ingleses não
confiaram em Hitler e preferiram ter sua retaguarda em segurança.

ti LI 311

mortal para ela. Apesar da dor e da có- MURPHY: "Assim os ingleses


lera que sentimos, eu e meus compa- prejudicaram De Gaulle u
nheiros, pelo drama de Mers-el-Kébir,
pelos métodos dos ingleses e por suas
fanfarronices, cheguei à conclusão de Robert Murphy, homem de confiança
que a salvação da França estava acima do Preso Roosevelt na Europa, agente
de tudo, inclusive acima da sorte de "secreto" do Gen. Eisenhower: "Em
seus navios de guerra, e que o dever suas memórias, Churchill defende, da
consistia em continuar a luta." (Memó- melhor maneira possível, a ação inglesa
rias de Guerra. ob. cit.), em Mers-el-Kébir. No entanto, minha
impressão, baseada na reação que na-
quela época presenciei em Vichy, é de
Churchill: que o Gen. De Gaulle, em suas mernõ-
rias, tenha avaliado de modo mais exato
"DEVíAMOS FAZÊ-lO" aquilo que ele define como 'O deplo-
rável acontecimento'. Depois de exami-
nar as provas aduzidas na exposição de
"Foi uma decisão odiosa, a mais difícil Churchill, juntamente com as revela-
e .inatural em que me vi envolvido. Por ções de após-guerra publicadas na
outro lado, a salvação do Estado e a França, De Gaulle conclui, como eu
sorte de nossa causa estavam em jogo. concluíra então, que o ataque inglês fo-
Jamais ação alguma tinha sido tão ne- ra inútil e custara muito mais do que
cessária para a vida da Inglaterra... as vantagens conseguidas. Talvez tenha
Apesar de tudo, o gênio da França per- sido esse o erro mais grave cometido
mitiu que o povo compreendesse todo pelos ingleses durante a guerra, pois,
o significado de Mers-el-Kébir. O Gen. com o tempo, minou a influência dos
De Gaulle, a quem eu havia pedido uma moderados filo-ingleses em Vichy e a de
opinião, conduziu-se admiravelmente, De Gaulle em Londres" (Un Diplomati-
e a França, libertada e restituída à sua co in Prima Linea, - "Um Diplomata
grandeza, aprovou a conduta do gene- na Linha de Frente" -, Mondadori
ral" (Churchill, oh. cit.). Editore, 1967).

51
Na França é incomensurável a indignação contra o "ataque trai-
çoeiro" da "pérfida Álbion". E De Gaulle, "servo dos ingleses e la-
caio de Churchill", que se rebaixa a justificar pelos microfones da
B BC aquela trágica manobra, perde grande parte de seu prestígio,
que já está muito enfraquecido. Depois, a fim de resolver a sorte da
França Livre e também para escapar da tutela e do controle inglês,
De Gaulle decide tentar resolver a situação, partindo das colônias.
Desembarcará em Dakar, na África Equatorial Francesa, reunirá
em torno de si todas as forças rebeldes e, daquela nova capital "mo-

li;'; fi 111 I F

Absolutamente não
OPERAÇÃO DAKAR
é verdade!
De Gaulle: "Depois de haver deixado
o porto com meus poucos soldados e o o 'tutor' inglês de De Gaulle, o Gen.
Spcars, afirma em seu livro Pétain -
reduzido número de navios, eu me sen-
tia esmagado pela, grandeza do em- De Gaulle, Deux Hommes qui Sauveront
preendimento. Longe, na noite escura, la France C'Pétain - De Gaulle, Dois
sobre as enormes ondas que agitavam Homens que Salvarão a França", Pres-
o oceano, uma pobre nave estrangeira, ses de la Cité, Paris, 1966), ter vivido
sem canhões, com as luzes apagadas, minuto a minuto a aventura de Dakar,
carregava a sorte da França" (Memó- ao lado do Chefe da França Livre: "Em-
rias de Guerra. ob. cit.). bora De Gaulle tivesse, com muita co-
ragem, insistido em sua responsabilida-
de pessoal sobre aquela trágica humi-
Após a derrota, De Gaulle lhação, não creio que tenha perdido,
nem mesmo uma só vez, a fé na vitória
queria suicidar-se final. E jamais me ocorreu que pudesse
pensar em suicídio. Para o homem pro-
fundamente religioso que eu conheci
.,A derrota psicológica, a derrocada
em De Gaul1e, isso era absolutamente
sentimental pesam muito mais que um impossível" .
desastre militar. Poucos dias após o ma-
logro de Dakar, De Gaulle conversa Philippe De Gaulle: "Li que em certo
com René Pleven. Angustiado, ele abre momento meu pai teria pensado em sui-
o coração e confia ao amigo seu pen- cídio. Mas isto contrasta frontalmente
samento mais íntimo. Assalta-o dúvida com o homem, com a esperança que
atroz... O segredo lhe pesa na consciên- sempre o animou, com seu modo de
cia. De Gaulle quer livrar-se dele. 'Te- pensar".
nho pensado - confessa - sim, tenho
pensado em fazer saltar os miolos!' " René Pleven: "Nem por um segundo
(Tournoux, Jamais dit, ob. cit.). pensei que o Gen. De Gaulle tenha nu-

52
ral" da França, entrará efetivamente em guerra contra Vichy e a
Alemanha. Mas seus cálculos se mostram bem longe da realidade.
A guarnição de Dakar foi advertida em tempo (deve ter havido espio-
nagem ou delação em Londres), acolhe oS "libertadores' com tiros
de canhão, obrigando-os a se retirarem vergonhosamente. De Gaulle
está destruído. Segundo alguns biógrafos, ele teria, naquela hora,
pensado até em "fazer saltar os miolos". Mas não acabam aí suas
desventuras. Os próprios aliados pensam em se livrar dele - pois
já está comprometido demais - e tentam escolher qualquer outro

t I li I 11 III1 li 111] smlllll F1111 d J 711

trido a intenção de suicidar-se depois de ex-general traidor! Enquanto suas


Dakar", •aventuras' se limitavam aos monólo-
gos radiofônicos, é possível que as al-
Padre Lacoin, capelão militar da expedi- mas simples não se dessem conta, com
ção a Dakar: "Evidentemente, não pos- clareza, do perigo representado por
so excluir, de modo absoluto, que De aquele homem. Mas agora!" (Mareei
Gaulle tenha pensado em pôr fim a seus Déat, L 'Oeuvre, 26-9-1940).
dias, pois ninguém está capacitado a
fazer semelhante declaração a respeito "Para embolsar o dinheiro de seus pa-
de outro ser humano. Mas posso expor trões judeus, De Gaulle "derramou san-
as minhas recordações que - a mim, gue francês. Homem de Reynaud, fan-
pessoalmente - dão a certeza de que o toche de Churchill, ei-lo transformado
chefe dos Franceses Livres jamais, em agora em cão de Davi. Havendo já lar-
momento algum, pensou em adotar uma gado sua farda para substituí-la pela
solução desse gênero" (declarações libré inglesa, só lhe faltava abandonar
citadas por En ce temps-/à). aquele pouco de francês que, malgrado
seu, trazia ainda consigo: o nome. Mas
De Gaulle: "Os dias seguintes foram du-
agora fez isso também. Doravante, De
ros para mim. Sentia-me como um ho-
Gaulle se chamará Da Galiléia!" (Le
mem que tem a casa destruída pelo ter- Franciste, 23-6-1941).
remoto e que sente sobre a cabeça a
chuva de telhas caídas do teto que desa-
ba" (Memórias de Guerra).
A antipatia
General traidor e de Roosevelt
escravo dos judeus! Bem depressa firmou-se a desconfian-
ça de Roosevelt contra De Gaulle.
"Não sei se agora ainda resta algu fi Murphy escreve: "Transcorreram so-
francês que possa aplaudir os atos do mente alguns meses desde que o gene-

53
"cavalo de raça": o Gen. Weygand, por exemplo. Mas, para sorte
de De Gaul1e, Weygand recusa todos os convites que lhe fazem.
Além disso, o episódio de Dakar trouxe para o "rebelde" um inimigo
difícil e obstinado, o presidente americano Roosevelt. A América
ainda não está em guerra, mas já fornece todas as armas para a
Inglaterra e, na prática, se comporta como um beligerante. E pre-
tende impor suas vontades. Roosevelt deplora a guerra civil entre os
franceses, considera De Gaulle um indivíduo perigoso, que ambi-
ciona a ditadura. li


d 7I r II LI 1I I I I lU

ral difundira, pela rádio de Londres, o Alm. Muselier, acusado, com base 1
sua histórica denúncia contra o armis- num documento (mais tarde provado
tício franco-alemão. No entanto, Roo- como falso), de haver informado Vichy
sevelt, ao que parece, já havia decidido sobre a expedição a Dakar, em troca de
que não era necessário considerá-lo co- 2 mil libras esterlinas. De Gaulle afir-
mo fator importante para os assuntos ma em suas Mémoires que, imediata-
"
f ranceses.... mente, compreendeu tratar-se de uma
informação falsa do Intelligence Service
De fato, segundo Roosevelt, De Gaulle e que fez a seguinte declaração: "Dou
"iniciara em Dakar o que equivalia a 24 horas ao governo britânico para li-
uma guerra civil francesa, antepondo as bertar o almirante e dar-lhe satisfações.
próprias ambições aos interesses da Caso contrário, hei de cortar todas as
França e dos aliados. Nunca mais Roo- relações diplomáticas". O almirante
sevelt conseguiu livrar-se dessa descon- francês foi imediatamente solto e, para ,
fiança que, a partir daí, alimentou con- reabilitá-lo moralmente, foi até recebi- 1
tra a capacidade de julgamento e a do em audiência pelo rei da Inglaterra.
discrição de De Gaulle". Entretanto, Muselier, no livro De Gaulle
contre /e Gaul/isme COe Gaulle Contra
o Gaullismo", Paris, 1946), sustenta que
OCASO De Gaulle não reagiu com tanta pressa
nem com tanta firmeza, acusando-o, ,
~
realmente, de falta de lealdade. A se- ~

,i
MUSELIER guir, apresenta uma detalhada descri-
ção da sórdida atmosfera de intrigas, de !
t

fraudes e de jogo duplo que reinava, t
f
de início, no quartel-general de De t
A tentativa de Dakar falhou por culpa Gaulle: "Um odioso ambiente de Ges-
J
I
de uma "fuga" de notícias. Os gaullis- tapo e de basse-policei",
tas sustentam que a culpa cabe aos in-
gleses. Estes, por sua vez, acusam os
franceses. Realmente, no dia 2 de janei- o Gen. De Gaulle passa
ro de 1941, é preso pela polícia inglesa em revista as tropas.

S4

~ ,J '- I. I I, ; LII til l U I I I. i.il j .r . ~ I I .'.L.'__" ,; ".1 .r. , j ,._ • I j ,1,,,.,, .J,,, IJ J,
DERROTADO NO CAMPO 'MILITAR, Charles De Gaulle tenta refazer-se
no campo político. No dia 27 de outubro - três dias depois de Pétain
haver-se encontrado, em Montoire, com Hitler e ter sido constran-
gido a transformar o armistício em colaboração com os nazistas -
De Gaulle publica na África a Carta de Brazzaville, na qual imprime
características políticas à França Livre: "Não mais existindo um
governo propriamente francês, porque Vichy é inconstitucional,
torna-se necessário um novo poder que assuma a responsabilidade
de dirigir o esforço francês na guerra. As circunstâncias me impõem

11 1\ j lU li! L 1 1 I

ChArles-o-libertador ataca
Churchill tenta em duas frentes

pôr De Gaulle "Em Londres, De Gaulle enfrenta a


guerra em duas frentes. A primeira, es-
petacular mas pobre, é contra a Alema-
a pique nha. Faltam-lhe tropas, meios de com-
bate e dinheiro. A segunda frente, se-
creta e difícil, é contra seus aliados.
De início, Churchill não está convenci- Realmente, o governo britânico tolera
do de ter em mãos, com De Gaul1e, a o general, mas não aceita o homem po-
carta decisiva e procura convencer, por lítico em potencial. No entanto, De
todos os meios, algum outro a assumir Gaulle, por seu turno, presume ser todo
a responsabilidade pela rebelião contra o Estado francês e vai seguindo tranqüi-
os alemães. Ele próprio e várias pessoas lamente seu caminho, pouco se impor-
de sua confiança, obedecendo a suas tando com os estrilos provocados em
determinações, fazem inúmeras sonda- Londres e em Washington por suas de-
gens junto ao Gen. Weygand. Este não cisões repentinas e sucessivas" (G. Suf-
responde. Houve também algumas fert, C. De Gaulle 1890-1970, Les Edi-
tentativas de acordo com Pétain. A tions du Group Express, 1970).
"abertura" para os homens de Vichy
não são as únicas tentativas feitas por AS TEMPESTUOSAS
Churchil1 para substituir De Gaulle por
alguém "mais sólido". De fato, afirma
RELAÇÕES
ao Gen. Catroux, quando este apenas CHURCHILL-DE GAULLE
chegara da Indochina: HQ movimento
da França Livre tem necessidade de um De Gaulle: As penosas e ásperas dis-
H

líder e penso que o senhor deveria as- cussões havidas freqüentemente entre
sumir o posto" (Catroux, Dans la Batail- mim e Churchill, causadas pela diferen-
le de Méditerranée, - "Na Batalha do ça de caracteres, por alguns interesses
Mediterrâneo" - , Juillard, 1949). contrastantes de nossos respectivos paí-

56
este dever sagrado e eu o aceitarei". Sem falar de "governo", coisa
que Churchill e Roosevelt jamais aceitariam, De Gaulle constitui
um Conselho de Defesa do Império e se autoinveste da legitimidade
e da soberania francesa que Pétain "entregou" nas mãos de Hitler.
A seu lado, começam a se alinhar algumas colônias francesas: depois
do Chade (26 de agosto), Camarões, Congo Francês e, por fim, Ga-
bão (6 de novembro). Além disso, finalmente, estão afluindo para a
França Livre algumas pessoas de certo prestígio. Afora o Alm. Muse-
lier, que já se encontra em Londres, chega da Indochina o general-

ses, pelas SOVIDlces perpetradas pela


Inglaterra em prejuízo da França ferida,
influíram no meu comportamento nas
Esfolado
relações com o primeiro. ministro in- •
glês, mas não no meu juízo" (Memórias VIVO
de Guerra, ob. cit.).
Churchill: "Tive com ele dificuldades
contínuas, numerosos e ásperos antago- "Creio que o orgulho constituía o fun-
nismos. Houve, no entanto, um elernen- damento de seu caráter. Sentia a deson-
to dominante em nossas relações. Eu ra da França com uma intensidade que
não conseguia considerá-lo como o re- poucos homens são capazes de atingir,
presentante de 'urna França prostrada e e assumiu a desonra nacional como
prisioneira, e muito menos de uma Cristo, segundo a fé cristã, assumiu os
França que tivesse o direito de decidir pecados do mundo" - assim escreveu
livremente seu futuro. Sabia que não a esposa do Gen. Spears, a escritora
era amigo da Inglaterra. Mas nunca dei- americana Mary Borden (Costa, ob.
xei de reconhecer nele o espírito e as cit.).
concepções que, através das páginas
da História, a palavra França jamais "Naqueles dias de 1940, De Gaulle pa-
cessara de revelar. Compreendia e recia um esfolado vivo, irritando-se ao
admirava, embora seu procedimento menor contato, mesmo de amigos bem
arrogante me incomodasse. Por ironia, intencionados. Tinha vontade de mor-
tem-se afirmado que ele pensava ser a der, como um cão atropelado morde,
encarnação viva de Joana d' Are ... Isso em sua agonia, quem o vai socorrer..
não me pareceu tão absurdo como se Seu único prazer, seu consolo, resumia-
possa imaginar. Clémenceau que, se- se em odiar. E odiava o mundo inteiro.
gundo o que se dizia, era outro de seus Apresentar-se diante dos ingleses para
termos de comparação, era um estadis- implorar auxílio, com a vergonha de sua
ta muito mais sábio e mais esperto. Mas pátria estampada no rosto e gravada no
ambos davam a impressão de serem coração sempre foi para ele, a maior
franceses invencíveis" . tortura."

57
de-divisão Catroux; da França o escritor André Malraux, o arqueó-
logo Jacques Soustelle e René Pleven, futuro presidente do Conselho
da IV República. Churchill evita reconhecer oficialmente o Conselho
de Defesa do Império, pois não quer tornar irreparável a ruptura
com Vichy (com o qual, ao que parece, mantém contatos secretos),
e não tenciona descontentar os americanos, ainda hostis a De Gaulle.
Além do mais, sempre pensou em servir-se do general como de um
"sapador" militar, mas não alimenta nenhum interesse em vê-lo
transformar-se de súbito num homem político que pretende falar e

de definir como "urna grande tragédia


ACRISE DO fratricida". Durante mais de um mês
ORIENTE MÉDIO "se verificaram violentos combates en-
tre ingleses e Franceses Livres de uma
parte e franceses de Vichy de outra. Os
A mais violenta crise entre De Gaulle primeiros sofreram baixas de 4 mil ho-
e os ingleses explode no Oriente Médio, mens, entre mortos e feridos, e os se-
na primavera de 1941. Para proteger seu gundos, de 6 mil" (Werth). Por fim,
exército da África, os ingleses intervêm Dentz se rendeu, mas os ingleses, e es-
na Síria e no Líbano. De Gaulle se en- tes, segundo o acordo de São João
furece, se agita e obtém permissão para d' Acre, permitiram-lhe voltar à França,
tropas francesas participarem dos com- com soldados e equipamentos. De
bates. É a primeira vez que atira tropas Gaulle protestou inutilmente. Conse-
francesas contra os próprios franceses. guiu apenas "conquistar" 127 oficiais
Mas - afirma ele - é este o preço que e entre 3 a 6 mil soldados para as fileiras
se deve pagar pela independência (G. dos Franceses Livres. Em seguida, sus-
Suffert, ob. cit.). tenta que se não fosse a "sabotagem"
dos ingleses, teria seguramente ..con-
vertido" quase todas as tropas de Dentz.
"Uma grande "Esta é uma das afirmações mais duvi-
dosas de De Gaulle - escreve Worth -
tragédia fratricida" pelo fato de minimizar não somente o
prestígio que Pétain ainda mantinha en-
tre os soldados de Vichy, mas também
No início da campanha, De Gaulle es- a grande relutância da maior parte dos
perava conquistar os dois países sem franceses em 'deixar a casa', especial-
desferir um só golpe. Mas o Gen. Dentz mente no momento em que uma vitória
e seus 30 mil homens decidiram perma- inglesa parecia ainda muito incerta. Em
necer fiéis a Vichy. De Gaulle foi cons- todo o caso, o grave episódio exasperou
trangido a recorrer às armas. Aconte- ainda mais o ânimo de De Gaulle con-
ceu o que mais tarde o general haveria tra os ingleses" .

58

. I i io I. Ji j ; _.1. .1.1 I I ;..•,. I 'U-!".l~' _, •. j,,, ' ',-I.. '1J,j - -;1. , ,~


decidir em nome da França. E, no entanto, é exatamente isso o que
De Gaulle deseja: HEu sou a França!", proclama ele, e exige ser
mantido a par de todas as operações que dizem respeito aos territó-
rios franceses. Inclusive os que ainda estão sob a autoridade de
Vichy. Assim, quando, em junho de 1941, as tropas inglesas atacam
o Líbano e a Síria - protetorados franceses - para impedir que os
nazistas utilizem seus aeroportos contra o Egito, De Gaulle insiste
em fazer com que alguns destacamentos da França Livre participem
das operações. Mesmo que devam combater contra outros franceses.

E saberá tirar muito proveito de tal


o PEÃO STÁLIN situação.

o ataque de Hitler contra a Rússia abre A Franca de Pétain


uma nova porta para De Gaulle, a da •
U.R.S.S. que, finalmente, rompe rela-
ções diplomáticas com o governo de Vi- Durante os primeiros meses do armistí-
chy, onde até o momento havia manti- cio quase todos os políticos, e com eles
do seus representantes. No dia 24 de a grande maioria da opinião francesa,
junho, De Gaulle se apressa em decla- pareciam convencidos de que Hitler
rar, sobrepujando seu feroz anticomu- haveria de vencer a guerra e que a Fran-
nismo: "Sem aceitar atualmente uma ça teria agido bem ao se adaptar o me-
discussão a respeito dos vícios e crimes lhor possível à nova situação. "Prevale-
do regime soviético, devemos procla- cia a convicção de que Pétain se encon-
mar que estamos sinceramente com os trava na melhor das posições para limi-
russos, uma vez que eles combatem os tar ao mínimo os prejuízos da derrota. O
alemães". No dia 12 de agosto, De regime de Vichy, constituído no mês
Gaulle manda perguntar ao embaixador de julho, foi apoiado com todo o entu-
soviético em Londres, Maiskíj, se a siasmo pela direita, servido com espíri-
U. R.S.S. "pretende declarar publica- to de oportunismo pelo centro e até por
mente sua intenção de restaurar a inde- uma parte da esquerda. Para os da di-
pendência e a autoridade da França, reita e particularmente para Charles
compreendendo nisso também, se pos- Maurras e a Action Française, que se
sível, a integridade territorial das pos- constituíram em ideólogos oficiais de
sessões francesas. O governo soviético Vichy, a 'revolução nacional' de Pétain,
acolhe seu pedido no dia 24 de setem- com sua curiosa mistura de fascismo
bro" (de La Gorce, ob. cit.). Para De e de pieguismo banal, estilo 'velha Fran-
Gaulle é um grande sucesso, pois isso ça', transformava-se numa vingança
quer dizer que conseguiu mais um peão contra a República e·, de modo parti-
para utilizar em suas difíceis partidas cular, contra a frente popular. Com
com os aliados ingleses e americanos. poucas exceções, o governo de Vichy

59
E, após a vitória, continua a protestar até que a bandeira francesa
também é hasteada nos edifícios públicos. Em seguida, nos dias 25
e 26 de julho, dirige-se a Damasco e Beirute, onde é acolhido em
triunfo. Evidentemente, Churchil1, que procura eliminar a influên-
cia francesa no Oriente Médio, - já pensa no petróleo e no após-
guerra! - se enfurece, mas, por fim, deve engolir esse bocado amar-
°
go. E não será o último que De Gaulle fará mandar goela abaixo.
Com efeito, a 24 de setembro, o chefe da França Livre transforma o
Conselho de Defesa do Império em Comitê Nacional, uma forma

] III [I rn

foi apoiado pela hierarquia eclesiástica fazer-nos a primeira descrição de De


e pela elite conservadora da França. Gaulle... Depois dele, outro enviado
Na prática, toda a Academia Francesa, chegou de Londres, um herói de nosso
exceto François Mauriac, estava a fa- tempo, que deveria desempenhar um
vor de Pétain, contando com Valéry papel de grande importância na histó-
e Claudel entre os admiradores mais in- ria de De Gaulle e de sua ascensão ao
cansáveis" (Werth, Republica di un Uo- poder, levando-lhe a adesão da França
mo, ob. cit.). clandestina, transformando um movi-
mento popular constituído de grupos
COMO NASCEU A ainda esparsos num pequeno exército
particular. Esse homem era Jean Mou-
RESISTÊNCIA lin" (Emmanuel d'Astier, Les Grands,
"Durante os primeiros nove meses, do ob. cit.).
outono de 1940 até a primavera de 1941,
os que tentaram organizar a Resistência
não pronunciaram muitas vezes o nome
A Franca
, de
de De Gaulle. Não tinham tempo de
ligar um rádio. A princípio, somos ape- duas caras
nas um punhado de homens, mas no pe-
ríodo entre a primavera de 1941 e o in- "Na realidade, a grande maioria dos
verno de 1942 nossas fileiras aumentam franceses viveu indecisa entre os dois.
lentamente. Trocamos nosso nome, Não havia um bloco de Vichy, mas ape-
abandonamos a família. Tornamo-nos nas um regime provisório que tentava
viajantes engajados, com documentos salvar do desastre total quanto ainda
falsos, tentando, região por região, fa- podia ser salvo. E, no seio desse regime,
zer funcionar uma pequena organiza- oportunistas que lutavam para conquis-
ção. Imprimimos alguns folhetos clan- tar o domínio absoluto. E por fim, sob
destinos, executamos alguns atos de sa- a ocupação cada vez mais rígida dos
botagem... Foi somente em novembro alemães, perderam, juntamente com as
de 1941 que um jovem míope deveria últimas liberdades de movimento, tam-
cair do céu sobre um vinhedo para vir bém a última parcela de prestígio. Mas

60
ernbnonana de governo, co m vá rios mi nis tros d esign ados, e co meç a
a entrar e m co nta to co m os primeiros n úcl eos de oposição a Vich y e
aos naz istas , que estão se o rga niza ndo na Fr an ç a. No entanto, a
verdadei ra Re sist ên ci a F ra ncesa or ga nizada entra em pleno fun-
ciona me nto so me nte após o mê s de j unho de 1941 , qu ando Hitler ,
rompe ndo o pac to co m St alin , invad e a R ússia. Em co nseq üê nc ia,
chega de M osc ou a o rd e m de sabota r a máq ui na bé lica dos na zistas e
as fo rças co m unis tas, até então e m caute losa ex pec tativa, entram
em ação . A pri ncípi o , os vá rios grupos da Resistên c ia recu sam os

, 7&1**%*

a Resis tênc ia não form ava a inda um ceses Livr es. Em 2 de jan e iro de 1942,
bloco único. Era apen as a represa co le- desce de p ára-quedas na Provença,
tora, o nde se vinha m reunir todos aq ue- mun ido co m as cr ede nc iais de De Gaul-
les a q ue m o entusiasmo patri óti co , le: " Mo ulin re cebeu a missão de reali-
o crescente te rro r dos ale mã es , a gr an- zar a unidade de ação de todos os ele-
de caça ao homem para usá-lo em tr a- mentos que re sistem ao inimigo e a se us
balhos fo rçados ne ce ssár ios à ec o no mia co laboradores" . Moul in cumprirá sua
germ â nica, o u, en fim, a pre visão da missão, co nsegu indo o entendimento
derrota ale mã e mpu rra vam para a opo - mútuo dos três mo vimen tos principais
sição, no exílio ou na ilegalidade " (H . qu e ope ra m na zo na não ocupada pelos
Lüt hy, ob. cit.) . ale mães: Com ba t, Fr anc s-Tireurs e Li-
bér ati on. A 16 de fevereiro de 1943,
Moulin retom a a Londres acompanha-
A EPOPÉIA DE JEAN MOULlN do pe lo Gen. Delestr ain t, chefe da
Arm ée se crê te, que surgiu da fusão dos
Jove m pr efeito de C ha rtres, Je an Mou - gru pos aci ma cit ados .
lin acaba se ndo pre so e torturad o pel os
a le mães, no di a 17 de ju nho de 1940,
porque se re cusa a assinar um docu -
men to no qu al as atrocidades praticadas
co ntra um grupo de civ is são atribuídas
o calvário
às tro pas fran ce sas e m fuga e não aos
so lda do s a lemães . " T rancado numa ce -
Ia, Moulin co nside ra que não tem ne -
do mártir
nhuma experiência de violênc ia e que,
ta lvez, a ma nhã chegue a ceder e a assi- o Gen . Delestraint é preso no dia 9 de
nar. Por isso, ca ta um cac o de vidro e junho de 1943. " Para escolher um su-
co rta. os pulsos" (En ce Temps-la, ob . cessor do chefe do exército secreto,
cit.). E sa lvo na últi ma hora, depois foge Moulin convoca os responsáveis para
do cárcere e entra para a clandestini- uma reunião em CaIu ire, nos arredores
dade. No dia 9 de setem bro de 1941 par- de Lion. Um traidor os entrega à Gesta-
te par a Londre s, onde se junta aos Fran- po ." Torturado dia após dia, Moulin

61
l:UIII U~ i r anceses uvres, Mas para ue uaulle aqueles " co m-
coru.ai cs
batentes das sombras" são de grande utilidade no plano publicitário:
se conseguisse submetê-los, de algum modo, a seu comando, cresce-
ria rapidamente seu prestígio como chefe de todos os franceses.
De imediato, lança nessa empresa seus melhores agentes: De Wavrin
(o Cel. Passy), Pierre Brossolette, Jean Moulin e tantos outros heróis
desconhecidos. Em maio de 1943, já se pode afirmar que o objetivo
foi alcançado, pois os vários grupos se unificam no Conselho Nacio-
nal da Resistência (CNR), em entendimento com De Gaulle. _

resiste heroicarnen.e. Perguntam ao tentes. A partir de junho de 1944, as


prisioneiro Delestraint se o reconhece : Forces Françaises de l'Intérieur (F FI)
"Como quereis que o reconheça neste compreendendo todas as unidades civis
moribundo, nesta pobre face disfor- combatentes na Fr ança, foram consi-
me?" Levado de trem para a Alemanha, deradas tropas regulares do exército
Moulin é assassinado numa localidade francês e passaram a obedecer às or-
desconhecida. "Possam vocês hoje , Ó dens de De Gaulle. Nos dias da Liber-
jovens, pensar naquele homem, em co- tação, os efetivos da FFI passaram a
mo teriam encostado a mão em sua po- mais de 30 mil homens e Eisenhower
bre face desfigurada, em seus lábios que calculou sua contribu ição militar como
não falaram. Naquele dia, representava equivalente ao poder combativo de 15
o rosto da França!" (Malraux, discurso divisões" (extraído da Encic/opedia
fúnebre, 19 de dezembro de 1964). dell'Anti-fascismo e della Resistenza,
"Enciclopédia do Antifascismo e da
Resistência", Ed . La Pietra, 1971).
o programa De GanHe: "Não obstante as imensas
dificuldades de ação na França, causa-
da Resistência das pelos perigos, pelas baixas, pelas
iniciativas autônomas de alguns grupos
manejados por estrangeiros, continuava
"O Conselho Nacional da Resistência a fortalecer-se cada vez mais a coesão
(CNR) elaborou seu programa, distin- da Resistência. Tendo conseguido dar-
guindo duas partes: uma dedicada à luta lhe a inspiração e a direção que a sal-
imediata e a outra voltada para o futu- varam da anarquia, encontrei nela, no
ro . Esta abrangia a punição dos traido- momento exato, um instrumento eficaz
res, garantia de liberdade democrática, para a luta contra o inimigo" (Memórias
realização das reformas sociais. O Co- de Guerra. ob . cit.).
mité d' action militaire (CAM), torna-se
a comissão mais importante do CNR e Junho de 1956.
está encarregado de unificar e dirigir O Gen. De Gaulle parti cipa
a ação dos civis e dos patriotas comba- de uma comemoração da Resistên cia.

