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EDIÇÃO 03 - NOV/DEZ 2020

FAMÍLIA CUMOA NATAIS DE AXÉ


Conheça os laços Entenda como as
familiares e espirituais religiões de matrizes
do Centro de Umbanda africanas se relacionam
Mística Oxum Apará com o feriado cristão

Família
EXPEDIENTE

GABRIEL SORRENTINO
Diretor-geral
LOUVADA SEJA 04 UMBANDA
EU CURTO 50 TERREIRO E
SOCIEDADE

MINHA FAMÍLIA
NAÍSE DOMINGUES

52
Diretora de conteúdo

06 FAMÍLIA RÉVEILLON

DE SANTO
DAVID BARBOSA
Repórter (editorial)
ON-LINE KOBÁ À MACUMBEIRA
LAURA BLESSMANN
Repórter (conteúdo de marca)

11 PENSAMENTOS
55 LIVRARIA
FLÁVIA PROENÇA

DE ABIAN ALÁFIA
Diretora de marketing Quando eu relaciono minha fé com a palavra família, só consigo pensar
em uma mulher forte. Elaine Araújo, madrinha que me batizou na
FABIO MATEUS Paróquia Santo Cristo dos Milagres, no Fonseca, na cidade de Niterói,
Diretor de arte

12
Região Metropolitana do Rio, em 1998. Anos depois, foi com ela que

56
BABA
conheci a Umbanda. Filha de Oxum, devota da Cigana Sula, dindinha,
VANESSA ALVES
como a chamei até 2012 quando faleceu, me mostrou a beleza da ABAYOMI: A BONECA
Designer sênior
afrorreligiosidade. Ela foi mais do que isso: ela foi mãe. Para mim, para RESPONDE PRETA BRASILEIRA
meus tios, para meus irmãos, para meus primos. Para os afilhados - que
TATIANE FALHEIRO
foram muitos.
Diretora comercial

15 58
MERCADO
Portanto, com a proximidade do Natal, do Ano Novo, e todo sentimento
familiar que o período comporta, pedi à equipe KOBÁ que, nesta
HIBISCO AFRORRELIGIOSO
FÁRIDA MARTINS
Executiva de vendas edição, fizéssemos uma singela homenagem à mona de Oxum que me
apresentou a fé que, hoje, transforma diariamente minha vida.
Nas próximas páginas, você verá reflexões sobre as relações criadas na
EM EXPANSÃO
BRENO LOESER
Ilustrador vivência de terreiro - e mais do que isso: vamos entender como a família

16 60 FÉ
de santo, algo presente na rotina de todo filho de orixá, tem importância
MARCO ALCÂNTARA na nossa formação além das paredes do barracão.
FAMÍLIA DE
ARUANDA
Fotógrafo Em uma matéria mais do que especial escrita pela jornalista Naíse
Domingues, apresentamos os membros do Centro de Umbanda Mística
RONALDO GOMEZ Oxum Apará (Cumoa), que fica em Salvador, e também a forma como
Diretor audiovisual

63
eles carinhosamente tocam o legado deixado pela matriarca, Mãe Hebe,

AXÉ TRANSBORDANDO
que hoje apenas observa com orgulho o trabalho dos novos dirigentes.
Acompanhe:
Além disso, entenda qual é a verdadeira relação da Umbanda e do
@kobaexu Candomblé com o Natal, que é um feriado originalmente cristão. Tire PELA CAIXA
suas dúvidas na coluna ‘Baba responde’, onde o professor Babalawô
Ivanir dos Santos elucida algumas questões que podem também ser as

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Assine gratuitamente a revista:

64 YORUBÁ
suas. Aqui, nosso objetivo é refletir - principalmente com o encerramento

FAMÍLIA É QUEM
www.kobaexu.com
de 2020, ciclo que fechamos depois de um ano intenso. Pai Oxóssi nos

A GENTE ESCOLHE
abençoe. Boa leitura!
A revista KOBÁ é uma publicação on-line
e gratuita, venda totalmente proibida.

46 67
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Gabriel Sorrentino SINO PEQUENINO CONTOS


koba.pauta@gmail.com

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02 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 03


UMBANDA
EU CURTO Gira Familiar é um termo que já vimos ser utilizado em não é um agregador infalível para as famílias, o que será

Alexandre Negrini
muitos Terreiros de Umbanda. Não sabemos se o termo então? Sentimos dizer, mas nada é. Não existem fórmulas
por:
é uma aproximação ao que as igrejas evangélicas fazem, ou práticas mágicas que sejam capazes de unir famílias
nomeando e segmentando seus cultos em: familiar, jo- e grupos sociais de forma duradoura. O chamado “tecido
vens, crianças, etc. social” é fino, tênue, delicado. Está sempre em construção
e deve ter nossa atenção sempre. E deve sim ser costura-
Aqui é preciso dizer, desde o início, que não há nada er- do, desfeito, refeito e reformulado sempre que desejarmos.
rado no termo Gira familiar. Mas também não há nada Dogmas, cânones religiosos e práticas estanques cada

GIRA FAMILIAR: CONCEITO


que o diferencie das outras giras. Todas são, a princípio, vez mais se mostram ineficazes numa sociedade em que
familiares. Não há segmentação e nem impedimento de a mudança é a única certeza. Mas o que a Umbanda tem
participação para este ou aquele grupo etário. E nisso a a ver com isso?

ERRADO OU PRÁTICA
Umbanda tem muito a oferecer como exemplo para outras
religiões e também para o mundo em que vivemos atual- A Umbanda é uma religião livre, sincrética, popular, aber-
mente. ta. Não possui dogma, cânone, livro oficial. É uma religião

INOVADORA NA UMBANDA?
constantemente “em obras” pronta para aceitar o novo,
Parece algo óbvio, mas é sempre importante pontuar. Es- transformar-se e abrigar a mudança. Sua força é a própria
tamos vivendo num momento de pandemia em que todo o diferença entre cada Terreiro, entre suas correntes. E nas
mundo sofre com a perda de seus parentes, amigos e des- giras (ditas familiares ou não) todos são iguais. Todos são
conhecidos por conta de um vírus ainda sem cura. Antes atendidos pelos Guias, não importa a cor, raça, status eco-
mesmo do coronavírus se espalhar por todos os cantos nômico ou religião de batismo. Na Gira de Umbanda todos
do mundo já assistíamos a uma escalada de embates, se- fazem parte de uma mesma família, mesmo que seja por
gregações e nacionalismos em muitas partes do planeta. algumas horas de convivência. Na Gira de Umbanda so-
Não se engane: o “nós” contra “eles” não é um fenômeno mos todos iguais, somos todos irmãs e irmãos.
social apenas do Brasil. O mundo já vivia, há tempos, um
período bem esquisito (pra usar um termo bem simples e Que essa irmandade possa ser exemplo, ultrapassar fron-
generalista). teiras e influenciar pessoas,
conectando-as. Fomos feitos para vivermos juntos.
Uma resposta esperada e possível a este movimento
seria o fortalecimento das religiões e, por conse-
quência, a união das famílias a partir das prá-
ticas religiosas. Sim, é possível que muitas
famílias sejam hoje exemplo disso. Mas
há também um grande número delas que
se dividem na fé, pois cada um de seus
membros têm escolhido livremente qual
Alexandre Negrini Turina
religião seguir.
é jornalista e cientista social
formado pela Universidade de São
Que fique claro: não vemos nenhum pro- Paulo (USP). É cofundador do Umbanda Eu
Curto, maior portal agregador de conteúdo
blema nisso. Mais vale uma família unida
umbandista na internet. Criado em 2011 como
pelo respeito às diferenças do que ressen- uma fanpage, hoje está presente nas principais
tida por uma imposição religiosa em prol redes sociais (@umbandaeucurto) e conta com o apoio de
desta ou daquela crença. Mas se a religião colaboradores como Alexandre Cumino, Adriano Camargo, Engels
de Xangô, David Dias, David Veronezi, Rodrigo Queiroz, Taiane
Macedo e Rubens Saraceni (in memorian).

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FAMÍLIA
Mahe Silva — Oríkì A artista acredita que a espiritualidade é um dos fatores
indispensáveis em sua escrita. Para ela, isso acontece
automaticamente. “Escrevo sobre minha vivência,

ON-LINE KOBÁ
a forma que me enxergo, sobre meus processos de
Junção do nome de batismo, Maira Heloiza da Silva, Mahe
autoconhecimento e desconstrução de conceitos
Silva é como assina a escritora de 32 anos responsável
impostos mas que não condizem com o que estou me
a coluna Oríkì, disponível às terças-feiras. Médium que
tornando e acredito, lembretes de sobrevivência, política
trabalha em uma corrente mediúnica, a artista tem contato
e como questões sociais me atingem”, conta a escritora,
com a Umbanda e com o Candomblé desde criança por
acrescentando que, com isso, é impossível escrever sobre

Gabriel Sorrentino
influência de sua avó materna, tia e primos.
si mesma e ignorar o sagrado que a acompanha.

por:

Conheça a família on-line


KOBÁ: um time de colunistas
digitais comprometidos em
compartilhar conhecimento
sobre religiosidade de matriz
africana

Ogãs, ilustradores, escritores, escritoras, poetisas.


No fim das contas, artistas - e macumbeiríssimos.
Semanalmente, o Instagram oficial do KOBÁ
compartilha conteúdo focado em afrorreligiosidade,
produzido por um corpo mediúnico especial. Os
colunistas digitais do coletivo são filhos e filhas
de orixá comprometidos em divulgar a beleza da
Umbanda, Candomblé, culto tradicional iorubá e
várias outras denominações religiosas. A seguir,
conheça a família on-line KOBÁ!

