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1.

Durante o período do regime militar, a questão de gênero foi usada como uma
das formas de tortura. Sociologicamente, como podemos entender esse
“fenômeno”?
R: Historicamente, os papeis de gênero nas sociedades ocidentais são pautados
por estruturas patriarcais. Não é à toa que, somente a partir da década de 1960,
com intensificação das lutas do movimento feminista em diversos lugares do
mundo, a própria classificação “feminino” e “masculino” mudou de caráter e
passou a ser conceitualizado, de fato, enquanto gênero, termo que evidencia a
construção social acerca dos papeis desempenhados por homens e mulheres, e
não mais como sexo, orientado por determinismos biológicos. Sob a ótica da
Sociologia, essa distinção opressora entre papeis de gênero – e aqui me refiro a
aspectos relacionados exclusivamente à binaridade – é constructo de séculos de
exercício de funções sociais diferentes que, via de regra, colocavam e colocam a
mulher em posição de subalternidade em relação ao homem, ou seja, as
construções simbólicas, culturais, morais e políticas acerca do padrão
comportamental dos sujeitos na vida social significaram o feminino como algo
menor, quase irrelevante diante da vida pública e por isso mesmo de natureza
exclusivamente privada, pertencente aos domínios domésticos e de propriedade
– aspecto extremamente importante - do masculino.
Pierre Bourdieu, sociólogo francês, em sua obra A dominação masculina,
conceitua muito bem a dimensão da violência simbólica que existe nas
sociedades de estruturas patriarcais para com o gênero feminino: Espera-se do
sujeito masculino, o homem cisgênero e heterossexual, que ele tenha o Capital
(capital econômico, social, cultural e simbólico) maior que o do sujeito
feminino, a mulher cisgênero e procriadora; graças à naturalização da
dominação masculina na sociedade; em função disso, o status de propriedade
privada do homem é atribuído à mulher, condição que demostra o porquê, até
hoje, a violência sexual representa um significativo instrumento de violação da
figura feminina como tentativa de restabelecer essa suposta ordem natural da
vida social.
A ditadura civil-militar no Brasil, através das figuras algozes de seus
torturadores, usou amplamente não só do estupro, mas também da brusca
separação dos filhos e filhas de suas mães militantes, no intuito de, mais do que
puni-las por seus comportamentos subversivos, faze-las exemplos para outras
mulheres que pudessem insurgir contra o Estado, na tentativa de suprimir
qualquer tipo de mudança, tanto ao que dizia respeito ao regime totalitário
instaurado, quanto a esta pseudo-naturalização de papeis femininos e masculinos
na vida social.