62
As RELAÇÕES JÁ TENSAS entre De Gaulle e os E.U.A. pioram ainda
mais em dezembro de 1941, quando, num golpe inesperado, o Alm.
Muselier, membro da França Livre, ocupa o arquipélago de Saint-
Pierre-et-Miquelon, uma possessão francesa de 250 quilômetros qua-
drados de superfície, a seis léguas marítimas de Terranova (Canadá).
E o fez depois de De Gaulle ter garantido aos E. U.A. e ao Canadá -
que se opunham à operação - que havia desistido dela. O Preso
Roosevelt proclama que a ~~ conduta de De Gaulle é absolutamente
inadmissível". O secretário de Estado americano, Cordell Hull,

I I[ 1111I11 II I 71

o Episódio de Saint-Pierre-et-Miquelon o primeiro


"De Gaulle é um trapaceiro" referendum
do general
Depois da ocupação das ilhas canaden- "Inaugurando uma prática na qual se
ses de Saint-Pierre-et-Miquelon, levada tornará um grande mestre, De Gaulle
a efeito pelo almirante francês Émile organiza o plebiscito do arquipélago de
Muselier, os americanos protestam com Saint-Pierre-et-Miquelon em termos
violência, o que já era previsto. "Cor- tais que, praticamente, impõem votar
dell HuU sente-se como um homem nele. Em lugar da alternativa De Gaul-
apunhalado pelas costas. Envia uma le-Pétain, impõe outra: escolham entre
carta a De Gaulle, chamando-o trapa- a França Livre ou a colaboração com
ceiro e mentiroso, e publica em Wash- as potências que exploram, humilham e
ington um comunicado, no qual empre- martirizam nossa pátria" (Robert Aron,
ga o mesmo tom. Vinte e quatro horas ob. cit.). De fato, os boletins apresen-
depois, no dia de Natal, Churchill se di- tavam as manchetes: "Adesão à França
rige a Washington para conferenciar Livre - Colaboração com as potências
com Roosevelt e convida o presidente do Eixo". Resultado: 651 votos a fa-
americano a considerar o episódio em vor da França Livre, 11 para a colabo-
proporções mais modestas. Mas ao mes- ração e 140 nulos.
mo tempo, o primeiro-ministro inglês
adverte De Gaulle, dizendo-lhe que a
Inglaterra se alinhará ao lado dos
E.O.A., em toda e qualquer questão de
SOMBRAS SOBRE
importância. Para usar uma metáfora
breve e direta, digamos que se pedia à A FRAN CA

LIVRE
mosca para não incomodar porque a
Inglaterra precisava do boi americano UO Alm. Muselier, encarregado por De
para vencer a guerra contra a Alema- Gaulle de tomar posse das ilhas Saint-
nha" (Mário Costa, ob. cit.). Pierre-et-Miquelon, segue à risca suas

64
condena ainda mais asperamente a ação dos que "se chamam france-
ses livres". Churchill encontra grandes dificuldades para acalmar as
ondas de protesto, pois está entre dois fogos: os americanos - dos
quais tem absoluta necessidade para vencer a guerra, e que lhe exi-
gem que se desfaça do "francês intrometido" - e De Gaulle, ao
qual, no fim das contas, dedica grande afeto, embora este seja obsti-
nado e altivo, não recue jamais de uma posição tomada e ameace,
a cada momento, retirar-se da luta. Porém, a "punição" americana
não tarda a chegar. A 7 de novembro de 1942, desencadeia-se a Ope-

instruções, mas declara indignado, ao boração de um chefe militar conhecido


cônsul americano, que De Gaulle se que se contentasse apenas com fazer a
comporta como um ditador. Em Argel, guerra, reservando as decisões políticas
em maio de 1943, o Gen. Catroux repe- para a França de após-guerra" (Mur-
te a mesma expressão. Outras vozes fa- phy, ob. cit.).
zem coro. Fala-se de uma fórmula para
o alistamento, proposta aos primeiros
adeptos da França Livre; ela previa Eisenho""er: "Porque
que o juramento de fidelidade que eles excluímos Ot;) Gaulle
faziam ao Gen. De Gaulle os compro- da OperaçAo Torch"
meteria por mais seis meses após o tér-
mino das hostilidades. Ainda hoje é di- De Gaulle não é avisado nem participa
fícil distinguir em tudo isso o verdadei- do desembarque na Argélia porque sua
ro do falso. O certo é que, tanto em presença poderia ter provocado uma sé-
Londres como em Argel, franceses emi- ria oposição por parte das guarnições
nentes, eram severos em seus juízos a
francesas. Quem o afirma é Eisenhower
respeito do círculo mais chegado ao ge-
em seu livro Cruzada na Europa, Mon-
neral. Antoine de Saint-Exupéry: 'Ao
dadori, 1949. "Nossas informações ten-
grupo de Londres o que mais importa
diam a estabelecer que para o corpo dos
não é tanto reconstruir a unidade do
oficiais efetivos do exército francês De
país, quanto dividir as vantagens do po-
Gaulle, naquele momento, não passava
der' " (Fabre-Luce, ob. cit.).
de um soldado desleal. Quando se deu
a rendição da França, os oficiais que
Os americanos escolhem permaneceram no exército aceitaram
Giraud a posição eas ordens de seu governo e
por isso depuseram as armas. Segundo
HO S americanos aproximaram-se, em seu ponto de vista, se o caminho esco-
primeiro lugar de Weygand, mas quan- lhido por De Gaulle fosse justo, então
do este foi destituído por Vichy, volta- os oficiais que obedeciam às ordens de
ram-se para o Gen. Giraud, pois sen- seu governo seriam todos velhacos. Se
tiam-se impelidos a contar com a cola- De Gaulle era um francês leal, eles de-

65
ração TORCH, a ocupação da África Setentrional Francesa por parte
dos anglo-americanos, e De Gaulle é informado somente após o iní-
cio da ação. Não só isso. Recebe também expressa proibição de se
dirigir para lá. Indignação, acusações violentas de pretenderem
"roubar" as colônias francesas e, em seguida, a premeditada resig-
°
nação. E chefe da França Livre, que justamente naqueles dias havia
mudado o nome para França Combatente, aceita apoiar a operação,
fazendo uso dos microfones da BBC. Muito secamente, proclama:
"Franceses, é chegada a hora do bom senso e da coragem. Ajudai

viam considerar-se, a si mesmos, covar- do pretendente. Eis porque o Abade


des. Naturalmente, não agradava aos Cordié e d' Astier convencem Bonnier
oficiais verem-se sob este prisma. Prefe- de la Chapelle a executar o crime. Mas
riam ter-se em conta de franceses leais, o Conde de Paris não usufruirá de ne-
que acatavam as ordens da autoridade nhum benefício desta "liquidação': será,
constituída e, por conseqüência, oficial discretamente, relegado para Marro-
e pessoalmente consideravam De Gaul- cos".
le um desertor."
Churchill: "O gesto do jovem assassino
não obtém nenhum apoio público em
o assassinato de Darlan Argel, a não ser o de um pequeno grupo
de amigos pessoais, reunidos em torno
de d'Astier".
Murphy: "O motivo do assassinato de
Darlan permanece um mistério. O ho- Costa: "Segundo a teoria do cui prodest
mem que atirou nele, Bonnier de la na procura dos mandantes do crime, o
Chapelle, era de uma boa família de Ar- assassínio trazia a marca dos gaullistas.
gel e pertencia a um grupo restrito de Aliás, os americanos foram, imediata-
jovens que lutavam pela restauração da mente, desta opinião. De fato, soube-se
monarquia. Quem quer que tenha leva- que o executante material do delito es-
do o jovem de la Chapelle a cometer o tivera em contato com o general gaullis-
assassínio jamais foi identificado". ta d' Astier de la Vigerie. Outra versão,
Le Crapouillot: ""O desaparecimento de que circulou com insistência, atribuía,
Darlan é o resultado de uma conspira- no entanto, a responsabilidade do crime
ção entre monarquistas e gaullistas, na ao Conde de Paris e aos oficiais monar-
qual, porém, o pretendente ao trono foi quistas".
redondamente enganado. De Gaulle
enviou o Gen, François d' Astier de la Fabre-Luce: HÉ evidente que para o
Vigerie para persuadir ao príncipe que Gen. De Gaulle a eliminação de Darlan
somente a presença de Darlan impedia se revestia de capital importância. Ela
a ele, De Gaulle, de alinhar-se ao lado lhe permitiria chegar a Argel".

66

I ;'L.II .i , 1 ..lJ I
nossos aliados. Só importa uma coisa: a salvação da França". Mas
sua boa vontade não basta para reabilitá-lo perante os americanos,
que tentam empossar em Argel dois de seus protegidos: o Gen. Gi-
raud, fugido recentemente de um cárcere alemão e apoiado pelo
diplomata Robert Murphy, e o Alm. Darlan, ex-vice-presidente do
Conselho do Governo de Vichy, delfim de Pétain, chegado de impro-
viso a Argel no dia 4 de novembro "para visitar um filho doente"
(Darlan conta com o apoio do Alm. Clark). E por trás deles pode-se
até entrever a vaga possibilidade de o Mal. Pétain, em pessoa, vir

De Gaulle: "Fernand Bonnier de la Cha- personalidade e do prestígio de DarIan


pelle se tornara o instrumento da exas- exigia a adoção imediata de medidas
peração que fervia nos ânimos, mas por rápidas e radicais. DarIan devia ser eli-
trás dela se escondia talvez uma políti- minado" (Alain Darlan, L'amlral Dar-
ca decidida a liquidar o ~ colaborador /an Par/e, - "Fala o Alm. Darlan" -,
temporário' do qual se servira. O jovem Perrin, 1953). Esta hipótese se baseia
acreditara, como ele próprio continuou em grande parte nas anotações do pró-
repetindo até o momento da execução, prio diário de Darlan. De fato, poucos
que haveria de intervir de fora, a seu fa- dias antes de sua morte, escrevia: USe
vor, alguém tão importante e tão pode- pensarmos em todas as fadigas que os
roso que pudesse impor sua vontade à ingleses se impuseram e na fortuna que
autoridade de fato da África do Norte. investiram para levar De Gaulle ao po-
Certamente, ninguém tem o direito de der, parece evidente que ficarão furio-
matar, exceto nos campos de batalha. sos ao ver desfeitas suas esperanças c,
Como desconhecer, no entanto, as in- provavelmente, tentarão qualquer cai-
tenções que incendiaram aquele jovem sa para reme d iar.;
· ".
furor?" (Memórias de Guerra, ob. cit.).
"Operação Tosca"
ofilho do almirante HN a noite anterior à execução, o assas-
sino de Darlan se mostra muito evasi-
acusa os ingleses vo... Mesmo assim, deixa entender que
uma personalidade misteriosa deveria
Para o filho de Darlan os serviços secre- chegar para libertá-lo, naquela mesma
tos ingleses teriam participado do assas- noite. Além disso, teria dito: 'Estou
sínio de seu pai: "0 acordo assinado tranqüilo. Londres foi avisada'. Duran-
entre os americanos e Giraud parecia te a noite, por várias vezes pergunta
suficientemente inofensivo aos ingleses, aos guardas se não acontece nada de
a ponto de se permitirem, tranqüila- especial na cidade, se não há revoltas...
mente, fingir que o aceitavam. Mas um Falou também de uma execução simu-
acordo assinado com um homem da lada, semelhante à que Cavaradossi

67
a desembarcar em Argel - fato que os americanos receberiam com
indizível satisfação - para se colocar à frente dos franceses na luta
de libertação. Para De Gaulle isso significaria o fim de todas as es-
peranças. Mas, felizmente para ele, o velho marechal não se move.
E Churchill - não só para manter a palavra, mas também para im-
pedir que os americanos se apoderassem de toda a África do Norte -
intervém e prestigia seu protegido. Dura pau co a desilusão de De
Gau lIe, causada por esse acantonamento: apressa-se em enviar para
Argel seus mais aguerridos propagandistas e os mais hábeis espiões.

] IPI Ii EU lU; lar, • • 1IIIi la i!ll I _li r li :1111 U111 II

enfrenta na Tosca" (Peter Tompkins, bilidade indireta sobre o referido assun-


The Murder of Admirai Darlan, - "O to. No conjunto de sua política, ele ha-
Assassinato do Alm. Darlan" - , Simon via criado uma tal imagem de si, que
and Schuster, New York, 1965). alguns pensavam causar-lhe satisfação
quando recorriam a meios extremistas".

APÓS DARLAN, Os ingleses


MURPHY EGIRAUD1 defendem seu Delfim
Henry c. Butcber, ajudante do Gen.
Eisenhower: "Argel, 30 - 12 - 1942. Mur- Os ingleses defendem De Gaulle o mais
phy, Bergeret e Giraud - depois de que podem perante os americanos. O
Darlan - estão na 'lista negra' de um motivo explica-o MacMillan a Murphy,
grupo de assassinos que agem em Argel, em 1942: o governo inglês investiu mui-
segundo as afirmações de um dos nos- to prestígio e muito dinheiro - 70 mi-
sos agentes franceses que conseguiu lhões de libras esterlinas - desde que
granjear a simpatia dos conspiradores" apostou naquele desconhecido, nos dias
(Três Anos com Eisenhower, Mondadori, mais tenebrosos de 1940. Depois de ha-
1948). Com efeito, são praticados dois ver admitido que De Gaulle é "um ho-
atentados contra Giraud. Em suas Me- mem difícil", MacMillan chega a reve-
mórias, Giraud escreve: "Certamente, lar que o indomável francês também
o instigador de tais procedimentos não apoiou a decisão inglesa de continuar
é o Gen. De Gaulle. Mas não se pode a luta contra a Alemanha nazista, mes-
afirmar o mesmo de qualquer um de mo quando as probabilidades de uma
seus companheiros". vitória inglesa pareciam nulas. Mac-
Millan declara que os interesses, o pres-
Fabre-Luce (ob. cit.) comenta que "não tígio e a honra da Inglaterra exigem
se pode, 'realmente, atribuir ao Gen. que o governo inglês apóie as aspira-
De Gaulle mais do que uma responsa- ções políticas de De Gaulle.

68

.. ,I.,Jll li" I I ~~., U ,il j,,~ ~ " •• I"; I ,., -i ;1", I I i l' 11 t'
Paradoxalmente, entre os vários serviços secretos ingleses, america-
nos, gaullistas, petainistas e até monarquistas - o Conde de Paris,
pretendente ao trono da França, está tentando reconquistar o reino
dos antepassados - desencadeia-se violentíssima luta de morte. O
Alm. Darlan, vítima desse inexplicável clima de violência, cai as-
sassinado no dia 24 de dezembro de 1942 por um estudante de vinte
anos, chamado Bonnier de la Chapelle. O jovem é justiçado antes
que se consiga desvendar plenamente o misterioso episódio e des-
mascarar seus eventuais mandantes. Os americanos e Giraud suspei-

De Gaulle 'casa-se' com Henri H. Giraud


ROOSEVELT apostou
no cavalo errado CASAMENTO COM
Bem depressa, também Roosevelt se
O FUZIL APONTADO
deu conta de ter falhado na política e
ter apostado no cavalo errado. Quem o Shogun wedding, em tradução livre sig-
revela é seu filho ElIiott, no livro As he- nifica casamento com o fuzil apontado,
saw ir, - "Corno Ele Encarava o Assun- disse Roosevelt, comentando o aperto
to" -, (Dull, Sloan & Pearce, New de mãos entre De Gaulle e Giraud. Essa
York, 1946), citando-o textualmente: imagem do "casamento" não é nova,
"Uma perigosa supervalorização das pois o presidente americano e Churchill
qualidades de líder de Giraud e uma usam-na há vários dias para designar
ambígua política de cooperação com os a tentativa de união entre os dois gene-
colonialistas franceses de Vichy tornam rais franceses. No dia 18 de janeiro,
extremamente difícil para nós america- Roosevelt assegura a Cordell Hull que
nos a oposição a um governo que tem HO noivo (Giraud) declarou gentilmente
como único chefe um Charles De Gaul- estar disposto a realizar o casamento,
le, sustentado pelos ingleses ..." mas nossos amigos ingleses ainda não
O mais difícil foi convencer De Gaulle conseguiram o consentimento da noiva
a viajar para a África a fim de se encon- (De Gaulle) que, cheia de soberba, se
trar com Giraud. Foi necessário recor- recusa a dividir o leito com Giraud".
rer à ameaça de cortar todas as verbas (Costa, ob. cit.).
para os Franceses Livres, a fim de fazê-
lo recuar de sua posição. Entre sério e A partir desse momento, De Gaulle
chistoso, Churchill fala a Roosevelt: se torna .a "esposa", "urna personagem
"Nós o chamamos de Joana d' Are e es- bastante ridícula" - escreve Jean La-
tamos à procura de um bispo que se de- couture - "mas sem a qual a festa de
cida a queimá-la!". núpcias não se pode realizar". A "espo-

69
tam que tenha sido obra dos gaullistas. Roosevelt se enfurece nova-
mente e Churchill deve intervir pela milésima vez para pacificar os
ânimos. Por fim, os dois estadistas decidem resolver, de uma vez por
todas, essa espinhosa confusão dos franceses, "casando" os dois
respectivos protegidos. A "cerimônia" é celebrada no dia 22 de ja-
neiro de 1943, em Anfa, Marrocos, na presença de Churchill e de
Roosevelt. A 22 de junho, os "esposos" se tornam co-presidentes
do Comitê Francês de Libertação Nacional (CFLN). Uma co-presi-
dência destinada a durar pouco. •

sa" continuará a se mostrar muito ca- De Gaulle: UNo fundo, Giraud não se
prichosa e birrenta. No dia 8 de maio, submetia a nenhuma forma de depen-
Roosevelt escreve à "mamãe" Chur- dência... Por natureza, por hábito e tam-
chill que "o comportamento da 'esposa' bém por uma espécie de tática, seu es-
se torna cada dia mais insuportável... pírito se limitava estritamente ao cam-
Agora acaba de instalar em Argel seu po militar, recusando-se a dar atenção
venenoso estado-maior de propagandis- às realidades humanas e nacionais e fe-
tas para semear a discórdia... Não sei o chando os olhos a tudo quanto dissesse
que fazer dele. Seria melhor, talvez, no- respeito ao poder. Com tal psicologia,
meá-lo governador de Madagascar...". ele não conseguia, durante seus encon-
tros comigo, fazer, de uma vez por to-
das, abstração da hierarquia. E bem
A eliminacão

verdade que estava perfeitamente côns-
cio do caráter excepcional de que se
revestia nossa missão. Aliás, tanto em
de Giraud público como em particular ele me deu
provas generosas e comoventes desta
convicção. Mas não tirava daí nenhu-
ma conseqüência prática. É necessário
U A eliminação de Giraud aconteceu em também notar que as circunstâncias
três tempos distintos. Primeiro, perde a em que havia chegado ao primeiro
maioria dos votos no comitê porque posto na África do Norte, o apoio re-
dois dos homens que ele mesmo havia cebido da política americana, as pre-
nomeado 'escorregam' para o lado de venções e os rancores de alguns fran-
De Gaulle: Jean Monnet e Maurice ceses que o comparavam comigo, tudo
Couve de Murville. Segundo, no dia isso influía em suas idéias e em sua
31 de julho de 1943, Giraud é nomea- conduta" (Memórias de Guerra, ob.
do, por De Gaulle, comandante-chefe cit.).
das forças francesas. Por fim, no outono
é relegado à função de inspetor-geral
das forças armadas" (Georges Suffert, Charles De Gaulle recebe
ob. cit.), Eisenhower nos Campos Elisios.

70
VENCIDA FINALMENTE A BATALHA contra Giraud, De Gaulle passa a
unificar as forças armadas da França Combatente, cerca de 15 a
20 mil homens, com as forças do exército regular acantonadas na
Argélia (o "exército Giraud", com 125 mil soldados). A seguir, impõe
aos aliados a participação de uma divisão francesa, comandada pelo
Gen. Juin, na campanha da Itália, que terá início em breve, com o
desembarque na Sicília. Nesse meio tempo, as tropas francesas de
Leclerc, que haviam partido do Chade já em janeiro de 1941, partici-
pam com brilhantismo da conquista de Tünis. onde De Gaulle entra

suas tentativas de ajudar os franceses


De Gaulle que incorreram nas iras de De Gaulle.
E bem depressa desistiram de tentar
• ajudá-los".
se vinga
Os aliados:
Imediatamente após haver conquistado
o poder, De Gaulle se apressa em vin- "Quer a lua"
gar-se dos inimigos. Exonera Peyrouton
e Boisson, respectivamente governado- Roosevelt: ~~O comportamento de De
res-gerais da Argélia e da África Oci- Gaulle era absolutamente inconcebível,
dental Francesa e, em seguida, os man- embora se enquadrasse nas linhas gerais
da também para a prisão, por "colabo- da política militar aliada e se mostrasse
ração com os nazistas". Ambos os go- muito judicioso... Era a demonstração
vernadores viviam sob a proteção dos da arrogância deste homem estranho e,
aliados, tendo, por sinal, uma garantia ao mesmo tempo, de sua coragem e de
escrita de Roosevelt. Este se apressa em seu total devotamento à causa da sobe-
telegrafar a seus representantes em rania francesa" (Memórias).
Argel: "Peço informar ao Comitê Fran-
cês o quanto segue. Tendo em conta a Eisenhower: "Oferecia-lhe tudo quanto
ajuda prestada aos exércitos aliados du- era possível e procurava satisfazer ao
rante a campanha na África, ordeno-lhe máximo todos os seus desejos. Mas ele
que não empreenda nenhuma ação con- não queria saber de nada. Com ele era
tra Peyrouton e Boisson". Mas De tudo ou nada. Queria a lua, como Cíce-
Gaulle simplesmente ignora a exigên- ro, Pompeu e César a quiseram. Eu sa-
cia de Roosevelt. bia que existiam coisas que simplesmen-
te ninguém conseguia fazer entrar em
Murphy comenta: "O presidente e sua cabeça. Então, a melhor coisa era
Eisenhower obtiveram pouco sucesso, nem pensar no assunto" (citado por
ou não tiveram realmente nenhum, em Schoenbrun).

72

I I1I li 'I' j ,~ I ". '....,0. ._ _••_....__


-~"'" r 1'''I·f., +1 j I I,,, 1I '1
como vencedor no dia 26 de junho de 1943. Sempre mais claramente
Londres e Washington compreendem que lhes será muito difícil
conseguirem livrar-se de De Gaulle. E talvez tenha sido exatamente
este o motivo que os levou a preparar-lhe um último golpe baixo,
terrível para o orgulho do chefe francês. Os soldados franceses não
poderão participar da Operação DVERLDRD, o desembarque na
Normandia, em 1944. O próprio De Gaulle será advertido apenas al-
guns dias antes do início da operação, e assim mesmo para ouvir a
ordem expressa de não pôr os pés em solo francês sem a autorização

lI!

Montgomery: "Ele não gasta energias à E.V.A. E se De Gaulle encarnava algu-


toa, preocupando-se mais que o neces- ma coisa, era um povo vencido, que do
sário... Passa muito tempo em reflexões, ponto de vista de potência mundial não
em lugares calmos, traçando as linhas mais existia. No entanto, a partir daque-
mestras de sua futura estratégia... É um le momento, Charles De Gaulle sempre
soldado e por isso jamais haverá de sa- levou a melhor sobre seus extraordiná-
crificar seus princípios a um posto ou a rios aliados. Provam-no todas as suas
um poder, como o fazem muitos polí- palavras. A todo instante, tem sempre
ticos..." presente a batalha que se trava no mun-
do inteiro. Mas enquanto os outros dois
Stalin diz confidencialmente a Roose- julgam que tudo está terminado para a
velt (em lalta) que encontrou em De França, enquanto semelhante erro co-
Gaulle um homem "sem subterfúgios, metido por eles falseia todos os cálculos
mas desprovido de realismo na avalia- (e as conseqüências se farão sentir ainda
ção da contribuição dada pela França à vinte anos depois), o ato de fé na Fran-
vitória, visto que exigia os mesmos di- ça leva De Gaulle a agir como se
reitos que os ingleses, russos e america- nossa derrota não passasse de um sim-
nos, que haviam carregado sobre os ples episódio. E isso lhe permite fazer
ombros todo o peso da guerra" (referi- frente aos donos do mundo e não ceder
do por Monique Mounier, ob. cit.). em nenhum ponto essencial, simples-
mente porque está com a razão. Tem
razão de proclamar, contrariamente ao
que afirmam, que a França, por ora
CERTO, EU SOU espezinhada e desonrada, continua viva.
Isso constitui um fato inegável. E tem
A FRANCA!

razão o general ao dizer, referindo-se a
esta França que até agora foi livre e que
ainda combate: tA França sou eu!'
HDe Gaulle, quando entrou para a His- Tal declaração é considerada tanto por
tória, manteve contatos diretos com o Roosevelt como por Churchill simples-
chefe da Inglaterra em armas, a Ingla- mente como a afirmação de um louco"
terra invencível, e com o presidente dos (François Mauriac, oh. cit.).

73
dos aliados. Uma humilhação sem precedentes: é iniciada a liberta-
ção da França e o "Chefe dos Franceses" fica jogado a um canto,
como um fardo incômodo 1O general reage imediatamente, transfor-
mando, no dia 3 de junho, o CFLN em Governo Provisório da Repú-
blica Francesa. Quando, a 6 de junho, dia do desembarque, Churchill
lhe pede para falar no rádio, exortando os franceses a colaborarem
com a ofensiva aliada, ele se recusa com desdém. Explode então
entre os dois estadistas a mais grave desavença de toda a sua vida.
"Lembre-se, Gen. De Gaulle - grita-lhe Churchill que todas

I] I I 11 II

o MARTíRIO negativos e litigiosos para chegar à úni-


ca conclusão lógica: que o homem De
Gaulle foi grandioso e que não havia
outra política, outro comportamento a
CONTINUA adotar, senão a intriga, bancando o 'ca-
ra de pau' diante da superioridade
opressora contra a qual lutava."
"Não foi ainda escrita a história de
Charles De Gaulle durante a guerra" -
afirma Raymond Cartier. "Natural- Um astuto O. Quixote
mente, não pode bastar a exposição que
o general nos faz em suas Mémoires. O "Se De Gaulle tivesse sido razoável, a
historiador deverá reexaminar um por França não passaria agora de um país
um todos os episódios de suas amargas secundário. O historiador deverá saber
lutas: a fracassada tentativa de Dakar, a discernir a parte de cálculo escondida
façanha de Saint-Pierre-et-Miquelon, o na intransigência e as manobras ocultas
lúgubre episódio da Síria, a briga por no mau humor, notando a segurança
Madagascar, o desembarque na África com que o general sabia, sempre, parar
do Norte e, mais tarde, no momento do a tempo. O político astuto vigiava o per-
desembarque na Normandia, a verda- sonagem absoluto e sempre continha
deira revolta do Gen. De Gaulle contra D. Quixote, quando este se aproximava
o generalíssimo Eisenhower... É quase demais dos moinhos de vento" (Ray-
inevitável que o historiador cite a frase mond Cartier, Paris Match, 21 de no-
genial de Duff Cooper: 'Ele é um ho- vembro de 1970).
mem que está sempre à procura de um
martírio'. O historiador fará a lista de
todas as vantagens que a França Livre Desafio a Roosevelt
e depois toda a França teriam alcança-
do com um chefe menos firme e menos De Gaulle: "Para dizer a verdade, os
inabalável... Em suma, bastará ao his- planos do presidente americano me
toriador enumerar todos os aspectos pareciam ter a consistência dos sonhos

74

11. ~ I I I ., 1.1.' I UI LI oi I I j I • H il i _I. ;1 ~ .•. I I" _J 1_'1 I' .,


as vezes que tivermos de escolher entre a Europa e horizontes mais
vastos, sempre nos decidiremos por estes últimos. Entre o senhor e
Roosevelt, escolherei sempre Roosevelt l" Uma frase que De Gaulle
jamais há de esquecer. No entanto, "subjugado", o general fala pelo
rádio. Más logo em seguida se atira com furor à tarefa de frustrar o
plano de Roosevelt, que havia decidido submeter a França a um
regime de ocupação militar americano que durará "até que os fran-
ceses se tornem capazes de eleger democraticamente seu governo".
(Realmente, em Charlotteville, E. U.A., estão sendo adestrados "fun-

de Alice no país das maravilhas. Roose- francesas. Mas o desembarque na Nor-


velt já tentara realizar na África do Nor- mandia aconteceu sem a intervenção
te, em condições muito mais favoráveis da França. Foi efetuado às costas do
a seus desígnios, um empreendimento Gen. De Gaulle e da França Livre.
político análogo ao que pensava execu- 'Nõs' tínhamos capacidade para partici-
tar na França. Ora, um fato que me ma- par de tal iniciativa. É uma coisa que eu
goava e dificultava nosso relaciona- jamais perdoei. Mandarei à Normandia
mento era a falência da política de Roo- o ministro dos ex-combatentes" (citado
sevelt na África. Mas eu tinha certeza por Robert Rocca).
que o mesmo projeto, repetido na Me-
trópole, não chegaria nem mesmo ao A França torna-a. Gaulliata
início da aplicação. Os aliados encon-
trariam na França unicamente os minis- HO regime de Vichy, para vergonha da
tros e funcionários que eu tivesse em- legitimidade de forma que lhe havia
possado. Encontrariam apenas as tropas conferido a abdicação da última As-
francesas comandadas por mim. Sem sembléia Nacional da Ill República,
temeridade alguma, eu podia desafiar jamais foi outra coisa senão a sombra da
Eisenhower" (Memórias de Guerra, ob. ocupação alemã no país e desapareceu,
cit.), sem deixar nenhum vestígio, com a re-
Odesembarque na Normandia tirada das tropas nazistas. Ninguém le-
vantou a mão para defendê-lo, nenhu-
DE GAULLE NÃO PERDOA ma voz se fez ouvir para salvar-lhe a
honra, ninguém o conhecera ou reco-
Passados vinte anos, De Gaulle ainda nhecera. Esta aparição fantasmagórica
não terá perdoado aos anglo-america- de todo um aparato estável, tendo por
nos o fato de o terem excluído do de- chefe o Marechal Pétain, Chefde l'Etat,
sembarque na Normandia. Como presi- surpreendeu menos que os outros, os
dente da República, em 1964 ele se Gauleiter do Terceiro Reich. O 'oportu-
recusa a participar das comemorações nismo' dos últimos dezoito meses de
oficiais, explicando: ~'O desembarque Vichy se havia transformado em 'alibis-
em Provença foi um feito das armas mo', como o faz notar muito bem, em-

75
cionários", por meio de intensivos cursos de francês. E já foram im-
pressos os AM-francos, as notas e moedas de ocupação). De Gaulle
se antecipará à manobra americana, fazendo cair de pára-quedas, em
plena batalha, nas mais importantes localidades do país, funcionários
franceses por ele munidos de plenos poderes. 6 de junho: na Norman-
dia o inferno anda solto. Após seis dias de batalha encarniçada, os
aliados rompem as linhas de defesa dos alemães e avançam para
o centro do país. Dia 13, De Gaulle recebe autorização para desem-
barcar na França. Chega na madrugada do dia 14, pisando em solo

I I lU UI I UI! [ ruI fi I lP

bora com raiva, um jornalista alemão do o Presidente Bidault, hostilizaram


numa de suas últimas correspondências. abertamente o início da insurreição.
Quem podia mudava de partido, entran- Quando a revolta já havia estourado,
do para o movimento da Resistência. Os golpearam os insurretos pelas costas,
mais ingênuos, porém, incapazes de iniciando negociações com o coman-
conseguir um atestado de prestação de dante das tropas nazistas que ocupavam
serviços à Résistance ou aos aliados, a capital, o Gen. von Choltitz, com o
calavam-se, fugiam ou se faziam passar qual assinaram uma trégua. Esta trégua,
por mortos" (Herbert Lüthy, ob. cit.). porém, foi recusada com firmeza pelo
Partido Comunista, pelas organizações
da frente nacional e por todos os pa-
triotas. A confusão que surgiu foi ime-
Paris em chamas diatamente afugentada. De fato, no dia
22 de agosto, os bairros da capital liber-
tados pelos revoltosos já subiam a 70"
HA insurreição antinazista começou em
(História Universal, da Academia da
Paris na manhã de 19 de agosto. O sinal
V.R.S.S.).
foi dado pelos comunistas, que indica-
vam os objetivos da insurreição. Com
o apoio da população, os guerrilheiros Mauriac acolhe o
atacaram os opressores. Desde o pri- homem da esperança
meiro dia apossaram-se de 43 dos 80
bairros da cidade. Já no dia seguinte Le Figaro, 24 de agosto de 1944:
mais de 50 bairros estavam livres do
inimigo. A revolta de Paris assustou a "No momento mais triste do nosso des-
burguesia francesa, que aderia à Resis- tino, a esperança francesa se encarnou
tência. Os representantes de De Gaulle em um homem. Ela se manifestou com
na capital (Alexander Parodi para as a voz deste homem - deste homem so-
questões civis e Jacques Chaban-Del- litário. Naquele período, quantos fran-
mas para as militares) e os representan- ceses dividiram com ele a solidão, quan-
tes das organizações burguesas no Con- tos haviam compreendido o que signifi-
selho Nacional da Resistência, incluin- ca doar-se inteiramente à França? É

76

I i ,,,,Hl LI I I I; 1- II ,I i I <~ I
francês entre Graye-sur-Mer e Courseulles-sur-Mer e se dirige a
Bayeux. A comovente e entusiástica acolhida dos franceses, que pela
primeira vez podem ver a "voz de 18 de junho", o consagra definiti-
vamente como "Chefe dos Franceses" também diante dos olhos dos
americanos. No dia 15 de junho, De Gaulle está de volta a Londres.
A seguir, voa para Washington, a fim de resolver de uma vez por
todas a questão de sua "investidura". E desta vez, Roosevelt cede.
A 12 de julho," o governo americano anuncia que O CFLN está quali-
H

ficado para exercer a administração da França". De Gaulle pode

I II bit 11

a ele, a eles, que a França Livre lança se trata de restituir a si mesmo, com o
seu primeiro grito; a ele, a eles que, li- espetáculo de sua alegria e a evidência
vre das cadeias, a França estende as de sua liberdade, um povo que ontem
pobres mãos. E a França recorda: Vichy ainda estava prostrado pela derrota e
obstinadamente condenara à morte este disperso pela escravidão. Cada um dos
homem. A imprensa dos traidores fran- presentes, em seu coração, já escolheu
ceses, a serviço dos carrascos, o cobria Charles De Gaulle para conforto de
de insultos e desprezo. Mas nós, duran- suas penas e como símbolo de sua espe-
te as noites daqueles ferozes invernos, rança. Por isso é necessário que o veja,
ficávamos com o ouvido atento ao rá- familiar e fraterno, e que com isto res-
dio. Escutávamos com os punhos cer- plandeça a unidade nacional" (Memó-
rados, não conseguindo conter as lá- rias de Guerra, ob. cit.).
grimas. Corríamos para avisar os fami-
liares que não estivessem ouvindo: ~O Crônica radiofônica sobre o
General De Gaulle vai falar, já está fa- atentado contra De Gaulle
lando!' Em pleno triunfo nazista, tudo
o que hoje se torna realidade a nossos "Honra e Pátria! Eis o Gen. De Gaulle!
olhos já era anunciado por aquela voz Esta apresentação que eu vos fiz com
' . "
pro f ética.... tanta freqüência, hoje não a recito,
mas a leio sob o Arco de Triunfo, leio-
Otriunfo a quase sobre o Arco de Triunfo! Ei-lo,
o libertador! A chegada do Gen. de
De Gaulle: HAh, é um oceano! A multi- Gaulle sob o Arco de Triunfo foi sauda-
dão imensa está apinhada em ambos os da pelo grito do Capo Schumann: 'Hon-
lados da avenida. Talvez sejam 2 mi- ra e Pátria!' E agora, com os compa-
lhões de pessoas. Até os tetos das casas °
nheiros da primeira hora, Gen. Koe-
estão apinhados de gente. Em todas as nig, o Gen. Juin, os membros do Gover-
janelas surgem grupos compactos e ban- no Provisório da República, o Gen. De
deiras. Eu avanço a pé. Não é dia de Gaulle deixa o Arco de Triunfo, desce
passar as tropas em revista, com o cinti- a pé os Campos Elísios, em marcha
lar de armas e o soar de fanfarras. Hoje triunfal...