06 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 07


Thais de Assis e Matheus Pantanal, da nação Efon. “Nossa bíblia é a natureza,
nossos deuses moram em nós mesmos e no outro. Isso é
Hugo de Oxóssi — Cantigas do axé
Augustinho — Ojú Okàn: incrível demais pra não ser homenageado todos os dias”,
conclui a candomblecista que começou a divulgar seus Ogã da Casa de Pai Benedito, em Madureira, no Rio de para o canal começou a ser reduzida, inviabilizando os
os olhos do coração textos no coletivo Barravento ainda em 2014, ano de sua
iniciação. Em 2020, lançou o livro ‘Poesias de terreiro’,
Janeiro, Hugo de Oxóssi é o responsável pela única vídeos semanais que fazíamos”, explica o ogã. Tempos
coluna digital veiculada em vídeo, às quintas-feiras: a depois, o colunista lançou uma nova conta no Instagram,
com ilustrações inéditas de Breno Loeser. Cantigas do axé, que deu nome também ao circuito de já com seu nome e, a partir daí começou a levar um pouco
Advogada e escritora carioca, Thais de Assis é quem lives oferecido pela loja Fio de Ouro, onde também toca do seu axé e amor pelo orixá a cada um dos seguidores.
assina os textos da coluna digital Ojú Okàn, publicada Para somar às palavras de Thais, Matheus Augustinho, curimba. “Ganhei meu primeiro atabaque aos seis anos
às quartas-feiras. Desde criança, a artista sempre teve estudante de Design Gráfico pela Universidade Federal de idade e não largava ele por nada. Andava comigo pra
curiosidade sobre deuses de religiões politeístas, pagãs, de Sergipe (UFS), de 21 anos, é quem ilustra a coluna. cima e pra baixo e em toda oportunidade que eu tinha de
civilizações antigas, astrologia e oráculos em geral. Thais A partir de um desafio entre os artistas da casa que ir pro centro eu sempre aproveitava. O lugar me fazia/faz
conta que recebeu os dogmas da Igreja Católica desde frequenta, onde produziram semanalmente artes com tão bem que, quando eu tinha uns nove anos, meu pai
cedo pela família, predominantemente cristã. “Contudo, a alguma temática da religiosidade de matriz africana, o levava meu material escolar pra eu fazer os afazeres da
partir dos 12 anos comecei a vivenciar minhas próprias profissional viu uma boa oportunidade para conhecer um escola no próprio terreiro”, narra o colunista.
questões ligadas à espiritualidade”, afirma. pouco mais sobre os orixás.
Em 2017, com um dos seus irmãos de santo, Hugo
Em 2014, a escritora foi iniciada para Oyá na nação “Iniciei a coletânea com Exu e foi um divisor de águas na criou o canal Atabaque On-line, onde divulgavam
Ketu Ile Axe Oju Omi Opará, em Campo Grande, no Rio minha vivência de artista. Não parei mais e espero que cantigas e algumas publicações com textos.
de Janeiro. Atualmente, Thais faz parte do Axé Olorokê minha arte seja sempre um instrumento para expressar o “Acabou que começamos a trabalhar e a atenção
amor pelo axé e o Sagrado. Acredito que a arte é atemporal
e uma arte sobre orixá nunca é e nunca será só uma arte”,
afirma o artista.

08 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 09


Ògúndáre e Alice Storm — Encontrei na religiosidade tradicional iorubá a fonte que
PENSAMENTOS
DE ABIAN
supre todos os aspectos da minha existência. Quando se

Vivendo com o orixá fala de orixá, é importante citar que não é apenas uma

Tatiane Falheiro
prática espiritual, mas sim uma filosofia de vida”, explica
por:
o artista, acrescentando que os orixás e o corpus literário
Às sextas-feiras, a coluna digital Vivendo com o orixá
de Ifá apresentam condutas e formas de ver o mundo as
apresenta aos seguidores do KOBÁ um pouco mais sobre
quais moldam o fiel por completo.
o culto tradicional iorubá. Ògúndáre, estudante e escritor
de 18 anos que assina os textos da coluna, conta que sua
Alice Storm, professora de canto e artista responsável
ligação com a religiosidade é uma relação de vida. Em
pelas ilustrações da coluna, nunca foi de expressar a
2015, ele se iniciou no culto de Ifá, na família do Oluwo
religiosidade através das artes - muito menos de redes
Awodiran Sowunmi, através do Oduduwa Templo dos
sociais. “Através da arte, essa expressão começou
Orixás. Quando me tornei abian, descobri que o Sagrado é minha contas também são. Quando olho dentro do terreiro, todos
quando eu decidi fazer uma pintura de Aje e Oya quando
família. Meus irmãos de santo são a nossa família - nós em comunhão, ajudando, limpando, trabalhando,
tinha 15 anos, e depois de Xangô, um tempo depois.
“Digo a todos que foram os orixás que salvaram a muitos até na vida fora do terreiro. No pouco tempo de cambonando, vejo uma enorme família em prol do maior
Todavia, eram sempre pinturas pontuais”, explica a
minha vida, por me trazerem um propósito para viver. santo que tenho, ganhei pelo menos três irmãos de fora objetivo, o Sagrado.
ilustradora, acrescentando que esse tipo de trabalho se
do ilê que, inclusive, me ajudam - e muito! - no meu
tornou mais recorrente com o convite para, ao lado do seu
aprendizado espiritual. Vovô é meu meu avô, por que não? Ele que acolhe, me
irmão carnal Ògúndáre, transformar textos da Vivendo
ouve, aconselha e usa toda sua sabedoria de mais velho
com o orixá em imagens.
A família é um conceito que podemos modificar conforme para me mostrar o melhor caminho. Digam a verdade: um
nosso amor. Meus guias são minha família, minhas abraço de preto-velho é o melhor colo que existe, não é?

Amar o Sagrado é amor à família, honrar o que temos de


mais precioso. A construção da palavra família deve ser
só nossa, do jeito que mais nos conforta, e ser umbandista
é amar a todos, sejam os de sangue ou não.
Tatiane é abian de uma casa de Omolokô
em Niterói, na Região Metropolitana do
Rio. Abian é o começo. Essa é a pessoa
que se interessou pelo culto de matriz
africana e faz parte de uma comunida-
de de terreiro, mas ainda não pas-
sou pelos rituais de iniciação.

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BABA
RESPONDE
KOBÁ | Como as tradições afro-brasileiras interpretam a palavra “família”?
BABALAWÔ IVANIR | Bom, é uma questão que é possível de ser respondida a
partir de várias compreensões. Mas fato é que o conceito de família para as tra-

Babalawô Ivanir dos Santos


por: dições afro-brasileiras não perpassa pela concepção da ideia mononuclear, tal
como é perceptível nas tradições europeias.

KOBÁ | Qual é a importância da presença de famílias dentro do terreiro?


BABALAWÔ IVANIR | O terreiro é uma grande família.

KOBÁ | Para o senhor, quais são os significados da “família de santo”?

FAMÍLIAS
BABALAWÔ IVANIR | Relação de solidariedade, respeito, coletividade, afeto,
construção coletiva, circularidade.

KOBÁ | A família também é uma forma de garantir a continuidade das fés de ma-
trizes africanas?

DE AXÉ
BABALAWÔ IVANIR | Sim, na medida em que revivemos e ressignificamos com
os nosso mais velhos todas as experiências sobre a importância da manutenção
e prática da nossa fé e devoção aos orixás.

KOBÁ | O Natal é uma data muito relacionada à família. Entendendo o dia como
um feriado cristão, como o senhor celebra este dia?
BABALAWÔ IVANIR | Eu, particularmente, não comemoro datas simbólicas que
não perpassam pelas minhas construções religiosas. Não é uma questão fácil,
pois boa parte das pessoas que estão dentro do meu ciclo familiar e social estão
envoltos a essas comemorações. O que corrobora para o fortalecimento dessa
O professor doutor Babalawô decisão são as minhas experiências com o culto de Ifá.
Ivanir dos Santos é coordenador
de área de pesquisa no Laboratório KOBÁ | E o Candomblé: como ele se relaciona com o Natal?
BABALAWÔ IVANIR | Não é impedido a nenhum adepto celebrar a data. Não po-
de História das Experiências
demos perder de vista o contexto social que nós fomos forjados. Cabe a cada
Religiosas da Universidade Federal adepto escolher a melhor forma de como se relacionar com a data.
do Rio de Janeiro (LHER/UFRJ),
KOBÁ | A concepções de família nas religiões afro-brasileiras são distintas das
membro da Associação Brasileira
que são defendidas pelos Cristianismo — o casamento LGBTQ+, por exemplo, é
de Pesquisadores Negros (ABPN) comum na Umbanda e no Candomblé. Para o senhor, quais são os motivos desta
e conselheiro de estratégia diferença?
BABALAWÔ IVANIR | Como salientei, não temos uma concepção limitada de
do Centro de Articulação de
família. Até porque as famílias em África são extensivas. Eu costumo dizer
Populações Marginalizadas (CEAP). que família também é uma escolha.
Em 2019, recebeu um prêmio do
Departamento de Estado do Governo KOBÁ | Ancestralidade e família: com um ponto de vista baseado nas
religiosidades de matrizes africanas, como o senhor relaciona essas
dos Estados Unidos pela sua duas palavras?
atuação na luta contra a intolerância BABALAWÔ IVANIR | Na nossa tradição, um indivíduo nunca deixa
às religiões de matrizes africanas no de fazer parte da família (comunidade). Nosso ancestres são partes
da família, integram nossa sociedade e nos dão caminhos para que
Brasil. Em toda edição, o professor
possamos fortalecer as nossas famílias, pois acreditamos que
elucida dúvidas sobre Candomblé e não existe um limitador entre Orum e o Aiyé, afinal são partes que
religiosidade de matriz africana. complementam as nossas totalidades.

