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RESUMO DA QUALIFICAÇÃO

Rio de janeiro, 25 de abril de 2013 – Sala Multimídia (PPGH) – Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro (UNIRIO).

Por Vânia Vidal Luiz

Boa tarde a todos,

Gostaria de expressar meus agradecimentos a todos os que estão aqui presentes,

em especial aos senhores membros da banca: Profa. Dra. Vânia Leite Fróes, da

Universidade Federal Fluminense (UFF), Prof. Dr. Paulo André Leira Parente, da

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Profa. Dra. Miriam

Cabral Coser, minha orientadora, por gentilmente aceitarem o convite para apreciar esse

trabalho e participar desse exame de qualificação.

Gostaria, também, de agradecer ao Programa de Pós-Graduação em História

Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e aos

laboratórios NERO/LEM por possibilitarem a realização dessa pesquisa, e em especial à

minha orientadora, Profa. Dra. Miriam Cabral Coser, aqui presente, pelo empenho e

dedicação na consecução desse trabalho.

Dentro do espírito, no qual firmemente acreditamos, de que toda pesquisa nasce

de uma indagação fruto de uma dúvida ou estranheza, podemos afirmar que, com esta,

isso não foi diferente.

No material de qualificação apresentado constam o projeto reelaborado, o plano

de redação da dissertação no formato em que ela se encontra até o momento, o primeiro

capítulo completo, e parte do terceiro.

No projeto, tomamos como nosso objeto de investigação as estruturas narrativas

da Batalha de Montaperti, com os propósitos de analisá-las e discutir, a partir disso, os

conceitos de história e literatura e sua aplicabilidade para o Ocidente Medieval, por


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entendermos que a tensão existente entre os dois, em que um teria estatuto de verdade e

o outro não, poderia trazer algumas considerações importantes sobre o pensamento

medieval.

Nosso problema residia na possibilidade de se poder, ou não, aplicar essas

categorias às construções narrativas do século XIII, e como isso se daria.

Como metodologia, pensamos inicialmente em trabalhar com análise de

conteúdo, pois tal método permitiria examinar diversos esquemas sêmicos, utilizando

recursos multidisciplinares úteis para a interpretação das fontes. Além disso,

pretendíamos também utilizar recursos próprios da retórica, e com base nesse tipo de

exegese, ver como as categorias de maravilhoso, fictio, imaginatio e fantasia operam e

correlacioná-los às de Verdade, Autoridade, Ventura, Sentido e Providência.

No primeiro capítulo, buscamos oferecer a fundamentação teórica de nossa

interpretação das narrativas medievais e do papel crucial que consideramos exercerem

dentro do pensamento da época, no que concerne aos espaços ocupados pela Literatura e

História, e dos recursos utilizados para a construção de uma conceituação de Verdade e

verossimilhança, que pensamos serem fundamentais para o pensamento humanista

escolástico, cujo impacto na região extrapolaria o domínio das letras.

Ao estabelecer as bases teóricas sobre as quais essa pesquisa de assenta,

tentamos, primeiramente, fornecer uma contextualização histórica acerca da produção

escrita na cidade de Florença nos séc. XIII e XIV, nosso recorte cronológico, com dados

sobre o número de leitores, uso da língua vulgar, produção do livro, recrudescimento

das universidades e formas de leitura.

Detivemo-nos em especial no aparecimento da pecia, processo inovador na

confecção do livro, tornando-o mais acessível tanto em quantidade de exemplares


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disponíveis como em custo de fabricação, e, também, nas inovações verificadas na

configuração interna dos códices, às quais buscamos relacionar com os princípios de

ordem e sistematização próprios da Escolástica.

Pretendemos, do mesmo modo, demonstrar através das formas de leitura

presentes no medievo, e das consequentes relações estabelecidas entre letra e voz,

escritura e oralidade, e suas modalidades, declamativa cantada, declamativa recitada, e

silenciosa, não somente a dimensão que essas práticas alcançam na concepção do texto,

pensado para ser lido em uma performance, mas, igualmente, nos aspectos de leitura

pública que tornam sua difusão ainda maior.

Para tanto, utilizamos, sobretudo, os conceitos de Paul Zumthor que entende o

texto medieval enquanto uma ação performática por excelência, gregária e

necessariamente partilhada, que modifica a relação do leitor com o texto, pois este passa

a ser percebido pelo intercurso do corpo, de forma sensível, que lhe confere uma

‘tridimensionalidade’ semelhante à que se procura atingir com a conceptualização do

espírito santo. A dizer, o texto percebido enquanto grafia (lettera), imagem acústica, e

performance é uma manifestação vívida do Verbo, compreensão esta também alcançada

através do conceito de espírito santo, que é emanação de Deus, por si só inapreensível,

pois invisível, elemento gerador de todas as coisas, portanto ação/movimento, imaterial,

ao passo em que é, também, sua manifestação sensorial e imagética, figurada, por

conseguinte materializada, no caso, na figura de uma pomba.