77
retornar à Europa e proclamar triunfalmente: "trazemos de volta
para a França a independência, o império e a espada". A 22 de agos-
to os primeiros carros da segunda divisão blindada do Gen.
Leclerc - os quais, por insistência de Churchill, foram finalmente
postos em ação no território francês - chegam às portas de Paris,
onde a revolta já imperava há vários dias. Na tarde do dia 25, rende-
se o general alemão von Choltitz. A 29 de agosto, De Gaulle, seus
principais colaboradores e os líderes civis dos Comitês de Libertação
entram nos Campos Elísios, entre a multidão delirante. _

Atenção! Houve um atentado na A ve- de balas. Talvez seja uma demonstra-


nida Campos Elísios, quase na Praça da ção. Talvez se queira mais protestar do
Concórdia. Soaram alguns tiros. Os que propriamente abater o libertador.
franceses e ingleses responderam ime- Ou quem sabe, sejam os ~ colaboracio-
diatamente. Podeis ouvir os disparos. nístas' que procuram a vingança antes
Todos se puseram a atirar" (Crônica ra- mesmo de sofrerem o terrível castigo
diofônica reconstituída com documen- dos vencedores".
tos originais, Dossiê de Guerra, Fabbri,
1971). De Gaulle: "Exatamente no momento
em que desço do carro, ressoam pela
praça tiros de fuzil ... Todos os que tra-
Misteriosos tiros de fuzil zem uma arma se põem a disparar ao
acaso, mirando os tetos das casas. Te-
Werth: "Em todo caso, a apoteose foi nho a impressão imediata de que se tra-
um grande sucesso pessoal para De ta de um tiroteio contagioso, que a exal-
Gaulle, malgrado um pouco de confu- tação às vezes desencadeia entre as tro-
são e alguns misteriosos tiros de fuzil, pas enervadas, em conseqüência de
disparados inclusive dentro e ao redor algum incidente fortuito ou provocado.
de Notre-Dame". Pelo que me toca, a coisa mais impor-
tante é não ceder lugar ao pânico. Por
Costa: HO cortejo alcança a Praça da isso, entro na catedral. Por falta de ele-
Concórdia. As ovações crescem de in- tricidade, os órgãos estão mudos. No
tensidade, mas exatamente nesse mo- entanto, também no interior da catedral
mento se ouvem alguns disparos. Pro- ressoam tiros de armas de fogo. En-
jéteis zunem sobre as cabeças, batem no quanto me dirijo ao coro, os presentes,
calçamento e ricocheteiam aos pés de uns mais inclinados outros menos, todos
De Gaulle. Há disparos vindos dos te- aclamam. E tomo meu lugar" (Memó-
tos, mas ninguém jamais verá o rosto rias de Guerra, ob. cit.),
de quem atirou... Quando De Gaulle
chega ao átrio da Catedral de Notre- De Gaulle visita, em Chelsea
Dame, é recebido por nova saraivada (Inglaterra), o asilo para militares.

78

I I"; II "";''-'111 U I I I ~ .: -h I~ I I ,~ I '11, "," I I I I"..,· ,H 1·1


PARA DE GAULLE, O TRIUNFO DE PARIS é apenas um breve parêntese
feliz. Tão logo desaparece o eco dos aplausos, o general se encontra
no dever de enfrentar uma situação dificílima. Além da guerra contra
os alemães, que ainda ocupam uma boa parte da França, deve orga-
nizar um governo provisório, capaz de merecer a confiança dos fran-
ceses e dos aliados. Deve também reconstruir a au toridade do Esta-
do, eliminando as organizações civis armadas, que em várias regiões
assumiram as rédeas do poder; organizar um exército capaz de parti-
cipar, em proporção cada vez maior, das fases finais da guerra, de

I ffi Ii I &

pessoa moral da França e à consciência


De Gaulle dos franceses. Ele é todos os franceses!
Conhece suas capacidades. Sabe que
reencontra o estado seu destino será para sempre a solidão e
que assumiu a responsabilidade por um
povo de cegos..." (Tesson, De Gaulle
Chegando a Paris, De Gaulle não se 1 er, Albin Michel, 1965).
dirige à Câmara Municipal, onde o es-
peravam impacientemente os membros
do Conselho Nacional da Resistência e "CHURCHILL7 Um bandido
do Comitê de Libertação de Paris, a fim
de que proclamasse a República. Não e um canalha!"
há necessidade de proclamar a Repúbli-
ca, porque esta nunca esteve morta, sus-
"No dia II de novembro, Paris acolhe
tenta o general. Dirige-se imediatamen-
Winston Churchill. É um acontecimen-
te ao Ministério da Guerra, ao seu gabi-
to memorável. Churchill é o símbolo do
nete de subsecretário da Guerra, no
mundo livre que lutou contra a tirania
tempo do governo Reynaud. Vai ao
nazista. Com uma insistência que acaba
"reencontro" do Estado em sua legíti- por irritar De Gaulle, o aplauso dos pa-
ma sede e recusa a investidura das for- risienses redobra de intensidade quando
ças populares e da Resistência. Churchill passa em frente à estátua de
Clemenceau. E então De Gaulle mur-
mura a uma alta personalidade de seu
Eatribui-se o séqüito algumas frases espantosas, car-
regadas de fel e veneno contra a multi-
destino da Franca
,
dão e contra o estadista inglês: 'Creti-
nos, imbecis! Olhem só, aplaudem
aquele bandido, aquele canalha 1...
"Desde a libertação de Paris, De Gaul- Provavelmente, De Gaulle relembrava,
le está à procura de seu povo. A legiti- naquele instante, as tribulações do
midade de seu mandato se estende à exílio londrino, as traiçoeiras astúcias

80
maneira a assegurar à França um lugar entre os vencedores à mesa
das negociações; adotar todas as medidas administrativas, políticas
e econômicas para normalizar a vida do país. Além disso, deve pro-
ceder ao expurgo dos "traidores" que colaboraram com os alemães,
começando por Pétain. Já no dia 9 de setembro, o general constitui
um governo de "Unidade Nacional", com a participação de antigos
membros do Governo Provisório de Argel e homens dos Comitês
de Libertação, inclusive os comunistas. Passado pouco mais de um
mês, o governo de De Gaulle é oficialmente reconhecido pelas po-

,
de Churchill, que o vigiava constante-
mente e lhe concedia a conta-gotas as
Bernanos: "E difícil
armas, o dinheiro e a investidura ofi-
cial.,;" (Mário Costa, ob. cit.).
discutircom este homem"

DE GAULLE EA CULTURA o escritor Georges Bernanos, refugia-


do no Brasil, escreve que um dia rece-
beu da França Hum telegrama redigido
Como estA André Gidel em termos quase militares, com a or-
dem de ser tão gentil que voltasse ime-
François Mauriac, entusiasta admira- diatamente para a França. Assinado:
dor do general, mesmo sem o conhecer De Gaulle. Um patrão que eu não co-
pessoalmente, se encontra com De nhecia. Sem dúvida, tal fato me lison-
Gaulle pela primeira vez no dia L9 de jeou, pois cada qual tem suas fraquezas.
setembro de 1944, durante um jantar. Mas também me irritou. Ele também
HQ que me desconcertou - escreverá acreditava poder dispor dos homens?
mais tarde em seu livro De Gau/le - Respondi-lhe com outro telegrama,
foi precisamente o fato de o drama que esclarecendo com diplomacia que es-
estávamos vivendo ter apenas começa- tava mais que pronto a voltar à pátria,
do. Quem teria acreditado? De Gaulle mas que tinha comigo uma família nu-
me pedia notícias de André Gide! In- merosa, muitos móveis sem valor que,
teressava-se pela Academia, pelas ca- no entanto, eram preciosos para mim,
deiras vacantes! Então eu me dava con- cães, gatos, cabras e meu papagaio.
ta de que para este homem a liberta- Portanto precisaria de um navio para
ção de Paris devia ter sido um momento transportar toda a minha mudança.
essencial, sem dúvida, mas que ele ain- Com muito desgosto, etc., etc. Assim,
da não se esquecera do tempo vivido acreditei poder ficar tranqüilo... Pas-
após junho de L940, nem se descuidava saram-se dois meses. Um dia, alguém
do tempo futuro, até que a nação tives- entrou em meu jardim, Era um oficial
se sido novamente reintegrada em seu da marinha. Saudou-me, dizendo que
legítimo poder e na própria glória". vinha da parte do Gen. De Gaulle e que

8L
tências aliadas. Agora, seguro do apoio dos anglo-americanos - aos
quais, por sinal, solicita duas divisões para restabelecer, em caso de
necessidade, a ordem interna - , De Gaulle passa a eliminar as
organizações armadas independentes. Um decreto governamental
dissolve as forças civis e incorpora ao exército regular todos os que
pretendem continuar a luta contra os nazistas. Os comunistas não
aceitam o decreto e ameaçam fazer uma revolução. De Gaulle os
domina, tratando diretamente com Stalin. Com efeito, no início de
dezembro, vai a Moscou e assina um tratado de amizade entre a

!IU

o navio estava esperando. Comecei franceses. Dos 228 mil que passaram
então a compreender que com aquele pelos campos de concentração alemães
senhor era difícil discutir..." (contado por motivos políticos ou raciais, apenas
por Georges Bernanos em 1947, pouco 28 mil conseguiram sobreviver. Foram
antes de sua morte, publicado por 30 mil os reféns retirados das prisões
L 'Express, novembro de 1970). francesas e fuzilados em represália. Os
comunistas tiveram 75 mil tombados
em combates ou fuzilados por represá-
Os trágicos números lia, entre os quais numerosos dirigentes
e personalidades notáveis. O PCF ga-
nhou para si o glorioso título de Parti-
da guerra do dos Fuzilados'.
f

Os danos sofridos pela França em con-


"Depois da libertação de Paris (25 de seqüência da ocupação foram calcula-
abril de 1944), os patriotas franceses dos em 1.440 bilhões de francos (no va-
liberaram, fazendo uso unicamente de lor de 1939). Somente as despesas dire-
suas forças militares, metade do territó- tas da ocupação montaram a 865 bi-
lhões de francos" (Enciclopédia dell'An-
rio nacional, incluindo cidades impor-
tantes como Poitiers, Tolosa, Mont- tifascismo; ob. cit.).
pellier, Limoges, Clermont-Ferrand. A
11 Guerra Mundial custou aos franceses
688 mil mortos, dos quais 95 mil na fase
inicial do conflito na França (1939-40),
li mil durante a campanha da África,
A RESISTÊNCIA
7 mil na Itália e Córsega, 25 mil na ar-
mada de De Gaulle, 400 mil combaten- contra De Gaulle
tes da Resistência deportados ou fuzila-
dos, 152 mil civis mortos nos bombar-
deios. Segundo dados denunciados no As relações que De Gaulle estabelece
processo de Nurernberg, os nazistas de- com a Resistência não são das mais sim-
portaram para a Alemanha 963.813 páticas. Serge Ral'anel, um dos chefes

82

I I "I~. I ~u I U I d ~.~ I f'" ~ I I [ ' , ~ I I I


U.R.S.S. e a França. No plano internacional, Stalin não lhe concede
nada além de uma benévola e vaga promessa de apoio, ao mesmo
tempo em que não aprova nem as exigências francesas a respeito do
desmembramento da Alemanha, nem a pretensão gaullista de se re-
conhecer a França como uma vencedora da guerra "com direitos
iguais". Mas no plano da política interna, a manobra consegue êxi-
to. Já regressara à França, vindo de Moscou com a permissão de
De Gaul1e, o secretário-geral do Partido Comunista Francês (PCf")
Maurice Thorez, condenado à morte por crime de deserção pelo

da Resistência da região de Tolosa, re- por regra afastar os dirigentes da Resis-


corda o grande entusiasmo com que ele tência interna, considerados por ele
e seus companheiros esperavam a visita como pouco seguros por terem armado
de De Gaulle no dia 16 de setembro de e servido o país fora de seu controle e
1944: "Lembro ainda a nuvem de con- sem sua permissão. A seus olhos, nada
fetes lançados dos tetos quando ele pas- era mais perigoso do que o patriotismo
sava e a multidão imensa e feliz que o não marcado com a Cruz de Lorena. O
esperava na Praça do Capitólio. No en- dicionário gaullista, imitando neste
tanto, seu comportamento foi bem di- ponto o stalinista retocou as páginas
ferente do que esperávamos. Altivo, que narram a verdadeira história da luta
agressivo nas entrevistas com os diri- contra o inimigo. Além disso igualou os
gentes da Resistência, nos fez com- serviços prestados ao Gen. De Gaulle
preender que viera a fim de 'pôr um aos prestados à França, enquanto os
pouco de ordem' e enviar os resistentes serviços prestados à França, masque
de volta a suas ocupações habituais... A não contribuíram para a glória do Gen.
estada de De Gaulle foi sentida por De Gaulle, foram classificados como
muitos companheiros como um verda- ínfimos. Assim, depois de haver elimi-
deiro drama e eu me recordo que mui- nado qualquer concorrência, o gaullis-
tos choravam lágrimas sentidas diante mo pôde fazer do patriotismo, transfor-
da prefeitura. Um deles até chegou a mado em monopólio, um comércio
lançar a idéia de prender De Gaulle !" muito florescente, que durante muitos
(citado em Mémoires de Votre Temps,- anos produziu vultosa renda" (François
"Memórias de Vosso Tempo" -, Ed. Mitterrand, Ma Part de Verité, - HMi-
Calmann-Lévy, 1967). nha Parte de Verdade" -, Fayard,
1969).
DE GAUllE contra a Resistência
Todos, porém, querem a
"Em Londres e em Argel, vivia rodea- grandeza da França
do de uma equipe ligada à sua pessoa e
a seus passos. Confiava unicamente em Não tomando em consideração os con-
seus homens. Voltando a Paris, tinha trastes que separam De Gaulle e a Re-

83
governo de Vichy. É o próprio Thorez quem impõe às organizações
de esquerda a dissolução das milícias e a entrega de todas as armas
ao exército - única força habilitada a agir, para todos os efeitos,
em nome do Estado. Em meados de dezembro de 1944, quando to-
dos, na França, já alimentam a ilusão de que a guerra está no fim, os
alemães contra-atacam na frente das Ardenas e rompem as linhas
aliadas. Eisenhower expede a ordem de evacuar a Alsácia e Strasbur-
go. Mas De GaulIe se recusa a "abandonar ao inimigo um pedaço
de território francês" e impõe ao primeiro exército do Gen. de Lattre

sistência, a vontade comum de ambas


as partes é restaurar a grandeza da
DESPREZO NÃO:
França. Num documento do Conselho Distância intransponível
Nacional da Resistência, realmente se
afirmava: "É necessário defender a in- "Percebi, durante meu primeiro encon-
dependência política e econômica da tro com De Gaulle, não tanto o despre-
nação, restabelecer a França em seu zo que seus adversários atribuem ao
poder, em sua grandeza, em sua missão general em relação a todos os homens,
universal" (citado por H. Michel e B. quanto a mínima, mas intransponível
Mirkine-Guetzevitch, Les ldées Politi- distância entre nós e ele. Não a distân-
ques et Sociales de la Résistance, - "As cia criada pelo orgulho da grandeza
Idéias Políticas e Sociais da Resistên- consciente de si, mas a que se origina
cia" - , P.U.F., 1954). da tranqüila certeza de ser o Estado,
aliás, a própria França. Quanto a mim,
'pesquisador do espírito humano' por
UR1 férreo profissão, eu estava sentado diante de
alguém que se identificava com a Fran-
ça e o dizia abertamente: 'Eu sou a
desprezo França', e ninguém no mundo conside-
ra uma loucura tal afirmação. Persona-
gens eu inventara muitos, mas, acredi-
..Arrogante, De Gaulle não ama os ho- tem ou não, jamais vira um com meus
mens. Manifesta um 'férreo desprezo' olhos. E o que agora estava diante de
pelo povo. Embevecido com sua supe- mim, mítico e ao mesmo tempo de car-
rioridade, De Gaulle se toma por um ne e osso, shakespeariano e atual, con-
daqueles heróis predestinados a con- temporaneamente vivo e viçoso, histó-
vulsionar a História. A seus olhos, a rico e literário, facilmente eu o teria
França não era o povo das oficinas e seguido de perto, nas primeiras filas,
dos campos. Era ele mesmo..." (Mauri- durante o último ato de uma represen-
ce Thorez, Fils du Peuple, - "Filho do tação, cujas primeiras cenas se desen-
Povo" - , Ed. Sociales, 1960). rolaram longe de mim e das quais eu

84

I 11.11 ,li I " I I 'i


de Tassigny a tarefa de defender a cidade "a qualquer preço". Pro-
testando e soltando imprecações, Eisenhower é constrangido a
dobrar-se à vontade do incômodo aliado. Suas tropas partem para o
contra-ataque e, em princípios de fevereiro de 1945, os nazistas
começam a sofrer a derrocada. Sua retirada termina somente em
Berlim. E quando os ocidentais entram na capital alemã, já conquis-
tada pelos russos, com eles estão também os soldados franceses. A
8 de maio, De Gaulle proclama no rádio: "Vencemos a guerra! Viva
a vitória! É a vitória das nações unidas e é a vitória da França!" Mas

ouvira apenas um eco deformado" para o Oeste. Na realidade, ele não se


(François Mauriac, De Gaul/e, ob. cit.). preocupa com isso. É apolítico. Gran-
diosa e estéril, sua vontade de poder se
desdobra nua, em estado puro, nova-
De Gaulle é amoral zio" (Jacques Soustelle, ob. cit.).

Com a política do poder


HNo universo histórico, segundo a visão conquista os franceses
de Charles De Gaulle, o exercício do
poder é um fim em si mesmo. Não se HO prestígio de De Gaulle entre seu
submete a nenhuma regra superior. Não povo cresceu ainda mais durante aque-
pode nem deve ser moral ou imoral. É le inverno. Alguns franceses, que ha-
simplesmente amoral. Naturalmente, se viam considerado o general uma simples
para atingir o cume do poder, ou para aí marionete dos ingleses e que não se
permanecer, for necessário suscitar a deixaram impressionar por seu famoso
esperança em alguns, o temor em ou- repúdio ao armistício com a Alemanha,
tros, fazer hoje o jogo da democracia e agora se tornavam seus entusiastas ad-
amanhã o da verdade, sempre e em miradores. No momento em que a po-
todas as ocasiões se deve bater a tecla tência francesa atingira o nível mais
exata, no teclado das emoções e das baixo de toda a sua história, pude verifi-
paixões. Mas este 'Príncipe' à Maquia- car que os homens da França - e as
vel, não se deixa contaminar pelos mo- mulheres mais ainda - eram gratos a
vimentos de espírito que desencadeia De Gaulle porque ele sustentava seu or-
nos outros. Como o engenheiro que, gulho nacional" (Murphy, op. cit.),
diante do complicado quadro de uma
central elétrica, liga e desliga os circui-
tos, ele está atento somente ao objetivo Jit' um chefe político
almejado: a potência que se esforça por
governar... Muitas vezes a gente se per- "Chefe da França Livre, De Gaulle
gunta se De Gaulle é de direita ou de jamais intervirá diretamente nas opera-
esquerda, se se inclina 'para o Leste ou ções militares, sobre as quais, por outro

85
os aliados não demonstraram ter a mesma opinião sobre este último
ponto. Para a Conferência de Ialta (fevereiro de 1945), onde se deci-
diu a futura ordem do mundo, a França não foi convidada. E se con-
seguiu obter uma pequena zona de ocupação na Alemanha, deve-o
unicamente aos insistentes pedidos de Churchill, que se sente es-
magado entre os colossos russo e americano. A morte de Roosevelt
(abril de 1945), aparentemente, não modifica a situação, ainda que
Truman não nutra por De Gaulle a antipatia de seu predecessor.
A França, com efeito, não é convocada nem para a Conferência de

lado, os reduzidíssimos efetivos de que papel na política de De Gaulle. Neste


dispõe não lhe permitem nenhum con- caso, ele executa uma Realpolitik (po-
trole concreto. Quer ser um homem de lítica realista) notavelmente cínica: em
Estado e não apenas um soldado. Por seus colóquios com Stalin, aprova a
evidentes razões políticas, fará Leclerc anexação à Polônia dos territórios situa-
marchar sobre Paris e imporá a Jean de dos a leste da linha Oder-Neisse" (A.
Lattre que permaneça em Strasburgo, Grosser, La IV République et sa Politi-
malgrado a ordem de retirada do co- que Extérieure, - HA IV República e
mando interaliado. Além disso, incitará Sua Política Exterior" -, Colin, 1972).
o chefe do I Exército a transpor o Reno
e a apossar-se de uma zona de ocupa-
ção da Alemanha já vencida" (Jean De Gaulle ameaça
Planchais, HLe Théoricien Militaire et a Inglaterra
le Soldat", em Le Monde, 11 de novem-
bro de 1970). "Desconfiança contra a Inglaterra,
abertura para a V.R.S.S. e tensão com
os E. V.A., eis o estado das relações da
Na corte de Stalin França com os três grandes aliados,
quatro meses após o reconhecimento do
"Três motivos induziram De Gaulle a Governo Provisório" - escreve Guy de
procurar a aliança com Moscou, alian- Carmoy no livro Les Po/itiques Etran-
ça clássica e tradicional como a da 111 geres de la France r'Política Exterior da
República com o czar. O primeiro é o França", La Table Ronde, 1967). HNos
medo da Alemanha. O segundo, a von- meses seguintes, as relações com os in-
tade de afirmar sua independência nas gleses se deterioram, sem que a aliança
relações com os anglo-americanos. E o com a V.R.S.S. traga uma compensa-
terceiro, uma consideração de política ção. Surge também um incidente com
interna: o acordo com Stalin facilita a os E.V.A., por causa da ordem emitida
participação dos comunistas no esforço por De Gaulle a Juin para anexar alguns
de reconstrução nacional. Os senti- pedaços de território italiano. Robert
mentos não desempenham nenhum Murphy reporta que a França não foi

86

, I jJ . , ~
"'1 ,I I I, I· I, '1
Potsdam (julho-agosto de 1945), mas em compensação é admitida a
assinar também as decisões: discretamente reingressa no rol das gran-
des potências. Por seu turno, De Gaulle procurou recuperar o tempo,
com um engrandecimento territorial e com a retomada do controle
do império colonial. Mandou ocupar militarmente o Vale d'Aosta,
mas tanto a oposição dos civis como a de Truman o fizeram retroce-
der. Em maio de 1945, tentou recuperar o controle sobre a Síria
e o Líbano, esbarrando com a inesperada hostilidade dos ingleses,
que apóiam o desejo de independência da população local. Ainda

convidada para a Conferência de Pots- seurs des Alpes ocupou as colinas de


dam porque Truman estava indignado Piccolo San Bernardo e de Rhêmes,
com o comportamento francês. Um in- bem como o vale até Pré-St.-Didier.
cidente mais grave colocou a França Somente a intervenção conjunta dos
contra a Inglaterra, a propósito do Lí- aliados, das autoridades do CLN, do
bano e da Síria. Os ingleses impuseram governador Passerin d'Entreves e do
aos franceses a ordem de cessar as hos- prefeito de Aosta, Carla Torrione, con-
tilidades militares, iniciadas por ordem seguiu impedir que a ocupação se es-
de Paris, com a finalidade de reconquis- tendesse por todo o vale. Mas a inter-
tar as duas ex-colônias. Nessa ocasião, venção não conseguiu evitar, por outro
o Gen. De Gaulle pronuncia uma frase lado, os choques entre as duas corren-
violenta, em sua conversa com o embai- tes da autonomia do vale: uma orien-
xador inglês: 'Reconheço que atual- tada para a simples autonomia adminis-
mente não estamos em condições de vos trativa dentro do Estado italiano e a
fazer guerra. Mas vós ultrajastes a Fran- outra separatista, exigindo a anexação
ça e ofendestes o Ocidente. É uma coisa do Vale. de Aosta à França" (da Enci-
que não pode, jamais, ser esquecida!' " clopédia dell'Antlfascismo e della Resis-
tenza, ob. cit.).
Equer o vale de Aosta
HO programa de reivindicações territo-
riais do Gen. De Gaulle em relação à
OS CHOQUES
Itália compreendia, entre outras coisas
todo o Vale de Aosta, até Ivres. Aliás, COMTRUMAN
na última fase da guerra de libertação,
aumentara muito o número de residen-
tes no local que aprovava a anexação à Em suas Memórias (Mondadori, 1956),
França e neste sentido se desencadeara o presidente americano Truman fala
uma forte propaganda, sustentada por das muitas dificuldades que teve com
agentes gaullistas. No dia 29 de maio de De Gaulle HQ grande general era um
1945, a I Divisão Francesa dos Chas- homem de extraordinária coragem, que

87
em maio de 1945, sufocou com as armas duas manifestações de par-
tidários da independência argelina em Sétif e em Guelma. A seguir,
em outubro, envia o exército colonial de Leclerc à reconquista da
Indochina. Não obstante os acordos assinados, a 6 de março de
1946, pelo enviado especial Jean Sainteny com Ho Chi-Minh, e
graças aos quais ficou reconhecida a independência da República do
Vietnam, em novembro o Alm. d' Argenlieu manda bombardear o
porto e a cidade de Haiphong. O Viet-Minh responde com a guerri-
lha. É o início do drama da Indochina que terminará em 1954. li

II IIII 1I j 11m !lI 1I1 WiI

em 1940 havia prestado heróicos servi- A obra-prima do Gaullismo


ços à França. No entanto, os métodos
que seguia para defender a causa nacio- "Após a morte de Roosevelt, De Gaulle
nal francesa nem sempre obedeciam a obtém o máximo: a França é a quarta
diretivas pacíficas. Houve o incidente potência ocupando a Alemanha e signa-
da ocupação francesa de Stuttgart, idea- tária dos acordos de Potsdam, tendo
lizada por De Gaulle no intento de também o direito de veto no Conselho
pressionar-nos e poder, assim, escolher de Segurança da ONV, com E.V.A.,
por si uma zona de ocupação... Outro Inglaterra, V.R.S.S. e China (naciona-
incidente mais grave foi a tentativa uni- lista). Até aqui, pode-se considerar com
lateral francesa de ocupar parte do Vale simpatia a pertinácia mostrada por De
de Aosta." De Gaulle resistiu às pres- Gaulle em agarrar com unhas e dentes
sões de Eisenhower para que mandasse a posição mais alta a que a França po-
retirar suas tropas. Chegou até a amea- deria almejar. Era uma posição, como
çar de abrir fogo contra os americanos. acertadamente pensava Rooseve1t,
E foi somente quando Truman lhe en- desproporcional à contribuição dada
viou uma mensagem violentíssima e pela França à vitória aliada, especial-
cheia de ameaças que De Gaulle deci- mente levando-se em consideração a
diu mandar retirar seus homens. aprovação dada pela maioria dos fran-
ceses, ao menos até 1942, à política de
Lavai e de Pétain. A habilidade do Gen.
Cburchill telegrafou a Truman, desa- De Gaulle foi tão grande que conseguiu
conselhando-o a tornar pública sua inverter a situação, criando, como que
mensagem a De Gaulle Hem vista da por magia, a ilusão de que todos os fran-
extrema suscetibilidade que os france- ceses, desde o primeiro instante, se ti-
ses demonstravam naquele período" e vessem alinhado sob sua liderança. Esta
conclui: "Depois de cinco anos de ex- é a verdadeira obra-prima do gaullis-
periência, estou convencido de que De mo" (Mário Costa, ob. cit.).
Gaulle seja, neste momento difícil, o
pior inimigo da França e um dos maio- Fotografia oficial do
res perigos para a paz da Europa". Preso De Gaulle, em 1961.

88

- - ------- ----- ----j",----


o EXPURGO DOS COLABORACIONISTAS dura praticamente de 1944 a
1946. Apenas assume o poder, De Gaulle se apressa em instituir
tribunais especiais para evitar, com uma justiça de Estado, os perigos
de uma indiscriminada justiça popular (que, no entanto, existiu em
alguns casos). As condenações - que variam desde a pena de morte
até a de "indignidade nacional" ~ podem ser calculadas pela média
entre as 80 mil apontadas pelas fontes oficiais e as 400 mil indicadas
pelos inimigos do expurgo. O processo mais clamoroso é o do Mal.
Pétain. Após uma série de sessões tempestuosas, o marechal é conde-

I1 1I 1 111111111

os TRÊS EXPURGOS pelos excessos do expurgo. Sofri mais


do que possa expressar em palavras:
houvera bastante heroísmo para lavar
o expurgo dos "colaboracionistas" se toda a vergonha. Sofri porque a Resis-
distingue em: tência, que tinha o poder nas mãos,
montava o mecanismo de uma falsa
1. Represálias espontâneas - reação justiça" (Mauriac, Crônicas Políticas,
imediata e livre da população durante e Mondadori, 1968).
depois da Libertação. É um expurgo ar-
bitrário. Execuções sumárias ...

2. Expurgos realizados pela Resistência - Sisley HuddlestoD, fascista inglês que


os Comitês de Libertação criam "tribu- conseguira adquirir a cidadania de
nais populares" e a FFI institui "cortes 'Vichy', conta em seu livro France: The
marciais" . Tragic Years 1939 - 1947 "França: Os
trágicos Anos de 1939 a 1947") que assis-
3. Expurgo do governo - no dia 15 de tiu pessoalmente a muitas "das execu-
setembro de 1944, o chanceler cria as ções a sangue-frio de mais de 100 mil
"Cortes Especiais de Justiça". Um de- colaboracionistas... denunciados pelos
creto de 18 de novembro institui a HSU - verdadeiros colaboracionistas, que ago-
prema Corte de Justiça" para processar ra se dizem comunistas".
os membros do governo de Vichy" (G.
Dupeux, La France de 1945 à 1965, Alexander Werth: PfA cifra de 100 mil
Colin, 1969). execuções é uma fábula absolutamente
desprovida de qualquer fundamento".
Os desmandos da Resistência
Brune: ministro do Interior no governo
"0 que pressenti de tudo isso no mo- Pinay, declarou diante da Assembléia
mento da Libertação? Pois bem, não Nacionai em outubro de 1952: "Uma
pressenti absolutamente nada. Vivia pesquisa realizada em 1948 entre os
no presente, atormentado sobretudo governadores das províncias mostra que
nado à morte. De Gaulle - o único detentor do direito de conceder
tal favor - comuta a pena para prisão perpétua. O marechal mor-
rerá em 1951, no cárcere da ilha de Yeu. No entanto, De Gaulle não
comuta a pena de LavaI - a ovelha negra do regime de Vichy - nem
a do escritor Robert Brasillach (apesar de uma imponente mobiliza-
ção dos intelectuais da França em seu favor, tendo à testa o próprio
Mauriac). A lua-de-mel do Gen. De Gaulle com os partidos políticos
reconstituídos começa a desaparecer no horizonte já nos primeiros
meses de 1945. São dois os principais pontos de atrito: Charles De

ali 11 I I 111

o número aproximado das execuções condenações perpétuas a trabalhos for-


sumárias gira em torno de 10 mil, das çados; 9.577 condenações temporárias
quais 5.234 ocorreram já antes da Li- a trabalhos forçados; 1.820 reclusões;
bertação e 3.114 foram realizadas de- 19.193 prisões e 6.781 absolvições. Dos
pois da Libertação, sem nenhum pro- tribunais civis: 40.787 condenações à
cesso, ao passo que 1.325 penas de degradação nacional; 10.418 absolvi-
morte foram pronunciadas depois da ções... Os pedidos de indultos foram em
Libertação". número de 33.349, dos quais apenas 6
mil foram aceitos e estes quase sempre
eram de importância mínima, como
dois meses de prisão..." (JournaJ O.fficie/,
... e justiça 6 de agosto de 1946).

