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2ª Aula de Filosofia EmancipaCast 2020

Tema: ​Pré-Socráticos.

1. Pré-Socráticos… Filósofos da Natureza?

Na aula passada, conversamos um pouco sobre o que é esse campo do saber que iremos
estudar ao longo do ano, ou seja, o que é a filosofia, e também vimos quais condições levaram ao
surgimento da filosofia na Grécia Antiga. O que significa dizer que vimos como era constituída a
Grécia pré filosófica nos âmbitos da economia, política e cultura, e quais modificações sofreram esses
âmbitos para que a filosofia pudesse surgir como uma nova forma de investigação da realidade.
Comecemos nessa aula, portanto, a falar dos pensamentos e teses dos que primeiro filosofaram.

As primeiras pessoas a filosofar começam a aparecer no início do século VI a.C., sendo Tales de
Mileto conhecido como o primeiro filósofo. Graças à estrutura social e política da Grécia Antiga, veremos
que essas primeiras pessoas a filosofar eram majoritariamente homens, e eles são conhecidos como
pré-socráticos. No entanto, antes de efetivamente entendermos o pensamento desses autores , precisamos
fazer algumas considerações.

No geral, os pré-socráticos são conhecidos através de uma narrativa dominante


(hegemônica), contida principalmente em manuais de introdução à filosofia, mas não só, como
filósofos da natureza. Isso deve-se ao fato de que, para essa narrativa, eles se debruçaram somente
sobre o estudo da natureza (​phýsis​, em grego) como principal atitude de se contrapor ao
pensamento mitológico, aquele que vimos como dominante na Grécia até o surgimento da filosofia.
Até que, em determinado momento dessa narrativa, aparece a figura de Sócrates, que muda esse objeto de
estudo e começa a se debruçar sobre as “questões humanas”, como a ética e o conhecimento, mudando
completamente a filosofia, sendo essa filosofia socrática a que seguimos fazendo até hoje. ​Aqui, vamos
tentar desmistificar essa narrativa para que possamos compreender melhor o andamento da
história da filosofia. Porém, como observação, vale dizer que é essa a narrativa que cai nas provas de
vestibular. Devido a isso, faremos apenas algumas considerações neste momento para mostrar que tal
narrativa não condiz totalmente com a verdade, mas a usaremos como norte, já que é ela a que aparece
nas provas que vocês irão fazer..

Primeiro, é importante ter em mente que não sabemos as datas exatas de nascimento e morte
desses filósofos. Temos apenas algumas aproximações, umas bem confiáveis e outras um pouco menos.
Sabemos, também, que alguns desses pré-socráticos, por mais contraditório que isso seja, foram
contemporâneos de Sócrates. Ou seja, estavam vivos e produzindo suas teses ao mesmo tempo que ele.
Outra dificuldade que temos ao estudar esses pré-socráticos é que não possuímos nenhum texto
integral nem original dos mesmos. O que significa dizer que ​nos baseamos em fragmentos e em
interpretações produzidas por outros filósofos que os citam e comentam para ter acesso aos seus
pensamentos.. Fragmentos, nesse caso, são pedaços das obras desses autores que foram citados,
teoricamente de forma literal, em obras posteriores de outros pensadores (Aristóteles, por exemplo). É
nessas obras posteriores que encontramos a opinião de diferentes filósofos sobre a produção dos
pré-socráticos,, ou seja, é através do estudo das interpretações desses filósofos posteriores que temos
acesso ao pensamento dos primeiros filósofos, mas essas são obviamente fontes não muito precisas sobre
o que de fato disseram os pré-socráticos.

Por fim, não existia o que chamamos hoje de “tratado filosófico”. O tratado é o estilo literário que
estamos mais habituados a ver em filosofia hoje em dia. Ele é um estudo formal, sistemático, escrito em
prosa e, hoje em dia, de caráter acadêmico. O primeiro filósofo que irá escrever a partir de tratados será
Aristóteles, em meados do século IV a.C. ​Antes disso se escrevia em forma de poema, de aforismas,
diálogos e em forma de peças teatrais (como na tragédia grega). Isso já de início nos tira a imagem
de que, logo no princípio, os filósofos mudaram completamente a forma de se expressar e investigar
a realidade. Pelo contrário, eles se apropriaram dessas diversas maneiras de escritas, cada um a seu
modo para conseguirem expressar suas novas teses. Contudo, ao mesmo tempo, isso demarca uma
mudança relevante entre a filosofia e a mitologia, pois enquanto essa era disseminada
principalmente de forma oral por meio de cânticos entoados por sacerdotes, aquela irá fazer uso da
palavra escrita e será produzida por homens que não necessariamente eram lideranças religiosas.