Evidentemente que os conceitos implicados em sua compreensão escapam aos

nossos propósitos, mas servem para ilustrar como o texto passa de uma materialidade, a

letra grafada, para um conceito, tanto através de imagens acústicas como de imagens

mentais, para uma manifestação sensorial de seu movimento gerador, a performance e


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podemos vislumbrar o impacto que essa forma de relação com o universo da escritura

alcança na vivência cotidiana do medievo.

A seguir, partimos para expor os usos dos termos Literatura e História pela Idade

Média, com o objetivo de estabelecer diferenças entre eles, e, sobremaneira, o locus que

ocupam dentro das sete artes liberais, argumentando que dentro do pensamento

escolástico as leis que regiam a linguagem tinham status especial, pois seriam a

expressão de Deus, do Verbo, e existiriam para significar, pois não só teriam

correspondência com as coisas que significam, como seu fundamento estaria na

realidade.

Como disse Pedro Abelardo no séc. XII: “a linguagem não é o véu do real, mas

sua expressão”, diante disso, o esforço medieval residiria em adequar o carácter

significante da linguagem com a realidade que manifesta.

Seguindo essa direção, situamos a história, a fábula, e a poesia, levando-se em

consideração que o conceito ‘literatura’ era desconhecido para o medievo, dentro da

Lógica, nos estudos relacionados à Grammatica, mais precisamente, em uma subdivisão

da Dissertiva, a poesis.

Buscando perceber como tais categorias se comportavam, Literatura, História e

também a fábula, notamos que outra relação chamava a atenção e podia ser estabelecida

entre as narrativas e o elemento ficcional visando o estabelecimento de um conceito de

verdade.

Em virtude disso, auferimos que alguns recursos próprios da retórica, como a

alegoria e o intergumentum (velamento poético) operavam para ora encobrir ora

desvelar uma Verdade subjacente, ou permitir que sistemas simbólicos alheios ao

cristianismo pudessem ser assimilados e incorporados por este.


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E como todas as matérias sobre as quais se debruçariam a história, a poesia e a

fábula somente seriam apreensíveis através do intercurso da sensibilidade, apreendidas

de forma sensorial, e somente elaboradas por intermédio de diversas formas de

representação, a dizer, pela imaginação, pela fantasia, pois a essência das coisas sobre

as quais versariam, sendo uma realidade imaterial diferente das manifestações sensíveis,

só poderia ser compreendida exclusivamente pelo intelecto.

Enquanto nos debruçávamos sobre essas questões, começamos a pensar outra, a

diferença de interpretação percebida nas narrativas trazidas pelas fontes dessa pesquisa,

quando analisadas sob tais perspectivas (A Cronica Nuova de Villani e o Libro di

Montaperti), evidenciavam uma passagem ocorrida no pensamento escolástico

humanista, do neoplatonismo para o aristotelismo, verificada em Florença no período.

Sabemos que, pela proximidade com a Sicília e Nápoles, e com mundo

Bizantino, traduções do árabe, do grego e do hebraico do corpus Aristotélico circulavam

pela região, tornando-se conhecidos nos grandes centros da Península Italiana textos

importantes do pensamento de Aristóteles, como o De Anima. Igualmente, a influência

do pensamento de São Tomás de Aquino sobre a Escolástica do período, não pode ser

menosprezada.

Por essa razão, pensamos em categorias de análise que pudessem explicar como

os processos interpretativos dos textos medievais operavam, e chegamos a quatro

principais: a Fictio, a Imaginatio, a Fantasia e o Maravilhoso. Definimos cada uma

delas, utilizando desde sua etimologia à forma como acreditamos que funcionariam

dentro do pensamento tomista e as relacionamos com os conceitos de Verdade,

Verossimilhança, Providência e Sentido.


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E concluímos que ‘O texto medieval, sendo qual for a sua inclinação, se

literária ou histórica, aspira a um Sentido tanto quanto à sociedade que o cria. E tal

sentido se expressa na condução a uma realidade que é Divina, e inteligível somente

mediada pela contemplação, pois não possui per se representação plástica cognoscível,

ou representação histórica. ’ Também, verificou-se que o elemento maravilhoso, ou a

meraviglia, sobretudo o maravilhoso cristão, em sua acepção sensorial, funciona como

balizador da Verdade que expressa, pois se a história é aquilo que é testemunhado,

tanto o ‘passado acontecido’ quanto o ‘hipotético’, visto que, em boa medida esses dois

‘passados’ se equivalem, são percebidos, enquanto texto e enquanto testemunhos,

também de forma sensível, já que o texto medieval somente existe em sua faceta

tridimensional: a letra (na qual está implícito o sentido), a voz (autoridade), e o gesto.

Gesto que é performático, e implica a realidade e seus artifícios.

