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Prudência: mãe e guia das virtudes na Ética a Nicômaco

Alice Aparecida Cornélio1

RESUMO

Este artigo tem por objetivo compreender a primazia atribuída à virtude da


prudência na obra Ética a Nicômaco de Aristóteles. Para tanto, é explanada
inicialmente a concepção de homem, de virtude e de mediania deste filósofo.
Em seguida apresentam-se a natureza e propriedades da parte intelectiva da
alma, adentrando por fim na especificidade da virtude da prudência. Para o
desenvolvimento da pesquisa realizou-se a leitura da obra já mencionada, com
foco especial no livro VI, visto que neste há um aprofundamento no conceito de
prudência. Autores como Jean Lauand, Campelo e Russo foram consultados
para a realização deste trabalho. Conclui-se que, para Aristóteles, a prudência
é a virtude que antecede e possibilita o exercício consciente de todas as
virtudes, podendo assim ser considera mãe e guia.

Palavras-chave: Aristóteles, Prudência, Ética a Nicômaco.

Introdução

O homem aristotélico está no mundo para alcançar a enteléquia, a


saber, a sua realização, e ser feliz a partir da busca do Bem. Esse processo se
dá em sociedade, pois ele é, essencialmente, animal político. A fim de ensinar
um caminho possível de realização humana, Aristóteles dedica sua obra Ética
a Nicômaco ao estudo detalhado da natureza das virtudes morais e
intelectuais, bem como sua origem, finalidade e importância para o bem do
homem e da pólis.
Partindo da indispensabilidade das virtudes no processo de realização, o
presente artigo busca compreender a primazia atribuída à virtude da prudência
em relação às demais. Para isto, realizou-se a revisão da literatura incluindo a
leitura da obra já mencionada, com foco especial no livro VI, bem como a

1
Graduanda em Filosofia pelo UNISAL/Lorena. Artigo orientado pelo professor Doutor Lino
Rampazzo.
leitura de artigos e dissertação de mestrado de autores dedicados ao estudo da
Antiguidade e do próprio Aristóteles.
O primeiro item deste artigo tratará das concepções gerais acerca da
alma humana, a natureza das virtudes e suas espécies, finalizando com
conceito de mediania. O segundo item tratará sobre a parte intelectiva da alma,
a origem da ação e a capacidade humana de decisão, adentrando na
especificidade da prudência, suas propriedades e funções. Por fim, considera-
se que prudência é a virtude que antecede e possibilita o exercício consciente
de todas as demais, podendo assim ser considera mãe e guia.

1 Virtudes aristotélicas na Ética a Nicômaco

No tratado sobre a ética, Aristóteles apresenta uma concepção de


mundo, na qual o homem tem como finalidade da vida alcançar a eudaimonia
(felicidade). Nesse processo de realização é imprescindível que ele fuja dos
extremos (vícios) e se esforce para alcançar o meio termo no qual estão todas
as virtudes, visto que “o bem do homem nos aparece como uma atividade da
alma em consonância com a virtude (...)” (EN, 1098a 13).
Aristóteles como grande estudioso do ser humano procurou esmiuçar a
natureza da alma dos seres vivos, bem como sua relação com o corpo e com o
mundo. Por isso é imprescindível para este estudo retomar brevemente tal
natureza, já que a virtude está para a alma e não a alma para a virtude.
Bipartida e subdividida, a alma humana é: racional (prática e
especulativa) e irracional (vegetativa e apetitiva). Para cada uma das partes
corresponde um tipo de virtude específica, a saber, respectivamente: virtudes
intelectuais e virtudes morais. O homem, portanto, é um ser racional que possui
em sua essência uma potência à realização. Da potência ao ato, em outras
palavras, da essência à existência existe um processo que é mediado pelo
hábito, ou seja, pela virtude (ARISTOTELES, 1984a).
No entanto, o homem não é naturalmente virtuoso, pelo contrário
"somos adaptados por natureza a recebê-la e nos tornamos perfeitos pelo
hábito" (EN, 1103a 25). Logo, o homem torna-se virtuoso à medida que pratica
ações virtuosas. Contudo, é preciso que essas ações sejam guiadas pela reta
razão e estejam no meio termo dos extremos.
A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a
escolha e consiste numa mediania, isto é, a mediania relativa a
nós, a qual é determinada por um princípio racional próprio do
homem dotado de sabedoria prática. E é um meio-termo entre
dois vícios, um por excesso e outro por falta: pois que,
enquanto os vícios ou vão muito longe ou ficam aquém do que
é conveniente no tocante às ações e paixões, a virtude
encontra a escolhe no meio-termo. (EN, 1107a).

