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PRÓECONTRA
o Julgamento da História
DEGAULLE
Organização do texto por
GIANNI RIZZONI
Tradução de
NESTOR DEOLA e AYAKO DEOLA
EDIÇÓES MELHORAMENTOS
Título do original italiano: DE GAULLE
© 1972 by Amoldo Mondadori Editore S.p.A., Verona e Milão
PRO ECONTRO
I DOSSIER MONDADORI
Direção: Enzo Orlandi
Colaboradores
Marisa Paltrinieri
Gianni Rizzoni
Emilio Barbaglia
Maristella Bodino
Iconografia
Giovanni Melada
EEx
X-1975
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1890, terceiro filho do professor Henri De Gaulle e de Jeanne Mail-
lot-Delannoy. Os De Gaulle são parisienses há quatro gerações, mas
Charles nasceu em Lille porque a Sra. J eanne, por ocasião do parto,
desejou estar próxima de sua mãe. Antes de Charles chegaram Xavier
e Marie-Agnes. Depois dele a família se alegrará com o nascimento
de outros dois descendentes masculinos: Jacques e Pierre. O casal
De Gaulle se vangloria de possuir uma remota ascendência nobiliá-
ria. A mãe, além disso, traz nas veias um pouco de sangue irlandês,
alemão e - ao que parece - também judeu. Ambos são convictos
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ca, I Pensieri dei Generale, - "Os Pen- Marx. Com um pouco de nobreza de
samentos do General" - , Mondadori, toga e um pouco de burguesia de espada
1968). na ascendência, no seio da família havia
literatos, sacerdotes, funcionários pú-
blicos, eruditos, escritores provincia-
nos e secretários da corte. Intelectuais
Uma família Francesa pobres, mas cheios de dignidade, tendo
um tio couraceiro e um primo pároco.
Gente que conhecia muito bem a gra-
DE GAULLE: "Meu pai, um homem de mática, o latim, o grego, que freqüen-
pensamento, de cultura e de tradição, tava a igreja, servia o Estado sem exigir
estava imbuído do senso de dignidade muito em troca."
da França, e foi ele quem me revelou
sua história. Minha mãe votava à pátria HENRI DE GAULLE "é um homem de
um amor tão intransigente como sua olhar severo, com mãos de marfim, que
piedade religiosa. Meus três irmãos, escreve elegias em grego... Politicamen-
minha irmã e eu mesmo tínhamos, te, autodefine-se 'um monarquista nos-
como segunda natureza, uma espécie de tálgico'. Um homem integérrirno, sem
impaciente orgulho pelo nosso país" dúvida alguma, e há quem afirme que
(Memórias de Guerra). tenha comprometido sua carreira por
haver demonstrado claramente demais
que não acreditava na culpabilidade de
Dreyfus" .
Nobreza de toga e
JEANNE DE GAULLE Hé uma matrona
burguesia de espada romana do interior, intratável em as-
suntos que dizem respeito à religião e
à moral, e que traz no coração o exér-
"Os De Gaulle não eram realmente cito, o arcebispado, Veuillot, a Alsácia e
'burgueses', no sentido atribuído ao os lírios da França." (Jean Lacouture,
termo por Flaubert e, aliás, também por De Gaulle, Longanesi, 1971).
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e ativos monarquistas, nacionalistas e católicos: na casa de De Gaulle
é absolutamente proibido cantar a Marselhesa. Por isso os filhos são
educados no espírito de veneração à França C~Para mim a França era
a princesa das fábulas", escreverá De Gaulle em suas Mémoires
d'Espoir - "Memórias de Esperança"), à religião, à cultura histórica
e à literatura. E também no espírito da desforra contra os alemães,
vencedores da guerra de 1870, os quais "arrancaram" da França a
Alsácia e a Lorena. Desde pequeno, Charles revela um caráter obs-
tinado, orgulhoso, ligeiramente egoísta, altivo e distante: "Parece um
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homem enterrado numa geleira", lamentam-se os pais. Quer mandar
sempre. Nas Batalhas com os soldadinhos de chumbo é ele o rei da
França e os irmãos, inutilmente, insistem para que se faça um "rodí-
zio" da coroa. Revela desde cedo uma memória prodigiosa, recitan-
do sem erros longos trechos de Racine ou Lamartine. E aos quatorze
anos revela também seu precoce talento literário, escrevendo uma
comediazinha em versos, intitulada Um Mau Encontro. Depois, de-
vendo escolher entre um prêmio em dinheiro e a pu blicação da co-
média, decide-se pela segunda alternativa. No fim do século passado
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e início deste, a vida da França é convulsionada por uma série de
acontecimentos que deixaram profundas marcas no espírito do pe-
queno Charles. "Nada me entristecia mais profundamente do que
nossas fraquezas e nossos erros" escreverá em suas Mémoires. Ü H
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como no plano econômico e também na sua vida privada: Henri De
Gaulle, professor e depois inspetor de estudos do colégio dos jesuí-
tas, à Rua Vaugirard, vê-se obrigado a abrir uma escola particular.
Charles, aluno do mesmo colégio, é constrangido a emigrar com os
jesuítas para a Bélgica, mais exatamente para a cidade de Antoing,
a fim de poder concluir o curso secundário. Quando regressa à Fran-
ça, inscreve-se no Colégio Preparatório Stanislas e, em 1909, se apre-
senta para os exames de admissão à Academia Militar de Saint-Cyr.
Consegue aprovação, classificando-se em 1199 lugar. li
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França, o primeiro). Cabendo-lhe o privilégio de escolher o lugar
onde prestaria serviço, De Gaulle se decide a retornar ao 339 Regi-
mento de Arras, onde comanda um novo coronel: Henri Philippe
Pétain. Entre os dois existe uma diferença de 34 anos: "Um grande
homem" é o que imediatamente afirma o entusiasmado subtenente.
"De Gaulle é um oficial muito inteligente e ama apaixonadamente
sua profissão. Merece todos os elogios", anota Pétain em sua ficha
de matrícula. É o início de uma extraordinária relação de amor-ódio,
que há de durar por mais de quarenta anos. Nessa época, Pétain está
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em desavença com as altas esferas militares: é o único a sustentar a
tática defensiva contra a ofensiva, a todo custo, defendida pelo Esta-
do-maior. Assim, quando irrompe a I Guerra Mundial, os pobres
soldados da infantaria francesa são atirados temerariamente ao ata- '
que e abatidos, sem piedade, pelas metralhadoras alemãs. De Gaulle
combate corajosamente, colecionando ferimentos e promoções.
Tenente e primeiro ferimento em Dinant, a 15 de agosto de 1914.
No ano seguinte, capitão e segundo ferimento em Mesnil-Ies-Hurlus.
Depois, em 1916, é atirado com seus homens na "fornalha" de Ver-
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dun, onde se trava a mais colossal e a mais longa batalha da História,
que custou à França mais de meio milhão de homens. Mas os ale-
mães não avançaram. On les aura!, havemos de vencê-los, é o grito
de combate dos franceses, que rechaçam um após outro todos os
terríveis assaltos e a torrente de fogo do inimigo. Durante um deses-
perado contra-ataque em Douaumont, De Gaulle é ferido e cai pri-
sioneiro dos alemães. Aliás, a princípio é dado como morto, e Pétain,
na ordem do dia, lhe tributa uma menção honrosa. De qualquer
maneira, para De Gaulle a guerra terminara. Passará de um campo
E FI I I I I I I 111
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de prisioneiros a outro, tentando, inutilmente, a fuga por cinco vezes,
até sua "estada" no forte de Ingolstadt, onde são recolhidos os pri-
sioneiros de guerra mais "impacientes", como o tenente russo Tu-
kaschewski, que, poucos anos mais tarde chegará a marechal do exér-
cito vermelho. De Gaulle tira proveito da inatividade forçada, estu-
dando a situação interna dos alemães. Como fruto de tal estudo te-
mos o livreto La Discorde chez l'ennemi CtDiscórdia entre o Inimi-
go"), publicado em 1924. Enquanto De Gaulle se dedica a fugas e a
atividades literárias, Philippe Pétain escala rapidamente os vértices
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batalhão, que sofria um espantoso bom- uma espécie de bandeira branca, prova-
bardeamento, era dizimado e enquanto velmente uma camisa amarrada na pon-
os inimigos cercavam a companhia ta de uma baioneta. Ordenei o cessar-
por todos os lados, arrastou seus ho- fogo. Logo saíram alguns franceses, e
mens para um assalto furioso e uma vio- foi então que percebi o oficial que os
lenta luta corpo a corpo, única solução comandava, por causa de sua elevada
que julgou compatível com seu senso de estatura. Fui ao seu encontro. Parecia
honra militar. Caiu durante o combate. um pouco transtornado e seu andar era
É um oficial extraordinário sob todos vacilante ... Ele mesmo entregou-me o
os pontos de vista. Assinado: Pétain" cinturão e a pistola. Ordenei a um sar-
(Costa, ob. cit.). gento e três soldados que o levassem
dali ..." (citado por Le Nouveau Candide,
21-4-1966). A declaração do soldado
Não, como um covarde Samson Delpech, publicada pelo Sud-
Ouest-Dimanche no dia 16-4-61, confir-
ma tais hipóteses: "Estávamos cerca-
dos, e seguindo as ordens de nosso ca-
Em Verdun, De Gaulle se comportou pitão, De Gaulle, fomos obrigados a nos
verdadeiramente como um herói? Mui- render".
tos o duvidam, a começar por Jacques
Isorni (ob. cit.): "De Gaulle se rendeu.
Contrariamente à apreciação de Pétain,
a idéia que ele tinha de honra o fizera Os Alemães não lhe
preferir a rendição, isto é, uma vida de
prisioneiro, à morte... Não é por nada
que, uma vez de volta ao poder, De
restituem a espada
Gaulle sumiu com o seu dossiê de ofi-
cial!". A afirmação se baseia no relató- Testemunho do Gen. Perré (compa-
rio do tenente alemão Casimir Albrecht, nheiro de De Gaulle em Saint-Cyr, pu-
do 199 Regimento da Reichswehr. blicado por Mtnute no dia 11-6-66): HUm
de meus amigos, que foi prisioneiro jun-
ALBRECHT: HVi surgir de um buraco to com De Gaulle, me referiu quanto
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da hierarquia militar e salva a França, bloqueando o avanço do ini-
migo e reconstruindo moralmente o exército. Enfim, com Joffre e
Foch, o conduz à vitória. Em novembro de 1918, os alemães assinam
o armistício, perto de Compiegne, dentro de um vagão, que se torna-
rá o símbolo da derrota alemã. O prisioneiro Charles De Gaulle pode
retornar à pátria. Está feliz com a vitória, mas amargurado por não
ter podido conquistar sua parte de glória. E também porque, nesse
ínterim, muitos de seus companheiros de Saint-Cyr fizeram carreira e
se instalaram nos melhores postos. li
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A GLÓRIA E AS PROMOÇÕES que não pôde conquistar em sua pátria,
De Gaulle vai procurá-las na Polônia. O exército vermelho dos sovié-
ticos rechaçara uma tentativa de invasão na Ucrânia por parte dos
poloneses e agora, por seu turno, está invadindo a Polônia, que pede
socorro aos aliados ocidentais. De Gaulle consegue sua indicação
para a 4lil Divisão de Caçadores, que o general polonês Haller foi
autorizado a constituir na França. Sua missão inicial é a de conselhei-
ro militar e professor de tática na Escola de Guerra de Rembertow.
Mas quando os russos chegam às portas de Varsóvia, ele também se
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"C
vê obrigado a entrar no campo de batalha. Comporta-se corajosa-
mente. O Gen. Weygand, ex-lugar-tenente de Foch e atual chefe da
missão militar francesa na Polônia, lhe confere uma citação elogio-
sa na ordem do dia. Terminado o conflito, os poloneses lhe ofere-
cem a cátedra de tática na Escola de Guerra da Polônia, mas os altos
comandos franceses preferem que De Gaulle volte a lecionar em sua
pátria. Será professor de História em Saint-Cyr. Em fins de 1920,
De Gaulle desembarca em Paris. Poucos dias após sua chegada, du-
rante uma visita à exposição de pintura do Salão de Outono, trava
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conhecimento com Yvonne Vendroux, filha de um pequeno indus-
trial de Calais. Yvonne não é muito atraente, mas, em compensação,
é muito religiosa, dócil e virtuosa. Exatamente a mulher para ele.
O pedido de casamento é feito, e casam-se no dia 7 de abril de 1921.
No dia 28 de dezembro do mesmo ano, nasce Philippe. Deu esse
nome ao filho como evidente homenagem ao Mal. Pétain, que havia
aberto as portas de sua casa ao jovem e brilhante capitão. Após
um ano de cátedra em Saint-Cyr, De Gaulle torna a vestir o unifor-
me de aluno: foi admitido na Escola Superior de Guerra. Aí perma-
varam. Sem dúvida, a Srta. Vendroux mais tarde, para todos os franceses, a
fora bastante inteligente para com- Tante Yvonne, "a imagem da fada da ca-
preender que a culpa cabia à xícara de sa, boa, discreta, eficiente", escreve
café, por ser pequena demais para aque- Galante. "De 1921 até o fim da vida, a
les enormes braços" (Alfred Fabre-Lu- Sra. De Gaulle estará destinada a ocu-
ce, ob. cit.). par, sem a menor crise, o 'ministério do
bom senso comum'. Mas como Sancho
Pança acompanhava o bondoso patrão
Galeotto D. Quixote nos assaltos aos moinhos
de vento, assim também Tante Yvonne
foi O retrato enfrentará com o marido os mais teme-
rários empreendimentos."
"A moça que o 'venceu', fazendo-o
esquecer a Polônia, tem vinte anos de
idade, olhos alegres, um rostinho muito De Philippe Pétain
gracioso, de formato oval, bem dese-
nhado sob uma cabeleira negra, forma- a Philippe De Gaulle
da de caracóis cuidadosamente enfeita-
dos", escreve André Frossard. "Os dois
jovens se encontram no Salão de Outo- JACQUES /SORN/: "Quando nasceu o
no, sob um retrato de Maurice Rostand, primeiro filho de De Gaulle , ou porque
graças aos 'bons ofícios' de uma amiga respeitasse as tradições familiares, ou
das duas famílias, que os achou perfei- porque acatasse as imposições religio-
tamente certos um para o outro e que sas, o capitão não convidou Pétain -
julgou ser um dever seu tornar possível que não era casado na igreja - para ser
esta aproximação." padrinho de seu filho. No entanto, colo-
cou-o sob a proteção moral do mare-
chal, pondo-lhe o nome de Philippe".
Yvonne como Sancho Panca
•
TOURNOUX (Pétain et De Gau/le, op.
A esposa de De Gaulle estava destinada cit.) afirma que "De Gaulle repetia fre-
a se tornar para todos os familiares e, qüentemente e com orgulho: 'O mare-
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Pétain também. É inútil qualquer tentativa para salvá-lo. Seu prote-
gido é finalmente enviado a um comando "periférico"; o Estado-
maior da armada do Reno, com sede em Mainz. Mas já no ano se-
guinte, o marechal - que é vice-presidente do Conselho de Guerra
- consegue que De Gaulle seja transferido para seu gabinete. E em
abril de 1927, dá-lhe a oportunidade para uma estrondosa desfor-
ra: obriga toda a Escola de Guerra, desde o diretor até o último alu-
no, a assistir a três conferências de De Gaulle sobre A Doutrina Mi-
litar e a Missão do Chefe. E Pétain também comparece.
[I .1& lI. I II 11
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Em dezembro desse mesmo ano, após doze anos de serviço
como capitão, De Gaulle é promovido a major e assume o coman-
do do 199 Batalhão de Caçadores, acantonado em Treves, na Ale-
manha.
Aqui também De Gaulle encontra meios de se fazer notar, por bem
ou por mal. Por bem, quando guarda, pessoalmente, luto por um
soldado órfão, morto durante uma epidemia. Por mal, quando man-
da prender, incomunicável, um outro soldado que obteve do Minis-
tério da Guerra sua transferência para a pátria. Isto é insubordina-
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ção pura e simples, que o põe em risco ~e receber até a. aposen~ado
ria compulsória antecipada. Corre imediatamente a Paris, paraJ~nto
do protetor Pétain, que o livra da pior. "Tirei-lhe um belo espinho
do pé", afirmara depois, confidencialmente, o velho marechal a seus
íntimos. Os anos de De Gaulle em Treves são amargurados com o
nascimento de uma filha mongolóide, a quem chamaram Anne. An-
tes dela, havia chegado Elisabeth. Anne será sempre uma pesada cr.uz
para De Gaulle. "Charles e eu daríamos tudo, saúde, futuro, carreira
para que Anne fosse uma criança normal", escrevia Mme. Yvonne. li
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EM 1929, o MAJOR DE GAULLE é transferido de Treves para o Estado-
maior do exército do Levante, cujo quartel-general ficava no Líbano.
Aí permanece até o fim de 1930. O trabalho a realizar é pouco e ele
aproveita o tempo viajando por todo o Oriente Médio, e transfor-
mando em livro as conferências proferidas em 1927. Intitula-se Le
Fi! de I'Épée C~O Fio da Espada"), e foi publicado em Paris, em
1932, quando De Gaulle se torna secretário do Conselho Superior
da Defesa, sendo promovido a tenente-coronel. O livro, dedicado ao
Mal. Pétain, denuncia a "mística que pretende amaldiçoar a guerra",
[fIH 111
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proclama o valor permanente da força na história dos povos e exalta
a figura do Chefe, que não pode ser concebido "sem uma forte
dose de egoísmo, orgulho e astúcia". De Gaulle publica outro livro
de importância bem diferente em 1934. Intitula-se Vers l'Armée de
Métier C~Rumo ao Exército Profissional"), no qual todos os futuros
apologistas do "salvador da Pátria" encontrarão uma ousada ante-
cipação da guerra moderna, com carros blindados. Contra as teorias
oficiais da guerra defensiva a qualquer preço, as quais se concretiza-
ram nas despesas faraônicas da Linha Maginot, De Gaulle sustenta
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que somente a guerra ofensiva pode salvar a França na luta que já
se anuncia contra a Alemanha nazista. Uma guerra ofensiva, realiza-
da por um exército de 100 mil soldados profissionais, montados em
velozes carros blindados. Imediatamente, todos vão contra ele: os
partidos da esquerda, que vêem no exército profissional uma tropa
de choque de Estado fascista; os da situação alegam que o governo
gastou uma soma fabulosa na construção da Linha Maginot. Tam-
bém os grandes chefes militares, com Pétain à frente, que se escle-
rosou na posição de 1918, adotam a teoria da guerra defensiva a
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qualquer preço. Paradoxalmente, os papéis se inverteram: poder-se-
ia quase dizer que De Gaulle é o Pétain da 11 Guerra Mundial. As-
sim começa o rompimento entre os dois homens. Vers l'Armée de
Métier não é mais dedicado ao marechal C~é um tonto" começa a
dizer De Gaul1e), mas ao exército francês. De sua parte, o marechal
não leva para seu gabinete o antigo protegido C~aquele peru do or-
gulho cósmico", como o define agora), quando se torna ministro
da Guerra, no governo Doumergue (1934). Mas De Gaulle não tem
dificuldades em encontrar outro protetor: Paul Reynaud, ex-minis-
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tro das Finanças e da Justiça. É o próprio Reynaud quem se faz -
embora inutilmente - o porta-voz das teorias do tenente-coronel no
Parlamento e perante a opinião pública.