Nesse sentido, a escrita histórica medieval possui um carácter imagético que lhe

é intrínseco, perfazendo com que as noções de verdade e ficção se equivalham. Não

havendo autoridade em uma que suplante a da outra, pois ambas conduzem ao

entendimento de Deus.

No terceiro capítulo, partimos para a exegese das fontes contempladas nessa

pesquisa, a Cronica Nuova de Giovanni Villani, escrita no primeiro quarto do séc. XIV

em língua vulgar, e o Libro di Montaperti, de 1260, escrito em Latim, à luz das

categorias por nós estabelecidas.

Vimos que Villani logo no preâmbulo de sua obra evidencia duas características

presentes nos conceitos de história da época, a dimensão ética implícita, de uma história

modelar, mestra da vida, e a monumentalização do passado quando diz, referindo-se aos

que virão depois dele, sobre os usos da história: “para que possam se exercitar
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praticando as virtudes e repelindo os vícios, e enfrentar as adversidades com o espírito

forte para o bem e estabilidade de nossa república”. E quando se refere ao carácter

exemplar da história: “para dar notícia aos que a nós se sucederem de não serem

negligentes em registrar os feitos notáveis que deverão ocorrer depois de nós, e para

dar exemplo aos que vierem depois, das mudanças e das coisas que aconteceram”.

Cotejamos trechos da crônica de Villani, como, por exemplo, alguns capítulos do

Liber Primo, que versam sobre a mítica fundação da cidade de Fiesole, que mais tarde

daria origem à Florença, e aplicamos nossas categorias de análise, partindo do

pressuposto medieval do aliud Dicitur, aliud demonstatur (além do que é dito, além do

demonstrado).

Observamos o mesmo nos outros capítulos que traduzimos, e vimos que “a

alegoria é a forma encontrada para converter esse ‘alfabeto’ que ‘fala da ordem do

mundo’, e dos ‘bens sobrenaturais’ desse mesmo mundo, tornando inteligível aquilo que

escapa à lógica medieval de causa e efeito, significado e finalidade, ou que, por algum

motivo, teria sua natureza nociva ou corruptível quando explicitada”. (ECO: 2012)

Por isso, “a manifestação textual estaria sujeita aos mecanismos interpretativos,

capazes de alcançar os significados ocultos dos textos, desvelando a verdade sunjacente

de forma a torná-la apreensível ou mesmo completa em sentido”.

Percebemos, nesse e em outros capítulos da crônica, claramente o uso do

intergumentum, e pudemos observar como categorias como a fictio, imaginatio,

fantasia e maravilhoso operavam dentro da narrativa, tanto no concernente a um

desvelamento de uma verdade subjacente, como na validação dessa mesma Verdade. É

nesse sentido que tais categorias se atrelam ao poder, pois conferem autoridade ao texto.
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Também utilizamos de elementos próprios do pensamento aristotélico, trazidos à

Escolástica para analisar o conceito de Providência Divina utilizado por Villani e

correlacioná-lo com os de Verdade e Sentido, assim como explicar as nuances de

sentido que a passagem do neoplatonismo ao Aristotelismo oferece para a interpretação

do texto no período.

E, embora o capítulo ainda esteja em processo de construção, com muito

material ainda a ser analisado e traduzido, acreditamos ter conseguido, ainda que

parcialmente, demonstrar nas fontes as hipóteses aventadas no primeiro capítulo e

aplicar as categorias criadas para nossa investigação.

Conscientes das falhas existentes nesse trabalho, e das dúvidas que surgem a

todo o momento, durante a consecução de uma pesquisa científica, gostaríamos de

propor um amplo espaço de discussão, no qual as críticas que porventura existam, e as

sugestões aventadas, serão bem-recebidas e motivos para o seu aprimoramento.

Procuramos durante a feitura de todas as etapas dessa pesquisa, sempre oferecer

e utilizar uma bibliografia ampla, diversificada, e o máximo possível atualizada, tanto

da produção editorial como da acadêmica sobre a Idade Média, conjuntamente com o

largo emprego de autores do período e trechos originais.

De forma alguma, em nenhum momento dessa pesquisa, perdemos de vista que,

embora nosso estudo convirja para a história medieval, o nosso trabalho atende às

exigências da historiografia contemporânea. E embora não poucas vezes recorramos às

autoridades antigas, temos a dimensão de que nossa percepção da história, seus limites,

seus usos, seus instrumentais, obedecem ao tempo na qual essa se origina, portanto,

somos cônscios dos percalços que temos que superar para tratar de temas tão complexos

e cronologicamente distantes.
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E, sabedores que o medievo é mais repleto de sutilezas e delicadezas, em suma,

de beleza, do que intenta o senso comum, tentamos oferecer um breve panorama de

como as narrativas medievais podem constituir sua mais elevada expressão.

Espero que tenhamos ao menos alcançado esse objetivo, e que afinal, estejamos

no caminho certo. Muito obrigada.

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