Assim, pode-se dizer que virtude é uma atitude deliberada, livre e


moderada. O homem virtuoso é consciente e responsável pela própria vida. Ele
é capaz de perceber as exigências do tempo em que se encontra e decidir
acerca das atitudes que o levarão a alcançar o Bem.
Posto isto, fica clara outra característica marcante deste filósofo: o
ensino. Como excelente professor, Aristóteles sabia da dificuldade do homem
de se tornar virtuoso. Por isso, dedicou os cinco primeiros livros da Ética a
Nicômaco às virtudes morais, visto que elas são o “produto do hábito (...)
[sendo] evidente, portanto, que nenhuma das várias formas de excelência
moral se constitui em nós por natureza, pois nada que existe por natureza pode
ser alterada pelo hábito.” (EN, 1103 b). As principais excelências morais
recebem o nome de: coragem, generosidade, magnificência, magnanimidade,
honra, brandura, sinceridade, autocontrole e justiça.
Por sua vez as virtudes intelectuais carecem do composto: ensino,
experiência e tempo, já que “deve tanto o seu nascimento quanto o seu
crescimento à instrução (por isto ela requer experiência e tempo).” (EN, 1103
b). Arte, Conhecimento Científico, Sabedoria Filosófica, Razão Intuitiva e
Sabedoria Prática são os tipos de excelência intelectual apresentadas no livro
VI.
Como visto, para que as virtudes sejam de fato praticadas é necessário
que a relação existente entre a disposição de caráter e a escolha consista
numa mediania. Entretanto, este conceito tão utilizado por Aristóteles não tem
nada a ver com uma medida padrão e universal, pelo contrário no campo da
ética os casos devem ser examinados de forma particular não existindo, por
isso, uma regra absoluta para todos (RUSSO, 2013).
Mediania consiste, portanto, num critério de medida de avaliação que
corresponde ao meio termo, caracterizado como virtude o qual,
em verdade, por ser considerado excelência moral e de
conformidade com o bem é considerado, por Aristóteles, um
extremo, ou seja, o ponto melhor e superior aos outros.
Alcançar a justa medida é alcançar o sumo bem e deve estar
ligada à reta razão. Assim, a ação boa é a ação mensurada e
equilibrada, representando como que um auge ao qual não se
pode acrescentar nada. Este estado de equilíbrio ou cume é a
obra própria da virtude, estado em que o homem sente os
prazeres e as penas da maneira devida, sem deficiências
morais. (RUSSO, 2013, p. 39).

Resumindo: o homem de Aristóteles é essencialmente potência. Isto


significa que ele possui naturalmente uma abertura, uma inclinação à
realização, a realizar-se na ação que busca conhecer a verdade e deseja o
bem seja este útil, deleitável ou honesto. Essa ação acontece numa dada
situação em que este homem é convocado a discernir o seu agir, a escolher a
via pela qual pretende chegar ao objetivo final. É neste caminho, nesta via de
um ponto a outro que o homem tem a possibilidade de agir de modo virtuoso
ou vicioso. O meio termo ou mediania está justamente na escolha moderada,
consciente e responsável da ação a ser praticada em vista do bem.
Posto isto, o próximo item tratará da virtude responsável pelo
discernimento das ações virtuosas que movimentam o homem no caminho do
Bem.