No dia 7 de março de 1936, os nazistas ocupam a Renânia, num des-
prezo total aos tratados de Versalhes. Se a França estivesse munida
de tropas blindadas, poderia ter feito malograr a tentativa de Hitler
ainda não suficientemente forte para desencadear a guerra mundial.
E talvez não a desencadeasse nem quatro anos mais tarde - afirmam
os defensores de De Gaulle - , se naquela ocasião os franceses e os
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ingleses tivessem reagido com energia. Mas a França não possui
tropas blindadas para enviar com rapidez para a Renânia. E conti-
nuava a não querê-las. A voz de De Gaulle e a de Reynaud conti-
nuam a ser a clássica voz que clama no deserto. Também Léon Blum,
chefe do governo da Frente Popular, eleito nas eleições de 1936,
quando encontra De Gaulle em setembro de 1937, recusa-se a dei-
xar-se convencer. Em 1937, De Gaulle é promovido a coronel e in-
gressa no Centro de Altos Estudos Militares. Publica um novo livro
em 1938, La France et son Armée CtA França e seu Exército"). "A
II !IH I II
Blurn, Mémoires ~-, Ed. Albin Michel, que lembra haver estabelecido as linhas
Paris, 1955). mestras do trabalho, corrigindo de
próprio punho grande parte da obra.
Por fim, chega-se a um acordo: o livro
De Gaulle contra Pétain será dedicado a Pétain em termos tais
que precisem com exatidão a participa-
Le Crapouillot: "Durante os anos de ção que ele teve na obra, segundo o
1926 e 27, Pétain fez trabalhar um bom que for determinado pelo próprio mare-
número de oficiais de seu estado-maior, chal. De Gaulle aceita, mas depois subs-
entre os quais o Capo De Gaulle, na re- titui o texto de Pétain por outro que ele
dação de um livro sobre o exército, que próprio redigiu".
deveria ser publicado sob sua direção".
Jacques lsorni: "Antes de ir aTreves, Werth: "Quando o livro foi publicado
com a dedicatória original, o marechal
De- GaulIe entrega a Pétain o trabalho
acusou De Gaulle de um vulgar 'abuso
que este lhe havia pedido sobre o sol-
de confiança'. Este liquidou o assunto,
dado francês. Estando em Treves, vem a
declarando que o marechal tinha 82
saber, em 15 de janeiro de 1928, que
anos e estava 'caduco', Pétain guardar-
Pétain, insatisfeito com o texto apresen-
lhe-ia rancor durante anos, e freqüentes
tado, resolve pedir ao Cel. Audet a revi-
vezes relembrou o episódio, mesmo de-
são dele. A resposta imediata é uma
pois de tornar-se chefe do governo de
recusa cabal de permitir que tocassem Vichy".
no 'seu' texto, exprimindo a convicção
de que 'todo aquele negócio iria acabar
Jean Lacouture: HO O ponto de vista do
mal'. E de fato acabou mal". De Gaulle
direito, da lógica, do bom senso, De
decide publicar o livro em seu nome.
GaulIe está com a razão: ele é o autor,
Fabre-Luce: HQ estado-maior, que con- enquanto seu ex-chefe desempenhou,
sidera aquelas páginas fruto de um tra- na elaboração do livro, apenas a função
balho coletivo, recusa a De Gaulle a de um diretor de coleção. Mas, na prá-
permissão de publicá-las. Particular- tica, o assunto é muito mais complexo,
mente violenta é a reação de Pétain, pois a obra foi iniciada durante o exer-
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França foi feita a golpes de espada", afirma De Gaulle na primeira
frase do livro. É a réplica da última frase de Vers l'Armée de Métier:
"Porque a espada é o eixo do mu ndo". Esta obra assinala seu rompi-
mento definitivo com Pétain. De fato, o livro foi começado por De
Gaulle em 1923 ou 25, sob a égide do marechal, que pretendia pu bli-
cá-lo com seu nome. Mas depois Pétain renunciou ao projeto e a
"ovelha negra", De Gaulle, continuou-o às escondidas do marechal.
E agora lança ao público com seu nome, e uma estranha dedicatória
com agradecimentos que o marechal pouco aprecia. -
mm
cício de certas funções, onde um oficial fes e mais sério que os políticos. Tem
é apenas um instrumento. Em suma, or- certeza de ser um gênio. Mas, em caso
gulho contra orgulho, criação versus de necessidade, saberá também ser re-
tradição". servado, formalista, e conter os sarcas-
mos de sua superioridade. Disfarçará
sua solidão e seu desprezo sob a capa
Vive para se tornar "O Chefe" dos bons costumes sociais. Porá em prá-
tica a educação insolente, o louvor
desdenhoso..." (Emmanuel d'Astier,
HDe Gaulle se prepara durante vinte
oh. cit.).
anos. Não ambiciona uma posição so-
cial. Quer ser o Chefe. Toda a sua vida
será apenas tática e estratégia. Passan- Era tímido e complexado
do da guarnição do estado-maior e do
estado-maior ao ministério, aprimora
seu personagem. Duas preocupações o "De Gaulle não era feio. Devia, no en-
atormentam: a guerra e a política. Duas tanto, dar a impressão de ser um pouco
artes que se interligam estreitamente. tímido... Por isso ele se retraía logo que
A guerra é inevitável. É o coroamento um colega, um amigo fizesse menção de
da política. Conduz e provoca as con- faltar-lhe ao respeito. Era, como se diz
vulsões que fazem surgir os grandes hoje, um tanto 'complexado'. O que o
homens e preparam os novos destinos. salvava era a riqueza do seu mundo in-
Para De Gaulle, a vida privada não exis- terior, o brilhantismo de sua inteligên-
te. Não nutre outros desejos além da cia reconhecida pelos mais ilustres che-
glória: esporte, jogos, paixões, ou ami- fes militares da França. A única reação
zade. Para vencer, é preciso andar de possível aos escárnios dos companhei-
acordo com a sociedade, conformado. ros era o desprezo do homem superior,
É só depois, quando tiver se tornado um decidido a atingir as mais elevadas me-
grande homem, que poderá conduzir tas" (Mário Costa, oh. cit.).
esta sociedade e esta ordem para novos
progressos. De Gaulle tem plena certe- 30-5-/943: De Gaulle se dirige
za de ser mais inteligente que seus che- a um encontro com o Gen. Giraud.
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EM 1938, DE G AULLE é afastado dos altos comandos de Paris. Queria
carros blindados? Pois os terá. Dão-lhe o comando do 5079 Regimen-
to de Carros Blindados, acantonado em Metz. Porém, a distância e as
novas responsabilidades não o impedem de manter estreitos contatos
com os círculos políticos da capital, que compartilham suas apreen-
sões sobre o futuro. Durante suas viagens a Paris, De Gaulle freqüen-
temente se detém num pequeno e tranqüilo vilarejo escondido entre
os bosques, Colornbey-les-Deux-Eglises, onde adquiriu de uma viúva
idosa, em troca de pensão vitalícia, uma velha casa em ruínas, cir-
L I I Jl II I
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cundada por belo parque. É o lugar ideal para sua pobre filha Anne,
a quem os médicos prescreveram um ambiente particularmente são
e tranqüilo. De Gaulle batizou a casa de Boisserie (em homenagem
aos bosques da região). Será a célebre residência-fortaleza-retiro
dos dias tristes do general. Mesmo na sede de Metz, o coronel "Mo-
tor" - como o apelidaram os colegas por causa de sua "mania"
pelos carros blindados - encontra um modo de provocar atritos com
os superiores, devido a suas concepções táticas. De fato, no decorrer
de algumas manobras, ordena a seus carros que executem uma ação
tre podia ter sido evitado! A guerra co- Para os alemães, em Montcornet não
meça da pior maneira imaginável. No aconteceu nada de especial, pois ha-
entanto, não acabará assim, há de con- viam interrompido a ofensiva dois dias
tinuar. Para tanto ainda existe muito antes, por ordem superior, segundo es-
espaço no mundo. Naquele mesmo dia, creve Gert Buchert em Hitler der Feld-
tracei o plano do que eu poderia fazer herr C'Hitler, Chefe de Guerra"). "A-
em seguida" (Memórias de Guerra, oh. queles contra-ataques não nos causa-
cit.). ram reais dificuldades" - declarou a
seguir o Mal. von Klist a Liddell Hart
(História de uma Derrota). "Guderian
As vitórias os enfrentou sem dificuldades."
Nas Mémoires, De Gaulle, ao contrário,
de De Gaulle cita a opinião do Maj. Gehring, regis-
trada em Abbeville, diário histórico da
divisão Blümrn, que guarnecia o posto
Heróico e valoroso, ou nada especial é avançado de Abbeville. "No dia 28 de
o comportamento de De Gaulle, em maio, o inimigo atacara-nos com pode-
Montcornet e depois em Abbeville? rosas forças blindadas. Dominada a de-
fesa antitanques, nossa infantaria foi
Lacouture: "Dono de admirável cora- cedendo terreno... Há enormes baixas...
gem física, Charles De Gaulle não de- Quase todos nós vimos morrer colegas
monstrou possuir, no campo de bata- que nos eram muito caros..."
lha, aquele dom de clarividência e de in-
venção que, ao comandar 1.000 ou 300
mil homens, fazem de um general um A mordida do inseto
Masséna ou um Romrnel".
Le Crapouillot: "Ele conquista várias USe a ofensiva de De Gaulle contra o
plantações de nabos e faz 130 prisionei- flanco meridional tivesse sido tão forte
ros. No entanto, sua unidade deu provas a ponto de se fazer sentir também no
de valor digno de elogios". quartel-general de Rundstedt, a reação
37
autônoma, e o Gen. Giraud lhe dirige uma violentíssima "arenga",
na presença de todos os oficiais. Nos primeiros meses de 1939, o co-
ronel "Motor" passa a comandar as forças mecanizadas do 59 Exér-
cito do Gen. de Lattre de Tassigny, na Baixa Alsácia. No dia 31 de
agosto, as "profecias" de De Gaulle se tornam realidade: as tropas
nazistas atacam a leste. Objetivo: Polônia. Os aliados não estão
preparados para intervir em socorro dos corajosos poloneses que,
espremidos entre a Alemanha e a U.R.S.S. (pacto Hitler-Stalin),
se rendem em apenas duas semanas. Só resta declarar guerra à Ale-
dos chefes militares alemães teria sido mal: os carros blindados conseguiram
a de ordenar uma contra-ofensiva. Mas, alcançar novamente nossas linhas, mas
a respeito do impacto causado pelo a infantaria, abandonada à sua sorte, so-
ataque de De Gaulle contra o posto freu perdas sensíveis. Alguns consegui-
avançado dos alemães, somos levados a ram reunir-se a nós, e narraram sua
recordar a frase de Johnson: 'Uma odisséia. Outros foram feitos prisionei-
mosca, senhor, pode morder um majes- ros. O resto do regimento sustentou um
toso cavalo e fazê-lo estremecer. Mes- vigoroso combate sob o comando do
mo assim, a mosca continua sendo um Cel. Le Tacon, salvando assim a própria
inseto, e o cavalo continua sendo um honra. Este doloroso episódio tornou
cavalo'. "Pelas circunstâncias e com as De Gaulle muito pouco simpático"
forças de que dispunha, é pouco prová- (Raoul Salan, Mémoires - Fin d'un
vel que De Gaulle tivesse conseguido empire, - "Memórias - Fim de um
infligir aos alemães alguma derrota Império" -, Presses de la Cité, 1970).
mais perigosa que a mordida de um in-
seto ..." (Alistair Horne, Como se Perde
uma Batalha, Mondadori, 1970).
Os números
Raoul Salan:
"DEIXOU MASSACRAR A da tragédia
INFANTARIA"
As perdas da Batalha da França:
"Na divisão, ninguém nutria particular Alemães: 27.074 mortos, 111.034 feri-
estima por De Gaulle. No dia 25 de dos, 18.384 desaparecidos. Franceses:
maio, algumas de nossas unidades ha- 90.000 mortos, 200.000 feridos, 1.900.000
viam sido postas à disposição da 4' Di- prisioneiros e desaparecidos, números
visão Blindada, comandada precisa- aproximados. Ingleses: 68.111. Belgas:
mente por De Gaulle, que delas preci- 23.350. Holandeses: 9.779. Baixas· de
sou nos dias 28 e 29 de maio para a ope- material aéreo: Luftwaffe: 1.284. RAF:
ração de Abbeville. A coisa acabou 931; franceses: 560 (aproximadamente).
38
, ., II j, I li .11 1111 1 U
manha (3 de setembro). E assim começa a drôle de guerre, a estranha
guerra na frente ocidental. Durante todo o inverno de 1939-40,os
contendores se enfrentam, entrincheirados atrás da Linha Maginot
e da Linha Siegfried, praticamente sem se moverem. Na França,
De Gaulle é um dos poucos a compreender os verdadeiros ensina-
mentos da tragédia da Polônia e se bate, mais que nunca, em favor da
imediata formação de corpos mecanizados autônomos - a França
dispõe de cerca de 3 mil carros blindados, quase tantos quantos pos-
sui a Alemanha, mas mal distribuídos entre os outros vários corpos e
Os despojos de guerra apreendidos pe- muito bem. Mesmo após alguns anos, o
los alemães foram muito elevados: governo de Vichy procurava atribuir a
(7.000 canhões franceses de 75mm, responsabilidade da derrocada francesa
modelo da I Guerra Mundial. (Alistair ao governo da 111 República, por não
Horne, ob. cit.). haver este fornecido ao exército, além
de outros meios, também carros blinda-
dos pesados. Esses generais derrotados,
Shirer: As razões alguns dos quais diretamente responsá-
veis pela guerra com os meios blinda-
dos, ajudaram e favoreceram a difusão
de uma derrota da tese sustentada por Vichy, sempre
apoiada por testemunhas pouco con-
vincentes". (William L. Shirer, The Co/-
"De todos os mitos que, em nossos dias,
/apse 01 lhe Third Republic, - "O Colap-
ainda circulam a respeito do exército
so da IH República" -, Simon & Schu-
francês de 1940, um dos mais fantásticos
ster, New York, 1969).
e, ao mesmo tempo, dos mais aceitos
universalmente como verdadeiro é o
que apresenta as forças francesas como
muitíssimo inferiores às alemãs, no to-
o ÚLTIMO ENCONTRO
cante aos carros blindados pesados. COM PÉTAIN
Segundo a documentação colhida até
o fim da guerra, este mito se dissolve
como uma bolha de sabão. A verdade De Gaulle: "Saudei em silêncio o Mal.
é que o exército francês possuía mais Pétain que estava jantando na sala. Ele
carros blindados pesados que a Alema- me apertou a mão, sem dizer uma pala-
nha e que a maior parte dos carros fran- vra. Nunca mais iria revê-lo. Uma tor-
ceses eram melhores que os alemães. rente o arrastava a um destino fatal!
O fato é que os franceses não estavam Toda sua carreira se resumia num lon-
capacitados a servirem-se deles, apesar go esforço de mortificação. Demasiado
dos ensinamentos do Gen, De Gaulle. altivo para envolver-se em intrigas,
Os alemães, ao contrário, o sabiam nutria dentro de si a paixão pelo domí-
39
com funções de apoio. Toda sua insistência junto ao presidente da
República, Lebrun, quando este visita a frente alsaciana, torna-se
inútil. Inútil também o memorando L 'avênement de la Force Mécani-
que, - "O Advento da Força Mecânica" - que, no dia 24 de janeiro
de 1940, o obstinado coronel envia a oitenta personalidades civis e
militares. Nele De Gaulle retoma as principais teses de Vers l'Armée
de Métier, atualizadas pelos ensinamentos dos fatos ocorridos na
Polônia. A advertência de De Gaulle é muito simples: "Não nos
iludamos". E no entanto a França se ilude de estar em segurança
11 I m i m ; Im f
40
NI
atrás de sua Linha Maginot, ao longo da fronteira com a Alemanha.
Mas, em março de 1940, dia 21, em conseqüência do fracasso da
expedição aliada na Noruega, cai o governo Daladier e Paul Reynaud
se torna o presidente do Conselho. De Gaulle corre a Paris, certo de
poder, finalmente, obter um cargo de primeira linha entre os esca-
lões que dirigiam a guerra. Mais uma desilusão: emaranhado nas
alquimias parlamentares, Reynaud é constrangido a dar a Daladier
a pasta da Guerra e Daladier não quer, absolutamente, ouvir falar
em De Gaulle: "Se ele entrar, eu saio", diz categoricamente. No iní-
t I 2 I
41
cio de maio, o exército nazista contorna a Linha Maginot, invadindo
a Bélgica, Holanda e Luxemburgo, e desbarata o exército francês. A
15 de maio, De Gaulle recebe o comando da 4~ Divisão Blindada e
no dia 23 é promovido a general-de-brigada, a título temporário. É
terrível o espetáculo que se oferece a seus olhos: os soldados france-
ses fogem desordenadamente da frente, aturdidos, sem armas. Mais
tarde escreverá que tais cenas teriam uma importância extraordiná-
ria para a decisão que tomaria um mês depois. A 27 de maio, a divi-
são de De Gaulle recebe a ordem de passar à contra-ofensiva para
III i [ II II
42
retardar o avanço inimigo. Os carros franceses rompem as linhas
avançadas dos alemães e penetram profundamente, primeiro em
Montcornet e depois em Abbeville, fazendo cerca de quinhentos
prisioneiros, É uma das poucas vitórias de certa importância, conse-
guida pelas tropas francesas. A 15 de junho, Reynaud modifica o
gabinete e nomeia De Gaulle Subsecretário de Estado para Assuntos
de Guerra. Mas é muito tarde para mudar qualquer coisa. No gover-
no, o neo general se encontra no dever de combater uma guerra per-
dida desde o início, contra uma maioria que já a considera definiti-
tia outro à disposição, visto que Rey- cesa' "(Alexander Werth, ob. cit.).
