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porém inscrita no contexto brasileiro do século XXI, e é para as mulheres que vivem num
país em desenvolvimento, de tradição católica e machista, recentemente inserido no
cenário econômico mundial que volto o meu olhar: mulheres que não possuem,
reconhecida entre suas heranças, a cultura da revolução e da independência, mulheres
determinadas por um discurso androcêntrico dentro do qual são impedidas de assumir o
controle sobre suas próprias existências, mulheres que, ainda assim, escrevem. E
escrevem num país em que o perfil dominante do escritor é homem, branco,
heterossexual, que possui ensino superior, mora no eixo Rio-São Paulo, tem em média 50
anos e cuja literatura apresenta como personagem principal quase invariavelmente um
homem na mesma situação. P. 13
Não há mais linearidade. Não há mais unidade. Não deve mais haver centro e, ao
mesmo tempo, tudo está conectado. Há narrativas que se transpassam no tempo,
nos seres e nelas mesmas e vêm nos constituir no que denominamos de
individualidade. Há um conteúdo incessante e disperso sendo injetado 15
constantemente no espaço, cujo conjunto forma a historicidade do que
denominamos existência. Somos linguagem e nos agarramos à memória para
organizar o que significa ser linguagem e assim obtermos um mínimo de
concretude tanto em nossa individualidade quanto em nossa existência; no entanto
a memória é apenas uma sensação daquilo de que somos feitos e daquilo de que foi
feito quem nos precedeu e que de alguma forma sobrevive em nós. P. 17
[...] inúmeras vezes nos deparamos com personagens mulheres às voltas com
dramas que não nos dizem respeito ou que dizem respeito a apenas uma parte de
nossas existências, ou ainda, que insistem em reiterar estereótipos que nos foram
impressos pela lógica masculina, os quais nos mantêm encerradas, também
ficcionalmente, em perspectivas de vida limitadas ao que culturalmente foi
definido como únicos destinos aceitáveis às mulheres: a realização através do
relacionamento romântico com um homem idealizado, a maternidade como uma
experiência cem por cento satisfatória e um lar todo seu para reinar, caso não, a
loucura ou a morte. P. 18
Ainda, como pude verificar nesta pesquisa, é comum que a própria literatura de
autoria feminina inspire-se justamente na frustração de algum desses destinos ou
de todos eles para fundamentar a personalidade de suas personagens: daí a
persistência das heroínas frustradas à espera de um final feliz e outros clichês
nascidos com os contos de fadas. P.18
”. Não à toa, para ele, os cinco grandes avanços na teoria social e nas ciências
humanas que culminaram para esse descentramento foram o pensamento marxista,
a descoberta do inconsciente por Freud, a linguística estrutural de Ferdinand de
Saussure, a revisão crítica da história das ideias por Michel Foucault e o
feminismo(HALL, 2011, p. 34) p. 32
Antes um grupo hegemônico falava por todos,hoje todos têm oportunidade de buscar um
espaço de representação,já que as mídias alternativas ganham cada vez mais força no
contexto do mercado literário, implicando um policiamentoatento e constante.
Resguardadas os entraves que as minorias ainda encontraram para suainserção no
mercado das grandes editoras, a publicação independente, seja on-line ou através das
editoras de menor porte, tem atingido um público ainda restrito, mas ao que parece
bastante interessado em escutar novas vozese conhecer a diversidade. P. 35
Pensar o papel da crítica feminista no universo das teorias críticas da literatura requereu,
num primeiro momento, desconstruir conceitos como mulher, feminino e escrita feminina,
incrustadosno imaginário social —incluindo oacadêmico —como sinônimos para frágil,
sensível, doméstico, assim como fútil e menos importante. P. 38
mulheres e as diferentes sociedades. Como observa Virginia Maria Vasconcelos Leal (2010,
p. 66):
As escritoras comungam também, é claro, do fato de serem mulheres. Não que isso faça com
que compartilhem sempre os mesmos atributos, que formem um grupo, que tenham um
objetivo comum. Mas compõem, como ressalta Iris Young38, uma série, tendo de lidar, de uma
forma ou de outra, com as marcas de seu gênero, seja pela negação ou apropriação.