2 Caminhando com Prudência chega-se ao Bem

Realista e opositor de Platão, Aristóteles pressupõe que não basta saber


que o processo de realização humana é um caminho árduo que exige decisão
e esforço diário por uma vida virtuosa em vista da posse do Bem para já
possuir o Bem. Mas, antes de tudo é preciso uma decisão consciente, livre e
responsável pelo caminho existencial que conduz à enteléquia. Só então o
conhecimento detalhado da natureza do caminho, bem como suas dificuldades,
perigos e auxílios poderão fomentar o caminhar constante e reto.
Assim, é compreensível a diferença feita por este filósofo quanto ao
homem virtuoso e àquele que pratica ações virtuosas. Este, mesmo que aja da
mesma forma que aquele, tem por causa de suas ações a força da lei ou a
vergonha. Enquanto que aquele, agindo de forma voluntária e consciente, é
considerado virtuoso. Compreende-se, portanto, que a origem da ação “é a
escolha, e a da escolha é o desejo e o raciocínio com um fim em vista” (EN,
1138b 30). A parte da alma responsável por essas etapas que origina a ação é
o intelecto prático e a virtude que o fortalece é a Prudência.
Como já apresentado no item anterior, o intelecto possui cinco virtudes
pelas quais é fortalecido, sendo elas: Arte, Conhecimento Científico, Sabedoria
Filosófica, Razão Intuitiva e Sabedoria Prática. As quatro primeiras dizem
respeito à parte especulativa, chamada também de intelecto especulativo. A
última diz respeito à parte prática, ao intelecto prático.
É próprio do Conhecimento Científico conhecer os pontos de partida,
ensiná-los e demonstrá-los (EN, 1139b 30); e da arte produzir com reto
raciocínio (EN, 1140b 20). Já a razão intuitiva apreender os primeiros princípios
(EN, 1141a 5); e a sabedoria filosófica integrar conhecimento científico e razão
intuitiva das coisas mais elevadas da natureza (EN, 1141b 5). Vê-se, portanto,
que é da competência do intelecto especulativo lidar com aspectos abstratos e
universais das coisas.
Bem contrário é o intelecto prático, o qual por meio da Prudência tem a
capacidade de subsidiar o bem agir nas situações variáveis, já que vislumbra
os fins e dita os meios a serem percorridos, ou seja, pertence a ela a
“capacidade verdadeira e raciocinada de agir com respeito às coisas que são
boas ou más para o homem” (EN, 1140b 5). Segundo Lauand2 (2003, p. 318),
“a definição de prudentia – recta ratio agibilium3” – diz respeito ao centro da
vida moral, já que “trata-se de conhecer a realidade concreta para tirar daí a
decisão de ação”. Por isto ela é considerada por São Tomás de Aquino a mãe
e a guia das virtudes.
Desta forma, Aristóteles afirma ser próprio do homem prudente
investigar, conhecer e conjecturar a respeito da realidade concreta, a fim de
agir de forma correta. Tal capacidade é denominada: deliberação. Entretanto, é
possível que o homem se perverta seja pelo prazer ou pela dor e não perceba
mais os bens pelos quais deve escolher e agir, justamente porque o vício anula
a causa que origina a ação (EN, 1140b 15). Portanto, para uma vida virtuosa é

2
Professor Titular Sênior da Faculdade de Educação da USP. Presidente do Centro de
Estudos Medievais - Oriente e Ocidente USP. Estudioso e tradutor de algumas obras de São
Tomás de Aquino.
3
São Tomás de Aquino introduziu tal expressão, a fim de caracterizar o agir. Desta forma, a
recta ratio - reta razão - permite exercer todo tipo de virtudes, sejam as intelectuais como
também morais. (MORA, 2001 p. 2466).
imprescindível a excelência da deliberação, uma vez que é ela a “correção no
que diz respeito àquilo que conduz ao fim de que a sabedoria prática é a
apreensão verdadeira” (EN, 1142b 30).
Outra propriedade do homem prudente é a faculdade da habilidade. Esta
consiste no “poder de fazer as coisas que conduzem ao fim proposto e a
alcançá-lo” (EN, 1144a, 25). O homem virtuoso possui a habilidade da
prudência. Segundo CAMPELO4,
a prudência é a retomada ética da habilidade do mesmo modo
que a virtude moral é a regeneração das virtudes naturais pela
intenção do bem. [...] a prudência é mediadora entre a virtude
natural e a virtude moral, mas a virtude moral é, por sua vez,
mediadora entre a habilidade e a prudência. Portanto, não há
virtude moral sem prudência, nem prudência sem virtude moral
(2014, p. 29).