43
vamente comprometida e deseja o armistício. Em particular Pétain,
vice-presidente do Conselho desde 19 de maio, e Weygand, genera-
líssimo, isto é, comandante-chefe das tropas francesas. De Gaulle
tenta, inutilmente, fazer prevalecer a tese da luta até o fim. Voltando
de uma missão em Londres, no dia 16 de junho, De Gaulle é infor-
mado de que Reynaud pediu demissão e de que o presidente da Re-
pública encarregou Pétain de formar o novo governo. É a porta aber-
ta para a capitulação. De Gaulle consulta Reynaud e os ingleses e
decide continuar a luta, de Londres. !I
44
~I
18 DE JUNHO DE 1940. Dos estúdios da BBC de Londres, um desco-
nhecido general francês fala a seus compatriotas: "Nossa derrota é
definitiva? Não! Eu, Gen. De Gaulle, convido oficiais e soldados
franceses a entrarem em contato comigo. Aconteça o que acontecer,
a chama da Resistência Francesa não se deve apagar. E não se apa-
gará!" Com dificuldade, a mensagem alcança o litoral francês. É
ouvida menos pelo povo do que pelos serviços secretos do governo
de Pétain - o "governo de Vichy", nome da localidade onde se
instalou. No momento, ninguém tem tempo de se ocupar com o
12 li
46
"rebelde": Pétain se prepara para assinar a rendição aos alemães.
O armistício é firmado no dia 22 de junho, em Rethondes, perto de
Cornpiêgne, no mesmo histórico vagão-leito em que os alemães ha-
viam assinado a rendição de 1918. A França ficou dividida em zona
de ocupação, sob o domínio dos alemães, e zona livre, sob o governo
de Vichy. De Gaulle, em Londres, continua a movimentar-se acusan-
do Pétain e seus colaboradores de traidores. Não tarda a chegar a
resposta da França oficial ao "provocador": De Gaulle é rebaixado
a coronel, em seguida condenado a quatro anos de prisão por deso-
•
E.V.A. se referem a George Washing-
A mística de ton e à declaração da independência, ou
a U.R.S.S. se refere a Lenine e à revo-
trinta anos depois lução de outubro" (Herbert Lüthy,
A França Contra si Mesma -,11 Mulino,
1956).
Em quase todos os textos escolares fran-
ceses é ensinado que De Gaulle foi o
libertador da França. "Lendo esses Traidor
textos, tem-se a impressão de que toda
a França tenha se levantado como um
só homem, ao apelo de Charles De
e vendido
Gaulle" - escreve Mário Costa. "Tan- Para os jornais que "colaboram" com o
to é verdade, que uma pesquisa realiza- governo de Vichy, De GaulIe não é mais
da entre os garotos das escolas demons- francês, mas simplesmente um "traidor
trou a inocente persuasão de que o ge- sujo" .
neral expulsara os alemães do solo fran- Le Reveil du Peuple, 27-12-40: "Que sen-
cês, arrastando atrás de si também os timento o levou a desertar e trair? Só
ingleses e americanos." pode ter sido o espírito de lucro. prova-
velmente foi atraído pela oferta de di-
nheiro, a única possível para um país
De Gaulle igual a como a Inglaterra. Por isso, merece a
reprovação de todos os franceses autên-
Washington e Lenin ticos".
L'Oeuvre, 11-4-41: "Bem entendido, o
"Graças ao Gen. De Gaulle, a França ex-Gen. De Gaulle não é apenas um ho-
conseguira encontrar seu lugar no cam- mem que perdeu completamente o
po aliado. Todo ato e toda providência juízo, mas também um traidor, e da
da França deviam, necessariamente, pior espécie, porque sua traição é o re-
referir-se a De Gaulle e ao dia 18 de sultado de uma longa meditação e pre-
junho de 1940, mais ou me~os como os paração" (Marcel, Déat).
47
bediência (4 de julho), privado da cidadania francesa (24 de julho)
e, finalmente, condenado à morte por um tribunal militar (3 de agos-
to). Também na esfera política, a aventura de De Gaulle começou
mal. A maioria dos franceses está com Pétain, convencidos de que
o armistício seja o único meio de salvação para a França. E os que
desembarcam em Londres, apresentando-se nos escritórios da
França Livre de De Gaulle, não são, por certo, franceses importan-
tes: um punhado de desconhecidos, muitos judeus, alguns aventurei-
ros. Passado mais de um mês, a França Livre ainda não reunira mais
II
OS PRIMEIROS FRANCESES
Desertor LIVRES
48
de três mil homens! E, por sinal, os próprios ingleses põem obstácu-
los ao recrutamento, chegando freqüentemente a convidar os fran-
ceses recém-chegados a se alistarem nas fileiras do exército regular
britânico, em vez de se deixarem arre banhar por aquele "bando de
aventureiros". De Gaulle protesta violentamente contra semelhantes
intromissões e pressiona continuamente Churchill, pedindo-lhe car-
t,a branca para agir, apoio mais concreto e reconhecimento oficial.
E bem verdade que, até o momento, o primeiro-ministro inglês se
limitou a reconhecer De Gaulle como o "chefe dos franceses livres,
Patria servando, vidoriaD tulit e era sus- o manifesto da rebelião (que muitos
tentada. por um pequeno mastro ver- confundem, erroneamente, com o "pri-
de e preto, "as cores do luto e da es- meiro apelo"). rr A todos os franceses.
perança". De Gaulle era o Grão- Mes- A França perdeu uma batalha! Mas não
tre da Ordem. perdeu a guerra! Governantes mendi-
gos puderam capitular, cedendo ao pâ-
nico, esquecendo a honra, entregando o
Soustelle: "O Gaullismo não é
país à escravidão. Apesar disso, nada es-
De Gaulle, é o nlo do desespero" tá perdido. Nada está perdido porque
esta é uma guerra mundial. Existem, no
"O gaullismo nascente, em 1940, não ti- universo livre, forças imensas que
nha nem tempo, nem vontade de elabo- ainda não entraram em luta. Um dia,
rar uma doutrina. Não era nem sistema, tais forças hão de esmagar o inimigo.
nem partido. Era um estado de ânimo. É preciso que nesse dia a França parti-
Os franceses, esmagados no primeiro cipe da vitória. Então, ela reencontrará
instante pelo desespero causado pela sua liberdade e suagrandeur. Este é meu
queda e ruína do exército, reagiram ins- objetivo, meu único objetivo! Eis por-
tintivamente, dizendo: Não! Uma recu- que convido todos os franceses, onde
sa, eis o gaullismo de então... Quem era quer que se encontrem, a se unirem a
De Gaulle? Ninguém sabia e, para dizer mim na ação, no sacrifício e na esperan-
a verdade, nem se preocupava em sa- ça. Nossa pátria corre perigo de morte.
bê-lo" (Jacques Soustelle, Gaullismo, Lutemos todos juntos para salvá-la!
Ed. do Burguês, 1969). Viva a França! Gen. De Gaulle."
49
onde quer que estes se encontrem, e que se unem a ele para lutar
pela defesa da causa aliada", mas não tem a mínima intenção de con-
ceder ao líder francês nenhum reconhecimento político. Por esse
motivo, durante os cinco anos de guerra, os dois homens freqüente-
mente chegam a uma situação crítica. "de todas as cruzes que fui
obrigado a carregar durante minha vida, a mais pesada foi a de Lore-
na", dirá mais tarde o primeiro-ministro inglês. Com efeito, De Gaul-
le escolhera como emblema a cruz de Lorena (com a haste transver-
sal dupla), recordando o estandarte de seu antigo regimento blin-
li
•
Gen. Noguês, comandante-chefe da De Gaulle: "Não é conhecido no plano
África do Norte, declarando-se disposto internacional. É preciso fazer com que
a servir sob suas ordens, ou sob as or-
H o conheçam!" Certa vez, o Gen. Spears,
dens de qualquer outra personalidade a "babá" inglesa de De Gaulle, desaba-
que desejasse encabeçar a resistência". fa: "Dê-me uma boa quantia de dinhei-
"De início, ninguém respondeu, e pas- ro, mil libras esterlinas, e lhe garanto
saram-se várias semanas antes que Ca- que em menos de seis meses De Gaulle
troux se unisse aos Franceses Livres. será manchete em todos os jornais do
Os outros 'procônsules' decidiram obe- mundo". Churchilllhe concede um cré-
decer ao governo de Bordéus, que logo dito de 500 libras para a publicidade.
se transformou no governo de Vichy. "Spears confiou a campanha a um agen-
Assim, De Gaulle começava com o que, te publicitário, chamado Richmond
na realidade, representava um tríplice Temple, mas De Gaulle apresentou sé-
malogro: não havia conseguido impedir rias objeções. Ele não queria publicida-
o armistício; não fora capaz de persua- de e, sobretudo, não queria saber de fo-
dir os chefes militares e civis do impé- tografias: Querem lançar-me no merca-
f
50
dado de Metz. A cotação, já muito baixa, do chefe da França Livre
corre o risco de sofrer um colapso completo, por causa de dois in-
cidentes graves. O primeiro ocorre a 3 de julho: a frota inglesa do
Alm. Holland afunda a frota francesa de Gensoul, na baía de Mers-
el-Kébir, Argélia, para impedir que os navios franceses caíssem nas
mãos de Hitler. O armistício franco-alemão estabelecera que a frota
francesa permaneceria estritamente neutra e jamais participaria de
operações militares contra seus ex-aliados. Mas os ingleses não
confiaram em Hitler e preferiram ter sua retaguarda em segurança.
ti LI 311
51
Na França é incomensurável a indignação contra o "ataque trai-
çoeiro" da "pérfida Álbion". E De Gaulle, "servo dos ingleses e la-
caio de Churchill", que se rebaixa a justificar pelos microfones da
B BC aquela trágica manobra, perde grande parte de seu prestígio,
que já está muito enfraquecido. Depois, a fim de resolver a sorte da
França Livre e também para escapar da tutela e do controle inglês,
De Gaulle decide tentar resolver a situação, partindo das colônias.
Desembarcará em Dakar, na África Equatorial Francesa, reunirá
em torno de si todas as forças rebeldes e, daquela nova capital "mo-
li;'; fi 111 I F
Absolutamente não
OPERAÇÃO DAKAR
é verdade!
De Gaulle: "Depois de haver deixado
o porto com meus poucos soldados e o o 'tutor' inglês de De Gaulle, o Gen.
Spcars, afirma em seu livro Pétain -
reduzido número de navios, eu me sen-
tia esmagado pela, grandeza do em- De Gaulle, Deux Hommes qui Sauveront
preendimento. Longe, na noite escura, la France C'Pétain - De Gaulle, Dois
sobre as enormes ondas que agitavam Homens que Salvarão a França", Pres-
o oceano, uma pobre nave estrangeira, ses de la Cité, Paris, 1966), ter vivido
sem canhões, com as luzes apagadas, minuto a minuto a aventura de Dakar,
carregava a sorte da França" (Memó- ao lado do Chefe da França Livre: "Em-
rias de Guerra. ob. cit.). bora De Gaulle tivesse, com muita co-
ragem, insistido em sua responsabilida-
de pessoal sobre aquela trágica humi-
Após a derrota, De Gaulle lhação, não creio que tenha perdido,
nem mesmo uma só vez, a fé na vitória
queria suicidar-se final. E jamais me ocorreu que pudesse
pensar em suicídio. Para o homem pro-
fundamente religioso que eu conheci
.,A derrota psicológica, a derrocada
em De Gaul1e, isso era absolutamente
sentimental pesam muito mais que um impossível" .
desastre militar. Poucos dias após o ma-
logro de Dakar, De Gaulle conversa Philippe De Gaulle: "Li que em certo
com René Pleven. Angustiado, ele abre momento meu pai teria pensado em sui-
o coração e confia ao amigo seu pen- cídio. Mas isto contrasta frontalmente
samento mais íntimo. Assalta-o dúvida com o homem, com a esperança que
atroz... O segredo lhe pesa na consciên- sempre o animou, com seu modo de
cia. De Gaulle quer livrar-se dele. 'Te- pensar".
nho pensado - confessa - sim, tenho
pensado em fazer saltar os miolos!' " René Pleven: "Nem por um segundo
(Tournoux, Jamais dit, ob. cit.). pensei que o Gen. De Gaulle tenha nu-
52
ral" da França, entrará efetivamente em guerra contra Vichy e a
Alemanha. Mas seus cálculos se mostram bem longe da realidade.
A guarnição de Dakar foi advertida em tempo (deve ter havido espio-
nagem ou delação em Londres), acolhe oS "libertadores' com tiros
de canhão, obrigando-os a se retirarem vergonhosamente. De Gaulle
está destruído. Segundo alguns biógrafos, ele teria, naquela hora,
pensado até em "fazer saltar os miolos". Mas não acabam aí suas
desventuras. Os próprios aliados pensam em se livrar dele - pois
já está comprometido demais - e tentam escolher qualquer outro
53
"cavalo de raça": o Gen. Weygand, por exemplo. Mas, para sorte
de De Gaul1e, Weygand recusa todos os convites que lhe fazem.
Além disso, o episódio de Dakar trouxe para o "rebelde" um inimigo
difícil e obstinado, o presidente americano Roosevelt. A América
ainda não está em guerra, mas já fornece todas as armas para a
Inglaterra e, na prática, se comporta como um beligerante. E pre-
tende impor suas vontades. Roosevelt deplora a guerra civil entre os
franceses, considera De Gaulle um indivíduo perigoso, que ambi-
ciona a ditadura. li
•
d 7I r II LI 1I I I I lU
ral difundira, pela rádio de Londres, o Alm. Muselier, acusado, com base 1
sua histórica denúncia contra o armis- num documento (mais tarde provado
tício franco-alemão. No entanto, Roo- como falso), de haver informado Vichy
sevelt, ao que parece, já havia decidido sobre a expedição a Dakar, em troca de
que não era necessário considerá-lo co- 2 mil libras esterlinas. De Gaulle afir-
mo fator importante para os assuntos ma em suas Mémoires que, imediata-
"
f ranceses.... mente, compreendeu tratar-se de uma
informação falsa do Intelligence Service
De fato, segundo Roosevelt, De Gaulle e que fez a seguinte declaração: "Dou
"iniciara em Dakar o que equivalia a 24 horas ao governo britânico para li-
uma guerra civil francesa, antepondo as bertar o almirante e dar-lhe satisfações.
próprias ambições aos interesses da Caso contrário, hei de cortar todas as
França e dos aliados. Nunca mais Roo- relações diplomáticas". O almirante
sevelt conseguiu livrar-se dessa descon- francês foi imediatamente solto e, para ,
fiança que, a partir daí, alimentou con- reabilitá-lo moralmente, foi até recebi- 1
tra a capacidade de julgamento e a do em audiência pelo rei da Inglaterra.
discrição de De Gaulle". Entretanto, Muselier, no livro De Gaulle
contre /e Gaul/isme COe Gaulle Contra
o Gaullismo", Paris, 1946), sustenta que
OCASO De Gaulle não reagiu com tanta pressa
nem com tanta firmeza, acusando-o, ,
~
realmente, de falta de lealdade. A se- ~
,i
MUSELIER guir, apresenta uma detalhada descri-
ção da sórdida atmosfera de intrigas, de !
t
•
fraudes e de jogo duplo que reinava, t
f
de início, no quartel-general de De t
A tentativa de Dakar falhou por culpa Gaulle: "Um odioso ambiente de Ges-
J
I
de uma "fuga" de notícias. Os gaullis- tapo e de basse-policei",
tas sustentam que a culpa cabe aos in-
gleses. Estes, por sua vez, acusam os
franceses. Realmente, no dia 2 de janei- o Gen. De Gaulle passa
ro de 1941, é preso pela polícia inglesa em revista as tropas.
S4
~ ,J '- I. I I, ; LII til l U I I I. i.il j .r . ~ I I .'.L.'__" ,; ".1 .r. , j ,._ • I j ,1,,,.,, .J,,, IJ J,
DERROTADO NO CAMPO 'MILITAR, Charles De Gaulle tenta refazer-se
no campo político. No dia 27 de outubro - três dias depois de Pétain
haver-se encontrado, em Montoire, com Hitler e ter sido constran-
gido a transformar o armistício em colaboração com os nazistas -
De Gaulle publica na África a Carta de Brazzaville, na qual imprime
características políticas à França Livre: "Não mais existindo um
governo propriamente francês, porque Vichy é inconstitucional,
torna-se necessário um novo poder que assuma a responsabilidade
de dirigir o esforço francês na guerra. As circunstâncias me impõem
11 1\ j lU li! L 1 1 I
ChArles-o-libertador ataca
Churchill tenta em duas frentes
líder e penso que o senhor deveria as- cussões havidas freqüentemente entre
sumir o posto" (Catroux, Dans la Batail- mim e Churchill, causadas pela diferen-
le de Méditerranée, - "Na Batalha do ça de caracteres, por alguns interesses
Mediterrâneo" - , Juillard, 1949). contrastantes de nossos respectivos paí-
56
este dever sagrado e eu o aceitarei". Sem falar de "governo", coisa
que Churchill e Roosevelt jamais aceitariam, De Gaulle constitui
um Conselho de Defesa do Império e se autoinveste da legitimidade
e da soberania francesa que Pétain "entregou" nas mãos de Hitler.