Na narrativa hegemônica sobre esses pensadores, como foi dito acima, diz-se que eles eram
filósofos da natureza (​phýsis)​ ​. Isso se deve ao fato de que muitos deles, provavelmente a maioria,
investigaram a seguinte questão: qual o princípio de todas as coisas que existem? E, segundo essa
narrativa, todos eles começaram essa busca pensando em um princípio único, que ficou conhecido
como ​Arché​ (​ palavra grega que pode ser traduzida por essência).

Essa ​arché,​ seria um elemento, uma certa essência da qual todas as coisas derivariam, mas que
permaneceria nelas. No caso de Tales, seria a água, por exemplo. A partir de Tales, diversos outros
pensadores começaram a dar as suas próprias respostas a essa mesma questão e a argumentar em favor
delas. Anaximandro, por exemplo, diz que a ​arché é o “indefinido” ou, em grego, ​apeíron​, já Anaxímenes
argumenta em favor do ar e Heráclito em favor do fogo.

Depois de algum tempo, chega Parmênides e diz algo como: “isso que vocês estão fazendo é
uma impossibilidade lógica! Como pode a água se transformar em ar ou em fogo e vice-versa? O que é,
é, não se modifica jamais.” Esse posicionamento coloca em cheque a possibilidade de movimento na
phýsis​. Movimento na grécia, e na filosofia de modo geral, quer dizer tanto o movimento enquanto
deslocamento do ponto A ao ponto B, quanto uma mudança, transformação, no ​ser​. Por exemplo: a água
virar fogo seria um movimento. ​Depois dessa colocação de Parmênides, os pré-socráticos teriam se
divididos em dois grandes grupos: os que com Parmênides argumentam que a realidade na verdade
é uma coisa só, una, indivisível, ingerada e imortal e, os tidos como “Pluralistas”.

Esses últimos, por sua vez, aceitam a argumentação de Parmênides, mas procuram tentar outras
soluções para o problema. A ideia deles seria mais ou menos essa: “de fato, uma coisa não pode se
transformar em outra, porém, temos na realidade várias coisas diferentes, o que significa que, ao invés de
um princípio originário, existem vários”. Alguns exemplos desses pluralistas são Empédocles e os
Atomistas, como Leucipo e Demócrito.

Empédocles diz que a origem de tudo são a água, o fogo, o ar e a terra, e que combinados de
diferentes formas pelo “Amor” e separados pela “Discórdia”, geram as diferentes coisas que vemos
na realidade. Já os Atomistas, inauguram a ideia de átomo que perdura até hoje dentro da química,
mesmo que com mudanças substanciais. A ideia central está contida no próprio nome. Se dividirmos a
palavra “átomo” temos, “a”, que é um prefixo de negação, e “tomo” que significa parte, divisão. Em
suma, o átomo é algo “sem partes, sem divisão, que não pode ser dividido ou partido”. ​Para os
atomistas, a realidade era composta por uma série de átomos, diferentes entre si por “figura, ordem
e posição”. Para visualizar, basta pensar em brincar de Lego. Por fim, para a narrativa dominante,
depois de dois séculos de discussão sobre a ​phýsis​, vieram Sócrates e os Sofistas e deixaram de lado tais
investigações e começaram a se colocar questões sobre a vida humana e os valores morais.

Essa narrativa convencional sobre os pré-socráticos convence e é extremamente didática por três
motivos, mas justamente por esses motivos, ela também é incompleta, em alguns momentos errônea, e
muito simplificada.