Logo, aquele que possui uma só qualidade: a Prudência; possuirá


também todas as virtudes, cada qual fazendo sua parte: uma determina o fim e
a outra leva à prática que conduz ao fim. (EN, 1145a 5). Em outras palavras:
"a obra de um homem, só é perfeita quando está de acordo com a sabedoria
prática e com a virtude moral; esta com que seja reto o nosso propósito;
aquela, com que escolhamos os devidos meios.” (EN, 1144a 10).

Considerações finais

Pode-se considerar que o homem aristotélico é essencialmente


potência, estando por isso naturalmente aberto, inclinado à realização, a
realizar-se na ação que busca conhecer a verdade e deseja o bem. Por ser
animal político, o homem vive em sociedade e por isso necessita de uma ética
eficiente e capaz de corroborar com seu desenvolvimento enquanto ser em
busca da felicidade.
A proposta de Aristóteles é realista, pois admite a integração dos
aspectos naturais, educacionais e temporais para o aperfeiçoamento do caráter
humano. Ela ainda ratifica a condição de ser livre e responsável do homem,
principalmente ao designar ao intelecto prático a função de julgar as situações
variáveis do cotidiano, bem como corrigir o próprio raciocínio e ditar os meios

4
Doutora em Filosofia do Direito e Mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
que levam aos fins corretos. Isto mostra o caminho pelo qual o homem deve
trilhar de forma ereta, fortalecendo sua capacidade racional, dando contornos,
limites às tendências extremas e buscando sempre o meio termo.
Este caminho de realização tem a presença indispensável das virtudes
morais e intelectuais. Todas são importantes, mas a soberana é a justiça. No
entanto, todas descendem da prudência, já que cabe a ela a deliberação dos
meios e a mediação entre as virtudes naturais e morais.
Portanto, é correto afirmar que a prudência é mãe e guia das virtudes,
principalmente tendo a Ética a Nicômaco como principal referencial
bibliográfico, visto que o objetivo desta obra é justamente apresentar um
caminho existencial possível que conduz o homem à felicidade.

Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES. Metafísica: livro 1 e 2. Tradução de Eudoro de Souza. São


Paulo: Abril Cultural, 1984a. (Os pensadores).

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd


Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1984b. (Os pensadores).

CAMPELO, Olívia Brandão Melo. A prudência aristotélica. Arquivo Jurídico,


Teresina, v. 1, n. 7, p. 20-40, jul./dez 2014. Disponível em:
https://revistas.ufpi.br/index.php/raj/article/download/3341/1908. Acesso em: 29
mar. 2020.

LAUAND, L. JEAN. A arte de decidir: a virtude da Prudentia. Revista Brasileira


de Direito Constitucional - RBDC, São Paulo, v. 2, p. 315-324, 2003.
Disponível em: http://www.esdc.com.br/seer/index.php/rbdc/article/view/54.
Acesso em: 29 mar. 2020.

MORA, J. FERRATER. Dicionário de filosofia. São Paulo: Loyola, 2001.


Disponível em:
https://books.google.com.br/books?id=ZFY3S8iinfMC&pg=PA2466&lpg=PA246
6&dq=prudentia+%E2%80%93+recta+ratio+agibilium&source=bl&ots=MrrvWrK
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BR&sa=X&ved=2ahUKEwjY6cak39zpAhU1H7kGHUsVDugQ6AEwAHoECAUQ
AQ#v=onepage&q=prudentia%20%E2%80%93%20recta%20ratio%20agibilium
&f=false. Acesso em: 30 maio 2020.

RUSSO, M. F de ARAUJO . O conceito de mediedade na Ética a Nicômaco


de Aristóteles. 2013. 88 f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC – SP. São Paulo, 2013. Disponível em:
https://tede2.pucsp.br/handle/handle/11650. Acesso em: 28 abr. 2020.

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