12 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 13


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KOBÁ | “A gente sempre acaba na Casa da nossa família. KOBÁ | Na África, já que os orixás pertencem a uma linha-
HIBISCO
Clara Nery
Se você roda, roda e acaba numa casa jeje, é porque a sua gem, sendo transmitidos, na maior parte dos casos, por por:
família, lá nos primórdios, vem do Daomé. A gente sabe que descendência patrilinear, é possível afirmar, então, que a
o ser humano veio da África. Então todo mundo só está família de santo e a família de sangue são a mesma?
achando o caminho de volta pra casa”. Qual é a opinião do BABALAWÔ IVANIR | Bom, não podemos correr o risco de
senhor sobre este relato divulgado no artigo “De sangue e transpor as nossas construções sociais religiosas brasileiras
de santo: o parentesco no candomblé”? sobre as construções sociais africanas, pois podemos correr
BABALAWÔ IVANIR | Acredito que existe uma relação o risco de cair em uma narrativa ainda sobre o viés colonial
sensível dessa grande e extensa família que se formou no no campo da comparação. O modo como o culto aos orixás
Brasil através das resistências cotidianas contra o racismo, é praticado em África não é a mesma forma que cultuamos

FAMÍLIA
intolerância religiosa e todas as formas de preconceitos. e construímos em solo brasileiro. Existe uma correlação
Essa íntima ligação que nos faz refletir sobre as nossas quando você pertence ao mesmo ramo de iniciação. Por
experiências ancestrais, sobre os modos e costumes que exemplo, eu sou da Família Jokotoye, pois fui iniciado pelo
nos unem diante dessa dimensão atlântica. BabalawôBankoleJokotoye. Mas existe uma particularidade
nessas relações.

É uma grande costura.


Com grandes buracos surgindo, Clara Nery é jornalista, atriz, poetisa,
repórter da Band TV e fundadora do
Um sempre vai remendando o outro. Hibisco Poesias. A página foi criada em

NOSSO ANCESTRES SÃO PARTES DA FAMÍLIA,


Muitas vezes, rasgando o próprio coração para costura. 2014 como um espaço para divulgar
poemas, textos e citações autorais por

INTEGRAM NOSSA SOCIEDADE E NOS DÃO


meio do Facebook, Twitter, Instagram
É o nosso conjunto de laços,
(@hibiscopoesia) e blog.
Mesmo que alguns com muitos nós.

CAMINHOS PARA QUE POSSAMOS FORTALECER AS Mas são os que nos seguram.
Nem sempre de sangue,

NOSSAS FAMÍLIAS, POIS ACREDITAMOS QUE NÃO e sim os escolhidos.

EXISTE UM LIMITADOR ENTRE ORUM E O AIYÉ Cada qual com suas manias,
as diferenças gritam
e o amor também.
- Babalawô Ivanir dos Santos

O tema da nossa próxima edição


será Iemanjá. Envie sua pergunta para
koba.babaresponde@gmail.com e participe!

14 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 15
Família
Nos terreiros, é comum ouvir um ou outro - senão todos os membros da casa - se
chamando de irmão ou irmã. Claro, para isso, é preciso que haja um pai ou uma mãe,
que zela, cuida, briga e, principalmente, acolhe. De sangue ou de santo, não importa,
a família que cultuamos dentro dos barracões faz parte da caminhada espiritual de
cada umbandista ou candomblecista. Por isso, a seguir, confira alguns momentos de
louvor às pombagiras e exus celebrados pela família do Centro de Umbanda Mística
Oxum Apará, em Salvador.

Fotos por:
Marco Alcântara

Esta galeria de fotos é oferecida pelo

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“Conhecer um terreiro de Umbanda em outra região


foi incrível. Observar as diferenças nas formas de
culto, conhecer o ponto de vista do outro é sempre
enriquecedor”, comenta Marco Alcântara.

18 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 19


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20 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 21


O fotógrafo conta que a casa visivelmente tem uma
energia vigorosa, o que, para ele, se reflete em seus
dirigentes e na sua relação com os filhos. “Olhos
que transparecem respeito, carinho, entusiasmo.
O que se transfere na forma de se relacionarem,
criando um ambiente realmente iluminado”, diz.

22 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 23
24 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 25
“Família é, ou ao menos deve ser sempre, o esteio
de qualquer indivíduo. É a fonte primaz do que
irá moldar seu caráter, conhecimento, a maneira
como se relacionará com o mundo e com outros
indivíduos. Família de santo não diverge disso
e o componente religioso nunca irá caminhar
dissociado do caráter sócio-político na formação
dos indivíduos em prol do seu crescimento e
da luta pelo aprendizado e preservação de sua
história/ancestralidade”, afirma o artista que
fotografou o terreiro em Salvador.

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28 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 29
Para Marco, sempre haverá conflitos,
divergências, seja dentro do ambiente do
terreiro, ou em famílias carnais que não
aceitam a escolha de um fiel que caminha
dentro de uma casa de santo. “Nunca
passei por essa dificuldade, mesmo estando
em uma família onde existam membros de
denominações religiosas diversas”, revela.

30 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 31


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“Com passar do tempo, meus conflitos entre conhecimento transmitido e a lógica imposta
socialmente à prática me fizeram optar por não ter uma casa, uma família de santo pra
chamar de minha. Contudo, apesar disso, para mim povo de terreiro é família. São irmãos,
pais e mães que devo ouvir, respeitar e aprender sempre”, conclui o fotógrafo.

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FAMÍLIA É QUEM
Quem faz ou já fez parte de uma casa de santo sabe que Salvador, tem usado para administrar os quase 200
a convivência no terreiro e a relação entre as hierarquias membros. Atualmente, o centro tem três dirigentes
criam laços semelhantes a uma família. Não por acaso, ativos: Isabel Garrido, Raimundo Nonato, Taiane Macedo;

ANaíse
GENTE ESCOLHE
os dirigentes são comumente chamados de pais e mães, a fundadora, Hebe Macedo, hoje em dia apenas observa
e os membros de filhos. Esta dinâmica familiar cria laços de fora da roda enquanto seus filhos tocam gira.
que muitas vezes são mais fortes e significativos do que
vínculos sanguíneos. Cada um dos três dirigentes teve sua própria caminhada

Domingues
na religiosidade, mas todos tiveram um denominador
por: Não é incomum que em centros de Umbanda com muitos comum: Mãe Hebe. Matriarca da família Cumoa e
filhos o comando espiritual seja dividido entre mais de fundadora do templo, ela foi responsável por iniciar Mãe
uma pessoa. Esta é a fórmula que o Centro de Umbanda Bel e Pai Rai na Umbanda, além de ser a mãe de sangue
Mística Oxum Apará (Cumoa), terreiro de Umbanda em de Mãe Tai.
Para além dos laços carnais, conheça a família que comanda o Cumoa,
terreiro de Umbanda que tem tradição de mais de 50 anos em Salvador

36 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 37
Talvez, ao iniciar os atendimentos na sala de casa, na espiritualidade antes disso, ajudando pessoas. Quando Quando o Pai Rai se juntou à família, já estavam na ia toda terça-feira — comenta Pai Rai que hoje vê sua
Cidade Baixa, perto da igreja do Bonfim, em 1969, Mãe eu cheguei lá era uma reunião de umas 15 pessoas. terceira casa. Ao contrário de Mãe Bel, que era de família esposa, conhecida carinhosamente como tia Ana, como
Hebe não tivesse ideia que aquele seria o pontapé inicial Primeiro fui sozinha, depois fui levando mais gente - espanhola e católica quando conheceu a religião, ele responsável pela administração financeira do terreiro.
para o espaço sagrado que o Cumoa se tornou. Mãe Bel relembra Mãe Bel, que acompanhou o espaço ficar cada tinha o Candomblé como herança, e se encantou pela
conta que, muito antes da possibilidade de haver um vez menor para os atendimento e esteve em todas as Umbanda quando conheceu o terreiro comandado pelas Apesar de terem construído o Cumoa juntos, a boa
local físico para o terreiro, era a espiritualidade de sua mudanças de lugar: — Depois nós fomos para uma casa duas mulheres que hoje são suas companheiras de relação familiar entre os dirigentes fora do trabalho
amiga e mãe de santo que constituía o pilar principal do pequena que era uma sala, um quarto e banheiro e ficava sacerdócio. Ele relembra que aos poucos foi inserindo o espiritual é a fórmula para o bom funcionamento da
Cumoa. As andanças que fizeram o terreiro ir “de uma cheio de gente. Antes de chegar aonde estamos hoje, Cumoa no cotidiano de quem divide a vida com ele. casa. Criada em uma família em que o pai era músico,
ponta a outra da cidade” fortaleceram mais ainda os passamos por cinco lugares de uma ponta a outra da Mãe Tai se acostumou com os almoços de domingo com
laços espirituais e terrenos entre os três. cidade — brinca. — Fui levando minhas filhas, minha mulher e hoje minha a casa lotada - e é claro que mãe Bel e Pai Rai estavam
família toda frequenta. Também consegui levar minha juntos sempre.
— No início, a gente usava a sala da casa para os mãe e antes da pandemia, mesmo aos 94 anos, ela
atendimentos e depois de um tempo usamos um — Meu pai adotou os filhos de Pai Rai. Via eles mais
quartinho dos fundos. Mas Mãe Hebe já tinha prática da do que os próprios netos. — brinca a dirigente. — Nós
formamos uma família de alma. Não somos de sangue,
mas temos essa relação de cumplicidade.