O primeiro motivo que torna essa narrativa didática e ao mesmo tempo plausível é o fato de
que ela divide bem cada parte da história dos pré-socráticos, ela tem uma espécie de início, meio e
fim. Se pararmos para pensar, existe um antes de Parmênides, em que todos pensavam de forma muito
parecida, há o momento em que aparece Parmênides causando uma espécie de “crise” no pensamento da
época, e depois vem o momento em que se chega a uma espécie de solução desse problema. Ela de certa
maneira, caracteriza cada fase por uma abordagem específica a um problema comum. A crítica é
que ela não se permite conceber que era possível ter mais de um debate acontecendo, tornando os
pensamentos mais amplos e complexos. Por exemplo: ela não aceita a possibilidade que tenhamos
filósofos dando uma resposta à esse problema dentro da noção de um princípio único a tudo que existe
após Parmênides. ​Ao mesmo tempo, ignora que, nessa época, os filósofos tinham diversas teses e
argumentações sobre a natureza do conhecimento humano, sobre as religiões, sobre a justiça e etc.
deixando de lado uma série de personagens interessantes desse período e, até os presentes, estão
presentes de forma incompleta.

O segundo motivo do sucesso dessa narrativa se dá porque ​ela coloca o andamento histórico em
forma de um progresso contínuo, único e sem contradições. Podemos dizer que essa forma de contar a
história dos pré-socráticos é pautada em uma espécie de ​positivismo histórico.​ De forma simplificada, o
positivismo encara a realidade como algo ordenado e que, se não estamos percebendo esse ordenamento,
é porque não estamos seguindo a maneira correta de pensar. Ao vermos o ordenamento, poderemos
perceber o progresso ao longo da história. A palavra progresso aqui assume um caráter importante. Para o
positivismo as coisas progridem, ou seja, com o tempo elas vão se aprimorando, se tornando melhores, o
que significa muitas vezes olhar para o passado com certa soberba e achar que sempre estamos melhor
que no passado, pois antes, era tudo arcaico e, agora, pensamos e vivemos muito melhor. Existe um juízo
de valor muito forte nesse olhar para o passado e o presente. ​Não queremos dizer aqui que os
formuladores dessa narrativa sobre os pré-socráticos foram os positivistas, mas sim, que existe uma
certa forma de enxergar a história que é compartilhada e nos é muitas vezes atraente. O problema
dessa forma de investigação é não perceber e não aceitar que o processo histórico muitas vezes
recai em regressão e é extremamente contraditório.

Por fim, o terceiro motivo é que essa narrativa apela para algo que estrutura a filosofia em sua
história e que foi condição do surgimento dela. ​Ela assume que houve um diálogo muito grande entre
os diversos filósofos, que todos leram e ouviram as teses de seus adversários, compreenderam-as e
aceitaram por bem seus argumentos que eram válidos. De fato, a filosofia se baseia nesse diálogo
pautado muitas vezes na racionalidade do discurso. O problema é que essa narrativa ignora certas
condições até geográficas para que esse processo pudesse ocorrer de forma tão evidente na época dos
pré-socráticos. O primeiro ponto que ela ignora é o fato de, como dissemos mais acima, não sabermos as
exatas datas de nascimento, morte e, consequentemente, do tempo de produção intelectual desses autores.
Não sabemos, por exemplo, quem veio antes: Heráclito (que era um dos que defendiam apenas um
princípio) ou Parmênides. Não é certo também que os filósofos conseguiram ler as obras e teses uns
dos outros. Lembremos, naquela época não se tinha internet, e as distâncias, que hoje percorremos muito
rápido de carro ou avião, eram muito maiores naquela época (no sentido de levar muito mais tempo para
ir de um lugar a outro). As cidades gregas em sua maioria eram distantes uma das outras e podia-se
demorar às vezes meses para se chegar de uma cidade a outra. ​Nada nos garante que os escritos desses
filósofos circulavam tão livremente a ponto de todos terem acesso aos escritos de todos.

Cabe ressaltar que nem tudo nessa narrativa está equivocado, ou errado. O debate sobre os
princípios originários, a ​arché, realmente existiu e era uma preocupação muito presente em
diversos filósofos. O problema é que não aconteceram só essas investigações e nem elas ocorreram de
forma tão linear assim. Nesse caso, diversos nomes com reflexões interessantíssimas ficaram de fora.
Dois nomes são representativos nesse caso. O primeiro é Pitágoras (sim, o mesmo do teorema de
pitágoras) que tem teses e argumentos incríveis sobre astronomia, sobre matemática e até sobre música e,
por conta dessa narrativa, fica de fora. O segundo nome é Safo, uma poetisa que, hoje em dia,
alguns(mas) estudiosos(as) defendem ser também filósofa, contemporânea à Tales (conhecido como o
primeiro filósofo), que a partir das suas reflexões poéticas abria um campo de estudo sobre a relação entre
ser e pensamento, tema retomado ao longo da história da filosofia de forma recorrente das mais diferentes
formas.