A loteria da morte
oficial !~É um tempo de extrema desordem, de
assassínios, de depredações, de saques.
Declarações do ministro chanceler ao Os tribunais, aparelhados com uma le-
parlamento: Até o presente momento
H gislação retrógrada, dominados pelos
foram abertos 125.243 inquéritos infor- júris dos civis, punem as mesmas culpas
mativos. Destes, 46.997 foram transfe- com penas que variam segundo os luga-
ridos aos tribunais militares, 21.304 aos res" - escreve Alfred Fabre-Luce (ob.
tribunais civis e 41 mil foram arquiva- cit.), HÉ uma loteria onde se pode ga-
dos. As cortes criminais emitiram 44.737 nhar a morte ou a absolvição, de acor-
sentenças condenatórias, as civis, apro- do com as relações que se mantém com
ximadamente 575.824 (aos 21.304 in- o Partido Comunista. Uma frase típica
quéritos se ajuntou grande número de de De Gaulle define o valor exato de
denúncias dos Comitês de Libertação. tal procedimento. Quando Stalin lhe
Atualmente, restam ainda 15.852 casos pediu, em Moscou, para não mandar
para exame. Eis as sentenças dos tribu- prender Thorez, o desertor, o general
nais penais: 4.783 penas de morte; 1.796 lhe respondeu: 'O governo francês tra-

91
Gaulle quer governar a seu modo, sem ter as mãos amarradas por
ninguém; no entanto se esforça para que seja criado um regime
presidencial, com um forte executivo, responsável perante o presi-
dente da República e não perante o Parlamento. Em suma, um regi-
me que ponha a França a salvo das contínuas crises ministeriais que
atormentaram a vida da III República. Os partidos, no entanto, são
por uma participação imediata na gestão dos negócios públicos -
que De Gaulle controla como um patrão - e por um regime parla-
mentarista. Submete-se o problema institucional a um referendum

ta os franceses segundo os serviços que Brasillach. São dois casos por demais
deles se espera.' " clamorosos, de pessoas para as quais
entram em jogo as razões de Estado, ou
que concernem à sua própria legitimi-
Fazemos as dade. No entanto, ele intervém quando
se trata dos inumeráveis processos que
coisas em regra se realizam em todo o país. Mas sua
intervenção jamais é pública. Se ma-
nifestasse, abertamente, sua clemência,
Respondendo a uma entrevista televi- teria esbarrado em obstáculos intrans-
sionada, François de Menthon, supre- poníveis, sobretudo as reações da opi-
mo ministro da Justiça da França liber- nião pública e da Resistência. Clandes-
tada, respondeu: "Nos dias que prece- tinamente, no seu gabinete presidencial,
deram ou imediatamente seguiram mi- em presença do único magistrado em
nhaposse houve, efetivamente, certo quem tinha confiança, Patin, De Gaulle
número de execuções sumárias e de anulou, ou pelo menos atenuou, dois
paródias de justiça. Mas, desde o início, terços das condenações" (R. Aron, De
nosso primeiro objetivo foi o de instalar Gaulle, ob. cit.).
Cortes de Justiça regulares" (em Mé-
moires de Votre Temps, Calmann-Lévy,
1967). Claude M auriac:
De Gaulle e o expurgo
"Preocupação e Angústia"
"Nestes dias, De Gaulle tem uma fisio-
A graça clandestina nomia preocupada. E, sem dúvida, tem
motivos para estar angustiado. Sobretu-
HDe Gaulle jamais intervém quando se do por aquele seu direito de conceder
trata do processo de alguma grande indultos, que inclui também o dever de
vedeta da colaboração com os nazistas não abusar dele, direito que em sua
ou do governo de Vichy. Não concede- grande consciência não quer delegar a
rá graça a Pétain e deixará executar ninguém, nem mesmo parcialmente."

92
popular, que se realiza no dia 21 de outubro de 1945, conjuntamente
às primeiras eleições políticas do após-guerra. Três doutrinas se
entrechocam: a comunista: eleição de uma assembléia constituinte e
legislativa, sem limite de tempo e dotada de todos os poderes; a de
De Gaulle, dos católicos do MRP e dos socialistas da SFIO, que aceitam
a eleição de uma constituinte, mas com poderes limitados, para sete
meses apenas, depois dos quais o projeto de constituição deverá
ser aprovado por um referendum popular. E, por fim, a dos conserva-
dores, que exigem o retorno puro e simples à constituição da III

o "gosto" pelos chega a saber que a 24 do mesmo mês


seria instaurado em Paris seu processo,
tribunais especiais à revelia. Escreve a Hitler: "Sem faltar
à minha honra, não posso dar a impres-
HO expurgo faliu. Levado longe demais são, como insinuam certas propagandas
contra os 'pequenos' colaboracionistas tendenciosas, de me ter refugiado em
e admiradores de Vichy, deixou passar terra estrangeira para fugir às minhas
nas malhas de sua rede muitos culpados responsabilidades. Penso que é somente
ricos e influentes, pois o tal expurgo já a França o lugar onde devo responder
estava viciado desde o início pelas pai- por minhas ações. Por isso tenho a hon-
xões nascidas das circunstâncias ou, ra de pedir a Vossa Excelência que me
mais freqüentemente, das contendas dê esta possibilidade". Hitler não lhe
pessoais... Teria sido muito mais sábio responde. Mas bem depressa o desas-
castigar alguns líderes para dar o exem- tre alemão permite a Pétain refugiar-se
plo e depois jogar sobre os demais o na Suíça (no dia 24 de abril). Um agente
manto do esquecimento. É sempre aduaneiro o saúda: "Feliz aniversário,
abominável a instituição de tribunais senhor marechal!" Pois naquele dia
especiais. Mais uma vez, durante sua Pétain completava 89 anos! (Extraído
carreira, De Gaulle demonstraria um de O Processo Pétain, Ed. Amigos da
gosto especial por essa caricatura da História, 1970).
justiça" (Jacques Soustelle, O Gaul/is-
mo, ob. cit.). o PROCESSO DO
Philippe Pétain retorna MARECHAL
Pétain não se demora na Suíça mais de
Philippe Pétain, muito a contragosto, 48 horas. As autoridades suíças se ha-
viu-se constrangido a deixar Vichy no viam declarado dispostas a conceder-
dia 20 de agosto de 1944, sendo interna- lhe asilo político, negado antes a Laval.
do pelos alemães em Sigrnaringen, às E o próprio De Gaulle havia informado
margens do Danúbio. Em abril de 1945 o governo suíço Cfna surdina" - como

93
República. A resposta popular: 96% rejeitam o retorno à 111 Repú-
blica e 660/0 aceitam a tese gaullista sobre a limitação dos poderes.
Vencido no referendum, o PCF ganha terreno no plano eleitoral, con-
quistando mais de 5 milhões de votos e 160 cadeiras na Assembléia,
contra 152 do MRP e 142 da SFIO. É agora o principal partido fran-
cês e se prepara a dar combate, na área parlamentar, ao superpoder
de De Gaulle. Contudo, o PCF também vota em bloco, com todos os
outros alinhamentos políticos, pela nomeação de De Gaulle para
chefe do Governo Provisório (13 de novembro). A composição do

lU ! U III

revela T ournoux no livro Pétain et De E a sentenca


• de
Gau//e) que desejaria que o marechal
permanecesse na Suíça. "Se o marechal De Gaulle:
voltar, o processo não poderá ser evita-
do politicamente - confiou ele a seus PRISÃO PERPÉTUA
colaboradores - e tal processo servirá
apenas para reabrir as divisões entre Na verdade, a sorte de Pétain já está
os franceses e prejudicar a unidade na- decidida logo no início do processo.
cional" . Tournoux, no livro Pétain et De Gaulle,
afirma: "Sem que os jurados o saibam,
a decisão de De Gaulle não admite ape-
A sentenca

do lação. De fato, ele comunicou aos mi-
nistros interessados: '0 marechal deve
tribunal: MORTE ser condenado à morte... Neste caso,
devem contar apenas as razões de Es-
o processo de Pétain foi iniciado no tado. No entanto, não é absolutamente
dia 23 de julho de 1945, às 13h 30m, e imaginável que eu mande Pétain en-
terminou no dia 15 de agosto de 1945, frentar o pelotão de fuzilamento. Tudo
às 4 h da manhã. Antes de os jurados ficaria muito mais fácil para mim se,
abandonarem a sala de sessões, o mare- depois de ter condenado Pétain, os ju-
chal, saindo do mutismo adotado duran- rados exprimissem o desejo de que a pe-
te o processo; declarou: "Um marechal na fosse comutada' ". E assim acontece:
de França não pede misericórdia a nin- De Gaulle comuta a pena em prisão
guém. Ao vosso julgamento responde- perpétua.
rão o julgamento de Deus e o da poste-
ridade". A sentença: morte, execração Como Lady M acbeth J
nacional e confisco dos bens. Os votos
foram quatorze a favor da sentença e o general britânico Spears escreveu em
treze contra. No entanto, a Alta Corte 1971 um artigo violentíssimo a respeito
de Justiça "faz votos para que a conde- da sorte que De Gaulle havia reservado
nação à morte não seja executada". a Pétain: "O Gen. De Gaulle era, sem

94

.,
ministério, porém, de súbito se revela dificílima, por causa da exi-
gência comunista que pretende obter um dos "ministérios chaves" -
da Guerra, do Interior ou do Exterior - os quais, ao contrário, De
Gaulle não quer, absolutamente, conceder-lhes. O general ameaça
pedir demissão, e o PCF é constrangido a dar marcha à ré. Afinal, as
duas "forças" encontram o meio termo: os 'comunistas não terão o
ministério exigido, mas conseguem, assim mesmo, cinco postos im-
portantes no governo. No dia 21 de novembro, a Assembléia aprova
o primeiro governo de De Gaulle. Mas não demora muito e come-

dúvida, um grande homem, como Lady biciosas. Ele não aceitara a oferta de
Macbeth foi certamente uma grande tornar-se o chefe de um partido, porque
mulher, mas inutilmente suplicava que não lhe interessava a dignidade simbó-
a mancha de sangue se apagasse de suas lica de um chefe de Estado que 'reina
mãos. Exatamente como toda a glória mas não governa'. Queria ambos"
de De Gaulle não poderá, jamais, apa- (Lüthy).
gar a mancha que o envergonha pelo
modo como tratou o homem que, em
seu tempo, tinha como ele salvado a Os comunistas salvam
França" (Citado por Isorni, ob. cit.). o regime capitalista

ANOVA FRANÇA HDe 1944 a 1946, o Partido Comunis-


ta Francês geriu com lealdade os in-
Revolucão

e autoridade teresses do regime capitalista. O pon-
to culminante desta política se observa
Em 1945, a França "elegia uma Assem- em outubro de 1954. Os dirigentes po-
bléia Constituinte com a maioria abso- líticos insistem na necessidade de man-
luta comunista e socialista, mas ao mes- ter a união, mesmo com os católicos da
mo tempo dava plenos poderes ao Gen. MRP, agrupados em torno do Gen. De
De Gaulle, para garantir-se contra Gaulle! Um governo de três partidos,
qualquer aventura. 'Revolução' e 'Au- quando os dois - socialista e comunis-
toridade' se contrabalançavam em per- ta - tinham conseguido a maioria ab-
feito equilíbrio. Naturalmente, o Gen. soluta! Em vez de recolher os frutos da
De Gaulle foi encarregado pela Cons- dura luta, viram-se obrigados a formar
tituinte, por decisão unânime, de for- nas fileiras que seguiam De Gaulle,
mar o novo governo. Politicamente, ele depois de terem servilmente solicitado
acabava de assumir, como um árbitro e obtido de sua insigne benevolência o
colocado acima dos partidos, a posição perdão para o secretário-geral do parti-
de presidente da República. Mas este do!" (A. Lecceur, Le Parti Comuniste et
cargo não se adaptava nem a seu cará- la Résistence, - HO Partido Comunista
ter autoritário, nem às suas metas am- e a Resistência" -, Ed. Plon).

95
çam os choques entre o general e o Parlamento. A 31 de dezembro,
para conseguir a aprovação do item que destina 28 por cento do
orçamento da nação às Forças Armadas, De Gaulle se vê obrigado,
mais uma vez, a recorrer à ameaça de demissão. O fato é que ele
pensa em reconstruir a grandeur da França e em recuperar o império
colonial, enquanto os parlamentares prefeririam que se fizesse maior
esforço para a reconstrução econômica e social da nação, que saiu
esgotada da guerra. Outro motivo de atrito entre De Gaulle e o Par-
lamento: a Assembléia quer elaborar o projeto de constituição que

o general troveja particularistas, aparências de ações in-


ternas e externas, sem importância e
contra os partidos sem continuidade" (Mémoires d'Espoir,
De Gaulle: "Ora, como eu tinha a con- Rizzoli Editore, 1970).
vicção "de que a soberania pertence ao
povo quando ele manifesta sua vontade, DE GAULLE SE RETIRA
não podia admitir que ela fosse espezi-
nhada pelos diversos interesses repre- "Num belo domingo de janeiro de 1946,
sentados pelos partidos. A meu ver, a sem nenhum aviso prévio e sem a míni-
obrigação destes era, sem dúvida, con- ma explicação a seus ministros mais
tribuir para a manifestação das opiniões próximos, De Gaulle fez as malas e par-
e, além disso, para a eleição dos depu- tiu. Com a superioridade de um homem
tados que, nas assembléias, deliberas- que se julgava superior às normas par-
sem e votassem as leis. Mas, para que o lamentares, mais uma vez ele pensara
Estado fosse, como deve ser, o instru- em explicar, no dia seguinte à sua de-
mento da unidade francesa, dos interes- missão, num discurso radiofônico trans-
ses superiores da nação, da continuida- mitido a todo o país, que já estava cheio
de da ação nacional, julgava necessário das intrigas partidárias e que deixava os
que o governo dependesse não do Par- partidos 'fazerem sozinhos suas expe-
lamento, ou seja, dos partidos, mas, riências', mantendo-se afastado de suas
acima destes, de um chefe diretamente jogadas mesquinhas, mas sempre pronto
delegado pela nação inteira e posto em a intervir na hora em que surgisse um
condições de querer, decidir e agir. Na novo perigo. Mas o regime parlamentar
falta disso, a multiplicidade de interes- já estava solidamente instalado no go-
ses e tendências, que nos é peculiar em verno há dois meses, o discurso pão foi
virtude de nosso individualismo, de nos- transmitido e somente o texto, mais ou
sas diferenciações, dos germes de divi- menos apócrifo, circulou clandestina-
são deixados por nossos inimigos, leva- mente, como a sentença de condenação
ria de uma vez o Estado a servir apenas pronunciada pelo criador da IV Repú-
de simples palco, onde se confrontariam blica contra sua própria obra" (H.
ideologias inconsistentes, rivalidades Lúthy, ob. cit.).

96

! I, oj_1 ~l I lU ' ~ ~ I I li'" II ·11 j,.' I "", ,H li;/<.' III!


prevê um presidente "decorativo". De improviso, no dia 20 de janei-
ro, De Gaulle convoca o gabinete e comunica aos ministros sua deci-
são de retirar-se. "O regime exclusivo dos partidos retornou à ri-
balta", escreve mais tarde ao presidente da Assembléia. "Eu o de-
saprovo. Contudo, a menos que eu instaure uma ditadura por meio
de força, coisa que não desejo e que, seguramente, acabaria mal,
não disponho dos meios necessários para impedir esta experiência,
Devo, portanto, retirar-me." Demite-se. _

Deca pitou-se Para salvar a França


sozinho Charles De GauUe: A fim de não tomar
ft

Extrato do diário do embaixador inglês medidas extremas nas minhas relações


em Paris, Duff Cooper: "Na véspera do com os eleitos, a fim de não assumir o
aniversário da execução de Luís XVI, o aspecto de um opressor que sucede a
Gen. De Gaulle se guilhotinou a si mes- outros opressores, a fim de não me des-
mo" (Cooper, Au-delà de l'Oubli, - truir a mim mesmo, adotando uma po-
H Além do Esquecimento" -, Gal- sição que a tendência geral dos espíritos
limard, 1960). na França e em todo o Ocidente bem
depressa teria reconhecido como insus-
tentável, a fim de evitar tudo isso eu
POR QUE SAIU? devia permitir que o regime dos parti-
Sondagem de opinião, feita pelo IFOP dos, uma vez mais desfraldasse a sua
a respeito da "abdicação" do general: bandeira nociva à pátria, pois eu resol-
"Por que De Gaul/e saiu?" vera não lhe servir nem de cobertura
- Desentendimento com partidos po- nem de comparsa. Assim chegado o mo-
líticos, Assembléia ou ministros: 28% mento, poderia tornar-me o refúgio e a
- Impossibilidade de realizar a própria defesa, pessoalmente, ou pelo exemplo
política: 15% que deixei. Foi exatamente por isso, e
- Impossibilidade de resolver as difi- também prevendo o futuro, que instituí
culdades econômicas: 9% o referendum ainda antes da eleição da
_. O fato de sentir que perdia a autori- Assembléia, fazendo o povo decidir que
dade: 8% era necessária sua aprovação direta pa-
- Cansaço da luta política: 8% ra que uma Constituição tivesse valida-
- Desacordo em pontos precisos (polí- de. Assim criei o meio democrático
tica alimentar, etc.). 2% para um dia elaborar eu mesmo uma
- Influência de potências estrangei- boa constituição, em lugar da péssima
ras: 17% que estava sendo elaborada pelos parti-
- Cálculo político: 1% dos e para os partidos" (Mémoires d'
- Não sei: 25% Espoir, ob. cit.).

97
-
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~'....
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QUANDO ASSINA A DEMISSÃO, De Gaulle está convencido de que o
povo se insurgirá imediatamente para levá-lo de volta ao poder,
apesar dos "políticos sujos", como define agora com desprezo os
homens dos partidos. Pelo contrário, não acontece absolutamente
nada. O povo está cansado e se preocupa mais com a soupe do que
com a grandeur, e os problemas institucionais. "Les français sont des
veaux", comenta com amargura o general, em seu retiro. E se enclau-
sura em seu enorme desdém. Mas alimenta a certeza de que logo te-
rão necessidade dele. Está realmente convencido de que a terceira

dia 22 de setembro. Talvez por isso, o


Nasce a IV República projeto conseguiu a aprovação pela
A saída de De Gaulle não convulsiona margem mínima: 36,1% dos votos foram
o panorama político francês. No dia 26 favoráveis, 31,2% contrários e 31,4% de
de janeiro de 1946, os três grandes par- abstenções. É o nascimento da IV Re-
tidos que têm a maioria no Parlamento, pública. As três precedentes vão de 1792
os comunistas (PCF), socialistas (SFIO) a 1804~ de 1848 a 1851; de 1870 a 1944.
e católicos (MRP), formam um governo
tripartido, sob a presidência do socialis-
ta Félix Gouin. Em 5 de maio do mesmo DE GAULLE PROCLAMA:
°
ano se realiza o primeiro referendum
constitucional. projeto é apoiado pe-
los comunistas e socialistas e combati-
HUm terço dos franceses aprovou o pro-
jeto, um terço o repeliu e um terço o
do pelo M RP (e por De Gaulle). E é ignorou. Este voto decreta o fim das es-
rejeitado no referendum. Assim, no dia peranças imediatas!"
2 de junho de 1946, realizam-se as elei-
ções para a nova Assembléia Consti-
tuinte. O MRP arranca do PCF a posi-.
ção do primeiro partido, e no dia 13 do .
Guerra fria na Franca
mesmo mês, o católico Bidault se torna
chefe do governo, mantendo sempre o A Assembléia Nacional "normal" da IV
ministério tripartido. A 13 de outubro República é eleita no dia 1O de novem-
do mesmo ano, vota-se o segundo refe- bro de 1946. Os comunistas aumentam
rendum constitucional, num projeto os votos (+ 300 mil), mas perdem terre-
elaborado pelo MRP e SFIO, com o no a SFIO (- 750 mil) e o MRP (-- 600
apoio dos comunistas. De Gaulle se mil). Entre os dias 24 de novembro e 8
insurgiu contra tal projeto num violento de dezembro é eleito o Conselho da Re-
discurso pronunciado em Épinal, no pública (o Senado). Em 16 de janeiro, o
socialista Vincent Auriol assume a pre-
Tombalbaye, presidente sidência da República. Depois de um
do Chade, visita os Campos E/ísios. governo de transição do Partido Socia-

99
Guerra Mundial - travada entre russos e ocidentais, pelo predomí-
nio do mundo - já esteja às portas. Quando os cossacos chegarem às
margens do Sena, os franceses mais uma vez se agarrarão à bandeira
dele. É geral o temor de uma nova guerra. A ruptura entre o Leste
e o Oeste e o início da guerra fria desencadearam em todo o Ociden-
te, e particularmente na França, um verdadeiro terror pelo comu-
nismo. E muitos se aproveitam da situação. Impelido por alguns dos
velhos companheiros fiéis, o general decide retornar à arena política,
para lutar contra o "regime dos partidos". Depois de uma série de

li} Uli

lista (Léon Blum, de 16 de dezembro de para a França futura, como também


1946 Cjl 16 de janeiro de 1947), o socia- era claro que procuraria uma nova fór-
lista Ramadier forma um ministério tri- mula para organizar seu governo" (C.
partido, reforçado por radicais e inde- L. Sulzberger, The Last Df the Giants, -
pendentes. São quase insolúveis os pro- "O Último dos Gigantes" - , MacMil-
blemas econômicos, coloniais, políticos lan, 1970).
e sindicais que o governo tem de enfren-
tar. Bem depressa surgem divergências SOAOAPELO
com o problema da guerra na Indochina
e as grandes greves da Renault, em
1947. No dia 5 de maio desse ano, os co- DORPF
munistas abandonam definitivamente
o governo. Na verdade, uma das princi- "Quando, após uma última discussão
pais causas do rompimento entre os três com os ministros, a quem julga trapa-
partidos é o início da "guerra fria". ceiros, e após uma romântica medita-
ção à beira-mar, De Gaulle decide fazer
da Boisserie seu exílio, apenas brinca
De Gaulle prepara com o azar. Naquele jardim, pensa ele,
passará apenas as férias de verão e um
belo dia chegará a hora de voltar à esco-
a desforra la. Passeia para a frente e para trás nas
alamedas, manda aparar a grama, finge
que se ocupa das árvores. Mas, em seu
"A IV República foi constituída em espírito, aquela é sua Ilha de Elba. A
1946, pouco depois que o general se re- costa não está longe. Um barco, um
tirara para seu exílio político. Imediata- sopro de vento favorável, e o exilado
mente depois, De Gaulle começou a desembarcará nos Campos Elísios, com
organizar, de seu refúgio, o retorno ao o povo apinhado a seu redor... No en-
poder. .. Desde o início era evidente que tanto, as férias se prolongam demais.
ele não se serviria de nenhum dos par- Ele se irrita com tal perda de tempo,
tidos políticos existentes como base multiplica as visitas a seu escritório da

100
discursos inflamados e vigorosos, a 7 de abril de 1947 funda em
Strasburgo o partido Rassemblement du Peuple Français (RPF). Os
primeiros objetivos do Rassemblement são: obter uma revisão
da Constituição de 1946 e levar De Gaulle ao poder. Para o RPF
afluem maciçamente as forças anticomunistas do centro e da direita
e, logo em seguida, também todos os elementos que haviam sustenta-
do Vichy. O RPF obtém um estrondoso triunfo nas eleições munici-
pais de 19 de outubro de 1947, nas quais recolhe quase 40% dos sufrá-
gios. Os comunistas e os socialistas. no entanto, sofrem perdas limi-

Rua Solferino, conspira a seu modo, controlando as coisas. Era preciso pro-
isto é, à maneira militar e imprecisa. vocar uma avalancha que arrastasse tu-
Depois, para encurtar caminho, empu- do consigo e o conduzisse ao poder para
nha a trombeta e faz ressoar o apelo do realizar tas grandes e simples metas,
RPF" (Georges Suffert, L 'Express, 16- sobre as quais todos os franceses estão
22 de novembro de 1970). fundamentalmente de acordo': a ordem
no Estado, a disciplina no trabalho, a
comunidade nacional, o restabeleci-
Quer provocar mento do Império Francês e da gran-
deza da França... t, (H. Líithy, ob. cit.).

uma avalancha
"Urna vez que o Reagrupamento não
Nuremberg!
devia ser um partido, pois nele podiam
entrar todos os franceses, ele aceitava
também a adesão dos que já tinham
Nuremberg!
compromisso com determinada facção
- exceto a dos comunistas, a quem De No livro de memórias Si je mens (Stock,
Gaulle chamava agora de 'separatistas' 1972), a jornalista Françoise Giroud se
e excluía da comunidade nacional. Na pergunta a respeito de De Gaulle: "Era
inundação que se provocou entraram um grande homem? Durante a guerra
também todos os elementos reacioná- foi mais que isso. Foi o Símbolo. Tam-
rios que se lançam com fanatismo em bém, com aquele nome fantástico! Em
qualquer cruzada contra-revolucioná- seguida, você imaginou que ele era fas-
ria e os colaboracionistas que De Gaul- cista, não é verdade? De Gaulle fascis-
le odiara como a peste, e aos quais pare- ta? Jamais! Desafio todos a me aponta-
cia prometer agora, sob sua bandeira, rem uma palavra nesse sentido, escrita
uma ine-sperada desforra contra a abo- nos meus artigos... Depois da guerra,
minável República. Mas não era esse o vi-o de novo por ocasião da criação do
momento indicado para ficar pesando e RPF. Eu estava com Pierre Lazareff,

101
tadas, enquanto o MRP, os radicais e a direita são aniquilados. Infe-
lizmente para De Gaulle, trata-se apenas de eleições municipais. O
poder do Estado continua nas mãos do velho Parlamento, que será
renovado somente em 1951. O general, com um discurso violento,
a
procura acelerar os tempos, pedindo dissolução das câmaras que, ft

evidentemente, não gozam mais da aprovação popular", novas elei-


ções políticas e uma reforma radical da Constituição. Mas obtém
exatamente o oposto do que esperava. Diante de um ultimato em
estilo "fascista", os partidos de centro-esquerda (MRP e SFIO) cer-

11 II li

diretor do France-Soir, que murmurava: maiores bancos franceses e americanos.


'É Nuremberg! É Nuremberg!', diante Este partido, que era a tropa de choque
das bandeiras desfraldadas e da multi- da reação, na sua luta contra o povo
dão delirante". francês, beneficiou-se com o apoio de
todos os partidos burgueses... De Gaul-
Sartre: "De Gaulle le tirou proveito do grande apoio dado
escorrega para o fascismo" pelo Vaticano e pela Igreja Católica da
França, e preconizou, abertamente, a
"Sei, sinto que De Gaulle não é, no instauração de uma ditadura fascista,
sentido estrito da palavra, um fascista. sendo ele mesmo o ditador. Proclamou,
Nem seu físico, nem seu comportamen- ademais, a necessidade de uma guerra
to permitiriam sustentar semelhante contra a V.R.S.S. e os países de demo-
afirmação. Mas o que me parece grave cracia popular" (De GauI/e, na Grande
é que agora De Gaulle se sente cons- Enciclopédia Soviética, 1952).
trangido a aceitar certos métodos e um
determinado estilo de propaganda que MALRAUX:
chegam até a modificar seu físico e seu
comportamento, fixando-o nas atitudes "Tudo tem seu fim"
próprias de um 'Duce'. E para mim esse
'escorregar através da propaganda' "De todos os erros cometidos, parece-
pertence ao processo de crescimento do me que um só pode ser imputado a De
fascismo" (Jean-Paul Sartre, Combat, Gaulle: a criação de um novo partido
22 de outubro de 1947). que ele acreditava ser uma coalizão.
Este gesto fatal, num país dividido e
dilacerado, comprometia sua vocação:
Não, é fascista a de ser o homem que não pertence a
nenhum partido porque pertence a to-
HEm 1947 criou o Rassemblement du dos. Posso dizer que naquele dia perdi
Peuple Français, partido fascista que minha única esperança na política. Ain-
lutava sob as ordens dos imperialistas da me imagino em Bordéus, no palan-
anglo- americanos, financiado pelos que armado diante das colunas gregas,

102
ram fileiras e defendem a República com a espada em riste. E fa- °
zem em duas frentes. Contra a direita gaullista e a esquerda comunis-
ta. Já em maio de 1947, o PCF havia sido afastado do governo. Em
dezembro do mesmo ano, a interminável onda de greves e sabota-
gens organizadas pela esquerda é estancada pela força do governo
Schuman. Com isso, os magnatas e muitas forças políticas se dão con-
ta de que o gaullismo não é, absolutamente, indispensável para
salvar a França da "su bversão vermelha". Além do mais, em seu
programa, o RPF insiste no tema da associação Capital-Trabalho,

sacudidas por uma maré humana. Reve- Gaulle. A contabilidade da fundação


jo-me enquanto interrogo Malraux: foi confiada a um jovem professor, que
'Mas por quê, por quê?' E Malraux, havia sido chefe de gabinete do general,
sem contradizer meu raciocínio, se George Pompidou. Por esse motivo,
atinha à falsa sabedoria: 'Tudo tem Pompidou terá muitas ocasiões de se di-
seu fim'. Mas não! Era preciso voltar ao rigir à casa de De G aulle e de conquis-
começo, rever o que fora feito. Se tives- tar as boas graças de Mme Ivonne (ob-
se êxito aquela manobra para chegar ao servações de Philippe Alexandre, Le
poder, o desastre seria, sem dúvida, pior Duel De Gaulle-Pompidou, Ed. Fayard,
do que o mal sancionado pelas últimas 1970. Anne De Gaulle, 1928-1948. Esta
eleições. Não seria uma vitória da coali- simples inscrição está esculpida na laje
zão unitária, mas de uma coalização de de mármore, erguida à entrada do ce-
interesses, e o Gen. De Gaulle, exata- mitério de Colombey-Ies-Deux-Eglises.
mente por causa de suas virtudes e de Quando o coração da filha parou de ba-
sua grandeza, seria o homem menos in- ter (Anne morreu de pneumonia), o ge-
dicado para fazer frente à avidez de tais neral se voltou para a mulher: "Por que
interesses" (François Mauriac, Crôni- chora Yvonne? Agora nossa filha é uma
cas Políticas). moça como todas as outras" (Galante,
ob. cit.).
AfundacAo

Anne De Gaulle Chega Pompidou, o
Preocupados com Anne, a filha mon-
golóide, caso ela ficasse sozinha no
"Espírito traquinas"
mundo, os De Gaulle decidiram cons-
tituir em 1946 a Fundação Anne De No dialeto de sua terra natal, o nome
Gaulle para meninas excepcionais, di- Pompidou quer dizer "o espírito traqui-
rigida por uma congregação religiosa. nas que passa como o vento". Será um
A provisão dos fundos viria dos direitos presságio da carreira excepcional do
autorais do I tomo das Mémoires de De futuro sucessor de De Gaulle?