38 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 39
A união que faz a força esta bandeira ao mundo. Nós estamos por trás dando
segurança para ela poder cumprir a missão que Olorum
deu a ela — emociona-se.
E foi essa relação que fez o Cumoa reabrir em 2015, após
ficar 2 anos fechado. A decisão de Mãe Tai e Pai Rai de
Mesmo com essa relação, que vai além de denominações
dar continuidade ao trabalho de mãe Hebe, com o apoio
carnais, a hereditariedade foi fator essencial para a
de Mãe Bel, veio durante um café dos pretos-velhos. Ao
reabertura do centro, já que, além de tudo, Mãe Tai
perceber o ímpeto de Mãe Tai para seguir os trabalhos
buscou dar continuidade ao trabalho da mãe. Segundo o
do terreiro, Mãe Bel quis ajudar no retorno. E hoje a mais
professor Fabio Scorsolini-Comin, doutor em Psicologia
velha fala de sua companheira de sacerdócio com o
pela Universidade de São Paulo (USP) e professor
orgulho de uma mãe:
da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP
e coordenador do ORÍ - Laboratório de Pesquisa em
— Eu pensava: ‘essa menina tem a missão de levar
Psicologia, Saúde e Sociedade, esta relação familiar
a bandeira de Oxalá pro mundo’. E eu dizia isso para
é essencial para a transmissão de conhecimento e
ela. Tenho honra de saber que minha filha vai levar
manutenção do funcionamento dos terreiros.

40 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 41
— Nas famílias de santo, a ancestralidade e a tradição bordoadas que tomamos. Existe a afinidade a mais com
ocupam um papel central pois dizem ao sujeito de onde um ou outro, filhos que veem em Pai Rai uma figura
ele vem e qual a sua missão, qual o seu pertencimento, paterna, e é a mesma coisa com Mãe Bel e comigo. Mas
a sua ancoragem. A transmissão desses conhecimentos estamos sempre ali, unidos e com respeito — reforça
ancestrais permite a perpetuação desses saberes, o que Mãe Tai.
não significa que eles também não estejam submetidos
a uma dinamicidade, a um movimento. Cabe às figuras Observando a relação entre os três é até difícil imaginar
mais velhas e experientes o papel de transmitir aos que haja algum tipo de desentendimento entre eles, mas
mais jovens esses conhecimentos considerando o acontece. Afinal, assim como toda família, os dirigentes
amadurecimento de cada um para a recepção desses não estão imunes a brigas - mas é a forma com que eles
saberes e o papel que cada um ocupa naquela estrutura. lidam com a situação que faz toda diferença.

A relação familiar não fica restrita aos dirigentes da casa. — Às vezes nos perguntam como três pessoas
Desde a reabertura do terreiro, os filhos que participam comandam uma casa, se não tem briga. Não, porque
da roda e são médiuns da casa também reproduzem somos família. A gente briga do lado de fora, como toda
uma dinâmica familiar entre si. Segundo o professor família, mas quando chega lá dentro, nós viramos uma
Fabio Scorsolini-Comin, é normal que filhos de santo pessoa só. É esta a relação de amor que tenho por elas
criem laços afetivos semelhantes aos familiares entre si — salienta Pai Rai.
e com os seus pais e mães de santo.
Mãe Bel também se emociona ao falar da relação com seus
— O fato de as pessoas partilharem de uma mesma companheiros e mãe Hebe. Ela brinca que é impossível
religiosidade e de uma mesma inteligibilidade acerca não se sentir da família depois de trocar “muita fralda de
do mundo gera, inevitavelmente, proximidade. Além uma e puxar muito a orelha de outro”. A lembrança da
disso, nos terreiros, essa proximidade em termos do que amizade com Mãe Hebe, que já dura mais de 50 anos,
se acredita e ao lugar ao qual se pertence é favorecida marejou os olhos. O companheirismo começou quando
pelas relações de cooperação, de apoio e de orientação ela ainda era estagiária de enfermagem no hospital
que existem nessas estruturas. Assim, entre os filhos onde eram realizados os atendimentos espirituais
há o compromisso com o cuidado em relação àquele pela fundadora do terreiro. Desde então, as duas
lugar, às pessoas que fazem parte do terreiro e com se tornaram inseparáveis e construíram a
as próprias tradições. Esses aspectos são partilhados, base da família Cumoa.
geram identificação, compreensão mútua, o que também
pode promover, em alguns momentos, conflitos. A — Eu vou morrer com ela sendo minha
religiosidade e a ancestralidade podem fornecer ao mãe, orientadora, minha comadre.
sujeito a certeza de pertencer, de estar conectado a Nós choramos e sorrimos juntas,
algo, o que é promotor de bem-estar e de ampliação do compartilhamos tudo. A gente
sentido de vida. compartilhou a vida inteira, nossa
família. Mãe Tai foi a daminha de
Este respeito mútuo entre os dirigentes é ensinado para honra do meu casamento — conta
todos aqueles que fazem o curso de desenvolvimento mãe Bel, que associa os anos de
ministrado pelo Cumoa, que é de onde saem os filhos que companheirismo às iabás que regem
compõem o corpo mediúnico da casa. Este ensinamento o ori das duas: — As irmãs de mãe,
é passado também como forma de manutenção Oxum e Iemanjá, juntaram essas
da harmonia da casa. A afinidade com um ou mais águas doces e salgadas. Não consigo
filhos de santo é natural, mas todos criaram laços e, imaginar minha vida sem ela! Estava
principalmente, respeito pelos colegas. em todos os momentos da minha
vida, sou uma mulher apaixonada por
— No início sofremos porque tinham filhos que jogavam uma mãe, amiga e companheira. Eu
um contra o outro e hoje a gente se uniu por causa das sou por ela e ela por mim.

42 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 43
PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO

O legado do Cumoa — Ele segue os passos de forma orgânica. A mãe trabalha aqui, é gestora do junto com tia Ana,
mas a gente nunca forçou nada — salienta mãe Tai, que vê semelhanças com a sua própria

em ótimas mãos infância quando observa o interesse do menino: — Ele gosta, que nem eu quando pequena que
corria pro terreiro. Minha filha tem 15 anos, mas não tem essa afinidade. Eu me vejo no Caio,
dentro do terreiro, brincando com os erês, com os boiadeiros.
E parece que todo o trabalho espiritual e caridade do Cumoa não tem prazo de validade. O
pequeno Caio, neto de Pai Rai, tem 7 anos e já se interessa por tudo. Já decorou nomes dos Mãe Bel espera que, assim como mãe Hebe foi para eles, os três sirvam de inspiração para a
orixás, os pontos e cumprimenta firmezas. Na escola onde estuda, fez questão de falar para a caminhada espiritual do menino.
professora que ensinava os santos católicos que aquele era “dia de Xangô e já acendi a vela”.
Desde cedo, sabe que sua função no terreiro “é ter muita responsabilidade”: nunca deixa de — Caio não precisa ser ensinado! Ele quer aprender! Vai ser a continuidade, não porque nós
cumprimentar as firmezas quando chega e já pediu até para aprender a riscar pontos. ensinamos, mas porque ele sentiu que ali é o lugar dele — finaliza.
SINO PEQUENINO
OU ADJÁ? — Minha mãe adora o Natal. Inclusive, eu acredito que muitas crianças negras associam

Gabriel Sorrentino
a data a uma época de alimentação diferente e farta, e a decoração Natal pela cidade
por: retoma o lúdico que não existe o ano inteiro onde se tem a pobreza e a violência como
uma constante — explica a antropóloga, afirmando que, na verdade, deve ser um momento
para além da manifestação dos valores cristãos.