A seu lado, começam a se alinhar algumas colônias francesas: depois
do Chade (26 de agosto), Camarões, Congo Francês e, por fim, Ga-
bão (6 de novembro). Além disso, finalmente, estão afluindo para a
França Livre algumas pessoas de certo prestígio. Afora o Alm. Muse-
lier, que já se encontra em Londres, chega da Indochina o general-
57
de-divisão Catroux; da França o escritor André Malraux, o arqueó-
logo Jacques Soustelle e René Pleven, futuro presidente do Conselho
da IV República. Churchill evita reconhecer oficialmente o Conselho
de Defesa do Império, pois não quer tornar irreparável a ruptura
com Vichy (com o qual, ao que parece, mantém contatos secretos),
e não tenciona descontentar os americanos, ainda hostis a De Gaulle.
Além do mais, sempre pensou em servir-se do general como de um
"sapador" militar, mas não alimenta nenhum interesse em vê-lo
transformar-se de súbito num homem político que pretende falar e
58
59
E, após a vitória, continua a protestar até que a bandeira francesa
também é hasteada nos edifícios públicos. Em seguida, nos dias 25
e 26 de julho, dirige-se a Damasco e Beirute, onde é acolhido em
triunfo. Evidentemente, Churchil1, que procura eliminar a influên-
cia francesa no Oriente Médio, - já pensa no petróleo e no após-
guerra! - se enfurece, mas, por fim, deve engolir esse bocado amar-
°
go. E não será o último que De Gaulle fará mandar goela abaixo.
Com efeito, a 24 de setembro, o chefe da França Livre transforma o
Conselho de Defesa do Império em Comitê Nacional, uma forma
] III [I rn
60
ernbnonana de governo, co m vá rios mi nis tros d esign ados, e co meç a
a entrar e m co nta to co m os primeiros n úcl eos de oposição a Vich y e
aos naz istas , que estão se o rga niza ndo na Fr an ç a. No entanto, a
verdadei ra Re sist ên ci a F ra ncesa or ga nizada entra em pleno fun-
ciona me nto so me nte após o mê s de j unho de 1941 , qu ando Hitler ,
rompe ndo o pac to co m St alin , invad e a R ússia. Em co nseq üê nc ia,
chega de M osc ou a o rd e m de sabota r a máq ui na bé lica dos na zistas e
as fo rças co m unis tas, até então e m caute losa ex pec tativa, entram
em ação . A pri ncípi o , os vá rios grupos da Resistên c ia recu sam os
, 7&1**%*
a Resis tênc ia não form ava a inda um ceses Livr es. Em 2 de jan e iro de 1942,
bloco único. Era apen as a represa co le- desce de p ára-quedas na Provença,
tora, o nde se vinha m reunir todos aq ue- mun ido co m as cr ede nc iais de De Gaul-
les a q ue m o entusiasmo patri óti co , le: " Mo ulin re cebeu a missão de reali-
o crescente te rro r dos ale mã es , a gr an- zar a unidade de ação de todos os ele-
de caça ao homem para usá-lo em tr a- mentos que re sistem ao inimigo e a se us
balhos fo rçados ne ce ssár ios à ec o no mia co laboradores" . Moul in cumprirá sua
germ â nica, o u, en fim, a pre visão da missão, co nsegu indo o entendimento
derrota ale mã e mpu rra vam para a opo - mútuo dos três mo vimen tos principais
sição, no exílio ou na ilegalidade " (H . qu e ope ra m na zo na não ocupada pelos
Lüt hy, ob. cit.) . ale mães: Com ba t, Fr anc s-Tireurs e Li-
bér ati on. A 16 de fevereiro de 1943,
Moulin retom a a Londres acompanha-
A EPOPÉIA DE JEAN MOULlN do pe lo Gen. Delestr ain t, chefe da
Arm ée se crê te, que surgiu da fusão dos
Jove m pr efeito de C ha rtres, Je an Mou - gru pos aci ma cit ados .
lin acaba se ndo pre so e torturad o pel os
a le mães, no di a 17 de ju nho de 1940,
porque se re cusa a assinar um docu -
men to no qu al as atrocidades praticadas
co ntra um grupo de civ is são atribuídas
o calvário
às tro pas fran ce sas e m fuga e não aos
so lda do s a lemães . " T rancado numa ce -
Ia, Moulin co nside ra que não tem ne -
do mártir
nhuma experiência de violênc ia e que,
ta lvez, a ma nhã chegue a ceder e a assi- o Gen . Delestraint é preso no dia 9 de
nar. Por isso, ca ta um cac o de vidro e junho de 1943. " Para escolher um su-
co rta. os pulsos" (En ce Temps-la, ob . cessor do chefe do exército secreto,
cit.). E sa lvo na últi ma hora, depois foge Moulin convoca os responsáveis para
do cárcere e entra para a clandestini- uma reunião em CaIu ire, nos arredores
dade. No dia 9 de setem bro de 1941 par- de Lion. Um traidor os entrega à Gesta-
te par a Londre s, onde se junta aos Fran- po ." Torturado dia após dia, Moulin
61
l:UIII U~ i r anceses uvres, Mas para ue uaulle aqueles " co m-
coru.ai cs
batentes das sombras" são de grande utilidade no plano publicitário:
se conseguisse submetê-los, de algum modo, a seu comando, cresce-
ria rapidamente seu prestígio como chefe de todos os franceses.
De imediato, lança nessa empresa seus melhores agentes: De Wavrin
(o Cel. Passy), Pierre Brossolette, Jean Moulin e tantos outros heróis
desconhecidos. Em maio de 1943, já se pode afirmar que o objetivo
foi alcançado, pois os vários grupos se unificam no Conselho Nacio-
nal da Resistência (CNR), em entendimento com De Gaulle. _
62
As RELAÇÕES JÁ TENSAS entre De Gaulle e os E.U.A. pioram ainda
mais em dezembro de 1941, quando, num golpe inesperado, o Alm.
Muselier, membro da França Livre, ocupa o arquipélago de Saint-
Pierre-et-Miquelon, uma possessão francesa de 250 quilômetros qua-
drados de superfície, a seis léguas marítimas de Terranova (Canadá).
E o fez depois de De Gaulle ter garantido aos E. U.A. e ao Canadá -
que se opunham à operação - que havia desistido dela. O Preso
Roosevelt proclama que a ~~ conduta de De Gaulle é absolutamente
inadmissível". O secretário de Estado americano, Cordell Hull,
I I[ 1111I11 II I 71
64
condena ainda mais asperamente a ação dos que "se chamam france-
ses livres". Churchill encontra grandes dificuldades para acalmar as
ondas de protesto, pois está entre dois fogos: os americanos - dos
quais tem absoluta necessidade para vencer a guerra, e que lhe exi-
gem que se desfaça do "francês intrometido" - e De Gaulle, ao
qual, no fim das contas, dedica grande afeto, embora este seja obsti-
nado e altivo, não recue jamais de uma posição tomada e ameace,
a cada momento, retirar-se da luta. Porém, a "punição" americana
não tarda a chegar. A 7 de novembro de 1942, desencadeia-se a Ope-
65
ração TORCH, a ocupação da África Setentrional Francesa por parte
dos anglo-americanos, e De Gaulle é informado somente após o iní-
cio da ação. Não só isso. Recebe também expressa proibição de se
dirigir para lá. Indignação, acusações violentas de pretenderem
"roubar" as colônias francesas e, em seguida, a premeditada resig-
°
nação. E chefe da França Livre, que justamente naqueles dias havia
mudado o nome para França Combatente, aceita apoiar a operação,
fazendo uso dos microfones da BBC. Muito secamente, proclama:
"Franceses, é chegada a hora do bom senso e da coragem. Ajudai
66
I ;'L.II .i , 1 ..lJ I
nossos aliados. Só importa uma coisa: a salvação da França". Mas
sua boa vontade não basta para reabilitá-lo perante os americanos,
que tentam empossar em Argel dois de seus protegidos: o Gen. Gi-
raud, fugido recentemente de um cárcere alemão e apoiado pelo
diplomata Robert Murphy, e o Alm. Darlan, ex-vice-presidente do
Conselho do Governo de Vichy, delfim de Pétain, chegado de impro-
viso a Argel no dia 4 de novembro "para visitar um filho doente"
(Darlan conta com o apoio do Alm. Clark). E por trás deles pode-se
até entrever a vaga possibilidade de o Mal. Pétain, em pessoa, vir
67
a desembarcar em Argel - fato que os americanos receberiam com
indizível satisfação - para se colocar à frente dos franceses na luta
de libertação. Para De Gaulle isso significaria o fim de todas as es-
peranças. Mas, felizmente para ele, o velho marechal não se move.
E Churchill - não só para manter a palavra, mas também para im-
pedir que os americanos se apoderassem de toda a África do Norte -
intervém e prestigia seu protegido. Dura pau co a desilusão de De
Gau lIe, causada por esse acantonamento: apressa-se em enviar para
Argel seus mais aguerridos propagandistas e os mais hábeis espiões.
68
.. ,I.,Jll li" I I ~~., U ,il j,,~ ~ " •• I"; I ,., -i ;1", I I i l' 11 t'
Paradoxalmente, entre os vários serviços secretos ingleses, america-
nos, gaullistas, petainistas e até monarquistas - o Conde de Paris,
pretendente ao trono da França, está tentando reconquistar o reino
dos antepassados - desencadeia-se violentíssima luta de morte. O
Alm. Darlan, vítima desse inexplicável clima de violência, cai as-
sassinado no dia 24 de dezembro de 1942 por um estudante de vinte
anos, chamado Bonnier de la Chapelle. O jovem é justiçado antes
que se consiga desvendar plenamente o misterioso episódio e des-
mascarar seus eventuais mandantes. Os americanos e Giraud suspei-
69
tam que tenha sido obra dos gaullistas. Roosevelt se enfurece nova-
mente e Churchill deve intervir pela milésima vez para pacificar os
ânimos. Por fim, os dois estadistas decidem resolver, de uma vez por
todas, essa espinhosa confusão dos franceses, "casando" os dois
respectivos protegidos. A "cerimônia" é celebrada no dia 22 de ja-
neiro de 1943, em Anfa, Marrocos, na presença de Churchill e de
Roosevelt. A 22 de junho, os "esposos" se tornam co-presidentes
do Comitê Francês de Libertação Nacional (CFLN). Uma co-presi-
dência destinada a durar pouco. •
sa" continuará a se mostrar muito ca- De Gaulle: UNo fundo, Giraud não se
prichosa e birrenta. No dia 8 de maio, submetia a nenhuma forma de depen-
Roosevelt escreve à "mamãe" Chur- dência... Por natureza, por hábito e tam-
chill que "o comportamento da 'esposa' bém por uma espécie de tática, seu es-
se torna cada dia mais insuportável... pírito se limitava estritamente ao cam-
Agora acaba de instalar em Argel seu po militar, recusando-se a dar atenção
venenoso estado-maior de propagandis- às realidades humanas e nacionais e fe-
tas para semear a discórdia... Não sei o chando os olhos a tudo quanto dissesse
que fazer dele. Seria melhor, talvez, no- respeito ao poder. Com tal psicologia,
meá-lo governador de Madagascar...". ele não conseguia, durante seus encon-
tros comigo, fazer, de uma vez por to-
das, abstração da hierarquia. E bem
A eliminacão
•
verdade que estava perfeitamente côns-
cio do caráter excepcional de que se
revestia nossa missão. Aliás, tanto em
de Giraud público como em particular ele me deu
provas generosas e comoventes desta
convicção. Mas não tirava daí nenhu-
ma conseqüência prática. É necessário
U A eliminação de Giraud aconteceu em também notar que as circunstâncias
três tempos distintos. Primeiro, perde a em que havia chegado ao primeiro
maioria dos votos no comitê porque posto na África do Norte, o apoio re-
dois dos homens que ele mesmo havia cebido da política americana, as pre-
nomeado 'escorregam' para o lado de venções e os rancores de alguns fran-
De Gaulle: Jean Monnet e Maurice ceses que o comparavam comigo, tudo
Couve de Murville. Segundo, no dia isso influía em suas idéias e em sua
31 de julho de 1943, Giraud é nomea- conduta" (Memórias de Guerra, ob.
do, por De Gaulle, comandante-chefe cit.).
das forças francesas. Por fim, no outono
é relegado à função de inspetor-geral
das forças armadas" (Georges Suffert, Charles De Gaulle recebe
ob. cit.), Eisenhower nos Campos Elisios.
70
VENCIDA FINALMENTE A BATALHA contra Giraud, De Gaulle passa a
unificar as forças armadas da França Combatente, cerca de 15 a
20 mil homens, com as forças do exército regular acantonadas na
Argélia (o "exército Giraud", com 125 mil soldados). A seguir, impõe
aos aliados a participação de uma divisão francesa, comandada pelo
Gen. Juin, na campanha da Itália, que terá início em breve, com o
desembarque na Sicília. Nesse meio tempo, as tropas francesas de
Leclerc, que haviam partido do Chade já em janeiro de 1941, partici-
pam com brilhantismo da conquista de Tünis. onde De Gaulle entra
72
lI!
73
dos aliados. Uma humilhação sem precedentes: é iniciada a liberta-
ção da França e o "Chefe dos Franceses" fica jogado a um canto,
como um fardo incômodo 1O general reage imediatamente, transfor-
mando, no dia 3 de junho, o CFLN em Governo Provisório da Repú-
blica Francesa. Quando, a 6 de junho, dia do desembarque, Churchill
lhe pede para falar no rádio, exortando os franceses a colaborarem
com a ofensiva aliada, ele se recusa com desdém. Explode então
entre os dois estadistas a mais grave desavença de toda a sua vida.
"Lembre-se, Gen. De Gaulle - grita-lhe Churchill que todas
I] I I 11 II
74
75
cionários", por meio de intensivos cursos de francês. E já foram im-
pressos os AM-francos, as notas e moedas de ocupação). De Gaulle
se antecipará à manobra americana, fazendo cair de pára-quedas, em
plena batalha, nas mais importantes localidades do país, funcionários
franceses por ele munidos de plenos poderes. 6 de junho: na Norman-
dia o inferno anda solto. Após seis dias de batalha encarniçada, os
aliados rompem as linhas de defesa dos alemães e avançam para
o centro do país. Dia 13, De Gaulle recebe autorização para desem-
barcar na França. Chega na madrugada do dia 14, pisando em solo
I I lU UI I UI! [ ruI fi I lP
76
I i ,,,,Hl LI I I I; 1- II ,I i I <~ I
francês entre Graye-sur-Mer e Courseulles-sur-Mer e se dirige a
Bayeux. A comovente e entusiástica acolhida dos franceses, que pela
primeira vez podem ver a "voz de 18 de junho", o consagra definiti-
vamente como "Chefe dos Franceses" também diante dos olhos dos
americanos. No dia 15 de junho, De Gaulle está de volta a Londres.
A seguir, voa para Washington, a fim de resolver de uma vez por
todas a questão de sua "investidura". E desta vez, Roosevelt cede.
A 12 de julho," o governo americano anuncia que O CFLN está quali-
H
I II bit 11
a ele, a eles, que a França Livre lança se trata de restituir a si mesmo, com o
seu primeiro grito; a ele, a eles que, li- espetáculo de sua alegria e a evidência
vre das cadeias, a França estende as de sua liberdade, um povo que ontem
pobres mãos. E a França recorda: Vichy ainda estava prostrado pela derrota e
obstinadamente condenara à morte este disperso pela escravidão. Cada um dos
homem. A imprensa dos traidores fran- presentes, em seu coração, já escolheu
ceses, a serviço dos carrascos, o cobria Charles De Gaulle para conforto de
de insultos e desprezo. Mas nós, duran- suas penas e como símbolo de sua espe-
te as noites daqueles ferozes invernos, rança. Por isso é necessário que o veja,
ficávamos com o ouvido atento ao rá- familiar e fraterno, e que com isto res-
dio. Escutávamos com os punhos cer- plandeça a unidade nacional" (Memó-
rados, não conseguindo conter as lá- rias de Guerra, ob. cit.).
grimas. Corríamos para avisar os fami-
liares que não estivessem ouvindo: ~O Crônica radiofônica sobre o
General De Gaulle vai falar, já está fa- atentado contra De Gaulle
lando!' Em pleno triunfo nazista, tudo
o que hoje se torna realidade a nossos "Honra e Pátria! Eis o Gen. De Gaulle!
olhos já era anunciado por aquela voz Esta apresentação que eu vos fiz com
' . "
pro f ética.... tanta freqüência, hoje não a recito,
mas a leio sob o Arco de Triunfo, leio-
Otriunfo a quase sobre o Arco de Triunfo! Ei-lo,
o libertador! A chegada do Gen. de
De Gaulle: HAh, é um oceano! A multi- Gaulle sob o Arco de Triunfo foi sauda-
dão imensa está apinhada em ambos os da pelo grito do Capo Schumann: 'Hon-
lados da avenida. Talvez sejam 2 mi- ra e Pátria!' E agora, com os compa-
lhões de pessoas. Até os tetos das casas °
nheiros da primeira hora, Gen. Koe-
estão apinhados de gente. Em todas as nig, o Gen. Juin, os membros do Gover-
janelas surgem grupos compactos e ban- no Provisório da República, o Gen. De
deiras. Eu avanço a pé. Não é dia de Gaulle deixa o Arco de Triunfo, desce
passar as tropas em revista, com o cinti- a pé os Campos Elísios, em marcha
lar de armas e o soar de fanfarras. Hoje triunfal...
77
retornar à Europa e proclamar triunfalmente: "trazemos de volta
para a França a independência, o império e a espada". A 22 de agos-
to os primeiros carros da segunda divisão blindada do Gen.