103
tema que é acirradamente combatido pelos patrões. Assim, no mes-
mo ano do grande triunfo, começa o lento refluxo do RPF, que de
eleição a eleição continua a perder votos. E nas eleições legislativas
de 16 de ju nho de 1951, que deveriam permitir-lhe conquistar o poder
no Parlamento, o partido de De Gaulle obtém somente 17% dos vo-
tos, contra 200/0 dos comunistas, 11 % da SFIü e 100/0 do MRP. A pro-
metida "marcha sobre os Elísios", residência oficial do presidente
da República não se realizará. Bem cedo, muitos deputados gaullis-
tas se cansam da estéril "oposição a todo custo" e da política segun-

ca lhe permitiu - são uma verdadeira


De Gau//e o vê epopéia, uma história que se nos fosse
I I • • , , contada a respeito de uma época pas-
com simpatia sada, para nós se confundiria com a
lenda. De Gaulle, o poeta da ação, es-
creveu ele mesmo a lenda de sua pró-
H Após a guerra, em 1945, Georges pria vida. É a Canção de Rolando escrita
Pompidou está com 34 anos, é apresen- pelo próprio Rolando, com tudo o que
tado a De Gaulle que, imediatamente, isso possa comportar" (Robert Aron,
o tem à la bonne, como foi escrito, isto ob. cit.).
é, olha-o com simpatia, admitindo-o
em seu gabinete de presidente do Con-
selho e assim o faz passar administrati-
vamente do ensino para o Conselho de
Um Boom Editorial
Estado. Desde 1946, quando De Gaulle
inicia a 'travessia do deserto' de sua ina- As Memórias de Guerra de De Gaulle
tividade política, Pompidou permanece venderam, na França, 921.850 exempla-
no Conselho de Estado até que, em res em edição normal e 1.077.136 em
1954, passa para o setor privado, no edição de bolso. Foram traduzidas em
Banco Rothschild, onde sua carreira é quinze países, inclusive na Turquia, Ar-
fulminante" (anotações de Gastone gentina e China. O primeiro volume das
Ortona, Una Certa ldea de/la Francia, - Mémoires d'Espoir, escrito depois do
"Urna Certa Idéia Sobre a França" - , retiro de 1969, vendeu somente nos
Longanesi, 1970). primeiros meses 675 mil exemplares
e do segundo volume foram postos à
venda, nos primeiros meses de 1971,
As memórias do General 500 mil. Jullian, diretor da Editora Plon,
a casa que edita os livros do general,
HO e Gaulle é homem de letras, um dos declarou: HDe Gaulle possuía um senti-
maiores escritores franceses do nosso do religioso da escrita. Queria ser me-
tempo. Suas Mémoires - escritas no morialista. Não pediu nunca uma do-
afortunado período de paz que a políti- cumentação global, mas apenas a indis-

104

..
do a qual "quanto pior, melhor", imposta por De Gaulle - que,
nessas alturas, só pode esperar a reconquista do poder caso aconteça
um "desastre" nacional. Eles se "corrompem" e entram no jogo
parlamentar. A 6 de março de 1952,27 deputados do RPF prometem
fidelidade ao governo de direita de Antoine Pinay. Em conseqüên-
cia da "excomunhão" do general, 26 deles são obrigados a pedir
demissão do partido. Mas isso é apenas o início da derrocada. Um
ano depois, De Gaulle põe fim à experiência parlamentar, retirando
a sigla RPF e deixando livres seus deputados. O general se retira

pensável para aquilo que estava escre- glória" (La Vie des Métiers, - ~tA Vida
vendo. Procurava reencontrar seu mo- Profissional" -, 1960).
do de pensar sobre a época que des-
crevia" . Claude Roy: HDe Gaulle é um dos gran-
des escritores latinos da língua francesa,
que escrevem em fórmulas romanas a
De Gaulle como César história da França" (Monique Mounier,
ob. cit.).
Emile Henriot: HÜ De Gaulle escritor
possui esta virtude: como nos maiores Pierre de Boisdeffre: HDe Gaulle escre-
homens que empunharam a pena, Cé- ve teu', quando exprime suas opiniões,
sar, Vauban, Napoleão e Lyautey, a es- mas quando indica as opiniões que os
crita - que o revela todo inteiro em seu outros têm dele, olha-se de fora e diz
caráter e em sua fé profunda - é ape- fDe Gaulle" com a mesma naturalidade
nas uma das formas de ação... Hegel, La com que César dizia César' " (M. Mou-
f

Rochefoucauld, Chateaubriand foram nier, ob. cit.).


os mestres do estilo deste soberbo es-
critor. .." (Livres de France, 1959). Galtier-Boissiere: HDa primeira à última
página, as Mémoires não passam de
André Maurois: "Leva, infalivelmente, a uma delirante auto-apologia de De
pensar em Chateaubriand. A diferença Gaulle" (Le PetU Crapouillot, 1954).
está em que Chateaubriand, tendo fa-
lhado completamente em sua vida, se Remy Roure: "Não há uma palavra so-
consolava fazendo daquela vida uma brando e todas são essenciais. De Gaul-
obra de arte, enquanto Charles De le fala como escreve, com a mesma pu-
Gaulle, escritor da mesma classe, jamais reza de estilo, a mesma paixão, o mesmo
se cansou de aguardar, mesmo na mais gênio. E assim como exerceu uma in-
negra escuridão, a luz de uma esperança fluência decisiva nos acontecimentos
e viu reflorir, exatamente no tempo em históricos, assim também imprimiu sua
que levava a termo as suas Memórias de marca, e muito profundamente, nas le-
Guerra, tanto seu país como sua justa tras francesas" (Evidences, 1958).

105
para Colombey, onde escreve suas Mémoires. É o período que a
"iconografia" gaullista recorda como sendo "a travessia do deserto".
O general, porém, volta semanalmente a Paris. Sua última grande ba-
talha, De Gaulle a trava contra o CED, o exército integrado europeu,
no qual, segundo ele, as tropas francesas "perderiam sua personali-
dade". O Parlamento rejeita o CED. Em 1956, De Gaulle anuncia
seu afastamento definitivo da política. Contudo, antes de sair, lem-
bra aos franceses que estará pronto a intervir diretamente, não PP

importa qual o caminho a seguir", em caso de grave crise do país. li

I' I JII ] 1111 di g II1 2

Escreve as últimas páginas des alturas? Talvez minha sorte seja a


de ter escrito as últimas páginas no livro
da "Grandeza" da Franca. da nossa grandeza' " (De Gaulle, Le
Monde, 14 de novembro de 1953).

"Pensai em todos os fracassos que acon-


teceram em minha vida pública! Para Mas sonha
começar, procurei convencer as auto-
ridades civis e militares a Munirem a
França de uma força blindada, que nos
com o poder
teria evitado a invasão. Falhei redonda-
mente. Depois do desastre de 1940, Já em 1953, De Gaulle "sonhava" com
solicitei ao governo, do qual participa- o retorno ao poder. Quem revelou tal
va, que se transferisse para a África do fato foi o Gen. Massu, no segundo tomo
Norte e, assim, se livrasse do inimigo. de suas memórias, intituladas Le Torrent
Mas foi em vão... Fracassei em Dakar. et la Digue C'A Torrente e a Represa",
Após a vitória, esforcei-me por manter Plon, 1972). Durante uma visita à Nigé-
a unidade que se formara em torno de ria em março de 1953, o general lhe
mim. Mas esta unidade logo foi despe- perguntou confidencialmente: "Massu,
daçada. Mais tarde, em circunstâncias o que pensa da situação? Como vê o
muito graves, tentei novamente, sem futuro? Acredita que voltarei ao po-
sucesso... Se tais fracassos tivessem sido der?" - "Para mim você há de ser sem-
unicamente meus, não teriam tido a pre o Oen. De Gaulle de 1940. Não há
menor importância. Mas eram também nenhum problema. Quando chegar o
os fracassos da França. É, porém, ver- momento, se eu puder, dar-Ihe-ei todo
dade que de tempos em tempos houve meu apoio". O "momento" chegou em
alguns sucessos... No entanto, nas horas 1958, com o Putsch argelino de 13 de
mais negras da guerra, eu me perguntei maro.
certa vez: 'Minha missão não será a de
representar, na história de nosso país, Entrevista do Pres. De Gaul/e
seu último esforço para atingir as gran- à imprensa. no dia 29 de julho de 1963.

106

I LI j,_ Jl, l~1 I., ,1l I .,. I .., I .. i ,1...<~,~.L~".--,",..iIC_-.·'d, ..h"':I""';


1958 - A VOLTA AO PODER. A perda da Indochina (1954), a desastro-
sa expedição de Suez (1956), a guerra argelina que engole os milhões
de francos do Estado, a crise financeira e a crônica instabilidade dos
governos (27 mandatos e 18 governos em pouco mais de dez anos)
acabaram minando a vida da IV República. De várias partes já come-
çaram a se elevar as vozes - mais ou menos interessadas - que
almejam um governo de "Salvação Pública", sob a direção do Gen.
De Gaulle. O ponto mais crítico é o da Argélia onde, a partir de
1954, a Frente Nacional de Libertação (FLN) desencadeou cruenta

A Questio Argelina mentos históricos (desbaratamento de


1940, derrota na Indochina em 1954,
retirada de Suez em 1956), mas traído
Um feudo para o Exército pelos "políticos" e pelo egoísmo dos
civis. Por isso, escreve G. Dupeux (ob.
Há anos a questão argelina envenena cit.): "Recebendo das autoridades civis
a vida pública francesa. A FLN desen- uma parcela cada vez maior da respon-
cadeou a guerrilha no dia 19 de novem- sabilidade na Argélia, o exército tende
bro de 1954, para obter o reconheci- a fazer daquela guerra a 'sua' guerra.
mento da independência e da soberania No conjunto, portanto, é um exército
da Argélia. Paris deu uma resposta pe- descontente e, pelo menos ao nível dos
remptória: coronéis, um exército 'ativista', decidi-
r"A Argélia é França. Não se transige do a manter a Argélia sob a dominação
quando se trata de defender a integrida- francesa, fossem quais fossem as inten-
de da República" - declarou o presi- ções da metrópole".
dente do Conselho, Mendês-France, no
dia 12 de novembro do 1954. E pratica-
mente todos os governos se aterão a
essa política - tanto os socialistas como De Gaulle
os católicos - até sobrevir a falência
da IV República. Isso não impede que se cala
de ambas as partes haja várias tentati-
vas de negociação (mais ou menos se-
cretas), como o encontro de Roma em "Durante a rebelião argelina, o general
setembro de 1956. se abstém de tomar partido. Mas um de
seus porta-vozes, Jacques Soustelle, de-
sempenha papel muito importante na
A crise das evolução dos acontecimentos. Por
forças armadas exemplo, em 1955, como governador-
geral da Argélia, Soustelle se torna de-
o exército está persuadido de nunca fensor da tese da integração" (De Car-
ter sido vencido nos últimos aconteci- moy, cit.)

108

>~-\r-,... -IIAI, li I~ .. ·~, ,,f;l~~


guerrilha para conquistar a independência. Os "pieds-noirs" (colonos
franceses que detêm todas as rédeas do poder político e econômico),
que somam apenas um milhão,' não estão dispostos a fazer nenhuma
concessão em favor dos nove milhões de ratons, os argelinos. O
exército reprime com energia (Batalha de Argel, 1957) a guerrilha
da FLN, sem no entanto conseguir alcançar a vitória definitiva. A
culpa é dos civis e do governo de Paris, que são "traidores", afirmam
os generais. No dia 13 de maio de 1958, ao ser anunciado que o católi-
co Pierre Pflimlin - acusado de acalentar vagas idéias a respeito de

SOUSTELLE: "É A GUERRA!" seus adeptos, inclusive os partidários do


PCF, não estão todos de acordo sobre a
"No dia 21 de agosto de 1955, um bando oportunidade de conceder a indepen-
de fellagas" degolou 24 europeus em dência à Argélia. Os socialistas do SEIO
EI- Milia, O dever de Soustelle era diri- são favoráveis à política liberal de De
gir-se ao local para, pessoalmente, to- Gaulle com relação à Argélia, embora
mar conhecimento dos fatos. Foi o que os dirigentes do partido saibam muito
fez. O espetáculo da horrorosacarni- bem que seus eleitores estão muito lon-
ficina o comoveu profundamente. A ge de compartilhar integralmente desta
partir daquele instante, a revolução posição. Os próprios gaullistas estão
argelina realizava sua virada definitiva. divididos: Debré não está, absoluta-
Para a França acabava de estourar a mente, de acordo com De Gaulle, em-
guerra da Argélia. 'Depois de EI-Milia bora siga sua política. Soustelle há de
- declarou-me Soustelle - a opinião protestar e, como um dos chefes do
pública
,
européia não admitiria que dis-
. OAS, será constrangido a exilar-se.
cutíssernos nem mesmo com os nacio- Quase toda a direita está a favor da Ar-
nalistas moderados. É a guerra. Deve- gélia Francesa. No plano da propagan-
mos enfrentá-la' " (Jacques Chevallier, da, todos os partidos políticos susten-
em Mémoires de Votre Temps, ob. cit.). tam, unanimemente, que se deveria dei-
xar a De Gaulle a responsabilidade de
Os partidos políticos resolver o problema" (Ortona, cit.).
agem como
P6ncio Pilatos
SALAN AOS ELíSIOS:

"Os partidos políticos franceses hesi- Édramática


tam em tomar posição, tanto mais que
a tensão na Argélia
(*) Fellaga: Membro rebelde de bandos armados
em luta contra a França durante a ocupação da São numerosíssimos os relatórios do
Argélia e da Tunísia. Literalmente, significa ban- exército colonial ao governo de Paris
dido. salteador de estrada. N. da E. sobre a questão argelina. Em outubro

109
acordos com os argelinos - está prestes a formar o novo governo, a
Argélia branca se insurge. O Gen. Massu e os militares assumem o
controle do Comitê de Salvação Pública, que se propõe impedir a
"traição e o abandono da Argélia". A 15 de maio, falando à multi-
dão, o Gen. Massu conclui seu violento discurso, gritando: "Viva a
Argélia Francesa! Viva o Gen. De Gaulle!" É um ·convite-ultimato
ao governo de Paris, a fim de que liquide o regime parlamentar e
coloque outra vez no poder o "homem da providência". Na verdade,
o nome de De Gaulle foi escolhido somente após uma série de can-

11

de 1956, sem o conhecimento do gover- mar o governo a Pierre Pflimlin (MRP).


no, os militares executam um ato de pi- Mas, "são-lhe atribuídos pareceres fa-
rataria aérea, obrigando o avião que voráveis às negociações com os argeli-
transporta Ben Bella e outros quatro nos, e imediatamente são formados
líderes da FLN a aterrissar em Argel. em Argel os Comitês de Vigilância. O
O governo confirma" a prisão e manda
H Gen. Salan envia uma alarmante mensa-
trancafiar os cinco rebeldes na peni- gem ao Preso Coty e ao Gen. Ely, chefe
tenciária Santé de Paris. do Estado-Maior do exército: rÉ dramá-
tica a situação em Argel!' " (Les Gou-
A 8 de fevereiro de 1958, dá-se um caso vernements de la Ivme République - ,
ainda mais clamoroso. Em resposta a "Governos da IV República" -, Les
um ataque de guerrilheiros provenien- Cahiers de l'Histoire, n. 48, 1965).
tes da Tunísia, as aeronaves francesas
bombardeiam um vilarejo tunisino,
Sakhiet. Resultado: uma centena de
mortos, entre os quais trinta crianças.
Todo o mundo se emociona e se revolta.
oDIA 13
A Tunísia exige a retirada de todas as
bases militares francesas de seu territó- DE MAIO
rio e denuncia a agressão na ONV. A
Inglaterra e os E.V.A. intervêm como De Gaulle: "O que aconteceu no dia
pacificadores, pois temem que a dete- 13 de maio em Argel não me surpreen-
rioração da situação abra as portas da deu de maneira nenhuma. No entanto,
África do Norte para a V.R.S.S., como eu não participara, de modo algum,
acontecera há pouco no Egito. Os na- da agitação local, do movimento mili-
cionalistas franceses rejeitam a inter- tar, nem dos projetos políticos que esta-
venção anglo-americana e provocam a vam na origem de tudo, e não mantinha
queda do governo Gaillard, no dia 15 nenhuma ligação com franceses da
de abril de 1957. Depois de uma longa Argélia ou com ministros de Paris. A
série de consultas, o presidente da Re- chegada imprevista a Paris de uma van-
pública, Coty, oferece o cargo de for- guarda aerotransportada, uma ditadura

110

I II~ b il, JI .. , ...1" i .•. ilt I ;'"_,. .I. __,...... _l.I,.,JoLL.._Lo~~._lo.L",.=...cill,..• ·_.·;_.,'
sativas discussões entre Massu e alguns emissários gaullistas. Na
França, a paralisação é total e o governo não encontra melhor saída
que a de confiar ao próprio Massu a manutenção da ordem pública
na Argélia. Além disso, teme-se que a revolta se estenda a outros lu-
gares, como de fato aconteceu no dia 24 de maio, quando ela "con-
qu ista" a Córsega, enquanto se realizam consultas nervosas entre
órgãos do Estado, políticos e De Gaulle. O general mantém um
comportamento absolutamente indecifrável: declara-se disposto a
assumir os poderes do Estado (15 de maio), mas não assume nenhu-

militar fundada sobre um estado de sítio aprovação. 'No momento em que eu


análogo ao de Argel, provocaria uma devesse assumir poderes excepcionais,
guerra civil no momento e, bem depres- em circunstâncias excepcionais, isso
sa, instigaria também a participação não poderia acontecer segundo ritos e
dos estrangeiros. A menos que uma procedimentos ordinários. Também o
autoridade nacional, externa e superior modo da investidura deveria ser ex-
ao regime político do momento, que, cepcional. Se as circunstâncias o exigi-
aliás, muitos já se dispunham a der- rem, farei saber, a quem de direito,
rubar, reunisse o mais depressa possível qual a maneira que me parece mais ade-
a opinião pública, tomasse o poder e quada.' O único problema que interessa
pusesse novamente o Estado em ordem. é a unidade nacional e a associação da
Ora, tal autoridade só poderia ser a França com os povos da África. Todos
minha" (Mémoires d'Espoir, ob. cit.). os outros são 'histórias de um universo
que não é o meu'. A crise é gravíssima,
mas pode ser o princípio da redenção.
GUIOO PIOVENE: 'Volto agora à minha casa, onde estou
"O ultimato do general" sempre à disposição do povo.' Portanto,
poucas explicações ao Parlamento, cuja
"Ontem, 19 de maio, finalmente De rendição ele exige" (Guido Piovene,
Gaulle falou numa entrevista à impren- Madame la France, Mondadori, 1966).
sa, da qual participei também eu ... Ne-
gou que o regime dos partidos possa re-
solver o problema da comunidade fran- De Gaulle ou um
co-africana. Riu dos que o acusam de
ambição ditatorial: ~ Acreditam mesmo
que eu queira iniciar, aos 67 anos de
cabo de vassoura!
idade, a carreira de ditador?' Tomou a
defesa da população franco-argelina e "Em 1958, jogamos no lixo, com alívio,
dos militares sublevados contra o go- nossos direitos civis, como se fossem
verno. Não pronunciou a palavra 'eu utensílios inúteis ou embaraçosos. Co-
aprovo', mas o tom da entrevista era de mo o fuzil em 1940, pesado demais,

111
ma posição oficial. ffS OU um homem que não pertence a ninguém
e pertence a todos", afirma a 19 de maio. E agora todos o chamam:
o exército e os nacionalistas, como o "salvador da Argélia"; o
Parlamento e a opinião pública, como o mal menor, o eventual
"salvador da pátria", livrando-a de um golpe de Estado militar-fas-
cista. Sem fazer concessões concretas a nenhum dos interessados,
De Gaulle aceita retornar ao poder. Mas impõe suas condições:
plenos poderes para agir na Argélia e carta branca para fazer uma
reforma constitucional. O Parlamento se curva e entra em recesso. _

I n nn 11

que nos impedia de fugir mais depressa. por ambição. Não dependia dele o ser
Mas existia um homem pronto a reco- chamado de volta mais cedo. Ele devia,
lher os restos de nosso civismo, como necessariamente, voltar. E quem era de
em 1940 recolhera as espadas partidas. opinião contrária em semelhante apu-
Aquele homem sempre estava aí, pron- ro? O instinto de conservação desem-
to a agir. Agora nós o vemos no cume penhou seu papel até mesmo entre seus
da glória e praticamente podemos es- inimigos que, por sinal, foram os primei-
quecer seus tenazes esforços para sair ros a chamá-lo de volta... " (François
das sombras. Mas nossa pressa de 'su- Mauriac, ob. cit.).
mir' era tão grande que teríamos larga-
do nas mãos de qualquer um os frag-
mentos de poder que ainda detínhamos.
Talvez até um cabo de vassoura, enci- Recusa a
mado por um capacete de bombeiro ou
um macaco dos trópicos, usando o
uniforme dos porteiros do 'Chez Ma- ditadura
xim's' teriam, por sua vez, tirado provei-
to, naquele momento, de nosso abando- "De Gaulle podia tornar-se ditador.
no da soberania!" (François Fonvieille- Mas, ao contrário, recusou a investidu-
Alquier, Réapprendre l'Irrespect, La Ta- ra no poder pelas forças armadas e a
ble Ronde, Paris, 1966). exigiu pelas vias da legalidade democrá-
tica. Impôs uma única condição: que a
República de tipo parlamentarista e
Seus inimigos o partidocrática fosse transformada em
República do tipo presidencialista"
chamaram de volta (Randolfo Pacciardi, Protagonisti Grandi
e Piccoli, - "Grandes e Pequenos Pro-
tagonistas" - , Ed. Barulli, 1972).
"De Gaulle se encontrou no centro de
acontecimentos turbulentos, como os o presidentefrancês durante
de 13 de maio, mas certamente não foi uma cerimônia pública.

112
A ARGÉLIA. De Gaulle forma um governo de ampla coalizão e pro-
cura, imediatamente, agarrar o touro pelos chifres: no dia 4 de junho,
parte para a Argélia. Às milhares de pessoas que acorrem para rece-
bê-lo grita: HEu vos entendi!" Apenas uma vez deixa "escapar" o
grito: "Viva a Argélia Francesa!", no dia 6 de junho. Mas logo se
apressa em afastar-se dos próprios correligionários, exige a dissolu-
ção dos Comitês de Salvação Pública e a restauração do Estado em
todas as suas prerrogativas. No dia 23 de outubro, De Gaulle propõe
à FLN a "paix des braves", Na prática, era um ultimato sem garantias:

A TORTURA NAARGÉLIA nhadas de uma sala para outra e que,


abobalhados pela tortura e pelas panca-
SARTRE: "Salvemos iI França da vergonha" das, não sabiam fazer nada mais além
de murmurar em árabe as primeiras pa-
HEm 1958, na Argélia, tortura-se regu- lavras de uma antiga oração muçulma-
lar e sistematicamente, todos o sabem na... " (La Question, Ed. de Minuit,
e ninguém fala nada. Ou quase nada. A 1958).
tortura se instalou por si mesma: era
sugerida pelas circunstâncias e exigida
pelo ódio racial. Se quisermos salvar a o gen. Massu
França da vergonha e os argelinos do justifica a tortura
inferno, temos um meio, um só: iniciar
as negociações, fazer a paz!" (Jean-Paul
No livro La Vrai Bataille d'Alger (HA
Sartre, "Une Victoire"; em Sttuations,
voI. V, Gallimard). Verdadeira Batalha de Argel", Plon,
1971), o Gen. Massu, ex-comandante
supremo na Argélia, assim justificou o
"Ouvi os uso da tortura: "Tratava-se de obter
informações estratégicas urgentes, das
prisioneiros gritando" quais dependia a vida de seres inocen-
tes, deliberadamente sacrificados pela
Preso no dia 12 de junho de 1957, Henri FLN". Tal crueldade não era, certa-
Alleg, diretor do Alger Républicaine, foi mente, inspirada pelo desejo de tratar
torturado durante um mês. "Durante com o chicote aqueles cujas confissões
aquele período, sofri tantas dores e tan- podiam interromper um destino fatal.
tas humilhações, que não ousaria falar Então, na prática, para fazer 'cuspir o
delas se não soubesse que meu testemu- osso', era necessário 'machucar um
nho pode ser útil na obtenção do cessar- pouco', e os homens escalados para os
fogo e da paz. Durante noites inteiras interrogatórios eram orientados no sen-
ouvi os gritos dos homens que estavam tido de fazerem os presos sentirem um
sendo torturados... " "Vi prisioneiros pouco de dor física, cuja violência era
serem arremessados a pauladas e coro- graduada até se chegar à confissão...".

114

I 111, II ' '11 ·1 "1 I " , ... c I ,. ,lO"',,'.,, ".,,, ..~ ,,' ,,'
cessem o fogo e depois veremos. A proposta é rejeitada. O general
procura então solucionar a "confusão argelina", arquitetando um
grande plano de reformas econômicas e legislativas. Mas almeja,
sobretudo, uma estrondosa vitória militar. Por isso, em julho de
1959, autoriza uma imponente operação de "limpeza", confiada às
ordens do novo chefe do exército colonial, o Gen. Challe. Mas a
operação não atinge o efeito desejado. De Gaulle compreende que a
vitória militar já não é mais possível e inicia uma cautelosa retirada.
A 16 de setembro de 1959, reconhece num programa de televisão o

ENVERGONHE-SE. Paris, 29 de abril de 1959, declaração


a Pierre Laffont, diretor do E co de Argel:
GENERAL!
ffA Argélia do papai (o velho colonia-
"Para que servirão vossas condecora-
ções, Sr. Gen. Massu, quando vos apre- lismo) está morta e quem não compre-
sentardes diante do tribunal de vossa ende isso morrerá com ela!"
morte, revestido apenas com vossa Argélia, 3 de março de 1960, la tournée
reputação e levando como salvo-condu- des popotes, junto aos militares: ttA in-
to esse livro sórdido que justifica a dependência é um gracejo estúpido...
tortura?" (Roy, J'Accuse le Général Asseguro-vos que acabará com uma
Massu, - "Acuso o Gen. Massu" -, vitória de nossas armas. A França fica-
Seuil, 1972). rá na Argélia. Por isso eu respondo pes-
soalmente" .
Os discursos sobre a Argélia
Paris, 16 de setembro: "Considero ne-
cessário que, a partir de hoje, se procla-
DE GAULLE VIRA-CASACA? me o direito à·- autodeterminação. A
Argel, 4 de junho de 1958, aos colonos: sorte dos argelinos; pertence aos argeli-
"Eu vos entendi. Sei o que aconteceu. nos, segundo a vontade 'que expressarão
Compreendi o que quisestes fazer. De- livremente com Oi sufrágio universal".
claro que, a partir de hoje, para a Fran- Nancy, 30 de junho de 1961: HA Argé-
ça existe em toda a Argélia só uma ca- lia Francesa está superada, Não se pode
tegoria de cidadãos: todos são integral- impor a nacionalidade francesa I"
mente franceses!"
Paris, 26 de abril de 1962: "Os acordos
Mostaganem, 6 de junho: "Agradeço do de Eviam representam muito mais que
fundo do coração e este é o agradeci- o fim das lutas. Trata-se, tanto para a
mento de um homem que sabe estar França de sempre como para a Argélia
carregando uma das mais pesadas res- de amanhã, de empreender, conjunta-
ponsabilidades da História. Viva a Argé- mente, uma obra de civilização co-
lia Francesa! Viva a França!" mum".

115
direito dos argelinos à autodeterminação: após a "pacificação", serão
chamados a escolher, com um referendum, entre secessão, afrancesa-
mento, ou associação. Exército, colonos e partidários da Argélia
Francesa sentem-se como que apunhalados pelas costas. O Gen.
Massu publica num periódico alemão algumas declarações audazes,
sendo afastado imediatamente do cargo. A exoneração de Massu
provoca novo incêndio em Argel. Algumas centenas de civis, co-
mandados pelo deputado Lagaillarde, tentam repetir o Putsch de
1958. É a "semana das barricadas", janeiro de 1960. Mas desta vez

"Desde 1958 Pierre Laffont:


eu queria conceder "Não, foi urna
imposição"
a independência"
"No princípio, De Gaulle concebeu a
'descolonização de papai', convencido
Na entrevista-colóquio de 6 de maio de de que lhe bastaria fazer um sinal para
1966 com André Passeron (ob. cit.), separar os contendores. Mas, depois, se
De Gaulle fez uma espécie de "confis- dá conta de que os fatos lhe resistem e
são" política: "Sabia que todas as deci- então, pouco a pouco, se inclina para o
sões que tomo, todas as declarações que lado da autodeterminação. A seguir, é
faço, são inspiradas e guiadas sempre constrangido a ceder em toda a linha. A
por uma única idéia... Por exemplo, o única operação política em que é bem
problema da Argélia. Antes ainda de sucedido é a de transformar a mais com-
voltar ao poder e mesmo quando voltei, pleta retirada da História francesa em
depois de haver estudado o problema, um 'sucesso da França'. O que lhe é
sou be e decidi que era necessário con- imposto pelo inimigo se transforma, sob
ceder a independência à Argélia". Mas sua vareta mágica, numa decisão es-
imagine o que aconteceria se, em 1958, colhida livremente" (P. Laffont, L 'Ex-
quando voltei ao poder e viajei para a piation, - "A Expiação" - , Plon, 1968).
Argélia, eu dissesse que era preciso que
os argelinos assumissem a responsabili-
dade de seu governo. Então, pura e ime- 1960: A semana
diatamente, De Gaulle teria deixado de
existir! Por isso fui obrigado a tomar
minhas precauções, agir progressiva-
das barricadas
mente, e assim conseguimos chegar ao
objetivo. Mas a idéia simples, a idéia Le Monde. 26-1-1960: "Os subversivos
condutora, essa eu a tive desde o início". esperam, em vão, o acontecimento que

116

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os militares - embora muito indecisos - não se alinham com os
revoltosos, e a força pública dispersa os "desesperados" de Lagail-
larde. De Gaulle vai novamente para a Argélia, a fim de realizar
um giro de propaganda de sua política entre os militares, a "tournée
des popotes", dos banquetes militares. No entanto, sua decisão já está
tomada. Em novembro, anuncia um referendum popular sobre o prin-
cípio da autodeterminação na Argélia. Quer o apoio de todos os fran-
ceses para sua política. A 8 de janeiro de 1961, os franceses lhe con-
cedem a maioria absoluta (mais de 70%). Em fins de março o governo

llIt mrIIUfIlf."

decida o exército a se unir a eles". Com- Argélia Francesa


bat: "Um crime contra a nação". Les
Échos: "Não há nenhuma relação com o 1961 : OPutsch dos Generais
13 de maio de 1958!" L'Humanité: ~~É
tempo de acabar com isso!" Paris-Jour :
~~O berço da guerra civil". L 'Aurore: Declaração do Gen. Challe: "Estou em
~~A autoridade republicana se reafir- Argel com os generais Zeller e Jouhaud
mou". The New York Times: ~rMais uma (Salan chegará logo em seguida) para
vez tudo depende do exército". The manter nosso juramento, o juramento
Daily Herald (Londres): "Para a solução do exército de defender a Argélia, a fim
imediata do problema é preciso desejar de que nossos mortos não tenham caído
a vitória de De Gaulle". Le Monde, em vão. Um governo em falência falou-
2-2-1960: "Depois da rendição dos dois nos em Argélia Francesa... e hoje se
e campos entrincheirados', terminou a prepara para entregar definitivamente a
insurreiç ão da Argélia. Os revoltosos se Argélia aos rebeldes. Era esta a paz
entregaram e serão mandados para prometida?" Sábado, 22 de abril: "Ar-
combater os fellagas". The New York gel acorda lentamente. Subitamente
Herald Tribune: "Os insurretos perde- explode a notícia: o exército assumiu o
ram, mas poderá correr ainda muito poder! O velho sonho de Argel, tantas
sangue". Washington Post: HDe Gaulle vezes esperado a partir de 13 de maio
deve vencer e vencer depressa". Poli- de 1958! O entusiasmo se expande ra-
tika: "Para sobreviver, a França deve pidamente. As janelas se engalanam
debelar a insurreição". Frankfurter All- com bandeiras tricolores. Nas calçadas
gemeine: "Se De Gaulle não existisse, a multidão se apinha. Forma-se um cor-
seria preciso inventá-lo". Kõlnische tejo de carros. As buzinas ressoam inin-
Rundschau (Colônia): HDe Gaulle deve terruptamente, alternando três sons
agora lutar pela paz na África. Senão breves e dois longos: AL-GÉ-RIE
será um homem liquidado". La Stampa: FRAN-ÇAI-SE! (Argélia Francesa!)
"De Gaulle é um homem demasiada- A cidade é conquistada. Mas Argel não
mente ambíguo na realização de seu é toda a Argélia!" (Yves Courriêre, La
plano" . Guerre d'Algérie, IV voI., Fayard, 1971).

117
anuncia o início das conversações com a FLN. Já é demais para os
ee extremados" argelinos. A 22 de abril, os generais Challe, J ou haud,

Zeller e Salan se rebelam. A França treme. Espera-se de um momen-


to para outro um ataque dos pára-quedistas contra Paris. De Gaulle
fala pelo rádio, muito calmo, e condena o gesto criminoso daquele
"quarteto de generais aposentados". Na Argélia, os militares menos
graduados começam a rebelar-se contra os superiores. Assim, o
Putsch militar se esvai sozinho, em poucos dias. Challe se entrega
como prisioneiro, enquanto os demais entram para a clandestinidade,

··FRANCE5ES, conforme aos princípios da revolução.


AJUDAI-ME !" Não nutrimos ressentimentos contra os
europeus, mas a cumplicidade das auto-
Discurso televisionado do presidente da ridades francesas com a OAS deve aca-
República, Paris, 23 de abril de 1961: bar' ".
HUm poder revolucionário se estabele-
ceu na Argélia, com um pronunciamen- As opiniões do exterior:
to militar. Este poder tem uma fachada:
um 'quarteto' de generais aposentados. Washington: "Um acontecimento histó-
Tem uma realidade: um grupo de ofi- rico" .
ciais sectários, ambiciosos e fanáticos.
Seu procedimento conduz diretamente Londres: HUm alívio que as ameaças da
a um desastre nacional... Em nome da OAS não podem perturbar".
França ordeno que todos os meios -
digo todos os meios - sejam emprega- Moscou: "Finalmente a França reco-
dos para barrar o caminho destes ho- nhece 'de direito' o governo provisório
mens, até subjugá-los. Proíbo a todos os da República argelina".
franceses e, acima de tudo, a todos os
soldados que obedeçam a qualquer or- De Gaulle: "A Argélia se encaminha,
dem deles... Homens e mulheres da no sofrimento, para a independência
França, ajudai-me!" (Mémoires d'Espoir, ob. cit.).