Esse pensamento também é, em partes, reiterado pelo babalorixá Pai Augusto de

Entenda como as religiosidades de


Logunedé, de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, que acredita que o Natal remete à
união da família, reconciliação e novas oportunidades. Para ele, a data é uma oportunidade
das pessoas se encontrarem.
matrizes africanas se relacionam — Nem todo mundo que está nas reuniões de Natal possui uma fé, mas possui uma

com o Natal, um feriado cristão tradição, que faz parte da cultura brasileira. A data proporciona reencontros entre pessoas
e bons momentos entre elas. Se pensarmos em qualquer religião, a grande riqueza do
ser humano é alegria, bem estar, celebração, a paz. O Natal remete à família. Família
remete a orixá — opina o pai de santo, que não nega: o Candomblé não tem relação, no
Herança da colonização portuguesa em solos brasileiros, a tradição do Natal, fim das contas, com o Natal — É uma festividade cristã, é inegável. Da mesma forma que
que possui origem cristã, celebra anualmente o nascimento de Jesus. Em 1824, a sabemos da sua importância para a cultura brasileira. Muitas pessoas comemoram, mas
Constituição Imperial do Brasil instituiu o catolicismo como religião oficial, o que no Candomblé não é uma prática religiosa.
fez com que a fé estivesse cada vez mais presente nas casas de solo tupiniquim -
justificando, hoje, a relevância do feriado para os brasileiros. A relação do Candomblé com o Natal, para Pai Augusto, também é justificada com um
diálogo interreligioso. Segundo ele, a fé de matriz africana também tem interferências
Portanto, durante todo o período imperial, a união entre o Estado e a Igreja Católica foi cristãs:
determinante para a legitimidade do regime monárquico, repercutindo diretamente na
cidadania e na vida cotidiana dos brasileiros. Ao lado do regime escravista, a religião — Na Bahia, por exemplo, muitas mães de santo lavam as escadarias das igrejas ou vão
católica se colocou como um dos grandes pilares da cultura e das estruturas política, às missas de Nosso Senhor do Bonfim e até acabam fazendo promessas. Nada disso
social, econômica e jurídica da sociedade do século XIX. ofende o orixá. Afinal, existe fé em tudo que se faz. A comemoração no Candomblé não
existe, mas se o feriado é nascimento, isso deveria ser celebrado sempre — reflete Pai
Por isso, a tradicional ceia de Natal, onde pratos típicos como a rabanada, o peru e Augusto, fazendo uma analogia à iniciação de filhos de santo em terreiros — Algo que é
os bolinhos de bacalhau são comumente encontrados, é fruto de uma comemoração muito alegre em um barracão é o nascimento de um iaô. Isso representa a continuidade
cristã. Contudo, em meio a um país estruturado dessa forma, há os fiéis que seguem de uma religião, porque alguém conseguiu se cuidar espiritualmente, trazer a energia
religiosidades de matrizes africanas - que se distinguem bastante das crenças cristãs. daquele orixá à Terra, representando continuidade para proteger e garantir a existência
de todo o nosso legado.
A antropóloga candomblecista Marina Miranda não celebra o Natal mas, de acordo
com ela, se trata de uma escolha particular e também política. Por mais que não O Natal produz significados que vão além do conjunto colonizador de características
queira vivenciar a data, Marina relembra que, anualmente, ele estará manifestado em psicológicas absorvidas em forma de valores humanos: é o que acredita a antropóloga
todos os espaços sociais. Para ela, o Natal é um feriado prolongado onde a cidade Marina Miranda, que afirma que o feriado se revela também uma data de memórias
está enfeitada - e um momento em que visita seus pais. saudáveis da infância para muitas pessoas.

46 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 47
É UMA ÉPOCA DE UM HUMANISMO TEMPORÁRIO,
— É uma época de um humanismo temporário, manifestado — Para os umbandistas, é um período de aconselhamento
em doações de roupas e comidas. Em minha interpretação, com os guias, pais e mães de santo, buscando o

MANIFESTADO EM DOAÇÕES DE ROUPAS E o Natal é o espaço em que é possível satisfazer um certo


narcisismo social. Pessoas que sempre exploraram o
autodesenvolvimento, o perdão dos erros do ano, e de
preparativos para os desafios do novo ano. É um período

COMIDAS. EM MINHA INTERPRETAÇÃO, O NATAL trabalho de pessoas pobres, desprezaram moradores em


situação de rua e não exercitam nenhuma empatia podem
de comemoração pelas conquistas daquele período que
se encerra, pela vida ao lado dos irmãos de corrente
É O ESPAÇO EM QUE É POSSÍVEL SATISFAZER UM transmutar sua atitude em algo heroico e se sentir bem e principalmente pelos aprendizados conquistados —
através da “caridade”. Para nós de tradição africana, o conclui a mãe de santo.
CERTO NARCISISMO SOCIAL. compartilhamento do alimento e das forças sagradas com
toda comunidade são uma constante do nosso cotidiano
— argumenta a pesquisadora.
- Marina Miranda

O Natal umbandista
Por se relacionar de forma mais profunda com o
sincretismo religioso entre orixás e santos católicos, é
possível imaginar que haja uma associação maior entre
Umbanda e Natal, ao contrário do Candomblé. De acordo
com a tradição religiosa de Aline Figueiró, sacerdotisa do
TEU Cachoeira das Águas Sagradas, em Florianópolis,
Santa Catarina, o Natal é a data de celebração a Oxalá e
ao poder da fé. De acordo com a dirigente de Umbanda
Sagrada, a data é diretamente ligada ao Natal cristão pelo
sincretismo entre Jesus e Oxalá. Contudo, a umbandista
afirma que o 25 de dezembro era representativo para
muitos dos povos antigos, mesmo antes de Jesus Cristo.

— As festividades nórdicas do Yule, que eram comemoradas


no solstício de inverno, deram origem ao Natal cristão.
Esta festividade marcava o retorno da criança solar, onde
o sol retornava cada manhã mais forte e permanecia mais
tempo no céu. Para alguns povos nórdicos, marcava o
início de um novo ano. Os romanos tinham uma deidade
chamada Solis Invictus, “Sol Invencível”, e no dia 25 de
dezembro era comemorado o Natalis Solis Invictus, o
nascimento do Sol Invencível, celebração semelhante ao
Yule nórdico. Destas festividades é que surgiu o Natal —
revela Aline.

A mãe de santo ainda explica que, como Jesus é uma


representação da fé, da bondade e da luz - qualidades
também relacionadas a Oxalá -, existem semelhanças
entre o Natal das duas religiões. Além disso, ela conta
que, tanto para católicos quanto para umbandistas, é um
período de fortalecimento da fé.

48 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 49
TERREIRO E
SOCIEDADE
Obalera
Bença mãe?! Bença pai?! Bença irmã?! Bença irmão?! forma de continuidade, é uma forma de persistência de
por:
Motumbá, kolofé, mukuiu ou benção mesmo, não há quem um modo de vida e de um modo de pensar que é milenar
não participe do ritual de trocar bença dentro do terreiro, na África e que é anterior ao cristianismo”, é o que afirma
muitas vezes seguido daquele abraço afetuoso de saudade Muniz Sodré. Se por um lado fomos apartados de nossas
da mãe, pai, irmã, irmão, que não se via há algum tempo famílias de origem e, em diáspora, sendo em muitos casos,
(antes da pandemia, porque agora não dá). impossibilitado de reconstruí-las, por outro, os terreiros,
Já pararam para pensar-sentir sobre a força e o significado assim como os quilombos, foram e são espaços de uma
que há em reconhecer e chamar alguém exatamente por espécie de reterritorialização e reconfiguração familiar. Não
nomenclaturas que expressam parentesco? É a noção aquela noção de família nuclear, característico da cultura

FAMÍLIA DE SANTO:
de família que está posta. “Família de santo” é como branca-ocidental, mas uma noção de família extensiva,
comumente chamamos. reestruturada através de laços ancestrais, cujo o princípio
Uma das tantas atrocidades provocadas pelo processo de organizador é a espiritualidade e antiguidade - legado da
colonização, sequestro e escravização foi o esfacelamento cultura africana.

LAÇOS RECRIADOS,
de famílias e comunidades. Eis que de repente, sem avó, Amor de irmão! Amor de Orixá-Vodun-Inquice! Amor de
sem mãe, sem pai, sem irmão, sem território. Um dos valores Iyá e de Bàbá! Sentimentos que simplesmente nos tomam!
centrais para culturas africanas atingido frontalmente. Dignidade restituída, alimentada e cultivada. É o poder
Muitas vezes esquecido, trazer esse trágico fato histórico da ancestralidade redefinindo nossos laços familiares

SENTIDOS E VIVENCIADOS
para nossa conversa potencializa o nosso entendimento e gerando a oportunidade de seguirmos preservando e
sobre o papel político-existencial, assim como a própria transmitindo um modo de vida, a partir de nossos próprios
configuração dos nossos terreiros. “O terreiro é uma valores culturais.

Homem negro de Candomblé, Obalera é cientista


social formado pela PUC-Rio e pesquisador-ativista na
área de relações raciais. Como escritor e poeta, desenvolve
trabalhos autorais sobre racismo religioso e também que buscam
afirmar e difundir os valores e a beleza das religiões de matriz
africana. É colunista da comunidade Ataré Palavra Terapia. Em
2019, publicou o ebook “Por uma perspectiva afrorreligiosa:
estratégias de enfrentamento ao racismo religioso”,
publicado pela Fundação Heinrich Böll. Atua
também como educador popular e brincante
na Companhia de Aruanda.

50 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 51
RÉVEILLON À
MACUMBEIRA
A INICIATIVA DE SE FAZER A FESTA NA PRAIA DE COPACABANA PARTIU
DE TANCREDO DA SILVA PINTO, O TATA TANCREDO, LÍDER RELIGIOSO,
SAMBISTA E PERSONAGEM FUNDAMENTAL DA CULTURA CARIOCA

Gabriel Sorrentino
por:
- Luiz Antônio Simas

fazer a festa na praia de Copacabana partiu de

Costumes e tradições da Tancredo da Silva Pinto, o Tata Tancredo, líder


religioso, sambista e personagem fundamental

Virada têm origem com da cultura carioca, ainda nos anos 60 — elucida
Luiz Antônio Simas, escritor, professor e

Tata Tancredo historiador.