Leclerc - os quais, por insistência de Churchill, foram finalmente
postos em ação no território francês - chegam às portas de Paris,
onde a revolta já imperava há vários dias. Na tarde do dia 25, rende-
se o general alemão von Choltitz. A 29 de agosto, De Gaulle, seus
principais colaboradores e os líderes civis dos Comitês de Libertação
entram nos Campos Elísios, entre a multidão delirante. _
78
I ffi Ii I &
80
maneira a assegurar à França um lugar entre os vencedores à mesa
das negociações; adotar todas as medidas administrativas, políticas
e econômicas para normalizar a vida do país. Além disso, deve pro-
ceder ao expurgo dos "traidores" que colaboraram com os alemães,
começando por Pétain. Já no dia 9 de setembro, o general constitui
um governo de "Unidade Nacional", com a participação de antigos
membros do Governo Provisório de Argel e homens dos Comitês
de Libertação, inclusive os comunistas. Passado pouco mais de um
mês, o governo de De Gaulle é oficialmente reconhecido pelas po-
,
de Churchill, que o vigiava constante-
mente e lhe concedia a conta-gotas as
Bernanos: "E difícil
armas, o dinheiro e a investidura ofi-
cial.,;" (Mário Costa, ob. cit.).
discutircom este homem"
8L
tências aliadas. Agora, seguro do apoio dos anglo-americanos - aos
quais, por sinal, solicita duas divisões para restabelecer, em caso de
necessidade, a ordem interna - , De Gaulle passa a eliminar as
organizações armadas independentes. Um decreto governamental
dissolve as forças civis e incorpora ao exército regular todos os que
pretendem continuar a luta contra os nazistas. Os comunistas não
aceitam o decreto e ameaçam fazer uma revolução. De Gaulle os
domina, tratando diretamente com Stalin. Com efeito, no início de
dezembro, vai a Moscou e assina um tratado de amizade entre a
!IU
o navio estava esperando. Comecei franceses. Dos 228 mil que passaram
então a compreender que com aquele pelos campos de concentração alemães
senhor era difícil discutir..." (contado por motivos políticos ou raciais, apenas
por Georges Bernanos em 1947, pouco 28 mil conseguiram sobreviver. Foram
antes de sua morte, publicado por 30 mil os reféns retirados das prisões
L 'Express, novembro de 1970). francesas e fuzilados em represália. Os
comunistas tiveram 75 mil tombados
em combates ou fuzilados por represá-
Os trágicos números lia, entre os quais numerosos dirigentes
e personalidades notáveis. O PCF ga-
nhou para si o glorioso título de Parti-
da guerra do dos Fuzilados'.
f
82
83
governo de Vichy. É o próprio Thorez quem impõe às organizações
de esquerda a dissolução das milícias e a entrega de todas as armas
ao exército - única força habilitada a agir, para todos os efeitos,
em nome do Estado. Em meados de dezembro de 1944, quando to-
dos, na França, já alimentam a ilusão de que a guerra está no fim, os
alemães contra-atacam na frente das Ardenas e rompem as linhas
aliadas. Eisenhower expede a ordem de evacuar a Alsácia e Strasbur-
go. Mas De GaulIe se recusa a "abandonar ao inimigo um pedaço
de território francês" e impõe ao primeiro exército do Gen. de Lattre
84
85
os aliados não demonstraram ter a mesma opinião sobre este último
ponto. Para a Conferência de Ialta (fevereiro de 1945), onde se deci-
diu a futura ordem do mundo, a França não foi convidada. E se con-
seguiu obter uma pequena zona de ocupação na Alemanha, deve-o
unicamente aos insistentes pedidos de Churchill, que se sente es-
magado entre os colossos russo e americano. A morte de Roosevelt
(abril de 1945), aparentemente, não modifica a situação, ainda que
Truman não nutra por De Gaulle a antipatia de seu predecessor.
A França, com efeito, não é convocada nem para a Conferência de
86
, I jJ . , ~
"'1 ,I I I, I· I, '1
Potsdam (julho-agosto de 1945), mas em compensação é admitida a
assinar também as decisões: discretamente reingressa no rol das gran-
des potências. Por seu turno, De Gaulle procurou recuperar o tempo,
com um engrandecimento territorial e com a retomada do controle
do império colonial. Mandou ocupar militarmente o Vale d'Aosta,
mas tanto a oposição dos civis como a de Truman o fizeram retroce-
der. Em maio de 1945, tentou recuperar o controle sobre a Síria
e o Líbano, esbarrando com a inesperada hostilidade dos ingleses,
que apóiam o desejo de independência da população local. Ainda
87
em maio de 1945, sufocou com as armas duas manifestações de par-
tidários da independência argelina em Sétif e em Guelma. A seguir,
em outubro, envia o exército colonial de Leclerc à reconquista da
Indochina. Não obstante os acordos assinados, a 6 de março de
1946, pelo enviado especial Jean Sainteny com Ho Chi-Minh, e
graças aos quais ficou reconhecida a independência da República do
Vietnam, em novembro o Alm. d' Argenlieu manda bombardear o
porto e a cidade de Haiphong. O Viet-Minh responde com a guerri-
lha. É o início do drama da Indochina que terminará em 1954. li
88
I1 1I 1 111111111
ali 11 I I 111
A loteria da morte
oficial !~É um tempo de extrema desordem, de
assassínios, de depredações, de saques.
Declarações do ministro chanceler ao Os tribunais, aparelhados com uma le-
parlamento: Até o presente momento
H gislação retrógrada, dominados pelos
foram abertos 125.243 inquéritos infor- júris dos civis, punem as mesmas culpas
mativos. Destes, 46.997 foram transfe- com penas que variam segundo os luga-
ridos aos tribunais militares, 21.304 aos res" - escreve Alfred Fabre-Luce (ob.
tribunais civis e 41 mil foram arquiva- cit.), HÉ uma loteria onde se pode ga-
dos. As cortes criminais emitiram 44.737 nhar a morte ou a absolvição, de acor-
sentenças condenatórias, as civis, apro- do com as relações que se mantém com
ximadamente 575.824 (aos 21.304 in- o Partido Comunista. Uma frase típica
quéritos se ajuntou grande número de de De Gaulle define o valor exato de
denúncias dos Comitês de Libertação. tal procedimento. Quando Stalin lhe
Atualmente, restam ainda 15.852 casos pediu, em Moscou, para não mandar
para exame. Eis as sentenças dos tribu- prender Thorez, o desertor, o general
nais penais: 4.783 penas de morte; 1.796 lhe respondeu: 'O governo francês tra-
91
Gaulle quer governar a seu modo, sem ter as mãos amarradas por
ninguém; no entanto se esforça para que seja criado um regime
presidencial, com um forte executivo, responsável perante o presi-
dente da República e não perante o Parlamento. Em suma, um regi-
me que ponha a França a salvo das contínuas crises ministeriais que
atormentaram a vida da III República. Os partidos, no entanto, são
por uma participação imediata na gestão dos negócios públicos -
que De Gaulle controla como um patrão - e por um regime parla-
mentarista. Submete-se o problema institucional a um referendum
ta os franceses segundo os serviços que Brasillach. São dois casos por demais
deles se espera.' " clamorosos, de pessoas para as quais
entram em jogo as razões de Estado, ou
que concernem à sua própria legitimi-
Fazemos as dade. No entanto, ele intervém quando
se trata dos inumeráveis processos que
coisas em regra se realizam em todo o país. Mas sua
intervenção jamais é pública. Se ma-
nifestasse, abertamente, sua clemência,
Respondendo a uma entrevista televi- teria esbarrado em obstáculos intrans-
sionada, François de Menthon, supre- poníveis, sobretudo as reações da opi-
mo ministro da Justiça da França liber- nião pública e da Resistência. Clandes-
tada, respondeu: "Nos dias que prece- tinamente, no seu gabinete presidencial,
deram ou imediatamente seguiram mi- em presença do único magistrado em
nhaposse houve, efetivamente, certo quem tinha confiança, Patin, De Gaulle
número de execuções sumárias e de anulou, ou pelo menos atenuou, dois
paródias de justiça. Mas, desde o início, terços das condenações" (R. Aron, De
nosso primeiro objetivo foi o de instalar Gaulle, ob. cit.).
Cortes de Justiça regulares" (em Mé-
moires de Votre Temps, Calmann-Lévy,
1967). Claude M auriac:
De Gaulle e o expurgo
"Preocupação e Angústia"
"Nestes dias, De Gaulle tem uma fisio-
A graça clandestina nomia preocupada. E, sem dúvida, tem
motivos para estar angustiado. Sobretu-
HDe Gaulle jamais intervém quando se do por aquele seu direito de conceder
trata do processo de alguma grande indultos, que inclui também o dever de
vedeta da colaboração com os nazistas não abusar dele, direito que em sua
ou do governo de Vichy. Não concede- grande consciência não quer delegar a
rá graça a Pétain e deixará executar ninguém, nem mesmo parcialmente."
92
popular, que se realiza no dia 21 de outubro de 1945, conjuntamente
às primeiras eleições políticas do após-guerra. Três doutrinas se
entrechocam: a comunista: eleição de uma assembléia constituinte e
legislativa, sem limite de tempo e dotada de todos os poderes; a de
De Gaulle, dos católicos do MRP e dos socialistas da SFIO, que aceitam
a eleição de uma constituinte, mas com poderes limitados, para sete
meses apenas, depois dos quais o projeto de constituição deverá
ser aprovado por um referendum popular. E, por fim, a dos conserva-
dores, que exigem o retorno puro e simples à constituição da III
93
República. A resposta popular: 96% rejeitam o retorno à 111 Repú-
blica e 660/0 aceitam a tese gaullista sobre a limitação dos poderes.
Vencido no referendum, o PCF ganha terreno no plano eleitoral, con-
quistando mais de 5 milhões de votos e 160 cadeiras na Assembléia,
contra 152 do MRP e 142 da SFIO. É agora o principal partido fran-
cês e se prepara a dar combate, na área parlamentar, ao superpoder
de De Gaulle. Contudo, o PCF também vota em bloco, com todos os
outros alinhamentos políticos, pela nomeação de De Gaulle para
chefe do Governo Provisório (13 de novembro). A composição do
lU ! U III
94
.,
ministério, porém, de súbito se revela dificílima, por causa da exi-
gência comunista que pretende obter um dos "ministérios chaves" -
da Guerra, do Interior ou do Exterior - os quais, ao contrário, De
Gaulle não quer, absolutamente, conceder-lhes. O general ameaça
pedir demissão, e o PCF é constrangido a dar marcha à ré. Afinal, as
duas "forças" encontram o meio termo: os 'comunistas não terão o
ministério exigido, mas conseguem, assim mesmo, cinco postos im-
portantes no governo. No dia 21 de novembro, a Assembléia aprova
o primeiro governo de De Gaulle. Mas não demora muito e come-
dúvida, um grande homem, como Lady biciosas. Ele não aceitara a oferta de
Macbeth foi certamente uma grande tornar-se o chefe de um partido, porque
mulher, mas inutilmente suplicava que não lhe interessava a dignidade simbó-
a mancha de sangue se apagasse de suas lica de um chefe de Estado que 'reina
mãos. Exatamente como toda a glória mas não governa'. Queria ambos"
de De Gaulle não poderá, jamais, apa- (Lüthy).
gar a mancha que o envergonha pelo
modo como tratou o homem que, em
seu tempo, tinha como ele salvado a Os comunistas salvam
França" (Citado por Isorni, ob. cit.). o regime capitalista
95
çam os choques entre o general e o Parlamento. A 31 de dezembro,
para conseguir a aprovação do item que destina 28 por cento do
orçamento da nação às Forças Armadas, De Gaulle se vê obrigado,
mais uma vez, a recorrer à ameaça de demissão. O fato é que ele
pensa em reconstruir a grandeur da França e em recuperar o império
colonial, enquanto os parlamentares prefeririam que se fizesse maior
esforço para a reconstrução econômica e social da nação, que saiu
esgotada da guerra. Outro motivo de atrito entre De Gaulle e o Par-
lamento: a Assembléia quer elaborar o projeto de constituição que
96
97
-
'
.. ".'.'... ..
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QUANDO ASSINA A DEMISSÃO, De Gaulle está convencido de que o
povo se insurgirá imediatamente para levá-lo de volta ao poder,
apesar dos "políticos sujos", como define agora com desprezo os
homens dos partidos. Pelo contrário, não acontece absolutamente
nada. O povo está cansado e se preocupa mais com a soupe do que
com a grandeur, e os problemas institucionais. "Les français sont des
veaux", comenta com amargura o general, em seu retiro. E se enclau-
sura em seu enorme desdém. Mas alimenta a certeza de que logo te-
rão necessidade dele. Está realmente convencido de que a terceira
99
Guerra Mundial - travada entre russos e ocidentais, pelo predomí-
nio do mundo - já esteja às portas. Quando os cossacos chegarem às
margens do Sena, os franceses mais uma vez se agarrarão à bandeira
dele. É geral o temor de uma nova guerra. A ruptura entre o Leste
e o Oeste e o início da guerra fria desencadearam em todo o Ociden-
te, e particularmente na França, um verdadeiro terror pelo comu-
nismo. E muitos se aproveitam da situação. Impelido por alguns dos
velhos companheiros fiéis, o general decide retornar à arena política,
para lutar contra o "regime dos partidos". Depois de uma série de
li} Uli
100
discursos inflamados e vigorosos, a 7 de abril de 1947 funda em
Strasburgo o partido Rassemblement du Peuple Français (RPF). Os
primeiros objetivos do Rassemblement são: obter uma revisão
da Constituição de 1946 e levar De Gaulle ao poder. Para o RPF
afluem maciçamente as forças anticomunistas do centro e da direita
e, logo em seguida, também todos os elementos que haviam sustenta-
do Vichy. O RPF obtém um estrondoso triunfo nas eleições munici-
pais de 19 de outubro de 1947, nas quais recolhe quase 40% dos sufrá-
gios. Os comunistas e os socialistas. no entanto, sofrem perdas limi-
Rua Solferino, conspira a seu modo, controlando as coisas. Era preciso pro-
isto é, à maneira militar e imprecisa. vocar uma avalancha que arrastasse tu-
Depois, para encurtar caminho, empu- do consigo e o conduzisse ao poder para
nha a trombeta e faz ressoar o apelo do realizar tas grandes e simples metas,
RPF" (Georges Suffert, L 'Express, 16- sobre as quais todos os franceses estão
22 de novembro de 1970). fundamentalmente de acordo': a ordem
no Estado, a disciplina no trabalho, a
comunidade nacional, o restabeleci-
Quer provocar mento do Império Francês e da gran-
deza da França... t, (H. Líithy, ob. cit.).
uma avalancha
"Urna vez que o Reagrupamento não
Nuremberg!
devia ser um partido, pois nele podiam
entrar todos os franceses, ele aceitava
também a adesão dos que já tinham
Nuremberg!
compromisso com determinada facção
- exceto a dos comunistas, a quem De No livro de memórias Si je mens (Stock,
Gaulle chamava agora de 'separatistas' 1972), a jornalista Françoise Giroud se
e excluía da comunidade nacional. Na pergunta a respeito de De Gaulle: "Era
inundação que se provocou entraram um grande homem? Durante a guerra
também todos os elementos reacioná- foi mais que isso. Foi o Símbolo. Tam-
rios que se lançam com fanatismo em bém, com aquele nome fantástico! Em
qualquer cruzada contra-revolucioná- seguida, você imaginou que ele era fas-
ria e os colaboracionistas que De Gaul- cista, não é verdade? De Gaulle fascis-
le odiara como a peste, e aos quais pare- ta? Jamais! Desafio todos a me aponta-
cia prometer agora, sob sua bandeira, rem uma palavra nesse sentido, escrita
uma ine-sperada desforra contra a abo- nos meus artigos... Depois da guerra,
minável República. Mas não era esse o vi-o de novo por ocasião da criação do
momento indicado para ficar pesando e RPF. Eu estava com Pierre Lazareff,
101
tadas, enquanto o MRP, os radicais e a direita são aniquilados. Infe-
lizmente para De Gaulle, trata-se apenas de eleições municipais. O
poder do Estado continua nas mãos do velho Parlamento, que será
renovado somente em 1951. O general, com um discurso violento,
a
procura acelerar os tempos, pedindo dissolução das câmaras que, ft
11 II li
102
ram fileiras e defendem a República com a espada em riste. E fa- °
zem em duas frentes. Contra a direita gaullista e a esquerda comunis-
ta. Já em maio de 1947, o PCF havia sido afastado do governo. Em
dezembro do mesmo ano, a interminável onda de greves e sabota-
gens organizadas pela esquerda é estancada pela força do governo
Schuman. Com isso, os magnatas e muitas forças políticas se dão con-
ta de que o gaullismo não é, absolutamente, indispensável para
salvar a França da "su bversão vermelha". Além do mais, em seu
programa, o RPF insiste no tema da associação Capital-Trabalho,
103
tema que é acirradamente combatido pelos patrões. Assim, no mes-
mo ano do grande triunfo, começa o lento refluxo do RPF, que de
eleição a eleição continua a perder votos. E nas eleições legislativas
de 16 de ju nho de 1951, que deveriam permitir-lhe conquistar o poder
no Parlamento, o partido de De Gaulle obtém somente 17% dos vo-
tos, contra 200/0 dos comunistas, 11 % da SFIü e 100/0 do MRP. A pro-
metida "marcha sobre os Elísios", residência oficial do presidente
da República não se realizará. Bem cedo, muitos deputados gaullis-
tas se cansam da estéril "oposição a todo custo" e da política segun-
104
..
do a qual "quanto pior, melhor", imposta por De Gaulle - que,
nessas alturas, só pode esperar a reconquista do poder caso aconteça
um "desastre" nacional. Eles se "corrompem" e entram no jogo
parlamentar. A 6 de março de 1952,27 deputados do RPF prometem
fidelidade ao governo de direita de Antoine Pinay. Em conseqüên-
cia da "excomunhão" do general, 26 deles são obrigados a pedir
demissão do partido. Mas isso é apenas o início da derrocada. Um
ano depois, De Gaulle põe fim à experiência parlamentar, retirando
a sigla RPF e deixando livres seus deputados. O general se retira
pensável para aquilo que estava escre- glória" (La Vie des Métiers, - ~tA Vida
vendo. Procurava reencontrar seu mo- Profissional" -, 1960).
do de pensar sobre a época que des-
crevia" . Claude Roy: HDe Gaulle é um dos gran-
des escritores latinos da língua francesa,
que escrevem em fórmulas romanas a
De Gaulle como César história da França" (Monique Mounier,
ob. cit.).
Emile Henriot: HÜ De Gaulle escritor
possui esta virtude: como nos maiores Pierre de Boisdeffre: HDe Gaulle escre-
homens que empunharam a pena, Cé- ve teu', quando exprime suas opiniões,
sar, Vauban, Napoleão e Lyautey, a es- mas quando indica as opiniões que os
crita - que o revela todo inteiro em seu outros têm dele, olha-se de fora e diz
caráter e em sua fé profunda - é ape- fDe Gaulle" com a mesma naturalidade
nas uma das formas de ação... Hegel, La com que César dizia César' " (M. Mou-
f
105
para Colombey, onde escreve suas Mémoires. É o período que a
"iconografia" gaullista recorda como sendo "a travessia do deserto".