Feitas essas considerações, vamos retornar agora às argumentações desses pré-socráticos sobre a
arché​ assumindo essa narrativa tradicional, que é a cobrada nos vestibulares.

2. A Ontologia Pré-Socrática.

Como dissemos, por mais que essa narrativa tradicional ignore muitas coisas, ela ainda foca em
um tema realmente muito presente e importante para boa parte desses filósofos. ​Ela coloca que a questão
central para eles era: Qual o princípio de todas as coisas que existem? Ao tentar responder essa
pergunta, o que os primeiros filósofos faziam era o que chamamos hoje de ontologia.

O sufixo “logia” já sabemos que se refere à ​logos​, ou seja, a um discurso estruturado e racional
sobre algo, mas o que significa o prefixo“onto”? Esse é um termo que vem do grego e que normalmente
é traduzido por “ser”. Desse modo, ontologia é o estudo racional e estruturado sobre o ser. Porém,
podemos melhorar essa definição ou, pelo menos, deixá-la mas entendível se traduzirmos melhor o termo
“onto”. Esse termo é, na verdade, o particípio presente do verbo ser. Lembremos o que é o particípio
presente. O particípio presente do verbo agir é agente, ou seja, aquele que age. Portanto, o particípio
presente do verbo ser é o ente, ou seja, aquele que é, ou aquele que existe.

Podemos definir, desse modo, a ontologia como o estudo racional e estruturado sobre o que
existe. É justamente o que esses pré-socráticos faziam. Estudavam as coisas que existem na realidade e
tentavam explicar o que faz as coisas que existem serem do jeito que são. ​Para isso ser bem sucedido,
eles partiam da pergunta: qual o princípio de tudo o que existe?

Mas como, dessa pergunta sobre o princípio de tudo, esses filósofos chegaram na ​arché que
falamos mais acima? A partir daqui será necessário um pouco mais de concentração pois a reflexão fica
um pouco mais complicada, mas nada que seja impossível, então vamos lá.

Perguntar sobre o princípio das coisas é perguntar sobre sua origem de certa forma, por isso
quando pensamos na origem de tudo que existe podemos perguntar: a primeira coisa que existiu no
universo, pode ter simplesmente surgido do nada? Dessa pergunta temos três respostas possíveis. A
primeira é que sim, do nada surgiu a primeira coisa. Porém, é difícil argumentar logicamente que isso
seria possível. Existe um princípio lógico que diz: ​do nada, nada surge. Quer dizer que, por exemplo, é
impossível aparecer um cachorro ao meu lado do nada. Sendo assim, poderíamos responder que não, ela
necessariamente veio de alguma coisa anterior. Essa resposta nos coloca em dois problemas. O primeiro é
que se a primeira coisa que existiu veio de alguma coisa anterior, significa que ela não era a primeira, e
teríamos que repetir essa mesma pergunta a essa outra coisa. Com isso, surge o segundo problema. Se
ficarmos sempre com essa resposta iremos cair no que chamamos de ​regressão ao infinito. Ou seja,
vamos ficar infinitamente respondendo que algo surgiu a partir de algo anterior, o que no fim não nos
levaria a lugar nenhum. ​Diante desses problemas nos sobra a terceira opção de resposta. Não, ela não
surgiu do nada e nem de algo anterior, a primeira coisa que existiu na verdade sempre existiu e
sempre existirá, e é a partir dela que tudo veio. Ou seja, é como se no universo existisse uma essência
de onde tudo surge e que está presente em tudo. ​O nome dado a essa essência é ​arché​.

Após a conclusão de que tudo que existe provém de uma essência, uma espécie de princípio
originário que continua presente em tudo, era necessário definir qual era, enfim, essa ​arché. Foi a partir
desse ponto que os filósofos elaboraram suas argumentações de que tudo é água (segundo Tales), tudo é
ar (segundo Anaxímenes), tudo é fogo (segundo Heráclito), e por aí vai.