A INDEPENDÊNCIA ARGELINA D queéa DAS


Le Monde: HO Conselho de ministros
toma conhecimento do relatório de L. "O que é a OAS? Antes de tudo a revol-
J oxe sobre as negociações de Evian e ta de uma certa coletividade étnica, a
suas conclusões. No exterior, a satisfa- saber, a população argelina de origem
ção é geral. Em Túnis, há grande explo- européia, dividida entre fidelidade à
são de alegria. Eis a declaração do arge- cidadania francesa e fidelidade à terra
lino Ben Khedda: 'Os acordos estão natal. A seguir, é a revolta de uma certa

118

.. I I I i IL, .u. LL . I LJ I" Li, ,I; .r .~ I


unindo-se às fileiras da OAS (Organisation Armée Secrete}, uma or-
ganização terrorista, decidida a transformar a Argélia num deserto,
antes que deixá-la aos argelinos. De Gaulle responde à OAS, envian-
do para a Argélia os comandos de "barbouzes", crudelíssimos agentes
secretos. No entanto, as horas da Argélia Francesa estão contadas.
A Conferência de Evian (7 a 18 de março de 1962), fixa as normas
do cessar-fogo e da transmissão do poder. E no dia 3 de julho, após
um novo referendum favorável aos argelinos, De Gaulle proclama a
independência da Argélia. -

facção do contingente militar francês, por quem declarara entendê-los, sem


um punhado de oficiais obstinados em que absolutamente nada se tenha feito
continuar até o fim uma luta cuja legi- para acolhê-los. Os demais correm gra-
timidade lhes parece fundamental: fide- ve perigo. Para ele, o dia 2 de junho é
lidade aos princípios da integridade do uma página já virada. Não! Nada está,
território da República Una e Indivisível" jamais, definitivamente terminado. O.
Extraído de L 'DAS Parle, - "Fala a que De Gaulle realmente quis não foi
OAS" -, Archives Julliard, 1964). só virar a página da Argélia, ele quis
mesmo conspurcá-la!"

A revolta contra o o General salvou à franca


traidor De Gaulle de si mesma


J. Guntber: HDe poucos estadistas se
Declarações de Georges Bidault, chefe pode afirmar que salvaram um país.
da DAS, à La Demiêre Heure de Bruxel- Lincoln foi um deles, Churchill outro.
les, no dia 14 de junho de 1962: "Certa- Mas De Gaulle supera a ambos, por-
mente, é preciso respeitar a vida dos quanto salvou sua pátria não uma só,
homens, mas o que dizer então do exter- mas duas vezes. E isso é um fenômeno
mínio de todo um povo traído, engana- que provavelmente está entre os mais
do e abandonado? .. Falando da FLN, raros de toda a História. Sem De Gaulle
Charles De Gaulle dissera que jamais não teria existido a França Livre de
aceitaria negociações com eles. E no 1940. E sem De Gaulle a nação teria
entanto, aceitou, pois enquanto afirma- sido, provavelmente, dilacerada pela
va que jamais aceitaria, já pensava em guerra civil, logo após a crise argelina
fazê-lo! Pode-se trair continuamente de 1958. Na primeira vez, Charles-An-
uma parte do povo, mas não todo o Po- dré-Joseph-Marie De Gaulle salvou a
vo! Aproxima-se o trágico despertar dos França do perigo alemão. Na segunda,
franceses. Centenas de milhares de ho- ele a salvou de si mesma" (Faccia a
mens foram, na prática, 'deportados' Faccia, - "Face a Face" -, Garzanti).

119
o NASCIMENTO DA V REPÚBLICA. De Gaulle foi chamado de volta ao
poder a fim de resolver a espinhosa questão argelina e os partidos
esperam que ele se retire, uma vez cumprida sua "missão" Mas não o.

é, certamente, esta a intenção do general. Voltando ao poder "duran-


te o desastre do Estado" quer "reformar o Estado", forjar a Grande
França, que não conseguiu construir em 1945-46: HA reforma do
Estado é o único meio de evitar, agora, certas crises absurdas e de-
sastrosas, que atormentam a França, em meio à dúvida de seus filhos
e à ironia do mundo" - anuncia claramente no dia 27 de junho de

1111 111111 li! ! I i I 111 li li n [llJI]! il m alI! JiIM! I iit rn I rn 111 II I

Igreja, mas nunca cedeu à tentação de


De Gaulle demite se dirigir, como adepto de uma Igreja
particular, ao povo francês por ele go-
os divorciados vernado. J amais deu a impressão de es-
tar recebendo, e muito menos solicitan-
do, alguma orientação ou conselho de
"Conta-se que, ao se transferir para os Roma" (F. Mauriac, oh. cit.).
Campos Elísios, o Gen. e Mme De Gaul-
le demitiram, com muito tato e delica-
deza, todas as pessoas de serviço (e não
eram muitas) que eram divorciadas. O
Mais Richelieu
general, católico convicto, não achava que São Francisco
conveniente que ele e sua família fos-
sem servidos por divorciados" (John
Gunther, ob. cit.). '·0 que restou, na alma de Charles De
Gaulle, de toda a educação religiosa
recebida na família e na escola? Sem
dúvida, sempre foi e ainda é um bom
Mas não aceita católico, no sentido formal do termo...
Todavia, é bastante claro que a religião
orientacão

de Roma foi para Chàrles De Gaulle mais um
modo de vida que uma fonte espiritual.
É óbvio que De Gaulle como católico
"Nenhum presidente laico e maçom se parece mais com Richelieu que com
jamais se manteve mais distante que São Francisco. Por exemplo, a religião
este general católico de toda ingerência, nunca chegou a sugerir-lhe a humildade
de toda paixão de ordem espiritual e e jamais o afastou dos pecados de orgu-
confessional. Participa, certamente, de lho". Devendo, além disso, agir no ter-
todas as cerimônias preceituadas pela reno político com toda a imparcialidade
exigida por circunstâncias ambíguas' e
De Gaulle discursando fortuitas, nem sempre conseguiu obser-
durante a viagem à Picardia ( 1964). var, ao pé da letra, os preceitos do Evan-

121
1958. Por esse motivo impusera, como condição essencial para seu
retorno, uma revisão constitucional. No entanto, a constituição que
manda elaborar durante o verão revela inesperada moderação, firme
vontade de não romper bruscamente com o regime dos partidos, pelo
menos no momento. No projeto, o presidente da República não se
torna ainda o "dono do Estado", mas permanece como um "árbitro",
acima dos partidos. Conquista, sem dúvida, novos poderes, como o
de nomear o primeiro-ministro e o gabinete, sem que o Parlamento
deva ratificar sua escolha. Obtém uma ampliação do poder de dis-

m7 !il[ I L I] I

gelho, e não creio que tal dilema lhe te- qual seria a política da França em de-
nha torturado a consciência. Maquiavel terminada questão. Ele respondeu: 'Sei
não está de acordo com o Evangelho, e qual era há cerca de meia hora, quando
De Gaulle se inspirou mais de uma vez saí de uma reunião com o general, mas
nas máximas do teórico florentino" não sei qual é exatamente agora' " (ob.
(M. Costa, ob. cit.). cit.).

ro..J ,

É UM MONARCA IMPASsíVEL
NAO, E UM
Gunther: "Encontrei-me com De Gaul-
le várias vezes. Quando quer, sabe ser
o homem mais cortês do mundo. Mas
COMEDIANTE
sabe também ser dominador. Todas as
vezes que o vi sempre me despedi dele "Homem de Estado, sem dúvida, o Gen.
pensando que sua característica princi- De Gaulle também é; além do mais,
pal é a impassibilidade. É impossível homem de eloqüência, de letras e de
não perceber sua frieza, seu ar olímpico teatro. É excelente no discurso, no li-
de superior grandiosidade... Suas rela- vro, na encenação. Quem o viu remane-
ções com os colaboradores são quase as jar, corrigir, redigir vinte vezes o texto
de um monarca e, pior ainda, de um de um comunicado qualquer, tem a cer-
monarca bastante arrogante. Quase teza de se encontrar na presença de um
nunca ouve conselhos e só raramente artesão da linguagem, extremamente
comunica suas intenções aos subordina- sensível às suas variações. Ator e dire-
dos. Ninguém exerce influência alguma tor, é capaz de suscitar o entusiasmo do
sobre ele". ~O único ponto fraco do ge- público com tiradas que, relidas com
neral - parece que um dos funcioná- calma, jamais conseguem o mesmo efei-
rios de seu gabinete chegou a comentar to. Sabe dramatizar um caso para tirar
certa vez - é que ele não é humano.' dele o maior proveito possível" (J.
Perguntou-se a um importante ministro Soustelle, ob. cit.).

122

I I. L. I. ; •• , J 1I . 11 ~ I
solver a Assembléia e a possibilidade de submeter certas leis ao
referendum popular. E, além disso, recebe também plenos poderes,
em caso de grave perigo para a nação. Mas, fundamentalmente, o
presidente continua sendo um "eleito dos notáveis", isto é, de um
restrito colégio eleitoral formado por aproximadamente 80 mil pes-
soas (dos parlamentares aos conselheiros municipais). Com efeito,
os partidos jamais aceitariam sua eleição pelo sufrágio universal, que
faria do general uma espécie de monarca republicano. A nova cons-
tituição é aprovada no referendum de 28 de setembro de 1958, com

".
rio. Por esse motivo, na noite de 30 de
UM CDMILAD novembro o UNR consegue eleger 189
candidatos e os moderados, 130. HA
representação proporcional lhes teria
De Gaulle é Hum bom garfo" - afirma permitido eleger 82 e 94 candidatos,
P. Galante (ob. cit.). "Bastava aproxi- respectivamente, e a esses poder-se-ia
mar-se a hora da refeição para ele se ter ajuntado, no máximo, os 15 deputa-
tornar bem humorado. Geralmente, re- dos da extrema direita. A esquerda está
cebe os hóspedes na biblioteca. Isso é pulverizada: 10 comunistas, 44 socialis-
significativo: a gente sente que está na tas e 23 radicais, enquanto, com o siste-
casa do escritor e não do chefe de Esta- ma proporcional, teriam chegado, res-
do. A seguir, vem o aperitivo: vinho do pectivamente, a 87, 72 e 62 eleitos, o
Porto ou suco de tomate. Mais ou me- que significaria um total de 221, em vez
nos às 13h 30m vai para a mesa e às das 77 cadeiras realmente conquista-
14h 20m a refeição já terminou. O gene- das" (Pierre Viansson-Ponté, Htstoire de
ral não gosta de esperar entre um prato /a Répub/ique Gaullienne, - "História da
e outro. Bebe água normalmente e ja- República Gaullista" -, Fayard, 1970).
mais aceita mais de três quartos de copo
de Bordeaux".
DE GAULLE
Os primórdios
da V República
PRESIDENTE
De Gaulle: HNo dia 8 de janeiro de 1959,
Para as eleições primárias legislativas apresento-me nos Campos Elísios para
da V República, o Conselho de Minis- assumir minhas funções. O Preso René
tros adota o sistema de escrutínio uni- Coty me recebe com gestos cheios de
nominal em dois turnos, rejeitando tan- dignidade e com palavras comoventes.
to o sistema de representação propor- '0 primeiro dos franceses, - diz ele -
cional, como o do escrutínio maioritá- é agora o primeiro na França! ... A milti-

123
79,5% dos votos. É o dia do nascimento da V República. A 19 de ou-
tubro, os partidários de De Gaulle se unem num único partido polí-
tico, a UNR (Union pour la Nouvelle République}. A reforma consti-
tucional exige novo Parlamento. Nos dois turnos das eleições legis-
lativas de novembro, a UNR alcança grande vitória, enquanto o
centro e a esquerda desabam fragorosamente. Os comunistas ele-
gem apenas dez deputados! E no dia 21 de dezembro, De Gaulle é
eleito presidente da República, "investindo" como primeiro-minis-
°
tro, a 8 de janeiro de 1959, fiel Michel Debré. É uma escolha que

dão grita: 'Obrigado, Coty' e 'Viva De nheciam que De GauIle continua sendo
GauIle!' Entrando no palácio do gover- o homem mais capaz de assegurar ao
no, sinto fecharem-se às minhas costas regime um funcionamento normal e
todas as portas. Agora sou prisioneiro democrático".
do meu cargo" (Mémoires d'Espoir, ob.
cit.). Le Figaro : "O soldado se tornou mais
dócil... Compreendeu a importância dos
ritos" .
OS COMENTÁRIOS PETIT-CLAMART. 22 DE AGOSTO DE 1962
DA IMPRENSA
o ATENTADO CONTRA
Le Monde: "Assim De GauIle assume
hoje a função de presidente da Repúbli-
DE GAULLE!
ca, de acordo com uma constituição
que, feita por ele e para ele, foi ratifica- A partir de 1960, contam-se pelo menos
da por imensa maioria no dia 28 de se- onze atentados, ou coisa parecida, (;on-
tembro. Muito mais que o texto da tra a vida de De Gaulle. O mais grave é
Constituição, o espírito de seu autor o ocorrido em Petit-Clamart, em 22 de
modelará a República. Na realidade, agosto de 1962. Um comando da OAS
será ele quem vai governar por inter- criva de balas de metralhadora o carro
médio do primeiro-ministro" . presidencial. Uma bala fere levemente
De Gaulle. O chefe do comando, Cel.
Bastien Thiry, será condenado à morte
Paris-Journal: "A IV (República) 'par- e justiçado no dia 11 de março de 1963.
te' feliz, a V chega sob a égide de um
dos maiores homens de Estado da nossa Rumo ao regime presidencial
História" .
De Gaulle: "Há muito tempo estou con-
Le Populaire: "Confiando a ele o mais vencido de que o presidente da Repú-
alto cargo do novo regime, todos reco- blica deve ser eleito, diretamente, pelo

124

~ I I ~ I ~, I ai , ~ ; j
indica claramente a vontade do general de não se limitar, simples-
mente, à função de arbitragem". Suas intervenções na gerência dos
H

negócios do Estado - que, segundo a Constituição, deveriam acon-


tecer apenas em casos excepcionais - tornam-se fatos corriqueiros,
sobretudo graças aos plenos poderes que a explosiva situação arge-
lina lhe permite obter do Parlamento. Essa tendência se torna cla-
morosamente evidente quando, em abril de 1962, imediatamente
após o vitorioso referendum sobre a independência argelina, De
Gaulle demite Debré e, para surpresa geral, nomeia primeiro-minis-

li na 0011111 II1 1I! I 11 II 11] lEI mI I nI I I

voto popular. Designado - único entre Portanto, cada 'sim' custou cerca de
todos - pela maioria dos franceses, po- 1,13 francos" (Robert Rocca, ob. cit.),
deria ser de fato, por força de tal no-
meação, o 'homem do país', investido
perante todo o povo e perante si mesmo Paciência
da imensa responsabilidade, que os pró-
prios textos da Constituição lhe atri-
buem. Além disso, é claro, deveria pos-
e Astúcia
suir a vontade e a capacidade de as-
sumir as honras do cargo. Isso, eviden- Assim como no problema argelino, tam-
temente, a lei não pode garantir... Mas, bém para a renovação da constituição,
ao contrário, o sucesso só é possível no Charles De Gaulle procedeu astuta-
caso de a capacidade encontrar seu pró- mente, por etapas. Eis o que ele mesmo
prio instrumento; não há nada pior que revelou a André Passeron (ob. cit.), em
um sistema em que a qualidade é des- 1966: HS e em 1958 eu tivesse afirmado
perdiçada pela incapacidade" (Mémoi- que era necessário que o presidente da
res d'Espoir, ob. cit.). República governasse, ninguém teria
aceitado a idéia! No entanto fazia mui-

oReferendum de 1962 to tempo, desde 1947, que eu pensava


nisso. Evidentemente, na realidade, era
o que eu fazia na prática. Mas não podia
Le Monde, 30 de outubro de 1962: HO dizê-lo publicamente. Depois, aos pou-
referendum à eleição do chefe do Esta- cos, chegamos a isso, com muita pre-
do pelo sufrágio universal. - O 'sim' caução, com alguns desvios e reajustes,
obtém 61,75% dos votos válidos. O 'não' mas realmente sem muitas dificulda-
prevaleceu em 14 departamentos". des".
Os gastos com o .... Sim··
Um rigor implacável
~~O referendum de 1962 custou um bi-
lhão e meio de francos. Resultado final: Pode-se notar, nos vários acontecimen-
'sim', 13/150/516; 'não', 7/974/538. tos políticos de 1962, um elemento co-

125
tro um homem que nunca chegou a ser nem deputado e que deve
seus títulos de nobreza unicamente ao fato de pertencer à "roda"
do presidente: Georges Pompidou. Agora torna-se manifesto que,
para De Gaulle, o primeiro-ministro deve exercer apenas a função
de "grand commis", isto é, de funcionário encarregado de executar
a política do chefe de Estado. É uma decisiva mudança de rumo
no panorama institucional francês, mas por ora está ainda ligada à
personalidade excepcional de De Gaulle. Quando tiver desapareci-
do, seus sucessores estarão à altura de manter tais poderes contra

II

mum de intervenção a vontade de pla- ria ab-rogada... o mais republicanamen-


nificação do chefe do Estado. Parece- te possível!" (Robert Aron, ob. cit.).
nos certo que o Gen. De Gaulle tenha
concebido, desde seu retorno ao po-
der, um programa cuja realização perse-
gue etapa após etapa, embora tome em
Um patrllo
consideração os elementos favoráveis
e contrários que as circunstâncias lhe absoluto
oferecem. Por isso os projetos são às
vezes acelerados, às vezes suspensos e "Com o sistema de plebiscitos, De
retomados em seguia... As aparentes Gaulle se considera investido de um po-
confusões, atribuídas freqüentemente der total, que exelui qualquer autorida-
à sua ação pela História, servem, ao ob- de dos eleitos pelo povo para os diver-
servador atento, exatamente para subli- sos graus (de conselheiro municipal a
nhar seu implacável rigor" (Edgar Fau- parlamentar). No século passado, os
re, em Année Politique, - HAno Político, atos oficiais do 11 Império começavam
1962"). com esta fórmula: 'Napoleão, impera-
dor dos franceses pela graça de Deus e
ojogo do referendum vontade do povo...' De Gaulle, que
menciona freqüentemente a profunda
legitimidade da qual estaria "investido',
HDe Gaulle condiciona o corpo eleito- poderia retomar a fórmula de Napoleão
ral, fonte de qualquer poder republica- IH, omitindo, por razões de oportunis-
no, aos pedidos que lhe apresenta. Se mo, a passagem 'pela graça de Deus'.
por acaso De Gaulle pretendesse aça- De fato, ele se considera o p.atrão oni-
bar com o regime republicano (aliás, potente, para o qual não existem nem
coisa impensável), prepararia um refe- Constituição, nem leis, nem freio algum
rendum que não deixasse outra escolha. a seu poder" (J acques Duelos, Gaullis-
Por exemplo, poderia perguntar: 'Sois me, Technocratie, Corporativisme, -
pela supressão da República, ou pela "Gaullismo, Tecnocracia, Corporativis-
duplicação das taxas?' E a República se- mo" - , março de 1963).

126
a vontade dos "políticos"? Talvez sim, se o presidente da República
não fosse eleito pelos políticos, mas diretamente pelo povo, tirando
dessa investidura sua força. E para tornar mais "atual" o problema
da sucessão presidencial, acontece o atentado da OAS contra a vida
do general (22 de agosto, em Petit-Clamart). Fortalecido pela emo-
ção que o episódio causa em toda a França, De Gaulle anuncia pela
televisão que tem a intenção de proceder a nova reforma da Consti-
tuição, recorrendo diretamente a um referendum popular. Com isso
passa por cima da norma constitucional que exige uma votação pré-

1965: Le Figaro: HO general deve permanecer


para o segundo turno!"
Comeca I
O declínio Combat: "Desaprovação total a De
Gaulle" .
"Já de há algum tempo se evidenciava
o declínio do personagem carismático La Nation: "Repolitização do país".
habituado a considerar-se, como Luís
XIV, a encarnação do Estado. (De L'Humanité: "Estrondoso fracasso do
Gaulle, quando fazia testes de som para regime".
um programa de televisão, repetia:
'Aqui fala a França'.) No referendum A reeleição do general para o segundo
de 1958, que o levou à presidência, o Turno, segundo a recensão dos jornais
general obtivera 79 % dos sufrágios. Mas estrangeiros e nacionais, publicada por
no de 19 de dezembro de 1965, que o Le Monde, 21-12-1965:
reelegeu para o cargo, alcançou apenas
55 % dos votos" (Massimo Conti, Pano- Belgrado: "Batalha entre uma política
rama. novembro de 1970). bem definida e uma coalizão heterogê-
nea".
Londres: HO ano de 1967 será um teste
DE GAULLE.... importantíssimo para o gaullismo" .

Moscou: "Continuidade da política ex-


EM VOTACAO

terior e reagrupamento das forças da
esquerda".
Le Monde, 7-12-1965: "Submetido à vo- Nações Unidas: "Satisfação, apesar das
tação, com 43,97 % dos sufrágios expres- crescentes críticas contra a política afri-
sos na metrópole, o Gen. De Gaulle de- cana da França".
cidirá antes de quinta-feira à noite se
vai manter sua candidatura para o se- WasbiDgton: HOS dirigentes americanos
gundo turno das eleições. Retirar-se-á?" não tinham favoritos".

127
via do Parlamento, onde o projeto não passaria "nunca. Contra as
intenções presidenciais, manifesta-se imediatamente a oposição de
todos os partidos, incluindo até a de alguns membros da UNR. "De
GaulIe quer a ditadura!" - gritam todos. A 4 de outubro, o Parla-
mento aprova, por 280 dos 480 votos, uma moção de censura contra
o governo. Pompidou é obrigado a pedir demissão. De Gaulle res-
ponde imediatamente, dissolvendo a Assembléia. Após uma acirrada
campanha, realiza-se o referendum no dia 28 de outubro de 1962.
Mais uma vitória para De Gaulle. Seu projeto é aprovado com 62%

Le Soir (Bruxelas): "Cabe agora ao che- mentou a percentagem dos votantes a


fe do Estado demonstrar que não é bo- favor do partido gaullista (de 20% em
napartista" . 1958 para 38% em 1962). Charles Mo-
razet, em Le Général de Gaulle et la Ré-
Le Matin (Anvers): "'A frente da França publique (Flammarion, 1972), comenta
dividida em duas". que tal fato leva a supor que a maioria
11 Tempo: "De Gaulle não é homem ca- dos eleitores, embora aprove as inicia-
paz de tirar lições dos acontecimentos". tivas gaullistas, demonstra claramente
a distinção feita entre o que aprova e o
The New York Times: "Alívio no mundo que realmente julga possível. Porquan-
ocidental" . to - conclui M orazet - "'com o passar
Combat: "Um adiamento". do tempo, se torna cada vez mais evi-
dente que De Gaulle se esforçou mais
Le Populaire: "Uma reeleição lógica, por colocar-se em lugar da República
mas medíocre". do que por identificar-se consigo mes-
L'Humanité: "Uma recuperação". mo. Mas já se aproxima o momento em
que o francês médio encontrará na de-
L'Aurore: "Não mais poderá prevalecer fesa de seus próprios interesses a força
a decisão de um só". necessária para substituir um governo
Les Échos: "0 virus democrático ainda que arrasta a França a despesas vultosas
não terminou sua incubação". por um governo de sua escolha".

De Gaulle se colocou em NEOGAULLISMO =


FASCISMO
lugar da República
"Em dez anos de poder, o gaullismo de-
Entre os anos de 1962 e 1965, enquanto caiu para o neogaullismo. O regime se
os votos colhidos por De Gaulle em re- cristalizou em monarquia de plebiscito,
ferendum e eleições presidenciais regis- caracterizada pela recusa do diálogo
traram uma queda constante (91 % em com a oposição, pela repressão policial
1962, 62 % em 1963, 55 % em 1965), au- e pelo condicionamento das inteligên-

128

J .• IJ
dos votos. As eleições legislativas para a renovação da Câmara, rea-
lizadas no mês seguinte, confirmam a tendência do voto anterior,
pois os deputados da UNR passam de 189 para 222. A 27 de novem-
bro, De Gaulle torna a nomear Pompidou como primeiro-ministro. A
reforma constitucional imposta pelo general é testada pela primeira
vez nas eleições presidenciais de dezembro de 1965. Após muitas
hesitações, De Gaulle decide apresentar-se novamente como candi-
dato. Mas, para vencer desta vez, deve aceitar submeter-se à votação
contra o candidato da esquerda, François Mitterrand. E vence. _

cias. Temos assistido a um processo de Conselhos de ministros: 302.


transformação para o fascismo. A habi- Conselhos interministeriais: 420.
lidade extraordinária do 'Guia', pois é Audiências com Pompidou: 605.
assim que o chefe do Estado se qualifica
a si mesmo, consiste em dirigir este pro- Audiências com os presidentes das As-
cedimento, regular seu ritmo, atenuar- sembléias: 78.
lhe os efeitos mais evidentes, a fim de Audiências com ministros: 2.000
evitar uma reação demasiado violenta Audiências com altos funcionários, lí-
da opinião pública. Por cúmulo de sa- deres sindicais, etc.: 1.500.
gacidade, ele soube descartar seus ad- Audiências com chefes de Estado e che-
versários, sob a acusação de 'fascismo', fes de Governo: 600 horas.
no momento exato em que fazia funcio- Audiências com ministros das Relações
nar gradativamente um regime que se Exteriores: 1.000.
assemelha muito mais ao da Itália de
Mussolini e ao da Espanha de Franco Discursos rádio-televisionados: 30.
do que a qualquer regime democrático" Entrevistas à imprensa: 12.
(Jacques Soustelle, Gaulllsmo, ob. cit.). Discursos em cerimônias solenes: 36.
Comparecimentos oficiais em Paris:

o currículo 200.
Visitas a municípios: 2.500.
Visitas a departamentos: 94.
Franceses 'vistos' no decurso das via-
do Presidente gens: 15 milhões.
Audiências com conselheiros gerais:
400.
"Dizem que não consulto ninguém. Pois
vejamos um pouco como andam as coi- Audiências com pessoas 'notáveis':
sas !"
100. ooo.
Discursos ao ar livre: 600.
. Eis seu balanço até o dia 1Q de setembro Apertos de mão: incontáveis.
de 1965: (Citado por Robert Rocca, ob. cit.).

129
A POLÍTICA DA GRANDEUR. Em fins de 1958, a situação econômica
francesa é precária. De Gaulle, que não é especialista em economia,
deposita inteira confiança no ministro das finanças, Pinay, e numa
comissão de especialistas, dirigida por Jacques Rueff. Pede somente
que ajam depressa. O plano de saneamento econômico entra em vi-
gor no fim de dezembro. Prevê novas taxas, redução das subvenções
estatais aos lavradores, flutuação do franco, desvalorização de
17,55%, facilidades para o comércio exterior. O peso maior dessas re-
formas devem suportá-lo as classes operárias e, por isso, o ministro

sermão todo impregnado do afeto que


1959: sente pela França o prelado que, mais
tarde, será o Papa Paulo VI. Pouco de-

Viagem à Itália pois, a acolhida feita no Capitólio, pela


Administração Urbana de Roma, há de
testemunhar o mesmo calor. Nada me-
lhor que isso pode mostrar que não pas-
"Nossos vizinhos celebram o centená- sou de uma loucura momentânea a
rio das vitórias franco-piemontesas de agressão contra nós, levada a termo
1859. Aceito prontamente o convite do dezenove anos atrás, por ordem de
presidente da República, Giovanni Mussolini. Por outro lado, nada é mais
Gronchi, para assistir às comemora- encorajador que as relações entre estas
ções. Couve de Murville e Guillaumat duas nações irmãs" (De Gaulle, Mé-
fazem parte da comitiva. Em 23 de ju- . moiresd'Espoir, ob. cit.).
nho, Milão me recebe com uma tempes-
tade de aplausos. No dia seguinte, mani-
festa-se o mesmo entusiasmo durante De Gaulle liquida
a parada militar, da qual participam
tropas francesas ao lado do exército ita-
liano. As ardentes manifestações de que
o império colonial
fui alvo em Magenta e também em 501- "Corno teórico da grandeur da França
ferino, para onde acorreu uma enorme e convicto defensor de sua vocação pa-
multidão e onde fiz uso da palavra no ra se tornar uma grande potência de di-
campo de batalha, não deixaram a me- mensões mundiais, De Gaulle foi tam-
nor dúvida quanto ao sentimento popu- bém o artífice da liquidação do Império
lar em relação a nosso país e ao Gen. Francês na África. A contradição é ape-
De Gaulle. Durante o ofício religioso, nas aparente. De fato, De Gaulle con-
o Arcebispo Montini pronunciou um cebeu a descolonização como o preço
a pagar para restituir à França toda sua
De Gaulle e esposa votam nas eleições liberdade de ação e para fazer da Fran-
presidenciais de 1965. ça, enriquecida pelo prestígio que al-

131
socialista Guy Mollerapresenta, imediatamente, seu pedido de de-
missão. No fim das contas, porém, De Gaulle nunca se interessou
muito pelos problemas econômicos - uma lacuna em sua imagem
de líder político - , absorvido como está pela "missão" que se impôs:
restituir à França o lugar que lhe cabe no mundo e aniquilar a iníqua
"hegemonia mundial dupla" russo-americana, nascida em Ialta. Mas,
para desempenhar uma política de grande potência, a França deve,
antes de tudo, livrar-se dos embaraços do império colonial que ainda
lhe resta na África e que ameaça arrastá-la para novos conflitos, se-

cançaria com essa operação, o guia dos ceder discretos empréstimos. É um óti-
países do Terceiro Mundo" (Giampao- mo negócio para os africanos. Mas para
lo Calchi Novati, Panorama, 19 de no- a França as vantagens são poucas. Os
vembro de 1965). africanos embolsam o dinheiro e gas-
tam-no como bem entendem, pois a aju-
da é dada sem exigências de préstimos
Maso recíprocos" (Mário Costa, ob. cit.).

coracão

sofre Protesto dos lavradores
franceses:
De Gaulle: "Preciso vencer a angústia
que me invade quando resolvo delibera- nCARLITOS, QUEREMOS O
damente pôr fim a um domínio colonial DINHEIRO!"
que já foi glorioso, mas agora seria per-
nicioso. Creio que o povo me ouvirá. "Quando De Gaulle visitava o interior
Chegado o momento, perguntar-lhe-ei do país para reavivar sua popularidade
se me dá razão ou me condena. Nessa em declínio, os camponeses freqüente-
hora, a sua voz será para mim a voz de mente lhe gritavam: 'Charlot, des sous'
Deus" (Mémoires d'Espoir, ob. cit.). Os franceses pagavam por um decênio
de sonhos de grandeza gaullista, os
QUANTA BENEFICÊNCIA quais haviam anteposto o prestígio in-
ternacional da França a qualquer outra
PARA OS AFRICANOS! exigência econômica e social" (Massi-
mo Conti, art. cit.).
"Depois que o vínculo jurídico da Co-
munidade Francesa se tornou mais fra- HEm 1963, a ajuda foi de I bilhão e 400
co, De Gaulle procurou substituí-lo milhões de dólares, o que equivale a
pelo vínculo sentimental, auxiliado pelo 2,5 % da renda nacional. Ao mesmo
fato de que as classes dirigentes desses tempo, a contribuição da Inglaterra
países falavam o francês ... Para reforçar para o Terceiro Mundo não passava de
o método, De Gaulle começou a con- 1 % da renda nacional; a da Alemanha

132
melhantes aos da Indochina e Argélia. Por felicidade, o problema se
apresenta de fácil solução, porque as várias colônias africanas não
sofrem os mesmos problemas humanos, econômicos e psicológicos
da Argélia, onde vivem 1 milhão de franceses. A Constituição idea-
lizada por' De Gaulleem 1958 transforma a híbrida Union Françai-
se - instituída em 1946 com a finalidade de regular as relações entre
a França e as colônias - em Communauté, uma comunidade livre,
da qual todos os Estados-membros, se assim o desejarem, podem sair
a fim de conquistar pacificamente sua independência. É o que fazem

era de 1,2%; a dos E.V.A., 1%; 0,5% a América não tinha outra saída senão re-
da V.R.S.S." (Dupeux, ob. cit.), jeitar a proposta francesa. E o general
devia saber disso. Na verdade, contava
Uma comissão governamental, dirigida com a recusa..." (François Mauriac, oh.
pelo ex-primeiro-ministro Jeanneney, cit.).
criticou as excessivas despesas em auxí-
lio do Terceiro Mundo. A propósito de De fato, logo em seguida, De Gaulle
tais ajudas o Senador Bonnefous publi- declararia que "o tal memorando era
cou, em 1963, um livro com o sugestivo apenas um meio de pressão diplomáti-
título Les Milliards qui s'Envolent C'Mi- ca. Na ocasião, eu procurava um meio
lhões que se Evaporam"). de sair da Aliança Atlântica e recon-
quistar a liberdade que havia sido alie-
A resposta GauUista - O ministro da nada pela IV República no momento
Cooperação, Jean Foyer, declarou: em que assinou o tratado da OTAN. Por
"Apesar de tudo, nossa política cons- isso pedi a Lua. Tinha certeza de que
titui um dos meios que ainda estão à o pedido não seria atendido... O que os
disposição da França para manter seu anglo-saxões querem é dominar-nos"
explendor naqueles países. Além disso, (citado por J. R. Tournoux, La Tragédie
nós sempre temos uma certa responsa- du Général, - HA Tragédia do Gene-
bilidade perante a História!". ral" -, Plon-Pierre Charron, 1967).