Nesse ponto, a autoria feminina se impõe à literatura hegemônica como uma marca
de resistência, um posicionamento político e uma demarcação de território não
através de características demarcadas, mas de possibilidades. P.99
Não que uma variedade maior esteja ausente —aparecem também médicas,
cientistas, ativistas políticas, empresárias, taquigrafas e mesmo operárias.
Mas são casos isolados. Embora as narrativas se passem, em geral, nos
nossos dias, conforme mostram os dados, a maioria das mulheres retratadas
no romance brasileiro contemporâneo permanece presa às ocupações que
poderiam acolhê-las na primeira metade do século XX: donas de casa,
artistas (em geral, atrizes), estudantes, domésticas, professoras, prostitutas.
112
A maior liberdade com que as escritoras vêm retratando a vida sexual feminina se
reflete também na orientação sexual de suas protagonistas. Conquanto não seja
uma novidade na literatura de autoria feminina brasileira, conforme relata Cristina
Ferreira Pinto-Bailey (1999), o desejo lesbiano recebe hoje outro destaque na
narrativa, sendo parte importanteda formação identitária da protagonista; a
orientação sexual diversa, naturalizada na narrativa, configura o quadro dos novos
paradigmas indicados por Figueiredo. A mulher lésbica, além disso, está no centro
da discussão de teóricas feministas como Adrienne Rich e Monique Wittig, e um
dos pontos de análise diz respeito ao lesbianismo ser um dos únicos espaços
possíveis de não centralidade do homem dentro do patriarcado.Segundo Pinto-
Bailey (1999), “o lesbianismo não só abre um canal para a expressão autêntica do
erotismo feminino como serve também para realizar uma crítica às relações
heterossexuais hierárquicas”. P114
Ana é uma escritora em pleno processo de escrita de um romance histórico, cujo tema é o
mesmo de um projeto antigo de Levy, conforme ela mesma revela. Diante da coincidência,
ele faz uma brincadeira entre os nomes delas, Anae Tatiana, a qual a escritora, divertida,
responde: “E a própria Ana chega a essa conclusão, de que pra ela a literatura faz sentido
quando está misturada com as experiências dela, está misturada com a vida, eu gosto
dessa ideia de que é tudo misturado, né? De que não há uma separação entre escrita e
vida”. Diante dessa naturalidade com que vida e ficção se misturam, Philippe Lejeune,
vinte e cinco anos depois de ter estabelecidoo pacto autobiográfico, releu a si mesmo e
desconstruiu algumas das normatizações que estabeleceu em 1975, quando ainda buscava
estabelecer uma definição de autobiografia como gênero. De sua renovada perspectiva e
diante das cada vez mais indefiníveis fronteiras entre os gêneros literários, em especial da
diversidade de formas de escritas do eu, concluiu: “Hoje, sei que transformar sua vida em
narrativa é simplesmente viver. Somos homens-narrativas” (LEJEUNE, 2008, p. 74).
O temor (justificado) que algumas escritoras sentem de que seus livros sejam catalogados
como literatura feminina e que sua escrita deixe transparecer as marcas de um feminino
relegado à posição mais inferior da hierarquia constituída pelo sistema literário se desfaz
tranquilamente na fala de Tatiana. É inegável que seja tudo misturado. A tendência
autobiográfica que ela revela ao confundir sua percepção à da personagem se reflete em
toda a literatura contemporânea, que se volta cada vez mais ao testemunho das
experiências vividas/sofridas em cada lugar de fala. Como a escritora destaca, a mistura da
experiência daquele que escreve à própria matéria narrada dá sentido à literatura à
medida que promove sempre novas e mais profundas instâncias de reconhecimento para
a leitora e para o leitor. P120
Para Almeida (2015, p. 36), projetos literários como os de Levy e Vidal apostam numa ética
do narrarque inclui a carga de afeto que emana dos “espaços de trânsito e
mobilidade” e que também os problematiza, colaborando com a construção de uma
estética dos afetos,noção baseada nas teorias de espaços de adesão e de geografias
emocionais propostas por Doreen Massey, Diana Brydon, entre outras
pesquisadoras (ALMEIDA, 2015, p. 36).
Em romances como A chave de casa esse projeto se destaca, já que o envolvimento com
os espaços percorridos é o grande catalisador da transformação da personagem. P217