Não cabe entrarmos na argumentação de cada um deles, o importante é percebermos qual


problema fundamental que surge dessas definições. Pensemos: definimos que existe um princípio
originário, vamos supor que escolhemos a água como princípio, porém, quando olhamos a realidade
vemos fogo, terra, madeira, e diversos outros elementos à nossa volta. ​O problema central que aparece
para nós é: como mostrar que da água surge o fogo, e mais do que isso, que a água é ainda a
essência do fogo? Não vamos tentar acompanhar a argumentação de Tales aqui, mas ​o fundamental é o
entendimento de que para esses primeiros pré-socráticos, o movimento na ​phýsis ​(lembremos que
com movimento queremos dizer também a mudança das coisas) ​era possível e fundamental para o
entendimento dessa mesma ​phýsis.​ O filósofo que dentro dessa narrativa tradicional teria sido o
principal defensor dessa ideia de movimento é ​Heráclito.

É bem possível que você já tenha ouvido ou lido em algum lugar a seguinte frase: “Não é possível
entrar duas vezes no mesmo rio”​. Talvez, com um pouco mais de sorte, também já tenha escutado a
frase ​“Águas diferentes e diferentes correm no mesmo rio”​. Essas são frases de Heráclito e, dentro
dessa tradição ele é colocado como um grande defensor da ideia de que “tudo flui”, frase comumente
atribuída a ele, mas que ele nunca disse. A ideia central seria a de que quando entramos em um rio para
tomar banho, o rio nunca é o mesmo porque sempre estão fluindo águas diferentes, quando saímos e
voltamos já não seriam mais as mesmas águas que passam no rio, o que levaria o rio a não ser o mesmo.
Assim como, você não seria mais o mesmo que entrou no rio pela primeira vez.

Contudo, vamos perceber que essa interpretação é problemática até para a narrativa que o coloca
na posição de defensor extremo do movimento na ​phýsis​. Se assumirmos que tudo muda, então não
poderíamos defender que o fogo (princípio escolhido por Heráclito) se mantém como essência de todas as
coisas, as coisas não mais seriam fogo, ou melhor, nada teriam de vínculo com o fogo. Ele deixaria de ser
essa essência das coisas. Por outro lado, essa é uma interpretação com a qual nem o próprio Heráclito
estaria de acordo, e não precisamos ir longe para perceber isso. Heráclito, quando escreve sobre o rio,
deixa claro que as águas fluem no ​mesmo rio, por mais que as águas sejam diferentes, é justamente a
diferença das águas que fluem que garantem a unidade do rio, pois se elas não se mexessem , não seria
um rio, mas um tanque. Podemos dizer que essa interpretação condiz muito mais com a noção do fogo
como princípio, essência, e que, justamente, o movimento presente nele garante que sua aparência se
transforme em outras coisas, mesmo que no fundo ainda seja fogo.

Acontece que em determinado momento, surge Parmênides e argumenta de forma muito


sólida justamente contrariando a ideia de que o movimento é possível. Para ele, na verdade, tudo
que vemos de diferente nas coisas não passa de mera ilusão, a única coisa que existe é o uno, sem
movimento. Para entender a argumentação de Parmênides será importante sabermos três princípios
lógicos que serão usados nessa argumentação. O primeiro é o ​princípio de identidade​, que diz
basicamente que o que é, é. Ou seja, uma garrafa é uma garrafa e não uma girafa. Apesar de parecer
óbvio, ele é muito importante e ainda mais no contexto de nascimento de argumentações sedimentadas
em princípios lógicos. O segundo é o ​princípio de não contradição​. A ideia é que uma coisa não pode
ser e não ser. Pensemos, se o princípio de identidade diz que uma garrafa é uma garrafa e não uma girafa,
seria uma contradição dizer que a garrafa é uma girafa, seria dizer que ela é uma garrafa e não é uma
garrafa. Percebe como é contraditório? Por fim, temos o ​princípio do terceiro excluído​. Ele segue a
lógica dos outros. O princípio de identidade diz que o que é, é, e o de não contradição diz que o que é não
pode ser e não ser, ou a garrafa é uma garrafa ou ela não é. É justamente nesse ponto que entra o princípio
do terceiro excluído, só podemos dizer que alguma coisa é ou que alguma coisa não é, não existe uma
terceira possibilidade, por isso terceiro excluído.