O general, porém, volta semanalmente a Paris. Sua última grande ba-
talha, De Gaulle a trava contra o CED, o exército integrado europeu,
no qual, segundo ele, as tropas francesas "perderiam sua personali-
dade". O Parlamento rejeita o CED. Em 1956, De Gaulle anuncia
seu afastamento definitivo da política. Contudo, antes de sair, lem-
bra aos franceses que estará pronto a intervir diretamente, não PP
106
108
109
acordos com os argelinos - está prestes a formar o novo governo, a
Argélia branca se insurge. O Gen. Massu e os militares assumem o
controle do Comitê de Salvação Pública, que se propõe impedir a
"traição e o abandono da Argélia". A 15 de maio, falando à multi-
dão, o Gen. Massu conclui seu violento discurso, gritando: "Viva a
Argélia Francesa! Viva o Gen. De Gaulle!" É um ·convite-ultimato
ao governo de Paris, a fim de que liquide o regime parlamentar e
coloque outra vez no poder o "homem da providência". Na verdade,
o nome de De Gaulle foi escolhido somente após uma série de can-
11
110
I II~ b il, JI .. , ...1" i .•. ilt I ;'"_,. .I. __,...... _l.I,.,JoLL.._Lo~~._lo.L",.=...cill,..• ·_.·;_.,'
sativas discussões entre Massu e alguns emissários gaullistas. Na
França, a paralisação é total e o governo não encontra melhor saída
que a de confiar ao próprio Massu a manutenção da ordem pública
na Argélia. Além disso, teme-se que a revolta se estenda a outros lu-
gares, como de fato aconteceu no dia 24 de maio, quando ela "con-
qu ista" a Córsega, enquanto se realizam consultas nervosas entre
órgãos do Estado, políticos e De Gaulle. O general mantém um
comportamento absolutamente indecifrável: declara-se disposto a
assumir os poderes do Estado (15 de maio), mas não assume nenhu-
111
ma posição oficial. ffS OU um homem que não pertence a ninguém
e pertence a todos", afirma a 19 de maio. E agora todos o chamam:
o exército e os nacionalistas, como o "salvador da Argélia"; o
Parlamento e a opinião pública, como o mal menor, o eventual
"salvador da pátria", livrando-a de um golpe de Estado militar-fas-
cista. Sem fazer concessões concretas a nenhum dos interessados,
De Gaulle aceita retornar ao poder. Mas impõe suas condições:
plenos poderes para agir na Argélia e carta branca para fazer uma
reforma constitucional. O Parlamento se curva e entra em recesso. _
I n nn 11
que nos impedia de fugir mais depressa. por ambição. Não dependia dele o ser
Mas existia um homem pronto a reco- chamado de volta mais cedo. Ele devia,
lher os restos de nosso civismo, como necessariamente, voltar. E quem era de
em 1940 recolhera as espadas partidas. opinião contrária em semelhante apu-
Aquele homem sempre estava aí, pron- ro? O instinto de conservação desem-
to a agir. Agora nós o vemos no cume penhou seu papel até mesmo entre seus
da glória e praticamente podemos es- inimigos que, por sinal, foram os primei-
quecer seus tenazes esforços para sair ros a chamá-lo de volta... " (François
das sombras. Mas nossa pressa de 'su- Mauriac, ob. cit.).
mir' era tão grande que teríamos larga-
do nas mãos de qualquer um os frag-
mentos de poder que ainda detínhamos.
Talvez até um cabo de vassoura, enci- Recusa a
mado por um capacete de bombeiro ou
um macaco dos trópicos, usando o
uniforme dos porteiros do 'Chez Ma- ditadura
xim's' teriam, por sua vez, tirado provei-
to, naquele momento, de nosso abando- "De Gaulle podia tornar-se ditador.
no da soberania!" (François Fonvieille- Mas, ao contrário, recusou a investidu-
Alquier, Réapprendre l'Irrespect, La Ta- ra no poder pelas forças armadas e a
ble Ronde, Paris, 1966). exigiu pelas vias da legalidade democrá-
tica. Impôs uma única condição: que a
República de tipo parlamentarista e
Seus inimigos o partidocrática fosse transformada em
República do tipo presidencialista"
chamaram de volta (Randolfo Pacciardi, Protagonisti Grandi
e Piccoli, - "Grandes e Pequenos Pro-
tagonistas" - , Ed. Barulli, 1972).
"De Gaulle se encontrou no centro de
acontecimentos turbulentos, como os o presidentefrancês durante
de 13 de maio, mas certamente não foi uma cerimônia pública.
112
A ARGÉLIA. De Gaulle forma um governo de ampla coalizão e pro-
cura, imediatamente, agarrar o touro pelos chifres: no dia 4 de junho,
parte para a Argélia. Às milhares de pessoas que acorrem para rece-
bê-lo grita: HEu vos entendi!" Apenas uma vez deixa "escapar" o
grito: "Viva a Argélia Francesa!", no dia 6 de junho. Mas logo se
apressa em afastar-se dos próprios correligionários, exige a dissolu-
ção dos Comitês de Salvação Pública e a restauração do Estado em
todas as suas prerrogativas. No dia 23 de outubro, De Gaulle propõe
à FLN a "paix des braves", Na prática, era um ultimato sem garantias:
114
I 111, II ' '11 ·1 "1 I " , ... c I ,. ,lO"',,'.,, ".,,, ..~ ,,' ,,'
cessem o fogo e depois veremos. A proposta é rejeitada. O general
procura então solucionar a "confusão argelina", arquitetando um
grande plano de reformas econômicas e legislativas. Mas almeja,
sobretudo, uma estrondosa vitória militar. Por isso, em julho de
1959, autoriza uma imponente operação de "limpeza", confiada às
ordens do novo chefe do exército colonial, o Gen. Challe. Mas a
operação não atinge o efeito desejado. De Gaulle compreende que a
vitória militar já não é mais possível e inicia uma cautelosa retirada.
A 16 de setembro de 1959, reconhece num programa de televisão o
115
direito dos argelinos à autodeterminação: após a "pacificação", serão
chamados a escolher, com um referendum, entre secessão, afrancesa-
mento, ou associação. Exército, colonos e partidários da Argélia
Francesa sentem-se como que apunhalados pelas costas. O Gen.
Massu publica num periódico alemão algumas declarações audazes,
sendo afastado imediatamente do cargo. A exoneração de Massu
provoca novo incêndio em Argel. Algumas centenas de civis, co-
mandados pelo deputado Lagaillarde, tentam repetir o Putsch de
1958. É a "semana das barricadas", janeiro de 1960. Mas desta vez
116
llIt mrIIUfIlf."
117
anuncia o início das conversações com a FLN. Já é demais para os
ee extremados" argelinos. A 22 de abril, os generais Challe, J ou haud,
118
119
o NASCIMENTO DA V REPÚBLICA. De Gaulle foi chamado de volta ao
poder a fim de resolver a espinhosa questão argelina e os partidos
esperam que ele se retire, uma vez cumprida sua "missão" Mas não o.
121
1958. Por esse motivo impusera, como condição essencial para seu
retorno, uma revisão constitucional. No entanto, a constituição que
manda elaborar durante o verão revela inesperada moderação, firme
vontade de não romper bruscamente com o regime dos partidos, pelo
menos no momento. No projeto, o presidente da República não se
torna ainda o "dono do Estado", mas permanece como um "árbitro",
acima dos partidos. Conquista, sem dúvida, novos poderes, como o
de nomear o primeiro-ministro e o gabinete, sem que o Parlamento
deva ratificar sua escolha. Obtém uma ampliação do poder de dis-
m7 !il[ I L I] I
gelho, e não creio que tal dilema lhe te- qual seria a política da França em de-
nha torturado a consciência. Maquiavel terminada questão. Ele respondeu: 'Sei
não está de acordo com o Evangelho, e qual era há cerca de meia hora, quando
De Gaulle se inspirou mais de uma vez saí de uma reunião com o general, mas
nas máximas do teórico florentino" não sei qual é exatamente agora' " (ob.
(M. Costa, ob. cit.). cit.).
ro..J ,
É UM MONARCA IMPASsíVEL
NAO, E UM
Gunther: "Encontrei-me com De Gaul-
le várias vezes. Quando quer, sabe ser
o homem mais cortês do mundo. Mas
COMEDIANTE
sabe também ser dominador. Todas as
vezes que o vi sempre me despedi dele "Homem de Estado, sem dúvida, o Gen.
pensando que sua característica princi- De Gaulle também é; além do mais,
pal é a impassibilidade. É impossível homem de eloqüência, de letras e de
não perceber sua frieza, seu ar olímpico teatro. É excelente no discurso, no li-
de superior grandiosidade... Suas rela- vro, na encenação. Quem o viu remane-
ções com os colaboradores são quase as jar, corrigir, redigir vinte vezes o texto
de um monarca e, pior ainda, de um de um comunicado qualquer, tem a cer-
monarca bastante arrogante. Quase teza de se encontrar na presença de um
nunca ouve conselhos e só raramente artesão da linguagem, extremamente
comunica suas intenções aos subordina- sensível às suas variações. Ator e dire-
dos. Ninguém exerce influência alguma tor, é capaz de suscitar o entusiasmo do
sobre ele". ~O único ponto fraco do ge- público com tiradas que, relidas com
neral - parece que um dos funcioná- calma, jamais conseguem o mesmo efei-
rios de seu gabinete chegou a comentar to. Sabe dramatizar um caso para tirar
certa vez - é que ele não é humano.' dele o maior proveito possível" (J.
Perguntou-se a um importante ministro Soustelle, ob. cit.).
122
I I. L. I. ; •• , J 1I . 11 ~ I
solver a Assembléia e a possibilidade de submeter certas leis ao
referendum popular. E, além disso, recebe também plenos poderes,
em caso de grave perigo para a nação. Mas, fundamentalmente, o
presidente continua sendo um "eleito dos notáveis", isto é, de um
restrito colégio eleitoral formado por aproximadamente 80 mil pes-
soas (dos parlamentares aos conselheiros municipais). Com efeito,
os partidos jamais aceitariam sua eleição pelo sufrágio universal, que
faria do general uma espécie de monarca republicano. A nova cons-
tituição é aprovada no referendum de 28 de setembro de 1958, com
".
rio. Por esse motivo, na noite de 30 de
UM CDMILAD novembro o UNR consegue eleger 189
candidatos e os moderados, 130. HA
representação proporcional lhes teria
De Gaulle é Hum bom garfo" - afirma permitido eleger 82 e 94 candidatos,
P. Galante (ob. cit.). "Bastava aproxi- respectivamente, e a esses poder-se-ia
mar-se a hora da refeição para ele se ter ajuntado, no máximo, os 15 deputa-
tornar bem humorado. Geralmente, re- dos da extrema direita. A esquerda está
cebe os hóspedes na biblioteca. Isso é pulverizada: 10 comunistas, 44 socialis-
significativo: a gente sente que está na tas e 23 radicais, enquanto, com o siste-
casa do escritor e não do chefe de Esta- ma proporcional, teriam chegado, res-
do. A seguir, vem o aperitivo: vinho do pectivamente, a 87, 72 e 62 eleitos, o
Porto ou suco de tomate. Mais ou me- que significaria um total de 221, em vez
nos às 13h 30m vai para a mesa e às das 77 cadeiras realmente conquista-
14h 20m a refeição já terminou. O gene- das" (Pierre Viansson-Ponté, Htstoire de
ral não gosta de esperar entre um prato /a Répub/ique Gaullienne, - "História da
e outro. Bebe água normalmente e ja- República Gaullista" -, Fayard, 1970).
mais aceita mais de três quartos de copo
de Bordeaux".
DE GAULLE
Os primórdios
da V República
PRESIDENTE
De Gaulle: HNo dia 8 de janeiro de 1959,
Para as eleições primárias legislativas apresento-me nos Campos Elísios para
da V República, o Conselho de Minis- assumir minhas funções. O Preso René
tros adota o sistema de escrutínio uni- Coty me recebe com gestos cheios de
nominal em dois turnos, rejeitando tan- dignidade e com palavras comoventes.
to o sistema de representação propor- '0 primeiro dos franceses, - diz ele -
cional, como o do escrutínio maioritá- é agora o primeiro na França! ... A milti-
123
79,5% dos votos. É o dia do nascimento da V República. A 19 de ou-
tubro, os partidários de De Gaulle se unem num único partido polí-
tico, a UNR (Union pour la Nouvelle République}. A reforma consti-
tucional exige novo Parlamento. Nos dois turnos das eleições legis-
lativas de novembro, a UNR alcança grande vitória, enquanto o
centro e a esquerda desabam fragorosamente. Os comunistas ele-
gem apenas dez deputados! E no dia 21 de dezembro, De Gaulle é
eleito presidente da República, "investindo" como primeiro-minis-
°
tro, a 8 de janeiro de 1959, fiel Michel Debré. É uma escolha que
dão grita: 'Obrigado, Coty' e 'Viva De nheciam que De GauIle continua sendo
GauIle!' Entrando no palácio do gover- o homem mais capaz de assegurar ao
no, sinto fecharem-se às minhas costas regime um funcionamento normal e
todas as portas. Agora sou prisioneiro democrático".
do meu cargo" (Mémoires d'Espoir, ob.
cit.). Le Figaro : "O soldado se tornou mais
dócil... Compreendeu a importância dos
ritos" .
OS COMENTÁRIOS PETIT-CLAMART. 22 DE AGOSTO DE 1962
DA IMPRENSA
o ATENTADO CONTRA
Le Monde: "Assim De GauIle assume
hoje a função de presidente da Repúbli-
DE GAULLE!
ca, de acordo com uma constituição
que, feita por ele e para ele, foi ratifica- A partir de 1960, contam-se pelo menos
da por imensa maioria no dia 28 de se- onze atentados, ou coisa parecida, (;on-
tembro. Muito mais que o texto da tra a vida de De Gaulle. O mais grave é
Constituição, o espírito de seu autor o ocorrido em Petit-Clamart, em 22 de
modelará a República. Na realidade, agosto de 1962. Um comando da OAS
será ele quem vai governar por inter- criva de balas de metralhadora o carro
médio do primeiro-ministro" . presidencial. Uma bala fere levemente
De Gaulle. O chefe do comando, Cel.
Bastien Thiry, será condenado à morte
Paris-Journal: "A IV (República) 'par- e justiçado no dia 11 de março de 1963.
te' feliz, a V chega sob a égide de um
dos maiores homens de Estado da nossa Rumo ao regime presidencial
História" .
De Gaulle: "Há muito tempo estou con-
Le Populaire: "Confiando a ele o mais vencido de que o presidente da Repú-
alto cargo do novo regime, todos reco- blica deve ser eleito, diretamente, pelo
124
~ I I ~ I ~, I ai , ~ ; j
indica claramente a vontade do general de não se limitar, simples-
mente, à função de arbitragem". Suas intervenções na gerência dos
H
voto popular. Designado - único entre Portanto, cada 'sim' custou cerca de
todos - pela maioria dos franceses, po- 1,13 francos" (Robert Rocca, ob. cit.),
deria ser de fato, por força de tal no-
meação, o 'homem do país', investido
perante todo o povo e perante si mesmo Paciência
da imensa responsabilidade, que os pró-
prios textos da Constituição lhe atri-
buem. Além disso, é claro, deveria pos-
e Astúcia
suir a vontade e a capacidade de as-
sumir as honras do cargo. Isso, eviden- Assim como no problema argelino, tam-
temente, a lei não pode garantir... Mas, bém para a renovação da constituição,
ao contrário, o sucesso só é possível no Charles De Gaulle procedeu astuta-
caso de a capacidade encontrar seu pró- mente, por etapas. Eis o que ele mesmo
prio instrumento; não há nada pior que revelou a André Passeron (ob. cit.), em
um sistema em que a qualidade é des- 1966: HS e em 1958 eu tivesse afirmado
perdiçada pela incapacidade" (Mémoi- que era necessário que o presidente da
res d'Espoir, ob. cit.). República governasse, ninguém teria
aceitado a idéia! No entanto fazia mui-
125
tro um homem que nunca chegou a ser nem deputado e que deve
seus títulos de nobreza unicamente ao fato de pertencer à "roda"
do presidente: Georges Pompidou. Agora torna-se manifesto que,
para De Gaulle, o primeiro-ministro deve exercer apenas a função
de "grand commis", isto é, de funcionário encarregado de executar
a política do chefe de Estado. É uma decisiva mudança de rumo
no panorama institucional francês, mas por ora está ainda ligada à
personalidade excepcional de De Gaulle. Quando tiver desapareci-
do, seus sucessores estarão à altura de manter tais poderes contra
II
126
a vontade dos "políticos"? Talvez sim, se o presidente da República
não fosse eleito pelos políticos, mas diretamente pelo povo, tirando
dessa investidura sua força. E para tornar mais "atual" o problema
da sucessão presidencial, acontece o atentado da OAS contra a vida
do general (22 de agosto, em Petit-Clamart). Fortalecido pela emo-
ção que o episódio causa em toda a França, De Gaulle anuncia pela
televisão que tem a intenção de proceder a nova reforma da Consti-
tuição, recorrendo diretamente a um referendum popular. Com isso
passa por cima da norma constitucional que exige uma votação pré-
127
via do Parlamento, onde o projeto não passaria "nunca. Contra as
intenções presidenciais, manifesta-se imediatamente a oposição de
todos os partidos, incluindo até a de alguns membros da UNR. "De
GaulIe quer a ditadura!" - gritam todos. A 4 de outubro, o Parla-
mento aprova, por 280 dos 480 votos, uma moção de censura contra
o governo. Pompidou é obrigado a pedir demissão. De Gaulle res-
ponde imediatamente, dissolvendo a Assembléia. Após uma acirrada
campanha, realiza-se o referendum no dia 28 de outubro de 1962.
Mais uma vitória para De Gaulle. Seu projeto é aprovado com 62%
128
J .• IJ
dos votos. As eleições legislativas para a renovação da Câmara, rea-
lizadas no mês seguinte, confirmam a tendência do voto anterior,
pois os deputados da UNR passam de 189 para 222. A 27 de novem-
bro, De Gaulle torna a nomear Pompidou como primeiro-ministro. A
reforma constitucional imposta pelo general é testada pela primeira
vez nas eleições presidenciais de dezembro de 1965. Após muitas
hesitações, De Gaulle decide apresentar-se novamente como candi-
dato. Mas, para vencer desta vez, deve aceitar submeter-se à votação
contra o candidato da esquerda, François Mitterrand. E vence. _
o currículo 200.