De acordo com o mestre em História Social pela


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
era bonito ver a orla ocupada pelos terreiros e
No último Réveillon, o Rio de Janeiro bateu a noite iluminada por velas. Simas afirma que,
recorde de turistas. Segundo a Riotur, órgão da inclusive, o furdunço não excluía ninguém: todos
Secretaria Especial de Turismo, a cidade que e todas que estavam por ali, por via das dúvidas,
tem a maior festa da virada a céu aberto no garantiam ano bom recebendo passes de
país recebeu 1,7 milhão de turistas. No total, caboclos e pretas-velhas nas areias, com direito
a queima de fogos levou cerca de 2,9 milhões a cocares, charutos e sidra de macieira.
de pessoas à orla de Copacabana. A cor
predominante é a branca - nas flores jogadas ao — E não tinha rede social para a pessoa fazer
mar e, principalmente, nas roupas. selfie com entidade e tirar onda de alternativa,
como vi dia desses. O babado rolava na fé —
Na Virada, a cor presente nas vestimentas de provoca o professor.
umbandistas e candomblecistas durante o ano
inteiro - principalmente às sextas-feiras de Hoje, a confraternização nas areias - que virou
Oxalá - está também nos looks de católicos, atração turística - promove a ocupação da
evangélicos, espíritas e até mesmo ateus. O que rede hoteleira e, de acordo com Simas, instaura
poucos sabem é que, na verdade, boa parte das divisas. Ele afirma que os atabaques foram
tradições de Réveillon tem origem nas religiões silenciados e, por isso, os terreiros buscaram
de matrizes africanas - e as roupas brancas são alternativas para continuar batendo e fugirem
um ótimo exemplo, assim como a própria festa do silenciamento imposto pela comercialização
na praia de Copacabana, que hoje se tornou da festa.
atração turística.
— Os shows de roqueiros, sambistas,
— Nesses momentos é importante lembrar que sertanejos, rappers, DJs de música eletrônica,
devemos esse costume aos umbandistas, que revelações adolescentes, cantoras baianas,
durante muitos anos ocupavam sozinhos as blocos carnavalescos descolados, além de
areias para louvar Iemanjá. A iniciativa de se transformarem a festa em um verdadeiro

52 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 53
sarapatel sonoro, calaram os tambores rituais. Comer uvas à meia-noite, por exemplo, é algo muito
A elitização do furdunço é evidente nos espaços importante na Espanha para chamar prosperidade
reservados nas areias, controlados por grupos para o próximo ano. Na Umbanda, contudo, muitos
privados, hotéis, quiosques e similares — denuncia fiéis têm costume de comer a fruta em homenagem
o professor, acrescentando que, inclusive, existe até às iabás, mais especificamente a Oxum, também para
pacote turístico incluindo o barquinho de Iemanjá e pedir que o Ano Novo seja próspero.
revista de celebridade que monta cercadinho com jogo
de búzios fashion. — Curioso é que ninguém brinca de A lentilha é outro alimento presente nos costumes
simulação da Missa do Galo — conclui. de Réveillon - principalmente nas mesas de ceia,
utilizada com objetivo de atrair dinheiro e sorte. Essa
crença surgiu de uma parábola bíblica que conta que
Tradições com toque de axé Esaú, faminto, vendeu seu direito de filho mais velho
a seu irmão Jacó em troca de um prato de lentilhas
e, embora tenha deixado de ter alguns privilégios,
Além das flores ao mar e o uso de roupas brancas, tornou-se um homem muito rico. Junto com o
o Réveillon brasileiro também possui outras costume de acender incensos durante a troca de ano,
tradições que, mesmo que não tenham origem na reforçado por umbandistas que cultuam a falange dos
afrorreligiosidade, são reforçadas e propagadas pelos ciganos e pelo seu formato arredondado e achatado,
umbandistas e candomblecistas. que muito lembra uma moeda, a leguminosa passou a
ser constantemente utilizada por filhos de orixá.

A ELITIZAÇÃO DO FURDUNÇO É EVIDENTE


NOS ESPAÇOS RESERVADOS NAS AREIAS,
CONTROLADOS POR GRUPOS PRIVADOS,
HOTÉIS, QUIOSQUES E SIMILARES
- Luiz Antônio Simas

@LIVRARIAALAFIA
54 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020
CLIQUE PARA SABER MAIS
ABAYOMI: As bonecas surgem num contexto de resistência do
movimento negro em meados dos anos 80, quando se
eficaz capaz de ganhar o país inteiro, é revolucionário! Deve
ser dançado, cantado, comemorado por toda a comunidade

A BONECA PRETA
discutia a farsa de 100 anos de abolição da escravidão no e não como vem sendo feito sistematicamente, apagado e
país. No contexto, várias marchas, muitas lideradas por silenciado. O projeto do racismo tem muitas faces e uma
mulheres, aconteceram no Rio de Janeiro. Lena, uma das delas é fazer com que as pessoas o reproduzam, muitas
militantes, era animadora cultural do Centro Integrado de vezes sem nos dar conta”, afirma Lena em um trecho

BRASILEIRA
Educação Pública (Ciep) da Cidade de Deus, na mesma retirado do manifesto pelo reconhecimento da criação.
cidade, quando criou uma boneca feita com retalhos de O nome, Abayomi, de fato tem origem iorubá, porém, quem
tecidos pretos, sem corte e sem costura, em 1987, como a batizou foi Ana Gomes, amiga e comadre de Lena. Na

Flávia Proença
forma de identificação, reconhecimento e simbologia da época, Ana estava grávida e, mesmo sem saber o sexo
por: resistência negra no Brasil. “As Abayomis já nasceram da criança, já havia escolhido dois nomes: Abebe Bikila,
livres”, completa a criadora quando falamos sobre esta a se fosse um menino, e Abayomi, se fosse uma menina.
notícia falsa tão difundida. O menino nasceu e então as bonecas passaram a levar
“Tais ideias falsas reforçam o ideal colonial de apagar o nome escolhido pela amiga que, em tradução livre,
as autorias do povo negro, apagar nossas resistências, significa “meu presente”.
criações e reflexões, de nos colocar umas contra as A partir daí, as bonecas ganharam crescente visibilidade,
As bonecas surgiram em um contexto outras. Uma mulher negra que desenvolve esse artesanato mas foi a partir da criação da Cooperativa Abayomi, no
genuinamente brasileiro, uma criação tão contundente e início dos anos 90, que a boneca e toda carga histórico-
de resistência do movimento negro, social, que culminou na sua criação foram difundidas por
meio de oficinas e vivências por todo o Brasil, impactando
em meados dos anos 80 mais de 27 mil pessoas até hoje.
“Nas oficinas eu não fico presa em como fazer a boneca,
mas sim no que significa ter uma Abayomi. Muitas
“Para acalentar seus filhos durante as pessoas querem fazer a boneca em outras cores, mas eu
viagens a bordo dos tumbeiros, mães brigo por isso, porque a boneca preta vem sem rosto e
africanas rasgavam retalhos de suas saias sem expressão para ocupar um espaço que até então não
e, a partir deles, criavam pequenas bonecas existia, para que todos os negros se sintam representados.
feitas de tranças ou nós, que serviam como Afinal, é impossível definir apenas um fenótipo do que é ser
amuleto de proteção. As bonecas, símbolo negro, principalmente no Brasil. Então, a identificação vai
de resistência, ficaram conhecidas como depender do contexto, da vivencia e da realidade de cada
Abayomi, termo que significa ‘Encontro um”, finaliza a artesã.
precioso’, em iorubá”.
Se você já ouviu falar nas bonecas Abayomis,
com certeza conhece esta história. O que
talvez você não saiba a respeito dela é que,
além de fantasioso, esse conto nada mais é
do que fruto do racismo. As Abayomis têm
CPF brasileiro e fazem parte da geração que
acabou de passar dos 30 anos.
“É natural do racismo querer levar nossa Como fazer sua boneca Abayomi:
cultura para lugares em que os negros
são representados sempre acorrentados e MATERIAIS:
Para fazer as pernas, o tronco e a
encarcerados. De fato, Abayomi é símbolo Duas tiras de malha na cabeça, basta dar um nó em cada ponta
cor preta, na largura da tira maior, dobrar ao meio e dar mais
de resistência, mas frente a um apagamento
de um dedo; uma do um nó nesta dobra, formando a cabeça
muito mais recente, o do reconhecimento comprimento de um e as pernas. Com a tira menor, basta
dos elementos da cultura negra brasileira”, palmo; e outra com um fazer dois nós nas pontas e amarrar ao
terço deste tamanho. tronco da boneca, formando os braços.
declara Lena Martins, artesã e criadora das
bonecas Abayomis.
Vale ressaltar que é a tensão do nó que define o
tamanho da boneca. Depois disso, é só colocar as
roupinhas de sua preferência e começar a brincar!