Segundo M. Costa (oh. cit.), no entan-


o memorando de 1 958 to, de Gaulle estava plenamente con-
O general pede a lua vencido do "direito certo e líquido" da
França. À objeção apresentada pelos
O memorando secreto que o general en- americanos: "Por que uma posição de
viou a Eisenhower e a McMillan "está privilégio da França na OTAN, em re-
bem longe de provar que o De Gaulle lação à Alemanha e Itália?" - ele res-
de 1958 ainda acreditava que a França pondia: "Porque a França tem uma ~vo­
pudesse ocupar uma posição de privilé- cação mundial' que nem a Alemanha,
gio ao lado de seus grandes aliados... A nem a Itália têm". ~'O memorando en-

133
praticamente todos, no espaço de dois anos, seguindo o exemplo da
Guiné (1958), que, aliás, se recusou a ingressar na Communauté.
Fortalecido por esta "descolonizaçâo sem dor", o general dá início
a uma política de independência nacional mais decidida: põe nova-
mente em discussão todas as alienações ou limitações da soberania
francesa que seus predecessores concederam em favor de organismos
supranacionais, como a NATO e a Comunidade Européia. Já em
setembro de 1958, De Gaulle exigira, através de um memorando se-
creto enviado aos ingleses e americanos, uma "direção anglo-franco-

I 11

viado a Eisenhower em setembro de 1964, insiste no assunto: "Hoje, as maio-


1958 nada mais é que a primeira mani- res dificuldades nos vêm de um país
festação concreta do General para ob- com o qual temos profundos vínculos
ter de forma inequívoca o 'papel' que históricos e que já salvamos por duas
ele quer para seu país. Toda sua política vezes: a França de De Gaulle. O gene-
ulterior com relação aos E.V.A. será ral está decidido não somente a assumir
dominada por esse desejo. A aversão a liderança da Europa, mas também a li-
contra os americanos nascerá do fato quidar a posição dos E.U.A. no conti-
de jamais ter obtido a satisfação de tal nente" .
desejo, ou pelo menos toda a satisfação
que ele teria esperado" (G. Ortona,
ob. cit.). A política
Os comentários americanos da vaidade
DEUS NOS LIVRE DE DE "Eu penso que o Gen. De Gaul1e, ao
GAULLE ... levantar-se pela manhã, enfiado ainda
num belo pijama, bate na testa dizendo
"Ter um aliado como De Gaulle já bas- a si mesmo: 'Pois bem, o que inventarei
ta: dispensa qualquer inimigo" - eis a hoje para fazer o mundo tremer?' " É
análise, entre irônica e aborrecida, feita uma tirada de Pierre Daninos, publica-
por um editorialista do Chicago Ameri- da pelo New York Herald Tribune, num
can do dia 22-1-1964, sobre a política artigo cujo título é "Sorry for De Gaul-
francesa, a propósito das contínuas di- le", resumindo as "extravagâncias"
ficuldades criadas por De Gaulle contra (vistas do exterior) da política exterior
a OTAN e sobre as denúncias do gene- gaullista.
ral contra a guerra do Vietnã. (H A guer-
ra suja dos americanos, que ameaça a Mas os franceses aprovam: "Urna sonda-
paz mundial." Henry Truman, num arti- gem da opinião pública, realizada em
go publicado no Washington Post de 1-3- 1967 pelo IFOP, mostra que mais de

134
americana da NATO", com poderes para elaborar a estratégia de
todo o mundo livre. Na prática, tratava-se de constituir um diretó-
rio tripartido do mundo ocidental, no qual a França teria consegui-
do o direito de veto sobre a utilização do arsenal atômico americano.
A resposta de Eisenhower, e depois também a de Kennedy e a de
Johnson, a esta pretensão será sempre, cabalmente, negativa. E os
ingleses nada mais fazem que apoiar as teses americ.anas. Assim co-
meça o gradual afastamento entre a França e a NATO, chegando
ao rompimento total em 1966, quando os franceses se retiram defini-

dois terços dos franceses têm plena con- mas sim da integração executada pela
fiança na política exterior do Gen. De OTAN, sob o comando americano; em
Gaulle e a aprovam" (François Goguel, estabelecer com os Estados do bloco
10 Anées de Restauration de l'Etat, - oriental, sobretudo com a V.R.S.S., re-
"Dez Anos de Restauração do Esta- lações que visem, inicialmente, à dis-
do" -, France-Forum, 1968). tensão e, posteriormente, ao entendi-
, mento e à colaboração. Além disso,
MARIO COSTA: INCENSO NACIO- quando chegar a hora, proceder do mes-
NAL. A França precisa de incenso e
H
mo modo com a China.. por fim, dotar-
De Gaulle é o turiferário ideal. A polí- nos de um tal poder nuclear que nin-
tica exterior do general é vazia e capri- guém nos possa agredir sem sofrer tre-
chosa. Os franceses, no entanto, pare- mendos reveses" (Mémoires d'Espoir,
cem lisonjeados pelo clamor que as ob. cit.).
iniciativas de De Gaulle suscitam em
todas as capitais do mundo e acreditam
que isso já é para eles um sinal da im- De Gaulle e o exército
portância 'mundial' da França. Na
verdade, a vaidade nacional leva-os a
trocar, facilmente, a forma por substân-
cia. Considerando bem, De Gaulle não A Forca

combativa
passa de um coágulo em torno do qual
se agarram as pretensões francesas de
poder". (oh. cit.). Depois de ter sido um dos "inovadores"
da estratégia militar entre os anos de
1925 e 1940, durante toda a guerra mun-
A _dI dI OTAN dial e até seu afastamento da política,
De Gaulle se interessa principalmente
pela política. "Somente após seu retor-
De Gaulle: "Meu plano consiste, pois, no ao poder é que ele define uma nova
em desvencilhar a França, não da Alian- política militar - escreve Jean Plan-
ça Atlântica, a qual julgo que se deve chais em Le Monde, 11-11-1970. -
manter a título de extrema precaução, Apoiando-se nos mesmos princípios que

135
tivamente do pacto. Concomitantemente, De Gaulle incentiva ao
máximo o programa atômico francês, iniciado já durante a IV Re-
pública. E a primeira bomba atômica francesa explode no Saara no
dia 13 de fevereiro de 1960. A 18 de junho do mesmo ano, o governo
consegue do Parlamento a aprovação de verbas especiais para a
criação de uma força combativa autônoma. Tendo sido a última a in-
gressar no "clube atômico", a França se recusa a limitar as expe-
riências. Não participa da Conferência de Desarmamento em abril
de 1962 e não adere ao Tratado de Moscou sobre a renúncia às ex-

havia tentado fazer prevalecer antes da tam apenas quinze minutos para que um
11 Guerra Mundial, ele se esforça por foguete balístico intercontinental lan-
constituir um exército francês moderno. çado pela V.R.S.S. atinja os E.V.A.!
Mais uma vez a qualidade deve superar Está bem, de acordo - replica o Gen.
a quantidade. A força combativa atômi- De Gaulle - , mas eu me recuso a inte-
ca já é o principal instrumento do pode- grar as unidades francesas. Em suma,
rio militar. A tarefa atribuída ao exérci- quero ter a possibilidade de me retirar
to regular e à reserva se restringe ape- para a África do Norte e para o Saara
nas à defesa interna... Mas, como há com nossas tropas. "Seus interlocutores
trinta anos atrás, também hoje, embora ficam embasbacados e murmuram:
por razões diversas, o exército não quer 'Concessões de 1940. A velhice fez o seu
escutar a voz do teórico, pois agora o progresso e o general não é mais recep-
julga superado. E De Gaulle não conse- tivo' .. (citado por Tournoux, La Tragé-
gue ocultar sua indignação". die du Général, ob. cit.).

"FIXOU-SE EM 1940!" A união européia


HDe Gaulle já não consegue mais dis-
tinguir claramente as dimensões da
é difícil
guerra moderna" - declara o Mal.
Juin e muitos outros generais franceses "Europa é uma palavra que De Gaulle
têm o mesmo parecer. Os especialistas não aprecia muito. Para ele é um conti-
"falam a De Gaulle da absoluta neces- nente e não uma mística. A união criada
sidade de integrar todos os sistemas eu- por Jean Monnet lhe é muito difícil,
ropeus de ligação, detecção, informa- não faz seu gênero. Na realidade', o que
ção e alarma aéreo. Não é uma questão vem a ser a Europa sem a Polônia, sem
de minutos, nem mesmo de segundos, a Romênia? Uma Europa sem Praga,
mas de milésimos de segundo. A defesa Viena, Budapest e a própria Moscou?
aérea do território, em escala puramen- Como se fosse possível haver um equi-
te naeíoaaí, não existe mais. Pois bas- líbrio neste continente que, há mais de

136
periências nucleares (agosto de 1963). A partir de 1961-1962, De
Gaulle se "vinga" da recusa anglo-americana e inaugura uma política
abertamente antiamericana: reconhecimento da China de Mao
(1964); viagem triunfal à U.R.S.S. (1966); contínuas denúncias con-
tra a guerra do Vietnam, tanto na ONU como nos discursos públicos;
luta contra o dólar; exigência de substituí-lo pelo ouro como base
para os pagamentos internacionais. A "punição" da Inglaterra, no
entanto, é feita através do veto absoluto a seu ingresso no MEC,
veto mantido até que o general se retire da política. Já que o triun-

mil anos, se abandona aos prazeres da De Gaulle lanca



a
guerra civil, sem uma aliança entre Pa-
ris e Moscou! Se pudesse dar livre cur- Europa das pãtrias
so a seus impulsos, De Gaulle rasgaria
aquele Tratado de Roma, perigoso co-
roamento do sonho europeu que Schu- As idéias de De Gaulle a respeito da Eu-
mann e Adenauer mantiveram em pau- ropa unida são de natureza confedera-
ta durante anos!" - escreve Suffert tiva: a Europa das Nações. É preciso
(ob. cit.). respeitar a soberania de cada um dos
Estado-membros e eliminar todas as
De Gaulle aio esqueceu a frase de Chur- características de supranacionalidade
chill, pronunciada "durante a guerra: criadas pelos primeiros fundadores.
"Entre De Gaul1e e Roosevelt sempre HÉ uma quimera pensar em construir
escolherei Roosevelt". Quando a Ingla- algo de eficaz fora e acima dos Estados"
terra, depois de uma longa evolução po- (5 de setembro de 1960). Por isso De
lítica interna, compreende que não po- Gaulle propõe uma cooperação políti-
H

de ficar fora da Europa e pede sua ad- ca a nível de governo, sem alienação da
missão ao MEC, De Gaulle lança a soberania". A 18 de janeiro de 1962
bomba, declarando aos jornalistas, no é tornado público o plano de De Gaulle
dia 14 de janeiro de 1963: rrA Inglaterra para a Europa (conhecido sob o nome
é insular, marítima, sujeita às suas mu- de Plano Fouchet), que prevê um Con-
danças, ligada a seus mercados, aos selho dos chefes de governo, com a fi-
mais diversos e longínquos países. Exer- nalidade de "unificar a política exterior,
ce uma atividade essencialmente indus- econômica, cultural e de defesa", ten-
trial e comercial, e muito pouco agríco- do, além disso, o domínio sobre as insti-
la. Em poucas palavras, a natureza e a tuições supranacionais já existentes.
estrutura da Inglaterra a tornam funda- O plano já conseguiu o apoio de Fanfa-
mentalmente diferente dos países conti- ni por parte da Itália e de Adenauer por
nentais..." E assim fecha-se a porta do .parte da Alemanha. (Segundo Alex-
MEC para a Inglaterra durante toda a ander Werth, os dois estadistas acha-
Hera De Gaulle". ram que o plano apresentado "ia muito I

137
~
i
virato com os ingleses e americanos falhou, De Gaulle procura subs-
tituí-lo, num primeiro tempo, por uma política de bloco europeu,
baseada numa estreita aliança da França com sua grande ex-inimi-
ga, a Alemanha. Muitas vezes De Gaulle recebe nos Campos Elísios
o Chanceler Adenauer e seus sucessores. Por sua vez, realiza nume-
rosas viagens à Alemanha. Mas a política alemã está por demais
amarrada ao vagão dos E. V.A. para se deixar aliciar pela política
exterior gaullista, motivo pelo qual os pactos franco-alemães se
tornam, bem depressa, letra morta. De Gaulle, então, lança fórmula

u ]JJ 1

além do que poderiam esperar"; Edgar poder estabelecido pelos americanos e


Faure (ob. cit.), no entanto, afirma que russos. De Gaulle estava convencido de
"se tratava de um plano menos avança- que a História é mais importante que a
do e corajoso do que esperavam nossos política, e as nações são mais importan-
parceiros". Mas Bélgica e Holanda se tes que as ideologias. Para ele as ideolo-
opuseram tenazmente, pois De Gaulle gias não passavam de um invólucro con-
lhes "ferira a suscetibilidade, pelo fato tingente das 'eternas nações', imutáveis
de não as ter consultado" , segundo afir- como as raças que a estas se identifi-
mações de Edgar Faure, que, além dis- cam. Sempre coerente com essa con-
so, aponta a pressão exercida pela In- cepção do mundo, que se avizinha do
glaterra e E. U.A. como outra possível irracionalismo... o general declarou su-
causa da suspensão das negociações. perados os blocos que dividem o mun-
Havia também o fato de Bélgica e Ho- do, condenando-os como superestrutu-
landa não pretenderem aceitar uma uni- ras inúteis e perniciosas. O primeiro
ficação à De Gaulle, mesmo no campo bloco ao qual De Gaulle declarou guer-
da defesa, porquanto estavam convictos ra sem tréguas foi a Europa. "A Europa
de que só a OTAN poderia proteger o - afirmou em certa ocasião - é como
Ocidente (notas de Alexander Werth, um assado. Este assado é constituído
ob. cit.; Georges Dupeux, L 'Année pela França e pela Alemanha, com um
Politique 1962 .. J. R. Tournoux, ob. cit.). pouco de salada fornecida pela Itália
e um pouco de salsa trazida pelo Be-
Assado Francês nelux." Depois de opor-se à integração
européia e à admissão da Inglaterra no
e salada Italiana Mercado Comum, De Gaulle se con-
centrou na tentativa de conseguir um
"Aidéia central do grande projeto de perfeito entendimento com a Alemanha
De Gaulle era a Europa das nações, um de Konrad Adenauer. E durante algum
amontoado de pequenos e grandes paí- tempo parecia funcionar perfeitamente
ses, do qual emergisse, como um gigan- o eixo Bonn-Paris. Mas ele desmoronou
te, a grande França. Uma Europa capaz quase imediatamente, assim que Ade-
de se levantar contra o monopólio do nauer desapareceu da cena política.

138
da "Grande Europa do Atlântico aos Urais" para contrapô-la ao
bloco anglo-saxão e começa a fazer a corte aos países do Leste
europeu. Mas esta é, também, uma fórmula desprovida de real con-
teúdo político e, praticamente, sem futuro. Progressivamente, o
general toma consciência disso e se concentra na orgulhosa (mas de-
missionária) fórmula HA França deve ser ela mesma". Na prática,
uma política individualista, imprevisível, de outsider. E imprevisíveis
são, com efeito, a reviravolta pró-árabe (1967), e o convite à secessão
dirigido aos franco-canadenses. _

Desiludido, De Gaulle tentou então sua que seja o mais influente de nossa épo-
maior jogada, o entendimento com a ca, de tentar lançar-nos numa terrível
V.R.S.S." (Massimo Conti, no artigo ci- guerra civil?".
tado do Panorama).
"Segurei nos braços uma
ft
Franca morta"
O ESCANDALO •
Queria De Gaul1e, realmente, recolocar
a França no rol das grandes nações e,
CANADENSE sobretudo, romper a hegemonia mun-
dial das duas potências, V.R.S.S. e
E. V.A.? Respondendo a um jornalista
Durante sua viagem ao Canadá, de 15 do Herald Tribune, em agosto de 1972,
a 27 de julho de 1967, durante um dis- André Malraux, o mais fiel companhei-
curso em Montreal, De Gaulle grita de ro do general, revelou que De Gaulle
repente: "Viva o Quebec livre! Viva o alimentava Hum sonho grandioso mas
Canadá francês! Viva a França!" Há
desesperado, no qual nem ele mesmo
muito tempo está em plena atividade, acreditava. Tinha, no entanto, a convic-
na província de Quebec, o movimento
ção de ter conseguido demonstrar que
separatista dos canadenses de língua
a França existe e de ter criado uma es-
francesa, que recorrem aos atentados e pécie de lenda épica. Acreditou sincera-
ao terrorismo como armas políticas. mente nisso? Eu não saberia dizê-lo".
Numa nota de protesto, o governo ca-
Ainda segundo Malraux, depois da re-
nadense declara "inaceitáveis" as afir-
volta estudantil de maio de 1968, De
mações de De Gaulle, que decide por
Gaulle teria dito: Aconteça o que
H
isso cancelar sua visita programada para
acontecer à França e ao mundo, eu es-
Ottawa e voltar imediatamente para a
tou esperando a morte. Segurei o cadá-
França.
ver da França em meus braços e fiz o
La Presse, Canadá: "Deixando de parte mundo acreditar que ela estava viva.
qualquer consideração, que direito cabe Mas eu, Gen. De Gaulle, sabia que esta-
a um homem vindo da França, mesmo va morta".

139
As IDÉIAS DE MAIO. Sem dúvida, De Gaulle saiu vencedor na votação
de dezembro de 1965, mas com a margem de votos mais baixa desde
sua volta ao poder. Eis um sinal evidente de que os franceses c~me­
çam a sentir-se cansados dele e do "torpor" no qual os submergiram
sete anos de tutela gaullista. A vida política, "morta" pela "ditadura"
do chefe de Estado, desperta em meio ao insucesso do general e c~­
meça a se agitar em vista das eleições legislativas de 1967. Nos PTl-
meiros meses de 1966, um grave escândalo sacode o regime. Em
Paris, é seqüestrado o líder da oposição democrática marroquina,

evocada, quase 300 vezes. No início de


AS PALAVRAS 1962, exatamente essas duas palavras
são a chave das idéias do Gen. De
Gaulle, que encarna a primeira e pre-
DO GENERAL side a segunda" (Histoire de la Répu-
blique gaullienne, Fayard, 1970).

Quais são as dez palavras pronunciadas o caso de Ben Barka


com mais freqüência por De Gaulle du-
rante as 43 alocuções e nas três entrevis-
tas à televisão, efetuadas entre 1958 e DE GAULLE: "'Salvemos
1965? Ei-las: França (436 vezes); país a honra do barco"
(isto é, a França, 214); República (151);
Estado (144); mundo (140); povo (109); No dia 29 de outubro de 1965, dois poli-
nação (86); progresso (85); paz (68); ciais franceses interceptam o líder da
futuro (56). Esse é o resultado obtido oposição marroquina, Mehdi Ben Bar-
por dois pesquisadores, Cotteret e Mo- ka, e o seqüestram. A partir desse dia,
reau, que escreveram em cartões perfu- ninguém mais o verá vivo. Os policiais
rados mais de 62.471 palavras pronun- franceses o conduzem à vila de Bou-
ciadas pelo general, fazendo a triagem cheseiche, um gangster, aonde pouco
através de um computador (Le Vocabu- depois chegará o Gen. Oufkir, ministro
laire du Général De Gaulle, - HO Voca- do Interior de Marrocos, acompanhado
bulário do General De Gaulle" -, Fon- de alguns membros do serviço secreto
dation National des Sciences Politiques, marroquino. Ben Barka é torturado e
Armand Colin, 1969). Comentário de morto. Seu corpo desaparece. ee As au-
Pierre Viansson-Ponté: ~~A França é toridades francesas estão a par do caso
citada, ou impropriamente designada, até os mínimos detalhes" - escreve o
650 vezes, a República é invocada, ou Comitê para a Verdade Sobre o Caso
Ben Barka (Cahier du Témoignage Chré-
Encontro de De Gaullecom o tien, n9 45). "No entanto, Oufkir volta
Preso Nixon em Paris( 1969). a Paris dia 2 de novembro e no· dia se-

141
Ben Barka. Na operação, organizada pelos serviços secretos mar-
roquinos do Gen. Oufkir, são envolvidos os "serviços especiais"
franceses. Quando explode o escândalo, De Gaulle, que está com-
pletamente por fora de tudo, vai tomar satisfações de seus colabo-
radores. E começa por Pornpidou, responsável por não ter sabido
controlar os serviços secretos que, em última análise, dependem dele.
O caso Ben Barka agita a França por mais de um ano e é encerrado
em 1967 com um turbulento processo, que, no entanto, não consegue
esclarecer satisfatoriamente o trágico episódio. As eleições de 5 a

11i1 IH 1111 IPI

guinte participa de uma recepção ofere- os gangsters franceses envolvidos no ca-


cida pelo ministro francês do Interior, so e foragidos em Marrocos são conde-
Roger Frey..." Quando explode o es- nados à penitenciária.
cândalo, Oufkir e seus homens já estão
longe. De Gaulle declara furioso: "É Oufkir, naquela ocasião, declarou aos
preciso que se descubra toda a verdade jornalistas: "Sou apenas uma engrena-
e se faça justiça... para 'salvar a honra gem, um instrumento a serviço do rei.
do barco' ". E além disso afirma que, Se me fosse ordenado: 'Pule do oitavo
da parte francesa, "o que aconteceu andar', eu pularia. No exército marro-
não passa de um ato vulgar e subalter- quino nós somos disciplinados, sabemos
no" (22-2-1966). obedecer".
Em agosto de 1972, Oufkir se suicida (ou
é 'suicidado'), depois de falhar o golpe
As autoridades francesas de Estado contra o Rei Hassan 11.
sabiam de tudo
A explosão de maio
"Ao contrário, muitos fatos demons-
tram, em oposição ao que De Gaulle "O que impressiona acima de tudo é
afirmou, que da parte francesa o caso a imprevisibilidade do movimento, o
não foi simplesmente 'vulgar e subalter- caráter não clássico daquela súbita ex-
no' .. As mais altas autoridades foram plosão. A crise evoluiu com incrível fa-
advertidas em tempo útil e, no entanto, cilidade e rapidez, partindo de um inci-
tudo foi mantido em surdina até que os dente aparentemente secundário, a sa-
criminosos tivessem deixado nosso ter- ber, a chegada ao campus da Sorbonne
ritório" (Comitê para a Verdade...) de um pequeno grupo de estudantes de
N o processo, concluído a 5 de junho de Nanterre, imediatamente expulsos pela
1967, . os "policiais corruptos", Lopez polícia, no dia 3 de maio, sexta-feira.
e Souchon, são condenados a oito e seis O fato de a França de 1968 ser ainda ca-
anos de prisão, respectivamente. Todos paz de tais sobressaltos nos obriga a

142
12 de março de 1967 se ressentem deste clima negativo. Os gaullistas
e seus aliados perdem quarenta cadeiras no Parlamento, embora con-
servem uma parca maioria, enquanto os comunistas saltam de 41
para 73 cadeiras e a Federação das Esquerdas, de 91 para 116. "Após
a votação de 1965, esta é a segunda etapa do refluxo gaullista" -
escreve Viansson-Ponté no Le Monde. Depois das eleições, De Gaulle
torna a nomear Pompidou primeiro-ministro. No Parlamento, pros-
segue a luta da oposição. Três moções de censura contra o gover-
no - que pediu "poderes especiais" no campo econômico e social

,
refletir sobre as energias latentes que
ela possui" (Jean Chesneaux, no prefá-
cio de Viver em Maio. Einaudi, 1969).
EA DA POLICIA
"Quando voltam para casa, os policiais
parisienses estão obsessionados pela
A culpa de idéia de que alguém os vá atacar... Al-
guns deles foram presos e conduzidos à
DeGaulle Sorbonne por estudantes, que os leva-
ram a visitar os lugares em que se en-
contravam os feridos. Outros foram cer-
~~É claro que a responsabilidade de De cados diante dos hospitais. No Hospital
Gaulle pela noite sangrenta de 10 para Cochin, um policial é rodeado por um
II de maio é muito grande. Ninguém grupo de estudantes e médicos. Olhe f

ousa acordá-lo. Mas se Fouchet, minis- o que fez... Como pode ainda ser poli-
tro do Interior, ordena ao chefe de polí- cial?' etc. Um médico lhe diz na cara:
cia que inicie o assalto às barricadas, 'Basta, Continuam a trazer gente que
arriscando o pior, é porque tem certeza você feriu. Meu serviço não é consertar
de que De Gaulle não quer ver, pela os estragos que você faz'. O policial está
manhã, a bandeira vermelha desfralda- pálido e não sabe o que responder" (La-
da nas zonas ocupadas pelos rebeldes. bro- Manceaux, Balanço de Maio, Mon-
Em tais ocasiões, a repressão parte de dadori, 1968).
De Gaulle. Ele mesmo incitará aspera-
mente (mas em vão) a Fouchet para que
faça uso de todos os meios à disposição Os jovens se rebelam contra
para acabar com o motim. É dele que
parte o insulto. De Gaulle, em vez de se o imobilismo
orgulhar da juventude, em vez de tentar
compreendê-la, fala de chienlit (bordel). HA juventude que lhe lança em rosto
Tal ponto de vista não é apenas depre- seu desprezo, que desafia as granadas e
ciativo, é antes de tudo mesquinho" os cacetetes da polícia, representa para
(Lacouture, ob. cit.). De Gaulle a falência completa de suas

143
para preparar o prazo do dia te;> de julho (a liberação completa do
câmbio no MEC) -' são rejeitadas com a margem mínima de votos.
A seguir, em agosto, o governo pu blica uma série de determinações
(em matéria de previdência social e de participação dos trabalhado-
res nos lucros das empresas) que desencadeiam nova onda de greves
e manifestações sindicais. No entanto, ao começar o ano de 1968,
a vida francesa parece estar seguindo o curso normal dos últimos
anos, mesmo que em algumas universidades os estudantes comecem
a contestar. Mas parece coisa de pouca importância. ~r A França se

ali

ilusões. É pior que um soco nos olhos. mato. As obrigações, os regulamentos,


Estava convencido de ter satisfeito a as proibições que os estudantes derru-
juventude, de ter-lhe dado motivos para baram com tanto barulho e que os ope-
confiar no futuro, de tê-la reconduzido rários em greve rejeitaram por seu tur-
ao caminho da espiritualidade patrióti- no, de improviso parecem insuportáveis
ca. No entanto, eis que ajuventude fran- aos mesmos que até há pouco se teriam
cesa o injuria cruelmente, ri de seu pa- assustado se os vissem desaparecer..."
ternalismo, exige sua demissão por meio
da anarquia. Os pensamentos de Mao, o jesuíta Michel De Certeau escreve em
a filosofia de Marcuse, os opúsculos Etudes: "Tomou-se a palavra como se
marxistas, eis as provas de que a juven- tomou a Bastilha em 1789!"
tude francesa pertence a uma geração
que se rebela em todo o mundo... " (Má- Até os Rluros
rio Costa, oh. cit.).
têRl a palavra
Os franceses conquistam Durante o mês de maio de 1968, os mu-
ros 'florescem' com milhares de pala-
a nova Bastilha vras, frases e slogans revolucionários,
contestadores, humorísticos ou amar-
Viansson-Ponté, em sua obra já citada, gurados. Muitos deles serão recolhidos
escreve: ••A característica essencial des- numa série de opúsculos. O primeiro a
te mês de maio é que as bocas se abrem. sair é o de Julien Besançon, Ma; 68. Les
E, repentinamente, nasce um rio de pa- Murs ont la Parole C'Maio de 68, Os
lavras... Milhares de homens e mulheres Muros Têm a Palavra", Ed. Tchou),
se dão conta que têm alguma coisa a publicado em junho de 1968: HA imagi-
dizer-se, que podem ser ouvidos, que é nação toma o poder! - Corre, compa-
possível derreter aquela grossa camada nheiro, o velho mundo está atrás de ti!
de silêncio, de solidão, de egoísmo, im- É proibido proibir. - Sede realistas:
posta pelas convenções, pelas barreiras Pedi o impossível. - Tornai por reali-
sociais, pela humilhação e pelo anoni- dade os vossos desejos. - Viva a comu-

144
enfada" é o título de um editorial do Le Monde, que resume perfeita-
mente o clima francês daqueles meses. Mas, de improviso, tudo é
jogado de pernas para o ar. A 2 de maio as autoridades fecham a
Universidade de Nanterre (a do "Circulo 22 de março", de Cohn-
Bendit). No dia seguinte uma manifestação de protesto dos estudan-
tes da Sorbonne é interrompida pela intervenção maciça da polícia e
também aquela universidade é fechada. No Quartier Latin, as mani-
festações e as lutas continuam com violência sempre maior, até o
paroxismo da "noite das barricadas", na passagem de 10 para 11 de

nicação, abaixo a telecomunicação! - felizes demais por ver crescer o sonho


A sociedade é uma flor carnívora. - A de uma revolução 'pura', isto é, sem os
barricada fecha a rua, mas abre o cami- comunistas, ou 'puramente espiritual',
nho. - Só os animais com chifres têm se apressam em definir a fugaz revolu-
medo do vermelho. - O direito de viver ção de maio como ta revolução do séc.
não se mendiga, se conquista! - Exage- XX', a primeira revolução pós-marxis-
rar, eis a arma! - O dever de todo revo- ta" (segundo J. Bloch-Michel, Une Ré-
lucionário é fazer revolução. - É ape- volution du XX Siecle, Ed. Laffont, 1968).
nas o início, continuemos a luta. Etc..."
Depois que o Gen. De Gaulle pronun-
Edgar Morin: "Será talvez a Sorbonne-
ciou um discurso sobre o referendum a
respeito da participação, no dia 24, apa- Potêmkin que anuncia a revolução
receu escrito num muro: "Ele demorou bolchevista, ou será a Sorbonne-Basti-
três semanas para anunciar, em cinco lha que anuncia um 1789 da juventu-
minutos, que em um mês faria o que . de? Segundo me parece, trata-se de algo
nem conseguiu começar em dez anos". híbrido que, tomando emprestada a
ideologia revolucionária, nela injeta
, .... uma necessidade de renovação juvenil,
de transformação social e, como toda
EA REVOLUCAO , •
revolução profunda, dá origem a novas
necessidades revolucionárias de uma
sociedade" (18 de maio de 1968).
DO SECULO XX
Esprit (revista dos católicos de esquer-
Todos os que analisaram, a posteriori, da): ttA utopia gera as mudanças de fi-
o "movimento de maio" tentaram
, . . .-
"com- losofia da História... Vivemos agora a
pensar a propna mcompreensao passa- primeira fase da primeira revolução
da com um excesso de lucidez tardia e pós-marxista na Europa ocidental...
de entusiasmo retrospectivo" - escreve Aquela que se iniciou é a invenção de
Paul Rozenberg, no livro Viver em Maio um estilo de vida e levará anos até se fi-
(Einaudi, 1969). "Certos comentaristas, xar" (2 de junho de 1968).