Entendidos os princípios lógicos vamos propriamente à argumentação de Parmênides sobre a


impossibilidade do movimento. ​Ele estabelece duas teses e nos mostra o que pode ser logicamente
verdadeiro e o que é logicamente falso. Vamos à elas. A primeira é: O ​ser é, e o ​não-ser não é.
Dentro dos princípios que estabelecemos essa tese é completamente verdadeira. O que ele disse é que o
que existe, o que é, existe, e o que não existe não existe. Novamente, nos parece óbvio, mas estamos
olhando para o nascimento de argumentações lógicas. ​A segunda tese é a seguinte: O ​ser não é, e o
não-ser é​ . Essa é completamente ilógica. O que ele está dizendo é que o que existe não existe e o que não
existe existe, ou seja, indo contra todos os princípios lógicos estabelecidos.

Para perceber a veracidade ou não dessas frases, creio que não tivemos muita dificuldade, mas
usemos essa mesma lógica para responder algumas questões acerca da ​arché​. 1) O ​ser pode se
mover/mudar? Bom, se o ​ser deixar de ser o que é, ele será um ​não-ser,​ o que é uma contradição,
portanto ​ele é imutável. 2) O ​ser pode ter nascido? Se assumirmos que ele nasceu, significa dizer que,
de ​não-ser,​ ele passou a ​ser,​ ou seja, da não existência, à existência. De certa forma, é dizer que o ​ser se
modificou, o que já dissemos que é uma contradição. ​Ele é ingerado​. ​3) O ​ser pode morrer? A lógica é
a mesma da anterior, só que ao invés de ​não-ser ​à ser, e​ le iria do ​ser ​ao ​não-ser.​ Ou seja, o ​ser é​ também
imortal. ​4) O ​ser pode se dividir? ​A lógica permanece, se o ​ser se dividir, ele não será mais o mesmo, de
tal forma que passa a ​não-ser​. Nos levando a concluir que que ​ele é indivisível também. O que
Parmênides nos diz, para concluir, é ​que a existência se resume nesse princípio ​uno​, que sempre foi
uma coisa só, que nunca nasceu, mas sempre existiu, que sempre existirá, que continuará sendo uno
e jamais se modificará. A realidade é e ponto. Não existe essa coisa chamada movimento, tudo que seja
fora disso que o próprio pensamento lógico e estruturado nos disse, é apenas uma ilusão, um não saber
sobre a realidade.

Após essa tese extremamente bem argumentada de Parmênides, os filósofos tiveram então
duas saídas, como dissemos anteriormente, ​ou eles concordavam cem por cento com Parmênides e
seguiam a missão de contra-argumentar contra qualquer um que afirmasse a possibilidade do movimento,
ou tentavam encontrar uma tese que desse conta de estar dentro desses padrões lógicos, mas que
também desse conta de defender que a realidade não era somente esse uno de Parmênides. É daí que
surge a ideia de que talvez a realidade fosse composta por diversos desses “unos” de Parmênides e que a
junção deles de diferentes formas criasse os objetos e elementos tal como vemos. As duas principais
teses são as de Empédocles e a dos Atomistas, que já abordamos anteriormente.

É após a ideia da unicidade do ser e das tentativas de explicação desse ser uno pelos seguidores de
Parmênides que para a narrativa oficial surgirão os Sofistas e Sócrates com outros problemas e teses.

Na próxima aula, iremos estudar os Sofistas, grupo de filósofos que acaba sendo colocado dentro
dos pré-socráticos ou algumas vezes não sendo caracterizado como filósofos por suas teses polêmicas
acerca da realidade, da linguagem e da verdade. Espero que tenham aproveitado e entendido o conteúdo.

​Temos algumas questões sobre os pré-socráticos em seguida com gabarito mais abaixo para
que só o olhem depois de tentarem fazer as questões.
Até a próxima aula. :)

Referências Bibliográficas:

Aristóteles.​ Metafísica.

​ Invenção da Filosofia.
Cordero, Néstor Luis. A

Osborne, Catherine.​ Filosofia Pré-Socrática.

Pacheco, Juliana (org.). ​Filósofas. A Presença das Mulheres na Filosofia.


Questões Enem: Gabarito na última página, 3)
olhe somente após fazer as questões!

1)

4)

2)
6)
Gabarito:

1) a; 2) d; 3) e; 4) c; 5)c;

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