2. Alguns especialistas acreditam que as violências sexuais são uma forma de


“relação de poder”. Você acredita nisso? Se sim, por quê?
R: Sim, acredito. Nesse aspecto eu sou absolutamente foucaultiana, a
normatização da sexualidade é um dos alicerces da biopolítica ou do biopoder no
sentido de domesticar e controlar os corpos dos indivíduos, torná-los dóceis e
produtivos, de modo a perpetuar as estruturas sociais hegemônicas e vigentes.
Sob esta ótica, as violências de ordem sexual cometidos contra os corpos e
identidades femininas traduzem e materializam a biopolítica aplicada aos nossos
corpos, porque não são motivadas por desejos e instintos de caráter sexual, mas
sim intentam disciplinar através da força física e do ato de dominar e subjugar
nossos corpos. Sendo assim, a prerrogativa de que as violências de natureza
sexual são uma forma de expressar as relações de poder vigentes é válida, uma
vez que o efetivo exercício deste poder sob os indivíduos vinculados ao gênero
feminino em nossa sociedade se dá através dicotomia domesticação-punição, já
que expressam a configuração das forças sociais, políticas, econômicas,
simbólicas e culturais moralmente articulas e que se destinam a disciplinarização
dos corpos e mentes femininos.
3. Hoje em dia, as formas de cerceamento do corpo da mulher estão em um novo
contexto. Como podemos associar os dias de hoje com o período do regime
militar?
R: Para que possamos fazer tal associação, é importante demarcarmos os limites
entre os campos da vida social. Apesar de, no Brasil, os domínios daquilo que
compete ao Público e ao Privado não serem claros em nosso imaginário coletivo,
apesar do brasileiro ser o homem cordial, para citar o grande sociólogo e
historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda; é fundamental que separemos,
como modalidades organizativas da vida social, o campo do Público, o campo
do Privado e ao campo do Público-Privado, uma espécie de estagio
intermediário, em razão de aspectos jurídico-normativos, de modo que tal
associação seja o mais objetiva possível.
É inegável que nós mulheres rompemos muitos paradigmas sociais, às custas de
muito sangue, suor e lágrimas, conquistamos espaços e direitos que, há pouco
mais 50 anos atrás seriam impensáveis; no entanto, há muito ainda para se
avançar. No que concerne ao campo Público, o Estatuto da Mulher Casada,
restituiu à figura feminina certa autonomia quanto às garantias civis, no entanto
foi apenas com a Constituição de 1988 que nós mulheres passamos a gozar
plenamente de toda a gama da direitos e tivemos o reconhecimento do Estado de
sua condição de igualdade em relação ao sexo masculino, ao menos no que
concerne à lei.
Quanto ao exercício de nossa liberdade na vida social, pouca coisa efetivamente
mudou. A revolução sexual, característica da luta feminista no mundo, alterou
alguns aspectos do padrão comportamental feminino aqui no Brasil também,
porém, percebo certo anacronismo social ao analisar a condição da mulher nos
dias de hoje, ao mesmo tempo em que conquistamos do direito de trabalhar fora
do ambiente doméstico sem necessitarmos da anuência de nossos pais, maridos e
companheiros, o que temos hoje é a estatística de que nossas jornadas de
trabalho semanais são, em média, de 8 horas a mais que os homens, porque além
de trabalharmos fora de casa, notório espaço da vida Pública , continuamos a ser
as principais responsáveis pelas tarefas do campo da vida privada (afazeres
domésticos, educação e cuidados dos filhos), ainda enfrentamos em entrevistas
de empregos perguntas relacionadas ao estigma da maternidade inerente, do tipo
“você tem filhos? Pretende ter? Se adoecerem, quem cuidará?” e mesmo quando
conquistamos a vaga de emprego, ganhamos, em média, 30% menos que um
homem no mesmo posto. Ou seja, em termos de prática social, nós mulheres
apenas acumulamos funções, conjuntura que destoa da condição de igualdade
social, ao contrário, amplia ainda mais a desigualdade, quase abissal, entre
gêneros no Brasil.
Mas a evidência mais emblemática deste anacronismo social e exatamente o que
associa os dias atuais com a ditadura civil-militar, é o posto que Brasil ocupa no
ranking de feminicídios mundial: somos o quinto país que mais mata mulheres
no mundo, apenas pelo fato de serem mulheres, e cerca de 70% destes crimes
são cometidos em ambiente doméstico, isto é, no campo da vida Privada.
A atual figura, que ocupa o mais alto cargo executivo neste pais, sustenta através
de seu discurso e de muitas ações também, quando nomeia para cargos
ministeriais figuras alinhadas ideologicamente com seu modelo conservador e
autoritário de gestão, a perpetuação desta lógica e violência sociais e de todas as
estruturas que as mantém ativas até hoje, tal qual o regime militar operava
naquela época, com a diferença de que hoje, em termos legais, esta prática é
condenável e durante a ditadura civil-militar fazia parte do modus operandi do
regime. A narrativa, o discurso do presidente legitimam ações dessa natureza no
campo do Público-Privado, que configuram as relações entre indivíduos que não
possuem vinculo parental, mas que expressam em suas práticas os valores
morais vigentes na sociedade, é neste ponto que reside a inegável semelhança
entre contexto social da ditadura e dos dias atuais: a violência contra a mulher,
principalmente aquelas que envolvem a subjugação e objetificação de nossos
corpos, mais do que atos físicos e materiais, tem uma dimensão simbólica, cuja
efetivação independente de sujeitos femininos ou masculinos, mas se configura
enquanto patologia estrutural da nossa sociedade, de modo a buscar o
reestabelecimento de uma ordem moral opressora sobre o corpo feminino.
4. Na sua visão, qual a importância da comissão nacional da verdade para os
esclarecimentos?
R: No meu ponto de vista, a importância da comissão nacional da verdade é de
ordem histórico-social e de natureza jurídico-legal. Em relação ao aspecto
histórico-social, é fundamental para que se preserve a memória da barbárie que
foi a Ditadura Civil-Militar, no sentido de que não se repita e que as gerações
futuras sejam formadas a partir de valores sociais opostos e divergentes aos que
os regimes políticos totalitários e autoritários pregam. Do ponto de vista
jurídico-legal, sua importância reside em investigar, esclarecer e responsabilizar
os agentes do estado que torturaram, mataram e desapareceram com muitos
militantes contrários ao regime, além de garantir as famílias dessas vítimas o
direito de enterrarem seus mortos de verdade com todos os ritos e simbologia
que esta ação carrega, a fim de encerrar a expiação que a dúvida carrega.

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