145
maio. A polícia parte para o assalto às barricadas erguidas pelos
estudantes. Resultado: além de mil feridos (de ambas as partes), hou-
ve 1.500 detenções, 73 prisões e 250 veículos destruídos ou danifica-
dos. Com os estudantes alinharam-se também quase todos os intelec-
tuais de esquerda - excluindo-se apenas os de estrita observância
comunista. Pompidou, que acabava de voltar de uma viagem ao ex-
terior, consegue impor ao governo uma política de moderação. Du-
rante um discurso pela televisão, promete imediata reabertura das
universidades, libertação dos presos e clemência nos exames. De

Aragoo: HO que está acontecendo não determinação dos líderes sindicais e tor-
produzirá efeitos de dias ou de semanas, nou mais difíceis as negociações (enca-
mas de meses e anos... Este maio de Pa- beçadas por Pompidou). Aumenta o de-
ris inicia uma nova era" (Les Lettres sastre da V República: é um Waterloo!"
Françaises, 7-6-1968). (J. R. Tournoux, Le Mois de Mai du
Général, - HO Mês de Maio do Gene-
Jean-Paul Sartre: "Por vosso intermé- ral" - , Plon, 1969).
dio, estudantes, vem à tona algo eston-
teante, desnorteante, que renega tudo o
que formou nossa sociedade tal qual ela o General chora
é hoje. É algo a que chamarei de 'exten-
são do campo do possível'. Não renun- Nos dias 27-28 de maio, De Gaulle está
cieis a isso" . abatido: "É um velho que vai a pique"
- afirma Philippe Alexandre, no livro
o discurso de 24 de maio de 1968 Le Duel De Gaulle-Pompidou. "Na pre-
sença dos outros, o general apenas se
o Waterloo de De Gaulle esforça por se manter digno e esconder
.os soluços que o sufocam." É por isso
que, no dia 29 de maio, resolve partir.
'·A França escuta, mas não treme. Os Sente que tudo está perdido . e quer fu-
olhos continuam enxutos. O país não .
gir.
foi convulsionado até suas raízes. O ca-
risma não desce mais sobre as casas dos Para Alexandre, a "transformação" de
franceses. Ah! mas que fim tiveram os De Gaulle se efetua em Baden-Baden:
comovedores discursos de De Gaulle, H Ü espetáculo que o espera produz nele
as palavras cheias de glória e de heroís- o efeito de um choque elétrico: Deixou
mo que atingiam o coração, as fórmulas um país em anarquia, encontra a França
de esperança que arrancavam longos em ordem, com bandeiras tricolores ao
soluços do patriotismo? Os gaullistas vento e oficiais que ostentam orgulho-
jazem inertes. A mensagem presidencial samente no peito suas condecorações...
não produziu nenhum impacto na opi- Acaba de voltar para seu universo, en-
nião pública. Pelo contrário, reforçou a tre homens que são seus irmãos de ar-

146
fato, a Sorbonne é reaberta, sendo ocupada triunfalmente pelos
estudantes. Os operários também saem às ruas, arrastando-se atrás
dos sindicatos. A 13 de maio, imensa multidão desfila pelas ruas de
Paris aos gritos de "Dez anos bastam!" e HV á embora, De Gaulle!"
Desta vez, a polícia não intervém, e não se registram incidentes gra-
ves. Apesar do momento dramático, De Gaulle decide não renunciar
à já programada visita oficial à Romênia (14 a 18 de maio). Quando
volta, a situação piora ainda mais. No dia 20, a França é paralisada
por uma greve de mais de 10 milhões de operários. A contestação

mas, gente simples, patriota..." De falatórios", mesmo os mais trágicos,


Gaulle reencontra aí todas as suas for- como renúncia, morte... Ao invés, De
ças e retorna a Paris disposto a lutar. E Gaulle reaparece de improviso, impon-
a vencer mais uma vez. do sua vontade. HÉ a obra-prima de um
genial diretor artístico."

Ao contrário: A rebelião do "Salvador"


Alegra-se Eis a interpretação da "transformação"
de De Gaulle, nos dias 29-30 de maio,
feita por J. R. Tournoux, um estudioso
~~O que Philippe Alexandre escreve é que dedicou milhares de páginas ao
pura fantasia" - afirma Viansson-Pon- general (Le Mois de Mai du Général):
té, que defende uma tese oposta à de "Nos Elísios, o presidente da República
Alexandre. De Gaulle não estava abso- se encontra absolutamente só. Muitos
lutamente arruinado no fim de maio: anos antes, soberbo, havia dito ao Gen.
Até o dia 26 de maio, o general não se de Lattre de Tassigny: 'Quando quero
sentia desanimado, abatido ou desespe- saber como pensa a França, eu me
rado. Já superara, rapidamente, a crise interrogo'. E eis que também desta vez
quando de seu retorno da Romênia. De Gaulle se interroga. Mas a velha
Agora se recuperou completamente, terra dos gauleses não lhe responde
está, inclusive, alegre, otimista, fria- mais. Então, o chefe de Estado cai num
mente determinado, cheio de energia e desânimo incrível... Na falta de coisa
de recursos." Decidiu desfrutar da sur- melhor, De Gaulle recorre ao insulto.
presa: encena o papel do velho lutador Diz e repete: Os franceses são uns bas-
f

desesperado, pronto a jogar as luvas, e tardos!'... Sente-se abandonado e até


assim ilude o adversário. Depois desa- traído por alguns dos seus, entre as ruí-
parece de improviso, deixando a todos nas do regime... Depois, ergue-se fulmi-
surpresos, ansiosos, temerosos, em nante. Neste ciclotímico, a depressão
"exasperante expectativa, com o campo cede logo lugar à revolta. E De Gaulle,
aberto a todas as hipóteses, a todos os animado pelo furor da vingança, se

147
se tornou geral: nas fábricas, nos serviços públicos, nos teatros, nos
jornais e na televisão. ~~A França tem a palavra!" ~~A imaginação
toma o poder!" Tais são os slogans e as senhas que convulsionam
toda a vida francesa. No dia 24, De Gaulle abandona seu silêncio pa-
ra anunciar a "solução gaullista" da grave crise: um referendum popu-
lar sobre a participação. É uma "saída no vácuo", que apenas serve
para radicalizar ainda mais a oposição contra o regime. A 29 de maio,
o general adia um conselho dos ministros e "some" de Paris, num
helicóptero. Sabe-se, só mais tarde, que foi consultar o Gen. Massu,

I.

fortalece com a resistência... E a revolta POR QUE OS COMUNISTAS


do lutador que, aterrado por um instan-
te, se recusa a entregar as armas: 'Não, NÃO SE MEXERAM?
não largarei a França nas mãos daquela
gente! Voltarei a lutar. Ou eles, ou
eu!'''. A poslçao dos comunistas: "Aceitar o
desafio, fazer a revolução quando a
Em cinco minutos a França grande maioria da população lhe era
muda de patrAo hostil, significava isolar a vanguarda da
classe operária e o Partido Comunista,
Lacouture: UNo dia 30 de maio, nos cin- e lançar-se numa aventura sangrenta
co minutos que durou a alocução do ge- que teria terminado numa ditadura mili-
neral, a França mudou de patrão, de re- tar. Consciente de suas responsabilida-
gime e de século. Antes das 16h 30m, des perante a classe operária e o país, o
estávamos em Cuba. Depois das 16h Partido Comunista se recusou a mandar
35 m é quase a Restauração. Tudo se os lavradores para o massacre. Evitou
conturba. As forças revolucionárias, cair na armadilha astutamente aberta a
impelidas aos limites da ação pela ver- seus pés" (R. Andrieu, Les Communistes
bosidade de seus chefes, ficam sem et la Révolution, - "Os Comunistas e a
apoio e sem aliados por dois motivos: Revolução" - , Julliard, 1969),
a decisão dos dirigentes comunistas de
não assumir os riscos e a repentina de-
monstração de autoridade do general.
Os revolucionários sentem medo, mas Escapamos da
não conseguem transformar esse medo
em obediência. Criaram o vazio, sem Guerra civil
nada reconstruir. E enquanto o país,
meio atordoado, estava pronto a se
abandonar nas mãos de quem quisesse "Sim, a revolução que ocupou a Sor-
governá-lo, o velho líder foi o único a bonne poderia ter triunfado entre os
falar e a agir". dias 20 e 29 de maio. ~s tomar o poder

148

I ,•. ,_ I , ;dL. IIU. LI " I. ~J.,Ji,_J.J _..L , ,lJ l ,~ ., I lo.J-__".o__.. __•. k_ .••. ,,J.l_,~.,,' .,,,,l.J.o i l,., ~_.i I I h ... -" ,.Ll. l.ll
em Baden-Baden, sede do comando das tropas francesas no territó-
rio alemão para garantir o apoio do exército. Volta a Paris a 30 de
maio, pronunciando violentíssimo discurso pelo rádio: "Não me
retiro. Não mudo o primeiro-ministro. Cancelo o referendum. Dissol-
vo a Assembléia Nacional. Impedirei por todos os meios a subversão
nacional". Ao mesmo tempo, uma imponente manifestação de gaul-
listas - com Malraux e Debré à frente - desfila pelas ruas de Paris,
em apoio ao chefe de Estado: "De Gaulle não está só!" Mas a ver-
dadeira solução da crise se encontra em outra parte: após estafantes

é uma coisa e mantê-lo é outra. Não reçâo geral do Partido Comunista, in-
resta a menor dúvida de que se a Comu- quieta e furiosa por ver essa fração re-
na Estudantil houvesse triunfado, teria volucionária erguer-se fora de seu con-
o mesmo fim que a Comuna de 1871 e trole e contra ele, decidiu imediatamen-
seria, igualmente, sufocada em sangue. te submergir tudo numa greve geral, e
É absolutamente certo que todos os de- assim aconteceu a prejudicial paralisa-
fensores da legalidade, a começar pelos ção do país. Desta paralisação quiseram
partidários de De Gaulle até os líderes os comunistas tirar duas vantagens:
do Partido Comunista, prestaram um primeira, tomar novamente em mãos o
excepcional serviço ao povo e à França, monopólio das reivindicações; segunda,
salvando-a de uma guerra civil" (Pierre conseguir que a República abdicasse..."
de Boisdeffre, Le Monde, 17 de agosto (De Gaulle na televisão, 7-6-1968).
de 1968).
A força dos estudantes. "J á passou o
tempo das reformas concedidas espon-
De Gaulle taneamente. A nova universidade não
poderá ser idealizada em prejuízo dos
explica maio estudantes, e muito menos sem eles. Só
pode ser construída com a colaboração
deles" (Labro Manceaux, ob. cit.).
~~A explosão de maio de 1968 foi provo-
cada por alguns grupos que se revoltam
contra a sociedade moderna, a socieda-
de de consumo, a sociedade mecaniza-
da, seja a comunista do Leste, seja a ca-
o General elogia
pitalista do Oeste. Grupos que absolu-
tamente não sabem com que substituí-
Pompidou
la, mas se divertem com a negação...
Foi, portanto, por contágio que se pro- De Gaulle: "Pompidou sempre foi capaz
duziu o mesmo efeito em certas fábri- e digno de dirigir a empresa a meu lado.
cas, sempre entre os jovens... Mas a di- Embora a inteligência e a cultura o ele-

149
debates - e contra a opinião dos gaullistas mais "duros" - Pompi-
dou aceita as reivindicações dos operários e assim consegue f~ desa-
trelar" os sindicatos do carro dos estudantes. Começa o refluxo do
movimento de maio, cujos últimos espasmos se fazem, no entanto,
sentir até as eleições de 23 a 30 de junho, quando triunfa o "partido
do medo". Os gaullistas conquistam o maior número de cadeiras de
toda sua história: 358 das 485, incluindo seus aliados. No dia seguin-
te às eleições, De Gaulle se "livra" inesperadamente de Pompidou e
nomeia como primeiro-ministro Couve de Murville. •

vem ao ponto mais alto de todas as secreta, confiando-o ao ministro da


idéias, sua própria natureza o leva a Guerra.
considerar, antes de tudo, o lado práti- Mas o rompimento completo veio em
co das coisas. Admira com reverência maio de 1968:
a rapidez de ação, os riscos de um "Negociando habilmente com os líde-
empreendimento, a audácia na autori- res sindicais, Pompidou arrefeceu os
dade; mas está sempre inclinado a um entusiasmos das organizações operárias
comportamento ditado pela prudência engajadas na revolta, isolando assim os
e às atitudes cautelosas. Além disso é estudantes.
mestre na análise de todos os aspectos A trégua alcançada trouxe alento à pe-
de uma questão e na descoberta da so- quena burguesia e à população do cam-
lução mais apropriada. Tendo em conta po, isto é, à grande e obscura multidão
o que eu sou e o que ele é, investi Pom- dos 'partidários da ordem'.
pidou nas funções que exerce, a fim de Um mês depois, quando se realizaram
que me assista durante o desenvolvi- as eleições, essa multidão derramou
mento de uma determinada fase. De- uma avalancha de votos sobre os can-
pois, por força das circunstâncias, deci- didatos gaullistas. Todos foram unâni-
di mantê-lo no cargo por mais tempo mes em atribuir o mérito do sucesso
que qualquer outro chefe de governo..." partidário a Pompidou e não a De
(Mémoires d'Espoir, ob. cit.). Gaulle.
O Nouvel Observateur escreveu que nos
Mas o demite encontrávamos diante da 'irresistível
ascensão do pompidoulismo'.
O general não suportou essa humilha-
A "ruptura" entre De Gaulle e Pompi-
dou data - em parte - do caso Ben ção pessoal. Chamou o primeiro-mi-
Barka. Segundo escreve Philippe Ale- nistro e, fazendo pouco caso de sua
xandre, ob. cit., o general recriminou 'ascensão', demitiu-o incontinenti,
seu primeiro-ministro por não haver substituindo-o por Maurice Couve de
exercido a necessária vigilância sobre Murville" (Ele na Guicciardi, Panora-
ma, n9 240).
todos os serviços que dependiam do go- U Gen. De Gaulle pouco
verno, tirou-lhe o controle da polícia antesde sua renúncia.

150
.DE GAULLE DERROTADO. Não obstante a vitória de junho, o furacão
de maio de 1968 deixou uma ferida profunda. O general sente que
alguma coisa "não vai mais" entre ele e o povo francês. Talvez seja
este o motivo que o leva a se enclausurar em si mesmo, renunciando
aos costumeiros "banhos de multidão", isto é, às visitas oficiais às
províncias francesas. Alguns jornalistas começam a falar de um pos-
sível afastamento voluntário. De Gaullese torna cada vez mais susce-
tível. Quando Georges Pompidou, durante sua viagem a Roma, em
janeiro de 1969, anuncia que tem a intenção de apresentar-se como

o testamento político do General gresso da obra coletiva, pois desta de-


pende seu destino. Retomando agora as
rédeas do governo, quero que, para
A PARTICIPACÃO
• atingir essa meta, se institua por lei a
participação dos trabalhadores nos lu-
.De Gaulle: "De há muito estou conven- cros" (Mémoires d'Espoir, ob. cit.J.
.cído de que falta uma qualidade huma-
na à sociedade moderna, que lhe asse-
gure o equilíbrio. Sem querer contes- Os jogos perigosos
tar o que o capitalismo realiza em bene-
fício não só dos indivíduos em particu-
lar mas também da coletividade, a Ver-
do monstro sagrado
dade é que ele traz em si os motivos de
uma insatisfação maciça e perpétua. "Chega-se a perguntar se De Gaulle
De resto, se o comunismo impede, ao cônscio de sua capacidade para debelar
menos em princípio, a exploração do as crises, não as teria provocado algu-
homem pelo homem, acaba, no entan- mas vezes, como se fossem um jogo de
to, impondo .ao indivíduo uma odiosa onde extraía as supremas alegrias do
tirania e mergulha a vida na atmosfera poder... Basta um discurso, uma decla-
-, <:;·lúgubre do totalitarismo, sem obter, ração e a bomba explode, havendo sur-
jamais, resultados iguais aos alcança- presa, movimento e inquietação por to-
dos na liberdade. Condenando decidi- da parte. Como se alegra em contem-
damente esses dois regimes opostos, plar a agitação que provocou ~ Depois
creio pois que tudo leve nossa civiliza- da morte de Roosevelt, Stalin e Chur-
ção a fundar um novo, que regule as re- chilI, sente ser o último sobrevivente
lações entreos homens de modo a pos- dos 'monstros sagrados' que dominaram
sibilitar a participação direta de cada a vida das nações. Não será um privilé-
um nos resultados do empreendimento gio desses super-homens, cuja espécie
para o qual contribui com seu trabalho, parece já extinta, provocar tal jogo por
e desfrute a dignidade de ser, pela parte meio de uma iniciativa espetacular?"
~;.;" que' lhe compete, responsável pelo pro- . (Jacques Soustelle, ob. cit.).

~5,2.

~ j ,.jJI.".1.1,.~,iJl.IIIIIIlIIM ,U I -
'li
candidato à presidência da República, caso De Gaulle renuncie,
o general responde secamente: "Tenho o dever e a intenção de con-
tinuar meu mandato até o fim". Mas nem ele mesmo está convencido
disso. Os anos e a hostilidade dos franceses começam a pesar-lhe nos
ombros. 'Contra o parecer dos ministros, decide, pela enésima vez,
recorrer a um referendum popular. Marca-o para o dia 27 de abril.
Para os franceses, trata-se de aceitar ou rejeitar um projeto de refor-
ma das regiões administrativas e do Senado. É o último ato de um
esforço feito por De Gaulle durante dez longos anos para forjar as

'969: A queda Ele l11eSI110 se


do General crucificou
Le Monde, 29 de abril de 1969: "Depois "De Gaulle se crucificou a si mesmo...
do triunfo do NÃO (53,17% nas metró- Deveria ter-se retirado somente em 8 de
poles), o Gen. De GauHe deixou de janeiro de 1973, com 83 anos de idade.
exercer suas funções". Mesmo que tenha declarado no início
La Nation: "Não há motivos para nos do ano: 'Não creio que hei de continuar
orgulharmos". minhas tarefas depois dos 80 anos. São
L'Aurore HQ que esperar agora?" demais para um chefe de Estado. Ainda
não sei quando vou me retirar...' No
Le Figaro: "Sempre existe um depois entanto, renuncia por sua espontânea
de amanhã" . vontade naquela segunda-feira, 28 de
Le Populaire: rrÉ agora que as dificul- abril de 1969, depois de ter estado no
dades começam". centro da vida política durante 29 anos.
À meia-noite, De Gaulle se dirige para
Montréal-Matin: HO mundo será menos o telefone. Tomada a decisão, comuni-
colorido". ca-a ao mundo, vai para seu quarto e
){õlnische Rundschau: "Aconteceu o veste calmamente o pijama..." (Jacques
inimaginável" . Chapus, Mourir à Colombey, - "Morrer
New York Times: "Uma derrota compa- em Colombey" -, La Table Ronde,
rável à de Adenauer". 1971).
L'Unità: HA chantagem de nada ser- Os Franceses
viu".
Le Joumal de Geneve: HHá dois anos já
estavam cansados
apareciam as rachaduras do edifício". "Não se pode afirmar que os franceses
Tribune de Lausanne: "O exercício soli- tenham dito não a De Gaul1e, exata-
tário do poder ficou na saudade". mente porque ele havia diminuído, em-

153
instituições da V República. Na realidade, o que De Gaulle pretende
é obter mais um voto de confiança dos franceses a sua pessoa. É o
que ele mesmo admite explicitamente, a 10 de abril, num pronuncia-
mento pela televisão: "Da resposta dada pelo país dependerá eviden-
temente a continuação de meu mandato ou o meu afastamento ime-
diato". É o "recado" habitual, que até agora funcionou sempre:
dizei-me sim, ou me vou. E se eu sair, será o caos. Mas, desta vez,
parte para a luta certo de ser derrotado. E, realmente, os votos con-
tra somam quase 12 milhões, contra 10,5 milhões a favor. O dia 27

I!

bora só ligeiramente, a rigidez de sua


política tradicional. Talvez os france-
As últimas palavras
ses estivessem cansados de suas manei-
ras, e não insatisfeitos com sua política. de De Gaulle
Ficaram também melindrados com a
'chantagem' implícita na alternativa Primavera de 1970. O novo pároco de
apresentada por ele entre a salvação Colombey fala a De Gaulle sobre a
com De Gaulle ou o caos sem De Gaul- necessidade de uma volta a si mesmo,
le". O que resta dos anos e dos meses de um exame de consciência e sobre a uti-
De Gaulle no poder? Sem dúvida, fica- lidade da confissão freqüente. De Gaul-
ram duas obras essenciais: a descolo- le o interrompe bruscamente: "Padre,
nização que ele conseguiu levar a bom fale por si! Quando o Gen. De Gaulle
termo, embora tenha encontrado difi- se apresentar diante de Deus, não terá
culdades na Argélia. Essa obra outros necessidade de nenhuma introdução!"
Sobre o que acontecerá com o "mito
antes dele tentaram realizar em vão; a De Gaulle" ele não nutre ilusão algu-
reforma das instituições, no sentido ma: "Depois de mim, bem, depois de
que, mesmo da parte de seus opositores, mim farão disso aqui uma nova Lour-
são bem poucos os que não reconhece- des. Hão de vender a grandeur sob a for-
ram os valores objetivos da Constitui- ma de medalhinhas, flâmulas, cruzes de
ção da V República. Mesmo quando Lorena feitas de lata. A seguir, chegará
contestavam a interpretação que De o tempo da zombaria... Quanto mais
Gaulle lhe dava, atribuindo a si pode- penso nisso, menos acredito na sauda-
de", Voltando de um passeio, De Gaul-
res ainda mais amplos que os previstos
le declara: "Morrerei assassinado!"
pela carta magna do país. Quanto ao Os presentes protestam: "Mas, general,
mais, 'Charles De Gaulle se retira, mas é impossível!" "Morrerei assassinado
nenhum problema ficou resolvido', es- pela velhice." E pouco depois acres-
creveu o diretor do Le Monde, Beuve- centou: "Churchill, Adenauer,Kenne-
Méry" (Gastone Ortona, ob. cit.). dy ... quantas fitas de luto já carreguei,

154

.. I , ..I I. -L. I '1i-111 1. . 1 I ~ I j


de abril torna-se, assim, o último dos 3.984 dias do "reinado" de De
Gaulle. Aos onze minutos de 28 de abril, o general comunica à Na-
ção: "Deixo de exercer minhas funções. Esta decisão terá efeito a
partir do meio-dia de hoje". E vai-se entrincheirar no silêncio de
seu "exílio voluntário" de Colornbey-les-Deux-Eglises. Durante a
campanha presidencial de junho de 1969, da qual Pompidou sai ven-
cedor (15 de junho), De Gaulle não quer ficar na França e parte
para uma viagem pela Irlanda. Rompe o silêncio desdenhoso apenas
para se congratular, muito friamente, com seu sucessor: "Por todos

Mas De GaulIe continua sozinho. Às esperando a hora de ir para a mesa de


vezes eu me pergunto quem me acom- jantar. MIM De Gaulle estava perto dele,
panhará à minha última morada? Resta sentada à escrivaninha Diretório, escre-
apenas um: Mao", vendo. Eram mais ou menos 18h 55m,
No dia 8 de novembro de 1970, domin- quando, de repente, o general soltou
go, véspera de sua morte, o general sai um grito de dor, murmurando: 'Ai!
sinto dores aqui nas costas... !' E levou
da missa e passa perto do cemitério on-
de repousa a filha Anne. Diz: A entra-
tf
a mão às costas, no lado direito. Incli-
nou-se lentamente para o lado, apoiado
da é muito estreita. Por enquanto está
no braço da poltrona, com a cabeça
bem assim. Mas, assim que eu estiver lá
dentro, mandem alargá-la" (citadas por para a frente. Os óculos caíram. Perdeu
F. Barreyre, Les Demiers Mots du Gé- os sentidos. E ficou insconsciente até
néral, - "As Últimas Palavras do Gene- morrer".
ral" - Grasset, 1971). A Franca

está transtornada
CDLDMBEY,9-"-7970 Em virtude da morte de De Gaulle, os
jornais franceses duplicaram a tiragem.

ocarvalho abatido Le Monde lança 801 mil exemplares,


contra os 489.700 do dia anterior. Fran-
ce-Soir, às 16h, já alcança os 2 milhões
A morte de De Gaulle, segundo a des- (1.380.000 na véspera). Excepcional-
crição de Jean Mauriac: "Tendo traba- mente, Le Figaro lança uma edição ves-
lhado a tarde inteira, o general saíra de pertina. Em toda a França os jornais são
seu escritório pouco depois das 18h praticamente saqueados. Em Paris, são
45m e fora ter com Mme Yvonne na sala vendidos 10 mil discos dos Discursos
vizinha, a biblioteca, onde habitualmen- Históricos de De Gau//e em menos de
te recebia os hóspedes. Como fazia to- três horas. Televisionados para uns qua-
das as noites antes do jantar, sentou-se renta países, os funerais de De Gaulle
à mesa de bridge (sempre coberta com contaram com cerca de 300 milhões de
uma toalha cinza-escuro) e começou a telespectadores. Acrescentem-se mais
preparar as cartas para uma paciência, 500 milhões que viram o video tape. De-

155
os possíveis motivos nacionais e pessoais, envio-lhe minhas cordiais
felicitações". O 18 de junho - aniversário do célebre apelo à Resis-
tência - De Gaulle o passa também na Irlanda. No ano seguinte,
está na Espanha. Decidiu não se encontrar mais em sua pátria por
ocasião do aniversário dessa data fatídica, pois os franceses não o
merecem. Entre ele e o caos, escolheram o caos. O general pensa até
em passar o aniversário seguinte na China, país que há longo tempo
deseja visitar. Durante o resto do ano, De Gaulle vive na Boisserie,
"quartel-general do silêncio", como a apelidaram os franceses.

pois da primeira descida à Lua e dos jo- se o símbolo da compreensão e da ami-


gos olímpicos, essa foi a transmissão zade franco-alemã". Elizabetb 11 da
televisionada que obteve a maior re- Inglaterra: "Recebi com profundo
percussão em todo o mundo. As reações pesar a notícia de sua morte. Em nossa
do povo simples foram das mais varia- pátria, De Gaulle sempre será lembra-
das. Em Lille, cidade natal do general, do como um grande francês e um gran-
uma mulher grita num restaurante: de patriota". Gen. Franco: "Estou pro-
"Foi o único homem a quem permane- fundamente comovido com a notícia da
ci fiel durante trinta anos!" Uma ex- morte do grande homem de Estado que
guerrilheira chora: "Perdi meu pai pela foi De Gaulle". Golda Meir: primeiro-
segunda vez". Em Aix-en-Provence, ministro de Israel: "F oi um dos maiores
um grupo de estudantes oferece cham- homens de Estado de nosso tempo.
panha aos clientes de um bar. Em Paris, Israel e seu povo jamais esquecerão o
uma senhora idosa declara: "Sincera- homem que restituiu aos franceses a
mente, para mim foi um consolo. Sem- honra e a liberdade e os guiou na luta
pre fui fiel a Pétain !". Em Tolosa, um contra a ditadura nazista". Mao Tse-
pied noir da Argélia, que fizera parte da Tung: "Desejo expressar minhas pro-
OAS, afirma: "Morreu cedo demais. fundas condolências e render minhas
Não sofreu bastante para pagar todo o sinceras homenagens à memória do fa-
mal que nos fez!" Todavia, outro pied lecido, que foi um intrépido lutador
noir declara em Tours: "Pensei que eu contra a agressão fascista, em defesa da
o odiava. Mas senti uma dor sincera independência nacional". Ricbard Ni-
quando anunciaram sua morte" (notí- XOD: "Era um gigante entre os homens...
cias do L 'Express, 16 a 22 de novembro Sem ele, a França não mais existiria
de 1970). como nação". Paulo VI: "Rezemos
pela alma do grande homem desapare-
omundo inteiro de luto cido, desta grande testemunha da His-
tória contemporânea". Nicolas Podgor-
Willy Brandt: "Ergueu seu país ao nível ny: "Os soviéticos rendem-homenagem
das grandes potências mundiais. Deu à ao homem cuja vida foi inteiramente
Europa uma nova importância. Tornou- consagrada ao serviço dos interesses na-

156

I ,I" f i "li' 1111, ~ 'I


Realiza longos passeios pelo parque, em altiva solidão, ou acompa-
nhado por raros eleitos admitidos em seu "santuário". Um deles é
o escritor André Malraux, que sempre esteve ao lado de De Gaul1e,
desde os tempos de Londres e do RPF, e para o qual este chegou até
a "inventar" um ministério, o da Cultura. De seu último colóquio de
quatro horas com o general, Malraux colherá as idéias para um livro
inspirado e cheio de nostalgia, Les Chênes qu 'on aba! r~Os Carvalhos
que Abatemos"). Mas a maior parte do tempo De Gaulle dedica às
suas Mémoires d'Espoir, Quer explicar-se, deixar para a História

cionais da França e à obra da paz entre de repente sentiram que haviam vivido
os povos". GiuseppeSaragat: ttA morte em companhia de um verdadeiro herói.
de De Gaulle é motivo de luto para to- Não se aperceberam disso, a não ser
dos os povos que cultivam os valores quando ele morreu. Tornava-se, final-
humanos universais, como a grandeza mente, uma realidade, no dia 12 de no-
moral e política, o heroísmo, a dedica- vembro de 1970, a unidade nacional,
ção à causa da pátria". Marechal Tito: que De Gaulle almejara durante toda a
"Sua política merecera o respeito dos sua vida. Mas ele já não estava mais lá
iugoslavos, porque De Gaulle compre- para participar dela" (Georges Suffert,
endera e defendia a posição indepen- ob. cit.).
dente e a política de não alinhamento
de nosso país". (Christian Bretagne, FARÃO DELE UM SANTO?
Ce qu'ils ont dit de lui..., - HO que Dis-
seram Dele" - Ed. Taillander, 1970). o Cardeal Daniélou entrevistado pela
Rádio Montecarlo (quinta-feira, 12-11-
1970), a propósito do artigo de um jor-
Todos os Franceses nal alemão, no qual se afirmava que
"numa outra época, De Gaulle teria si-
unidos a seu redor do canonizado", declarou que "a ex-
pressão absolutamente não o chocava.
HNa tarde dos funerais de De Gaulle, No fundo, canonizar é reconhecer uma
centenas de milhares de parisienses vida cristã de caráter exemplar, que
saem em silêncio para os Campos Elí- pode perfeitamente não ter apresentado
sios, a fim de depositar flores sobre a nada de extraordinário... O essencial é a
tumba do Soldado Desconhecido. Nin- prática das virtudes, num certo grau de
guém jamais poderá dizer o que se pas- heroísmo... Em todo caso,. um dos as-
sou naquele dia no coração de milhões suntos mais debatidos hoje em dia é o
de franceses. Para os homens de mais laicato. Pois bem, De Gaulle é o tipo
de quarenta anos é uma época que se exemplar de um laico cristão. Em todos
encerra... Os jovens, habituados a pro- os sentidos, tanto no valor de sua vida
curar heróis revolucionários e exóticos, privada, como no espírito de serviço,

157
"um monumento que jamais poderá ser destruído". Mas, infelizmen-
te, não consegue levar a bom termo nem mesmo o segundo volume
de sua obra literária. Morre repentinamente, a 9 de novembro de
1970, às 18h 55m, enquanto espera o jantar. Por vontade expressa do
general, os funerais se realizam com a máxima simplicidade, sem re-
presentações governamentais, nem diplomáticas. São admitidos ape-
nas os familiares, os compagnons e uma pequena representação do
exército. Sobre a tumba do "ultimo gigante", ao lado da filha Anne,
lê-se apenas: "Charles De Gaulle, 1890 - 1970". li

II

de total doação de si mesmo, que o le- Winston Churchill, e até seu nome,
vou a trabalhar heroicamente não só uma sugestiva mescla de reminiscên-
pela França, como também para Deus". cias de Carlos Magno e da antiga Gália
(em francês, Gaule), se adaptava perfei-
Acavalo até Colombey tamente à tarefa que ele mesmo esco-
lhera.
A peregrinação Quando De Gaulle faleceu, na sema-
na passada, exatamente treze dias antes
do gen. Massu de seu octogésimo aniversário, o Preso
Georges Pompidou reassumiu, com as
Paris, 24 de junho de 1971: "O Gen. seguintes palavras, a cruzada pela qual
Massu, o fidelíssimo companheiro que, o general combatera durante toda sua
com sua atitude decidida, fizera fracas- vida: 'Ele deu à França suas institui-
sar o Putsch de Argel, e a quem De ções, sua independência e seu lugar no
Gaulle fora consultar na Alemanha, du- mundo'" (Time, 21-11-1970).
rante os dias mais negros de maio de
1968, levou a termo, hoje, sua espetacu- ··É inútil procurar explicar as razões da
lar peregrinação ao túmulo de De Gaul- devoção ilimitada e do ódio infinito
le. Montado em seu velho companheiro que acompanharam ou seguiram De
de lutas, o cavalo Maitre Pierre, de Gaulle. São quase irrevogáveis as deci-
quinze anos de idade, dirigiu-se a Co- sões tomadas em semelhante nível espi-
lombey assim como, nos séculos pas- ritual, e os que as tomaram não conse-
sados, muitos outros fiéis se dirigiam a guirão explicá-las jamais" (A. Froissart,
São Tiago de Cornpostela" (Lorenzo En ce temps là, n 9 97).
Bocchi, Corriere d'Informaziones.
Malraux: ··0 último grande homem que

o cruzado da Franca •
possuiu 'a França está agora a sós com
ela: agonia, transfiguração, ou quimera.
Cai a noite, a noite que não existe para
"Ele era verdadeiramente ·0 homem do a História" (Les Chênes qu'on Abat, oh.
destino', como o chamara certa vez cit.).

158

I I i I I, .11 l'·~ I ~, , "11· I,,,·! I, I, 'j -",

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