Visitas a municípios: 2.500.
Visitas a departamentos: 94.
Franceses 'vistos' no decurso das via-
do Presidente gens: 15 milhões.
Audiências com conselheiros gerais:
400.
"Dizem que não consulto ninguém. Pois
vejamos um pouco como andam as coi- Audiências com pessoas 'notáveis':
sas !"
100. ooo.
Discursos ao ar livre: 600.
. Eis seu balanço até o dia 1Q de setembro Apertos de mão: incontáveis.
de 1965: (Citado por Robert Rocca, ob. cit.).
129
A POLÍTICA DA GRANDEUR. Em fins de 1958, a situação econômica
francesa é precária. De Gaulle, que não é especialista em economia,
deposita inteira confiança no ministro das finanças, Pinay, e numa
comissão de especialistas, dirigida por Jacques Rueff. Pede somente
que ajam depressa. O plano de saneamento econômico entra em vi-
gor no fim de dezembro. Prevê novas taxas, redução das subvenções
estatais aos lavradores, flutuação do franco, desvalorização de
17,55%, facilidades para o comércio exterior. O peso maior dessas re-
formas devem suportá-lo as classes operárias e, por isso, o ministro
131
socialista Guy Mollerapresenta, imediatamente, seu pedido de de-
missão. No fim das contas, porém, De Gaulle nunca se interessou
muito pelos problemas econômicos - uma lacuna em sua imagem
de líder político - , absorvido como está pela "missão" que se impôs:
restituir à França o lugar que lhe cabe no mundo e aniquilar a iníqua
"hegemonia mundial dupla" russo-americana, nascida em Ialta. Mas,
para desempenhar uma política de grande potência, a França deve,
antes de tudo, livrar-se dos embaraços do império colonial que ainda
lhe resta na África e que ameaça arrastá-la para novos conflitos, se-
cançaria com essa operação, o guia dos ceder discretos empréstimos. É um óti-
países do Terceiro Mundo" (Giampao- mo negócio para os africanos. Mas para
lo Calchi Novati, Panorama, 19 de no- a França as vantagens são poucas. Os
vembro de 1965). africanos embolsam o dinheiro e gas-
tam-no como bem entendem, pois a aju-
da é dada sem exigências de préstimos
Maso recíprocos" (Mário Costa, ob. cit.).
coracão
•
sofre Protesto dos lavradores
franceses:
De Gaulle: "Preciso vencer a angústia
que me invade quando resolvo delibera- nCARLITOS, QUEREMOS O
damente pôr fim a um domínio colonial DINHEIRO!"
que já foi glorioso, mas agora seria per-
nicioso. Creio que o povo me ouvirá. "Quando De Gaulle visitava o interior
Chegado o momento, perguntar-lhe-ei do país para reavivar sua popularidade
se me dá razão ou me condena. Nessa em declínio, os camponeses freqüente-
hora, a sua voz será para mim a voz de mente lhe gritavam: 'Charlot, des sous'
Deus" (Mémoires d'Espoir, ob. cit.). Os franceses pagavam por um decênio
de sonhos de grandeza gaullista, os
QUANTA BENEFICÊNCIA quais haviam anteposto o prestígio in-
ternacional da França a qualquer outra
PARA OS AFRICANOS! exigência econômica e social" (Massi-
mo Conti, art. cit.).
"Depois que o vínculo jurídico da Co-
munidade Francesa se tornou mais fra- HEm 1963, a ajuda foi de I bilhão e 400
co, De Gaulle procurou substituí-lo milhões de dólares, o que equivale a
pelo vínculo sentimental, auxiliado pelo 2,5 % da renda nacional. Ao mesmo
fato de que as classes dirigentes desses tempo, a contribuição da Inglaterra
países falavam o francês ... Para reforçar para o Terceiro Mundo não passava de
o método, De Gaulle começou a con- 1 % da renda nacional; a da Alemanha
132
melhantes aos da Indochina e Argélia. Por felicidade, o problema se
apresenta de fácil solução, porque as várias colônias africanas não
sofrem os mesmos problemas humanos, econômicos e psicológicos
da Argélia, onde vivem 1 milhão de franceses. A Constituição idea-
lizada por' De Gaulleem 1958 transforma a híbrida Union Françai-
se - instituída em 1946 com a finalidade de regular as relações entre
a França e as colônias - em Communauté, uma comunidade livre,
da qual todos os Estados-membros, se assim o desejarem, podem sair
a fim de conquistar pacificamente sua independência. É o que fazem
era de 1,2%; a dos E.V.A., 1%; 0,5% a América não tinha outra saída senão re-
da V.R.S.S." (Dupeux, ob. cit.), jeitar a proposta francesa. E o general
devia saber disso. Na verdade, contava
Uma comissão governamental, dirigida com a recusa..." (François Mauriac, oh.
pelo ex-primeiro-ministro Jeanneney, cit.).
criticou as excessivas despesas em auxí-
lio do Terceiro Mundo. A propósito de De fato, logo em seguida, De Gaulle
tais ajudas o Senador Bonnefous publi- declararia que "o tal memorando era
cou, em 1963, um livro com o sugestivo apenas um meio de pressão diplomáti-
título Les Milliards qui s'Envolent C'Mi- ca. Na ocasião, eu procurava um meio
lhões que se Evaporam"). de sair da Aliança Atlântica e recon-
quistar a liberdade que havia sido alie-
A resposta GauUista - O ministro da nada pela IV República no momento
Cooperação, Jean Foyer, declarou: em que assinou o tratado da OTAN. Por
"Apesar de tudo, nossa política cons- isso pedi a Lua. Tinha certeza de que
titui um dos meios que ainda estão à o pedido não seria atendido... O que os
disposição da França para manter seu anglo-saxões querem é dominar-nos"
explendor naqueles países. Além disso, (citado por J. R. Tournoux, La Tragédie
nós sempre temos uma certa responsa- du Général, - HA Tragédia do Gene-
bilidade perante a História!". ral" -, Plon-Pierre Charron, 1967).
133
praticamente todos, no espaço de dois anos, seguindo o exemplo da
Guiné (1958), que, aliás, se recusou a ingressar na Communauté.
Fortalecido por esta "descolonizaçâo sem dor", o general dá início
a uma política de independência nacional mais decidida: põe nova-
mente em discussão todas as alienações ou limitações da soberania
francesa que seus predecessores concederam em favor de organismos
supranacionais, como a NATO e a Comunidade Européia. Já em
setembro de 1958, De Gaulle exigira, através de um memorando se-
creto enviado aos ingleses e americanos, uma "direção anglo-franco-
I 11
134
americana da NATO", com poderes para elaborar a estratégia de
todo o mundo livre. Na prática, tratava-se de constituir um diretó-
rio tripartido do mundo ocidental, no qual a França teria consegui-
do o direito de veto sobre a utilização do arsenal atômico americano.
A resposta de Eisenhower, e depois também a de Kennedy e a de
Johnson, a esta pretensão será sempre, cabalmente, negativa. E os
ingleses nada mais fazem que apoiar as teses americ.anas. Assim co-
meça o gradual afastamento entre a França e a NATO, chegando
ao rompimento total em 1966, quando os franceses se retiram defini-
dois terços dos franceses têm plena con- mas sim da integração executada pela
fiança na política exterior do Gen. De OTAN, sob o comando americano; em
Gaulle e a aprovam" (François Goguel, estabelecer com os Estados do bloco
10 Anées de Restauration de l'Etat, - oriental, sobretudo com a V.R.S.S., re-
"Dez Anos de Restauração do Esta- lações que visem, inicialmente, à dis-
do" -, France-Forum, 1968). tensão e, posteriormente, ao entendi-
, mento e à colaboração. Além disso,
MARIO COSTA: INCENSO NACIO- quando chegar a hora, proceder do mes-
NAL. A França precisa de incenso e
H
mo modo com a China.. por fim, dotar-
De Gaulle é o turiferário ideal. A polí- nos de um tal poder nuclear que nin-
tica exterior do general é vazia e capri- guém nos possa agredir sem sofrer tre-
chosa. Os franceses, no entanto, pare- mendos reveses" (Mémoires d'Espoir,
cem lisonjeados pelo clamor que as ob. cit.).
iniciativas de De Gaulle suscitam em
todas as capitais do mundo e acreditam
que isso já é para eles um sinal da im- De Gaulle e o exército
portância 'mundial' da França. Na
verdade, a vaidade nacional leva-os a
trocar, facilmente, a forma por substân-
cia. Considerando bem, De Gaulle não A Forca
•
combativa
passa de um coágulo em torno do qual
se agarram as pretensões francesas de
poder". (oh. cit.). Depois de ter sido um dos "inovadores"
da estratégia militar entre os anos de
1925 e 1940, durante toda a guerra mun-
A _dI dI OTAN dial e até seu afastamento da política,
De Gaulle se interessa principalmente
pela política. "Somente após seu retor-
De Gaulle: "Meu plano consiste, pois, no ao poder é que ele define uma nova
em desvencilhar a França, não da Alian- política militar - escreve Jean Plan-
ça Atlântica, a qual julgo que se deve chais em Le Monde, 11-11-1970. -
manter a título de extrema precaução, Apoiando-se nos mesmos princípios que
135
tivamente do pacto. Concomitantemente, De Gaulle incentiva ao
máximo o programa atômico francês, iniciado já durante a IV Re-
pública. E a primeira bomba atômica francesa explode no Saara no
dia 13 de fevereiro de 1960. A 18 de junho do mesmo ano, o governo
consegue do Parlamento a aprovação de verbas especiais para a
criação de uma força combativa autônoma. Tendo sido a última a in-
gressar no "clube atômico", a França se recusa a limitar as expe-
riências. Não participa da Conferência de Desarmamento em abril
de 1962 e não adere ao Tratado de Moscou sobre a renúncia às ex-
havia tentado fazer prevalecer antes da tam apenas quinze minutos para que um
11 Guerra Mundial, ele se esforça por foguete balístico intercontinental lan-
constituir um exército francês moderno. çado pela V.R.S.S. atinja os E.V.A.!
Mais uma vez a qualidade deve superar Está bem, de acordo - replica o Gen.
a quantidade. A força combativa atômi- De Gaulle - , mas eu me recuso a inte-
ca já é o principal instrumento do pode- grar as unidades francesas. Em suma,
rio militar. A tarefa atribuída ao exérci- quero ter a possibilidade de me retirar
to regular e à reserva se restringe ape- para a África do Norte e para o Saara
nas à defesa interna... Mas, como há com nossas tropas. "Seus interlocutores
trinta anos atrás, também hoje, embora ficam embasbacados e murmuram:
por razões diversas, o exército não quer 'Concessões de 1940. A velhice fez o seu
escutar a voz do teórico, pois agora o progresso e o general não é mais recep-
julga superado. E De Gaulle não conse- tivo' .. (citado por Tournoux, La Tragé-
gue ocultar sua indignação". die du Général, ob. cit.).
136
periências nucleares (agosto de 1963). A partir de 1961-1962, De
Gaulle se "vinga" da recusa anglo-americana e inaugura uma política
abertamente antiamericana: reconhecimento da China de Mao
(1964); viagem triunfal à U.R.S.S. (1966); contínuas denúncias con-
tra a guerra do Vietnam, tanto na ONU como nos discursos públicos;
luta contra o dólar; exigência de substituí-lo pelo ouro como base
para os pagamentos internacionais. A "punição" da Inglaterra, no
entanto, é feita através do veto absoluto a seu ingresso no MEC,
veto mantido até que o general se retire da política. Já que o triun-
de ficar fora da Europa e pede sua ad- ca a nível de governo, sem alienação da
missão ao MEC, De Gaulle lança a soberania". A 18 de janeiro de 1962
bomba, declarando aos jornalistas, no é tornado público o plano de De Gaulle
dia 14 de janeiro de 1963: rrA Inglaterra para a Europa (conhecido sob o nome
é insular, marítima, sujeita às suas mu- de Plano Fouchet), que prevê um Con-
danças, ligada a seus mercados, aos selho dos chefes de governo, com a fi-
mais diversos e longínquos países. Exer- nalidade de "unificar a política exterior,
ce uma atividade essencialmente indus- econômica, cultural e de defesa", ten-
trial e comercial, e muito pouco agríco- do, além disso, o domínio sobre as insti-
la. Em poucas palavras, a natureza e a tuições supranacionais já existentes.
estrutura da Inglaterra a tornam funda- O plano já conseguiu o apoio de Fanfa-
mentalmente diferente dos países conti- ni por parte da Itália e de Adenauer por
nentais..." E assim fecha-se a porta do .parte da Alemanha. (Segundo Alex-
MEC para a Inglaterra durante toda a ander Werth, os dois estadistas acha-
Hera De Gaulle". ram que o plano apresentado "ia muito I
137
~
i
virato com os ingleses e americanos falhou, De Gaulle procura subs-
tituí-lo, num primeiro tempo, por uma política de bloco europeu,
baseada numa estreita aliança da França com sua grande ex-inimi-
ga, a Alemanha. Muitas vezes De Gaulle recebe nos Campos Elísios
o Chanceler Adenauer e seus sucessores. Por sua vez, realiza nume-
rosas viagens à Alemanha. Mas a política alemã está por demais
amarrada ao vagão dos E. V.A. para se deixar aliciar pela política
exterior gaullista, motivo pelo qual os pactos franco-alemães se
tornam, bem depressa, letra morta. De Gaulle, então, lança fórmula
u ]JJ 1
138
da "Grande Europa do Atlântico aos Urais" para contrapô-la ao
bloco anglo-saxão e começa a fazer a corte aos países do Leste
europeu. Mas esta é, também, uma fórmula desprovida de real con-
teúdo político e, praticamente, sem futuro. Progressivamente, o
general toma consciência disso e se concentra na orgulhosa (mas de-
missionária) fórmula HA França deve ser ela mesma". Na prática,
uma política individualista, imprevisível, de outsider. E imprevisíveis
são, com efeito, a reviravolta pró-árabe (1967), e o convite à secessão
dirigido aos franco-canadenses. _
Desiludido, De Gaulle tentou então sua que seja o mais influente de nossa épo-
maior jogada, o entendimento com a ca, de tentar lançar-nos numa terrível
V.R.S.S." (Massimo Conti, no artigo ci- guerra civil?".
tado do Panorama).
"Segurei nos braços uma
ft
Franca morta"
O ESCANDALO •
Queria De Gaul1e, realmente, recolocar
a França no rol das grandes nações e,
CANADENSE sobretudo, romper a hegemonia mun-
dial das duas potências, V.R.S.S. e
E. V.A.? Respondendo a um jornalista
Durante sua viagem ao Canadá, de 15 do Herald Tribune, em agosto de 1972,
a 27 de julho de 1967, durante um dis- André Malraux, o mais fiel companhei-
curso em Montreal, De Gaulle grita de ro do general, revelou que De Gaulle
repente: "Viva o Quebec livre! Viva o alimentava Hum sonho grandioso mas
Canadá francês! Viva a França!" Há
desesperado, no qual nem ele mesmo
muito tempo está em plena atividade, acreditava. Tinha, no entanto, a convic-
na província de Quebec, o movimento
ção de ter conseguido demonstrar que
separatista dos canadenses de língua
a França existe e de ter criado uma es-
francesa, que recorrem aos atentados e pécie de lenda épica. Acreditou sincera-
ao terrorismo como armas políticas. mente nisso? Eu não saberia dizê-lo".
Numa nota de protesto, o governo ca-
Ainda segundo Malraux, depois da re-
nadense declara "inaceitáveis" as afir-
volta estudantil de maio de 1968, De
mações de De Gaulle, que decide por
Gaulle teria dito: Aconteça o que
H
isso cancelar sua visita programada para
acontecer à França e ao mundo, eu es-
Ottawa e voltar imediatamente para a
tou esperando a morte. Segurei o cadá-
França.
ver da França em meus braços e fiz o
La Presse, Canadá: "Deixando de parte mundo acreditar que ela estava viva.
qualquer consideração, que direito cabe Mas eu, Gen. De Gaulle, sabia que esta-
a um homem vindo da França, mesmo va morta".
139
As IDÉIAS DE MAIO. Sem dúvida, De Gaulle saiu vencedor na votação
de dezembro de 1965, mas com a margem de votos mais baixa desde
sua volta ao poder. Eis um sinal evidente de que os franceses c~me
çam a sentir-se cansados dele e do "torpor" no qual os submergiram
sete anos de tutela gaullista. A vida política, "morta" pela "ditadura"
do chefe de Estado, desperta em meio ao insucesso do general e c~
meça a se agitar em vista das eleições legislativas de 1967. Nos PTl-
meiros meses de 1966, um grave escândalo sacode o regime. Em
Paris, é seqüestrado o líder da oposição democrática marroquina,
141
Ben Barka. Na operação, organizada pelos serviços secretos mar-
roquinos do Gen. Oufkir, são envolvidos os "serviços especiais"
franceses. Quando explode o escândalo, De Gaulle, que está com-
pletamente por fora de tudo, vai tomar satisfações de seus colabo-
radores. E começa por Pornpidou, responsável por não ter sabido
controlar os serviços secretos que, em última análise, dependem dele.
O caso Ben Barka agita a França por mais de um ano e é encerrado
em 1967 com um turbulento processo, que, no entanto, não consegue
esclarecer satisfatoriamente o trágico episódio. As eleições de 5 a
142
12 de março de 1967 se ressentem deste clima negativo. Os gaullistas
e seus aliados perdem quarenta cadeiras no Parlamento, embora con-
servem uma parca maioria, enquanto os comunistas saltam de 41
para 73 cadeiras e a Federação das Esquerdas, de 91 para 116. "Após
a votação de 1965, esta é a segunda etapa do refluxo gaullista" -
escreve Viansson-Ponté no Le Monde. Depois das eleições, De Gaulle
torna a nomear Pompidou primeiro-ministro. No Parlamento, pros-
segue a luta da oposição. Três moções de censura contra o gover-
no - que pediu "poderes especiais" no campo econômico e social
,
refletir sobre as energias latentes que
ela possui" (Jean Chesneaux, no prefá-
cio de Viver em Maio. Einaudi, 1969).