56 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020

PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER


MERCADO É COMO SE A SOCIEDADE LIMITASSE O ESPAÇO EM QUE PODEMOS
EXPOR NOSSA FÉ, REAFIRMANDO QUE NOSSO ‘MERCADO IDEAL’

AFRORRELIGIOSO É O SUBÚRBIO E INTERIORES DE GRANDES CIDADES BRASILEIRAS

EM EXPANSÃO
- Daniel Albuquerque

por:
Laura Blessmann Clichês à parte, é inegável que a mistura de um carioca com um baiano resulta
em muito axé. A consequência disso, portanto, foi a junção de arte com
— Estamos colocando em prática, desde janeiro, um processo criativo voltado
para peças mais comuns do nosso cotidiano, como camisarias, canecas,
religião feita pelos empresários Daniel Albuquerque e Weverson Marques almofadas e cangas, mas trabalhando em segundo plano com projetos
Desde janeiro, a marca que, hoje, oferecem produtos personalizados para quem é do Candomblé bem mais ousados, como a comercialização de quadros, lançamentos de
ou da Umbanda. Curimbeiros é uma marca que faz desde confecções de uma coleção de moda africana, moda infantil, abertura da nossa primeira
Curimbeiros trabalha com
camisas, almofadas, bolsas e roupas de santo até o processo criativo de loja física no Rio de Janeiro, e da possibilidade de franqueabilidade, com
proposta de abraçar o sublimação dos produtos. o objetivo de nos consolidarmos no mercado e invadir qualquer espaço
povo do axé e proporcionar que quisermos estar — afirma Weverson, que também é um dos designers
uma experiência artística O casal de sócios, que mora em São Gonçalo, cidade na Região Metropolitana responsáveis pelas artes contidas em produtos da empresa.
do Rio, investe nos produtos focados na afrorreligiosidade. Inclusive,
e humana
veem essa atitude como uma forma de ressignificar conceito e, com isso, No mês das crianças, entendendo que o Candomblé valoriza a vida e a
realizar o maior desafio da marca: melhorar a visibilidade dessas crenças, família, a marca acredita que pode aprender e também ensinar sobre a
combatendo todo o preconceito e a marginalização que ainda acontece religião.
contra candomblecistas e umbandistas.
— Além de auxiliar no exercício do valor respeito aos mais velhos, vale
A empresa surgiu da sensibilidade dos sócios. Eles perceberam que, durante destacar que o Candomblé é capaz de empoderar as crianças desde cedo,
o convívio mais direto com a fé, havia necessidade de expandir o amor e reconhecendo sua força e sua ancestralidade — relatam Daniel.
o orgulho que sentem pelas crenças. Com isso, surgiu a ideia de expor
os símbolos da religião em roupas, livres de qualquer medo ou atitudes Como filhos de Odé e de Oxaguiã, respectivamente, Daniel e Weverson
discriminatórias. acreditam que os orixás são vivos em nossa vida, por isso depositam todo
amor e a fé nos produtos e em todos os projetos da empresa.
Para Daniel, o mercado trata a fé de uma maneira limitada. Apesar de ser
grandioso nas estruturas que servem aos trabalhos espirituais, como
ebós, iniciações, obrigações, entre outros rituais, para eles, o espaço que
estabelece uma relação com a moda e com todo o processo decorativo
ainda é pequeno nas redes sociais e em shoppings nas grandes cidades.

— É como se a sociedade limitasse o espaço em que podemos expor nossa


fé, reafirmando que nosso ‘mercado ideal’ é o subúrbio e interiores de
grandes cidades brasileiras — afirma o empresário.

Foi neste contexto preconceituoso, e com a real necessidade de quebrar


CURIMBEIROS
barreiras para falar mais sobre a fé que embala milhões de pessoas pelo www.curimbeiros.com.br
mundo, surgiu a Curimbeiros. A empresa vem, justamente, com a proposta @curimbeiros.oficial
de abraçar o povo do axé e proporcionar uma experiência diferenciada, 021 96408-4500
artística e humana.
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ESTE É UM CONTEÚDO PUBLICITÁRIO PRODUZIDO ESPECIALMENTE PARA O CLIENTE NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 59


FÉ DE
ARUANDA
Encontrar uma religião cujos dogmas e pensamentos se Quando não existe o apoio mas existe o respeito, a força
encaixam ao que você pensa, e principalmente acredita, se alimenta. É importante uma relação de respeito com

Letícia Freddi e Bruna Lima


é difícil. O processo de encontro do segmento perfeito ou as escolhas do próximo, mesmo sem apoiar. Há famílias
por:
que melhor se enquadre, sendo bem realista, é difícil por que optam por não gostarem, mas escolhem, acima de
si só para aquele que toma a decisão de iniciar a busca. tudo, respeitar, mostrando que o respeito está acima das
Mas será que isso impacta também ao seu redor? A religiões e principalmente das opiniões que temos na
Fé de Aruanda, durante mais uma pesquisa de campo, ponta da língua.
descobriu que sim! A iniciação, seja na Umbanda ou no Ironicamente, em um mundo tão moderno, ler os relatos
Candomblé, influência na relação com as pessoas ao de cada pessoa que se propôs a construir esta coluna
redor, tanto nas amizades quanto nos círculos familiares junto conosco é entender que acima dos paradigmas, o
e amorosos. que fala mais alto é sempre o respeito: ele é a chave das

FAMÍLIA X ESPIRITUALIDADE:
O preconceito começa até mesmo dentro de casa: das nossas relações e porta de entrada para espiritualidade.
mães, irmãos, familiares. Pouco se conhece, muito se Seja daqueles que possuem o apoio familiar ou daqueles
julga. Mesmo aqueles que não sabem como funcionam que nunca o tiveram. É mesmo sem ser acolhido, mesmo

DIVERSIDADES ALÉM DAS


os terreiros e barracões, nada escapa daquele que se sendo apedrejado escolher o caminho do respeito.
coloca à frente nos julgamentos. De seguir em frente em suas escolhas, firme diante o
Para as mulheres, a situação é mais difícil: na maioria caminho que a espiritualidade lhe apresenta, pois estar

PAREDES DO TERREIRO
dos casos, não há apoio dos cônjuges, muitas vezes no caminho da luz compensa todos os obstáculos
fazendo com que a companheira se mantenha numa via colocados, palavras ditas e atitudes tomadas.
de mão única a seguir: “ou eu ou a religião!”. Que sejamos sempre responsáveis pelo caminho do
Numa mistura de preconceito, opressão e machismo, bem. Da empatia. Ser empático principalmente com nós
em um dos relatos entendemos que nem a opinião, mesmos, de não absorver as névoas de preconceito que
tampouco o preceito de sua companheira é levado nos assustam, nos rondam e querem nos desviar do
à sério, mostrando a gravidade da falta do poder de nosso propósito.
escolha. Em pleno 2020, diante a tantas modernidades, Você que está aí do outro lado da tela nos acompanhando,
ainda há posicionamentos que minimizam e ferem tanto acalme o seu coração: vai passar. Seja lá qual névoa
o direito de escolha. esteja próxima, o sentimento de solidão por optar seguir
O poder da família é influente, forte. Assim como se o seu caminho da espiritualidade, levante a cabeça! Siga
pela forma reversa machuca, quando se faz presente firme. Quem escolhe a espiritualidade, nunca estará só.
para apoio se torna mágico. Cria elos e forças contra o Como sempre dizemos na Fé de Aruanda: a fé vai te
preconceito lá fora, trazendo para quem deseja se iniciar guiar. A fé que me guia. A fé que nos guiará.
a certeza de que está no caminho correto.

O portal Fé de Aruanda foi criado em


maio de 2017 por Letícia Freddi e Bruna
ILUSTRAÇÃO DO ILÉ ÀṢẸ OMO ODE
Lima com o simples intuito de levar ao mundo
TOLA (ILE ASE OMO ODE TOLA),
DE SÃO PAULO, FEITA POR BRENO toda palavra de amor e fé em homenagem à
LOESER (@BRENOLOESER) PARA Umbanda. De conteúdo totalmente autoral, além
BÀBÁ MARCELO DE OLÓÒGUNEDE de textos poéticos e reflexivos, traz também
aprendizados adquiridos dentro do solo sagrado:
ensinamentos, rezas, todas as experiências que
um médium em desenvolvimento atravessa a partir
do momento em que inicia sua jornada espiritual.
Inspiradas pela intuição e guiadas pela
fé: a fé que me guia.

NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 61
@caa.luiz Anônimo @diegosmotta20
AXÉ TRANSBORDANDO
PELA CAIXA
por:
Laura Blessmann
Publicitária desenvolve kit com elementos relacionados à
Complicado! Ter uma religião
O proibido é sempre mais
diferente do companheiro/a é Isso mesmo, firme bem religiosidade de matrizes africanas: Macumbox
gostoso, não é mesmo?! Muitos a cabeça para que a
um tanto quanto estressante.
são levados pela curiosidade, espiritualidade possa te guiar
Fico me perguntando sobre o Com a pandemia — tempos muito difíceis —, is muitos novar suas energias.
porém é um caminho sem sempre pelo melhor caminho.
que fazer quando se tem filhos: terreiros precisaram fechar as portas sem previsão de re- — O segredo do Macumbox é a pratricidade. Nós entre-
volta. O bater do tambor é
Em qual religião a criança será abertura. Contudo, religiões repletas de vida, de festas e gamos o kit completo. O cliente precisa apenas concluir o
fascinante.
orientada? de energias, como a Umbanda e o Candomblé, poderiam banho para cuidar da sua espiritualidade. É uma manei-
parar? Muitas pessoas optaram por criar altares em casa, ra de seguir limpando energias e cuidar do santo. Com a
por exemplo. Neste contexto, a publicitária Bárbara Gatti correria do dia a dia, às vezes deixamos de lado o alimen-
@vividorneles
idealizou um projeto inovador: a umbandista resolveu dar to da nossa espiritualidade. Com a ajuda das caixas, você
@kalvinkae @rayssamolinos opções para que a magia de sua religião acontecesse na estará em contato mais frenquente com sua religiosidade
casa de cada fiel: surgiu, então, o Macumbox. — conta a especialista.
Bárbara vende caixas com banhos para renovação de Como se sabe, cada pessoa tem uma necessidade dife-
energias — e cada kit é pensado de acordo com o calen- rente de cuidar de sua alma e de suas energias. O Ma-
dário da Umbanda: cumboxx, por isso, tem como principal missão cuidar da
— Em dezembro, por exemplo, vou fazer um box dedicado particularidade do cliente:
a Iansã - explica a empreendedora. - O material do fim do — A gente não tem a intenção de prejudicar as culturas e
ano terá uma limpeza de energia e receitas para prosperar as tradições, nós respeitamos tudo e todos. A nossa mis-
em 2021! são é que as pessoas entendam que a forma de interagir
Todos os caminhos nos levam O preconceito é muito triste,
De acordo com Bárbara, a ideia da empresa é oferecer e cuidar de si é muito particular, e nós prezamos muito por
a um único Deus. Que o amor é ainda pior quando vem
os proditos junto com o conhecimento de Umbanda. Ela essa questão: da particularidade. Que as pessoas sintam
esteja sempre presente em Muito menos eu! (Risos) de alguém tão próximo.
conta que os banhos podem ser vendidos tanto para ini- a religião, estudem a Umbanda e entendam qual a neces-
nossas vidas! Religião é algo muito pessoal, Esperamos por um mundo
ciantes na religião quanto para pessoas que querem re- sidade de cada um — conclui a publicitária.
cada um sabe identificar o que sem intolerância religiosa,
é melhor para si. Poder dividir principalmente de quem
com o companheiro, torna tudo amamos.
ainda mais fácil e prazeroso.