EA DA POLICIA
"Quando voltam para casa, os policiais
parisienses estão obsessionados pela
A culpa de idéia de que alguém os vá atacar... Al-
guns deles foram presos e conduzidos à
DeGaulle Sorbonne por estudantes, que os leva-
ram a visitar os lugares em que se en-
contravam os feridos. Outros foram cer-
~~É claro que a responsabilidade de De cados diante dos hospitais. No Hospital
Gaulle pela noite sangrenta de 10 para Cochin, um policial é rodeado por um
II de maio é muito grande. Ninguém grupo de estudantes e médicos. Olhe f
ousa acordá-lo. Mas se Fouchet, minis- o que fez... Como pode ainda ser poli-
tro do Interior, ordena ao chefe de polí- cial?' etc. Um médico lhe diz na cara:
cia que inicie o assalto às barricadas, 'Basta, Continuam a trazer gente que
arriscando o pior, é porque tem certeza você feriu. Meu serviço não é consertar
de que De Gaulle não quer ver, pela os estragos que você faz'. O policial está
manhã, a bandeira vermelha desfralda- pálido e não sabe o que responder" (La-
da nas zonas ocupadas pelos rebeldes. bro- Manceaux, Balanço de Maio, Mon-
Em tais ocasiões, a repressão parte de dadori, 1968).
De Gaulle. Ele mesmo incitará aspera-
mente (mas em vão) a Fouchet para que
faça uso de todos os meios à disposição Os jovens se rebelam contra
para acabar com o motim. É dele que
parte o insulto. De Gaulle, em vez de se o imobilismo
orgulhar da juventude, em vez de tentar
compreendê-la, fala de chienlit (bordel). HA juventude que lhe lança em rosto
Tal ponto de vista não é apenas depre- seu desprezo, que desafia as granadas e
ciativo, é antes de tudo mesquinho" os cacetetes da polícia, representa para
(Lacouture, ob. cit.). De Gaulle a falência completa de suas
143
para preparar o prazo do dia te;> de julho (a liberação completa do
câmbio no MEC) -' são rejeitadas com a margem mínima de votos.
A seguir, em agosto, o governo pu blica uma série de determinações
(em matéria de previdência social e de participação dos trabalhado-
res nos lucros das empresas) que desencadeiam nova onda de greves
e manifestações sindicais. No entanto, ao começar o ano de 1968,
a vida francesa parece estar seguindo o curso normal dos últimos
anos, mesmo que em algumas universidades os estudantes comecem
a contestar. Mas parece coisa de pouca importância. ~r A França se
ali
144
enfada" é o título de um editorial do Le Monde, que resume perfeita-
mente o clima francês daqueles meses. Mas, de improviso, tudo é
jogado de pernas para o ar. A 2 de maio as autoridades fecham a
Universidade de Nanterre (a do "Circulo 22 de março", de Cohn-
Bendit). No dia seguinte uma manifestação de protesto dos estudan-
tes da Sorbonne é interrompida pela intervenção maciça da polícia e
também aquela universidade é fechada. No Quartier Latin, as mani-
festações e as lutas continuam com violência sempre maior, até o
paroxismo da "noite das barricadas", na passagem de 10 para 11 de
145
maio. A polícia parte para o assalto às barricadas erguidas pelos
estudantes. Resultado: além de mil feridos (de ambas as partes), hou-
ve 1.500 detenções, 73 prisões e 250 veículos destruídos ou danifica-
dos. Com os estudantes alinharam-se também quase todos os intelec-
tuais de esquerda - excluindo-se apenas os de estrita observância
comunista. Pompidou, que acabava de voltar de uma viagem ao ex-
terior, consegue impor ao governo uma política de moderação. Du-
rante um discurso pela televisão, promete imediata reabertura das
universidades, libertação dos presos e clemência nos exames. De
Aragoo: HO que está acontecendo não determinação dos líderes sindicais e tor-
produzirá efeitos de dias ou de semanas, nou mais difíceis as negociações (enca-
mas de meses e anos... Este maio de Pa- beçadas por Pompidou). Aumenta o de-
ris inicia uma nova era" (Les Lettres sastre da V República: é um Waterloo!"
Françaises, 7-6-1968). (J. R. Tournoux, Le Mois de Mai du
Général, - HO Mês de Maio do Gene-
Jean-Paul Sartre: "Por vosso intermé- ral" - , Plon, 1969).
dio, estudantes, vem à tona algo eston-
teante, desnorteante, que renega tudo o
que formou nossa sociedade tal qual ela o General chora
é hoje. É algo a que chamarei de 'exten-
são do campo do possível'. Não renun- Nos dias 27-28 de maio, De Gaulle está
cieis a isso" . abatido: "É um velho que vai a pique"
- afirma Philippe Alexandre, no livro
o discurso de 24 de maio de 1968 Le Duel De Gaulle-Pompidou. "Na pre-
sença dos outros, o general apenas se
o Waterloo de De Gaulle esforça por se manter digno e esconder
.os soluços que o sufocam." É por isso
que, no dia 29 de maio, resolve partir.
'·A França escuta, mas não treme. Os Sente que tudo está perdido . e quer fu-
olhos continuam enxutos. O país não .
gir.
foi convulsionado até suas raízes. O ca-
risma não desce mais sobre as casas dos Para Alexandre, a "transformação" de
franceses. Ah! mas que fim tiveram os De Gaulle se efetua em Baden-Baden:
comovedores discursos de De Gaulle, H Ü espetáculo que o espera produz nele
as palavras cheias de glória e de heroís- o efeito de um choque elétrico: Deixou
mo que atingiam o coração, as fórmulas um país em anarquia, encontra a França
de esperança que arrancavam longos em ordem, com bandeiras tricolores ao
soluços do patriotismo? Os gaullistas vento e oficiais que ostentam orgulho-
jazem inertes. A mensagem presidencial samente no peito suas condecorações...
não produziu nenhum impacto na opi- Acaba de voltar para seu universo, en-
nião pública. Pelo contrário, reforçou a tre homens que são seus irmãos de ar-
146
fato, a Sorbonne é reaberta, sendo ocupada triunfalmente pelos
estudantes. Os operários também saem às ruas, arrastando-se atrás
dos sindicatos. A 13 de maio, imensa multidão desfila pelas ruas de
Paris aos gritos de "Dez anos bastam!" e HV á embora, De Gaulle!"
Desta vez, a polícia não intervém, e não se registram incidentes gra-
ves. Apesar do momento dramático, De Gaulle decide não renunciar
à já programada visita oficial à Romênia (14 a 18 de maio). Quando
volta, a situação piora ainda mais. No dia 20, a França é paralisada
por uma greve de mais de 10 milhões de operários. A contestação
147
se tornou geral: nas fábricas, nos serviços públicos, nos teatros, nos
jornais e na televisão. ~~A França tem a palavra!" ~~A imaginação
toma o poder!" Tais são os slogans e as senhas que convulsionam
toda a vida francesa. No dia 24, De Gaulle abandona seu silêncio pa-
ra anunciar a "solução gaullista" da grave crise: um referendum popu-
lar sobre a participação. É uma "saída no vácuo", que apenas serve
para radicalizar ainda mais a oposição contra o regime. A 29 de maio,
o general adia um conselho dos ministros e "some" de Paris, num
helicóptero. Sabe-se, só mais tarde, que foi consultar o Gen. Massu,
I.
148
I ,•. ,_ I , ;dL. IIU. LI " I. ~J.,Ji,_J.J _..L , ,lJ l ,~ ., I lo.J-__".o__.. __•. k_ .••. ,,J.l_,~.,,' .,,,,l.J.o i l,., ~_.i I I h ... -" ,.Ll. l.ll
em Baden-Baden, sede do comando das tropas francesas no territó-
rio alemão para garantir o apoio do exército. Volta a Paris a 30 de
maio, pronunciando violentíssimo discurso pelo rádio: "Não me
retiro. Não mudo o primeiro-ministro. Cancelo o referendum. Dissol-
vo a Assembléia Nacional. Impedirei por todos os meios a subversão
nacional". Ao mesmo tempo, uma imponente manifestação de gaul-
listas - com Malraux e Debré à frente - desfila pelas ruas de Paris,
em apoio ao chefe de Estado: "De Gaulle não está só!" Mas a ver-
dadeira solução da crise se encontra em outra parte: após estafantes
é uma coisa e mantê-lo é outra. Não reçâo geral do Partido Comunista, in-
resta a menor dúvida de que se a Comu- quieta e furiosa por ver essa fração re-
na Estudantil houvesse triunfado, teria volucionária erguer-se fora de seu con-
o mesmo fim que a Comuna de 1871 e trole e contra ele, decidiu imediatamen-
seria, igualmente, sufocada em sangue. te submergir tudo numa greve geral, e
É absolutamente certo que todos os de- assim aconteceu a prejudicial paralisa-
fensores da legalidade, a começar pelos ção do país. Desta paralisação quiseram
partidários de De Gaulle até os líderes os comunistas tirar duas vantagens:
do Partido Comunista, prestaram um primeira, tomar novamente em mãos o
excepcional serviço ao povo e à França, monopólio das reivindicações; segunda,
salvando-a de uma guerra civil" (Pierre conseguir que a República abdicasse..."
de Boisdeffre, Le Monde, 17 de agosto (De Gaulle na televisão, 7-6-1968).
de 1968).
A força dos estudantes. "J á passou o
tempo das reformas concedidas espon-
De Gaulle taneamente. A nova universidade não
poderá ser idealizada em prejuízo dos
explica maio estudantes, e muito menos sem eles. Só
pode ser construída com a colaboração
deles" (Labro Manceaux, ob. cit.).
~~A explosão de maio de 1968 foi provo-
cada por alguns grupos que se revoltam
contra a sociedade moderna, a socieda-
de de consumo, a sociedade mecaniza-
da, seja a comunista do Leste, seja a ca-
o General elogia
pitalista do Oeste. Grupos que absolu-
tamente não sabem com que substituí-
Pompidou
la, mas se divertem com a negação...
Foi, portanto, por contágio que se pro- De Gaulle: "Pompidou sempre foi capaz
duziu o mesmo efeito em certas fábri- e digno de dirigir a empresa a meu lado.
cas, sempre entre os jovens... Mas a di- Embora a inteligência e a cultura o ele-
149
debates - e contra a opinião dos gaullistas mais "duros" - Pompi-
dou aceita as reivindicações dos operários e assim consegue f~ desa-
trelar" os sindicatos do carro dos estudantes. Começa o refluxo do
movimento de maio, cujos últimos espasmos se fazem, no entanto,
sentir até as eleições de 23 a 30 de junho, quando triunfa o "partido
do medo". Os gaullistas conquistam o maior número de cadeiras de
toda sua história: 358 das 485, incluindo seus aliados. No dia seguin-
te às eleições, De Gaulle se "livra" inesperadamente de Pompidou e
nomeia como primeiro-ministro Couve de Murville. •
150
.DE GAULLE DERROTADO. Não obstante a vitória de junho, o furacão
de maio de 1968 deixou uma ferida profunda. O general sente que
alguma coisa "não vai mais" entre ele e o povo francês. Talvez seja
este o motivo que o leva a se enclausurar em si mesmo, renunciando
aos costumeiros "banhos de multidão", isto é, às visitas oficiais às
províncias francesas. Alguns jornalistas começam a falar de um pos-
sível afastamento voluntário. De Gaullese torna cada vez mais susce-
tível. Quando Georges Pompidou, durante sua viagem a Roma, em
janeiro de 1969, anuncia que tem a intenção de apresentar-se como
~5,2.
~ j ,.jJI.".1.1,.~,iJl.IIIIIIlIIM ,U I -
'li
candidato à presidência da República, caso De Gaulle renuncie,
o general responde secamente: "Tenho o dever e a intenção de con-
tinuar meu mandato até o fim". Mas nem ele mesmo está convencido
disso. Os anos e a hostilidade dos franceses começam a pesar-lhe nos
ombros. 'Contra o parecer dos ministros, decide, pela enésima vez,
recorrer a um referendum popular. Marca-o para o dia 27 de abril.
Para os franceses, trata-se de aceitar ou rejeitar um projeto de refor-
ma das regiões administrativas e do Senado. É o último ato de um
esforço feito por De Gaulle durante dez longos anos para forjar as
153
instituições da V República. Na realidade, o que De Gaulle pretende
é obter mais um voto de confiança dos franceses a sua pessoa. É o
que ele mesmo admite explicitamente, a 10 de abril, num pronuncia-
mento pela televisão: "Da resposta dada pelo país dependerá eviden-
temente a continuação de meu mandato ou o meu afastamento ime-
diato". É o "recado" habitual, que até agora funcionou sempre:
dizei-me sim, ou me vou. E se eu sair, será o caos. Mas, desta vez,
parte para a luta certo de ser derrotado. E, realmente, os votos con-
tra somam quase 12 milhões, contra 10,5 milhões a favor. O dia 27
I!
154
155
os possíveis motivos nacionais e pessoais, envio-lhe minhas cordiais
felicitações". O 18 de junho - aniversário do célebre apelo à Resis-
tência - De Gaulle o passa também na Irlanda. No ano seguinte,
está na Espanha. Decidiu não se encontrar mais em sua pátria por
ocasião do aniversário dessa data fatídica, pois os franceses não o
merecem. Entre ele e o caos, escolheram o caos. O general pensa até
em passar o aniversário seguinte na China, país que há longo tempo
deseja visitar. Durante o resto do ano, De Gaulle vive na Boisserie,
"quartel-general do silêncio", como a apelidaram os franceses.
156
cionais da França e à obra da paz entre de repente sentiram que haviam vivido
os povos". GiuseppeSaragat: ttA morte em companhia de um verdadeiro herói.
de De Gaulle é motivo de luto para to- Não se aperceberam disso, a não ser
dos os povos que cultivam os valores quando ele morreu. Tornava-se, final-
humanos universais, como a grandeza mente, uma realidade, no dia 12 de no-
moral e política, o heroísmo, a dedica- vembro de 1970, a unidade nacional,
ção à causa da pátria". Marechal Tito: que De Gaulle almejara durante toda a
"Sua política merecera o respeito dos sua vida. Mas ele já não estava mais lá
iugoslavos, porque De Gaulle compre- para participar dela" (Georges Suffert,
endera e defendia a posição indepen- ob. cit.).
dente e a política de não alinhamento
de nosso país". (Christian Bretagne, FARÃO DELE UM SANTO?
Ce qu'ils ont dit de lui..., - HO que Dis-
seram Dele" - Ed. Taillander, 1970). o Cardeal Daniélou entrevistado pela
Rádio Montecarlo (quinta-feira, 12-11-
1970), a propósito do artigo de um jor-
Todos os Franceses nal alemão, no qual se afirmava que
"numa outra época, De Gaulle teria si-
unidos a seu redor do canonizado", declarou que "a ex-
pressão absolutamente não o chocava.
HNa tarde dos funerais de De Gaulle, No fundo, canonizar é reconhecer uma
centenas de milhares de parisienses vida cristã de caráter exemplar, que
saem em silêncio para os Campos Elí- pode perfeitamente não ter apresentado
sios, a fim de depositar flores sobre a nada de extraordinário... O essencial é a
tumba do Soldado Desconhecido. Nin- prática das virtudes, num certo grau de
guém jamais poderá dizer o que se pas- heroísmo... Em todo caso,. um dos as-
sou naquele dia no coração de milhões suntos mais debatidos hoje em dia é o
de franceses. Para os homens de mais laicato. Pois bem, De Gaulle é o tipo
de quarenta anos é uma época que se exemplar de um laico cristão. Em todos
encerra... Os jovens, habituados a pro- os sentidos, tanto no valor de sua vida
curar heróis revolucionários e exóticos, privada, como no espírito de serviço,
157
"um monumento que jamais poderá ser destruído". Mas, infelizmen-
te, não consegue levar a bom termo nem mesmo o segundo volume
de sua obra literária. Morre repentinamente, a 9 de novembro de
1970, às 18h 55m, enquanto espera o jantar. Por vontade expressa do
general, os funerais se realizam com a máxima simplicidade, sem re-
presentações governamentais, nem diplomáticas. São admitidos ape-
nas os familiares, os compagnons e uma pequena representação do
exército. Sobre a tumba do "ultimo gigante", ao lado da filha Anne,
lê-se apenas: "Charles De Gaulle, 1890 - 1970". li
II
de total doação de si mesmo, que o le- Winston Churchill, e até seu nome,
vou a trabalhar heroicamente não só uma sugestiva mescla de reminiscên-
pela França, como também para Deus". cias de Carlos Magno e da antiga Gália
(em francês, Gaule), se adaptava perfei-
Acavalo até Colombey tamente à tarefa que ele mesmo esco-
lhera.
A peregrinação Quando De Gaulle faleceu, na sema-
na passada, exatamente treze dias antes
do gen. Massu de seu octogésimo aniversário, o Preso
Georges Pompidou reassumiu, com as
Paris, 24 de junho de 1971: "O Gen. seguintes palavras, a cruzada pela qual
Massu, o fidelíssimo companheiro que, o general combatera durante toda sua
com sua atitude decidida, fizera fracas- vida: 'Ele deu à França suas institui-
sar o Putsch de Argel, e a quem De ções, sua independência e seu lugar no
Gaulle fora consultar na Alemanha, du- mundo'" (Time, 21-11-1970).
rante os dias mais negros de maio de
1968, levou a termo, hoje, sua espetacu- ··É inútil procurar explicar as razões da
lar peregrinação ao túmulo de De Gaul- devoção ilimitada e do ódio infinito
le. Montado em seu velho companheiro que acompanharam ou seguiram De
de lutas, o cavalo Maitre Pierre, de Gaulle. São quase irrevogáveis as deci-
quinze anos de idade, dirigiu-se a Co- sões tomadas em semelhante nível espi-
lombey assim como, nos séculos pas- ritual, e os que as tomaram não conse-
sados, muitos outros fiéis se dirigiam a guirão explicá-las jamais" (A. Froissart,
São Tiago de Cornpostela" (Lorenzo En ce temps là, n 9 97).
Bocchi, Corriere d'Informaziones.
Malraux: ··0 último grande homem que
o cruzado da Franca •
possuiu 'a França está agora a sós com
ela: agonia, transfiguração, ou quimera.
Cai a noite, a noite que não existe para
"Ele era verdadeiramente ·0 homem do a História" (Les Chênes qu'on Abat, oh.
destino', como o chamara certa vez cit.).
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