@catynha_melo @eu_rithyelly

MACUMBOX
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@macumbox_
Podemos dizer que foi a melhor coisa que te aconteceu? Nada melhor do que crescer
Relacionamentos são para somar. Se você precisa escolher em berço repleto de axé. Com 011 93772-4561
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62 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020

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YORUBÁ NA NIGÉRIA,
por:
Renata Barcelos ESPECIFICAMENTE
EM OYO, A BASE DO
CULTO AOS ORIXÁS
É FAMILIAR

A FAMÍLIA
- Renata Barcelos

IORUBÁ
Quando adentrei a área iorubá, em zonas menos urbanas, deria ser feito, menos ser vendida. Quando o mais velho Vila de
tive a certeza de que precisaria apagar o mundo ociden- morresse, a terra sempre seria passada para os herdei- Yemoja, em
Oyo. Pilando
tal que eu conhecia e emergir em um novo conceito: o de ros, neste cenário de sucessão, muitas vilas foram feitas,
inhame para
viver em comunidade! O que me fez comparar aquela rea- construídas de um um núcleo familiar. A estrutura era fazer Yan
lidade aos nossos terreiros - contudo, em uma proporção com base hierárquica. Diversas casas e seus descenden-
maior, como se cidades inteiras fossem terreiros. tes eram regidos internamente por um chefe principal que
tinha seus sub-chefes e, como elo, os ancestrais em co-
Eu fiquei em uma vila de Iemanjá. Ao lado, fica a vila de mum (familiar e orixá).
Obatala. Do outro lado, uma de Xangô. Mais adiante, uma
de Oxum, e etc. Em um espaço comum, todos interagem, Importante ressaltar que os iorubás são poligâmicos, ou
são feitas transações comerciais, festividades e eventos seja, um homem pode ter várias esposas e isso, além de
no palácio dos reis e também nas ruas. ser culturalmente aceito, está dentro da lei. Então, além da
hierarquia de chefe do composto de vila, tem uma hierar-
Vale ressaltar que a área iorubá continua a sofrer o impacto quia entre as mulheres. O homem geralmente é o líder da
de culturas estrangeiras. Por exemplo, hoje é possível ver casa. Quando na família existem filhas mulheres e venham
áreas urbanas com apartamentos e casas de luxos, e redes a se casar, possivelmente residirão na vila do marido.
de lanchonetes, como aquelas que encontramos aqui.
Na Nigéria, especificamente em Oyo, a base do culto aos ori-
Assumo, então, essa missão difícil que é expressar toda a xás é familiar. É dentro desse contexto que nasce a primeira
complexidade, a compreensão e a importância da família recomendação sobre qual orixá o indivíduo terá que cultu-
para os iorubás. ar em sua vida, e dessa maneira, famílias inteiras se dedi-
cam somente a um orixá por várias gerações. A linhagem
Começo com um registro de Ajisage Moore, em “The Laws patriarcal tem função fundamental nesta decisão, em torno
and Customs of the Yorùbá People”, de 1924, que diz: os de 90% dos casos uma nova criança seguirá a linhagem de
reis davam a terra para o povo, e nessa terra, tudo po- orixá do pai, e 10% seguirá a linhagem do avô materno.

64 NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020
CONTOS
DE ORIXÁ
A função da mulher, e consequentemente da esposa na desde de antes de sua vinda para terra, porque ainda no
área iorubá, é de grande importância e prestígio. Quando Orun (céu), foi destinada aquela ancestralidade.
um neófito se inicia, assim como é denominado aqui na
diáspora, também o chamamos de iyawo (“esposa”). A
mulher, no culto familiar, tem a responsabilidade de ze-
O meu desejo é fomentar uma reflexão sobre um viver
coletivo, dando menor visibilidade para o “eu” como David Barbosa
por:

lar, cuidar, proteger, alimentar e fazer tudo o que estiver indivíduo, e mais voltado para coletividade e tudo que
em seu alcance para que se mantenha a prosperidade possa ser construído por “nós”. Essa força em comuni-
na família - da mesma forma, qualquer devoto precisa dade, tão documentada e relatada por inúmeros autores,
cuidar do orixá. É comum que elas sejam incentivadas a nos ensina que foi essa união que ajudou os iorubás a

EM FAMÍLIA
terem um trabalho, principalmente em mercados, onde enfrentarem inúmeros problemas internos como inúme-
ocupam cargos de liderança. ras guerras, conflitos étnicos, invasões dos colonizado-
res e até mesmo a mais cruel das atrocidades humanas,
Dentro da cultura iorubá, as crianças, e até mesmo os a escravização de seres humanos. De longe, as irmãs espreitavam. A mãe tentava com-
adultos, possuem o costume de chamarem uns aos ou- preender Menina, que não falava em seu normal, auste-
tros usando tratamento familiar. Por exemplo: primas Os valores que esses povos nos trouxeram, aqui em es- Dolores tinha sido ordem de Rosa. Quis um nome ro. Estava fresca como um balaio de frutas, viço moço
mais velhas e outras senhoras são chamadas de mãe e, pecial os iorubás, foram fundamentais na construção à neta que fosse em sua língua, que a lembrasse de de praia sem tormenta.
assim como os homens com mais idade, como pai. Para familiar que refletiram, em minha opinião, nas religiões casa. Aquele nunca seria o seu lugar. No instante em
quem é de fora, é realmente difícil compreender quem de de matrizes africanas na diáspora. E se aprofundando que seus pés tocaram o barco, e as origens andaram Entra Dolores. Vem do terço das três horas. Da rua, já
fato são biologicamente pais e mães nas famílias. Esse nesse entendimento, poderíamos explicar alguns cos- pra trás, ficando pra sempre, sabia que o umbigo era a estranha o movimento.
conceito familiar se espalha para além: o coletivo cuida tumes como: entre nós nos chamarmos de irmãos, ou memória, e nada mais a ligaria à terra. Ao fruto único
de todos, o indivíduo cuida da sua casa, de sua família, de chamarmos os sacerdotes de mãe e pai. Hábito que do ventre, deu María, como a velha abuela que deixara. – Que é isso, Menina?! – brada.
mas também está atento quanto às necessidades ao se estende para além da nossa casa, o que deixa de E quando María teve, deu Dolores. É triste, mas é sono-
seu entorno. A compreensão ser apenas uma forma de tratamento, e sim um senso ro. Como a língua. A neta só mais tarde entenderia, ao despertar, mas a vó
do iorubá está estrita- funcional e resistente de coletividade, que nos lembra se arregalou de pronto. Sara, a recém-chegada, se cur-
mente conectada a todo momento que existe um elo inquebrantável que E Rosa também passou. va. Sorri um riso-broto de quem volta. Estende-se a um
com a noção nos une: o orixá. abraço inesperado e fala, em sua língua de misturação.
de família, Menina tinha dezessete, e veio Sara. Breve como um
vento no meio da tarde. Nazinha não viu coisa que en- Dolores ainda se lembrava. Aquele riso que a deixara
tendesse: a filha dobrada sobre si, leve contra o costu- muito nova. O lábio que ficara das cantigas. Que, quan-
me, um riso em broto que não era uso seu. A voz, que do acordou, já não estava.
era aquela voz? Um lábio raro... Uma mistura quase in-
ventiva. Nazinha chegaria a pensar ser brincadeira, não Quando cresceu, lhe contaram que seu nome havia
fosse a filha a isso não ser dada. sido escolha dela…

O texto é baseado na prática de Orixá


seguindo a tradição Yoruba - Esin Orisa Ibile
(Òyó, Nigéria), e pensamentos e análises pessoais
da autora. Renata Barcelos, Yemojagbemi Otan-
monle Arike, foi iniciada em Yemoja em Òyó e está
há mais de 30 anos no culto de orixá no Brasil. É
criadora do canal Orisa Brasil (@yemoja_arike),
que fala sobre a tradição Yoruba.

Comemoração em
espaço publico, NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020 67
interação entre as
comunidades, em Oyo
PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO
www.kobaexu.com.br

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